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Apresentação do romance “A glória e seu cortejo de horrores”

Fernanda Nali

Publicado em 2017, o segundo romance de Fernanda Torres, “A glória e seu cortejo de


horrores” se organiza em duas partes. A primeira é narrada em primeira pessoa por um
ator-personagem (que se revelará mais tarde como Mario Cardoso), no qual ele
rememora, com acidez mordaz, os bastidores dos ensaios, a preparação e a recepção
negativa da crítica e público da adaptação da tragédia Rei Lear, encenada primeiro no
Rio de Janeiro e depois em São Paulo, na qual ele encarna o protagonista. A narrativa
frenética e muitas vezes verborrágica do episódio tem seu ápice no que antecipa o fim
da temporada no centro financeiro do país: uma crise de risos que se dá sucessiva e
progressivamente.

A notícia de tentativa de suicídio de sua mãe, viúva e sem outros filhos, que o obriga a
voltar ao Rio de janeiro sem cobrir as despesas de hotel dacompanhia, assim como o
fracasso da empreitada teatral, a que ainda se somará irregularidades na prestação de
contas encontradas pelo ministério da cultura, descarrilham a rememoração das fases
da sua carreira, que o narrador conta, em tom de didatismo, como em consonância com
a história recente do Brasil: desde a experiência no teatro político no sertão
pernambucano, o teatro de rua, improvisações a incursão pelo cinema novo dos anos
60, o desbunde inspirado por uma geração hippie, nos anos 70 - quando este “se torna
místico, cósmico, telúrico”, as propostas de renovação do o encontro com o diretor
argentino Guria e o teatro de Tchékhov, menções ao experimentalismo e tentativas de
renovação estética do teatro Oficina e seu guru, José Celso, até a glória como um
famoso ator no auge da televisão, com diversos papéis nos quais se destacava pelo
porte físico, beleza e voz pontente, e decadência quando se vê obrigado a estrelar um
comercial de papel higiênico para acertar as contas com o leão e atuar numa novela
bíblica da rede de televisão evangélica.

É bastante perceptível a tentativa de que o romance possa ser um retrato do Brasil ao


apresentar um painel histórico sob a ótica da dramaturgia, o que parece se frustar, no
entanto, sobretudo pelo fato de que Mario Cardoso é não apenas epicentro mas
também periferia da obra. As referências literárias e as experiências na dramaturgia,
esta última seguindo uma ordenação cronológica com referências facilmente captadas
pelo leitor letrado, são talvez as únicas responsáveis por descarrilhar as reflexões no
protagonista, e o acaba fazendo, por vezes, com certo didatismo. Ainda sim, as
contingências contemporâneas do narrador interferem no modo como este reconta o
passado, fazendo-o surgir como uma série de anedotas.

Os espaços, desde o sertão pernambucano, passando pela Bahia (no malfadado


projeto de adaptação de “Grande Sertão: veredas”) por São Paulo e até mesmo a
periferia do Rio de Janeiro chegam com pouca conexão com as experiências subjetivas
vividas pelo personagem, e nesse sentido interferem pouco na narrativa.
No entanto, se as referências literárias/dramatúrgicas e o desenho das cidades não são
suficientes para que um cenário social de fato desponte, ao menos a tentativa fica
visível; ela parece se dar sobretudo no esforço de aproximar a tragédia shakesperiana
(e nesse sentido, as acepções das palavras glória, cortejo, horror, presentes no título,
pode ser fecunda) à decadência vivida pelo rio de janeiro, à tragédia brasileira, uma
cidade na periferia da intelectualidade inglesa que “sentido de humilhação tem, mas
que falta nobreza para usar a coroa” - que se coloca quando nos aproximamos das
páginas finais do romance (a noção de hierarquia em shakespeare só encontra paralelo
na tensão vivida nas favelas, paralelo entre as favelas e o mundo medieval); e que se
entrevê, mas que me parece de modo aleatório, em alguns episódios, como a nebulosa
cena da disputa pelo táxi na Tijuca quando Mário Cardoso volta (tensão entre Mario
Cardoso e a babá e crianças); no olhar sobre a decadência da casa da Tia Neusa e o
comodismo dos familiares que reconhece como seu público; no reencontro com
Jackson (dos testes para o Hair) vendendo isqueiros, a passagem pela linha amarela e
a observação do narrador sobre a modificação da paisagem na periferia (periferia que
guardava um modo de vida agrário e, com o asfaltamento, torna-se suburbano). No
entanto, esses episódios apenas tocam como vento sutil o protagonista. É ele quem
também reconhece ao se perguntar: quando me tornei um cínico? A pergunta, ainda
sim, não parece considerar cinismo para com as estruturas sociais mais abrangentes,
mas antes os vinculados a sua tragédia pessoal - não sentir remorso pela morte de
Raquel, não sentir a morte do pai a não ser como estorvo, a própria separação de Marta,
etc). É sempre tragédia narcísica do protagonista que o movimenta, inclusive para a
sua queda ao final da primeira parte, que assim como a de seu rei lear, que como em
transe desemboca em crises de riso e se enterra definitivamente como ‘o rei que ri’
(“Foram as fraldas, as fraldas e a falsa cegueira, o nojo do galã com os fluidos do
companheiro, os trovões do gênio do diretor, a afonia, eu de quatro no cubić ulo de
Copacabana, a azia dos frangos, a tara do bombeiro, a crit́ ica arrasadora, o público
estupefato, a bilheteria às moscas, o shopping fervendo com a liquidação de inverno, a
consciência traiçoeira, a fragilidade da profissão.”) também se encenará com ares de
irônica comédia dos erros, ridicularizado pelas crianças no sinal enquanto garoto
propaganda de uma marca de papel higiênico, ironicamente chamado Nobre, tomado
pela embriaguez que se seguia por semanas após o desfecho de sua mãe, que enfim
comete o suicídio, segue ébrio e agitado até a casa de Gomes obcecado com a ideia
de retirar o comercial do ar e montarem a Macbeth, peça de Shakespeare que deveria
ter sido escolhida em vez de Rei Lear, e, numa sequência de eventos, comete o
assassinato de Gomes.

