2017
ISSN 2446-7375
Revista África(s)
Núcleo de Estudos Africanos — NEA
Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras – PPGEAFIN
Universidade do Estado da Bahia — UNEB, Campus I, Salvador
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2017. Disponível em: www.revistas.uneb.br/index.php/africas
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Sumário
5 Apresentação
8 DOSSIÊ: “HISTÓRIAS DA ÁFRICA E DA ESCRAVIDÃO NO ATLÂNTICO”
Cândido Domingues; Carlos da Silva Jr.
11 OS “PREGADORES DO ALCORÃO DE MAFOMA” E AS MISSÕES EUROPEIAS
NA SENEGÂMBIA: DESAFIOS ISLÂMICOS AO PROSELITISMO CATÓLICO,
SÉCULO XVII
Thiago Henrique Mota
32 “NÃO CONVÉM NEGRO SEM AMO”: ESCRAVOS, ÍNDIOS E JESUÍTAS NAS
FAZENDAS DA COMPANHIA DE JESUS NA CAPITANIA DE SÃO JOSÉ DO
PIAUÍ, 1750-1800
Mairton Celestino da Silva
46 DE GBE A IORUBÁ: OS PRETOS MINAS NO RIO DE JANEIRO, SÉCULOS
XVIII–XX
Juliana Barreto Farias; Mariza de Carvalho Soares
63 TRAVESSIAS A CAMINHO – TRÁFICO INTERPROVINCIAL DE ESCRAVOS,
BAHIA E SÃO PAULO (1850-1880)
Maria de Fátima Novaes Pires
79 A ESCRAVIDÃO MODERNA: OBJETOS, LÓGICAS E A FORMAÇÃO
HISTÓRICA BRASILEIRA
Josenildo de J. Pereira
91 MODALIDADES TRADICIONAIS AFRICANAS DE CAPTURAS PARA O
TRÁFICO NEGREIRO
Pedro Acosta-Leyva
104 A PRODUÇÃO NECESSÁRIA DAS INTELECTUAIS FEMINISTAS AFRICANAS
NO CAMPO DOS ESTUDOS DE GÊNERO E A AGÊNCIA DO CODESRIA
Michelle Cirne
115 PERCURSOS ETNOGRÁFICOS EM NARRATIVAS COM MULHERES
AFRICANAS EM SÃO PAULO: ATIVIDADES COMO POSSIBILIDADES
ECONÔMICAS
Miki Takao Sato
141 “NÃO SOU RACISTA, MAS...”: MOTIVAÇÕES LINGUÍSTICAS E HISTÓRICAS
DA PROVERBIAL RETÓRICA À BRASILEIRA PARA A NEGAÇÃO DO
RACISMO
Paulo Sérgio de Proença
156 HIBRIDISMOS, SINCRETISMOS E OUTRAS MILONGAS: ALTERNATIVAS
CULTURAIS NA SOBREVIVÊNCIA DO CULTO DOS ORIXÁS NO CANDOMBLÉ
CARIOCA
Dulce Santoro Mendes; Claudio São Thiago Cavas
181 SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES POLÍTICAS E O COLONIALISMO
PORTUGUÊS EM ANGOLA
Mariana P. Candido
184 JIHĀD E REVOLUÇÃO NAS DUAS MARGENS DO ATLÂNTICO
Bruno Rafael Véras de Morais e Silva
188 OBJETIVO E POLÍTICA EDITORIAL
mos a incorporação da ilustre Dra. Alyxan- almejar contratação pelos clubes de primei-
dra Gomes Nunes, responsável pela revisão ra linha. O dossiê, reunindo artigos sobre
dos textos na língua inglesa. Sua presença é a escravidão atlântica, tem em seu escrete
igual à de um bom zagueiro, que não apa- “atletas de primeira grandeza”, como Thia-
rece tanto nos comentários esportivos, mas go Mota, da UFMG; Mairton Silva, da UFPI;
tem fundamental importância para o êxito Juliana Farias da UNILAB (BA) e colega de
de uma equipe. Maura Icléia Castro, biblio- nosso programa de pós-graduação; Mariza
tecária e responsável pelas indexações, é a Soares, da UFF e Maria de Fátima Pires, da
nossa ponta direita. Faz as jogadas, arma UFBA. Os comentários sobre o dossiê serão
o contra ataque e segura as oportunidades feitos logo a seguir, na apresentação do mes-
para o centroavante finalizar no fundo das mo, por seus organizadores.
redes. Com ela temos vencido jogos de go- O volume tem ainda a participação de ou-
leada! Lino Greenhalgh, nosso diagramador tros “atletas”, ao estilo de Josenildo Pereira,
e também revisor, é o ponta esquerda desta da UFMA, que traz uma instigante discussão
equipe, que junto com Maura garante sem- sobre a escravidão moderna, e os desdobra-
pre os três pontos na “casa do adversário”. mentos que culminaram na formação da so-
O time se completa com as ilustres figuras ciedade brasileira. O autor faz uma procla-
dos doutores Moiseis Sampaio e Raphael mação imperiosa: é preciso desracializar os
Rodrigues, editores desta revista, e centroa- estudos sobre o tráfico Atlântico. Na sequên-
vantes renomados, do calibre de ilustres cia, “sem deixar o jogo esfriar”, Pedro Leyva,
jogadores (como Grafite, Marcelo Ramos e da UNILAB (BA) e também integrante deste
Cláudio Adão, dentre outros), bem como de programa de pós-graduação, joga pelo meio,
nosso “meio campista” Cândido Domingues, com rapidez, e discute sobre as formas como
também editor e que no momento se encon- eram capturados homens e mulheres nas
tra em terras portuguesas, fazendo inveja a diferentes regiões do continente africano.
Cristiano Ronaldo e sendo cobiçado pelos O debate por ele entabulado mostra que as
técnicos Mourinho e Guardiola. A equipe representações sobre a escravidão atlântica
também tem neste missivista seu apoio nos ainda estão longe de se tornarem simples
bastidores, como uma boa torcida que apóia peças de análise, ou eventos ocorridos em
e incentiva nos momentos difíceis. Juntos, um passado distante. Estas representações
somos aqueles que seguram as pontas de ainda movem energias e emoções, tal qual
um “clube de futebol com poucos recursos”, o clube que está jogando para vencer, sem
e que ainda está galgando espaços nas di- dispor da condição simples do empate!
visões inferiores, mas que dispõe de muita Michelle Cirne, da UNILAB (campus
habilidade técnica e carisma junto a sua tor- Redenção – CE) nos brinda com excelente
cida. Somos a África(s)! trabalho sobre a análise da produção inte-
E como não deveria deixar de ser, para lectual de mulheres do continente africano
este volume trazemos mais um plantel de no âmbito dos Estudos Africanos e de gêne-
primeira, de deixar com inveja as torcidas do ro. Suas conclusões mostram como ocorrem
Santa Cruz, Bahia, Vitória e Corinthians. O os processos de invisibilização das questões
dossiê, organizado pelos craques Carlos Silva alusivas às mulheres africanas, e de como
e Cândido Domingues, traz os trabalhos de suas temáticas perdem visibilidade nestas
gente de peso, com expertise suficiente para áreas do conhecimento. Miki Sato, mestre
Cândido Domingues*
Carlos da Silva Jr.**
A historiografia da escravidão é uma das peus e das Américas na disputa pelo merca-
áreas mais ricas e dinâmicas da historio- do de escravos e pela interiorização de sua
grafia brasileira. Desde a década de 1980, presença no continente (principalmente
os historiadores têm investigado a vida dos antes do século XIX). Enfim, o diálogo en-
escravos (e libertos), africanos ou nascidos tre as duas historiografias tem sido profí-
no Brasil, a formação de famílias escravas, o cuo e proveitoso.
processo de construção de identidades étni- No presente número da revista África(s),
cas na diáspora, a agência escrava e formas o leitor terá a chance de conhecer algumas
de resistência à escravidão, entre outros te- abordagens acerca da escravidão no atlân-
mas. O resultado desse interesse na história tico escravista. Os artigos do dossiê, escri-
da escravidão no Brasil, que de alguma ma- tos por historiadores de referência em suas
neira explica alguns dos dilemas brasileiros áreas de pesquisa, exploram os diferentes
contemporâneos, pode ser visto nas disser- contornos e dimensões do escravismo bra-
tações de mestrado e teses de doutorado sileiro ao longo do séculos XVII e se esten-
apresentadas anualmente nos diversos pro- dem até as primeiras décadas do século XX,
gramas de pós-graduação país afora. quando a escravidão já tinha sido extinta,
Ao mesmo tempo, a nossa historiogra- mas os últimos africanos e seus descenden-
fia beneficia-se do diálogo com a produção tes enfrentavam os seus nefastos efeitos. De
historiográfica internacional, sobretudo forma geral, o dossiê envolve questões va-
aquela relacionada à História da África e riadas, de múltiplos temas e momentos da
as dinâmicas mercantis – leia-se, o tráfico história da África, dos africanos e seus des-
de escravos, mas não apenas – na África cendentes através do Atlântico. Da história
pré-colonial. Similarmente, a historiografia africana, passando pela escravidão no Piauí
brasileira da escravidão tem influenciado colonial, da diáspora ocidental para o Rio de
a maneira como os historiadores da África Janeiro, e o sistema de redistribuição de es-
abordam a história do continente, sobretu- cravos no Brasil oitocentista, esse dossiê ilu-
do no que tange à agência das populações mina diferentes perspectivas sobre o estudo
africanas às investidas dos traficantes euro- da escravidão no atlântico.
cio atlântico que ligavam o Rio de Janeiro que lança luz sobre as dinâmicas entre as
à Costa da Mina. As historiadoras abordam autoridades africanas locais – os sobas – e
ainda a vida dos últimos africanos minas na as autoridades portuguesas em Angola du-
cidade do Rio de Janeiro na virada do século rante dois séculos. Como a resenhista res-
XX, os estereótipos que recaíam sobre eles salta, um dos pontos altos da obra é colocar
nos jornais da época, as rivalidades religio- os africanos no centro da análise. “Por sua
sas entre os diferentes grupos – os adeptos contribuição metodológica e seu constante
da religião dos orixás e os seguidores do Islã. diálogo com as fontes manuscritas e im-
O artigo final, de autoria de Maria de Fá- pressas, o livro deve ser lido por historia-
tima Novaes Pires, professora da Universi- dores interessados em como descolonizar o
dade Federal da Bahia, trata de um momen- passado”, nota Candido.
to importante da história da escravidão: o A outra resenha, de Bruno Véras, dou-
tráfico interprovincial, que ganha muscula- torando em História da África pela York
tura principalmente após o fim do tráfico em University, no Canadá, discute o mais re-
1850. Em seu artigo, Fátima Pires apresenta cente livro de Paul Lovejoy, Jihad in West
alguns dados sobre a demografia dessa mi- Africa during the Age of Revolutions.
gração forçada de escravizados – tanto afri- O trabalho, em grande medida fruto de uma
canos quanto crioulos – do sertão da Bahia discussão iniciada na academia brasilei-
para as áreas cafeeiras do oeste paulista. Lá, ra em 2014, analisa a série de revoluções
escravizados e trabalhadores livres pobres, islâmicas no Sudão Central e Ocidental e
imigrantes, conviviam e experimentavam de seu impacto na diáspora africana, princi-
diferentes maneiras, o trabalho nas grandes palmente na Bahia, mas também em Cuba.
propriedades da região. O uso de um núme- Nesse sentido, o Islã tem papel crucial para
ro variado de fontes – autos criminais, regis- o entendimento das transformações em cur-
tros de compra e venda, matérias e anúncios so na África Ocidental e no mundo atlântico
de jornais – permitiu que a autora forneces- na virada do século XIX.
se um quadro amplo da vida e das agruras Fica assim esboçado o conteúdo do dos-
dessa população desterrada – às vezes pela siê. Os organizadores gostariam de agra-
segunda vez – numa nova área escravista, decer aos autores que se comprometeram
as dificuldades impostas por um novo tipo com esse projeto, entregando textos de alta
de regime servil – a escravidão em largas qualidade, contribuindo assim para a difu-
plantations em comparação com o trabalho são dos estudos sobre a história da África
compulsório em pequenas propriedades do e da escravidão nas Américas. Ao mesmo
sertão baiano – e as estratégias de resistên- tempo, agradecemos aos editores da revis-
cia dessa população. ta África(s) pelo espaço para a divulgação
Fechando o dossiê, Mariana Candido, desses artigos, consolidando a revista como
professora da Universidade de Notre Dame, um fórum importante para discussões sobre
nos Estados Unidos, apresenta uma rese- a história africana e da diáspora no mundo
nha de Sobas e homens do rei, livro de atlântico. E aos leitores/leitoras, desejamos
Flávia Carvalho, professora da UFAL, obra uma boa leitura!
Resumo
Neste artigo, analisamos o estabelecimento de missões católicas na costa oci-
dental africana, entre a bacia do rio Senegal e norte da Serra Leoa, no século
XVII. Nossos objetivos são apontar a presença da fé islâmica nesta região
e o modo como ela influenciou nos rumos da missionação católica, seja na
definição de estratégias ou limitação dos resultados esperados. Analisamos
documentação narrativa e epistolar produzidas por jesuítas, franciscanos e
lazaristas, portugueses, espanhóis e franceses. Somam-se tratados e memo-
riais de comerciantes cabo-verdianos, que visitaram a região no mesmo pe-
ríodo. Ao término, argumentamos que o Islã foi um concorrente de peso no
estabelecimento de relações políticas, econômicas e culturais na Senegâm-
bia, atuando no reduzido alcance das missões católicas.
Palavras-chave: Missões católicas, Islã, Senegâmbia, África Ocidental.
Abstract
THE “PREACHERS OF MAFOMA’S KORAN” AND THE EUROPEAN
MISSIONS IN SENEGAMBIA: ISLAMIC CHALLENGES TO CATHOLIC
PROSELYTISM, 17TH CENTURY
In this article, the stablishment of Catholic missions in West African coast is
analysed face to its relations to Islam. The region studied runs from Senegal
River basin to northern Sierra Leone, during the 17th century. The aims are
to highlight the presence of Islamic faith in the region and to understand how
this African Islamic faith influenced Catholic strategies and missionaries out-
comes. This piece is composed by narrative and epistolar sources produced by
Jesuits, Franciscans and Lazarists from Portugal, Spain and France. Moreover,
* Thiago Henrique Mota é doutorando em História Social e História da África na Universidade Federal de
Minas Gerais e na Universidade de Lisboa (cotutela). Investigador do Centro de História da Universidade
de Lisboa. Contato: thiago.mota@ymail.com. Esta pesquisa contou com bolsa oferecida pela FAPEMIG e
com auxílio oferecido pela Cátedra Jaime Cortesão, às quais o autor remete seus agradecimentos.
Cape-Verdean treatises and memorials written by traders who visited the same
region at that time are added to these sources. In the end, we argue that Islam
was an important rival to Catholic interests in economic, political, or religious
matters, whose presence reduced missionaires achievements in Senegambia.
Keywords: Catholic missions, Islam, Senegambia, West Africa.
As narrativas europeias dos primeiros con- que no porto de Recife não se faria “nenhum
tatos entre cristãos europeus e muçulmanos fruto na conversão dos naturais, se Deus não
africanos, a partir de meados do século XV, fizesse um milagre” (BRÁSIO, 1979, p.494).
foram amparadas numa perspectiva de uni- Em 1683, o frei Antônio de Trujillo escrevia
versalidade cristã. Luís de Cadamosto, em a D. Pedro II, príncipe regente de Portugal,
1455, pressupunha a superioridade desta re- apresentando-lhe seu memorial sobre a cos-
ligião e a naturalidade da adesão dos africa- ta da Guiné. O frei dizia que “na banda do
nos a ela, alcançada via contágio (BRÁSIO, norte de Cacheu estão os rios Gâmbia e Se-
1958, p.317-318). O navegante português negal” e descrevia o fracasso missionário
Diogo Gomes de Sintra (2002, p.81), almo- na região, afirmando que, lá, a missionação
xarife de Sintra que foi à Guiné em 1456, cristã era muito difícil devido à presença dos
narrou a conversão de um governante local “pregadores do Alcorão de Mafoma”. A reli-
à fé professada na Europa, acompanhada da gião muçulmana, expressa nos termos Mafo-
expulsão do marabu, o pregador muçulma- ma e Mafamede, referentes a Maomé, tinha
no que lhe vivia na corte, e da proibição do larga abrangência social: conforme o missio-
credo islâmica. Tal perspectiva, no entanto, nário, “são inumeráveis os que a professam e
evidenciava certo reducionismo presente a admitem” (BRÁSIO, 1991, p.491).
nas narrativas europeias sobre Islã na Áfri- Ao longo do século XVII, essa percepção
ca, marcadas pelo desconhecimento da ex- predominou entre os missionários que bus-
pansão islâmica ao sul do Saara. Basta lem- caram converter os muçulmanos da Sene-
brar que um dos mais importantes movi- gâmbia ao catolicismo: a barreira religiosa
mentos político-religiosos do Magrebe, que parecia-lhes intransponível. Os jesuítas por-
alcançou e conquistou a península ibérica, tugueses, franciscanos portugueses, espa-
partiu do vale do rio Senegal, no século XI: a tação institucional deste órgão da Cúria Roma-
expansão dos Almorávidas. na, presente no site do Vaticano, a Propagan-
Se os primeiros navegantes sustentaram da Fide teve (e tem) a competência específica
de “coordenar todas as forças missionárias, de
expectativas positivas quanto à conversão proporcionar diretivas para as missões, de pro-
dos africanos muçulmanos ao catolicismo, mover a formação do clero e das hierarquias lo-
cais, de incentivar a fundação de novos Institu-
este projeto mostrar-se-ia, duzentos anos tos missionários e de prover às ajudas materiais
depois, um grande fracasso. Em 1647, o fran- para as atividades missionárias. A recém-criada
ciscano espanhol Diego de Guadalcanal, par- Congregação se transformara, deste modo, o
instrumento ordinário e exclusivo do Santo Pa-
ticipando da missão dos capuchinhos da Pro- dre e da Santa Sé, para o exercício da jurisdição
paganda Fide1 no estado do Caior, afirmou sobre todas as missões e a cooperação missioná-
ria”. Ver http://www.vatican.va/roman_curia/
1 Criada em 1622 pelo Papa Gregório XV, a Con- congregations/cevang/index_it.htm, acesso em
gregação para Evangelização dos Povos ficou co- 20 de julho de 2017. Através desta instituição,
nhecida como Propaganda Fide, uma vez que a o papado buscava resguardar para si a tarefa
tarefa principal atribuída a ela foi a propagação missionária, até então sob alçada dos padroados
da fé católica pelo mundo. Segundo a apresen- régios português e espanhol.
nhóis e franceses, além dos lazaristas fran- Henrique Rema e Nuno Gonçalves, sobre os
ceses, compõem as ordens missionárias que franciscanos e os jesuítas, respectivamen-
atuaram ou passaram pela Guiné, no século te, constituem as principais referências no
XVII, e legaram-nos documentos que nos campo de estudos, sendo fartamente docu-
possibilitam investigar o processo de expan- mentados. O foco de ambos está em analisar
são islâmica na África Ocidental, mormen- a atividade religiosa, suas relações com bu-
te na bacia dos rios Senegal e Gâmbia. Tais rocracias régias e desempenho na conversão
fontes são os principais recursos emprega- da população africana. A atuação missioná-
dos nesta pesquisa. Não obstante, as mis- ria é o centro da questão, discutindo os al-
sões religiosas inserem-se num momento de cances e funcionamento das missões, seus
tensões vivido na Europa diante da compe- desafios e as formas como foram encarados.
tição atlântica e da gênese de um sistema in- Assim, Rema e Gonçalves discutem os dile-
ternacional marcado por relações de poder, mas e êxitos missionários rumo à conversão
conflitos bélicos e diplomacia (SUMMA- da população africana, através de marcado
VIELLE, 2006; SANTOS, 2014). As narra- viés religioso. Nesta direção, segue a disser-
tivas produzidas pelos religiosos devem ser tação de Carlene Recheado, com ênfase no
compreendidas a partir de seus lugares de funcionamento da empreitada capucha na
origem e destino, evidenciando conflitos Guiné seiscentista (REMA, 1968; GONÇAL-
entre Coroas, padroado régio e Sé romana; VES, 1996; RECHEADO, 2010).
e entre ordens missionárias. Neste artigo, A missão jesuíta de Cabo Verde (1604-
buscamos analisar as fontes procedentes da 1642, com atuação no arquipélago e na cos-
missionação católica na África no período ta adjacente) esteve no horizonte de análise
Moderno nesta perspectiva e, através dela, de vários pesquisadores, ainda que poucos
discutimos características da expansão islâ- tenham se dedicado à relação dos padres
mica no território africano inacianos com os muçulmanos, na costa
africana (ALMEIDA, 2007; HORTA, 2006;
O Islã e as missões cristãs na HORTA, 2013). Quanto a este ponto, desta-
Guiné: historiografia camos o trabalho de Maria Emília Madeira
Santos e Maria João Soares que, ainda que
A maior parte das pesquisas que se dedica-
não tenham o Islã como objeto, aponta as
ram ao estudo das missões católicas na re-
restrições impostas pelos muçulmanos à
gião da Senegâmbia, entre o rio Senegal e o
atuação missionária católica na costa afri-
norte da atual Serra Leoa, no século XVII,
cana. As autoras destacam os objetivos ci-
manteve o interesse no processo de funcio-
vis da missão na costa, ligada à ocupação da
namento institucional da empreitada mis-
região, e religiosos, sobretudo na conversão
sionária. 2 Os trabalhos dos padres católicos
da população local diante do manifesto de-
2 O período analisado diz respeito à missão jesuí- sinteresse do clero secular de Cabo Verde
ta de Cabo Verde (1604-1642), com jurisdição
sob a costa adjacente, e às missões franciscanas
pelo continente (SANTOS; SOARES, 1995,
das ordens capuchas, que se desenvolveram na partir de 1657) e da Soledade (a partir de 1674),
Guiné a partir de 1633, ao longo do século XVII. respectivamente. Os franciscanos portugueses
Na Guiné do século XVII, houve quatro missões atuaram em Guiné até cerca de 1770 e em Cabo
franciscanas, duas suportadas pela Propaganda Verde aparecem em documentação até 1814
Fide e duas pelo Padroado português: os fran- (REMA, 1968, p.155; PEDRO, 1970; REMA,
ceses (1633-1638) e espanhóis (1646-1686); e 1982; GONÇALVES, 1991; GONÇALVES, 1996;
os portugueses das províncias da Piedade (a RECHEADO, 2010).
Agora anda aqui um sacerdote de nome Juan busca de recursos para edificar uma igreja,
Pinto que neste reino estudou latim e casos distribuir títulos e rendas e coroar aquele
com os nossos, e ainda que de nação jalofa,
governante, nomeado D. Bernardo, e sua es-
é um homem de muito boa prudência, virtu-
de e zelo pelas almas. E movido deste zelo, posa com coroas de prata. De acordo com o
se veio de São Tomé, onde havia um cano- pregador, isto aumentaria a cristandade na
nicato, a fim de alcançar de sua Majestade Guiné. Ademais, o carmelita evidencia a cir-
que o despachasse e lhe desse comodidade culação de notícias sobre as negociações que
de embarcar e comissão para levar dois sa-
aconteciam em Portugal, pela instituição de
cerdotes à costa que tenho dito, para ali se
empregar na conversão das almas (BRÁSIO, uma missão jesuíta na Guiné, e esforçava-se
1964, p.143). para atrair olhares para a ordem que inte-
grava e compartilhava com o bispo, aquela
Em 03 de setembro de 1587, o rei de Por-
dos Carmelitas. Frei Cipriano diz ao bispo
tugal fazia mercê ao padre jalofo João Pinto,
dom frei Pedro Brandão que:
concedendo-lhe sessenta mil réis a cada ano
“enquanto ele estiver e residir nos sertões Dos padres da Companhia que Vossa Se-
nhoria diz venham a esta terra, me alegrarei
da dita Ilha do Cabo Verde e contingentes
muito; também me parece será [bem] fun-
a ela, na conversão dos gentios da dita ilha”
dar nela um Convento da nossa Ordem, pois
(BRÁSIO, 1964, p.153). Além do envio deste dela saiu Vossa Senhoria Ilustríssima para
padre, prosseguia o trâmite burocrático pela Fundador da Cristandade desta terra e bem
efetivação de uma missão religiosa em Cabo é não faltarem frades de Nossa Senhora nela
Verde. Em 1596, o rei de Portugal e Espanha (BRÁSIO, 1964, p.393).
concordava com parecer da Mesa da Cons- Contudo, foi preciso esperar até julho de
ciência e indicava os jesuítas para que ad-
1604, quando teve início a Missão de Cabo
ministrassem um seminário no arquipélago,
Verde, ao desembarcarem quatro jesuítas no
que deveria oferecer serviços religiosos aos
arquipélago. Em 16 de março de 1604, antes
ilhéus e à costa da Guiné (BRÁSIO, 1964,
do início efetivo da empreitada, padre Balta-
p. 385-386). Muito rapidamente, a notícia
zar Barreira, que já havia atuado na missão
chegou à costa africana. No mesmo ano, o
inaciana de Angola, escrevia ao padre Antô-
carmelita frei Cipriano enviava uma carta
nio Mascarenhas em agradecimento por ter
ao bispo de Cabo Verde, D. Frei Pedro Bran-
sido indicado para superior da missão. Em
dão, também carmelita e que se encontrava
sua opinião, tratava-se de importante inicia-
em Lisboa, informando dos avanços que, em
tiva, uma vez que:
atuação individual, havia galgado na Guiné.
Frei Cipriano atuou na reativação da (...) quanto mais notícia tenho de Guiné,
igreja de Nossa Senhora do Vencimento, tanto tenho maior mágoa do desamparo de
tantos milhares de almas, que nenhum co-
em São Domingos. 3 Na carta, informa que
nhecimento têm do benefício inestimável de
o governante de Caió, uma unidade política sua redenção, porque até agora não chegou a
próxima a Cacheu, o teria visitado com sé- eles a luz do santo Evangelho, estendendo-se
quito de 300 pessoas, buscando conversão cada vez mais por aquelas partes a maldita
ao catolicismo. O frei escreveu ao bispo em seita de Mafamede (BRÁSIO, 1968, p.35).
