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Luy Zeidan Duarte - Universidade de Brasília (UnB)

duarte.luy@gmail.com

De Volta à Caverna
o mergulho de Platão
nos negócios humanos

Back to the Cave


Plato’s Dive into the
business of the world

Resumo: Na Era Contemporânea, parece ter-se tornado consenso, entre as análises


acadêmicas, reconhecer uma certa influência platônica sobre as cargas de espiritualidade 1
e de pensamento metacientífico presentes no mundo atual. Ora, seja por um descuidado
entendimento moderno sobre o filósofo ou por uma já antiga repercussão deturpada de
sua obra, se atribui comumente a Platão a teoria da existência una e independente das
ideias (ou formas), à parte das coisas de nosso mundo, numa outra realidade de essências
– arcabouço teórico que serviu de base para o posterior desenvolvimento da doutrina cristã
e, de maneira geral, da relação do homem ocidental com seu corpo. Contudo, no presente
artigo buscaremos refutar, através da análise comparativa de fragmentos da obra
platônica, esta comum percepção, demonstrando que, na realidade, a independência entre
as formas e os entes sensíveis, bem como a proposição de sobrevivência da alma à morte
do corpo em um mundo superior, são mais panos de fundo epistemológicos e teoréticos
de Platão do que contribuições individuais de sua própria filosofia. Muito pelo contrário, ele
parece fazer uma apologia da reinserção do filósofo nas coisas humanas após o acesso à
verdade das ideias, em respeito à responsabilidade civil de educar e, assim, libertar
também aos outros. Para tal tarefa, nos utilizaremos, entre outros, dos diálogos em que
são apresentados o discurso de Sócrates aos discípulos Símias e Cebes sobre a
desejabilidade da morte para o filósofo como a libertação última do pensamento (Fédon
63e-69e) e o sermão socrático pregado a Glauco acerca da mais conhecida do que
corretamente compreendida alegoria da caverna (A República 7.514a-521b).
Palavras-chave: Platão; alegoria da caverna; Fédon; A República; filosofia antiga.

Abstract: In the Contemporary Era, there seems to be a consensus, between the


academic analyses, of recognizing some Platonic influence over the loads of spirituality
and metascientific thought that are present in the current world. Either because of a
careless modern understanding about the philosopher or by the already oldly deturped
repercussion of his works, it’s commonly attributed to Plato the theory of unique and
independent existence of the forms (or ideas), separated from the things of our world, in
some other reality of essences – a theoretical framework that based the later development
of Christian doctrine and, in general, of the relation of the western man with its body.
However, in the present article we search to refute, through the comparative analysis of
some fragments of the Platonic work, this common perception, showing that, in fact, the
independence between ideas and sensible beings, as well as the proposition of survival of
soul after body’s death in a higher world, are more theoretical and epistemological
backgrounds for Plato than individual contributions of his own philosophy. Quite the
contrary, he seems to defend the reinsertion of the philosopher in the human things after
accessing the truth of the forms, in respect to the civil responsibility to educate and,
therefore, to liberate the others as well. For such task, we’ll specially make use of the
dialogues in which are presented in the Socrates’ speech to the disciples Simmias and
Cebes about the desirability of death to the philosopher as the ultimate releasing of thought
(Phædon 63e-69e) and the socratic lecture conducted to Glaucon around the better known
than fully understood allegory of the cave (Republic 7.514a-521b).
Keywords: Plato; allegory of the cave; Phædon; Republic; ancient philosophy.

ZEIDAN DUARTE, Luy (2017). De Volta à Caverna – o


mergulho de Platão nos negócios humanos.
Cit.: ZEIDAN, L. D. “De Volta à Caverna”. UnB, 2017.

