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2000
Um pensamento atormentador: a partir de um certo ponto, a história
deixa de ser real. Sem nem perceber, a humanidade toda, de súbito,
deixa a realidade; tudo que vem acontecendo desde então,
supostamente não foi verdade; mas supostamente nem notamos. Nossa
missão hoje seria encontrar esse ponto, e enquanto não o tivermos,
estaríamos forçados a nos conformar em nossa presente destruição.
Elias Cannetti
A humanidade também teve seu big-bang: uma certa densidade crítica, uma
certa concentração de pessoas e trocas presidiram essa explosão a que chamamos
história, que não é nada mais que a dispersão de núcleos densos e hieráticos das
civilizações anteriores. Hoje temos o efeito reverso: ultrapassando o limiar da massa
crítica onde populações, eventos e informação estão localizados engatilha o
processo oposto da inércia histórica e política. Na ordem cósmica, nós não sabemos
se alcançamos a velocidade de escape, o que significaria estarmos num estado
definitivo de expansão (o que sem dúvida permanecerá incerto). Na ordem humana,
onde as perspectivas são mais limitadas, é possível que a própria velocidade de
escape da espécie (aceleração da taxa de natalidade, das tecnologias e trocas no
decorrer dos séculos) cria um excesso de massa e resistência que derrota a energia
inicial e nos carrega em um movimento implacável de contração e inércia.
Se o universo está expandindo ao infinito ou retraindo em direção a um
infinitamente denso, infinitamente pequeno núcleo depende da sua massa crítica (e
a especulação sobre isso é infinita em virtude da possível invenção de novas
partículas). Por analogia, o caso da nossa história humana ser evolutiva ou
involutiva, dependerá da massa crítica da humanidade. Teria a história, o
movimento das espécies, alcançado a velocidade de escape requerida para triunfar
sobre a inércia da massa? Estaríamos afixados, como as galáxias, num curso
definitivo distanciando-se uns dos outros em velocidade extraordinária, ou seria
essa dispersão ao infinito destinada a chegar a um fim e as moléculas humanas se
reajuntarem em um processo oposto à gravitação? Pode a massa humana, que
aumenta a cada dia, controlar uma pulsação desse tipo?
Com isso, a situação se torna nova mais uma vez. O fato de que estamos
deixando a história e entrando na esfera da simulação é mera consequência do fato
da própria história ter sido sempre, no fundo, um imenso modelo de simulação. Não
no sentido de que ela só pode ter existido na forma de uma narrativa feita dela ou
de uma interpretação dada, mas quanto ao tempo em que ela transcorre – aquele
tempo linear que é simultaneamente o tempo de um final e o de uma ilimitada
suspensão do fim. A única forma do tempo em que a história pode se situar, se, por
história, entendemos a sucessão de fatos não-sem-sentido, cada um engendrando o
outro por causa e efeito, sem necessidade absoluta e permanecendo abertos ao
futuro, irregularmente posicionado. Tão diferente do tempo nas sociedades
ritualísticas onde o fim de tudo está no seu começo e a cerimônia retraça a
perfeição daquele evento original. Em contraste a essa ordem do tempo cumprida, a
liberação do tempo ‘real’ da história, a produção de um tempo linear, adiado, pode
parecer um processo puramente artificial. De onde vem essa insegurança? De onde
tiramos a ideia de que o que deve ser cumprido (Juízo Final, salvação ou catástrofe)
deve chegar no fim dos tempos e corresponder com um ou outro incalculável termo?
Esse modelo de linearidade deve ter parecido completamente fictício, totalmente
absurdo e abstrato a culturas que não tinham senso de um acerto de contas adiado,
de uma sucessiva concatenação de eventos e um objetivo final. Foi, com certeza,
um cenário com alguma dificuldade de se estabelecer. Houve grande resistência
nos primeiros anos da Cristandade ao adiamento da vinda do Reino de Deus. A
aceitação dessa perspectiva ‘histórica’ da salvação, quer dizer, de sua continuada
incompletude no presente imediato, não foi alcançada sem violência, e todas as
heresias iriam mais tarde tomar esse leitmotif do cumprimento imediato da
promessa no que era análogo a um desafio ao tempo. Comunidades inteiras
inclusive recorreram ao suicídio para acelerar a vinda do Reino. Uma vez que a
última era uma promessa do fim do tempo, pareceu a eles que bastava pôr de vez
um fim ao tempo.