3 "Rio de São Domingos na costa de Guiné…" [pri- A expansão islâmica foi grande concor-
meiras palavras do ms.], posterior a 1606. Au-
tor: Anônimo. In. Biblioteca da Ajuda, cód. 51- rência aos interesses missionários cristãos na
VI-54, fls. 143-144, Lisboa. região por fiar-se em parâmetros análogos,
atuando de forma sistemática e com perfil so- de Biguba para ensinar a Doutrina e a ler e
cial aglutinador. As religiosidades locais, por escrever aos meninos, ao que vinham gran-
não usufruírem de um modelo institucional de número deles e se fez mui grande fruto,
de modo que as crianças de colo e que quase
de divulgação, como o catolicismo e o Islã,
não sabiam falar andavam cantando as ora-
devido ao caráter marcadamente familiar ou ções, cousa de que os Portugueses se espan-
regional (ainda que muitos elementos cen- tavam dizendo nunca imaginar que pudesse
trais da vida espiritual fossem compartilha- haver quem ensinasse a doutrina em Guiné,
dos), colocaram outros tipos de resistência porque os Clérigos que lá passam, não vão
aos projetos jesuítas e franciscanos, acen- buscar senão negros e assim se consolam
muito com os de nossa Companhia, porque
tuadamente no campo da política regional
não vão lá buscar mais que almas (...)(BRÁ-
e das relações de dependência. Contudo, na SIO, 1968, p.630).
dinâmica das disputas num cenário multirre-
ligioso, os missionários europeus utilizaram Embora Pedro Fernandes utilizasse de
várias estratégias de cooptação, aplicadas proselitismo estratégico ao afirmar que os
tanto aos muçulmanos quanto aos pratican- jesuítas não se interessavam mais que por al-
tes de religiosidades locais, sobretudo através mas, é sabido o envolvimento dos inacianos
do uso de analogias diante dos ritos pratica- com a economia (SANTOS, 2011), sendo que
dos por bexerins ou jambacoces, os agentes seu enriquecimento em Cabo Verde foi uma
rituais associados ao Islã e às religiosidades das principais críticas da comunidade insu-
locais, respectivamente. lar à ordem. Ademais, Fernandes comple-
Diante do Islã ou das crenças locais, os menta que, sob sua tutela, encontravam-se
missionários buscaram aproximar-se dos 27 meninos, possivelmente filhos da aristo-
governantes e convertê-los. No tocante ao cracia local, tendo em vista os procedimen-
Islã, adotou-se a estratégia de pregar aos be- tos correntes de educação informal vigentes
xerins, quando possível, estabelecendo diá- na região, através dos quais os potentados
logos através da doutrina comum presente locais davam seus filhos a serem educados
na Bíblia e no Alcorão, divulgado na região por outrem, para estabelecer laços sociais,
por estes últimos. A existência de uma cultu- comerciais e políticos (HORTA, 2006, p.
ra religiosa escrita disseminada pela região 407-418). O método empregado pelo jesuíta
foi instrumento utilizado pelos inacianos em potencializava a conversão ao catolicismo ao
sua autopromoção, diante do valor atribuído mesmo tempo em que fortalecia parcerias
ao livro, enquanto objeto de poder místico, entre europeus e africanos, largamente uti-
pelas populações locais. Neste contexto, os lizadas na conformação do tráfico atlântico.
jesuítas estabeleceram uma pequena escola Outra medida, tomada em 1605, foi a eleva-
no porto de Biguba, no atual rio Grande de ção de Cacheu, na costa da Guiné, à condição
Buba, em 1605. Nesta instituição, ensina- de vila, favorecendo os interesses cabo-ver-
vam a doutrina católica, acompanhada das dianos e aumentando a controle burocrático
habilidades de ler e escrever. O responsável da Coroa naquela região.
pela atividade foi o irmão Pedro Fernandes O desenvolvimento do ensino jesuíta
que, em carta de 30 de abril de 1606, infor- em Biguba dava-se em oposição à presença
mava ao padre provincial: muçulmana naquele povoado, que exercia
Eu quando o Padre [Barreira] se foi para a atração sobre a população local, através do
Serra Leoa, fiquei por sua ordem no porto porte de cultura material religiosa, como
tíssimo médico, o qual veio à terra a curar as a maldita seita de Mafoma entre a gente bár-
enfermidades de nossas almas: e subindo ao bara, correm todo o sertão de Guiné e todos
Céu deixou em sua misteriosa botica da Igre- os portos do mar, e assim se não achará ne-
ja, mezinhas saudáveis para curar as nossas nhum porto, desd’os Jalofos, São Domingos,
chagas (…) (FARO, 1945, p.70). rio Grande até à Serra Leoa, que neles se não
achem Mandingas bexerins. E o que levam
O exercício da conversão, tal como pro- para vender são feitiços em cornos de car-
posto pelo franciscano, significava a subs- neiros e nóminas e papéis escritos, que ven-
tituição de objetos referentes às religiosi- dem como relíquias e com vender tudo isso
dades locais, sujeitas à influência islâmica, semeiam a seita de Mafamede por muitas
partes, e vão em romaria à casa de Meca, e
por congêneres cristãos. As nôminas encon-
correm todo o sertão da Etiópia (DONELHA,
tradas eram compostas por “papéis escritos
1977, p.160).
com regras às avessas, que os mandingas lhe
tinham dado, que são uma casta de negros O crescimento do consumo da noz de
feiticeiros a quem eles reverenciam por seus cola procedente da África Ocidental acom-
padres”, além de outros elementos, como panhou o processo de islamização, ofere-
chifres e “panos com sangue tão fresco como cendo dinamismo às economias regionais,
se o tiveram posto àquela hora” (FARO, desde a Serra Leoa aos territórios Hauçás no
1945, p.71). Portanto, ainda que o objeto norte da atual Nigéria. Paul Lovejoy, ao es-
não significasse adesão ao Islã, uma vez que tudar o comércio da noz na África Ocidental,
não é acompanhado de declaração de autoi- nos séculos XVIII e XIX, nota que um dos
dentificação como muçulmano associada a relatos mais antigos sobre o consumo deste
práticas do Islã, sua presença e constituição fruto encontra-se num documento produzi-
evidenciam a amplitude da circulação dos do por al-Ghansani, um médico da corte do
bexerins mandingas. A “escrita às avessas” sultão do Marrocos, Ahmad Al-Mansour,
sugere o alfabeto árabe que, associado aos em 1586 (LOVEJOY, 1980, p.02). Neste
religiosos mandingas, reconhecidos como período, a circulação de mercadorias e pro-
pregadores muçulmanos e comerciantes de dutos entre o Marrocos e a África Ocidental
longa distância no trato da noz de cola, indi- era uma constante: foi na mesma década de
ca os caminhos do Islã na Serra Leoa. 1580 que o sultão marroquino enviou uma
O cronista cabo-verdiano André Done- missão muçulmana ao Songhay, com a pro-
lha, que elaborou um memorial em 1625 posta oficial de promover a fé islâmica, além
dedicado ao governador de Cabo Verde para do objetivo escuso de avaliar a possibilidade
bom-governo da costa adjacente, ratifica de expansão de seu sultanato rumo às ter-
a influência muçulmana naquela região, a ras produtoras de ouro, ao sul (SALDANHA,
confrontar missionários católicos europeus. 1997, p.149).
De acordo com Donelha, saberes islâmicos Ao analisar o papel do Islã no estabele-
eram disseminados pela Guiné através dos cimento de redes mercantis hauçás, Love-
bexerins, na rota da noz de cola, de grande joy argumenta que este credo promoveu a
difusão regional. O cronista afirma: integração de centros comerciais dispersos,
mantendo-lhes a autonomia individual e po-
Há-se saber que os maiores mercadores que
há em Guiné são os Mandingas, em especial
tencializando a incorporação de muçulma-
os bexerins, que são os sacerdotes. Estes, as- nos estrangeiros nas comunidades hauçás.
sim pelo proveito que tiram como por semear A peregrinação a Meca e o sistema educa-
cional islâmico são reconhecidos pelo au- destes caminhos, através da recolha oral de
tor como instituições-chave no processo de informações, seja na África ou na Europa, os
expansão islâmica. Lovejoy afirma que “tão missionários franciscanos franceses e espa-
cedo quanto em 1740, pelo menos seis mu- nhóis vinculados à Propaganda Fide viram
çulmanos de Gonja fizeram a peregrinação neles a possibilidade de se aproximarem
a Meca”, colocando comunidades mercantis de indivíduos-chave quando estivessem em
dispersas em contato com o mundo islâmico peregrinação religiosa. Assim, fugindo das
(LOVEJOY, 1980 p.39). Acrescentamos que restrições dos portugueses, que impediam
este processo ocorria com frequência des- a entrada de missionários estrangeiros nas
de muito antes: a documentação portugue- terras sob jurisdição lusa, estes franciscanos
sa evidencia os circuitos de noz de cola, da buscaram alternativas para penetrar o con-
Serra Leoa a Meca, já no final do século XVI tinente africano por outras vias que não a
(MOTA, 2016, p.232; 306-308). costa ocidental e, de forma complementar,
Na Senegâmbia, no entanto, o comércio combater a expansão islâmica. Em carta ao
de noz de cola e sua ligação com Meca foi padre Gaspar de Sevilha, provincial dos ca-
bastante anterior. George Brooks (1980) puchinhos da Andaluzia, o secretário da Pro-
destacou a importância econômica e políti- paganda Fide, Francisco Ingoli, sugeria que
ca do produto, desde o século XV, através o melhor caminho para atingir o Regno Ne-
de fontes europeias, embora fontes ára- gritarum era pela costa ocidental africana.
bes indiquem seu comércio desde o século Contudo, uma alternativa viável, segundo o
XIII, procedente da África Ocidental rumo secretário, era o ingresso através do Cairo.
ao norte do continente, conforme o autor. Interessa observar a estratégia adotada no
Brooks aponta relações entre a economia da ingresso missionário pelo Egito: aprender a
cola e o estabelecimento de estados na Se- língua árabe e cooptar os africanos que lá se
negâmbia, mormente na região produtora, encontravam em busca do aprendizado des-
na atual Guiné Bissau. Allen Howard (2007, te idioma:
83) argumenta que povos falantes de língua
Segundo me parece, julgo acertado enviar
Mande, como os mandingas, produziram, primeiro apenas três missionários com um
transportaram e comercializaram a noz de leigo, para tentar a entrada pelo Cairo, ou
cola, procedente da Serra Leoa e partes vi- por outra parte: e se se puder pela Costa Oci-
zinhas, na Guiné, desde pelo menos, o iní- dental da África, passar por agora, seria o
cio do século XVI. No final do século XVI, o negócio mais seguro. Por outra parte parece
melhor o caminho do Cairo: porque naque-
produto já estava profundamente vinculado
la cidade poderão os missionários ter intér-
à expansão islâmica, através das redes de di-
prete e ainda aprender a língua árabe, que
fusão das escolas corânicas e do exercício da lá entendem. Seria a propósito uma carta do
Peregrinação a Meca, no conjunto dos Cinco Embaixador de Veneza, que reside na corte
Pilares rituais realizados pelos muçulmanos do Rei Católico, para o Cônsul Veneziano em
da região, alcançando também o Magrebe Alepo; e procurar tomar uma casa na Rua
(MOTA, 2016). que no Cairo chamam dos Venezianos, para
fazer dela um hospício para a missão, que
As rotas comerciais sobrepunham-se
servirá para fazer amizade com os Negros, e
àquelas que levavam à peregrinação a Meca outros, que são espécie de Negro, que che-
e aos centros de estudo da doutrina islâ- gam ao Cairo, para aprender a língua Árabe,
mica, no Marrocos ou no Egito. Sabedores e tendo paciência de entreter-se naquela ha-
bitação alguns anos inteiros, até que se saiba peito à construção de comunidades católicas
língua e se alcance a entrada (BRÁSIO, 1979, que acolhessem aqueles que abandonassem
p.399). o Islã e se convertessem ao cristianismo. Em
Francisco Ingoli explicita seu conheci- 1683, o frei Antônio de Trujillo descrevia
mento acerca das redes de sociabilidades que aquilo que lhe parecia ser o melhor modo
cruzavam os sertões africanos e permitiam de conseguir a conversão dos africanos. Em
que muçulmanos da Senegâmbia se deslo- seu memorial, o missionário apontava a ne-
cassem até o Egito para aprender o idioma cessidade de se criar meios para congregar
vernacular do Alcorão. Sua estratégia visava os neoconversos nas comunidades cristãs
à aproximação com estes homens, a fim de já estabelecidas. Tal medida era necessária
convertê-los e transformá-los em meio para diante da perseguição que muitos sofriam
acessar as populações de sua região de ori- em suas comunidades de origem, o que os
gem, a África Ocidental. Alternativa seria a distanciava do batismo. Ademais, o atrativo
ida dos franciscanos da Andaluzia à Guiné dos costumes muçulmanos também impelia
por terra, pelo Marrocos. Para tanto, contou- os novos cristãos ao retorno à fé islâmica, so-
se inclusive com carta de indicação do rei da bretudo no que tange ao casamento poligâ-
Espanha, solicitando ao Mulei do Marrocos, mico, cujos laços matrimoniais significavam
por meios diplomáticos largamente ami- alianças políticas e ampliavam o número de
gáveis, que lhes fossem dados passagem e dependentes dos governantes, tornando-os
apoio (BRÁSIO, 1979, p.407-408). mais poderosos. Conforme o religioso, o Islã
A documentação evidencia a existência representava um grande desafio aos missio-
de um canal aberto e reconhecido de comu- nários cristãos na Senegâmbia:
nicações correntes entre a África Ocidental, Meu desejo era que esta nova cristandade
o Marrocos e a cidade de Meca, com entre- se fosse agregando aos demais cristãos para
posto em Timbuctu e, possivelmente, no que se aumentasse o número e a defesa fosse
Cairo, vista a localização geográfica desta maior com a união de forças. Desta sorte se
lograriam aos novamente convertidos o am-
cidade, às portas da península arábica. Por-
paro e auxílio necessário contra seus mesmos
tanto, a estratégia de Ingoli, ao eleger a cida-
naturais gentios, os quais os perseguem furio-
de egípcia como meio para acessar a África samente em se fazendo cristãos, e muitos dei-
Ocidental, estava embasada em comprova- xam de receber o santo batismo para não ser
ção do percurso realizado por muçulmanos perseguido e outros se subvertem facilmente
africanos. A proposta visava a aproximar pelas contradições e hostilidades que encon-
missionários católicos e muçulmanos em pe- tram, não sendo menor atrativo para sua
perversão brindá-los com a pluralidade de
regrinação, a fim de convertê-los e transfor-
mulheres e superstições com outras latitudes
má-los em meio para acessar as populações de Mafoma. Com que se encontrando juntos
de sua região de origem. Apesar de se discu- estes e os mais cristãos, gozariam da seguri-
tirem estas alternativas, a via vitoriosa para dade e será acrescentado o número, e a esse
acesso à Guiné foi mesmo marítima: em 07 passo serão também mais fortes os presídios,
de dezembro de 1646, a missão franciscana e os ministros do demônio irão perdendo suas
forças e nosso Deus e Senhor será conhecido e
partiu de Sanlúcar de Barrameda, numa fra-
venerado (BRÁSIO, 1991, p.485).
gata que chegou em Porto de Ale no dia 23
de dezembro daquele ano (BRÁSIO, 1979, A elaboração de uma estrutura social ca-
p.459). Outra estratégia adotada dizia res- paz de abarcar os recém-convertidos seria
condição para o sucesso das missões católi- alcançar este objetivo, frente à expansão is-
cas, seja em decorrência de valores morais lâmica que tomava espaços constantemente.
supostamente advindos da religião ou devi- O padre jesuíta Antônio Vieira, em carta ao
do às restrições dos governantes africanos confrade Antônio Fernandes, de 22 de janeiro
aplicadas as súditos. Essas indicações foram de 1653, fazia coro às palavras Antônio Dias,
dadas por Trujillo em 1683, após o declara- apontando o desejo inaciano de se enviarem
do fracasso dos jesuítas portugueses e dos muitos religiosos à Guiné, onde várias almas
capuchinhos franceses e espanhóis, nas dé- estavam “se perdendo à falta de ministro que
cadas anteriores. Contudo, já se apresentava pregue o Evangelho”. Conforme o jesuíta, “a
no discurso missionário desde o século XVI, verdadeira cavalaria é salvar almas e mandar
quando o carmelita Frei Cipriano, estando muitos missionários” (BRÁSIO, 1991, p.31),
em Cacheu, em 1596, escreveu ao bispo de sugerindo que a fixação na região seria alcan-
Cabo Verde solicitando provisões para con- çada através do aumento da fé pelo envio de
cessão de hábitos de Cristo com o objetivo um exército de missionários, o que resultaria
de melhor estabelecer vínculos sociais, sen- na expansão da defesa.
timentais e políticos entre brancos e negros, Portanto, o desafio islâmico na Guiné mo-
rumo à conversão dos africanos. O frei soli- bilizou a atenção dos missionários católicos,
citava ao bispo intercessão junto ao rei: influenciando na concepção de rotas para
O que pedia (...) a V . S. Ilustríssima é que acesso à região, métodos de tradução reli-
veja se pode haver de S. Majestade uma pro- giosa referentes às religiosidades locais e ao
visão para que os Reis que se converterem e Islã e a necessidade de formação de comuni-
seus filhos moresgados possam trazer o há- dades católicas que pudessem perenizar um
bito de Cristo, e o Cristão branco ou mulato
modo de vida cristão, acolhendo os neófitos.
que casar com sua filha mais velha, ou com
qualquer que o mesmo Rei tiver mais vonta-
Embora estes desafios e estratégias se puses-
de, possa também trazer o hábito de Cristo, sem, também, em relação às religiosidades
e ser Capitão de seu Reino com sua vida, e locais, o confronto com o Islã adquire grande
tantos serviços poderá fazer a S. Majestade proporção quando se nota que, na perspecti-
que depois mereça lhe façam outras mercês, va universalista desta religião, a África Oci-
e isto para que casando algum branco com a
dental tornava-se diretamente ligada a Meca.
filha do Rei novamente convertido, será alar-
gar mais a Cristandade, e terem eles mais Dessa forma, evidencia-se um desafio religio-
amor aos brancos (BRÁSIO, 1964, p.392). so e político, com dimensões geopolíticas em
escala global. Assim, a dimensão geográfica
O jesuíta Antônio Dias, ao explicar as cau- do Islã, que colocava os africanos da Guiné
sas da desistência dos jesuítas da Missão de em contato com a Barbaria e Arábia, lançou
Cabo Verde em 1642, acreditava que a expan- limitações à ação missionária católica e será
são da comunidade católica era condição para
tema da próxima seção.
o sucesso da evangelização dos africanos.
A presença constante de muçulmanos nos
Limitações impostas pelo Islã
portos onde a população ainda não se havia
convertido criava condições para sua adesão à atuação missionária
ao Islã, com a qual os portugueses, em me- O processo de expansão islâmica na Sene-
nor número, não conseguiam competir. Era gâmbia influenciou no fluxo missionário
preciso adensar a comunidade católica para rumo à região da atual Guiné Bissau até a
baía de Tagrin. A fragilidade cristã na con- Verde (MOTA, 2013, p.137-160). Logo nos
corrência com os muçulmanos é patente nas primeiros anos, o discurso inicial converte-
escritas jesuítas, figurando entre as causa ra-se em desafio real, uma vez que os ina-
que levaram ao abandono da Missão de Cabo cianos viram-se compelidos pelo efetivo da
Verde, em 1642. Em retrospecto, o inaciano presença islâmica. Em agosto de 1606, Bar-
padre Antônio Dias elencava as causas da reira escrevia ao padre João Álvares expli-
desistência da missão. No memorial escrito cando algumas dificuldades encontradas na
em 1648, afirmava, no tocante à conversão conversão da população da Guiné. Em sua
dos africanos, “que era a principal pretensão carta, o jesuíta destacava os muçulmanos,
do Rei e da Companhia, faltaram esperan- ao afirmar que:
ças”. Dentre as razões “não era a menor a co-
A disposição para se fazer fruto nesta gentili-
municação que com eles tem os Mouros, que dade em uns é grande, e noutros não. Daqueles
por quase toda aquela Costa introduziram a que já receberam a seita de Mafoma, não pa-
maldita seita de Mafoma, tão dificultosa de rece que há que tratar, os outros que somente
arrancar” (BRÁSIO, 1979, p.553-554). Na a cheiraram e ainda têm ídolos que adoram,
documentação, o termo “mouro” frequente- pode haver mais esperança, e já um Rei destes
me deu palavra que se faria cristão e escreveu
mente aparece vinculado ao Islã, como sinô-
sobre isso a Sua Majestade. Mas os que estão
nimo de muçulmano. mais dispostos a receber nossa Santa Fé são
Desde antes do início da missão, os je- estes Reinos da Serra Leoa e outros vizinhos
suítas já vislumbravam o alcance do Islã a eles, por não terem notícias de Mafoma e de
na Guiné. Ao escrever ao prepósito geral da sua Lei (…) (BRÁSIO, 1968, p.172).
Companhia de Jesus, padre Cláudio Aquavi- Segundo o inaciano, era preferível con-
va, o padre inaciano Fernão Rebelo defendia centrar atenções missionárias na Serra Leoa,
a criação da missão elogiando as capacida- onde “não chegou ainda a maldita seita de
des dos povos da região. Em 13 de setembro Mafamede, de que os mais outros Reinos es-
de 1586, o jesuíta informava que: tão iscados” (BRÁSIO, 1968, p.46). Nas ime-
é gentio inumerável e de mais capacidade de diações do rio Grande, a presença islâmica
todos os negros de África, de quem se pode já era marcante, conforme descreveu outro
ordenar sacerdotes e predicadores, para que jesuíta, Manuel Álvares, ao apontar o im-
pelos mesmos naturais se conserve e admi-
pacto das bolsas de mandingas e afirmar que
nistre a Igreja, o que não há no Brasil nem
os mandingas eram propagadores do Islã:
em outras partes, e corre perigo de se faze-
rem todos mouros, pela vizinhança que têm Há nestas partes certa gentilidade a que cha-
com os da Barbaria (BRÁSIO, 1964, p.129). mam Mandingas, que são a pior gente, por-
que guardam a seita dos mouros e confinam
Além da conversão, havia ainda o inte- com eles nos costumes e nas terras com os
resse difuso na formação de um clero nati- Jalofos. Estes andam metidos com esta gen-
vo africano, ao qual se delegaria a função de tilidade e os enganam dando-lhes nôminas e
converter seus conterrâneos (MARCUSSI, uns relicários que trazem ao pescoço, assim
2012). O início da missão, no entanto, foi como os agnus Dei e outras relíquias. São es-
tas nôminas uns pedaços de couros cozidos
marcado pelo combate ao Islã, como tópico
de diversos modos e neles trazem o que estes
narrativo para justificar a iniciativa, empre- mouros lhes dão, e semeiam também a ci-
gado pelo padre Baltazar Barreira, designa- zânea de sua perversa seita (BRÁSIO, 1968,
do para o cargo de superior jesuíta em Cabo p.274).
dificuldade receberão Lei nova sem seu con- lidade após receber a confirmação da possi-
sentimento (BRÁSIO, 1968, p.173). bilidade de aumento da presença portuguesa
Se, na Serra Leoa, as relações políti- na região, mediante a doação da capitania da
cas entre os reinos implicavam restrições à Serra Leoa a Pedro Álvares Pereira. Confor-
ação missionária, na Senegâmbia o desafio me destaca Nuno Gonçalves, esta mudança
era ainda maior, uma vez que lá os reinos denota a concepção do missionário de que a
jalofos estavam construídos sobre base de evangelização teria eficácia se atrelada à colo-
autoridade na qual o Islã desempenhava nização e à convivência dos africanos com os
importante papel. Na aldeia de Recife, no portugueses, aumentando a defesa diante de
Caior, o padre franciscano Diego de Guadal- represálias locais e, supostamente, instituin-
canal relatava, em carta de 04 de junho de do moralidades cristãs pelo convívio (GON-
1647, que o governante local havia afirmado ÇALVES, 1996, p.166). Contudo, a presença
aos missionários que “não havia de deixar islâmica não apenas inibia a expansão católi-
o que seus antepassados haviam seguido” ca: ela a reduzia na medida em que portugue-
(BRÁSIO, 1979, p.496), ao ser-lhe sugeri- ses lançados aderiam aos ritos e práticas do
da a conversão. Noutros casos, governantes Islã. Antônio Trujillo relatou estes desdobra-
muçulmanos impuseram constrangimentos mentos, destacando o empenho missionário
às missões cristãs, fazendo uso das relações na evangelização acompanhado do fracasso
sociais e jurídicas presentes no contexto da neste projeto, diante da expansão islâmica,
escravidão atlântica. Ao ser-lhes sugerido também através de missões, nas quais o ensi-
que renegassem a fé islâmica, recusaram- no do Alcorão e dos pilares do Islã eram fun-
se e mobilizaram esforços para impedir damentais:
que seus súditos aceitassem o cristianismo, Os sectários de Mafoma têm contaminado
ameaçando-os de escravização. Esta é uma todas aquelas conquistas, pois entram os
das causas elencadas pelos capuchinhos da Mandingas, que são os que a ensinam, fa-
zendo missões por todos os demais reinos
Andaluzia para desistirem da Missão na
e chegam com elas até às nossas. A que nos
Guiné, conforme disse frei Brás de Ardales à
temos oposto ainda que ao custo de muitos
Propaganda Fide, em janeiro de 1650: trabalhos e riscos de vida, os temos desterra-
(...) assim que chegamos a cabo Verde, não dos de todos aqueles confins, sendo tão pes-
encontramos disposição para plantar a fé, tilenciais os que a ensinam que não apenas
porque os negros diziam que se se batizas- enganam com suas más artes àqueles pobres
sem e se fizessem cristãos, o Rei os tomaria bárbaros, mas também muitos vassalos de
por seus escravos. E tendo falado com o Rei Vossa Alteza, que vivem entre os gentios e de
acerca de receber nossa santa fé, respondeu ordinário pior que eles (…) (BRÁSIO, 1991,
que ele havia de seguir o que seus pais o ha- p.484).
viam ensinado e que não se falasse mais na
Também o frade Pablo Herônimo de
matéria (…) (BRÁSIO, 1979, p.573).
Franxenal, escrevendo de Bruxelas ao secre-
A expansão da fé cristã necessitava da ela- tário da Propaganda Fide, em 28 de outu-
boração de estruturas sociais aptas a acolher bro de 1671, destacava a expansão islâmica
e proteger os neófitos, diante dos embargos na Senegâmbia, Guiné e Serra Leoa como
impostos pelos governantes muçulmanos. grande impedimento das missões cristãs.
Na Serra Leoa, Baltazar Barreira somente Conforme o religioso, na região da Serra
passou a conceder o batismo com mais faci- Leoa era possível conseguir a conversão de
vasta população. Contudo, os pregadores is- até o século XIX (CURTIN, 1971; TRIMING-
lâmicos “não cessam de dia nem de noite de HAM, 1964, p.128-129; SANTOS, 2013, p.51;
enganar e reduzir aquela pobre e ignorante LOVEJOY, 2014).
gentilidade”. Acrescenta ainda que várias
populações, entre elas mandingas, jalofas e Considerações finais
fulas, havia pouco tempo que eram passí-
A partir da leitura da documentação missio-
veis da conversão. Todavia, poucos anos se
nária católica sobre a África Ocidental, con-
passaram e os predicadores muçulmanos
cluímos que o Islã praticado pelos africanos,
teriam conseguido grande vantagem na cor-
mormente jalofos, mandingas e fulas, foi
rida missionária rumo à captação de almas:
um grande obstáculo à missionação cristã.
Havendo muito poucos anos que os grandes Os missionários são unânimes na apresen-
reinos, e dilatados impérios dos Mandingas,
tação da Senegâmbia como região de maior
dos Fulos, dos Jalofos, dos Barbacins Banhuns
e outros muitos de Guiné, sendo gentios ou-
concentração de muçulmanos, cuja religião
viam com gosto o que se lhes dizia declaran- decorria do contato estritamente mantido
do-lhes os principais mistérios da nossa santa com comerciantes do Magrebe e das redes
fé em ordem à sua conversão e redução, rece- de peregrinação, que chegavam até Meca.
bendo alguns o santo Batismo com grande ve- Os grandes reinos e dilatados impérios cita-
neração, agora todos os mais professam cega,
dos por Franxenal também figuram na nar-
obstinada e enganadamente a falsa e maldita
seita de Mafoma (BRÁSIO, 1991, p.310). rativa de Antônio Trujillo que, ao descrever
a bacia dos rios Senegal e Gâmbia, afirma
Em tom profético, o missionário com- que lá “os reinos são mais dilatados e menos
plementava que não havia dúvidas de que o os cristãos que habitam neles”. A presença
Islã predominaria como religiosidade prati- missionária naquelas partes era bastante
cada na região, “assenhorando-se até chegar
reduzida, ainda que os religiosos católicos,
ao Mar Vermelho”. Sua sentença foi acom-
como Antônio de Trujillo, afirmem que de-
panhada, anos depois, pela de Trujillo, que
sejariam atuar nestes reinos.
afirmou ao príncipe português que “Se Deus
As estratégias adotadas, ou meramente
principalmente e depois Vossa Alteza com seu
sugeridas, pelos missionários rumo à inser-
grande selo não o remediam, então os desta
ção da religião católica na Senegâmbia, bem
seita infernal infectarão até o Mar Vermelho,
como as limitações impostas pelos muçulma-
pois não é acreditável a ânsia com que soli-
nos a estas missões, indicam que o Islã não
citam sua dilatação” (BRÁSIO, 1991, p.484).
era um elemento secundário ou periférico
As análises produzidas por Franxenal e Tru-
no quadro religioso regional. Estes elemen-
jillo são bastante pertinentes e, ainda hoje,
tos somam-se à autoconcepção dessas po-
não foram exploradas pela historiografia de
forma eficiente. De fato, as missões islâmicas pulações enquanto muçulmanas, expressa
– concebidas como uma forma precisa e efi- na adesão voluntária e consciente aos Cinco
ciente de jihad – possibilitaram os levantes Pilares do Islã, como índice do caráter islâmi-
políticos que ocorreram na Senegâmbia, en- co que atribuíam à sua crença (MOTA, 2017,
tre 1640 e 1670 e, posteriormente, repercuti- p.45). Diante destes dados, acreditamos que
ram por todo o sahel meridional. Como pre- não cabe ao historiador do século XXI deter-
nunciado nas décadas finais do século XVII, minar se e quando as populações da Sene-
o Islã comporia um cinturão ao sul do Saara, gâmbia tornaram-se muçulmanas, ao custo
de renegar as concepções que elas tinham metade de seiscentos – uma história de desen-
sobre si mesmas. A tese de um Islã híbrido contros. In. MENESES, Avelino de Freitas de;
COSTA, João Paulo Oliveira e (org.). O reino,
ou “polissêmico” (SANTOS, 2017), que foi o as ilhas e o mar oceano: Estudos em ho-
cerne da compreensão racialista do Islã afri- menagem a Artur Teodoro de Matos, Lis-
cano no discurso de pesquisadores ligados ao boa/Ponta Delgada: Centro de História de Além
colonialismo francês (TRIAUD, 2014), expõe -Mar, FCSH da Universidade Nova de Lisboa,
Universidade dos Açores. 2007.
a compreensão do Islã a partir de um mode-
lo previamente estabelecido, em detrimento BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missiona-
ria Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol I,
de reconhecer a prática social baseada na
(1341-1499), Lisboa, Agência Geral do Ultramar,
autoidentificação. Este reconhecimento, en- 1958.
tretanto, encontra-se na documentação, que
BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
evidencia a forma como os muçulmanos da Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol. III,
Senegâmbia viam a si próprios. (1570-1600), Lisboa, Agência Geral do Ultra-
Acreditamos que o Islã na África Ociden- mar, 1964.
tal antes dos jihads guerreiros é um tema BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
pouco valorizado pela historiografia, anco- Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol IV,
rada na tese de que uma verdadeira expan- (1600-1622), Lisboa, Agência Geral do Ultra-
mar, 1968.
são muçulmana na região viria a acontecer
apenas após os levantes, a partir do século BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
XVIII. Esta tese ergue-se a partir do para- Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol. V,
(1623-1650), Lisboa, Academia Portuguesa da
digma que estabelece os jihads guerreiros História, 1979.
como movimento islâmico por excelência,
BRÁSIO, Antônio. Monumenta Missionaria
cujo vértice político tende a superar a análi-
Africana, África Ocidental, 2.ª série, vol. VI,
se daquele religioso. Os dados aqui apresen- (1651-1684), Lisboa, Academia Portuguesa da
tados sugerem o contrário: a conversão das História, 1991.
populações pela via da pregação religiosa BROOKS, George. Kola trade and State Buil-
foi a primeira e fundamental forma de jihad ding: Upper Guinea Coast and Senegambia, 15th
vivida na região. Os jihads posteriores, im- to 17th centuries. Working Papers, n.38, Afri-
pulsionados pelas questões colocadas pela can Studies Center, Boston University, 1980.
experiência atlântica regional, construí- CURTIN, Philip. Jihad in West Africa: Early
ram-se a partir desta primeira mobilização. phases and Inter-Relations in Mauritania and
Senegal In.: The Journal of African His-
Neste momento, o Islã não a era a força po-
tory. vol. 12, n.01. Cambridge: Cambridge Uni-
lítica que viria a constituir-se. No entanto, versity Press. 1971.
no quadro religioso, sua caracterização já se
DONELHA, André. Descrição da Serra Leoa
revelava indubitável. Por meio deste artigo, e dos Rios de Guiné do Cabo Verde. Org. A.
buscamos destacar que os “pregadores do T. da Mota. Lisboa: Junta de Investigações Cien-
Alcorão de Mafoma” foram verdadeiros e tíficas do Ultramar. 1977
duradouros obstáculos às missões católicas FARO, André. Relação do quanto obraram na
na Senegâmbia, durante o século XVII. segunda missão, os anos de 1663 e de 1664: os
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Resumo
O presente artigo tem por objetivo discutir o cativeiro indígena e, posterior-
mente, o papel estruturante da escravidão africana no interior das fazendas
da Companhia de Jesus na Capitania do São José do Piauí durante a segunda
metade do século XVIII. A proposta busca, portanto, compreender a partir
de um fator econômico – a instalação das fazendas de gado vacum e cavalar,
pública e privada – e, posteriormente, um fator político-administrativo – a
elevação da Vila da Mocha ao status de cidade, Oeiras – como interesses me-
tropolitanos, pretensões de colonos locais e formas de negociação/resistên-
cia escrava e indígena se desenvolveram no interior dessa capitania.