A prática filosófica no eixo da cidadania


Com todo o direito que os concitamos [os filósofos formados entre
nós], mais: que os obrigamos a cuidar dos outros cidadãos e a
vigiá-los. Lhes dizemos que nas outras cidades é natural não se
afanarem com a Política os filósofos como eles, pois todos se
formam por si mesmos, nessas cidades, à revelia das respectivas
constituições, sendo, por conseguinte, de elementar justiça,
quando alguém cresce dessa forma, sem dever nada a ninguém,
recusar-se a pagar alimentos seja a quem for. Porém, vós outros
fostes por nós criados para vosso bem e da cidade, como dirigentes
e reis do enxame, tendo sido a educação que vos demos mais
completa que a deles, motivo de terdes ficado capazes de vos
aplicardes nos dois campos. (Plat. Rep. 7.520b-c)¹
2
Talvez um dos trechos de A República que melhor define a filosofia platônica, a
passagem acima é um verdadeiro retrato das responsabilidades e deveres civis que
pesavam sobre os pensadores atenienses e que os acompanhavam desde sua educação
mais básica. No contexto social e político que se desenvolveu em Atenas sobretudo a
partir do século VII a.C., a participação cívica dos indivíduos era pressuposta, sendo
aquele cidadão que não contribui e não participa dos negócios da polis considerado inútil,
indigno. Devido a isto, a relação entre a filosofia ateniense e as estruturas políticas da
cidade estará sempre marcada por ambiguidades.
Segundo o historiador helenista Jean-Pierre Vernant, a polis helênica se
caracteriza por dois aspectos centrais: por um lado, a preeminência da palavra como
instrumento de poder – fator que foi essencial para os desenvolvimentos epistemológicos
posteriores – e, por outro, um cunho de plena publicidade impelido sobre a vida social, o
que, por sua vez, pressupunha uma progressiva adaptação dos interesses e condutas
individuais em proveito do grupo, colocados assim, sob o olhar de todos.² Este duplo
movimento de democratização e divulgação se refletirá decisivamente no plano intelectual-
filosófico dos cidadãos ao tornar os conhecimentos, valores e técnicas mentais antes
restritas ao escrutínio do filósofo, elementos de uma cultura comum, levando-os à praça
pública e sujeitando-os à contradição e à crítica.
Quando, por sua vez, os indivíduos decidirem tornar público o seu
saber por meio da escrita, (...) sua ambição não será fazer
conhecer a outros uma descoberta ou uma opinião pessoais; o que
vão querer, depositando sua mensagem ἐς το ηέτον³ [– ao alcance
do público –,] é fazer dela o bem comum da cidade, uma norma
suscetível, como a lei, de impor-se a todos. (VERNANT, 1962)

Por outro lado, nascido aproximadamente no século V a.C., o pensamento filosófico


tem suas origens nas religiões de mistérios e nos sacerdócios secretos então já
disseminados entre as cidades gregas, o que, com efeito, configura a verdade do sábio,
tanto quanto o mistério religioso, como a revelação de uma realidade superior dificilmente
acessível aos homens comuns. Esta “transformação de um saber secreto de tipo esotérico
num corpo de verdades divulgadas no público”⁴ se dá pelo fato de que, entregue à ampla
publicidade da escrita, este tipo conhecimento se destaca do círculo fechado das seitas
para tomar lugar no espaço intelectual coletivo, ao passo que, com a constituição da polis,
os cultos que o inspiraram são confiscados e tornados oficiais em proveito da cidade.

A dualidade intrínseca à filosofia helênica


Dessa forma, a primeira sabedoria surge com uma contradição: a filosofia é
entregue ao público e submetida ao julgamento de todos, na esperança de ser
universalmente aceita e reconhecida, no entanto, ao mesmo tempo, proclama para si
mesma o status de um saber inacessível à maior parte desse público. Por este motivo, a
figura do filósofo oscilará entre dois arquétipos: ora se afirmará o único qualificado a dirigir

o Estado e pretenderá, em função de seu saber supostamente superior, ordenar e reformar


