A finalidade de tributar é custear o aparato estatal, com propósito de
que sejam prestados à população os serviços públicos e os direitos individuais
e coletivos constitucionalmente assegurados. É lógico dizer que quanto mais a Constituição oferta aos cidadãos, obrigando o Estado, maior será a necessidade de recursos para custeio desses direitos e serviços. A atual Constituição (1988) propôs instituir um Estado social- democrático de direito (art. 1), com a universalização de serviços públicos básicos, participação popular, promoção do bem-estar e da dignidade, em observância às leis e ao direito democraticamente elaborado. Para tanto, a Constituição previu um extenso rol de direitos e garantias individuais e coletivos. Diante de tantas promessas é indispensável a organização de um sistema de arrecadação (sistema tributário) capaz de sustentar o Estado sem privar as pessoas de sua riqueza (confisco), que respeite a capacidade contributiva e, ao mesmo tempo, reduza as desigualdades sociais e regionais (redistributivo). Em tempos de crise econômica, com elevação dos níveis de endividamento do Estado e queda da arrecadação, com consequente escassez de recursos, é comum o fortalecimento de discursos que visam “solucionar o problema” por meio do aumento da arrecadação do Estado via tributo.
No Brasil a definição de tributo é legal e consta no art. 3º do Código
Tributário Nacional (CTN) da seguinte forma: “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Prestação pecuniária é a obrigação de prestar dinheiro ao Estado. Por compulsória tem-se aquela prestação coercitiva, que independe da vontade do sujeito. O tributo nunca é uma sanção. É obrigação ex lege, ou seja, instituída por lei. Sua cobrança se dará por lançamento, que é um precedimento administrativo vinculado à lei e não comporta discricionariedade do agente fiscalizador.
Em conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribuna Federal
(STF), extrai-se do texto constitucional cinco espécies tributárias (teoria pentapartida): impostos (art. 145, I); taxas (art. 145, II); contribuições de melhoria (art. 145, II); empréstimo compulsório (art. 148) e as contribuições especiais (art. 149).
Por fim, em relação a espécie tributária imposto, o CTN define o
imposto como “tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte” (art. 16). Nesse sentido, para que seja devido um imposto basta que ocorra a situação que lei defina como seu fato gerador.
Uma das classificações dos impostos diz respeito a qual aspecto o
imposto leva em consideração: o sujeito ou os bens. Assim, tem-se os impostos pessoais, que levam em conta as condições particulares do contribuinte, e os impostos reais, que levam em conta o (s) bem (ns) sobre o qual incidirá. No grupo dos impostos reais está o imposto sobre a riqueza ou fortuna, que gravam o patrimônio de uma pessoa física ou jurídica.
Conforme art. 153 inciso VII da Constituição “compete à União instituir
imposto sobre grandes fortunas, nos termos de lei complementar”. Embora prescinda de lei instituidora, decorre do texto constitucional que: a competência, ou seja, aptidão para instituir o IGF, é da União; sua hipótese de incidência será a titularidade sobre grande fortuna (critério material) localizada no território brasileiro (critério espacial); o sujeito ativo – pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir seu cumprimento (art. 119, CTN)– deverá ser definido pela lei que o instituir, sendo presumível que será a União, e o sujeito passivo – pessoa obrigada ao pagamento do tributo (art. 121, CTN)- será o titular de grande fortuna.
Por fim, caberá à lei instituidora definir os critérios quantitativos do IGF,
quais sejam a base de cálculo que é o valor do conjunto de bens que compõe grande fortuna, e as alíquotas, percentuais aplicados à base de cálculo para aferição do valor devido a título de tributo.
O Brasil possui atualmente vinte e três projetos de lei em tramitação na
Câmara dos Deputados cujo objeto é a tributação sobre grandes fortunas1, seja por meio da instituição propriamente dita do imposto sobre grandes fortunas ou pela criação de uma contribuição social sobre grandes fortunas.
Das vinte e três proposições a mais avançada é proposta de lei
complementar 277/2008, de autoria dos Deputados Luciana Genro, Chico Alencar e Ivan Valente, todos do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que consolida treze outros projetos de lei apensados ao seu texto e se encontra pronto para análise no plenário desde 20/09/20122.