Palavras-chaves: Escravidão; Estado do Maranhão e Piauí; Administração
Portuguesa.
Abstract
“NÃO CONVÉM NEGRO SEM AMO”: SLAVES, INDIANS AND JESUITS
IN THE FARMS OF THE COMPANY OF JESUS IN THE CAPTAINCY
OF SÃO JOSÉ DO PIAUÍ, 1750-1800
This article aims to discuss indigenous captivity and, later, the structural role
of African slavery within the Company of Jesus farms in the Captaincy of
São José do Piauí during the second half of the 18th century. The proposal
seeks, therefore, to understand from an economic factor – the installation of
cattle ranches and horses, public and private – and, later, a political-admi-
nistrative factor – the elevation of the Mocha Village to the status of a city,
Oeiras – as metropolitan interests, pretensions of local settlers and forms of
negotiation/slave and indigenous resistance developed within this captaincy.
Keywords: Slavery; State of Maranhão and Piauí; Portuguese Administration.
* Professor Adjunto do Departamento de História da UFPI, Doutor em História pela UFPE e membro do
NUPEDOCH – Núcleo de Pesquisa e Documentação em História – e do IFARADA – Núcleo de Pesquisa
em Africanidades e Afro descendência, ambos ligados ao Departamento de História da UFPI. E-mail:
mairtoncelestino@hotmail.com
maior influência utilizava da sua “fama de a melhor estratégia utilizada seria angariar
vaqueiro” para constituir em espaço branco o apoio dos parentes e, como isso, instituir
e cristão um lugar familiar e culturalmente alianças dentro e fora da escravidão.
seu, onde vizinhos e parentes pudessem re- Esse pensamento dos escravos não era
presentar, material e simbolicamente, seus estranho aos demais religiosos e o próprio
mundos. Sobre o assunto, o padre Domin- Domingos Gomes alertava-os dos perigos
gos Gomes afirmava que, dos casamentos entre escravos.
Aos pretos explicava como em nosso poder Porém advertindo os males temporais, e
trabalham para coisas de Deus, a fortuna de também eternos que costumam provir de
terra nessa de Casa, que muitos brancos a multiplicar casamentos de Negros no Ser-
não tinham no Sertão; E assim foram saindo tão, quais costumam se ficarem os maridos
dos Matos para de 18 que andavam fugidos, embaraçados para o serviço dos longos com
cinco dos quais foram lá mortos no Mocam- ausências as vezes de ano, esvaírem-se pelo
bo pelos brancos que com autoridade do rei- abuso, e durarem pouco, ficarem soberbos
no [ilegivel] lhe foram dar no ano de 718 três com os amos, que não querem mais ter,
ou quatro léguas distantes da melhor Fazen- acender-se nesses o fogo junto as palhas, ha-
da na qualidade dos pastos da Administra- verem ditos contrapõem qualquer líder com
ção chamada Campo Grande na ribeira do a eles, andarem em viagens, a buscar par-
Canindé, que em um só ano, em que esta es- teiras, e curandeiras, por-lhas de olho para
tava sem branco pelo não haver capaz, entre- acudir aquele gado mole; escrevi ao Padre
gue a um Negro da maior fama de Vaqueiro, Manoel Alvarenga não pusesse dúvida dar
e que enquanto foi vivo fez sempre o papel mulher aos que a viessem pedir, mas as dei-
de Rei nas suas festas, se foi para lá esta vi- xasse por cá ficar com elas, mandou-me um
zinhança de seus Parentes para uma Serra, moleque solteiro por cada casado, avista de
que se chama a Cumba, que por comumente que ninguém quis mais casar por não perder
o Sertão.
serve de muitas pares do Sertão, e daí saiam
já as Estradas e fazendas a matar os brancos. Contudo, a partir da segunda metade do
Daqui se firma uma razão; pela qual não con-
século XVIII, o rítmo de crescimento dos
vém negro sem amo.
currais salta para 448 unidades de produ-
Para Domingos Gomes, as fugas de es- ção de gado vacum e cavalar. Somente na
cravos aquilombados, quando não reprimi- capitania do Piauí, o percentual sai das 129
das, ocasionavam um emaranhado de pro- fazendas de gado, no ano de 1694, para 245
blemas; já que com a ausência dos senhores, fazendas, no ano de 1751; quase duplicando
seria um destino previsível. Esse seu pensa- a quantidade de fazendas em pouco mais de
mento será definido quando o missionário 50 anos. No Maranhão, esse aumento é ain-
afirma a origem daqueles escravos que habi- da mais significativo, uma vez que, na parte
tavam as fazendas e suas relações com as fu- sul da capitania, a extração das drogas do
gas e mocambos presentes naquelas matas. sertão e a exploração das matas se apresen-
A artimanha do escravo José Negro- em tavam como as principais atividades.
fugir para as matas com o intuito de forçar Como destacou Maria do Socorro Cabral,
junto a seus senhores a união com sua par- as entradas dos curraleiros ao Maranhão se
ceria- revela bem a estratégia escrava em efetivaria a partir do Piauí; ocupando ter-
manter-se nas fazendas, desde que seus inte- ras próximas ao rio Parnaíba e estendendo
resses fossem igualmente atendidos. Muito seus pastos até os rios Iatapecuru, Mearim e
provavelmente, no ambiente das fazendas, Grajaú. Assim, do montante de 163 fazendas
ral, mas também assinalava seu lugar naque- também a pele de qualquer nação indígena
le mundo cada vez mais colonial. do Piauí, que misturada ao branco daria ori-
O primeiro esforço de classificação da gem aos mamelucos, ao “caful [cafuzo], ao
população escrava e indígena que vivia no filho de preto e índia; mestiço ao que parti-
ambiente das fazendas, bem como fora dela, cipa de branco, preto e índio; mulato ao filho
partiria do ouvidor José Antônio de Morais de branco e preta; cabra ao filho de preto e
Durão quando, no ano de 1772, produz um mulata; curiboca ao filho de mestiço e ín-
relato descritivo da capitania do Piauí3. Por dia”. Na ausência de uma dessas classifica-
meio desse manuscrito, o ouvidor classifica- ções, o ouvidor os distinguia por condição
ria os sujeitos daqueles sertões a partir de de mestiço, sendo esse sujeito “a mistura de
critérios baseados na cor. Seu interesse no cabras e curibocas”.
assunto era tanto que o início da sua Descri- António José Morais Durão traça no
ção do Piauí, o ouvidor detalha as caracte- mesmo trabalho descritivo da capitania um
rísticas da população, colocando-a na condi- levantamento censitário da população, des-
ção de elemento essencial para se entender crevendo em cada vila da capitania do Piauí
a capitania e para, logo em seguida, afirmar o percentual exato dos seus moradores,
que tal qual a cor da terra – vermelha – seria sexo, condição social e faixa etária.
Relação das Pessoas, Fazendas, sítios que há nesta Capitania de São José do Piauí, até dezembro de 1774.
Mulheres
Fazendas
Fazendas que
Homens
Idades
Almas
Fogos
Cores
Sítios
têm senhorio
fora da
capitania
Mamelucos –
668
De 70 até 90 –
Valença 369 2536 1356 1180 58 46 No Ceará – 6
Pretos – 3856 436
Total – 10669
De 90 até 100
Marvão 190 1326 728 598 39 50 Brancas – 1320
– 45
Mulatas – 1900
Campo No Maranhão
447 2971 1669 1302 91 49 –8
Maior Mestiças – 1554 De 100 até 120
– 13
Parnaíba 444 2694 1512 1182 79 47 Vermelhas – 575
Total 3034 19191 10669 8522 579 352 Total – 8522 Total – 19191 Total – 107
Fonte: Descrição da capitania de São José do Piauí, do ouvidor Antônio José de Morais Durão
3 Ofício do ouvidor do Piauí, António José Morais Durão, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar,
Martinho de Melo e castro], sobre o envio de uma relação dos moradores, fazendas e sítios do Piauí, sexos
e idades. Anexo: 1 doc. AHU_Piauí, Cx. 10, doc. 17. AHU_ACL_CU_016, Cx. 12, D. 684.
Esses dados, embora parciais, parecem perceber a presença das tradições culturais
demonstrar o quão a escravidão estava dis- e re/criações étnicas próprias desses escra-
seminada naquelas fazendas agropastoris, vos; uma espécie de herança africana que
públicas e privadas da época. Entranhada veio para o Brasil e que nunca deixou de ha-
em todo o tecido social, a escravidão se per- bitá-los.
petuava enquanto instituição legitimadora Nos documentos consultados existem
do status social e como elemento potencia- livros de casamentos reservados quase que
lizador dos ganhos materiais dos seus se- exclusivamente para os grupos de procedên-
nhores, uma vez que era no labor diário com cia angola ou os que assim se denominavam.
o gado que estes escravos estavam na sua Possivelmente, os casamentos interétnicos
grande maioria envolvidos. É exemplar des- funcionavam como ferramentas de preser-
se alastramento da instituição escrava na so- vação das suas identidades, uma vez que,
ciedade o caso envolvendo o vigário Dioní- era por meio da família que o escravo pode-
sio José de Aguiar que, em 1771, aproveitou ria conquistar certa autonomia e transmitir
a oportunidade dos batismos coletivos de a gerações futuras suas heranças culturais
escravos e inseriu os seus cativos no ritual (FARIA, 1998, 317).
cristão a fim de receberem a santa unção. Ao que tudo indica, não havia nenhum
tipo de interferência por parte dos senhores.
Na forma do sagrado Concílio Tridentino
nesta freguesia onde os contraentes são na- Diferente do que ocorria no sul do Brasil,
turais moradores fregueses sem descobrir quando, segundo Robert Slenes, os senho-
impedimento algum em minha presença res de escravos praticamente proibiam o
sendo presente as testemunhas Mathias Pin- casamento formal entre escravos de donos
to e Domingos Pereira da Silva pessoas co- diferentes ou entre cativos e pessoas livres,
nhecidas receberam por palavras do presen-
a maioria dos registros de casamento na ci-
te o crioulo Felício, filho legítimo do preto
João Borges de nação Gege e Angela Vieira dade de Oeiras nos mostra o contrário do
de nação Angola, natural e batizados nesta ocorrido naquela parte do Brasil (SLENES,
freguesia de Nossa Senhora da Vitória com 1999).
Joaquina preta de nação Mina ambos os Foi assim com os escravos Antonio de
contraentes escravos do Reverendo Vigário Abreu, preto de nação angola, e a escra-
[grifo meu] abaixo assinado logo lhes deu
va Ana Dias de Almeida, crioula e natural
as bênçãos conforme os ritos cerimoniais da
santa madre igreja do que para constar fiz da freguesia de Nossa Senhora da Vitória.
este assento e assino.4 Ambos eram de propriedade de Gaspar de
Abreu Valadares ao casarem no ano de 1766,
Por estes registros é possível mapear o na Igreja de Nossa Senhora da Vitória da ci-
total de escravos por unidades domiciliares dade de Oeiras do Piauí.
particulares, algo que só nos era possível Esses casamentos eram sempre motivos
com as fazendas do Real Fisco. Pelos regis- para muita festa. Em outubro de 1760, “o
tros de batismos e de casamentos também preto forro gentio da Guiné”, Cristovão do
nos é possível traçar genealogias de famílias Rego, casou-se com a também preta forra
escravas, observar as regras e/as constitui- gentio da Guiné, Thereza, e o reverendo vi-
ções de redes familiares entre escravos e gário responsável pela cerimônia registrou
4 Registros de Batismos 1760-1790. Arquivo da no livro de casamentos da Paróquia que a
Arquidiocese de Oeiras. cerimônia fora festejada por três dias con-
secutivos. Seis anos depois, em 1766, seria a decide denunciar os maus tratos que vinha
vez dos pretos forros Francisco de Matos de sofrendo por parte do recém-empossado ad-
Franco, de nação Jeje, e Eugenia, “da mesma ministrador.
nação Jeje”, assumir perante o Concílio Tri- Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da
dentino a condição de casados. Antes disso, administração do Capitão Antônio Vieira do
Eugênia teria que apresentar ao vigário da Couto, casada. Desde que o capitão lá foi ad-
freguesia de Nossa Senhora da Vitória pro- ministrar que me tirou da fazenda algodões,
vas que confirmassem o falecimento do seu onde vivia com o meu marido, para ser cozi-
nheira da sua casa, ainda nela passo muito
antigo cônjuge, o preto Domingos de Souza,
mal. A primeira é que há grandes trovoadas
e que por esta razão estaria ela desimpedida de pancadas em um filho meu sendo uma
e pronta a recomeçar uma nova vida. criança que lhe fez extrair sangue pela boca,
Nesse mundo marcadamente escravis- em mim não posso explicar que sou um col-
ta, missionários, curraleiros e autoridades chão de pancadas, tanto que cai uma vez do
coloniais estavam cientes de que para bem sobrado abaixo peiada; por misericórdia de
Deus escapei. A segunda estou eu e mais mi-
administrar os espaços das fazendas teriam
nhas parceiras por confessar a três anos. E
que ceder, sujeitar-se a alguns interesses uma criança minha e duas mais por batizar.
dos subalternos e, nesse ínterim, buscar Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus
soluções para o problema da falta de mão ponha aos olhos em mim ordinando digo
de obra. No tempo dos jesuítas, acredita- mandar ao procurador que mande para a fa-
va-se que a disseminação dos batismos e zenda aonde me tirou para eu viver com meu
marido e batizar minha filha (MOTT, 2010).
casamentos funcionaria como uma estra-
tégia negociada para evitar e impedir fu- O capitão Antônio Vieira do Couto havia
gas e, como isso, manter índios, escravos sido escolhido para administrar a fazenda
e demais agregados nos domínios das fa- Poções, lugar, portanto, onde Esperança
zendas. Com a expulsão dos missionários, a Garcia estava se transferindo. Na época, a
laicização da posse da terra, deixando-a nas fazenda Poções situava-se entre as próspe-
mãos de militares portugueses ou de mes- ras propriedades deixadas pelos jesuítas. No
tiços nascidos no Brasil, apenas intensifica- rol dos bens deixados pelos jesuítas, havia
ria os conflitos no ambiente das fazendas na fazenda Poções: duas casas, currais e chi-
entre seus administradores e os escravos e queiros para cavalos, bois e porcos, todos
agregados a elas pertencentes (SOUZA JU- bem cercados com riachos e boa terra com
NIOR, 2012, 290). Os governadores seriam bastante plantação de mangas e com boas
constantemente requisitados para solucio- madeiras.
nar esses conflitos e quando não até mesmo A fazenda contava ainda com dez escra-
criticados por suas posturas violentas em vos, entre eles, Supriano [Cipriano] Criou-
relação aos subalternos das fazendas e dos lo, o vaqueiro da propriedade de 44 anos de
aldeamentos indígenas. idade. Junto com Supriano, sua esposa, a
Dois casos ilustram bem o momento de escrava Ana, de 20 anos de idade, e o filho,
desagregação da propriedade jesuítica no José Carlindo, com menos de 2 anos de ida-
Piauí. Em 06 de setembro de 1770, portan- de. Graçião Angola de 45 anos e sua mulher
to, dois anos antes da expulsão dos jesuítas, Graçia, de 38 anos, fecham a lista dos escra-
a escrava Esperança Garcia pertencente a vos casados presentes na Fazenda Poções.
uma das fazendas da Companhia de Jesus Marcelino Crioulo, José Crioulo, Marcos
Crioulo, Francisco Crioulo e Nazário Crioulo nio Vieira do Couto aos seus subordinados,
encerram a lista dos prováveis escravos que independentemente de serem pretos velhos
acompanharam de perto as desventuras da ou moços, todos, na sua administração, tra-
escrava Esperança Garcia e seus dois filhos. balhavam todas as noites e sem descanso.
Quando se viu forçada a sair da fazenda Nesse documento, o autor anônimo afir-
Algodões para a fazenda Poções, a escrava ma que o capitão Vieira do Couto dizia aos
Esperança Garcia tinha como seu adminis- escravos que estava na função de adminis-
trador o tenente de cavalaria José Esteves trador da fazenda Poções para “ensinar os
Falcão. Na época, José Esteves Falcão acu- ditos escravos” a se empenharem em “socar
mulara a mesma função administrativa na mamona, em desmanchar mandioca e outro
fazenda Serrinha e,durante toda a trajetó- serviço”. Ao buscar dirimir a situação, o au-
ria enquanto agente colonial, adquiriu o tor do documento se manifesta como “inter-
respeito de muitos governadores do Piauí; cessor” entre as três partes, ou seja, o gover-
sobretudo, de João Pereira Caldas, que no nador da capitania, o capitão Antônio Vieira
ano de 1760, cogitara seu nome para ocu- do Couto e a escrava Esperança Garcia.
par o cargo de Almoxarife da Fazenda Real, Possivelmente, o intercessor da causa da
posição estratégica na visão do próprio Pe- escrava Esperança Garcia tenha sido José
reira Caldas, uma vez que tal cargo funcio- Esteves Falcão. Assim como no governo de
naria para desvincular as receitas da capi- João Pereira Caldas, José Esteves tinha boa
tania do Piauí às do Maranhão.5 Em 1763, relação na administração do governador
José Esteves Falcão finalmente tomaria Gonçalo Lourenço Botelho de Castro (1769-
posse como Almoxarife da Fazenda Real e 1775). Inclusive, além de administrador das
até o ano de 1765 tem-se notícia da sua pre- fazendas da Nação, José Esteves Falcão
sença no cargo. sempre era nomeado para resolver esse tipo
Tempos depois, José Esteves Falcão dei- de conflito em nome dos interesses da ad-
xaria o almoxarife da Fazenda Real para ministração colonial. Em janeiro de 1772, no
ocupar-se da função de administrador das auge das invasões dos índios Pimenteira nas
fazendas Algodões e Serrinha. Na época em fazendas situadas às margens dos rios Piauí
que a escrava Esperança Garcia foi forçada a e Parnaíba e de fugas dos aldeamentos dos
sair da fazenda Algodões, seu administrador índios Guguê, Jaicó e Acoroá para as matas,
era José Esteves Falcão. Junto à carta que José Esteves recebe uma carta instrutiva
expõe os sofrimentos da escrava Esperança do governador Lourenço Botelho de Castro
Garcia, havia outro documento não datado e autorizando-o a reorganizar os negócios na
sem assinatura do autor. O documento ape- capitania.
nas reforça o conteúdo das arbitrariedades Diante dessa situação, o governador
cometidas pelo procurador e capitão Antô- Lourenço Botelho de Castro se referiria a
José Esteves Falcão como o único vassalo
5 Ofício do [governador do Piauí], João Pereira “bem circunstanciado para o exercício deste
Caldas, ao [Secretaria de estado da Marinha e
Ultramar], Tomé Joaquim da Costa Corte Real,
emprego” na capitania do Piauí. Não resta
sobre a necessidade de um Almoxarifado inde- dúvida de que tais atributos contribuíram,
pendente do Maranhão, e o serviço do recebedor sobremaneira, para colocá-lo na condição
da Fazenda Real, José Esteves Falcão. Anexo: 06
docs. AHU-Piauí, Cx.6, doc. 7, 1/AHU_CU_016, de membro do governo interino da capitania
Cx. 6, D. 380. do Piauí durante o ano de 1775.
(SCOTT; HEBRAD, 2014, 90) perceberam Senhora de Nazaré apresentava baixa diver-
o quanto as relações de poder próprias do sidade étnica no plantel de escravos, com
mundo da escravidão foram entendidas pe- predominância de africanos de procedência
los escravos em associação com a necessi- angola, na ordem de 31 escravos arrolados
dade de incorporar suas reivindicações no com a denominação de angolas dos 101 en-
mundo da escrita. contrados nas unidades de produção. Em
Ao se descobrirem sujeitos escravizados, termos comparativos, os Minas aparecem
muitos deveriam compreender que suas vi- em segundo lugar, com 5 escravos e, em se-
das estariam, a partir daquele momento, guida, 1 africano de procedência Congo. Os
submetidas a uma série de regras solidamen- demais estão inventariados na condição de
te referendadas por distinções hierárquicas crioulos e mestiços.
e de privilégios. Nesse ambiente marcada- Entre as fazendas com o maior percen-
mente de Antigo Regime, muitos súditos do tual de angolas estava a fazenda Guaribas,
vasto império português escolheriam seguir com 7 escravos angolas (13,8%); a fazen-
o caminho da escrita como plataforma de da Mato, que apresentava um plantel total
suas denúncias, daí “a importância dos do- de apenas 4 escravos (4%) - sendo todos
cumentos em uma sociedade escravista”. de procedência Angola- e a fazenda Algo-
Por meio desses indícios documentais dões, com mais 4 Angolas que dividiam as
é que tivemos acesso ao mundo do tenente tarefas do cotidiano da fazenda com mais
José Esteves Falcão. Sua projeção enquan- 14 escravos classificados como mestiços e
to agente colonial o fez elaborar poucos, crioulos.
porém essenciais registros sobre suas ativi- Os escravos das fazendas da Nação ti-
dades como almoxarife e administrador das nham consciências das conquistas adqui-
fazendas da nação. Em relação aos escravos ridas desde o tempo dos missionários da
que viveram nas fazendas Algodões, Poções Companhia de Jesus. Entre os ganhos, es-
e Serrinha e que, porventura, conviveram tavam: as garantias em torno das partilhas
com a escrava Esperança Garcia, a única in- dos animais nascidos nas fazendas, acessos
formação disponível reside na Relação dos aos ritos e cerimônias do catolicismo, como
Escravos das fazendas da Inspeção de Nos- o compromisso dos matrimônios entre os
sa Senhora de Nazaré, um documento deta- escravos, batismos e confrarias religiosas
lhando o percentual de escravos residentes as conhecidas irmandades de pretos (RE-
nas fazendas da Nação no ano de 1778. GINALDO, 2005). Essa percepção da reali-
No final da década de 1770, as fazendas dade escravista impunha-lhes a difícil tare-
pertencentes à inspeção de Nossa Senhora fa em reconhecer a escravidão; contudo os
de Nazaré, antes vinculadas aos missioná- estimulavam, igualmente, a definir a partir
rios da Companhia de Jesus, seriam arrola- dos seus próprios referenciais os limites do
das em inventário dos bens semelhantes ao poder dos seus senhores e dos maus-tra-
ocorrido no ano de 1770 nas fazendas das tos aos quais estavam sujeitos. Nesse caso,
inspeções do Canindé e Piauí. Na relação ha- como fez a escrava Esperança Garcia, op-
via um total de 101 escravos entre africanos, tar pela tradição religiosa do colonizador
mestiços e crioulos presentes nas proprie- não significou tornar-se inerte à escravidão,
dades confiscadas pelo governo português. mas, ao contrário disso, tentou subvertê-la
Diferente das demais inspeções, a de Nossa por dentro, questioná-la a partir daquilo que
Resumo
Ao longo dos séculos de vigência da escravidão, a cidade do Rio de Janeiro reu-
niu um grande número de escravos africanos de diferentes procedências. A do-
cumentação demonstra a recorrente referência aos chamados “minas”, que co-
meçam a ser regularmente registrados no final do século XVII na Bahia e, nos
primeiros anos do século XVIII, no Rio de Janeiro. Nosso objetivo, neste artigo,
é justamente mapear a diversidade da composição linguística e étnica dos africa-
nos designados “minas” na cidade do Rio de Janeiro ao longo dos séculos XVIII e
XIX, chegando mesmo a princípios do século XX, e avaliando assim em que me-
dida, nos limites das fontes disponíveis, esses critérios podem ser considerados.
Palavras-chave: Rio de Janeiro; Africanos; Minas; Escravidão; Etnicida-
de; Língua.
Abstract
FROM GBE TO IORUBÁ: MINA PEOPLE IN RIO DE JANEIRO
The city of Rio de Janeiro concentrated one of the largest African born slave po-
pulation in the Americas. Despite the majority of West Central African slaves the
West African slave population was also significant in the city. The so called Mina
slaves, most of them embarked in the ports of the Bight of Benin. This chapter
demonstrates the diversity of the linguistic and ethnic composition of Mina peo-
ple in the city of Rio during the era of the Atlantic slave trade and beyond, consi-
dering the remaining Mina population in the city until the 1930s.
Key words: Rio de Janeiro; Africans; Minas; Slavery; Ethnicity; Languistic.