a vida social, firmando raízes no mundo – retrato facilmente identificável com aquele
descrito no trecho supracitado de A República; ora se retirará deste mundo, negando à
vulgaridade das coisas humanas e refugiando-se, junto a alguns de discípulos agrupados
em torno de si, no conhecimento metafísico e na contemplação ascética.⁵ Em uma só
palavra, o filósofo se caracteriza então pela dualidade: ora político, ora eremita; ora sujeito
ao engano do corpo, ora reservado à pureza da alma. A este segundo arquétipo
mencionado parece corresponder adequadamente o diálogo, doxografado por Platão, de
Sócrates e seus discípulos Cebes e Símias; dirigindo-se a este último e frente ao
julgamento que resultaria de sua execução, Sócrates faz uma apologia à aceitação de bom
grado da morte por parte do filósofo:
Na verdade, Símias, os que praticam verdadeiramente a Filosofia
de fato se preparam para morrer, sendo eles, de todos os homens, 3
os que menos temor revelam à ideia da morte. Basta
considerarmos o seguinte: se de todo jeito eles desprezam o corpo
e desejam, acima de tudo, ficar a sós com a alma, não seria o
cúmulo do absurdo mostrar medo e revoltar-se no instante em que
isso acontecesse, em vez de partirem contentes para onde
esperam alcançar o que a vida inteira tanto amaram – pois foram
justamente isso: amantes da sabedoria [φιλόσοφος (philosophos)]
– e ficarem livres para sempre da companhia daqueles que
desprezavam? Os amores humanos, ante a perda de amigos,
esposas e filhos, têm levado tantos homens a baixar
voluntariamente ao Hades, movidos apenas da esperança de lá
reverem o objeto de seus anelos e de com eles conviverem. No
entanto, quem ama de verdade a sabedoria, e mais: está
firmemente convencido de que em parte alguma pode encontrá-la
a não ser no outro mundo, haverá de sofrer com a chegada de
morte ao invés de partir contente para lá? Não podemos admitir
isto, meu caro, se se tratar de um verdadeiro filósofo. Pois este há
de estar firmemente convencido de que, a não ser lá, em lugar
nenhum poderá encontrar a verdade em toda a sua pureza. (Plat.
Phd. 67d-68b)⁶

Podemos enxergar, adjacentes à ideia de desejabilidade de seu próprio decesso


ao filósofo, três movimentos principais no discurso do Sócrates platônico a Símias: a) a
negação dos valores humanos e o desprezo às paixões do corpo; b) a sobrevivência, em
uma realidade excelsa, da alma à morte do corpo; c) a existência restrita a esta realidade,
de outro mundo, da verdade pura e da sabedoria de fato.

O caminho de áskēsis e o conflito entre corpo e alma


Como mencionado anteriormente, a forma de sabedoria revelada ao público com
o surgimento da filosofia na polis grega, mantinha em si, como herança do universo
religioso das seitas sacerdotais, um espírito de verdade inacessível à maioria, oculta aos
olhos do vulgo. Assim, defende Vernant, a philosophia submete o mistério ao exame e ao
estudo, mas sem deixar de, em sua natureza, ser também um mistério:
Aos ritos de iniciação tradicionais que proibiam o acesso às
revelações interditas, a sophia e a philosophia substituem outras
provações: uma regra de vida, um caminho de ascese, uma via de
pesquisa que, ao lado das técnicas de discussão, de
argumentação, ou dos novos instrumentos mentais como as
matemáticas, conservam em seu lugar antigas práticas
divinatórias, exercícios espirituais de concentração, de êxtase, de
separação da alma e do corpo. (VERNANT, 1962)⁷

Como colocado, o ofício filosófico, desde seu nascimento, esteve associado a um


conjunto de práticas de domínio sobre os prazeres e dores inerentes ao corpo,
procedimentos que incluíam desde o uso ritualístico de ervas psicoativas até o controle
meticuloso da alimentação, ou mesmo a abstenção à atividade sexual. Estas regras de
vida, complementares às vias de pesquisa empíricas, argumentativas e matemáticas, são
exatamente a essência daquilo que, pelos filósofos helenos, era chamado de ἄσκησις
(áskēsis – ascese), isto é, o termo grego para “treinamento” ou “exercício” e que significa,
em suma, a prática de uma severa autodisciplina.⁸ Inclusive, uma diversidade de figuras
filosóficas de destaque neste tempo se tornaram conhecidas por redigir tratados acerca
dos excessos do corpo – a ira, as paixões, a natureza etc. –, autores como Aristóteles,
Teofrasto, Epicuro e os primeiros estoicos, além do próprio Platão.
O objetivo, aqui, é se distanciar o máximo possível do corpo, para reconhecer em
sua pureza as formas a que só a alma tem acesso: no mesmo diálogo do trecho 4
supracitado do Fédon, Sócrates indaga a Símias, em tom visivelmente retórico, se é
próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição de alguns pretensos prazeres.⁹
Primeiramente, questiona acerca dos prazeres de comer e beber, em seguida, dos
prazeres do amor e, enfim, daqueles associados aos cuidados do corpo e à riqueza; para
todos, a resposta unívoca de Símias é a de “que o verdadeiro filósofo os despreza”¹⁰. Ou
seja, o que se evidencia é que o difícil caminho em direção ao conhecimento verdadeiro –
e isto é tido como consenso mesmo entre as gerações de filosófos anteriores a Platão – é
também um percurso de privações da carne em benefício do espírito.
Estão aí descritos os dois primeiros movimentos identificados como destaques
propedêuticos à análise do trecho, nos concentremos agora no último deles.

