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Visgo de Jaca

Por Neto Arman

Quando Jairo viu Tereza pela primeira vez, ficou louco. Queria logo saber quem era
aquela moça formosa e de sorriso simpático que todo mundo conhecia e parecia ter enorme
carinho.
“Dona Sebastiana, quem é aquela ali, ó, que todo mundo tá cumprimentando?”
A senhora, entendendo as intenções do rapaz, esboçou um sorriso e respondeu:
“É Tereza. Mulher guerreira. Mora aqui desde criança. Bem aí na frente. A mãe voltou lá
pro Espírito Santo, mas ela ficou”.
“Ah, é? Interessante, viu? E me diz uma coisa, comprometida, ela?”
“Que nada! Já teve seus namorados, mas anda solteira”, disse Dona Sebastiana, se
divertindo com o interesse do homem.
Jairo não se fez de rogado. Assim que pode, passara a cortejar Tereza. Começou com um
cumprimento aqui, um bom dia acolá e logo menos já estavam jogando conversa fora.
Tereza, esperta que só, foi atrás de saber mais sobre Jairo. Não queria se meter em furada.
Perguntou aos vizinhos, ao padeiro, todo mundo. Até mesmo à Dona Sebastiana. Todos diziam a
mesma coisa. Jairo é homem de bem, militar respeitado e frequentador da Paróquia Nossa
Senhora de Fátima, que fica ali perto. Mas foi graças ao pessoal do bar de Dona Sebastiana que
ela se convenceu de que ele era bom partido. Lá, alguém disse:
“Jairo é um cabra daqueles! Todo mundo gosta dele. Chegou aqui de mansinho e
conquistou geral”.
“Verdade! Apareceu como quem não quer nada e agora todo mundo respeita o cara”,
disse outro.
“Não só respeita como tem medo”, completou Dona Sebastiana. “Sabe aqueles dois
encrenqueiros, o Bicudo e o Paixão?”
“Sei sim”, respondeu Tereza.
“Então! Noutro dia eles tavam aqui, atazanando todo mundo. Foi só Jairo chegar,
perguntar o que tava acontecendo para os dois darem no pé sem soltar um pio. Moço corajoso,
ele”.
“Corajoso mesmo, Terezinha! Tão corajoso que até o diabo o homem prendeu!”
“Pois é! Jairo pôs moral até no diabo!”
“Diabo? Como assim, gente?”, perguntou a moça, sem entender nada.
“O diabo, ué? O Jairo tem tanto colhão que conseguiu prender o tinhoso numa garrafa!”
“Ah! Vocês tão de brincadeira com a minha cara! Ora essa!”
“É verdade, Terezinha! É verdade! Ele até mostrou a garrafa para a gente uma vez!”
Sem dar muito bola para os clientes de Dona Sebastiana e em meio à gargalhadas, Tereza
saiu do bar caçoando de todos. Mas o sorriso largo no rosto também era por conta de Jairo.
Estava cada vez mais encantada com o moço. Saíra de lá decidida a dar um chance a ele e não
tardou muito. Logo menos os dois já estavam de passeio pela feira aos domingos, indo jantar de
vez em quando e a se ver com mais frequência. Passado alguns meses de namoro assumido,
Tereza, que é uma moça que sabe bem o que quer, mandou: “pegue suas coisas e vem morar
comigo, homem. Minha casa é grande, tem espaço e cê já tá dormindo aqui quase todo dia. Para
de gastar com o aluguel e vamos dividir as contas”. Jairo obedeceu sem pestanejar, afinal, era
tudo o que queria.
No começo, estava tudo lindo. Mas bastou toda a euforia presente naquele momento novo
do casal passar que as coisas começaram a sair dos trilhos. Era uma implicância daqui, uma
histórinha de lá. Sem contar que Jairo começara a se mostrar uma pessoa um tanto autoritária e
grosseira. Coisas que começaram a incomodar Tereza, mas nada que a fizesse voltar atrás. Como
Jairo já tinha adiantado alguns meses de aluguel, foi trazendo as suas coisas aos poucos para a
casa dela. Certa vez, quando voltara de sua antiga morada, apareceu com duas gaiolas. Uma com
um curió e a outra com um coleiro. Estava empolgado, falando alto, quando Tereza, firme, disse:
“Olha, Jairo, sinto muito, mas aqui em casa eu não aceito passarinho preso não.”