Não há como falar dos africanos minas na rentes portos de desembarque ao longo da
cidade do Rio de Janeiro sem pensar o con- costa brasileira. Mesmo se deixadas de lado
junto do comércio atlântico de escravos e a as áreas de menor destaque, Rio de Janeiro
distribuição dos africanos segundo os dife- e Salvador constituíram os dois principais
efetivamente provinham eram bem diferen- nas, por exemplo, a documentação do século
tes em termos de geografia, grupos étnicos, XVIII informa que esses africanos falavam a
línguas, culturas, meio ambiente em que vi- “língua geral da Mina”, que ao que tudo in-
viam, práticas econômicas e formas de or- dica corresponde a uma mistura de línguas
ganização política. Eram no seu conjunto gbe e ioruba, cuja composição está longe
povos diversos que foram escravizados em de ser decifrada pelos linguistas.4 Entre os
diferentes momentos de suas histórias em membros dessa irmandade, existiam mahis,
função da demanda do comércio atlântico daomeanos e também pelo menos um irmão
de escravos. Pode-se hoje afirmar que a “na- vindo de Dassa, uma pequena localidade já
ção mina” engloba indivíduos que pertence- dentro do território mahi, mas constituída
ram a diferentes povos e que, dentre eles, os por uma população procedente da área ioru-
mais numerosos foram os conhecidos como bá que manteve o uso da língua iorubá em
de línguas do grupo gbe (entre eles o fon e seu novo território. Portanto, são infinitas as
o mahi são as já reconhecidas) e do iorubá. possibilidades de rearranjos dos dois lados
Entretanto, nem sempre essa presença foi do Atlântico que dificultam e limitam a aná-
equilibrada e, embora esse seja um cálculo lise linguística como referência para a identi-
difícil de ser feito pela análise da documen- ficação da procedência dos escravos.
tação disponível, é possível estimar que os O mesmo se pode dizer para a questão
escravos procedentes de regiões onde predo- da identidade étnica. Nessa mesma irman-
minaram as línguas gbe foram mais nume- dade alguns membros se identificam como
rosos no século XVIII, enquanto os escravos “couras” (ou couranos) e “cabus”. Nenhuma
vindos de áreas de língua iorubá começaram dessas designações é conhecida na histo-
a ser importados em maior número a par- riografia africanista, o que traz problemas
tir do final do século XVIII e se tornariam para sua localização. Entretanto, não resta
maioria ao longo do século XIX. qualquer dúvida que no Brasil eles se identi-
O uso do mapeamento linguístico para ficavam como tal, fazendo explícita referên-
identificação da procedência dos escravos cia a uma “terra” coura e cabu, nos mesmos
é um recurso usual na historiografia africa- moldes em que outros grupos se referiam às
nista e, por consequência, também na histo- suas terras (SOARES, 2004). Desse modo,
riografia da diáspora. Contudo, esse método também a questão da identificação étnica se
traz uma série de problemas, na medida em apresenta como um problema.
que, em toda a área do entorno da Baía do O que temos então a nosso dispor para
Benim, essas línguas apareciam misturadas, avançar no esforço de identificar a popula-
muitas vezes em decorrência de desloca- ção escrava africana residente na cidade do
mentos, casamentos interétnicos, etc. Assim, Rio de Janeiro são dados relativos às nações
torna-se impossível estabelecer uma equiva- às quais diziam pertencer (no caso, a nação
lência entre língua, cultura e grupo étnico. mina), às terras onde situam seu ponto de
Esse problema se agrava na identificação da partida (quando conseguimos obter essas
população escrava no Rio de Janeiro, já que informações) e à seus vínculos de ancestrali-
as formas de organização dos africanos na ci- dade (terra dos mahi, dos couras, dos cobus,
dade nem sempre seguiam tal critério. Na Ir- dos daomeanos, dos haussa, etc). Entretan-
mandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, 4 Sobre o letramento e o uso da língua geral da
composta por uma maioria de africanos mi- mina nesta irmandade, ver: SOARES, 2000 b.
to, é importante deixar claro que essas et- na cidade do Rio de Janeiro, tirando provei-
nias não são transportadas para as Améri- to de uma identidade comum alargada que
cas. Indivíduos podem continuar se identifi- veio a ser conhecida como “mina”.
cando assim porque fazem referência a uma Ao longo do século XVIII, a documenta-
vivência passada e a uma consciência de que ção indica uma predominância de escravos
tal etnia existia e por isso podiam se referir egressos das áreas de línguas pertencentes
a ela, mas o grupo ao qual se diziam per- ao tronco gbe (fon, ewe, mahi, entre outras).
tencer podia estar longe, do outro lado do Já no século XIX, cresce progressivamen-
Atlântico. Trata-se daquilo que o antropólo- te a presença de escravos vindos das áreas
go Johannes Fabian chama de coetaneida- de predominância da língua ioruba. O que
de (“coevalness”), ou seja, a consciência de acontece nesse processo de substituição é
uma existência no mesmo tempo, mas não que, quando esses novos escravos de língua
no mesmo lugar (FABIAN, 2013). No Rio de iorubá começaram a chegar em maior nú-
Janeiro, o mahi era mina. A identidade mina mero à cidade, especialmente a partir da dé-
apontava para um esforço de construção de cada de 1830, adotaram a terminologia mina
uma forma de identificação que reunia um já existente para os demais africanos da cos-
conjunto de desgarrados, ou melhor, dester- ta ocidental, não reivindicando, pelo menos
rados em arranjos precários e provisórios. de modo exclusivo, a identidade nagô, como
Em resumo, o uso do termo “mina” en- aconteceu na cidade de Salvador, onde os
cobria várias modalidades de diversidade e africanos da Costa da Mina até então igual-
resultava de uma estratégia bem estabeleci- mente do tronco gbe eram majoritários.
da para melhor gerir no interior do grupo a De todo modo, as primeiras investigações
nova forma de organização. O presente texto sobre os escravos mina no Rio de Janeiro se-
mostra que, ao longo do tempo, houve uma guiram na contramão dos estudos sobre a es-
variação de predominâncias linguísticas, ét- cravidão e o comércio de escravos na cidade
nicas, e que o que todos tinham em comum do Rio de Janeiro onde, ao longo de toda a vi-
era a procedência da Costa da Mina. Assim gência do sistema escravista, predominaram
sendo, cada um desses indivíduos pertenceu os escravos vindos da costa centro ocidental
(angolas, benguelas, cabindas e congos). Nos
no passado a um grupo étnico, alguns deles
últimos anos, até mesmo de modo despropor-
podiam estar novamente reunidos na cidade
cional do ponto de vista demográfico, cresceu
do Rio de Janeiro, mas o que tinham como
o interesse pelos minas e a historiografia da
perspectiva era a organização de grupos
cidade hoje carece de trabalhos sobre os es-
identitários baseados num passado étnico;
cravos africanos que compuseram a grande
num multilinguismo a que já estavam habi-
maioria da população cativa urbana vindas
tuados em seus territórios ancestrais; e, por
de outras partes da África, especialmente da
fim, na possibilidade de constituir uma nova
costa centro ocidental.
identidade calcada na procedência comum
(Costa da Mina) que lhes foi atribuída pela
A questão da etnicidade na
situação de escravização. Mas, em meio a
essa designação genérica, muitas particula-
diáspora
ridades foram preservadas e são fundamen- No início do século XVII, a população da ci-
tais para uma adequada compreensão do dade do Rio de Janeiro girava em torno de
modo como esses africanos se organizaram 3.850 pessoas: 750 portugueses, 100 africa-
nos e 3.000 índios e mestiços. A epidemia de incluía 222 escravos. Os africanos ali identi-
1613 teria afetado gravemente a população ficados por sua procedência aparecem em 14
indígena, levando a uma demanda crescente crianças nascidas na freguesia, cujas mães
de mão de obra africana (CARVALHO, 1994, eram africanas: dez delas eram ditas “de Gui-
p. 32; ARAÚJO, 1948, p. 239-241). Em 1699, né”, três “mina” e uma “fula”. O volume lista
Portugal abriu o comércio entre o Brasil e a ainda o batismo de uma criança mina e de
Costa da Mina, que passou a ser feito através outros sete africanos adultos: quatro mulhe-
de licenças de viagem. Essa rota já era usual res minas, dois homens minas e uma mulher
para a Bahia desde a década de 1670 e, a loango.5 São, ao todo, dez minas num total
partir de então, começavam a ser autorizada de 222 escravos. O importante a ser destaca-
também a viagens a partir do Rio de Janeiro. do aqui é que, muito provavelmente, a com-
Baseado em relatos de época, o histo- posição étnica e linguística desse pequeno
riador Patrick Manning demonstrou que a contingente era semelhante ao encontrado
maioria dos escravos embarcados nos portos por Manning no México. O que nos leva a
da Baía do Benim levados para o México nos reconhecer os minas do Rio de Janeiro tam-
primeiros anos do século XVIII era proce- bém como prováveis procedentes das áreas
dente de áreas de predominância de uso das de população de línguas Gbe, o que – grosso
línguas Gbe. Manning contou 15 Aja (língua modo – correspondia aos territórios do rei-
Aja/Gbe), 6 Calabar (porto de embarque na no do Daomé e seu entorno, onde à época se
Baía de Biafra), 12 Fon (língua Fon/Gbe), desenrolavam constantes conflitos armados
7 Allada (cidade com população de línguas decorrentes da expansão do Daomé em dire-
Gbe), 7 Ouidah (reino/porto com população ção ao litoral, justamente para ampliar sua
de língua predominantemente Gbe), 7 Popo capacidade de articular o comércio de escra-
(reino/porto com população de língua pre- vos com os europeus (LAW, 1991).
dominantemente Gbe) e 1 Oyo (cidade com Nas décadas seguintes, aumentou o de-
população de língua predominantemente sembarque de escravos da Costa da Mina na
iorubá). Excluídos os seis escravos vindos de cidade do Rio de Janeiro, tornando-se então
Calabar e um único indicado como de Oyo, mais fácil reconhecê-los. Dados mais consis-
todos os demais fazem alguma referência às tentes sobre a presença de escravos vindos
línguas gbe e aos territórios e portos desses do entorno da Baía do Benim para o Rio de
povos no entorno da Baía do Benim, onde Janeiro foram encontrados na documenta-
essas populações viviam e onde os escra- ção relativa às irmandades católicas, em es-
vos dessas procedências eram embarcados pecial a Irmandade de Santo Elesbão e San-
(MANNING, 1979, p. 125-129). ta Efigênia, fundada em 1740 por africanos
Tal constatação ajuda a pensar a compo- minas. Essa confraria reunia africanos de
sição da população mina na cidade do Rio várias procedências, excluídos aqueles vin-
de Janeiro e no Recôncavo da Guanabara no dos de Angola, já então reunidos na Irman-
mesmo período. Nos primeiros anos do sé- dade de Nossa Senhora do Rosário. Assim
culo XVIII, cativos identificados como mina sendo, compunham a direção da Irmandade
ainda eram raros na documentação da cida- de Santo Elesbão e Santa Efigenia africanos
de e de seus arredores. A primeira referência oriundos da Costa da Mina, de Cabo Verde,
encontrada até agora foi a de um livro de ba- 5 A transcrição na íntegra do referido livro de ba-
tismo de escravos de Irajá (1704-1708), que tismo encontra-se em: PINTO, 1988, p. 129-173.
São Tomé e Moçambique. Considerando 1751, a cidade tinha apenas duas freguesias
que seriam necessários de dez a vinte anos (Sé e Candelária). Entre 1718 e 1733, a Sé re-
para um cativo africano se alforriar e jun- gistrou o batismo de 1.074 escravos minas,
tar algum patrimônio de modo a arcar com todos adultos, provavelmente com mais de
o custo da construção de uma igreja, cujas 12 anos.8 Entre eles, estava Pedro Mina, de-
obras se iniciaram em 1746, pode-se estimar pois Pedro Costa, o primeiro rei mina elei-
que os membros do grupo fundador devem to na irmandade de Santo Elesbão. Nada se
ter começado a chegar por volta da década sabe sobre sua vida pregressa, mas por al-
de 1720. Sem mencionar outras guerras me- gum motivo foi comprado e batizado pelo
nos conhecidas, esta foi justamente a épo- então Desembargador Ouvidor Geral do Rio
ca dos maiores conflitos na Costa da Mina, de Janeiro, Manoel da Costa Mimozo. Pedro
quando o reino do Daomé invadiu Allada é citado em dois documentos importantes,
(1724) e Ouidah (1727). Dessa forma, mais seu batismo e também um relato da irman-
uma vez é possível estimar que os escravos dade de Santo Elesbão e Santa Efigênia.9
ditos “minas” que se estabeleceram no en- A documentação dessa irmandade per-
torno da Baía de Guanabara entre 1720 e mite uma identificação mais precisa da
1750 fossem em sua maioria egressos desses composição étnica dos membros da irman-
conflitos. Fica em aberto a identificação de dade vindos da Costa da Mina.10 Haviam en-
alguns subgrupos minas que não só apare- tre eles homens e mulheres procedentes de
cem na documentação do Brasil como de diferentes localidades. Entre os territórios
(por eles chamados “terras”) mencionados
outras partes das Américas, como México,
estão a terra dos maquis (mais conhecidos
entre os quais os já mencionados já cobus e
como Mahi), assim como indivíduos vindos
couras.6
de Savalu, Dassa, Za e Agonli. Todas essas
O reconhecimento dos escravos oriundos
localidades ficavam em territórios ocupados
da Costa da Mina na documentação da ci-
por populações majoritariamente de línguas
dade do Rio de Janeiro e de seu entorno re-
gbe, embora em alguns casos, como Dassa,
sulta do fato de que esses escravos não eram
também sejam encontrados falantes de io-
batizados antes do embarque, sendo neces-
sário que os proprietários o fizessem após 8 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Ja-
neiro. Livros de batismo de escravos da Fregue-
a compra.7 Os registros de batismo desses sia da Sé, 1718-1726 e 1726-1733.
cativos que chegavam aqui adultos e pagãos 9 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Ja-
gerou uma considerável série de assentos neiro. Livros de batismo de escravos da Fregue-
sia da Sé, 1726-1733, setembro de 1727, fl 38;
preciosos para o estudo da composição da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, "Regra
população mina da cidade. O primeiro livro ou estatutos pormodo de hûm dialogo onde,
sedá notiçias das Caridades e Sufragaçoens das
de batismo de escravos disponível para a ci-
Almas que uzam osprettos Minnas, comseus
dade do Rio de Janeiro data de 1718, corres- Nancionaes no Estado do Brazil, expecialmente
pondendo aos cativos da freguesia da Sé. Até no Rio de Janeiro, por onde se hao de regerem
egôvernarem fora detodo oabuzo gentilico e su-
6 Uma hipótese sobre esses grupos – que ainda persticiozo; composto por Françîsco Alvês de
carece de pesquisa complementar – foi apresen- Souza pretto enatural do Reino de Makim, hûm
tada em SOARES, 2007. dos mais exçelentes e potentados daqûela ôriun-
7 O batismo de escravos já regulamentado pelas da Costa da Minna”. fl. 22.
Ordenações Filipinas (1603) foi mais bem de- 10 Para efeitos do presente texto estamos deixan-
talhado em seus objetivos e responsabilidades do de lado os membros da irmandade de outras
pelas Constituições Primeira do Arcebispado da procedências, como os oriundos de Cabo Verde,
Bahia em 1707. Ver: SOARES, 2011. São Tomé e Moçambique.
ruba. Um caso ainda não esclarecido é dos desembarcada na cidade. Em 1816, esse
escravos identificados na documentação comércio “desapareceria”, e, a partir de
como “ionnos” (ou “ayonous”, como aparece então, os minas encontrados na cidade
na literatura francesa), provavelmente rela- eram quase todos provenientes do tráfico
cionados a Oyó e de língua iorubá. Restam interno, notadamente da Bahia. De outro
também não reconhecidos no interior da lado, em trabalho que ainda aparece como
irmandade, como os já mencionados cobus a principal referência para boa parte das
e couras. O importante no reconhecimento análises, Mary Karasch avalia que, entre
dessas designações é perceber que a identi- 1800 e 1843, dos mais de 600 mil africanos
dade Mina era extremamente operante na que aportaram no Rio de Janeiro, apenas
cidade, mas que, no seu interior, as pessoas 1,5% era de originários da costa ocidental
se diferenciavam e se agregavam de modo (KARASCH, 2000, p. 67).
bastante flexível ao longo do tempo. Além Dados mais recentes compulsados pelo
disso, os falantes de línguas Gbe ou ioruba projeto The trans-atlantic slave trade
são os mais conhecidos, mas certamente apontam, para o período de 1801 a 1825,
não os únicos. De acordo com a variação da 175.200 iorubás desembarcando na Bahia
oferta de escravos na Costa da Mina, a com- e apenas 1.000 no Rio de Janeiro. Já entre
posição do grupo Mina na cidade do Rio de os anos de 1826 e 1850, 116.200 ficaram na
Janeiro podia variar, e indiscutivelmente foi capital baiana e 28.400 seguiram para o Rio
sendo alterada ao longo do tempo. (ELTIS, 2004, p. 30-31). Certamente, nes-
A documentação da Irmandade de Santa te último grupo estavam tanto os escravos
Efigenia permitiu um melhor entendimen- destinados ao Vale do Paraíba e ao Sul em
to da composição étnica dos africanos mi- geral, como aqueles chegados ilegalmente –
nas na cidade do Rio de Janeiro em meados depois do fim do tráfico – e recolhidos pela
do século XVIII. O que se dirá dos demais Comissão Mista.11 Se pelo menos 10% deles
africanos da cidade na mesma época e em tiverem permanecido na cidade, sua presen-
outros momentos da história do comércio ça já seria bem significativa (SOARES, 2007,
atlântico de escravos? Quem eram efetiva- p. 18-19). A esses se juntavam ainda os es-
mente aquelas pessoas chamadas angolas, cravos que aportavam na Corte como par-
benguelas e cabindas na cidade do Rio de te do “êxodo mina” que partiu de Salvador
Janeiro? De onde vinham? Que vida deixa- após a revolta dos malês, em 1835. Quinze
ram para trás e o que fizeram para recons- anos depois do levante, os minas perfaziam,
truir na cidade do Rio de Janeiro uma nova conforme as análises do historiador Thomas
forma de viver e conviver com seu passado e Holloway, 17% dos cativos africanos e 8,9%
sua nova situação de escravidão? da população geral do Rio.12
11 Sobre os africanos livres no Rio de Janeiro, es-
De nagôs a minas pecialmente minas, capturados após o fim do
tráfico transatlântico de escravos em 1831, ver:
Segundo o historiador Manolo Florentino, MANIGONIAN, 2000.
12 Embora o chamado êxodo mina ainda careça
entre os anos de 1795 e 1811, os cativos da de exames mais sistemáticos, análises sobre
costa ocidental (em especial dos portos de essa migração de africanos ocidentais de
São Tomé, Costa da Mina e Calabar) que Salvador para o Rio de Janeiro, especialmente
após o levante dos malês de 1835, aparecem
vinham diretamente para o Rio represen- em: GOMES; SOARES, 2001; SOARES, 2001.
tavam apenas 3,2% do total da escravaria FARIAS, 2015; HOLLOWAY, 1998, p. 268. Sobre
Como acontecia no século XVIII, eles fossem “nagôs”, cada um tinha “sua terra”,
quase sempre apareciam, em diferentes re- conforme assinalou o escravo Antônio, acu-
gistros, identificados simplesmente como sado de participar da rebelião dos malês, em
originários da Costa da Mina ou de nação 1835 (REIS, 2003, p. 338).
mina. E mina era um designativo genérico No Rio de Janeiro, como já apontado aci-
que, pouco a pouco, foi ampliando seu cam- ma, esses nagôs da Bahia acabaram optando
po semântico até praticamente se transfor- pela mesma estratégia das gerações anterio-
mar, na virada do século XIX, em sinônimo res, garantindo um grupo coeso e maior, aí
de africano. Contudo, perscrutando fontes denominado mina. Com isso, preveniam-se
diversas e também alguns estudos mais re- contra a possibilidade de dispersão acarre-
centes sobre escravidão urbana e tráfico tada pela afirmação de pequenas identida-
atlântico, é possível constatar que os africa- des diferenciadas. Na capital carioca, uma
nos ocidentais que viviam no Rio de Janei- nação nagô seria francamente minoritária e
ro ao longo do oitocentos vinham de áreas teria mais dificuldade de negociar sua inser-
onde predominava a língua iorubá. Além ção na vida urbana, especialmente no caso
disso, boa parte havia desembarcado pri- dos africanos forros que precisavam se in-
meiro na Bahia e, sobretudo a partir da dé- serir nas redes de trabalho já constituídas.
cada de 1830, e depois passado à capital do Na condição de mina, estabeleceram áreas
Império.13 de ocupação para moradia, lazer, trabalho e
Quando esses homens e mulheres proce- práticas religiosas, minimizando, pela orga-
dentes de diferentes vilas ou reinos da África nização, o ônus de serem um grupo minori-
ocidental chegavam à cidade do Rio, depois tário emuma cidade de maioria de escravos
de passarem pela Bahia, logo se transmuda- vindos da África centro ocidental.
vam em minas. O caso dos nagôs é exemplar. Ainda assim, localizamos, especial-
Em terras baianas, os cativos que falavam o mente para as primeiras décadas do século
iorubá ficaram conhecidos como nagôs, an- XIX, cativos que se identificavam – e eram
tes mesmo de se reconhecerem como iorubás identificados por seus senhores – como na-
no continente africano. Se o termo nagô fora gôs, haussás, minas-nagôs e outras deno-
imposto no circuito do tráfico14, a identida- minações étnicas adotadas na Bahia. Em
de nagô foi elaborada na Bahia (REIS, 2003, 1835, por exemplo, 60 africanos ocidentais
p. 336). Mas, sob o grande “guarda-chuva” foram anunciados na coluna de “Escravos
nagô que ali se formou, estavam também fugidos” do Diário do Rio de Janeiro. Nes-
muitos grupos menores. Ainda que todos te conjunto, 40 foram designados como de
“Nação Mina”; 9, de “Nação Calabar”; e 3,
a revolta dos malês que ocorreu em Salvador em
de “Nação Nagô”. Havia ainda outros 9 com
1835, envolvendo escravos e libertos africanos
muçulmanos, ver: REIS, 2003. identidades conjugadas (algumas de proce-
13 Embora o chamado êxodo mina ainda careça de dência desconhecida), como “Mina Nagô”
exames mais sistemáticos, análises sobre essa
migração de africanos ocidentais de Salvador
(3); “Mina Ussá” (1); “Mina Ajá” (1); “Mina
para o Rio de Janeiro, especialmente após o Ginjá” (1); “Mina Quilombona”(1) e “Mina
levante dos malês de 1835, aparecem em: GO- Docó” (1). Este último, segundo informações
MES; SOARES, 2001; SOARES, 2001.
14 O termo nagô era usado, na África ocidental, de seu dono, era “um preto de nação Mina,
pelos falantes de fon e outras línguas gbe para que se chamava Docó, nome de sua nação”.15
designar o que hoje conhecemos como iorubas
(REIS, 2003, p. 336). 15 Diário do Rio de Janeiro, 13 de julho de 1835.
Para o ano de 1845, dez anos após o início do Mariza Soares na constituição das identida-
chamado êxodo mina da Bahia, encontra- des dos mina-maki nas irmandades do Rio
mos, na mesma seção, 41 homens e mulhe- de Janeiro (FLORENTINO, 2002; MAMI-
res procedentes da costa ocidental africana GONIAN, 2000; SOARES, 2001; SOARES,
divididos nas seguintes “nações”: Mina (25); 2000). Seja como for, a partir dos anos 1860
Nagô (4); Calabar (4); Mina Nagô (4); Mina essas “nações compostas” começariam a de-
Ussá (2); e Mina Geyge (1). saparecer, observando-se em apenas 8,8 %
Embora esses registros revelem grupos (25) dos casos. Ao final, todos acabariam ge-
bem específicos e identidades diferenciadas, nericamente identificados como mina.
a análise em conjunto deixa claro o progres- Após a abolição, os africanos que ainda
sivo processo de agregação identitária em viviam no Rio de Janeiro concentravam-se
torno dos minas. A quitandeira Custódia, na área portuária da cidade, nas freguesias
anunciada na coluna de “Escravos fugidos” de Santana e Santa Rita, redutos dos mi-
de 25 de novembro de 1835, foi descrita nas desde meados do século XIX. De acor-
como uma “preta mina, de Nação Nagô”. do com o recenseamento realizado naquele
Já Raimunda, cativa que havia escapado ano, a região abrigava 1.463 indivíduos que
haviam nascido na África, contingente não
da casa do Sr. João Caetano dos Santos, em
encontrado em nenhum outro bairro. Uma
Niterói, era simplesmente “de nação Mina,
nova contagem da população só seria feita
da Bahia”. Mesmo caso de Luiza, uma outra
16 anos depois17. Antes disso, porém, João
quitandeira de frutas, fressura de boi e gali-
do Rio – em suas incursões pelas casas das
nhas, identificada na edição de 5 de agosto
ruas de São Diogo, Barão de S. Félix, Hos-
de 1845 como “uma preta de Nação Mina,
pício, Núncio e da Aclamação18 – estimaria
vinda há pouco da Bahia”.16
Examinando 2.565 alforrias de africanos 17 Em 1890, Santa Rita tinha 43.601 habitantes,
dos quais 16.876 eram estrangeiros (destes,
ocidentais entre os anos de 1800 a 1871, Flá- 12.315 eram portugueses e 1.720 espanhóis). Já
vio Gomes também constatou esse proces- em Santana, encontramos – nesse período – 67.
385 pessoas, entre as quais o maior contigente
so de aglutinação organizacional (FARIAS,
estrangeiro da cidade – 27.074, sendo 16.173
2005). Neste conjunto, verificou que aque- portugueses e 4.844 italianos. Com tantos imi-
les classificados como minas correspondiam grantes vivendo na região, não é de estranhar
que os pretos e pardos fossem minoria. 60,6%
a 75,5% (1.944). Os restantes apareciam dos moradores de Santa Rita e 66,4%, de San-
como nagô, calabar, haussá e jejê, e ainda tana eram brancos. Ver: Recenseamento Geral
com denominações conjugadas, como mina- da República dos Estados Unidos do Brasil em
31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro, Typ.
nagô, mina-calabar, mina haussá e mina-je- Leuzinger, 1895; CRUZ, 2000, p. 243-290. De-
je. Já em 1819 surgia o primeiro registro de pois desse censo em 1890, uma nova contagem
só seria feita no recenseamento de 1906. Mas,
uma mina-hausá. Isso indica – segundo o
refletindo a ideologia oficial e racista do perío-
autor – que a agregação identitária em torno do, que por força pretendia “embranquecer” os
dos minas teria começado bem antes, e não habitantes do país, a população não foi classifi-
cada de acordo com a cor. Cf. Recenseamento do
só a partir da década de 30, como sugerem Rio de Janeiro (Distrito Federal), realizado em
Florentino, Líbano Soares e Magigoniam. As 1906 (CHALHOUB, 2001, p. 43-45).
chaves para essa articulação estavam colo- 18 Todas essas ruas – e também outras visita-
das pelo cronista em 1904, e descritas em suas
cadas já no século XVIII, como discutido por crônicas reunidas no inquérito As religiões no
Rio – ficavam nas freguesias centrais, como
16 Diário do Rio de Janeiro, 25 de novembro de Santana e Santa Rita. Para uma análise dos afri-
1835; 30 de agosto de 1845; 5 de agosto de 1845. canos descritos nos textos do cronista carioca,
que, em 1904, “da grande quantidade de es- de seus grupos, vilas ou cidades de origem.
cravos africanos vindos para o Rio no tem- Essa informação é, de fato, surpreendente,
po do Brasil colônia e do Brasil monarquia”, já que, desde pelo menos as últimas décadas
restavam apenas “uns mil negros”. Segundo do oitocentos, o termo mina passara a de-
o cronista, eram todos de pequenas “nações signar, genericamente, os cativos e libertos
do interior da África”, como os “igesá, oié, originários da Costa da Mina. No censo de
ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se conside- 1890, por exemplo, todos eram simplesmen-
ram filhos dos ibouam, ixáu dos gêge e dos te “africanos”. Mas, curiosamente, ao longo
cambindas”.19 de todos os textos publicados pelo cronista
Decerto estava se referindo a diferentes no período, em nenhum outro momento os
grupos étnicos da África Ocidental, que ha- homens e as mulheres africanos são iden-
bitavam regiões no que hoje é o sudoeste da tificados por aqueles subgrupos. Não há
Nigéria e o sudeste da República do Benim. tampouco quaisquer menções a eles como
Até a década de 1830, os grupos que viviam indivíduos iorubás ou nagôs. Como então se
nessas áreas – como os abinus, auoris, egba- identificavam aqueles homens e mulheres
dos egbás, equitis, ibarapas, ibolas, ifés, ifo- procedentes da África?
ninis, igbominas, ijexás, ilajes, oiós, ondos, Segundo o jornalista da Gazeta, todos
quetos – não se consideravam como iorubás. eles falavam entre si um idioma comum: o
Até então esse era o nome pelo qual os haus- eubá. Como destacara seu guia Antônio, que
sás referiam-se aos oiós, seus vizinhos do havia estudado em Lagos, o eubá era para os
sul.20 Segundo Robin Law, talvez tenha sido africanos o que o inglês era para os “povos
em 1832, com a publicação do livro de J. Ra- civilizados”. Quem conhecia essa língua afri-
ban, A vocabulary of the Eyo, or Aku, a dia- cana podia “atravessar a África e viver en-
lect of Western Africa, que o termo iorubá foi tre os pretos do Rio”.21 Certamente o termo
usado pela primeira vez para designar gru- eubá era uma corruptela do termo iorubá,
pos que falavam variantes do mesmo idioma, ou uma interpretação do que ouvira João do
adoravam os mesmos deuses e tinham uma Rio. De acordo com Nina Rodrigues, na Bah-
cultura bem semelhante (LAW, 1973, p. 208; ia, muitos dos nomes de “nações africanas”
SILVA, 2002, p. 532-533). Também no iní- eram deformados. Era o caso, por exemplo,
cio dos anos 30, na colônia de Serra Leoa, os da palavra Egbá. Muitos negros não pro-
oios, egbás, ibarapas, ijebus e ijexás que ali nunciavam o g. Assim, era comum encon-
se instalaram passaram a ser identificados trar documentos que falavam em negros de
pelos missionários ingleses como iorubas Ebá ou simplesmente de Bá (RODRIGUES,
(SILVA, 2002; REIS, 2003, p. 336). 1988, p. 102-103). É bem provável que algo
Quando retornamos às descrições de semelhante tenha ocorrido com os negros do
João do Rio, inferimos que, no Rio de Janei- Rio. No Grande dicionário da língua por-
ro do início do século XX, ainda havia africa- tuguesa de Antônio de Morais Silva, o eubá
nos ocidentais que se identificavam a partir é identificado como “o nome duma língua
muito falada pelos negros do Rio, que deriva
ver: FARIAS, 2010.
19 João do Rio, “No mundo do feitiço/ Os feiticei- do egbá, nome do povo africano”, “tribo de
ros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de 1904, p. 2.
20 Segundo Reis (2003) “os escravos de Oió, boa 21 João do Rio, “No mundo dos feitiços: Os feiti-
parte deles empregados na famosa cavalaria do ceiros”. Gazeta de Notícias, em 9 de março de
reino, eram principalmente de origem nortista. 1904, p.2.
indígenas da África ocidental inglesa” (SIL- procedência que os minas que encontramos
VA, 1945, p. 212, 956). Embora, numa reedi- no Rio de Janeiro em tempos pretéritos?
ção da obra no início do século XX, recorra Em primeiro lugar, é preciso ressaltar
ao relato de João do Rio para exemplificar que nem todos os africanos ocidentais que
a utilização do termo, Silva acrescenta que chegaram à cidade do Rio, especialmente
a língua era falada por um grupo étnico es- após o fim do tráfico atlântico, eram nagôs
pecífico, os egbás de Abeokutá, também ge- saídos da Bahia. Ao longo do oitocentos,
nericamente identificados como iorubás, ou chegando até as primeiras décadas do sécu-
como nagôs em Salvador. lo XX, levas de migrantes, incluindo africa-
Em suas crônicas, o jornalista carioca nos e seus descendentes, sairiam da capital
poucas vezes fala diretamente em africanos baiana para aportar no Rio de Janeiro. Mas
mina. Contudo, analisando seus artigos em eles não eram as únicas lideranças religio-
conjunto, é possível concluir que se trata- sas, culturais e políticas da comunidade ne-
va efetivamente de homens e mulheres da gra conhecida como Pequena África. Pelo
Costa Mina. Em todas as chamadas publi- menos é o que se depreende das descrições
cadas na Gazeta no período em que saíram de João do Rio, de alguns registros judiciá-
as reportagens sobre as religiões africanas, rios do período e mesmo a partir de alguns
os textos foram anunciados como regis- depoimentos colhidos por Roberto Moura. 23
tros de incursões e descrições das religiões Em nenhum momento, João do Rio afir-
dos mina. Não sabemos se as notas foram ma que os africanos e crioulos encontrados
redigidas pelo próprio João do Rio, já que naquele início do século XX eram originários
não há qualquer indicação nesse sentido.
da Bahia. Por que, então, tantos estudiosos
De todo modo, em 10 de março, depois da
concluem que os líderes muçulmanos e cul-
publicação da primeira reportagem sobre o
tores dos orixás, muitos dos quais descritos
mundo dos feitiços, o periódico informava
pelo repórter carioca, teriam sido levados de
que continuaria a falar dos “negros minas”,
Salvador para o Rio de Janeiro?24 De fato,
descrevendo as “yauôs”, ou filhas-de-santo.