De acordo com o fato gerador do IGF é a titularidade de fortuna em
valor superior a dois milhões de reais (art. 1º), e entende como fortuna “[...] o conjunto de todos os bens e direitos, situados no país ou no exterior, que integrem o patrimônio do contribuinte, com as exclusões de que trata o § 2º deste artigo”. O parágrafo em questão exclui do patrimônio, para fins de fortuna, os instrumentos utilizados em atividades de que decorram rendimentos do trabalho, os objetos de antiguidade, arte ou coleção.
A base de cálculo do imposto seria o valor do conjunto dos bens que
compõem a fortuna, diminuído das obrigações pecuniárias do contribuinte, exceto as contraídas para a aquisição de bens excluídos nos termos do § 2º do artigo anterior. As alíquotas seriam progressivas, de um a cinco por cento, e o seu lançamento seria semelhante ao do imposto de renda, por declaração do contribuinte. O PLP ainda determina a responsabilidade solidária pelo pagamento do imposto quando houver indícios de dissimulação.
Em linhas gerais, seriam estas as características do imposto sobre
grandes fortunas com base no que está mais avançado, em termos e votação, no Congresso. Os pontos de maior divergência são a definição de grandes fortunas, quais bens e direitos devem integrar o patrimônio para fins de aferição do tributo e quais alíquotas e faixas de progressividade devem incidir
A construção de uma sociedade justa e solidária é objetivo da
República Federativa do Brasil (art. 3º, I) e deve sempre orientar as ações dos poderes da União. A Constituição também traz consigna princípios tributários, dentre os quais a capacidade contributiva, ao determinar que “sempre que possível os impostos terão caráter pessoal e serão graduados de acordo com a capacidade econômica do contribuinte[...]” (art. 145, § 1º). Nesse sentido, segundo Coutinho Elói e Lopes (2016), […] entende-se que a justiça tributária é guiada por princípios tributários, que norteiam atualmente nosso ordenamento – opções positivadas no texto constitucional. Então, para que um tributo atual seja justo, ele não pode contrariar – e, mais que isso, ele deve seguir – a linha dos princípios tributários vértices de nosso ordenamento.
Segundo Torres (2016), deve-se sempre observar os princípios da
capacidade contributiva, da generalidade, da não discriminação e da vedação de privilégios. Os tributos devem ser distribuídos de modo uniforme e, claro, com vistas à proporcionalidade, progressividade e não confisco. Enfim, o tributo legitima-se como justo a partir de quando aplica o inteiro sistema de princípios e regras constitucionais (COUTINHO ELÓI e LOPES, 2016, p. 112).
Assim, a instituição do IGF seria uma questão de justiça. Justiça
tributária ou fiscal porque sua tributação, acima de todos princípios, potencializaria o respeito a capacidade contributiva.
Lado outro, deve-se ter em mente que um dos objetivos da República
Federativa do Brasil é a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (ar. 3º, III – CF) e que o Brasil é internacionalmente reconhecido como um país desigual, cuja concentração de renda é uma das mais altas do mundo. Segundo Róber Iturriet Avila, professor de economia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS) “Em 2013, o 1% mais rico apropriou-se de 26,6% da renda nacional, já o 0,01% mais rico absorveu 4,8% do total. Trata-se do maior nível de desigualdade já registrado[...]3”. Ainda segundo o Róber, esse nível de concentração só é encontrado nos 0,01% mais ricos dos Estados Unidos.
Especificamente nesse ponto a tributação sobe grandes fortunas
aumentaria a participação dos mais afortunados no custeio dos serviços públicos e na garantia de direitos fundamentais, cuja prestação decorre da arredação dos impostos. O IGF tem potencial para auxiliar na redistribuição de riquezas e redução das desigualdades. Partindo da premissa de que pessoas reagem a incentivos e que a norma jurídica cria uma estrutura de incentivos, segundo Bernardes e Florenzano (2008, p. 145), “Ao definir direitos e deveres, a norma jurídica coloca para os indivíduos uma estrutura de incentivos que vai influenciar de forma determinante suas escolhas e decisões econômicas”.