O todo da história teve um desafio milenar a sua temporalidade enquanto a
atravessava. Em contraponto à perspectiva histórica, que continuamente muda suas
apostas rumo a um fim hipotético, sempre houve uma exigência fatal, uma
estratégia fatal do tempo que quer ir direto a um ponto além do fim. Não pode ser
dito que uma dessas tendências realmente saiu vencedora, e a questão ‘esperar ou
não esperar?’ [to wait or not to wait?] permanece, através da história, um problema
premente. Desde a convulsão messiânica dos primeiros Cristãos, que datam de
antes das heresias e revoltas, sempre houve esse desejo de antecipar o fim,
possivelmente pela morte, por um tipo de suicídio sedutor que almeja voltar Deus da
história e fazê-lo encarar suas responsabilidades, aqueles que estão depois do fim,
aqueles do final cumprido. E o que é, afinal, terrorismo, se não esse empenho em
conjurar, no meio do seu caminho, o fim da história? O terrorismo tenta emboscar
poderes em um ato imediato e total. Sem esperar o termo final do processo, se
coloca no estático ponto-final, esperando provocar as condições do Julgamento
Final. Um desafio ilusório, claro, mas que sempre fascina, uma vez que, no fundo, o
tempo e a história jamais foram aceitas. Todos continuam cientes da arbitrariedade,
do caráter artificial do tempo e da história. E nunca fomos enganados por aqueles
que nos exigem esperança.
Terrorismo a parte, não há também uma pitada dessa exigência parúsica [de
retorno] na fantasia global da catástrofe que ronda nosso mundo? Uma demanda
por uma resolução violenta da realidade, quando ela escapa à nossa compreensão
numa hiperrealidade infindável? Uma vez que a hiperrealidade exclui justo a
ocorrência do Julgamento Final, do Apocalipse ou da Revolução. Todos os fins que
concebemos fogem à nossa compreensão e a história não tem como concretizá-los,
uma vez que ela, até lá, chegará ao seu fim (é sempre a estória do Messias de
Kafka: ele chega tarde demais, um dia atrasado, e o atraso é insuportável). Então
pode-se muito bem curto-circuitar o Messias, adiantar o fim. Isso sempre foi a
tentação demoníaca: falsificar os fins e o cálculo dos fins, falsificar o tempo e a
ocorrência das coisas, acelerá-los, impacientes a vê-lo cumprido, ou secretamente
pressentindo que a promessa de cumprimento é ela mesma falsa e diabólica.
Mesmo a nossa obsessão com o ‘tempo real’, com a instantaneidade do
noticiário, guarda um mileniarismo secreto: cancelar o fluxo do tempo, cancelar o
atraso, suprimir a sensação de que o evento está ocorrendo em outro lugar,
antecipar seu fim liberando-nos do tempo linear, apoderando-se das coisas quase
antes delas ocorrerem. Nesse sentido, ‘tempo real’ é algo ainda mais artificial que
uma gravação, e é, ao mesmo tempo, sua recusa – se queremos a fruição imediata
do evento, se queremos experienciá-lo no instante do seu ocorrido, como se
estivéssemos lá, é porque não temos mais confiança no significado ou no propósito
do evento. A mesma negação é encontrada em comportamentos aparentemente
opostos – gravando, arquivando, memorizando tudo de nosso passado e de culturas
passadas. Não é esse um sintoma de um pressentimento coletivo do fim, um signo
de que os eventos e o tempo de vida da história tiveram seu tempo e que nós temos
que nos equipar com toda a bateria de uma memória artificial, com todos os signos
do passado, para encarar a ausência de um futuro e os tempos glaciais que nos
aguardam? Não estão as estruturas mentais e intelectuais atualmente indo ao
subsolo, enterrando-se em memórias, em arquivos, em busca de uma improvável
ressureição? Todos os pensamentos estão indo ao subsolo numa antecipação
cautelosa do ano 2000. Já podem inalar o terror do ano 2000. Já adotam
instintivamente a solução desses indivíduos criogenizados imersos em nitrogênio
líquido até que se descubram os meios que os permitam sobreviver.
Essas sociedades, essas gerações, que não mais esperam algo de um futuro
‘porvir’, tendo cada vez menos confiança na história, que se enterram detrás de
suas tecnologias futuristas, atrás de seus bancos de informação e dentro das
colméias-redes de comunicação onde o tempo é finalmente eliminado pela pura
circulação, quiçá nunca irão despertar. Mas eles não sabem disso. O ano 2000 pode
não ocorrer. Mas eles não sabem disso.