Cinco dias depois, corrigia alguns equívo- crevendo Os novos feitiços de Sanim, revelados
pelo negro na casinhola de Ojô”. Gazeta de No-
cos mencionados no dia anterior, na crônica tícias, 28 de março de 1904, p. 1. Ver ainda a Ga-
“No mundo dos feitiços/Os feiticeiros”. Em zeta dos dias 10, 13, 19 e 20 de março de 1904.
uma pequena nota destacavam que, como 23 Não obstante a importância e o pioneirismo do
trabalho de Moura (1995), nos parece que, em
os “minas têm apelidos muitos parecidos”, sua análise, os baianos, e somente eles, são os
era compreensível que fizessem uma certa únicos responsáveis pelo florescimento de uma
confusão com o nome de alguns “feiticei- “cultura negra no Rio de Janeiro”. Isso por certo
ocorreu em função dos depoimentos orais co-
ros”. No mesmo texto, o redator indicava lhidos (muitos dos quais de filhos e outros des-
ainda que, na véspera, havia chegado à ci- cendentes de baianos das primeiras décadas do
dade o africano Sanim, um “mina horrendo, século XX).
24 Alberto da Costa e Silva (2003, p. 182) assinala
feiticeiro convicto, que traz mulheres e no- que o Conde de Gobineau descreveu em seu rela-
vos feitiços”22. Mas esse grupo teria a mesma tório, em 1869, que todos os africanos minas do
Rio eram muçulmanos, e muitos deles haviam
22 Cf. Gazeta de Notícias, 15 de março de 1904, p. migrado de Salvador para a Corte. “Quarenta
1. Em 28 de março, sai uma nova nota, agora anos mais tarde”, completa Silva, “João do Rio
informando que, como eram muitos os pedidos confirmaria a informação de Gobineau: muitos
para que se descrevessem os feitiços dos “negros dos moslins do Rio provinham da Bahia”. Nas
minas”, João do Rio daria, no dia seguinte, um crônicas publicadas por João do Rio em 1904,
novo artigo sobre o mundo dos feitiços, “des- não há qualquer referência direta à origem baia-
ainda que indiretamente, é possível perceber Papagaio, que tem dois filhos doutores e
a presença baiana nas entrelinhas de suas mora num sobrado com escadas adaptadas
reportagens. Quando flanava por uma “rua e cheias de varas de metal, reluzentes como
sossegada” do centro da cidade, numa tarde ouro”.27 Afora essas evidências esparsas,
de junho de 1904, encontrou o “fiel e dedi- somente o fato dos africanos descritos por
cado Antônio”, que andava desaparecido há João do Rio serem iorubás poderia nos levar
dois meses. João do Rio aceitou o convite de a supor que todos teriam saído de Salvador,
seu guia, que o chamara para participar dos já que ali conformavam um grupo majoritá-
festejos juninos que se realizariam na casa rio no conjunto dos africanos da cidade.
do Galiza Vavá, experiência mais tarde des- Contudo, entre os “feiticeiros”, alufás,
crita na crônica S. João entre os africanos, pais e mães-de-santo descritos pelo repórter
publicada pela Gazeta no dia 25 de junho de da Gazeta, encontramos alguns que parti-
1904. Ali soubera que os “negros africanos ram de Lagos diretamente para o Rio de Ja-
trouxeram das nações a que pertencem todo neiro. Em março de 1904 o jornal publicou
o aparato místico da sua ingênua [sic] força uma pequena biografia e um retrato do afri-
religiosa”. Além disso, constatou – não sem cano Emanuel Ojô, atendendo aos apelos dos
um certo espanto – que em seus candomb- ávidos e curiosos leitores que vinham acom-
lés celebravam tanto S. João, como S. Pedro panhando no mesmo periódico os artigos de
e o 2 de julho25. Ora, 2 de julho era a data João do Rio sobre os feiticeiros da cidade28.
em que se comemora, na Bahia, a indepen- Reconhecido como o “chefe de uma espécie
dência do Brasil (ALBUQUERQUE, 2002, de maçonaria geral dos negros”, o “consultor
p. 157-203). Isso evidencia que os baianos técnico dos pretos” da cidade do Rio, o afri-
estavam, de alguma forma, nessas celebra- cano, segundo o relato do jornal, era filho de
ções, influenciando não só suas práticas e ri- relojoeiro na África, “mais ou menos rico”,
tuais, como também o calendário festivo das mas gastava muito, além de ter muitas mu-
casas de culto.26
Sem contar que alguns africanos recor- 27 João do Rio, “Negros ricos”. Gazeta de Notícias,
davam, nas conversas com o cronista, de 13 de maio de 1905, p. 3. Segundo Nina Rodri-
gues, no final do século XIX, o lemano – líder
amigos, festas e outras celebrações que co- dos negros muçulmanos em Salvador – era o
nheciam da Bahia. O alufá Júlio Ganam não nagô Luís, que morava à rua da Alegria, 3, no
Barris. Sua casa funcionava também como “igre-
esquecia dos “negros ricos” da Bahia. Lá os
ja maometana”, que era constituída por uma sala
africanos ganhavam muito: “com mais de interna destinada aos ofícios e atos divinos. Ali
200 contos, o lemano Luiz dos Barris, o Xa- reuniam-se os malês da cidade. Rodrigues nada
fala de sua “fortuna”, apenas registra que ele ti-
by-Ganam que vende pão no mercado, o tio nha muitos filhos e era casado com um “negra
Amando, a tia Adissa Lucrecia, a Joaquina crioula de mais de 30 anos, que esteve por algum
tempo no Rio de Janeiro, onde se converteu ao
na dos líderes religiosos muçulmanos. islamismo” (p. 62-63).
25 João do Rio “S. João entre os africanos”. Gazeta 28 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os Feiticei-
de Notícias, 25 de junho de 1904, p.1. ros”, Gazeta de Notícias, 20 de março de 1904,
26 Em outra crônica, publicada em dezembro do p. 05. Os textos não são assinados, mas, se não
mesmo ano, João do Rio destacaria ainda que, foram escritos por João do Rio, certamente ti-
no período das festas natalinas, as comemora- veram alguma participação do jornalista, já que
ções começavam no dia 15 de dezembro e só ter- os três biografados são personagens abordados,
minavam em 13 de janeiro, quando se celebrava com freqüência, em seus artigos. Além disso, os
Nosso Senhor do Bonfim, uma festa tipicamente ácidos e preconceituosos comentários presentes
baiana. Cf. João do Rio “O natal dos africanos”. na “galeria de feiticeiros” são bem similares aos
Kosmos, dezembro de 1904. que encontramos nos textos de João do Rio.
lheres. Era um “preto elegante”, que anda- ser conhecido em Lagos, que desde 1851 era
va sempre a cavalo. Como podemos ver em controlada pela Grã-Bretanha – não acredi-
seu retrato, publicado junto ao texto, as es- tava muito nos feitiços, inclusive os temia
carificações marcadas em seu rosto, típicas muito, mas no Brasil aprendeu o alicuri dos
dos iorubás, evidenciavam sua filiação étni- alufás. Em sua casa, “quase no começo da
ca. Esses sinais, também conhecidos como rua dos Andradas”, reuniam-se os feiticeiros
alajas, eram feitos na infância com lâminas da cidade, resolviam-se as contendas, escre-
muito afiadas, manipuladas por especia- viam-se as cartas e ainda se “decidia quem
listas geralmente devotos de Ogum (REIS, devia morrer”. Sempre na porta do hotel e
2003, p. 311 – 313). Em sua terral natal, restaurante Globo, bem próximo à sua re-
“quando o cobre diminuiu”, Ojô teria come- sidência, ali mesmo ele tomava as decisões
çado a trabalhar “na estiva”. Como nenhum nos momentos de perigo; recebia os africa-
parente seu, “rei de uma tribo do interior, nos recém-chegados, como o negro Sanim,
rei dos Ifé”, conseguisse minorar as agruras um feiticeiro mina que chegara de Lagos em
daquele trabalho, ele decidiu partir para o março de 1904, e ficara hospedado em sua
Brasil. O periódico não fornece maiores ex- casa; e ainda facilitava o estabelecimento de
plicações sobre as circunstâncias em que ele seus patrícios em alguma atividade na ci-
realizara essa longa travessia, mas algumas dade, como ocorrera com Abubaca Caolho,
indicações apresentadas ao longo do texto que também nascera em Lagos, e com seu
nos permitem lançar algumas conjeturas. A auxílio, firmara-se como “feiticeiro”. Diante
se crer nas informações fornecidas pelo jor- de tantos atributos, o redator da Gazeta de
nal, ele residira durante algum período em Notícias não vacilou e afirmou que todos os
Lagos, mas seus parentes eram da cidade de africanos, “feiticeiros” e alufás do Rio, res-
Ifé, a cidade sagrada dos iorubás. Assim, in- peitavam Emmanuel Ojô e diziam-se seus
ferimos que Ojô era um iorubá, que conhe- parentes.30
cia os “candomblés de Lagos” (assim cha- Ainda que não tenhamos como aferir a
mados no texto) e provinha de uma família exata procedência dos “mil negros” e outros
prestigiosa da África Ocidental.29 Mas como mais africanos ocidentais que viviam no Rio,
e porque veio para o Brasil continuam sendo podemos concluir, partindo dos relatos de
um mistério. João do Rio e de outros registros das primei-
De qualquer maneira, no Rio de Janei- ras décadas do século XX – como periódicos
ro, ainda segundo indicações do periódico e processos criminais – que esses africanos
e também de acordo com algumas obser- eram originários de vários grupos e reinos
vações registradas por João do Rio, rapida- iorubás, como Egbá e Ifé, e, especialmente,
mente conquistara prestígio entre a comuni- da cidade de Lagos. Certamente havia ainda
dade de africanos e seus descendentes. Ojô, entre eles nagôs, e quem sabe tapas, haussás
“que entre os ingleses é simplesmente Sch- 30 Cf. “No mundo dos feitiços/Os feiticeiros”, Ga-
midt” – um outro nome pelo qual ele devia zeta de Notícias, Domingo, 20 de março de
1904, p. 05. Gazeta de Notícias, Domingo, 13 de
29 Na festa de São João a que compareceu no can- março de 1904, p. 02; Gazeta de Notícias, Ter-
domblé do Galiza Vavá, na rua Barão de São Fé- ça-feira, 15 de março de 1904, p. 01. De João do
lix, Ojô, “todo de branco”, falava dos “candom- Rio, ver especialmente as crônicas: “No mundo
blés de Lagos, das peças de ouro e referia-se com do feitiço/Os feiticeiros”, Gazeta de Notícias,
ódio aos pretos que fazem fortuna”. João do Rio, 09 de março de 1904, p. 02; e “Os novos feitiços
“S. João entre os africanos”. Gazeta de Notícias, de Sanin”, Gazeta de Notícias, Domingo, 29 de
25 de junho de 1904, p.1. março de 1904, p. 04.
ou calabar, saídos de Salvador. Mas, aqui, to orixás como alufás achavam-se “relacio-
acabariam todos sendo genericamente co- nados pela língua, com costumes exteriores
nhecidos como minas. mais ou menos idênticos e vivendo da feiti-
E se a língua iorubá os unia, a crença çaria”.33 São muitas as referências feitas pelo
escolhida por cada um deles, por vezes, po- jornalista à presença desses dois grupos em
dia separá-los. Segundo João do Rio, os ne- diferentes cerimônias e festejos realizados
gros africanos dividiam-se, no Rio, em duas pelos africanos e seus descendentes. Nas
grandes crenças: “os orixás e os alufás”. Por comemorações natalinas dos africanos, por
orixás, designava aqueles que, em grande exemplo, que começavam em 15 de dezem-
número, cultuavam os orixás africanos. Já bro e só terminavam em 13 de janeiro, com
os alufás tinham um rito diverso. Consul- “a apoteose do Senhor do Bonfim”, os africa-
tando o glossário de termos muçulmanos e nos, “divididos em orixás e mulsumins, jun-
africanos, anexado ao estudo de Reis, vemos tavam-se nesses candomblés formidáveis”.34
que o alufá era um mestre malê, um clérigo, E não era apenas nesses momentos festivos
segundo a versão em iorubá para o termo que se encontravam.
sudanês-ocidental alfa. Significava ainda o Tantos os filhos de Alá quanto os filhos
mesmo que mu’allim (em árabe), marabout dos orixás viviam da “feitiçaria”. Desde pelo
ou alim (REIS, 2003, p. 605). O jornalista menos a década de 1830, os minas eram
usa a expressão indiscriminadamente, para reconhecidos nas comunidades negras ur-
designar tanto os líderes e mestres muçul- banas como feiticeiros, célebres e mágicos
manos, como outros fiéis e seguidores de adivinhos (GOMES; SOARES 2001). No al-
Alá. Em dois momentos, fala em mussul- vorecer do século XX, João do Rio diria que,
mi, que, segundo ele, viria do “árabe mes- enquanto os orixás faziam sacrifícios, afo-
lemonn” e designava “o homem consagrado gavam os santos em sangue, davam-lhes co-
aa Deus”.31 Ainda de acordo com Reis, mu- mida, enfeites e azeite-de-dendê, os alufás,
sulmi era o termo haussá que identificava os “apesar da proibição da crença, usam do ali-
muçulmanos. genum, espíritos diabólicos chamados para
Além disso, o cronista da Gazeta afir- o bem e o mal, num livro de sortes, marca-
ma que os alufás não gostavam da “gente do com tinta vermelha e alguns, os maiores,
de santo”, a que chamavam de “auadudó- como Alikali, fazem até idams ou as grandes
mágicas, em que a uma palavra cabalística
chum”. Os orixás, por sua vez, desprezavam
a chuva deixa de cair e obis aparecem em
“os bichos [sic] que não comem porco, tra-
pratos vazios”.35 Nina Rodrigues também
tando-os de malés”. Não sabemos ao certo
se João do Rio queria, na verdade, dizer ma- 33 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os fei-
ticeiros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de
lês, já que, analisando em conjunto os tex-
1904, p. 2.
tos do cronista, esta é a primeira e única vez 34 João do Rio, “O natal dos africanos”. Kosmos,
em que faz referência ao termo. E malê era dezembro/1904.
35 João do Rio, “No mundo dos feitiços/Os feiticei-
justamente a forma como eram chamados ros”. Gazeta de Notícias, 9 de março de 1904,
os africanos iorubás islamizados.32 De qual- p. 2. O padre Etienne Brazil, um “anti-islamita
quer forma, mesmo com esses conflitos, tan- militante”, nas palavras de João Reis, em artigo
publicado em 1909, apesar de apontar muitos
31 João do Rio, “Negros ricos”. Gazeta de Notícias, “erros” nos registros de João do Rio sobre os
13 de maio de 1905, p. 3. muçulmanos, concorda com ele nesse ponto. Se-
32 (REIS, 2003, p. 606). Malê vem do iorubá ìmále gundo Brazil, os alufás da Capital Federal, não
ou ìmòle. obstante a terminante proibição do Alcorão, se
observou que, no final do século XIX, os quais correspondiam um território e uma lín-
negros baianos consideravam os malês “co- gua) e também dos calabares (nome de um
nhecedores de altos processos mágicos e fei- porto por onde saíram escravos de diferen-
ticeiros” (RODRIGUES, 1935, p. 29). tes etnias e línguas) e que constituíram um
Observamos assim que, apesar de algu- grupo minoritário, mas importante no Rio de
mas divergências quanto à crença escolhida, Janeiro (BEZERRA, 2010).
parte dos “mil negros” descritos por João do É preciso então ter em mente que a com-
Rio, especialmente aqueles que ficaram co- posição da população africana residente na
nhecidos como minas, reconheciam-se como cidade do Rio de Janeiro ao longo dos sécu-
“parentes étnicos”. Além de falarem entre los combinou variáveis diversas, tais como
si uma mesma língua, o iorubá, reuniam-se diferentes territórios, alvos do comércio de
em torno de práticas culturais e religiosas co- escravos na África, diferentes línguas fala-
muns, recriando muito do que, desde meados das nos territórios atingidos, grupos étnicos
do oitocentos, outros minas vivenciavam na que sofreram mudanças ao longo do tempo,
cidade. Além disso, não experimentavam um incluindo misturas, migrações, etc. Essas
absoluto exclusivismo étnico. Suas casas, fes- estratégias de recomposição social são re-
tas e cerimônias religiosas estavam “cheias conhecidas na África e a noção de etnicida-
de baianos e mulatos”. E, como vimos, conta- de já supõe ela mesma esses rearranjos. A
vam com forte companheirismo e solidarie- prática de intercasamentos (seja por língua,
dade. Quando algum conterrâneo chegava à localidade, grupo étnico ou outros) é reco-
cidade, logo encontrava abrigo entre os seus. nhecidamente um mecanismo privilegiado
Se estava difícil conseguir uma vaga de car- de conexão entre grupos e esta estratégia
regador no porto, logo um patrício tratava de foi largamente utilizada na África e também
lhe arranjar “alguma colocação”, de preferên- no Rio de Janeiro.36 Portanto, a questão que
cia na “feitiçaria”. efetivamente diferencia os rearranjos étni-
Assim, partimos do pressuposto que a cos na África e no Brasil dizem respeito, em
identidade mina resulta da construção de primeiro lugar, às dimensões das popula-
uma identidade de nação (a nação mina) ba- ções envolvidas, e, em segundo, à impossibi-
seada numa procedência comum, a Costa da lidade de constituir, no Brasil, um território
Mina, que então abarcava o litoral da costa que desse estabilidade ao grupo e, por fim,
ocidental africana que corresponde hoje à à pressão do Estado no sentido de evitar a
costa de Gana, Togo Benim e Nigéria, se pro- formação de grupos de descendência com
longando para o interior algumas vezes até os identidade própria. Os filhos dos africanos
limites do Sahel. No século XVIII eles proce- nascidos no Brasil eram chamados “criou-
diam majoritariamente de áreas de povos de los”. Tal designação impedia a reprodução
línguas gbe, enquanto no século XIX, a escra- da identidade “mina” nas gerações nascidas
vização se desloca, e os escravos que chegam no Brasil, funcionando como um impedi-
ao Rio de Janeiro correspondem a territórios mento à constituição de um grupo que tives-
mais a leste, onde predominava o uso da lín- se a estabilidade necessária para ao longo do
gua iorubá. Ao lado deles, existiam escravos tempo se reinventar como um grupo étnico.
vindos de outras áreas, como os haussas (aos 36 Para uma análise das estratégias matrimoniais
de africanos no Rio de Janeiro no século XVIII,
entregavam à magia e ao fetichismo. Cf. BRA- ver: Soares, 2000. Para o oitocentos, ver: FA-
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ção Biblioteca Nacional, 2002.
Recebido em: 13/06/2017
SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Aprovado em: 02/09/2017
Resumo
Este artigo trata de relações sociais entre escravizados e trabalhadores li-
vres na cafeicultura paulista, na conjuntura do tráfico interprovincial de
escravos. Aborda formas de aproximação entre esses segmentos, identi-
ficando pontos convergentes em suas vidas, essenciais para a criação de
laços afetivos e familiares, quando a migração compulsória de escraviza-
dos das províncias do Norte para o Sul desorganizou modos de vida e for-
jou novas formas de resistência e acomodação. Apoia-se em informações
colhidas em autos criminais, matérias e anúncios de jornais e escrituras
públicas de compra e venda de escravos. Essas fontes jogam luz sobre a
importância do tráfico interno na crise da escravidão brasileira, eviden-
ciando o desgaste das políticas de domínio senhorial nos momentos finais
dessa instituição. Foram realizadas pesquisas a acervos de arquivos dos
estados da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Palavras-chave: Tráfico interprovincial; escravos; trabalhadores livres.
Abstract
CROSSINGS ON THE WAY - INTERPROVINCIAL SLAVE TRAFFIC.
BAHIA AND SÃO PAULO (1850-1880)
This article deals with social relations between slaves and free workers in
São Paulo coffee plantations in the context of interprovincial slave traffic.
It discusses ways of rapprochement between these segments by identifying
converging points in their lives, that are essential for creating affective and
family ties, when the compulsory migration of slaves from the northern
provinces to the south provinces disorganized lifestyles and forged new
forms of resistance and accommodation. It is based on information taken
from criminal procedures, reports and newspapers advertisements, and
public deeds of purchase and sale of slaves. These sources clarify the im-
* Professora Adjunta IV do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia. Este artigo cor-
responde a pesquisas de pós-doutoramento, com apoio (bolsa de estudos) da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). fatimapires90@hotmail.com
1872-1890 4,67
1890-1900 2,97
1900-1920 3,79
Fonte: Graham e Hollanda Filho (1984, p. 17). A tabela original compreende o
período censitário de 1872 a 1970.
pesquisa, Moura destaca o grande número do Norte, sobretudo dos sertões, não esta-
de cearenses, atraídos para o Oeste Paulis- vam acostumados aos ritmos de trabalho das
ta, a partir de 1878: “Um fazendeiro de Rio grandes lavouras e, tampouco, a temperatu-
Claro […] fez notar que sua província natal, ras tão baixas. Cativos dos sertões da Bahia,
o Ceará... tem enviado homens para todos a exemplo, viviam em propriedades menores
os pontos do Império e em sua casa acham- e com culturas bem menos exigentes. Assim,
se 55 cearenses, que trabalham” (MOURA, a adaptação para os que chegavam de fora
1998, p. 168). Sobre as contratações para o se tornara muito mais difícil. Nem mesmo
trabalho, a autora informa sobre os trâmites para escravos nascidos nas províncias do Sul
que envolviam esses deslocamentos: as condições de trabalho se afiguravam mais
amenas. Estes últimos, porém, conheciam a
Ainda no Ceará, toda uma rede de laços vi-
cinais e parentesco viabilizava o intento da região e pessoas com quem, eventualmente,
migração. Homens e mulheres, que se deci- podiam contar:
diam pela viagem, intermediavam a vinda de
[...] respondeo que fugio do seo senhor
outras famílias ou de indivíduos sozinhos, porque não acommodara-se com elle e que
que desejavam também vir para São Paulo, estava assentado nos mattos próximo
através da descrição das possibilidades de de esta cidade. Perguntado porque matou
trabalhar e viver na cidade. Através de car- hoje o preto Domingos, respondeo que ten-
ta endereçada a um agente, encarregado de do tratado com elle para dar-lhe comi-
atender encomendas de trabalhadores, feitas da, hoje fui comer e não achando pronpta
por fazendeiros, pediam o arranjo de serviço encommodou-se e como o preto Domingos
e agasalho para seus parentes, vizinhos e co- lhe dissesse que vinha dar parte delle e
nhecidos (MOURA, 1998, p. 170). lhe dissesse mais umas cousas atôas, elle, res-
pondente como se fosse cousa do diabo logo
Naquele contexto, o trabalho escravo
o estourou. Perguntado para onde foi depois
conviveu com formas contratuais de traba- do tiro, respondeo que metteo-se no mato
lho (camaradas e agregados), em serviços e deitou-se a dormir e que sentio o sacudi-
distintos e com menor mobilidade espacial. rem, acordou-se e não sendo ninguém pos a
Havia ainda o agravante da condição jurí- caminhar pela estrada. Perguntado porque é
que atirou em Manoel José dos Santos, res-
dica para os cativos, uma instância efetiva-
pondeo que ia com destino para o Brás a se
mente restritiva. Em geral, o serviço mais esconder nos mattos de que é conhe-
duro lhes recaía nos ombros: cido, quando encontrou-se com o offendido
Manoel José dos Santos, que o chamou para
Cabe notar que o trabalho nas plantações
que parasse, e já estando desconfiado de
de café não era, por natureza, tão exaustivo
que o queria prender, disse que não se
quanto o da maioria das outras grandes la-
aproximasse, mas como o offendido avans-
vouras. A tarefa mais cansativa era a inces-
sasse para o pegar, elle respondente deo o
sante limpeza do solo, feita com enxadas.
tiro para matar a fim de se escapar.8
Esse era um trabalho para eitos de escra-
vos, supervisionados pelos feitores, que às 8 AESP. Ordem 3973. Processos 1343 a 1360.
vezes também o eram, e mantinham a dis- Maço 087. Autuação 1871. Micro-filme. Neste
ciplina principalmente através de insultos e artigo, optou-se pela manutenção do modo orto-
ameaças, com o chicote como último recurso gráfico com que as palavras foram escritas. Essa
(DEAN, 1977, p. 75). fidelidade se justifica pelo entendimento de que
o estilo narrativo é mais um componente impor-
tante para uma investigação mais sistemática da
No entanto, devemos considerar que
fonte, devendo ser passada em revista pelo his-
muitos escravos, procedentes das províncias toriador.
arriscada para escravizados, foram recor- Testemunha: [...] que tendo o assassino
rentes em diversas situações, especialmente evadido-se na ocasião em que praticou o
diante de ameaças de suas vendas e/ou de delicto, agora sabe-se com certeza que elle
se dirigiu para a Província de Cuyabá
familiares, tanto para dentro como para fora
ou Goiás; tendo-se agregado a uma tro-
de suas províncias de origem. 12 Anúncios, pa que para ali se dirigia.14
como o que se verá a seguir, multiplicaram-
se em jornais brasileiros. Em agosto de 1869, Depois de capturado, Manoel foi incurso
o “[...] escravo Antonio, preto, estatura re- na lei de 1835, em 17 de janeiro de 1873.
gular, 25 annos mais ou menos, bem feito de Essa pena foi comutada para o Artigo 193 do
corpo, ladino, oficial e ferreiro, bons dentes, Código Criminal do Império, “à doze annos
olhar pacífico, rosto redondo, bigodes a ca- de prisão com trabalho”, em 25 de março de
vagnac, natural das províncias do Norte 1873.
[....]”, fugira da fazenda campineira de D. Assim como Manoel, outros escravos
Petronilha Egydio do Amaral Lapa, que es- buscaram as tropas como meio para escapar
tabeleceu a gratificação de duzentos mil réis de modo mais seguro, haja vista os riscos
por sua captura. 13 A exemplo de tantos ou- dos caminhos e a perseguição de capitães do
tros, Antônio fora um escravo transferido do mato. Agregar-se a tropas implicava acordos
Norte, possivelmente no auge do comércio prévios com gente que as conduzisse, em ge-
interno de escravos, como sugere o registro ral, trabalhadores livres, o que se revela uma
do ano de sua fuga. alternativa bastante perspicaz. Eis aí uma
Outros indícios da resistência escrava possibilidade para o bem sucedido retorno
por meio da fuga foram registrados nos au- de Vicente ao sertão da Bahia, como logo ve-
tos envolvendo Manoel, escravo, “filho de remos.
Luiza, pai ignorado, casado, de trinta e seis Havia ainda aqueles que apostaram nas
anos, natural do Ceará”: parcerias para as arriscadas fugas:
No dia 5 do corrente mez de Dezembro João de trinta an nos mais ou menos, sol-
[1872], às 6 horas da manhã mais ou menos, teiro, natural do Maranhão, trabalhador de
na fazenda funil, pertencente à herança do roça, rezidente na fazenda de seu senhor
finado João Ferreira da Silva Gordo, neste Eugenio Sales […] Perguntado como é que
Termo, estando o filho do mesmo falleci- morando seo senhor no Jundiahy ele infor-
do João da Silva Ferreira, administrador mante fora passar adiante do vira-copos, na
da referida fazenda, enfardando algo- estrada que vae para Itú? Respondeo que fu-
dão, ajudado pelo escravo da dita herança gindo do eito do seo senhor conjuntamente
de nome Manoel mulato, e tendo o mesmo com seus parceiros Daniel e Antonio, hiam
administrador dado uma relhada no mencio- pela estrada perguntando o caminho de Itú
nado escravo Manoel, por causa de serviço […]. Foram perseguidos e receberam duras e
mal feito, este enfurecendo-se fez com uma muitas bordoadas.15
faca que consigo trazia, em o dito seo senhor
Os escravos João, Daniel e Antônio eram
moço os ferimentos constantes do auto de
corpo de delicto e inquérito, que se offerece, procedentes, respectivamente, das provín-
do qual resultou a morte imediata do offen- cias do Maranhão, Paraíba e Ceará. Parce-
dido, evadindo-se o denunciado. rias para fugas demonstram resistências
12 Dentre eles, ver: Freyre (1963) e Graham (2002). 14 AESP. AEL/Unicamp. CO 4079, DOC 0006,
13 AEL. Gazeta de Campinas. Campinas-SP. Anno 1873, f. 23 e 46, grifos nossos.
1, n. 1. 31.10.1869. Microfilme PR – SOR 313 (1). 15 AESP. Acervo do AEL/Unicamp. Delegacia de
OUT/1869-DEZ/1892, grifos nossos. Campinas. CO 4076, DOC 0002, 1871, f. 23 e 46.
mas porque tinham necessidade de conser- Warren Dean (1977, p. 69), ao tratar da
var-lhes a lealdade” (DEAN, 1977, p. 35). grande lavoura de Rio Claro, no “Oeste his-
A exploração de trabalhadores (escravi- tórico” paulista, entre os anos 1820 e 1920,
zados e/ou livres) fora uma marca nas fa- afirmava que “as vendas de escravos regis-
zendas de café, sendo bastante pesados os tradas em Rio Claro a partir de 1872 consis-
serviços realizados por camaradas, “um ele- tiam na maior parte [...] de meninos de 10 a
mento inconstante no seio da população”. 15 anos. Raramente eles eram acompanha-
Apesar de administradores e senhores taxá dos dos pais, sendo declarados - quase sem-
-los de preguiçosos e imprevidentes, preci- pre, é provável, falsamente - de mãe desco-
savam deles, por serem “corajosos, resisten- nhecida ou morta”.
tes e resignados a permanecer sem terras” Ao tratar das duas regiões cafeeiras mais
(DEAN, 1977, p. 36). proeminentes no Oitocentos, o Vale do Pa-
Moura (1998, p. 173-174) analisa uma raíba e o Oeste Paulista, Lima (1986) assi-
documentação expedida por agenciador de nala enfaticamente a tônica da violência
trabalhadores, datada de 1878, com regis- empregada contra os primeiros colonos e as
tro da entrada de “cento e tantos” retirantes medidas adotadas pelos governos europeus
cearenses “a fim de seguirem para o muni- para obstar a emigração. Dentre as diversas
cípio de Rio Claro (SP), onde declaram ter notas de parlamentos estrangeiros, uma de-
agasalhos”, e a recusa de cinco dentre eles las expedida pelo governo belga expõe expli-
que, ao chegarem à estação da Luz, pediram citamente a situação: “a triste experiência
passagens para Guaratinguetá (SP). Para a que os nossos compatriotas têm tido do cli-
autora, esses retirantes não estavam alheios
ma do Brasil e da escravidão disfarçada...