“Quê!?”
Em resposta ao tom estúpido do companheiro, Tereza, pausadamente, disse dando
destaque a cada palavra: “Aqui em casa, passarinho preso não fica”.
“Que maluquice é essa, mulher?”
“Promessa antiga que fiz pro meu pai. Antes dele partir, me pediu pra soltar os
passarinhos que a gente criava e também pediu para que eu não prendesse mais nenhum. E é isso
que eu tô fazendo”.
“E por que ele pediu um negócio desses pra você?”
“Lembra que eu disse que ele ficou de cama por uns três meses antes de morrer? Só
saindo de lá para tomar banho e tal? Então! Ele odiava isso. E percebeu que fazia o mesmo com
os bichinhos. Se sentiu mal com isso e pediu que eu fizesse essa promessa pra ele”.
“Ah, meu Deus! Era só o que me faltava!” e saiu esperneando.
“Espero que você me entenda”.
“E eu lá quero saber de promessa que cê fez pra defunto?”
“Como é que é!?”, perguntou Tereza, indignada.
“É isso mesmo que tu ouviu. Eu tô cagando pra promessa que cê fez pra defunto”.
Tereza perdeu a calma e foi para cima de Jairo gritando.
“Então tu mete o pé desta casa! Passarinho preso aqui num fica! Eu já falei! Ou cê leva
eles embora ou tu faz favor de nem entrar…”
Tereza não conseguiu terminar a frase. Num gesto bruto e repentino, Jairo agarrou seu
braço e começou a torcê-lo. Em meios aos gemidos de dor da moça, aproximou seu rosto ao dela,
olhou em seus olhos e disse, quase sussurrando, numa espécie de agressividade passiva que
Tereza nunca havia visto na vida:
“Eu num vou arredar pé daqui de jeito nenhum. E você não vai mais abrir o bico. Os
pássaros ficam. Eu não quero ouvir mais um ‘ai’ sobre o presunto podre do teu pai aqui nesta
casa, entendeu?”
Aterrorizada como jamais estivera, Tereza concordou balançando a cabeça de cima para
baixo repetidas vezes. Jairo a soltou, a empurrou para longe e entrou em casa. Tereza ficou ali
parada, completamente paralisada. Não sabia o que fazer.

Os dias passaram e o carinho que a moça sentia pelo seu companheiro começou a se
transformar. Parecia que alguém tinha batido raiva e medo no liquidificador e dado para ela
beber. Tereza mal conseguia olhar nos olhos de Jairo. E a situação foi piorando. Tentava
descobrir uma maneira de sair daquela armadilha na qual se enfiou, mas sempre que pensava em
tomar uma atitude, recuava. Já o homem, começara a se crescer. Quis pôr regras na casa de
Tereza. Pior, quis impor regras à Tereza. Sair sozinha, só se fosse para comprar qualquer coisa.
Conversa fiada com vizinhos e amigas? Nem pensar. E as rodas de samba que ela tanto amava,
agora ela só podia visitar em sonhos. Era trabalho, casa; casa, trabalho. Rua, só com Jairo. Ela,
que desde a partida do pai, fora criada pela mãe para ser dona de si, não conseguia entender
como lhe faltava forças pra sair daquela relação. Todo mundo no bairro já havia percebido que
algo estava acontecendo. Tereza agora não tinha aquela vividez de outrora. Seu semblante era de
cansaço e decepção. Mas mesmo assim, ninguém se metia, pois como já dizia o ditado, em briga
de marido e mulher…
Por um bom tempo, Tereza sentia que algo a fazia abaixar a cabeça para Jairo, só não
sabia o quê. Queria se livrar daquele traste, mas não conseguia mover um dedo para isso. Não era
só o fato dele ser militar. Ela sabia disso. A mesma coisa que a travava era o que parecia dar
poder a ele. Foi no dia em que ele entregou as chaves de sua antiga casa que ela descobriu o que
era. Já passava das nove. Tereza assistia à novela quando Jairo, bêbado e ainda uniformizado,
chegou fazendo a maior algazarra, sem importar com nada nem ninguém.
“Tereza! Tereza! Tereeeeezaaa!”, gritou assim que fechou o portão.
Ela deu um salto. Assustada, correu até a porta.
“O que foi, homem? O que tá acontecendo?”