Verdades inalcançáveis: a teoria da existência independente das formas


Mais ainda do que argumentar a favor do desprezo ao corpo em favor da elevação
da alma, Sócrates, como descrito pela doxografia platônica no fragmento do Fédon, dá a
entender que o verdadeiro conhecimento não pode ser encontrado lugar algum, senão em
outro mundo – pretensamente, segundo a lógica mítico-religiosa de Atenas, o Hades. Aí
está implícita a – também preterior a Platão – tese socrática da existência una e
independente das ideias (ou formas), separadas das coisas em si e, supostamente, em
uma realidade superior; esta teoria é sumariamente descrita em outro dos textos
platônicos. Nas primeiras partes do diálogo Parmênides, o versado e renomado expoente
da escola eleática dirige-se a seu discípulo Zenão de Eleia e ao jovem Sócrates; na
passagem apresentada a seguir, ele se ocupa justamente de advertir a este último sobre
os inconvenientes de se admitir a existência das formas à parte dos entes.
[SÓCRATES] O que se me afigura mais plausível, Parmênides, é
o seguinte: essas ideias se encontram na natureza à maneira de
paradigmas; as coisas se lhes assemelham como simples cópias
que são, consistindo toda a participação das idéias com relação às
coisas em se assemelharem estas àquelas.
(...)
[PARMÊNIDES] Já vês, Sócrates, em que apertos se mete quem
admite a existência à parte das idéias em si mesmas? (...) Não
apanhaste todo o alcance das dificuldades ao admitires uma idéia
única e independente para toda classe de seres; (...) a maior delas
é a seguinte: alguém poderia sustentar que, definindo-as como
fizemos, as idéias não podem ser conhecidas, não sendo possível
provar seu engano. (...) Pois eu imagino, Sócrates, que tu e todos
os que admitem para cada coisa particular uma essência existente
por si mesma, confessam de antemão que nenhuma delas existe
em nós. (Plat., Parm.132d-133c)¹¹

O physiológo eleático questiona, a partir da defesa de seu interlocutor, acerca da