às condições de trabalho e de vida nas fa-
deterá o movimento de emigração belga
zendas de Rio Claro, e a recusa devia-se aos
para aquelas paragens” (LIMA, 1986, p. 69).
comentários chegados por meio de cartas e
Além da violência, amargavam-se com
conversas de parentes e amigos.
as baixas temperaturas naquelas fazendas,
Curiosa a identificação de Rio Claro
situação que tantas vezes concorreu para
como um dos lugares mais temidos por sua
agravar o sofrimento daqueles trabalhado-
má reputação. Rio Claro foi justamente o lu-
res, como se verifica na documentação judi-
gar de destino de muitos escravos dos ser-
cial campineira:
tões da Bahia e de outras partes do Norte.
O historiador Erivaldo Neves (2000, p. 117), Ontem deu-se o facto que José Pires se
ao tratar das ações de traficantes no alto enfureceu dando elle parte de madrugada
que estava com frio, eu diçe a elle que
sertão da Bahia, evidencia a preferência por
estava fazendo frio mesmo que isso não é
mão de obra de jovens escravos na região de caso de ficar que fosse trabalhar elle
Rio Claro: “Fenômeno também demonstra- fes serao com os outros de panhar café […] e
do nas escrituras de compra e venda de Rio quando a gente foi para a roça elle ficou mais
Claro, mercado de meninos e jovens caeti- atrás […] então é que elle se enfureceu em
teenses, onde 29% dos escravos naturais da fim como não tendo elle me aparecido athe
despois de almoço então mando o Marcellino
província de São Paulo, em 1872 [‘quando se
a precura delle e vai encontra-lo depindurado
intensificou o tráfico sertanejo’], provinham
no Sipo no Mato quando se achou elle ja era
da Bahia”. Escravos que não tiveram a mes- tarde não teve tempo de mandar […] em fim
ma chance que muitos migrantes cearenses. são das quellas coizas que tem de acontecer
e por isso nao deve se comodar muito [...]”.18 marcada por uma mentalidade escravocra-
ta muito arraigada, aspecto que conferiu (e
Maus tratos aliados a duras condições
ainda confere) forte tônica às relações so-
de vida e de trabalho foram mais incisivos
ciais e de trabalho no Brasil.
para escravos, mas não exclusivos a eles. A
Apesar das distinções entre cativos e li-
violência e a exploração atingiram outros
vres pobres, a começar pela condição jurí-
segmentos sociais, gerando solidariedades
dica dos primeiros, os autos e outras fontes
de classe contrárias ao domínio senhorial,
informam que não havia mundos distintos
em planos horizontais e verticais. Novos ar-
a separá-los, fato que sugere uma análise
ranjos aproximaram lentamente escravos da
mais imbricada das relações sociais no de-
diversificada população das províncias do
curso da escravidão, e que, em termos histo-
Sul. Essa aproximação, todavia, exigiu uma
riográficos, permite escapar ao binômio “se-
especial capacidade de entendimento de re-
nhor e escravo”. Outro aspecto, que aparece
gras do jogo no plano das relações sociais ali
relacionado ao primeiro, é a necessidade de
estabelecidas:
estudos mais dedicados às possíveis identi-
[...] Estas modificações na composição da co- dades novas que se formaram (em termos
munidade de escravos alteraram em diversos thompsonianos) com a aproximação entre
aspectos a relação deles com seus senhores. O
esses sujeitos, seja nas árduas jornadas de
historiador Robert Slenes, em artigo sobre o
assunto, mostra que os senhores de escravos, trabalho, seja nos encontros em tabernas e
utilizando a força, por um lado, e o favor, por vendinhas, onde possivelmente tratavam
outro, promoviam diferenças de posição entre entre si do comportamento de senhores, ad-
os cativos: privilégios e promessas de liber- ministradores e feitores, e de onde, por cer-
dade ajudavam a torná-los mais submissos to, emergiram planos de reação.
e, assim, menos perigosos (SLENES, 1997).
Esses laços se constituíram e se estrei-
Este fator influenciava também nas relações
entre os próprios cativos e na formação de taram ao longo da escravidão e depois dela,
suas identidades (COSTA et al., 2008, p. 29). como podemos acompanhar na nossa histo-
riografia.19 Wissenbach (1998, p. 58) alerta
Travessias impulsionadas por eventos para “o processo de mestiçagem” como re-
como o tráfico, migrações e imigrações co- sultado que “vinha mais do convívio social
locaram aqueles sujeitos diante do desafio de homens livres pobres que das relações en-
da organização de novos arranjos de sobre- tre casa-grande e senzala”. Além desse con-
vivência, nada fáceis para aqueles que não vívio, a presença de imigrantes estrangeiros
eram conhecidos localmente: “Os escravos aproximava esses sujeitos em experiências
que não vinham do Sudeste […] eram pro- comuns. Italianos, alemães, portugueses,
movidos com menos frequência e com mais que atendiam pelos sobrenomes de Bretter-
demora, justamente porque suas qualida- nitz, Graner, Deande, Holler, Reinert, Bes-
des e temperamentos eram menos conhe- tintz, Almeida... Também conviveram lado
cidos pelo senhor” (SLENES, 1997, p. 273). a lado com escravos na região campineira.20
Além disso, as oportunidades de conquista Uma proximidade nem sempre harmoniosa:
da alforria se restringiram diante da eleva-
ção de preços dos cativos naquela sociedade, 19 Ver: Wissenbach (1998); Albuquerque (2009) e
Fraga Filho (2006).
18 AESP. AEL/Unicamp. Delegacia de Campinas. 20 AEL/Unicamp. Nomes colhidos na documenta-
Auto de corpo de delicto. CO4114. DOC 043. ção judiciária. Sobre a participação estrangeira
1875. f. 4, grifos nossos. na região, ver Lima (1986).
Autos criminais dos últimos anos da es- Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
cravidão revelam que escravos e trabalhado- AZEVEDO, Célia M. Marinho de. Onda Negra,
res livres pobres combinavam entre si pla- Medo Branco. O negro no imaginário das eli-
nos mirabolantes para amealhar alguns tro- tes. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.
cados; lançavam mão de relações pessoais CANDIDO, Antônio. Os Parceiros do Rio
para se defenderem; “pegavam carona” em Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a
tropas nas suas tentativas de fuga (contan- transformação dos seus meios de vida. 8. ed. São
Paulo: Ed. 34, 1997.
do com apoios externos para tanto); pade-
ciam com os horrores das baixas tempera- CARMO, Daniela do. Questão racial, classe e
turas nos serões das colheitas; reuniam-se gênero: um colégio feminino e a trajetória do
“pardo” Antônio Ferreira Cesario (Campinas,
em “fandangos” (dança de pares, própria
segunda metade do século XIX). Oikos: Revis-
da península ibérica) nas vendinhas e casas ta Brasileira de Economia Doméstica, Viçosa, v.
de mulheres, como a “casa de Leonor”... Es- 22, n.1, p. 111-130, 2011.
sas fontes demonstram amplamente, e com CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: Ro-
ricos indícios, as aproximações entre esses tinas e ruptura do escravismo do Recife, 1822-
segmentos nos arranjos do viver. 1850, Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998.
Escravizados não formaram um segmen- CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade.
to à parte no curso da escravidão brasilei- São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ra, ao contrário, suas experiências foram
CONRAD, Robert Edgar. Os últimos anos da
construídas em estreita relação com livres escravatura no Brasil (1850-1888). 2. ed.
pobres, gente que também necessitava de Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
parcerias para viver. A uni-los estava o en-
COSTA, Fernando Augusto Pozzobon da et al.
frentamento de toda sorte de obstáculos. No Senhores e escravos no Vale do Paraíba nas úl-
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muitas travessias se colocaram no caminho Francis (Org.). Inventários das Fazendas
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de Santa Catarina, Florianópolis, 2006. Aprovado em: 21/06/2017
Josenildo de J. Pereira**
Resumo
Análise relativa a escravidão moderna verificada no mundo ocidental entre
os séculos XV e XIX sublinhando o seu objeto, lógicas e a sua relação com
o processo de formação histórica brasileira com o objetivo de contribuir no
debate em torno dos fundamentos da consciência negra ao se considerar os
mitos que envolvem a identidade negra no Brasil.
Palavras chaves: Escravidão moderna; África; Brasil; capitalismo.
Abstract
Slavery modern: objects, logic and brazillian society
Analysis of modern slavery in the western world between the fifteenth and
nineteenth centuries, emphasizing its object, logic and its relationship of the
process the Brazilian historical formation, with the aim of contributing to
the debate around the foundations of black conscience when considering the
myths that involve black identity in Brazil.
Keywords: Modern slavery; Africa; Brazil; capitalism.
Em abril de 1981, o historiador Ciro Flama- “Creio que a resposta deve ser negativa, ape-
rion Cardoso ao prefaciar o livro Ser escravo sar da existência de algumas obras de valor
no Brasil, da historiadora Katia de Queiros inestimável” (CARDOSO, 1990, p. 07).
Mattoso, reconhecia que a escravidão brasi- Há quase quatro décadas depois, o pro-
leira era o tema que contava com uma copio- blema e a resposta formulados por este his-
sa bibliografia. Mas, levantou um problema toriador ainda estão atuais, sobretudo no
– “Tal abundância relativa significará, tal- que se refere a relação entre a escravidão
vez, que o nosso conhecimento histórico da moderna e o racismo no mundo ocidental,
escravidão brasileira e temas conexos é pro- pois, títulos de obras e ou expressões como
fundo e adequado? ”Ele, em resposta disse – – “escravidão africana”, escravidão negra”,
* A versão preliminar deste texto foi apresentada na “Semana da Consciência Negra: consciência
para não permanecer em silêncio”, na Mesa Redonda 02 – Escravidão no Brasil: trabalho, socieda-
de, cultura e comércio. Dia 24 de novembro de 2017, na cidade de Pinheiro - MA.
** Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social/PPGHIS da
Universidade Federal do Maranhão/UFMA.
“tráfico negreiro”, “os negros no Brasil”, entre essa cor de corpo e o trabalho escravo
“raça negra” e “culturas negras”, sugerem e, por conseguinte, da identidade negra,
que os seus autores ainda não conseguiram, a qual, sobretudo, no tempo após abolição
de modo crítico, se libertarem de limites e serviu de fundamento para justificar a pre-
superficialidades criadas pela cultura ra- cariedade material e simbólica de sujeitos
cista ao se considerar que tais títulos e ou de corpos pretos.
expressões são portadores de problemas de A partir dessa perspectiva sublinhei em
método, mas, também, de dimensão política outro lugar (Pereira, p. 2011), que no ima-
e ideológica. ginário ocidental contemporâneo os vocá-
A este respeito, não é demais destacar bulos - “africano”, “escravo” e “negro” são
que as narrativas dos historiadores decor- compreendidos e usados como sinônimos
rem do diálogo entre temporalidades, ou indicando tratar-se de um sujeito com uma
seja, de tempos do historiador com os de identidade definida pelo fenótipo e, por isso
memórias a partir das quais ele tece e urdi mesmo, caracterizado por um modo de ser
o seu tema-problema, bem como, também, muito especifico tendo uma essência onto-
dos que já trataram antes acerca do tema de lógica que demarca, inclusive, o seu lugar
investigação. Logo, se trata de temporali- no cosmos.
dades não isentas de colorações políticas e Ao analisar o discurso corrente em livros
ideológicas. Afinal, como nos ensina Back- didáticos de História utilizados na Educa-
thin (2002, p.123), ção Básica brasileira se verifica o largo uso
de tais representações para qualificar e “ex-
O discurso escrito é de certa maneira parte plicar” o tráfico internacional e a escravidão
integrante de uma discussão ideológica em
moderna com base na cor do corpo dos su-
grande escala: ele responde a alguma coi-
sa, refuta, confirma, antecipa as respostas jeitos tornados escravos. Mas, o mesmo não
e objeções potenciais, procura apoio, etc. fazem com aos escravos dos mundos greco
Qualquer enunciação por mais significativa e -romano antigos nomeando-os de brancos.
completa que seja, constitui apenas uma fra- Não é que devesse se assim! Mas, se trata
ção de uma corrente de comunicação verbal de um instigante problema a ser analisado
ininterrupta (concernente à vida cotidiana, à
no contexto racial brasileiro. Acerca destes,
literatura, ao conhecimento, à política, etc).
no mundo antigo greco-romano, Campos e
É corrente no imaginário social brasilei- Miranda (2005, p. 77) apenas destacam que
ro e em outras partes do mundo ocidental “os escravos trabalhavam como artesãos,
contemporâneo que a forma de trabalho criados domésticos e, em maior número, na
que deu sustentação ao mundo material e agricultura e na mineração”.
simbólico do período compreendido entre Os autores Koshiba e Pereira (1996, p.
os séculos XV e XIX seja a escravidão ne- 29), embora apoiados em referencial teórico
gra por conta da cor preta do corpo daque- crítico e consistente, não procedem de modo
les que foram o seu objeto, ou seja, sujeitos diferente ao se referirem ao trabalho escravo
de diferentes e diversos grupos étnicos do no processo de formação histórica do Brasil.
continente africano. No longo prazo, esta Estes sublinham que, “o trabalho indíge-
forma de nomeação acrescida de outros na foi amplamente utilizado no processo de
elementos, como o racismo, contribuiu montagem a economia açucareira. À medida
para a noção de que há uma estreita relação que essa economia começou a se expandir”
Não é demais destacar que, na cultura nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que es-
brasileira, no que se refere ao processo de tabelecia as diretrizes e bases da educação
obtenção de conhecimentos, a leitura e o li- nacional, para incluir no currículo oficial da
vro - a despeito das qualidades teóricas de rede de ensino a obrigatoriedade da temáti-
seus autores e da lógica do que é dito no tex- ca “História e Cultura Afro-brasileira”. Con-
to - ainda estão revestidos pela “autoridade” forme os termos de seu Artigo 1º, o Artigo
iluminista. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
Do mesmo modo, convém sublinhar que 1996 passou a vigorar assim,
no contexto do sistema formal de ensino Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino
brasileiro, a Escola com os seus operado- fundamental e de ensino médio, públicos e
res tem uma centralidade nesse processo. privados, torna-se obrigatório o estudo da
E que, para além de professores, o públi- história e cultura afro-brasileira e indígena.
co receptor do discurso contido em livros § 1o O conteúdo programático a que se re-
didáticos usados na Educação Básica é fere este artigo incluirá diversos aspectos da
constituído por sujeitos em formação, em história e da cultura que caracterizam a for-
geral, qualificados como crianças e adoles- mação da população brasileira, a partir des-
ses dois grupos étnicos, tais como o estudo
centes, os quais ainda estão construindo
da história da África e dos africanos, a luta
a sua compreensão do mundo no qual se
dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
encontram. Logo, tudo que é lido e ouvido cultura negra e indígena brasileira e o negro
pode ser apropriado por este público, pois, e o índio na formação da sociedade nacional,
o livro didático em sua condição de fetiche resgatando as suas contribuições nas áreas
é um importante passador cultural. Neste social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil. (www.planalto.gov.br).
caso, uma cultura racista!
O discurso dos poucos autores de livros A proposição política e ideológica desta
de História utilizados na Educação Básica, lei é, sem dúvida, de suma relevância por-
aqui referenciados, indica a permanência que potencializa, nos marcos do Estado de-
de representações dos objetos da escravidão mocrático direito, a luta pela desconstrução
moderna ao limite da cultura racista que os do racismo e da invisibilidade de referências
restringem a cor de seu corpo. Ao se consi- de marcas culturais africanas no processo de
derar as instituições como a Pontifícia Uni- formação da cultura brasileira. Ainda assim,
versidade Católica de São Paulo/PUC - SP e a referida lei é permeada por problemas.
a Universidade de São Paulo/USP onde fo- Conforme os seus termos, negros e indíge-
ram formados estes profissionais em Histó- nas são grupos étnicos. Se tal formulação
ria, se verifica que tais representações não para serve para qualificas os indígenas, o
são uma especificidade do livro didático, em mesmo não se pode dizer para os sujeitos de
si, mas, o desdobramento da historiografia corpos pretos, a despeito de sua integração à
racista brasileira, cujos termos são incorpo- sociedade brasileira ser viabilizada por meio
rados por diferentes sujeitos articuladores, de seu histórico empobrecimento e margina-
inclusive, da crítica ao discurso racial tal lização social. Do mesmo modo, a limitação
como se percebe nos termos de leis anti-ra- de diferentes formas de lutas levadas a cabo
cistas como a propalada 11.645/2008. pelos trabalhadores escravizados, de corpo
Esta lei alterou outra, de nº 9.394, de 20 preto, ao ícone negro é animar a reprodução
de dezembro de 1996, modificada pela Lei da insustentável concepção racial que forjou
ção, amadurecimento e expansão pelo mun- tidiana quanto as suas formas de sociabi-
do não europeu. lidades entre as gerações, de organizações
A partir desta perspectiva, a necessidade jurídicas, políticas e institucionais, de sua
da desracialização do tráfico internacional economia política, do sagrado, bem como,
de escravos e da escravidão moderna cujo também, da relação com o meio ambiente
objeto foram sujeitos de diversos e diferen- (KHAPOYA, p. 2015).
tes “grupos étnicos” do continente africano Amadou Hampâté Bâ, no esforço de
se impõe pelo fato de a racialização deslocar nuançar especificidades africanas, sublinha
a ocorrência do tráfico de seus fundamentos a importância da tradição oral destacando
econômicos, ideológicos e culturais para o que “nenhuma tentativa de penetrar a his-
corpo daqueles que foram o seu objeto en- tória e o espirito de povos africanos terá va-
capsulando a sua lógica, isto é, os seus reais lidade a menos que se apóie nessa herança
determinantes econômicos num contexto de de conhecimentos de toda a espécie trans-
uma nova cultura econômica em formação mitidos de boca a ouvido, de mestre a dis-
cujo cerne era o princípio de que na circu- cípulo, ao longo dos séculos” (HAMPÂTÉ
lação de mercadorias residia o fundamento BÁ, 2010, p. 167). Para reafirmar os termos
da economia em suas diferentes escalas: in- deste destaque, ele cita o grande mestre tra-
ternacional, nacional, regional, local e indi- dicionalista da ordem muçulmana Tijanyya
vidual, bem como na transformação do tra- Tierno Bokar, segundo o qual, refutando os
balhador, também, em mercadoria. estereótipos do eurocentrismo,
Nestes termos, o tráfico internacional de
...a escrita é uma coisa, e o saber, outra. A es-
escravos da “África” para outras partes do
crita é a fotografia do saber, mas não o saber
mundo a partir do século XIV, e o trabalho em si. O saber é uma luz que existe no ho-
escravo nestes territórios, como base de sua mem. A herança de tudo aquilo que nossos
sustentação material, são variáveis dessa ancestrais vieram a conhecer e que se encon-
nova cultura econômica em gestação; por tra latente em tudo o que nos transmitiram,
isso é que não se sustenta compreendê-la assim como o baobá já existe em potencial
em sua semente (HAMPÂTÉ BÁ, 2010, p.
como negra porque a sua ocorrência não se
167).
explica pela cor da pele daqueles que foram
o seu objeto. Embora, assim, tenham pre- Nestes termos, se verifica que a tradição
tendido os que dela tiravam o proveito quer oral é uma das variáveis estruturante do
na etapa do tráfico, ou do trabalho escravo modo de ser africano por se tratar da “gran-
nas plantations nas Américas. de escala da vida” ainda que pareça “caótica
A redução da diversidade étnica e cultu- àqueles que não lhe descortinam o segredo
ral desses sujeitos a cor preta de seu corpo, e desconcertar a mentalidade cartesiana
definida como o marco referencial da iden- acostumada a separar tudo em categorias
tidade racial do povo negro, além de legiti- bem definidas”. Desse modo, a tradição oral
mar a violência física praticada em relação “é ao mesmo tempo religião, conhecimen-
aos mesmos ainda promove o seu epistemi- to, ciência natural, iniciação a arte, história,
cidio ao retirar-lhe a condição de sujeitos divertimento e recreação, uma vez que todo
que se orientavam a partir de repertórios pormenor sempre nos permite remontar à
culturais traduzidos em suas filosofias e Unidade primordial” (HAMPÂTÉ BÁ, 2010,
cosmogonias orientadoras de sua vida co- p. 169).
Em linhas gerais, a tradição oral para sobretudo, para as Américas foi um negócio
os diversos povos africanos sedimentava as lucrativo, particularmente, aos europeus. A
suas cosmogoniasa despeito de diferenças este respeito, no início da década de 1960,
de cunho linguísticos e de modos de viver sob uma forma de síntese, David Brion Da-
outros valores em África. Logo, a escravidão vis, ao tratar da formação de sociedades
moderna sustentada pelo tráfico internacio- americanas e de sua relação com a Europa,
nal de escravos de África para os mundos a partir da análise da escravidão na cultura
não africanos não pode ser reduzida a cor do ocidental, sublinhou que,
corpo daqueles que foram tornados escravos
Os investimentos no comércio no comércio
porque estes não eram apenas pretos. triangular trouxeram recompensas deslum-
Desta perspectiva de análise, a escravidão brantes, devidos aos lucros que podam ser
moderna não é negra, mas, um negócio bas- obtidos por meio da exportação de bens de
tante lucrativo porque o trabalhador escravo consumo para a África, da venda de escravos
era, a um só tempo, mercadoria e trabalho para o s colonizadores e, especialmente, do
transporte de açúcar e de outros alimentos
vivo. E, enquanto tal gerava riquezas para
para a Europa. Por volta da década de 1760,
todos os envolvidos nessa rede de negócios, um grande número de ricos comerciantes
ou seja, os “africanos” que tornavam outros da Inglaterra e da França estavam ligados,
“africanos” em cativos; os traficantes, os lei- de alguma maneira, ao comércio das índias
loeiros e os compradores de escravos dos Ocidentais; e o capital acumulado com o in-
quais se tornavam proprietários, mas, nun- vestimento em escravos e no que estes pro-
duziam ajudou a financiar a construção de
ca os plenos donos de seus corpos e mentes
canais, fábricas e estradas de ferro (DAVIS,
como bem atestam as fugas, os quilombos, 2001, p. 25).
as insurreições escravas e outras formas de
intervenção que lhes realçava a subjetivida- Katia de Queirós Mattoso (1990, p. 12),
de por onde a escravidão existiu. embora sob a influência da cultura racista
nos anos de 1980 quando escreveu o seu tex-
O tráfico de escravos como to, se refere ao tráfico internacional de es-
cravos como um negócio porque se tratava
negócio de “sórdidas práticas dos comerciantes atila-
A escravidão moderna foi, em si, a continua dos, especialistas na compra e venda de uma
demonstração da capacidade humana de mercadoria diferente das outras, que pensa,
praticar a violência. Mas, para além desta di- sofre e, arrancada de suas raízes, necessitou
mensão, se trata de uma invenção da moder- de condições muito especiais para sobre-
nidade europeia animada e sustentada pelo viver e produzir o melhor de seus frutos, o
tráfico internacional de escravos da “África” Brasil de hoje.” Nesse sentido sublinha que
para outras partes do mundo conhecido, à “aos que financiaram a viagem de ultramar,
época, cujos protagonistas foram governos, os navegadores devem proporcionar lucros
elites e diversos segmentos de trabalhadores substanciais, sob pena de ver encerrada sua
de Portugal, da Espanha, da França, da In- carreira aventurosa. Eles próprios tampou-
glaterra e da Holanda. co desprezavam o lucro” (MATTOSO, 1990,
Há uma farta literatura que confirma que p. 19).
o tráfico internacional de escravos da Áfri- Acerca da demografia do tráfico, a refe-
ca para outras partes do mundo ocidental, rida autora (1990, p. 19) diz que “entre 1502
ses, uma comunidade política, uma econo- Em termos estruturais, na sociedade es-
mia, uma ideologia e padrões psicológicos cravista brasileira, em linhas gerais, a con-
peculiares e que, como resultado, o sul dis- dição jurídica das pessoas e a concentração
tanciou-se cada vez mais do resto da nação,
de renda em poucas mãos urdiu hierarquias
assim como de regiões do mundo em rápido
desenvolvimento (GENOVESE, 1976, p. 9). materiais e simbólicas expressas na diver-
sificada experiência de viver: moradia, tra-
No uso do trabalho escravo e no controle balho, diversão de seus sujeitos fundamen-
da terra, bem como o acesso à mesma, com tais.A este respeito, Schwartz (1995, p. 209)
todos os seus desdobramentos estavam o se referindo a dinâmica social do sistema de
padrão de enriquecimento e a geração de grande lavoura, na Bahia, sublinha que “o
prestigio e poder. Este foi o padrão geral de açúcar, o engenho e a escravidão desempe-
produção da riqueza nas sociedades escra- nharam papéis cruciais na definição e con-
vistas, embora, não se deva prescindir de formação da sociedade brasileira” colonial.
diferenças pontuais, em toda a América co- Em relação à Amazônia, Sampaio (2011, p.
lonial. 42) diz-nos que “na contramão de uma his-
Nas colônias inglesas do Sul, o padrão toriografia que, tradicionalmente, minimiza
psicológico que escravidão moderna criou se o peso e a importância da presença negra no
fundamentou no racismo traduzido na con- Pará, insiste-se aqui no esforço de apontar a
cepção da supremacia branca, a qual, por existência de outras possibilidades” porque
sua vez, foi levada a efeito por meio de prá- “os escravos negros do Grão-Pará, negros
ticas violentas e deprimentes, tal como indi- forros, mulatos fizeram valer sua presença
cam os inúmeros linchamentos de homens e de maneira significativa a despeito de um
mulheres de corpos pretos tornados banais número considerado insignificante”.
e objetos de souvenirs tal como demonstram Ao passar pelo Maranhão, o viajante In-
as imagens de cartões postais, sobretudo, ao glês Henri Koster observou o seguinte,
longo do século XIX até aos anos de 1930 A proporção das pessoas livres é pequena.
(ALLEN, p. 2000). Os escravos têm muita preponderância, mas
No Brasil, o discurso jesuítico, teve um essa classe necessita de pouca cousa, no to-
papel singular na justificação do trabalho cante aos gastos, quando o clima dispensa
escravos de povos africanos. Entre os seus o luxo. (...) As principais riquezas da região
estão nas mãos de poucos homens, possui-
protagonistas, se destacou o jesuíta Jorge
dores de propriedades prosperas, com exten-
Benci. A respeito da pedagogia proposta por sões notáveis, grupos de escravos e ainda são
este jesuíta aos sujeitos da sociedade colo- comerciantes (...) A fortuna dessas pessoas e
nial e escravista brasileira, Casimiro, em o caráter de alguns indivíduos fundamenta-
seus estudos concluiu que ram seu grande poder e importância (KOS-
TER, 1942, p. 234).
o jesuíta italiano Jorge Benci foi um dos
ideólogos justificadores e reformadores da No entanto, nesse contexto adverso, no
escravidão colonial, não chegando, porém, campo e na cidade convém destacar que “os
a um grau de consciência cristã compatível escravos, instigados pela contingência da
com princípios evangélicos contrários à es-
continuidade e da mudança de suas condi-
cravidão. Consequentemente, sua proposta
pedagógica funcionou como elemento catali- ções de vida tiveram de inventar estratégias
zador das relações econômicas e sociais (CA- e táticas de sobrevivência, traduzidas em
SIMIRO, 2002, p.7). lutas e conflitos de distintos matizes” (PE-
REIRA, 2001, p. 38) quer fossem fugas, in- vário”1; um “cancro maldito”2; uma “secular
surreições, quilombos e outras formas de in- instituição que tanto entorpeceu o país”.3
tervenção social legando, assim, para as ge- O jornalista Themístocles Aranha (1885,
rações de futuros trabalhadores, inclusive, p. 03) qualificavaa escravidão como ”um fu-
livres o germe de lutas e de organização de nesto erro, uma planta venenosa que cres-
movimentos sociais de cunho político como ceu no solo da pátria, e precisava ser estir-
atestam a Revolta dos Malês na Bahia do sé- pada pelas raízes, enfim uma mancha no
culo XVIII e a participação na Balaiada, no pavilhão nacional”. Mas, por reconhecer a
Maranhão, no século XIX. sua centralidade na tessitura das relações de
Não é demais sublinhar que a escravidão poder advertia que, embora sendo um erro
para além de ser uma forma de relação de de séculos, não poderia ser dissipada com
trabalho produtora de riquezas, prestigio rapidez, pois “a árvore estendeu raízes pro-
e poder foi, uma instituição que, no longo fundas por baixo dos alicerces do edifício
prazo, urdiu uma cultura política na qual, a social, se a arrancassem, violentamente,
fronteira entre esfera pública e privada, no desabaria o edifício convulsionando o solo
Brasil era bastante tênue, com certa sobre- da pátria”. Nesse sentido, sublinhava:
posição desta última em relação a primeira Essa mancha que conspurca o lábaro da na-
se expressando por meio de práticas carac- ção brasileira não poderá ser apagada com
terizadas pelo mandonismo local, o clien- o emprego de reagentes fortes, porque com
telismo e o despotismo, tanto numa escala ela pode ser destruída a própria bandeira.