“Quero te apresentar a alguém!”
“Me apresentar a alguém? A essa hora da noite? Cê tá maluco?”
“Cala a boca! Você tem que conhecê-lo”.
Tereza olhou para o quintal. Não tinha ninguém.
“Mas você tá sozinho, homem. Bebeu além da conta, foi?”
Jairo, que tinha um sorriso estranho estampado na cara, levantou a garrafa. Foi aí que
Tereza percebeu que a garrafa que ele trazia consigo não era de cerveja. Era de outra coisa. Ele a
segurava pela “asa” de madeira. Seu corpo era revestido por uma espécie de barro, com uma
carranca esculpida. Ela, que não acreditava nessas coisas, sentiu um arrepio gelado lhe subir
pelas costas.
“Que que é isso!?”
“Esse é o tinhoso, o cramunhão! Dá ‘oi’ pro diabo, Tereza!”
Tereza só sabia se tremer. Ela deu uns passos para trás. Não queria ficar perto daquilo.
“Deixa de ser mal-educada, mulher! Dá ‘oi’, porra!”
“Sai com isso daqui, Jairo! Num quero isso na minha casa!”
“Eu num vou sair porra nenhuma! E já mandei tu dá ‘oi’!”
Vendo que Tereza não conseguia dizer nada, foi em direção ao quarto. Tereza, que estava
no caminho, deu pulo pra sair da frente o mais rápido possível. Ele entrou e colocou a garrafa na
cabeceira do seu lado da cama. Tereza gritou:
“Tira isso daí, homem! Por favor! Não vou ter coragem de colocar os pés aí dentro!”
“Ah, mas cê vai sim! Se não tu vai dormir lá fora”, disse Jairo em meio a risadas.
“Por favor, Jairo. Para com isso! Tira esse troço do quarto!”
“Venha a cá agora mesmo, mulher!”
“Não, não, não...”, disse, se distanciando do quarto.
Jairo foi em direção de Tereza e a agarrou. Ela tentou manter os pés firmes, mas não
conseguiu ir contra a força dele. Diante da resistência dela, ele a arrastou e a colocou do lado de
fora da casa. Bateu a porta.
“Então cê vai dormir aí fora! E se sair desse quintal, cê vai se arrepender de ter nascido!”,
gritou.
Tereza, chorando, começou a implorar para que Jairo não a deixasse ali. Ele
simplesmente a ignorou. Ela clamava e ele parecia não estar nem aí. Os vizinhos ouviam tudo,
mas também nada faziam. Essa foi a primeira vez de muitas. Sozinha do lado de fora, só de
camisola e passando um frio danado, Tereza tentava entender como a vida chegara naquele
ponto. Pensava nos pais. E isso a fez chorar ainda mais. Com o tempo, a moça até tentou
aprender a enfrentar o medo que sentia daquela garrafa, que apesar de não saber se tinha mesmo
algo dentro ou não, ainda assim a aterrorizava. Mas por qualquer motivo – ou simplesmente por
vontade –, Jairo, virava e mexia, ainda a colocava para fora de casa durante noite. E Tereza,
como sempre, se desesperava, pois o quintal de sua casa é grande, cheio árvores e mato. Tinha
medo de ter algum bicho ali ou até mesmo gente de tocaia.
Certa vez, as coisas foram piores do que de costume. Ao ser posta pra fora, Tereza já não
implorava tanto para que Jairo a deixasse entrar. Só pedia vez ou outra. Ela queria saber como a
raiva que só crescia dentro de si não era suficiente pra ela dar cabo daquela situação toda quando
avistou algo estranho ao lado do portão, dentro do quintal. Ela se levantou meio cabrera e cerrou
os olhos para enxergar melhor. Tinha um homem ali. Se desesperou e gritou como nunca.
“Jairo, por favor! Abre essa porta! Abre, Jairo! Tem um homem no quintal!”
Nada.
“Jairo! Por favor, Jairo! Abre! Eu não tô mentindo! Eu não tô mentindo! Tem alguém
aqui fora!”
Nada.
“Por favor! Por favor! Por favor…”, dizia, já aos prantos.