possibilidade de se adquirir conhecimento de fato, uma vez que se não atuamos nelas e
“nem possuímos as ideias em si mesmas, nem elas podem existir [ou atuar] entre nós”¹²,
qualquer conhecimento verdadeiro advindo das ideias – o gênero, pretensamente perfeito
e divino, do “conhecimento em si” – não pode servir para conhecer as coisas e verdades
deste mundo, que existem apenas entre nós. Portanto, a crítica de Parmênides no
fragmento em destaque incide sobre a intangibilidade das formas quando concebidas sem
relação, ademais da semelhança, com seus respectivos entes; com efeito, o que defende
o Sócrates platônico é que “cada uma dessas ideias não passe de pensamento, não
cabendo, por isso, formarem-se em parte alguma se não for, tão-só, no espírito”¹³. Ou seja,
segundo a tese socrática, é somente no plano imaterial da Ψυχή (psūkhḗ - alma,
espírito)¹⁴ que podem atuar estas essências unas, sendo as coisas de nosso mundo
simplesmente assemelhadas a elas, como cópias imperfeitas, ou sombras. 5
As sombras na caverna
Neste ponto, há de se reconhecer severa convergência entre o que Platão
descreve, no diálogo parmenidiano, como as concepções que já estavam presentes, antes
de seu tempo, no pensamento do jovem Sócrates, e os apontamentos iniciais da já
introduzida alegoria da caverna, desenvolvida por ele em A República. Ora, nesta última,
é justamente ao engano dos sentidos e do corpo que se refere Platão ao narrar a prisão
na morada subterrânea em que os homens, desde pequenos – metáforas do ser humano
em sua natureza –, são forçados a permanecer, de braços e pernas amarrados, a olhar
sempre para frente.¹⁵ Precisamente, a estes homens estaria possibilitada somente a visão
das sombras projetadas pela luz de um fogo que, aceso a uma grande distância, iluminaria
utensílios de toda sorte com a figura de estátuas, animais e objetos da mais variada
espécie. Para as pessoas nessa situação, diz o filósofo, “a verdade consistiria apenas na
sombra dos objetos fabricados”¹⁶, como meras representações das reais formas –
afirmação similar àquela presente no trecho supracitado do Parmênides, em que Sócrates
defende que as “ideias se encontram na natureza à maneira de paradigmas [e] as coisas
se lhes assemelham como simples cópias que são”†.
Quando supõe e comenta a libertação hipotética de um desses indivíduos, o autor
coloca que sua reação imediata seria a de resistir e negar àquilo que pode enxergar, agora
livre para ver a realidade, e imaginar ser mais verdadeiro tudo o que ele vira até então.
Sendo este indivíduo, ademais de sua resistência, obrigado a caminhar em direção à luz
do sol, o filósofo lhe prescreve um custoso percurso em que, de início ofuscada, sua vista
gradualmente se habituaria a enxergar os objetos da região superior. Este processo é
descrito no excerto abaixo apresentado:
Precisaria, creio, habituar-se para poder contemplar o mundo
superior. Começará por distinguir mais facilmente às sombras; em
seguida, às imagens dos homem e dos outros objetos refletidas nas
águas; por último, poderá contemplar aos próprios objetos,
contudo, sempre mais facilmente durante a noite, sob a claridade
dos astros e da Lua, do que de dia ao Sol com todo o seu fulgor.
(...)
De raciocínio em raciocínio, chegaria à conclusão de que o Sol é
que produz as estações e tudo dirige no espaço visível, e que, de
algum modo, é a causa do que ele e seus companheiros estavam
habituados a distinguir.
(...)
E então, quando se lembrasse de sua primitiva morada, da
sabedoria lá reinante e dos companheiros de prisão, não te parece
que se felicitaria pela mudança lastimaria a sorte deles todos?
(Rep. 7.516a-c)¹⁷

† apud página 4.

O que aí está demonstrado não é simplesmente a libertação metafórica do homem,


mas também o difícil caminho de ascenção do filósofo rumo ao conhecimento verdadeiro,
obstaculizado pelas limitações de seus próprios corpo e sentidos. A luminosidade, neste
contexto, como representação da razão filosófica, não é de maneira alguma desejável aos
cativos, iludidos pelas imagens que lhes são apresentadas como a verdade; por este
motivo, como defendem P. Donini e F. Ferrari, “é inevitável que, se um destes prisioneiros
libertados voltasse para a caverna e contasse o que viu lá fora, seria tido como louco e
acabaria por ser isolado dos outros”¹⁸. Esta, por sua vez, não é a única dificuldade de um
possível retorno ao subterrâneo, o diálogo postula que “por duas causas perturba-se a
visão: na passagem do claro para a escuridão e vice-versa: das trevas para a luz”¹⁹. Assim,
no percurso contrário ao descrito, “da contemplação divina para as misérias humanas”²⁰,
o mesmo incômodo se dará com a alma que, consumida pela trevas, debater-se-á nestas 6
dificuldades, tornando-se temporariamente incapaz de discernir seja o que for.