Pede senhores, esta reforma muita calma,
macro quanto micro.
pede duas manifestações de coragem cívica
Dada a lógica destas variáveis na repro- – uma, a de dominar e dirigir os sentimen-
dução da sociedade escravista fez com que tos abolicionistas que trazem agitados tan-
postergassem, o quanto possível, o fim desta tos espíritos; a outra afirma francamente as
instituição no Brasil Império. A escravidão nossas convicções, opondo resistência legal
mesmo tendo sido abolida em 1888, o man- aos impulsos valentes desses sentimentos,
e também aqueles que quiserem retroceder
donismo local, o clientelismo e o nepotismo
só assim se servirá patrioticamente ao país
se prolongaram para além de seu tempo, na perigosa situação em que se acha. E seja
embora sob aura da sociedade do trabalho quanto antes tomada uma resolução, porque
livre e republicana. não pode a lavoura continuar no estado afli-
A partir dos anos de 1850, a escravidão tivo em que se vê (ARANHA, 1885, p. 03).
como forma de trabalho, em decorrência de
Emília Viotti (1998, p. 493), numa pers-
mudanças substanciais na própria dinâmica
pectiva ampliada sublinha a dimensão e os
do capitalismo passou a ser objeto de críti-
limites ideológicos de articuladores do mo-
cas com vistas a sua abolição.
vimento abolicionista brasileiro destacando
No Maranhão, na década de 1880, num que,
movimento contraditório, a escravidão foi alvo
de representações bastante pejorativas tais Os componentes das profissões liberais e do
funcionalismo público eram, quase sempre,
como - o “estágio da infância que tanto nos en-
recrutados entre os elementos pertencentes
vergonha em face da civilização do século, que
tem obstado a que marchemos na conquista 1 Jornal Pacotilha, 02 de abril de 1884, p 01.
2 Jornal O Paiz, 20 de fevereiro de 1885, p. 02.
do vellocino de oiro da igualdade humana há 3 Jornal Diário do Maranhão, 04 de abril de
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Pedro Acosta-Leyva*
Resumo
Este artigo é uma revisão exploratória das modalidades tradicionais de cap-
tura de escravizados na África, sua dinâmica; e, especialmente, seus agentes,
artifícios e métodos.
Palavras-chaves: África; Escravizados; Modalidades de Captura.
Abstract
TRADITIONAL AFRICAN CApture MODES FOR DEALER TRAFFIC
This article is an exploratory review of traditionalenslaved in Africa, its dyna-
mics; and especially their agents, devices and methods.
Key-words: Africa; Enslaved; Capture Modalities.
O objeto deste artigo é um dos mais vio- nômenos humanos e portanto ambos os
lentos fenômenos praticados pela huma- grupos devem ser considerados humanos.
nidade: a captura de pessoas para o tráfico Não vejo necessidade de buscar evidenciais
com a finalidade da escravização. Nem o trá- históricas da humanidade do branco e nem
fico nem a escravidão serão objeto de análi- da humanidade do negro. Parto do princí-
se, pois o que se pretende é tentar descrever pio tácito de que todos os sapiens sapiens
minimamente como se processava no âmbi- são de uma única espécie independente do
to local africano as capturas, seus métodos e caminho histórico e cultural que percor-
artifícios. reram. 2) também não me vejo dentro da
Não pretendo dar grandes justificativas linha teórica ou ideológica que pretende
para mostrar a relevância do tema, mas mostrar que negros capturavam seus pró-
gostaria, outrossim, de manifestar que não prios irmãos negros. Na minha compreen-
participo das seguintes linhas teóricas ou são essas linhas estão fora da análise histó-
talvez ideologias: 1) O estudo das capturas rica metodologicamente adequada e longe
endógenas no Continente africano com o das informações sociais, antropológicas e
propósito de “revelar” que os negros e os históricas que as fontes permitem alcançar
brancos compartilham dos mesmos fe- a respeito da África.
* Pedro Acosta Leyva é professor-adjunto dos Cursos de Licenciatura em História e Bacharelado em Hu-
manidades da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB)-Campus
dos Malês, e Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indíge-
nas e Culturas Negras, UNEB/ UNILAB. Endereço eletrônico: leyva@unilab.edu.br
culos VII-XIX), uma sangria tão contínua e Estados Unidos da América, ora quando a
tão sistemática como o continente africano pesquisa aponta a participação dos agentes
(M’BOKOLO, 2012, Tomo I, p.203). africanos na captura, o que suscita a inter-
Pode-se comprovar a existência da cap- pretação de que o pesquisador está isentan-
tura num recuo de, pelo menos, 2 mil anos, do a responsabilidade e violência dos euro-
provavelmente mais. Trata-se de um fato peus no processo; ora quando a pesquisa
complexo devido ao tempo e aos agentes en- coloca todo o dinamismo da captura nos
volvidos em cada momento da história. Aqui europeus, sugerindo que os africanos foram
a temporalidade que importa começa no sé- presas fáceis, que não sabiam se defender
culo XV e se estende ao século XIX. Portan- e que deixaram os europeus fazerem o que
to, uma longa duração em que agentes, mo- bem queriam em seus territórios. Embora
tivações e transformações sociais, militares, não tenho intenção de aprofundar o debate
políticas e econômicas variam por vezes len- de Molefe Kete Asante e Henry Louis Gates,
tamente, por vezes aceleradamente (MEIL- vale a pena dar um exemplo da legitimida-
LASSOUX, 1995). Há ainda que se distin- de da questão. Molefe Kete Asante que de-
guir captura de tráfico: captura é o processo fende que a captura era feita pelos europeus
de obtenção; tráfico é o deslocamento e a ou por africanos constrangidos a cooperar,
comercialização. o caso da primeira e da segunda viagens a
No Brasil, as interpretações da captura costa da Serra Leoa de John Hawkins, em
de seres humanos, por regra, têm questões 1562 e 1564, confirma sua perspectiva. Ha-
inquietantes. Primeiro, com grande velo- wkins relata que capturou as pessoas “indo
cidade se vai da captura para o tráfico em todos os dias à praia, para pegar os habitan-
suas três dimensões: interno na África, para tes e queimar e saquear suas cidades”. A vio-
o mundo árabe e para a América. A segun- lência europeia contra a população africana
da questão, no Brasil, e também em outros foi o meio eficaz de captura. Agora, vamos
espaços, pelo que mostra a disputa entre comparar a perspectiva de Henry Louis Ga-
Molefi Kete Asante e Henry Louis Gates1 nos tes, que defende que os próprios africanos
1 ASANTE, MolefiKete. Henry Louis Gates is tem uma dose de responsabilidade pela cap-
Wrong about African Involvement in the tura. Na terceira viagem de Hawkins, em
Slave Trade. Em: http://www.asante.net/ar-
ticles/44/afrocentricity/. Acesso 10 de Janeiro
1567, talvez da mesma forma violenta como
2017. A discussão parte do problema, que Gates sempre tinha conseguido os cativos “estava
analisa, a “cooperação” dos poderes africanos na prestes a partir de Serra Leoa com uma car-
atividade da captura. Para Gates muitos dos reis
e a nobreza africana se envolveram voluntaria- ga de 150 escravos, quando foi abordado por
mente na captura e no tráfico de seres humanos. dois enviados do rei de Serra Leoa e do rei
Completamente oposta a essa perspectiva, Mo-
de Castros, pedindo-lhe para unir forças em
lefi Kete Asante entende que uns poucos reis e
nobres “cooperaram” com a prática da captura uma guerra”.
e no tráfico e a maioria das autoridades africa- Para não me alongar na narrativa, Ha-
nas envolvidas foram constrangidos através de
diferentes mecanismos como tratados de vas-
wkins aceitou a proposta (destes dois reis
salagens que cobrava impostos em capturados são africanos) e o resultado foi que captu-
e guerras punitivas contra reinos que não eram
aliados e outros. Asante responsabiliza a Gates quanto a contribuição de Asante é veiculada em
por auxiliar aos brancos racistas no ataque e forma de artigo nas Revistas Sankofa que é um
desvalorização do povo negro. Interessante que meio vinculado à tradição do pan-africanista ne-
no Brasil a editora que só publica para a elite gro Abdias Nascimento e na Revista Capoeira da
branca brasileira publicou a obra de Getes, en- UNILAB.
ram dois reinos vizinhos e o Hawkins, graça exemplos: entre os Manjacos, no território
a cooperação dos dois reis africanos que fi- da Guiné-Bissau, antes dos portugueses
zeram a proposta, completou sua carga com chegar se utilizava o termo “Naluk”-sing. e
470 cativos (MEREDITH, 2017, p.134-135). “Baluk”-pl. que significa escravo(s). No ter-
A pergunta que fica no fundo da história das ritório que é atualmente Angola, existiam
três viagens do traficante Hawkins coloca a os “escravizáveis” ou escravo(s), que corres-
Asante e a Gates na mesma mesa a dialogar. pondem ao termo mbundo “kijiku”-sing. e
Quem está interpretando corretamente as “ijiku”-pl. Os mecanismos para a obtenção
viagens de captura/tráfico? A resposta é: os de escravos eram basicamente as guerras, a
dois, porque para as duas primeiras viagens venda e mesmo a autovenda devido à fome
Asante tem a razão histórica e Gates está e à condenação por delitos de várias natu-
completamente errado; mas para a terceira rezas. A presença árabe-muçulmana e eu-
viagem do traficante Hawkins Gates está de ropeia-cristã aumentou a demanda de cati-
acordo com fato histórico e Asante está erra- vos incentivando e introduzindo profundas
do. O debate é rico e já fiz uma contribuição modificações sociais e alterações na inten-
no artigo “As famílias nobres africanas sidade, nos instrumentos, na quantidade e
no tráfico (1500-1850): o mito da cap- nas motivações dos mecanismos históricos
tura” 2, que penso ampliar. Se o debate não do processo de captura (LOVEJOY, 2002;
está adequadamente articulado traz para a MEILLASSOUX, 1995).
discussão a famosa passividade africana, Os árabes chegaram primeiro, porém o
que não se sustenta nem pela pior pesquisa meio de transporte para atravessar o mar
em história. Entretanto, os africanos, como de areia do Saara limitou o volume de ca-
quaisquer outros seres humanos, nunca tivos, permanecendo a quantidade discre-
tiveram nada parecido com imobilidade, ta através dos séculos. O tráfico no ocea-
passividade ou submissão. As sociedades no Índico foi importante para os árabes e
africanas, por meio dos diferentes atores so- por um longo período, inclusive é pré-is-
ciais, em determinados lugares e momentos lâmico; mesmo assim teve uma intensida-
resistiram, outras vezes negociaram, outras de discreta. Quando escrevemos a palavra
se aliaram para barganhar riquezas e outras “discreto” não significa que os árabes tenha
atacaram o invasor europeu com determina- realizado um tráfico menor, porque os nú-
ção e força. meros de escravizados para o mundo ára-
Antes das chegadas dos árabes e dos eu- be ascende a dezessete milhões enquanto
ropeus, as sociedades africanas tinham uma que o tráfico atlântico europeu oscila entre
diminuta procura por cativos. O trabalho 11 e 15 milhões (M’BOKOLO, 2012, Tomo
escravo era extremamente marginal; isto I, p.204-216). Os europeus, pela rapidez e
é, não existiam sociedades escravistas, de capacidade de carga dos navios, em pouco
maneira que o esforço por capturar pessoas tempo obtiveram um número gigantesco
era injustificável. No entanto, existiam uns de cativos. As sociedades africanas experi-
poucos escravos em quase todas as socie- mentaram profundas transformações para
dades centralizadas. Para ficar em poucos conseguir suprir as demandas de cativos
esperadas pelos árabes e, especialmente,
2 ACOSTA-LEYVA, Pedro. As famílias nobres afri-
canas no tráfico (1500-1850): o mito da captura. pelos navios europeus no Atlântico nos sé-
África(s), v. 2, n. 3, 2015, p. 17 - 40. culos XVIII e XIX.
Por sua vez, quando os portugueses che- Uma população pilhada, assassinada
garam à costa ocidental da África, lançaram- e roubada de suas terras. Uns morreram e
se violentamente contra as populações das outros foram transformados em escravos.
costas e das pequenas ilhas. É necessário Eventos como esses foram comuns nas ilhas
entender que a costa atlântica era a perife- de Cerina, Nar, Tiber, como também nas
ria das sociedades e que somente conseguiu regiões que na atualidade são os países Se-
relevância após o barco ter debilitado o ca- negal, Guiné-Bissau, Serra Leoa, além de
melo. Nenhum europeu teria sucesso se aco- outras partes do continente. Outro relato
metesse um reino do interior do continente mostra a crueldade dos portugueses que não
pois eram sociedades altamente organiza- respeitavam nem mulheres, nem crianças.
das. As populações das margens do Atlânti-
[o capitão português Álvaro Fernandes e
co, entretanto, constituíam-se de pescado- seus homens] viram andar certas mulheres
res, marisqueiras e pequenos agricultores daquelas Guinés, as quais parece que anda-
que sofreram a feroz violência dos europeus vam acerca de um esteiro apanhando maris-
em acontecimentos de verdadeiro terror. co, e tomaram uma delas, que seria de idade
Nuno Tristão, em 1443, segundo conta o até 30 anos, com seu filho que seria de dois,
e assim uma moca de 14, na qual havia assaz
cronista Gomes Eanes de Azurara (p. 81-83),
boa apostura de membros, e ainda presen-
lançou-se sobre a ilha de Arguim (também ça razoada segundo Guiné; mas a força da
pode ser escrito “Gete” ou “Arget”, “Ghir”), mulher era assaz para maravilha, ca de três
causando desespero e choro. Uma tragédia. que se ajuntaram a ela, não havia hi algum
Muitas pessoas afogaram-se na tentativa de que não tivesse assaz trabalho querendo-a
fugir e muitas foram capturadas. O mesmo levar ao batel, os quais vendo a detença que
faziam, na qual poderia ser que sobreche-
cronista relata que o capitão Lançarote e
gariam alguns daqueles moradores da terra
outros como Martim Vicente foram desde houve um deles acordo de lhe tomar o filho
a ilha das Garças até a ilha de Naar, onde e leva-lo ao batel cujo amor forçou a madre
capturaram a desprevenida e pacífica popu- de se ir após ele sem muito esforço (AZURA-
lação. A narrativa diz que: RA, s.d., p.225-226).
[os portugueses] chamaram por Santiago, A violência dos europeus está, de fato,
São Jorge, Portugal, deram sobre eles, ma- comprovada. A força de três homens não foi
tando quanto podiam. Ali podereis ver mães suficiente para dominar uma jovem mulher
desamparar filhos, e maridos mulheres,
com uma criança; se fez necessário, para seu
trabalhando cada um de fugir quanto mais
domínio, utilizar a desumana alternativa de
podia. E uns se afogavam sob as águas, ou-
tros pensavam de guarcer sob cabanas, ou- capturar o seu filho de dois anos para, dessa
tros escondiam os filhos de baixo dos limos, maneira, capturar a mãe africana. Aprovei-
por cuidarem de os escapar, onde os depois taram-se das populações que estavam traba-
achavam. E em fim nosso senhor Deus, que lhando e que não faziam parte de exércitos
a todo bem dá remuneração, quis que pelo ou de vida militar. Dessa forma, é fácil com-
trabalho que tinham tomado serviço, aquele
preender porque os europeus tiveram algum
dia cobrassem vitória de seus inimigos, e ga-
lardão e paga de seus trabalhos e despesas,
sucesso na captura.
cativando deles, entre homens e mulheres, A captura violenta trouxe respostas das
e moços, cento e sessenta e cinco, afora os populações. O roubo de mulheres e crianças
que morreram e mataram (AZURARA, s.d., que mariscavam na beira do oceano Atlân-
p.87). tico teve uma reação imediata se considera-
mos o relato do mesmo cronista que apre- dor superou o soldado-marinheiro (CAR-
senta mais detalhes sobre esse caso: RERA, 2000, p.79-80). A mudança de cap-
tura violenta para o método de “compra”
E, indo assim seguido sua viagem, vieram
sobre eles quatro ou cinco barcos Guinéus, não é produto da benevolência portuguesa
corregidos como homens que queriam de- nem da súbita sabedoria na cabeça do rei
fender sua terra, cuja peleja os do batel[os de Portugal; é o resultado da forte resistên-
portugueses] não quiseram experimentar cia das unidades políticas dos povos africa-
vendo a grande vantagem que os contrários nos. Isabel Castro Henrique (2000, p.18) o
tinham, temendo sobretudo o grande perigo
afirma nitidamente:
que havia na peçonha com que tiravam. E
começaram de se recolher o melhor que pu- Tal situação força os Portugueses a proceder
deram para seu navio; mas vendo como um a uma reorganização das suas relações com
daqueles barcos se adiantava muito, volta- os Africanos: na primeira fase, tinham eles
ram sobre ele, o qual tornando para os ou- adoptado uma política de razia, que lhe per-
tros, querendo os nossos chegar a ele antes mitia capturar escravos Mouros, Berberes e
que se recolhesse, porque parece que era já Negros. Mas a morte de Gonçalo de Sintra
afastado boa parte de companhia, chegou-se em 1444, no arquipélago de Arguim, depois
o batel tanto que um daqueles Guinéus fez de um combate com os Africanos, obriga os
um tiro contra ele, e acertou-se de dar com responsáveis políticos portugueses a substi-
a fecha a Álvaro Fernandes (AZURARA, s.d., tuir a técnica da razia pelo comércio.
p. 226).
Quando Cadamosto participou da expe-
A leitura da Crónica de Azurara permite dição na Senegâmbia, em 1455, descreveu
perceber que, a partir de determinado mo- que os reis jalojo (jolofos) vendiam escra-
mento, em qualquer lugar da costa que se
vos para os “azenegues” e para os “cristães”.
aproximassem os europeus estavam sendo
Os portugueses que pela força só podiam
esperados para serem combatidos valente-
na Senegâmbia capturar uns poucos e mui-
mente. Em outras palavras, falar de passi-
tas vezes com perdas irreparáveis. Como a
vidade africana, ou em presas fáceis, é des-
condição de enfrentamento não ofereceu os
conhecer a realidade histórica. Da mesma
resultados esperados, então começaram a
forma, continuar repetindo que os portu-
se integrar no comércio que há séculos dire-
gueses e espanhóis foram motivados pela
cionava-se para o mediterrâneo via deserto
vontade de expandir o cristianismo, ou de
de Saara. Compravam ouro, advindo do in-
encontrar o preste João, é obedecer a uma
lógica que o próprio Azurara tentou impri- terior, especialmente de Bambuk e Buré, e
mir, mas cujos escritos informam o oposto compravam escravos em outros lugares da
se observada a violência contra as popula- costa (COSTA, 2010). Vendiam e compra-
ções ribeirinhas. vam escravos e ouro ao longo da costa; parte
Em alguma data entre 1450 e 1468, as dos escravos leva para Europa. Essas trocas
estratégias mudaram. Alviseda cá da Mos- comerciais produziam o lucro esperado. O
to, conhecido como Luis de Cadamosto, comércio e o tráfico podem ser os motores,
em 1455, afirma que o infante D. Henrique os novos incentivos para a captura, mas não
proibiu os ataques violentos de captura devem ser confundidos. É evidente que, se
para implementar o método da compra. O não existissem compradores europeus e ára-
comércio substituiu ao método militar de bes, a captura em grande escala perderia a
captura por parte dos europeus; o merca- razão de ser.
o roubo ou a perda do objeto, não sofreria mecanismos pelos quais um grupo se im-
queimadura. Se a água quente queimasse a põe”. Em outras palavras, as representações
mão, o suspeito era considerado culpado e religiosas se combinaram e de certa forma
era conduzido para o mercado como escravo auxiliaram a estruturar as relações econômi-
para ser vendido, ele e sua família. O lucro cas para sustentar tanto as clivagens sociais
da venda era dividido entre o dono do ob- como para “ordenar” ou justificar a prática
jeto perdido, o imposto para o rei e a ofe- da capturar no interior das sociedades afri-
renda destinada ao sacerdote. Conta Fernão canas.
Guerreiro, em 1605, que a maioria das vezes O terceiro método, “a prova da galinha”,
o rei indicava como suspeito “alguns negros era muito simples. Por motivos diversos,
fidalgos e ricos a quem ele [o rei] por alguma tais como perda de objetos, doença e outros
paixão quere matar ou por cobiça tomar a acontecimentos para os quais não se podiam
fazenda” (CARREIRA, 2000, p.87). indicar os responsáveis, chamava-se a co-
O que Fernão Guerreiro chamou de “al- munidade para uma reunião cuja organiza-
guma paixão” provavelmente se enquadra ção dava-se em forma de círculo. É necessá-
no que Selma Pantoja (2011, p. 39) carac- rio, para entender a lógica desta modalidade
teriza a captura ou redução a escravo ou de produção de cativos, assim como as ou-
mesmo venda/tráfico de um membro da tras modalidades, que a metafísica dos po-
comunidade como “um meio de excluir os vos africanos pressupõe que acontecimentos
elementos nocivos à comunidade, como tais como doenças ou qualquer outro têm
uma maneira de reforçar a coesão social e uma causa “espiritual”. Nada acontece pelo
assegurar a estabilidade da sociedade”. Isto princípio de causa-efeito como entendido
é, uma estratégia para controlar as diferen- na física clássica ocidental. Sempre existe
ças políticas, disputas pelo poder no âmbito um ente, uma vontade de um ser por trás de
das intrigas da corte ou tática de elimina- cada acontecimentoe fenômeno, como afir-
ção de um concorrente no comércio ou em ma Bado (1996, p.71): “d’oùson caractèr e
outro aspecto que envolvia prestígio. Na métaphysique qui imprègnela definition des
mesma linha de raciocínio Lovejoy (2002, causes et destraitements des maladies”. O
p.64) explica que em um reino “jalojo, em cronista Almada observou que entre os jolo-
1455”, onde hoje é Senegal, o rei agrediu fos do atual Senegal havia uma relação entre
populações vizinhas e seu próprio povo não doença e a intervenção de responsáveis além
por ambição do lucro do comércio de seres do que podemos chamar hoje de “vírus”, “in-
humanos, mas pelo controle político contra feção” ou doença que afeta unicamente ao
possíveis revoltas que colocariam seu poder corpo. Almada registrou que
centralizado em xeque.
Há outros negros entre eles que servem de
No fundo, parece que a metafísica da cap- adivinhadores, a que chamam Jabacouses.
tura não se limitava às esferas das represen- Estes, quando adoece algum, o vão visitar
tações religiosas e das práticas econômicas, como médico, mas não tomam o pulso aos
mas também a uma fina estratégia política enfermos nem lhes aplicam mezinhas ne-
legitimada pela prática processual jurídica. nhumas; somente dizem que as feiticeiras
e feiticeiros fizeram mal àquele enfermo,
Como diz Chartier (199, p.51), “as lutas de
não lhes parecendo que as pessoas morrem
representação têm tanta importância como quando a hora é chegada e Deus servido,
as lutas econômicas para compreender os senão que os feiticeiros as comem; e fazem
sobre isto muita diligência (ALMADA, 1994, imposto em escravos (CARVALHO, 2011).
p.34) (2) A formação de um grupo de europeus
O sacerdote-adivinho, ou “Jabacouse”, chamados de lançados que, embora tives-
para descobrir os responsáveis pela doen- sem como atividade principal o tráfico ou a
ça (lembrando que o ritual da galinha era intermediação entre os mercados de escra-
uma “técnica” para descobrir os culpados vos internos (africanos) e o compradores
pela doença ou outros “malefícios”), reunia externos (europeus), algumas vezes prati-
o povo em um grande círculo e depois de cavam a captura. Esses sujeitos conhecidos
cantar e dizer algumas fórmulas misterio- como lançados espalharam-se por toda a
sas, cortava o pescoço de uma galinha e a África e provinham de quase toda a Europa.
colocava no meio do círculo. A galinha de- Muitas vezes eram também intermediários
golada, ainda pulando e se movimentando e representantes dos reis africanos e utili-
com os últimos impulsos de vida, caía morta zavam incontáveis métodos para o sucesso
em frente de alguma pessoa do círculo. A tal do negócio. Um caso pitoresco foi um lan-
pessoa e toda a sua família eram vendidos çado alemão entre os Boulões, contatado
no mercado e encaminhados para o tráfico pelo padre Baltasar Barreira, nos anos de
internacional como escravos. 1600, que usava como técnica de animar
Os outros métodos de captura por parte sua atividade de tráfico a música (CARREI-
dos agentes internos são autoexplicativos. RA, 2000, p.74).
Condenação por adultério, raptos e vendas Os lançados contraiam matrimônio com
despóticas sem motivos aparentes feitas pe- princesas e mulheres da nobreza africana.
los reis. Vale enfatizar que, nessa época e em Essas mulheres, quando enviuvavam, torna-
todo o período que se manteve o tráfico, os vam-se as famosas senhoras, ou, como eram
agentes externos da captura, isto é, os euro- conhecidas na época, “nharas”, “signares”.
peus, não abandonaram completamente a Exemplo de tais “senhoras ou signares” são
captura violenta e os pequenos raptos que a senhora Felipa em Rufisque, em 1635; a
eram comuns nos primórdios descritos por senhora Catarine ou Catti, em 1680, repre-
Azurara. sentante comercial do rei de Caior (um reino
Duas modalidades foram implementa- em Senegal); a senhora Maria da cidade de
das pelos europeus, onde de algum modo Julufre, no reino da Barra, em Gambia por
também os poderes africanos estavam en- volta de 1682 (COSTA, 2011).
volvidos: (1) a utilização do exército for- É importante, entretanto, não confundir
mado por europeus e soldados-escravos traficante ou mercador intermediário com
africanos na configuração de guerra de capturador. Os lançados eram intermediá-
ocupação, como no caso da região mbundo, rios, traficantes. A compreensão geral do fe-
em Angola, e da região dos prazos, em Mo- nômeno da captura leva a pensar que todos
çambique, onde ocorreram as guerras de esses métodos “tradicionais dos próprios
capturas comandadas por europeus e seus africanos” foram ínfimos se comparados às
descendentes mestiços e executadas pelos guerras de capturas comandadas pelos euro-
famosos a-chicundas. Os europeus realiza- peus, pelos reis africanos, pelos comercian-
vam tratados de “amizade e vassalagens” tes africanos e pela alta hierarquia religiosa
com os reis africanos de vários lugares do africana, as chamadas “guerras justas”, e a
continente e os constrangiam a pagar um outros processos a elas vinculados.
como são os ferreiros, os artesãos, a nobreza ALAGOA, Ebiegberi J.; ELANGO, Lovett
comerciante, a nobreza religiosa, o rei por Z.; N’NAH, Nicolas Metegue. O delta do Níger e
Camarões In: J. F. Ade Ajayi(editor). História ge-
vezes com uma corte familiar com funções
ral da África, vol. VI: África do século XIX à
burocráticas, os escravizados e os agricul- década de 1880. Brasília : UNESCO, 2010.
tores e pescadores que eram a maioria da
ALMADA, André Álvares de. Tratado Breve
população. Cada um desses grupos sociais dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1594).
elaboraram percepções sociais, traduções Leitura, introdução, modernização do texto e
mentais das vivências e das práticas econô- notas de António Luís Ferronha. Lisboa: Gt do
micas que muitas vezes eram mediadas por Ministério da Educação para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses. 1994.
noções religiosas, morais, políticas e jurídi-
cas. Sabemos que essas AZURARA, Gomes Eanes de. Crónica do des-
cobrimento e conquista da Guiné. Portu-
(...) percepções do social não são de forma gal: Publicações Europa-América, [s/d]. Esta
alguma discursos neutros: produzem estra- crónica foi escrita em 1448.
tégias e práticas (sociais, escolares, políticas)
que tendem a impor uma autoridade à custa BADO, Jean-Paul. Médecine coloniale et
grandes endémies em Afrique. Lèpre,
de outros, por elas menosprezados, a legiti-
trypanosomias e humaine et onchocercose. Pa-
mar um projeto reformador ou a justificar,
ris: KARTHALA, 1996;
para os próprios indivíduos, as suas escolhas
e condutas. Por isso esta investigação sobre CARVALHO, Flavia Maria de. Do undamento
as representações supõe-nas como estando ao avassalamento: ritos e cerimônias, alianças
sempre colocadas num campo de concorrên- e conflitos entre portugueses e sobas do antigo
cias e de competições cujos desafios se enun- Ndongo. Anais do XXVI Simpósio Nacio-
ciam em termos de poder e de dominação nal de História – ANPUH • São Paulo, julho
(CHARTIER, 1990, p. 15). 2011.