A temática dialoga com uma certa tradição de personagens letrados, “nobres”, como
Macbeth ou mesmo enquanto artistas glorificados por instituições e público, que
praticam crimes. Cito, dentro várias possibilidades, o professor universitário de filosofia
Antenor, personagem de ‘O monstro”, de Sérgio Sant’Anna, que comete também um
assassinato; o aproveito aqui para uma observação outra quanto à segunda parte do
romance. O conto de Sant`Anna manifesta-se para o leitor, desde o início, como um
simulacro, uma entrevista que o professor concede a uma revista e que tem como ação
central o assassinato da jovem Frederica Stucker, operado por ele e por sua namorada
Marieta; e é também como uma espécie de simulado que, na segunda parte do
romance, se explicará a primeira parte do romance “A glória...”. Nela, um narrador,
agora em terceira pessoa, revela o contexto de produção do texto até agora lido: Mario
Cardoso está preso e, após um longo momento de apatia, é acometido pelo desejo, ou
empenho obsessivo, de organizar o que o levou até ali, tendo como ponto de partida a
malfadada adaptação de Rei Lear e que resultará nos “originais” “Rei Lear – por Mario
Cardoso”, encaminhados a Lineu. Na segunda parte também se desenrolará finalmente
a versão de Macbeth encenado pelos próprios presidiários.

Há, do ponto de vista formal, uma construção narrativa convencional memorialística; é


a partir da rememoração e reflexões do narrador-personagem que o leitor tem acesso
à história; embora não esteja organizada em capítulos nem em “cenas”, e intercale
episódios sequenciados com lembranças, em um movimento de ir e voltar, o leitor não
se perde e não há nossas expectativas. A releitura dos recursos, temas e técnicas do
melodrama, em diálogo com a linguagem televisiva, se materializa desde a mescla do
ritualismo e a mise en scène, caracteriś ticas da performance, à possibilidade de fruição
do romance como uma novela de um horário nobre: um primeiro “capítulo” (e aqui não
me refiro à capítulo do romance, que não se organiza dessa maneira explicitamente),
inicial que se mostra potente, com bastante apelo visual e linguístico, que se intercala
com outros que ora apresentam uma sucessão cronológica a partir do episódio do Rei
Lear (os episódios familiares, a tentativa de suicídio da mãe, a ida à Tijuca, a volta à
São Paulo para pagamento das despesas do grupo e saída do hotel, a descoberta da
falcatrua) ora trazem reminiscências vinculadas à vida profissional/pessoal de Mário
Cardoso) que, justapostas, se encontrarão no fim da primeira parte e que culminam n.
Na segunda parte, com a mudança do foco narrativo; o que parece haver é uma espécie
de redenção de Mario Cardoso; provocado pelo reencontro com a sua experiência
rememorada e sua possível ressignificação, por exemplo, o teatro político e a
experiência no sertão pernambucano, a direção de Guria trazem para o personagem,
como uma epifania, uma noção função social para o teatro, com a remontagem de
Macbeth, também uma tragédia de Shakespeare, na igreja do presídio em que cumpre
pena.

O conjunto de teatralidades na narrativa remete quase sempre para o palco interior


como espaço privilegiado para encenação da miś tica da subjetividade. A escrita
performática acompanha um tipo de desdobramento narciś ico (em consonância com o
que o narrador parece insistir como uma mantra e se compreende ao dizer ser mais
possível acabar a desigualdade social do que com a vaidade) em que o ator-narrador
se examina também numa espécie de teatro interior, relembrando aqui a proposição da
companheira de palco no início da sua carreira, Raquel, para quem não há distinção
entre ator e personagem.

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