Tereza gritou tanto e por tanto tempo que algum vizinho não aguentou e ligou para
polícia. E para nunca mais ninguém fazer o mesmo. Quando a PM chegou, Tereza estava sentada
com a cabeça entre as pernas, apavorada. Jairo conversou com seus colegas. Explicou sua versão
dos fatos. Eles, claro que entendiam o companheiro de farda. Jairo entrou e a levou junto. No dia
seguinte, já sabia quem tinha ligado para a corporação. Foi até a casa de seu delator e o fez pagar
por isso. Todos entenderam o recado.
Como se nada tivesse acontecido, Jairo continuava a atormentar Tereza. E fazê-la dormir
fora de casa era o que mais gostava. Sentia prazer em tal ato. Já a moça, toda vez que era forçada
a passar por aquilo, encarava a mesma rotina: frio, fome, a ordem de não sair do quintal e o
pavor do homem, que ela já não sabia se existia mesmo ou era fruto da sua imaginação, mas que
estava sempre no mesmo lugar do quintal a observá-la. Com o tempo, o desgaste emocional de
Tereza chegou a um ponto no qual ela já não se importava com mais nada. Sua saúde mental
havia sido despedaçada. Ela apenas sobrevivia aos dias. E quando tinha que passar por aquele
inferno proposto pelo homem a quem um dia confiou, era indiferente. Estava desolada. Já havia
se resignado. Até que em uma das noites, o homem do quintal caminhou em sua direção. O pavor
a dominou novamente. Ela se encolhera e começara a tremer. Diante dela, o homem se agachou e
manteve os olhos sobre a moça por alguns minutos. Mesmo sem olhar, Tereza sentia a sua
presença ali, bem perto dela, quando ele enfim disse:
“Pobre mulher. Você não merece passar por isso. Se você quiser, posso te ajudar a se
livrar desse homem”.
Imediatamente, Tereza olhou em seus olhos. Não entendia. Tremia igual vara verde, mas
ainda assim perguntou:
“Quem é você?”
“Não importa. O que importa aqui é: você quer que eu te ajude a se livrar desse homem?”
Tereza não sabia o que pensar. Estava assustada e confusa. Mas justamente por não ter
ideia do que fazer, disse de forma ansiosa:
“Sim! Eu quero! Eu quero!”
O homem sorriu.
“Que bom, minha querida. Mas para que eu te ajude, você terá que fazer o que eu pedir.
Entendido?”
Tereza fez que sim. O homem continuou.
“Você precisa abrir a garrafa que Jairo guardou em seu quarto”.
Tereza arregalou os olhos. Ela não podia acreditar. Ela faria tudo, menos aquilo.
“Eu… Eu… Eu não posso! Eu não consigo fazer isso!”
“Consegue sim”.
“Mas eu estou nessa situação toda justamente por causa do que tem naquela garrafa! Eu
não consigo… Ele prendeu o diabo!”
O homem riu.
“Não, minha querida. Ele não prendeu o Diabo. Ele anda por aí se gabando de tal feito,
mas não o fez. Quem está preso naquela garrafa é um dos meus filhotes. E eu o quero solto. Você
não precisa ter medo de mim. Até mesmo porque você não me fez nada. Quem fez foi Jairo.
Tereza seguia sentindo-se perdida e amedrontada. Não sabia se aquilo tudo estava
realmente acontecendo ou era coisa de sua cabeça. Ainda assim perguntou:
“Então por que você mesmo não abre aquela garrafa e o solta?”
“Por que eu não posso, querida. E Jairo sabe disso. Por isso é tão cheio de si. Mas eu te
prometo, liberte minha criança que serás liberta também”.
O homem estendeu a mão para Tereza, que sem saber o porquê, deu a mão a ele. Se
levantaram e caminharam em direção ao portão. Quando ele o abriu, Tereza hesitou. Soltou-se
dele e deu uns passos para trás.
“Não se preocupe, querida. Vai ficar tudo bem. Venha comigo”.
Sentindo-se estranhamente segura, aceitou o convite. Ele a conduziu até a casa de uma
vizinha e lhe disse: “Você já sabe o que fazer, querida. Mas pense bem. Só o faça se sentir-se à
vontade”. Tereza olhava para o chão, sem esboçar nada. O homem bateu palmas. Quando as
luzes da casa se acenderam, se foi. A vizinha abriu a janela e viu uma Tereza transtornada.
Correu para acolhê-la.

