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D:. primeira revolugao psiquiatrica, a pinelia- nade 1793, que substitui a metéfora “pos- sesso” pela metéfora “doenga” (passando pela segunda, a das “comunidades terapéuticas” dos anos trinta, e pela terceira, a da “psiquiatria comunitiria” ou “psicofarmacolégica” do pés- guerra), talvez estejamos vivendo a quarta revo- lugdo da psiquiatria, quando a metéfora “doenca” vai sendo substituida por outra igualmente com- plexa — “identidade”. JA nao esta em relevo a exuberdncia dos sinais e sintomas, equacionados pelas neurociéncias, mas os “modos de viver a vida” de pessoas doentes, sim, com limitagdes muitas vezes, que, entretanto, seguem com seus contratos afetivos e sociais a cumprir. Este livro fala da Reabilitagdo Psicossocial, A brasileira, como um novo tratado ético-estético que negocia uma clinica cuidadosa a inimeras iniciativas de convivio, lazer, moradia e trabalho que favorecem trocas intersubjetivas e sao tam- bém espagos de exercicio de cidadania ativa. SND EDITORA HUCITEC REABILITACAO PSICOSSOCIAL NO BRASIL 3 CONTRATUALIDADE E REABILITACAO PSICOSSOCIAL ROBERTO TYKANORI KINOSHITA* Geostand retomar guna iis apresentadas em outras ‘ocasides, a partir das quais podemos iniciar uma discussio sobre reabiltagio. Refiro me a idéia que, quando discutiamos a reinser¢do ‘social, sempre pusemos a questo como um problema de producéio de valor, referido aos pacientes. Partimos do pressuposto que/ao uni ‘verso social, as tlagies de trocas so realizadas a partir de um valor previamente atribuido para cada individuo dentro do campo social, como précondisao para qualquer processo de intercimbio, Este ~valor pressupost» ¢ 0 que daria-lhe 0 seu poder contratual. Para isto apontavamos.trés dimensdes que considerévamos fundamentais: ‘rocas de bens, ce mensagens e de afetos.\ INo caso particular da pessoa que recebe o atributo de doente ‘mental, enuncia-se simultaneamente a sua negatividade; esta enun ‘ciagio invalida ou torna negativo este valor pressuposto, anula-se 0 ‘seu poder de contrat: — os bens dos loucos tornam-se suspeitos, — as mensagens incompreensiveis, * Coordenador do Programa de Sade Mental da Prefeturs Municipal de Santos (19894995). 56 Ronexto TykaNom Kinositra — os afetos desnaturados, tornando praticamente impossivel qualquer possibilidade de trocas. 0 doente mental passa ater positividade apenas na sua dimensio de doente, de suporte da doenga. Em suma, Anula-se qualquer valor da pessoa que 0 assegure como sujeito social (de trocas)! ~ Creio que podemos retomar estas idéias e colocéclas no plano da reabilitagao.|O que seria reabilitar sendo reconstruir estes valores, aumentar 0 poder contrattal do usuario? Criar_as condigoes de -possibilidade para que um paciente possa, de alguma maneita parti -cipar do processo de trocas sociais? Produzir dispositivos em que, desde uma situagao de desvalor quase absoluto (pressuposto), pos- sa-se passar por experimentacdes, mediacdes, que busquem adjudi- car valores aptos para 0 intercambio. Ou seja, modificar o pressupasto de ssuposto {explicito)* Sem divida é fundamental que se inicie pela desconstrugao do dispositive que produz ¢ mantém aquele desvalor, 0 dispostvo Js manicémios tem a capacidade de transformar qual ‘quer manifestagio de poder (positive) por parte do paciente em niegatividade pura do sintoma. £ por isto que &0 lugar da troca zero. | ‘Mas, em nossa experiéncia desis tiltimos anos, o grande desalfo etd exatamente em, ultrapassadoeste momento inicial, preencher a lacuna gerada pela desmontagem daquele dispositivo. O que fazer quando no h4 mais 0 manicdmio?!Nao tem sido automitica a passagem de uma situagdo de desvalor para uma situagao de partic ‘pacao efetiva no intercdmbio social. Ao contrério, & mais presente a tendéncia aestacionarmos em um patamar de assisténcia humaniza- 4a, mais tolerante, eventualmente até mais belo, porém igualmente excluida e desvalida. Tem sido um esforgo grande a busca por formas'de atuagao que indiquem um caminho para além deste patamar! Creio que ¢ neste contexto que a reabilitago torna-se uma temitica importante, ‘Reabilitar pode ser entio entendido como um processo de resti- tuigzo do poder contratual do usuério, com vistas a ampliar a sua autonomiah Como se daria este process? E como alguém doente pode ser auténomo? ‘Acontratualidade do usuério, rimeiramente vai estar determina- da pela relagao estabelecida pelos proprios protissionais que o aten- dem. Se estes podem usar de seu poder para aumentar 0 poder do CowreaTuALZDADE E REABILTTAGAO PSICOSSOCIAL 57 usuario ou nao! Depois pela capacidade de se elaborar projetos, isto 6, agdes praticas que modifiquem as condicdes concretas de vida, de modo a que a subjetividade do usuario possa enriquecer-se, assim como, para que as abordagens terapéuticas especificas possam con- textualizar-sex Entendemos a’autonomia como a capacidade de um individuoy gerar normas, ordens para a sua vida, conforme as diversas situa- ‘ges que enfrente, Assim nao se trata de confundir autonomia com auto-suficiéncia nem com independéncia./Dependentes somos to- ddos}2 questo dos usuarios 6 antes uma questo quantitativa: denen- sem excessivamente de apenas poucas relacdes/coisas. Esta situara0 te denendéncia restrita/restritiva € que diminai Sua autonomia. ‘Somos mais autdnomos quanto mais dependentes de tantas mais coisas pudermos ser, pois isto amplia as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos ordenamentos para a vida. Creio que estas idéias simples carecem de clareza. Assim vou tentar ilustrar estas nogdes com uma histéria. Sem diivida, no se trata de um relato de caso com pretensdo de retratar “a verdade” do ‘caso mas apenas uma histéria HA uns seis anos tum caso nos foi apresentado como problema: uum homem havia sido preso, acusado formalmente por ameaca con- traavida de uma mulher. Este homem, que vamos denominar como GAH, telefonava para a mulher e fazia ameacas no seguinte teor: “se vocé continuar me ameacando, falando mal de mim por ai, eu te mato’. Este tipo de agdo/ameaca repetira-se por diversas vezes até que a mulher resolveu chamar a policia e armou uma situacdo para que 0 flagrante se efetuasse. 0 detalhe é que G.H. desconhecia a mulher e vice-versa. Talvez por morarem no mesmo baitro, por algum acaso, le a tivesse visto na rua. 0 fato € que ele encontrava-se preso, em flagrante, acusado de ameacar a vida de uma mulher. O servigo de saiide mental foi acionado pot pessoas que o conheciam, sabedores da proposta de Feintegracdo e defesa dos direitos de cidadania. A primeira demanda era clara: “é preciso tirar G.H. da cadeia, pois ¢ um doente mental”. Se nio aceitavam a prisdo, 0 mesmo nao se dava em relagéo 20 hospital psiquidtrico. Fomos procurados pelo advogado de G.HI. que propunha que atestéssemos sua insanidade para livré-lo do processo criminal. Ar-

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