De volta à caverna: a reinserção do filósofo nos valores humanos


Todavia, muito a despeito da tradicional percepção do arquétipo filosófico de Platão
como aquele que deseja refugiar-se na inacessibilidade do mundo das ideias, é
exatamente o caminho de volta às sombras que ele reconhece, sob a alcunha de um
Sócrates mais experiente e versado, como o ofício dos filósofos atenienses, educados,
“para [seu] bem e da cidade, como dirigentes e reis do enxame”††. Retomemos, portanto,
a questão do espírito cívico dos habitantes de Atenas: as Leis – objetos de outro dos
diálogos platônicos –, como representações da vontade coletiva, não se empenham de
forma alguma em garantir uma vida excepcional a uma determinada classe, mas sim, em
“deixar feliz toda a cidade, convencendo ou compelindo os cidadãos a se beneficiarem em
comum dos serviços que cada um é capaz de prestar à comunidade”²¹.
Da mesma forma, o filósofo deve abnegar à excepcional vida que lhe provém o
contato com a luz e retornar para o convívio com os outros, onde, dotado da visão superior
que lhe foi conferida, deve dedicar-se à emancipação de seus companheiros. Pois, “no
limite extremo da região do cognoscível está a ideia do bem, dificilmente perceptível, mas
que, uma vez apreendida, impõe-nos de pronto a conclusão de que é a (...) fonte imediata
da verdade e da inteligência”²² e que precisa ser contemplada por aqueles que desejam
agir com sabedoria. Assim, é confiada aos verdadeiros amantes do conhecimento a
responsabilidade de libertar aos outros, esta que, por sua vez, pode ser melhor
compreendida através do discurso de Sócrates doxografado por Platão nos excertos
destacados a seguir:
[A GLAUCO] A nós, portanto, como fundadores da cidade, é que
compete forçar as naturezas nobres ao estudo do ramo do
conhecimento que há pouco designamos como o mais sublime: a
contemplação do bem, e a realizarem a ascensão a que nos
referimos. Mas, uma vez atingida a região superior e após terem
suficientemente contemplado o bem, não os deixaremos (...)
permanecer lá em cima, (...) [e não] compartilhar de seus trabalhos
e honrarias. (Rep. 7.519c-d)²³
(...)
[AOS FILÓSOFOS ATENIENSES] Tereis, portanto, de descer para
a morada dos outros, um de cada vez, a fim de, como eles, vos
habituardes a enxergar no escuro. Uma vez isso conseguido, vereis
mil vezes melhor do que os demais e reconhecereis de pronto as
imagens e o que cada uma representa, visto terdes contemplado
em sua verdade última o belo, o justo e o bem. (Rep. 7.520c-d)²⁴

†† apud página 2.

Está implícita nas passagens acima a questão do dever cívico, concebido como
próprio dos filósofos mais experientes, de ensinar a seus concidadãos, sendo a educação
compreendida, para os socráticos, de maneira distinta da concepção que muitos
proclamam dela – isto é, a capacidade “de enfiar na alma o conhecimento que nela não
existe”²⁵. Pelo contrário, na filosofia platônica, o conhecimento é tido como uma faculdade
inata ao espírito (psiché) que, por sua vez, é entendido como “o orgão do conhecimento”²⁶.
Portanto, o ofício da educação é aqui concebido não como a arte de conferir vista à alma,
mas sim de direcionar a vista já inerente ela e possibilitar sua conversão das coisas
perecíveis à mais pura verdade do ser.
Além disso, o filósofo utiliza-se, no segundo dos fragmentos expostos, da
expressão πόλις οἰκήσεται (pólis oikísetai – morada comum, povoamento da polis)*,
epíteto de utilização corrente entre os gregos** e que se refere a um de seus valores 7
fundamentais expresso no verbo oikein que, não somente “habitar” ou “morar”, pode
assumir o sentido mais pleno de “agir em grupo, exercer atividade política”.²⁷ Assim,
quando o Sócrates platônico intima os filósofos atenienses a descerem à morada dos
outros, está na verdade convocando-os a mergulhar novamente nas chamadas misérias
humanas e, não só nelas, nos desígnios da cidade e, sobretudo, na política. É somente
preocupado com os intervenientes desta última que pôde surgir um platonismo de fato,
sempre caracterizado como uma forma de filosofia que busca incidir sobre a vida pública,
ordenando o espaço político e doutrinando a seus líderes, em benefício de uma polis justa
e estável – assim, bem como Parmênides, Platão parece admitir que o sublime
conhecimento das ideias, não podendo servir a este mundo, é simplesmente inútil.
Sua tese de “conversão” ao pensamento racional e sua atuação no contexto de
Siracusa, assim como a fundação da Academia, só podem ser entendidos como as
esperanças ou os instrumentos pelos quais “Platão acreditou poder dar início ao seu
projeto de regeneração ético-política de Atenas”²⁸. Por isto mesmo, o diálogo platônico de
maior proeminência faz uma evidente apologia à reintrodução do pensador nos negócios
mundanos, pois o autor reconhece que é somente através da atuação do filósofo na vida
da cidade que esta terá dirigentes desvelados, ao invés de sonhadores que se dilaceram
em busca de poder. Por fim, pelo que se pode retirar de autônomo e autêntico dos
apontamentos filosóficos de sua obra, apesar das excessivas referências aos conceitos
opostos – o imaterial, o apolítico e o divino que supostamente alimentam à sua
racionalidade –, Platão é um filósofo que se debruça, despreocupadamente, sobre a
materialidade, a política e, enfim, sobre as coisas humanas.