Tereza voltou para casa após três dias. Resolveu enfrentar o problema de frente. Jairo
ainda estava no trabalho. Ao entrar em casa, parou e olhou em volta. Reparou no verde das
paredes, nas formas que os cômodos da casa possuíam, na maneira como a luz do sol do final da
tarde entrava por entre as cortinas. Foi em direção as fotos que estavam nas estantes, as admirou
por algum tempo. Começara a lembrar da época em que vivia feliz ali com seus pais. Queria
aquela sensação de volta. Faria qualquer coisa para ter isso novamente, embora soubesse que não
seria possível. Pegou alguns dos enfeites que a mãe deixara para trás quando voltou para a terra
deles e deu atenção a cada detalhe como jamais fizera antes. Então, caminhou lentamente por
todos os cômodos, depois pelo quintal. As horas passaram rápido, logo Jairo estaria em casa.
Tereza secava o cabelo na área quando ouviu o trinco do portão. Apesar do frio na
barriga, não havia expressão alguma em seu rosto. Usava um vestido florido que outrora
pertencera à mãe. Jairo vinha num passo lento e marcado. Ela nem precisava olhar para aquela
face rochosa para sentir a fúria que o homem carregava com ele. Dava para saber pela respiração
e pelo ritmo pelo qual ele se movia. Seus olhares se encontraram. Ele não disse nada. Só maneou
a cabeça de forma afirmativa, mas que na verdade, revela a sua reprovação. Ela virou o rosto. Ele
passou direto. Ela continuou a cuidar do cabelo. Sabia que hoje seria diferente.
Jairo estava esparramado no sofá da sala quando Tereza arrastou um banco de madeira
até ele. Trouxe seu prato e talheres. Voltou à cozinha, abriu uma cerveja, pegou uma caneca e
retornou à sala. Pôs a sua comida como vinha fazendo quase todos os dias no último ano. Aquela
falsa calmaria, disfarçada com a normalidade da rotina da vida que tinham juntos estava a
deixando cada vez mais nervosa. Novamente à cozinha, sentou-se numa cadeira que lá ficava e
mal bebericou o copo d’água que tinha em mãos. Estava aflita. O frio na barriga ainda se fazia
presente. Só que agora, sentia um formigamento pelos braços também. A qualquer momento a
tempestade daria as caras. E foi quando trocaram as primeiras palavras do dia que ela soube que
havia chegado a hora.
“Tereza!”, gritou Jairo, lá da sala.
“Que é?”
“Quero mais”.
“Só um instante”.
Levantou-se, passou pela cozinha e foi até à área. Abriu uma gaiola, depois a outra. Os
pássaros saíram voando enquanto voltava para dentro de casa.
“Vai querer arroz também?”, perguntou, já sabendo a resposta.
“Não. Só feijão”.
Ela pegou a panela de pressão e a concha e foi até ele. Encheu o prato. Distraído com um
filme de ação qualquer que passava na tevê, Jairo nem piscava. Foi então que Tereza
simplesmente virou a panela de feijão quente na cabeça dele. O homem soltou um urro e pulou,
derrubando tudo por conta da pele queimando. Rugia de dor.
“Sua desgraçada! Que que você fez!?”, berrou. Mas mal terminou de dizer aquelas
palavras, veio a porrada. Tereza, aproveitando que Jairo estava de olhos fechados, deu uma
panelada em sua cabeça. Ele caiu por cima da mesa que ficava no centro da sala. Ela jogou a
panela em cima dele e correu para o quarto. Trancou a porta por dentro.
Apesar de toda dor, Jairo foi tomado pelo ódio. Tentou abrir a porta, não conseguiu.
Gritou para que Tereza abrisse. Ela nada fez. Ele então tomou distância, pegou impulso e jogou
seu corpo com toda força em cima daquela velha porta de madeira. Foi ao chão junto com ela. Se
levantou em fúria e partiu para cima de Tereza.“Sua filha da…!”, e parou de repente. Tereza
estava em pé no canto do quarto segurando a garrafa do chifrudo.
“Se você der mais um passo, eu quebro essa merda agora mesmo! Tá me ouvindo, Jairo?
Se der mais um passo, eu jogo essa porcaria na parede!”.
“Você não tem coragem, sua piranha!”
“Tenho não!? Tenta a sorte então, seu desgraçado!”
Tereza não sabia como tivera coragem para fazer aquilo tudo. Ela não parava de tremer.