Nesse sentido, opositores à tese da tributação sobre grandes fortunas
entendem que tal tributação promoverá um desestímulo a formação de patrimônio, bem como estimulará os detentores de fortunas a movimentá-las para países cuja tributação seja mais branda. Segundo Carvalho (2011),
Os contrários à tributação sobre heranças e riqueza argumentam que
há um desincentivo a formação de poupança entre as gerações e um incentivo a mobilidade de capitais para locais onde há menor tributação. Também argumentam que os impostos sobre a riqueza líquida têm sido considerados impraticáveis, particularmente nos países em desenvolvimento. Problemas como cadastrar as propriedades, descobrir o seu real proprietário, determinar com precisão o seu valor líquido, podem tornar o imposto difícil de aplicar (p. 10).
Um exemplo dessa mobilidade de capitais é o caso do ator Gérard
Dépardieu. No ano de 2012 ele decidiu deixar a França em razão das políticas tributárias sobre a renda adotadas naquele país. Os contrários a tributação sobre fortunas asseguram que o seu efeito é semelhante.
Embora cada país seja único em suas características sociais,
econômicas e jurídicas, é possível avaliar as distorções e os benefícios que o wealth tax tem ao redor do mundo e produzir uma regulamentação que seja compatível com o Brasil. Os dados de arrecadação deste tributo em países como França, Argentina e Uruguai, menores em termos de população e desigualdade, indicam bom potencial arrecadatório.
Embora a maioria das rejeições sejam baseadas em argumentos de
“baixo potencial arrecadatório e elevados custos administrativos”, os projetos de lei apresentados no Brasil até o momento carecem de estudos técnicos e precisos sobre os verdadeiros impactos do IGF. Em sua maioria são projetos de cunho ideológico e balizados em discursos populistas, cujas discussões não visam realmente melhorias no sistema tributário, mas angariar votos.
Em que pese o IGF ter potencial para redistribuição de riquezas, não
nos parece que sua eventual instituição vá resultar em desonerações de outros tributos, promovendo verdadeiramente, ainda que em alguma media, ideais de justiça fiscal. Tradicionalmente o Estado brasileiro eleva suas despesas a medida que a receita aumenta, portanto, não se trata de um problema típico de arrecadação. Nesse sentido, não nos parece que a pura e simples elevação da tributação seja a solução do problema fiscal brasileiro.
Também carece de fundamentos concretos os argumentos que
rejeitam o IGF com base em baixo potencial arrecadatório, elevados custos administrativos e evasão patrimonial. Além disso, ninguém questiona os mecanismos de fiscalização e os valores arrecadados com IPTU, ITR, ITBI e ITCMD. Antes de tudo, nos parece imprescindível que a Receita Federal dê mais transparência aos dados consolidados das declarações de imposto de renda de pessoa física, que podem ser um importante indicador para o IGF.
A busca de equilíbrio na tributação para que não só arrecade mais mas
arrecade melhor deve ser uma constante. O aperfeiçoamento do sistema tributário é essencial para o desenvolvimento nacional.
Nesse sentido, embora seja um tributo viável no contexto brasileiro, o
IGF, por si só, não nos parece eficaz na melhora do sistema tributário nacional, bem como no problema atual de arrecadação. Entretanto se baseado em dados confiáveis que considere as diferenças regionais, se utilizado como meio para desonerações sobre outros tributos e caso adote uma distribuição de receitas favorável ao federalismo fiscal, com divisão de receitas entre União, Estados e Municípios, o imposto sobre grandes fortunas pode sim contribuir com o desenvolvimento nacional. REFERÊNCIAS:
BERNARDES, Patrícia; FLORENZANO, Vincenzo Demetrio. A
moderna concepção da norma jurídica. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 6, n. 23, p. 141-157, jul/set. 2008.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa
do Brasil. Disponível em:.
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o
Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Disponível em.
CARVALHO, Pedro Humberto Bruno de Carvalho. As discussões
sobre a regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas: a situação no Brasil e a experiência internacional. Rio de Janeiro, out. 2011. Disponível em:. Acesso em: 25 abr. 2017,