* Na tradução utilizada, “morada dos outros”.


** Vide Xenofonte, II, 20 e Tucídides, VIII, 67, 1 (apud CANFORA, 2015, ps. 97 e 164).

Referências Bibliográficas

¹ PLATÃO. “A alegoria da caverna”. In A República VII, Diálogos vol. II. 514a-521b.


Tradução: Carlos Alberto Nunes. 3ªed., Belém: EDUFPA, 2000.

² VERNANT, Jean-Pierre. “O universo espiritual da polis”. In As Origens do Pensamento


Grego, p. 53-55. Tradução: Ísis B. da Fonseca. 15ª ed., Rio de Janeiro: Difel, 2005.

³ LAÉRCIO, Diógenes; livro I, 43, “carta de Tales a Ferecides” apud VERNANT, Jean-
Pierre; 1962, p. 58.

⁴ VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego, p. 58. Tradução: Ísis B. da


Fonseca. 15ª ed., Rio de Janeiro: Difel, 2005. 8
⁵ Ibid., p. 64.

⁶ PLATÃO. “A morte como libertação do pensamento”. In Fédon, Diálogos vol. I, 67d-68b.


Tradução: J. C. de Souza, J. Paleikat, J. C. Costa. 5ª ed., São Paulo: Nova Cultural, 1991.

⁷ VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego, p. 63. Tradução: Ísis B. da


Fonseca. 15ª ed., Rio de Janeiro: Difel, 2005.

⁸ https://en.wiktionary.org/wiki/ἄσκησις#Ancient_Greek

⁹ PLATÃO. “A morte como libertação do pensamento”. In Fédon, Diálogos vol. I, 64d.


Tradução: J. C. de Souza, J. Paleikat, J. C. Costa. 5ª ed., São Paulo: Nova Cultural, 1991.

¹⁰ Ibid., 64e.

¹¹ PLATÃO. “Teoria da existência à parte das ideias”. In Parmênides, Diálogos vol. III,
132d-133c. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 1974.

¹² Ibid., 134b.

¹³ Ibid., 132b.

¹⁴ https://en.wiktionary.org/wiki/ψυχή#Ancient_Greek

¹⁵ PLATÃO. “A alegoria da caverna”. In A República VII, Diálogos vol. II. 514a. Tradução:
Carlos Alberto Nunes. 3ª ed., Belém: EDUFPA, 2000.

¹⁶ Ibid., 515c.

¹⁷ Ibid., 516a-c.

¹⁸ DONINI, Pierluigi; FERRARI, Franco. “O mito, a alma, a filosofia”. In O Exercício da


Razão no Mundo Clássico: perfil de filosofia antiga, p. 175. Tradução: Maria da Graça
Gomes de Pina. 1ª ed., São Paulo: Annablume Clássica, 2012.

¹⁹ PLATÃO. “A alegoria da caverna”. In A República VII, Diálogos vol. II. 517d-518a.


Tradução: Carlos Alberto Nunes. 3ª ed., Belém: EDUFPA, 2000.

²⁰ Idem.

²¹ Ibid., 519e-520a.

²² Ibid., 517b-c.

²³ Ibid., 519c-d.

²⁴ Ibid., 520c-d.

²⁵ Ibid., 518b-d.

²⁶ Idem.

²⁷ CANFORA, Luciano. “Uma crítica não banal à democracia”. In O Mundo de Atenas, p.


159. Tradução: Federico Carotti. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

²⁸ DONINI, Pierluigi; FERRARI, Franco. “O mito, a alma, a filosofia”. In O Exercício da


9
Razão no Mundo Clássico: perfil de filosofia antiga, p. 98. Tradução: Maria da Graça
Gomes de Pina. 1ª ed., São Paulo: Annablume Clássica, 2012.

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