Mas dessa vez era de raiva. Ela ainda tinha dúvidas se o homem do quintal era uma ilusão ou
não, mas o que ela tinha a perder? Precisava arriscar. Jairo acabaria a matando.
“Me escuta aqui, eu vou sair desse quarto e você não vai fazer nada, se não eu quebro
essa merda, tá me ouvindo?”
Após dizer isso, foi andando com passos trêmulos em direção à porta. Suas pernas
pareciam que não iriam aguentá-la. Jairo dava espaço enquanto suplicava:
“Por favor, Tereza! Não faz isso! Você não sabe com o que tá brincando!”
“Cala a boca! Não me interessa! Se você der um passo, já sabe!”
Tereza saiu. Foi andando de costas até o quintal. Jairo a acompanhava de certa distância.
Ela não fazia a mínima do que iria acontecer. O medo dominava o seu corpo, mas ela tinha que
sair dali. Foi quando, num vacilo, quase caiu. Jairo aproveitou e correu para cima dela. Mas num
ato de puro reflexo, Tereza jogou a garrafa carrancuda no chão, que se espatifou na hora. Teve a
impressão de um vulto pequeno se mover rápido, passando a toda por ela, saindo de dentro da
garrafa quebrada. No sabia se via mesmo ou se era a adrenalina que a enganara. Entretanto, o
olhar de espanto e pavor de Jairo fez com que todo aquele medo que ela estava sentindo até o
momento fosse embora com aquele filhote de capeta que fugia. Sobrava apenas todo o ódio que
ela vinha nutrindo por ele dentro dela. Por instinto, ela voou para cima de Jairo, o agarrou pelos
cabelos e começou a bater nele de todas as formas que podia. Dava tapas, socos, enfiava as
unhas... Os dois caíram no chão. Dessa vez era Jairo quem estava aterrorizado. Ele tentou sair de
perto de Tereza, mas ainda de quatro, a sentiu pular em suas costas e dar uma mordida em seu
trapézio. Jairo berrava de dor. Conseguiu se desvencilhar dela e correu em direção ao portão. No
meio do caminho, Jairo tropeçou na raiz de uma árvore e mergulhou de cara naquele chão de
terra. Tereza, que vinha logo atrás, o agarrou a bateu a cabeça dele pelo menos umas três vezes
no primeiro tronco que achou. A gritaria – dele de dor e medo e dela de raiva – fez com que
todos os vizinhos se preocupassem e corressem para tentar ver o que acontecia. Jairo queria sair
de debaixo dela, mas não conseguia ir contra tanta força. Estava tonto e fraco. Até que num
último esforço, Tereza se levantou, procurou no chão até achar algo que servisse.
Completamente transformada pelo ódio, a moça pegou uma jaca e a rachou na cabeça de Jairo. Já
exausta, deu uns passos para trás, arrumou os cabelos e disse: “agora saia daqui, seu merda!
Some da minha vida!”. Jairo saiu o mais rápido que pode! Ao passar pelo portão, desnorteado e
mijado de medo, os vizinhos tentaram segurá-lo para descobrir o que estava acontecendo. Ele,
lutando para escapar dos braços de todos, só fazia gritar, “é o diabo! É o diabo! É o diabo!” e
assim que conseguiu, saíra correndo com todas as forças que ainda lhe restavam. Aquele povo
ali, mais perdido do que cego em tiroteio, não fazia a mínima do que fazer. Estavam com medo
de entrar na casa de Tereza. Afinal, o que neste mundo poderia pôr o homem que que havia
prendido o capiroto numa garrafa para correr se não o próprio? Ouviram uma gargalhada
ecoando lá de dentro. Tiveram medo, mas alguém sugeriu que entrassem. Mas não antes de
pegarem paus, pedras e até mesmo facas para que pudessem se defender Ao entrarem,
encontraram apenas Tereza, com o semblante vivaz que tinha antes de conhecer Jairo. Ela estava
sentada ao pé uma uma árvore, devorando a jaca que acabara de usar como arma sem nem se
preocupar com todo aquele visgo. Olhavam espantados para ela, quando a moça indagou:
“Que foi, gente? Eu tô morrendo de fome! Botar aquele frouxo pra fora me desgastou
toda”, e abriu um sorriso. A gargalhada foi geral.

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