CASTRO HENRIQUES, Isabel. São Tomé e
As representações sociais elaboradas por Príncipe. A invenção de uma sociedade.
cada um dos grupos sociais entravam em Lisboa: VEGA, 2000.
concorrência e mesmo no interior de cada
CARREIRA, António. Cabo Verde. Forma-
grupo havia competições pelo lugar da lide- ção e extinção de uma sociedade escravo-
rança e pelo status de prestígio, o que im- crata (1460-1878). Praia: IPC, 2000.
pulsionou a criação de estratégias como, por
CHARTIER, Roger. A História Cultural: en-
exemplo, as modalidades apresentadas que tre práticas e Representações. Lisboa: DI-
cumpriam seu papel de regularizar as prá- FEL, 1900.
ticas sociais internas ao mesmo tempo em
CORREA, Elias Alexandre da Silva. História
que se adaptavam às novas demandas que de Angola. Vol. I. Lisboa: 1937.
os camelos e os navios lhes colocavam como
CORREA, Silvio Marcus de Souza. A imagem do
desafios. negro no relato de viagem de Alvise Cadamosto
(1455). Revista Politeia: Hist. e Soc., v. 2, n.
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para proletários: África/Atlântico. Pará de HORTA, José da Silva. “Entre história europeia
Minas: Virtual Books, 2013. e história africana, um objeto de charneira: as
Michelle Cirne*
Resumo
O artigo traz a produção de algumas das intelectuais africanas que se inserem
no campo dos estudos feministas e que contribuem para refletirmos sobre o
modo como as questões que dizem respeito às mulheres das diversas socieda-
des africanas são invisibilizadas tanto no interior do campo dos estudos de gê-
nero quanto nos chamados estudos africanos. Diferentes concepções de gênero
e papéis familiares, além da posição das mulheres nas discussões sobre o de-
senvolvimento, são algumas das questões levantadas pelas autoras estudadas.
Palavras-chave: Ciências Sociais; Feminismo; África.
Abstract
THE necessary PRODUCTION of the AFRICAN FEMINIST
intelectuals IN THE GENDER STUDIES FIELD AND THE
CODESRIA AGENCY
The article brings the production of some of the African intellectuals who are
part of the field of feminist studies and who contribute to reflect on the way
in which the issues that concern the women of the diverse African societies
are invisible both inside the field of studies of gender and in the so-called Af-
rican studies. Different conceptions of gender and family roles, as well as the
position of women in the discussions on development, are some of the issues
raised by the authors studied.
Keywords: Social Sciences; Feminism; Africa.
dos em questões públicas. Através do viés da centro – uma estrutura que promove “gê-
sociologia do conhecimento, buscando iden- nero” como uma categoria natural e inevi-
tificar a identidade social, as preocupações tável, sem categorias transversais que sejam
e os interesses das investigadoras, demons- desprovidas desta genericização. Para Oye-
tra-se como as experiências das mulheres wumi, esta configuração espacial da família
do hemisfério norte geraram as questões, os nuclear como um espaço isolado é funda-
conceitos e as teorias das pesquisas de gê- mental para compreender as categorias con-
nero. Para Oyewumi, o maior problema em ceituais das teorias de gênero (ibid., p. 4). O
uma perspectiva de estudo feminista seria problema, para a autora, não é a compreen-
assumir como universal a categoria de “mu- são feminista começar através da família, e
lher” – e sua subordinação – formada nessa sim nunca transcender o confinamento es-
ótica ocidental. A autora chama a atenção treito da família nuclear. As teorias feminis-
para o fato de a própria categoria “gênero” tas universalizam a experiência de família e
ser, antes de tudo, uma construção social maternidade a partir da família nuclear e a
(ibid., p. 2). tomam com um fato dado, “portanto alar-
Oyewumi propõe questões para aprofun- gando as fronteiras de sua bem limitada
dar o pensamento na perspectiva feminista, forma euro-americana para outras culturas
tais como “em que extensão as análises de que possuem diferentes organizações fami-
gênero revelam ou ocultam outras formas de liares” (ibid., p. 5).
opressão?”, ou “quais situações de mulheres No continente africano, afirma a autora,
o conhecimento feminista teoriza de forma a família nuclear permanece algo estranho,
adequada?”, e ainda “quais grupos particu- mesmo com sua promoção pelos Estados co-
lares de mulheres são teorizados?”. loniais e neocoloniais, pelas agências de de-
Para a socióloga, uma das mais impor- senvolvimento internacionais, por organiza-
tantes críticas sobre as teorias de gênero ções feministas e ONGs. Oyewumi pesqui-
provém de intelectuais afro-americanas que sou o que ela chama de “tradicional família
demonstram que, pelo menos nos Estados ioruba”. Este modelo familiar pode ser des-
Unidos, “gênero” não pode ser considerado crito como não-generizado, pois os papéis
separadamente das categorias de raça e clas- no interior dos laços de parentesco não são
se; e que há a necessidade de teorizar múlti- diferenciados por gênero, e sim têm como
plas formas de opressão quando as desigual- princípio fundamental de organização a se-
dades de raça, gênero e classe são evidentes. nioridade. Segundo Oyewumi, “ao contrário
“A categoria gênero não pode ser abstraída de gênero, que é rígido e estático, o princípio
do contexto social e de outros sistemas hie- da senioridade é fluido e dinâmico” (ibid., p.
rárquicos” (ibid., p. 3). 5). Nessa formação social, não há palavras
A análise de Oyewumi sobre os concei- que designem menino ou menina, e sim a
tos das teorias de gênero mostram que eles palavra omo, que designa prole, descendên-
emergem da ideia de “núcleo familiar” (oci- cia. A palavra oko, significando esposo/es-
dental) – que é ao mesmo tempo uma con- posa, também é usada para os dois sexos (a
figuração institucional e espacial – compos- autora chama a atenção para o fato de, nas
to de uma esposa subordinada, um marido traduções para o inglês, oko aparecer como
patriarcal, e crianças. Um núcleo de apenas husband, assim como iyawo, que tem o sig-
uma família na qual a união conjugal é o nificado de noiva, ser traduzida como wife).
Ainda segundo Oyewumi, outros estudos ring a child’s place in the family. Thus, these
sobre os laços de parentesco em determi- relationships are primary, privileged and
nadas formações sociais africanas mostram should be protected above all others. In ad-
dition, omoya underscores the importance
que – ao contrário da família nuclear, mode-
of motherhood as institution and as expe-
lo ocidental europeu que tem o centro con- rience in the culture (ibid., p. 6-7).
jugal como princípio (uma dupla) – a linha-
gem é que é considerada a família, como na Portanto, para Oyewumi, a interpreta-
região da África Ocidental pesquisada pela ção das realidades africanas baseada nas
antropóloga Niara Sudarkasa, citada por afirmações ocidentais da oposição homem/
Oyewumi. “The lineage is a consanguinally mulher e no decorrente privilégio masculi-
-based family system built around a core no muitas vezes produz distorções na aná-
of brothers and sisters – blood relations” lise e na linguagem utilizada, já que as ca-
(ibid., p. 6). Nas palavras de Sudarkasa: tegorias sociais possuem padrões distintos.
A autora adiciona alguns outros exemplos
upon marriage, couples did not normally
sobre como a categoria “gênero” é significa-
establish separate households, but rather
joined the compound of either the bride or da em formações sociais africanas distintas:
groom, depending on the prevailing rules na sociedade Igbo, há as filhas masculinas,
of descent. In a society in which descent is e os maridos femininos; na sociedade Sho-
patrilineal, the core group of the compound na, algumas mulheres possuem status “pa-
consisted of a group of brothers, some sis- triarcal”, e são isentas de realizar trabalho
ters, their adult sons, and grandchildren.
“de mulheres”; na sociedade Akan, o porta-
The core of the residential unit was compo-
sed of blood relatives. The spouses are con-
voz do chefe é referido como sendo “a espo-
sidered outsiders and therefore not part of sa do chefe”, mesmo quando o chefe é uma
the family (1996: 81). (SUDARKASA, apud mulher (reconhecida como o marido) e seu
OYEWUMI, 2004, p.6). porta-voz um homem (“this understanding
clearly confounds the Western gendered
No caso dos iorubás, os filhos de uma
unsderstanding that the social role ‘wife’ is
mesma mãe são agrupados como Omoya, os
inherent in the female body” [ibid., p. 7]);
“irmãos de ventre”, e não são generizados.
no reino do Daomé, os reis também “espo-
Oyewumi explana:
savam” homens – estabeleciam laços com
because of the matrifocality of many Africa líderes talentosos e artistas proeminentes
family systems, the mother is the pivot arou- baseados no idioma do casamento.
nd which familial relationships are delinea-
As informações apresentadas por Oye-
ted and organized. Consequently, omoya is
the comparable category in Yoruba culture wumi carregam o entendimento que a ca-
to the nuclear sister in white America cultu- tegoria “mulher” deve ser vista sob novas
re. (…) Omoya also transcends households; análises, privilegiando as categorias das
because matrilateral cousins are regarded próprias sociedades africanas. Estes exem-
as womb-siblings and perceived to be closer plos africanos apresentam vários desafios
to one another than siblings who share the
aos universalismos dos discursos de gênero
same father and who may even live in the
same household. Omoya locates a person
feministas, pois as categorias africanas são
within a socially recognized grouping and altamente situacionais e não determinadas
underscores the significance of the mother- por um corpo específico e fixo. Para a auto-
child connection in delineating and ancho- ra, em muitas culturas africanas o idioma de
countries. But this labour had remained in- etária e de classe, ao contrário da crítica feita
visible; it provided a lot of the subsistence pelas pesquisadoras e pesquisadores africa-
basis on which male-labour could emerge. It nos e do Terceiro Mundo: “whether Marxist
subsidized the male wage (Deere, 1976). But
or not, many of them still consider women’s
now something else was meant, ‘integrating
women into development’ means, in most liberation as having arise from a false Eu-
cases, getting women to work in some so- rocentric feminist debate transferred to the
called income-generating activities, that is, continent via political and economic libera-
to enter market-oriented production, it does tion” (ibid., p.45). A análise de gênero não
not mean that women should expand their é um estudo das mulheres como um grupo
subsistence production, that they should try social tampouco como um grupo homogê-
to get more control over land and produce
neo; trata-se especialmente da análise de
more for their own consumption, more food,
more clothes, etc…, for themselves. Income grupos sociais como entidades sexualmente
in this strategy means money income. And investidas, que através dessa variável aces-
money income can be generated only if wo- sam diferentemente recursos, conhecimen-
men produce something which can be sold to, tecnologias, poder social e familiar, etc.,
in the market. As purchasing power among afirma Sow.
poor Third World women is low, they have
A análise de gênero, portanto, alinha-
to produce something for people who have
se bem a uma abordagem militante, afirma
this purchasing power. And such people live
in the cities in their own countries, or they Sow, pois o reconhecimento das desigualda-
in the western countries. This means that des de gênero carrega consigo, inseparavel-
the strategy of integrating women’s work mente, a necessidade de transformá-las.
into development also amounts to export-
It assumes that we recognize not only ine-
or market- oriented production. Poor Third
quality, but its inherently social nature as
World women produce not what they need,
well. Men and women are the products of
but what others can buy (Mies 1986:118).
their culture, their values and their history.
(SOW, 1997, p. 44).
As Simone de Beauvoir wrote more than
A seguir, no seu artigo, Fatou Sow traz fifty years ago, ‘We are nort born women,
we become then’ (De Beauvoir 1942). This
uma definição de gênero da historiadora
remark is equally applicable to men. (ibid.)
branca estadunidense Joan Scott (gênero
é “the fundamental relation between two Sow chama a atenção para o fato que as
proposals: gender is an integral part of so- relações entre os seres humanos são sempre
cial relations based on perceived diferences baseadas em disputas de poder, construídas
between the sexes, and gender is one of the sobre autoridade, conflito, negociação e diá-
first ways of signifying power relations” logo. Mas que, seja no Sul ou no Norte, as
[Scott apud SOW, 1997, p. 45]), e notamos mulheres tendem sempre a ter relações de-
que as feministas negras dos Estados Uni- siguais com os homens. Nesse ponto do tex-
dos não aparecem em seu texto em referên- to, Sow volta a tratar sobre as questões que
cias ou comentários. envolvem as mulheres dentro do quadro dos
A socióloga senegalesa faz a defesa dos projetos de desenvolvimento, questionan-
princípios das teorias feministas, afirmando do se os planos e planificações levaram em
que as análises de gênero não rejeitam ou- consideração as relações sociais e desiguais
tras variáveis, tais como o contexto históri- entre homens e mulheres e se contribuíram
co, econômico e político, a pertença cultural, para efetivar as mudanças necessárias. A au-
tora afirma que “we know that the biggest as hortas ‘de mulheres’ e as áreas irrigadas
criticismo has rightly been the need to re- ‘dos homens’. As primeiras, mesmo com os
construct the cultural models of the African esforços das organizações de ajuda, não se
beneficiam dos mesmos equipamentos e
tradition” (ibid., p. 46), mas não explana
treinamentos das últimas. Isto leva a uma
sobre o que seria e como seria essa “recons- inefetividade e baixa produtividade notórias
trução”. (ibid., p. 51).
Sow repete que a pesquisa com análise
de gênero não escapa de ser uma pesquisa O acesso a terra é uma questão central,
compromissada, com um objetivo político, pois ele determina o status social e o padrão
e que as análises de gênero revelam os me- de vida das comunidades rurais, para quem
canismos de dominação que pesam sobre as a terra é a principal fonte de renda e subsis-
mulheres e as armam com ferramentas para tência, explica Sow. A questão da proprieda-
lutar contra a opressão. Uma de suas críticas de de terra está sempre presente, pois nunca
é contra a característica sexista e viricêntri- antes o continente africano foi tão envolvido
ca historicamente presente nos campos da por projetos de desenvolvimento quanto no
ciência e do conhecimento. período a que a socióloga se refere, com a in-
Nas zonas rurais, Sow chama a atenção, tervenção de empresas ligadas a agricultura,
um dos problemas principais está no fato de reflorestamento, pecuária, energia, constru-
que “são homens falando com homens”: os ção de barragens, programas de segurança
técnicos, os agricultores e os trabalhadores alimentar, entre outros. No caso das mulhe-
rurais, “que ignoram ou dificilmente consi- res, o acesso a terra ainda depende das rela-
deram o impacto das posições de gênero nos ções de autoridade e subordinação no meio
seus estudos e atividades práticas” (ibid.). familiar (ibid., p. 52-53). O papel das mu-
Precisa-se de “uma dose de consciência de lheres nas questões agrárias é preeminente,
gênero” nas práticas para o desenvolvimen- afirma Sow, mas “suas funções são obscure-
to, para que, inclusive, os projetos obte- cidas pela organização hierárquica nas re-
nham sucesso. Sow novamente ressalta que lações de gênero no interior do seu núcleo
os núcleos familiares (households) chefia- familiar” (ibid., p. 54).
dos por mulheres aumentam cada vez mais, Sow encaminha sua análise para o final,
também nas zonas rurais, em função do exô- reafirmando o quanto as análises de gênero
do masculino crescente na época. “Quantos renovam os debates em muitas áreas, e de
projetos rurais falharam em decorrência do forma especial no debate sobre democracia.
papel dos sexos na produção, especialmente Quando toca no ponto dos direitos huma-
nos setores predominantemente femininos, nos, a autora ressalta uma das mais “sensí-
ter sido ignorado”, questiona a socióloga? veis questões” que afetam as mulheres, que
(ibid., pp. 48-49). o é controle do corpo, da sexualidade e da
Apesar das pesquisas mostrarem que suas fertilidade. “O poder masculino ainda resi-
condições de vida permanecem as piores de de largamente no controle e apropriação da
todos os índices sociais, as mulheres estão fertilidade das mulheres”, afirma Sow (ibid.,
tendo cada vez mais iniciativas que resistem p. 56). As mulheres, no continente africano,
ao sistema de dominação, afirma Sow. En- não conseguirão controlar o número de nas-
tretanto, há diferenças explícitas, como por cimentos “enquanto as pressões culturais,
exemplo, as que se podem notar entre religiosas, ideológicas e políticas continua-
Resumo
São Paulo vivencia uma presença crescente da migração africana nas últi-
mas décadas, notadamente de mulheres. A vida econômica e a dinâmica das
trocas cotidianas, constituem os eixos da análise de quatro narrativas, cons-
truídas por meio da etnografia, entrevistas e convívio em situações do coti-
diano, principalmente em espaços de trabalho. A discussão do fazer etnográ-
fico configurou-se como elemento norteador importante do trabalho. As suas
narrativas revelam a capacidade de agenciamento em ambientes novos, suas
atividades ganham sentidos e valores plurais, apesar dos desafios e das ten-
sões que se apresentam. Na construção de nova cotidianidade vão encon-
trando recursos, acionando redes e criando estratégias para enfrentamento
de dificuldades, fazer frente a necessidades financeiras e para produzirem
novos espaços de pertencimento. A dificuldade da comunicação na língua
portuguesa, a xenofobia, o racismo, somam-se aos incontáveis entraves bu-
rocráticos da regularização migratória, são, igualmente, vivenciados.
Palavras-chave: Migração africana; Trabalho; Mulher.
Abstract
ETHNOGRAPHIC NARRATIVES WITH AFRICAN WOMEN: HUMAN
ACTIVITY AS ECONOMIC POSSIBILITIES
São Paulo experiences an increasing presence of African migration in the last
decades, especially of women. The economic life and the dynamic of the daily
exchanges, they constitute the axes of the analysis of four narratives. These
were built through interviews and socializing in everyday situations, espe-
cially in workspaces. The discussion of ethnographic work has become an
important guiding element of the work. Their narratives expose the capaci-
ty for agency in new environments, their activities get plural meanings and
values, despite the challenges and tensions. In the construction of a new daily
life, they find resources, operate networks and create strategies to face the
challenges and to produce new spaces of belonging. The difficulty of commu-
nication in the Portuguese language, xenophobia, racism and bureaucratic
problems in migratory regularization, are also experienced.
Keywords: African migration; Work; Woman.
O presente artigo discute a vida econômica Este trabalho apoia-se em reflexões ela-
e a dinâmica das trocas cotidianas de mu- boradas no contexto da antropologia e da
lheres africanas que escolheram São Paulo etnografia e na escuta culturalmente sensí-
para residir nos últimos anos. No contexto vel (OLIVEIRA, 2000; GONÇALVES; MAR-
da migração africana contemporânea no QUES; CARDOSO, 2012). A pesquisa em
país e na cidade, essas mulheres desenvol- campo é carregada de tensões e incertezas,
vem atividades e trabalhos diversos, recon- exigindo, então, grande atenção a esses ten-
figurando suas trajetórias e dando novos sionamentos, desafios e contradições. Por-
sentidos aos seus fazeres diversos. O traba- tanto, faz-se necessário que a perspectiva e
lho desenvolveu-se por meio de pesquisa de os processos estejam colocados e explicita-
campo em percursos etnográficos com qua- dos, pois, uma das tarefas principais é supe-
tro narrativas dessas mulheres. 1 Os crité- rar a ideia de que a metodologia de pesquisa
rios fundamentais eram que essas mulheres se resume a procedimentos de análise dos
fossem provenientes de países africanos e dados. O desafio amplia-se na complexida-
que estivessem exercendo alguma atividade de da vivência do campo e na necessidade
econômica na cidade de São Paulo. Assim, o
de ir além dessa racionalidade imposta pelo
estudo teve base na observação, em entre-
pensamento redutor, mostrando a riqueza e
vistas abertas, conversas, acompanhamento
a potencialidade da pesquisa etnográfica.
e convívio em situações diversas do cotidia-
A prática e a experiência etnográfica
no e de trabalho das mulheres. A dinâmica
são processos fundamentais do trabalho de
estabelecida com cada uma delas foi cons-
campo (MAGNANI, 2009). Planejar, orde-
truída conjuntamente, em processos e mo-
nar e coordenar as etapas do campo, mas
mentos diferentes e os locais das conversas
também o imprevisto, o problema, a surpre-
e dos encontros, assim como os assuntos e
sa, são ações inerentes à etnografia. O cam-
temas discutidos com cada uma delas foram
po constitui-se de experiências e vivências
sendo negociados e construídos ao longo do
múltiplas, em etapas sobrepostas de ma-
processo.2
neira espiral, descontínua e em processos
1 Trabalho de dissertação do Programa de Pós-
constantes (SILVA, 2006). Fundamenta-
Graduação em Terapia Ocupacional da Univer-
sidade Federal de São Carlos. A pesquisa integra se a partir da sensibilidade do pesquisador
uma construção teórico-prática com o apoio da para suas indagações, transcendendo práti-
Casa das Áfricas — Núcleo Amanar, que, jun-
tamente com o Projeto Metuia/Terapia Ocupa- cas simplistas de entrevistas e observações,
cional — Universidade de São Paulo (USP), tem numa construção relacional com a temática
conduzido, no campo da cultura, da educação e
e as pessoas e no diálogo com pressupostos
dos direitos humanos, diferentes iniciativas de
estudos, extensão universitária, formação e de- teóricos.
bates sobre mobilidade humana, diversidade O trabalho de campo em contextos ur-
cultural, artes e migração africana em São Paulo.
2 Os cuidados éticos foram apresentados e negocia- banos é outra dimensão metodológica que
dos ao longo do processo de trabalho do mestrado. merece ser destacada, pois se propõe uma
leitura reflexiva sobre os arranjos singulares do campo, para as ambiguidades dos pro-
das interlocutoras em sua dinâmica cotidia- cessos de comunicação envolvidos. Foram
na que dialogam com o cenário da cidade de levados em consideração, particularmente,
São Paulo. Magnani (2002) discorre sobre a os debates da antropologia interpretativa a
etnografia no contexto urbano contemporâ- partir de Geertz (1989) e o lugar do concei-
neo, propondo outra possibilidade de pensar to de descrição densa também exposto por
a cidade: identificá-la e a refletir a partir do Geertz (1989), para o qual a compreensão
que chama de olhar de perto e de dentro, em dos fenômenos sociais deve partir de situa-
contraposição ao olhar de fora e de longe, ções definidas para trabalhar a própria con-
que desconsidera e fragmenta os atores so- dição da/do pesquisador/pesquisadora e,
ciais dentro da complexidade das metrópo- via interpretação, elaborar a compreensão
les contemporâneas. Essa outra proposição do fenômeno em estudo por meio das inter-
pressupõe a existência de arranjos, redes, pretações que as pessoas constroem de suas
trocas e pontos de encontros no contexto do experiências. Para ele as descrições etno-
cotidiano da cidade. gráficas são “construções de construções”,
O autor propõe acompanhar esses ato- pois somente o “nativo” faz interpretação
res na sua vida cotidiana em diálogo com as da experiência. Por isto, este conhecimen-
configurações do cenário urbano em cons- to assume-se como construído e modelado
tante mudança (como no caso da migração, (GEERTZ, 1989, p. 25-26).
das minorias excluídas e dos diferentes gru- Desta maneira, há no presente estudo
pos étnicos e religiosos, por exemplo), para, uma forma de análise que interpreta o fluxo
a partir daí, apreender os diferentes arran- do discurso social. Ou seja, das narrativas
jos reconfigurados nessa relação a partir das das mulheres interlocutoras e aquelas que,
esferas múltiplas da vida: trabalho, religião, em primeira mão, conferem sentido às suas
cultura, participação política (MAGNANI, experiências. Neste caminho, esta pesquisa
2002). A partir disso, cria categorias para incorpora a reflexão e a natureza da presen-
entender e possibilitar uma análise reflexiva ça da pesquisadora/autora ao próprio méto-
de como se dá essa dinâmica a partir das ca- do, assume a importância dos detalhes para
tegorias — pedaço, mancha, trajeto, circui- a qualidade da interlocução dos fatos sociais
to — como os atores sociais relacionam-se, a partir da observação e da elaboração do
dialogam e apropriam-se dos espaços cole- trabalho de campo (OLIVEIRA, 2000).
tivos. É fundamental pensar em como o ce- Outra referência teórica organizadora da
nário urbano da cidade de São Paulo dialoga dissertação é Hannah Arendt (2014), sobre-
com os processos individuais e coletivos das tudo para definir os sentidos dos processos
interlocutoras. Cada uma constrói uma re- econômico-sociais adotados que retoma o
lação e uma dinâmica a partir da percepção conceito de “economia de vida”, para traba-
e sentido que dá aos seus pedaços, trajetos lhar a vida econômica das mulheres africa-
e circuitos, ligados seja ao trabalho, seja ao nas em São Paulo. No contexto deste traba-
lazer e à religiosidade, seja ainda a outras di- lho, a proposta é discutir a vida econômica
mensões. dessas mulheres africanas enquanto produ-
Para a dimensão da análise, propõe-se ção de sentido, protagonismo e emancipa-
uma interlocução com as reflexões da antro- ção, em que a organização de suas atividades
pologia para a reflexão sobre a construção gera outras dimensões e potencialidades, e
novas inscrições de vida, onde “um ambien- trabalho, de novas oportunidades e desafios.
te de trabalho polifônico cria valor social” A cidade de São Paulo tem como desafio o
(GHIRARDI, 2012, p. 19). diálogo com novas perspectivas da mobili-
A vida econômica das mulheres africanas dade humana, que interrompem a lógica de
forma importante elemento articulador das uma visão simplista e carregada de estereó-
redes de relações, pois em torno do trabalho tipos relacionados à pobreza e miséria da
e das trocas econômicas também se cons- África, e se voltam para uma abordagem que
troem e se fortalecem relações de pertenci- dialogue com a mobilização política, o pro-
mento, agenciamentos coletivos, trocas so- tagonismo e cidadania.
ciais e de suporte. A premissa inicial da pes- Os processos migratórios no Brasil e na
quisa é que os processos econômico-sociais cidade de São Paulo sempre ocorreram de
devem ser inseridos numa dimensão social, maneira bastante diversa, em função da
articulada à dimensão cultural sensível à di- complexidade da globalização e do cená-
ferença (de gênero, raça, geração, etc.) no rio geopolítico e econômico internacional e
bojo da compreensão e do fazer cotidiano. brasileiro. Serrano (2011) revela que, além
Essas mulheres inserem-se no panorama da migração motivada por fatores econô-
atual da migração africana contemporânea micos, presencia-se também a mobilidade
na cidade de São Paulo, que é marcada por para o Brasil de trabalhadores qualificados,
uma multiplicidade de características. São estudantes de graduação e pós-graduação
diversas nacionalidades, arranjos coletivos através de convênios e cooperação interna-
(nacionalidades, religiosas, econômicas) em cional, pessoas vítimas de tráfico humano,
diálogo com os desafios que a cidade coloca, solicitantes de refúgio e migrantes econô-
como questões da política migratória, servi- micos, entre outros. Nesse sentido, tanto
ços especializados, possibilidades econômi- o Brasil quanto a cidade de São Paulo têm
cas, trocas culturais. buscado diferentes formas de dialogar com
essa nova dinâmica cultural, econômica e
Migração africana e a social, já que a cidade se tornou importan-
presença da migração te destino de fluxos migratórios interna-
cionais.
feminina na cidade de São O Brasil passou a receber grande quan-
Paulo tidade de pessoas oriundas dos conflitos
A migração africana no Brasil tem ocorri- pós-independência dos países africanos a
do em várias dimensões e tem tido cada vez partir da década de 1970 e 1980, e em maior
mais visibilidade nas pesquisas acadêmi- escala, a partir dos anos 2000. O agrava-
cas (KALY, 2001; FRANCALINO; PETRUS, mento das crises econômicas mundiais, o
2008; MUNGOI, 2012), nos meios de comu- endurecimento das fronteiras dos países
nicação, em expressões artísticas e culturais, desenvolvidos, a busca por trabalho, novas
na participação desses migrantes nas esfe- oportunidades e qualificação profissional e
ras públicas, movimentos sociais e em tan- acadêmica também foram fatores que im-
tas outras dimensões inseridas na sociedade pulsionaram essa mobilidade. Entre 2000 e
brasileira (SUBUHANA, 2009; SERRANO, 2012, o número de africanos em situação re-
2011; TELES, 2013; RODRIGUES, 2014). As gular no país teve um aumento de 30 vezes
pessoas têm buscado inserções de estudo, (de cerca de mil para 31 mil), provenientes
de 48 países, a maioria de Angola, Cabo Ver- dos imigrantes e assim, fortalecer suas re-
de e Nigéria.3 des sociais e a inserção social na sociedade
Ester Rodrigues (2014), em sua disserta- brasileira.
ção de mestrado, faz uma análise do proces- Segundo dados da Organização Interna-
so de imigração contemporânea de africa- cional para as Migrações (ORGANIZAÇÃO
nos no Brasil, sob a perspectiva dos direitos INTERNACIONAL PARA AS MIGRAÇÕES,
humanos e dos grandes veículos de comu- 2009), entre 1990 e 2000 a maior parte do
nicação impressos. Ressalta que apesar do fluxo migratório internacional concentrava-
aumento considerável do fluxo de africanos, se nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro,
muitos inclusive trabalhando e contribuin- sendo esta última com concentração expres-
do para o desenvolvimento do país, isso não siva de africanos (37% dos imigrantes). O
resultou necessariamente em políticas espe- mesmo órgão apontava que em relação aos
cíficas, nem na garantia de direitos e inser- refugiados, em 2009 havia cerca de 4 mil
ção social dos mesmos. A autora debruça-se refugiados reconhecidos pelo governo bra-
sobre as notícias veiculadas em jornais de sileiro, sendo que os africanos compunham
grande circulação em algumas cidades bra- 65,3% desse total.
sileiras sobre a temática da imigração afri- Assim, o panorama da migração africa-
cana no país. É possível perceber que na na contemporânea na cidade de São Paulo
maior parte das vezes noticiam-se a vinda de revela-se em uma pluralidade de configu-
imigrantes africanos em situação irregular, rações. Transitando nos espaços urbanos,
muitos através de porões dos navios ou de coletivos, movimentos sociais de direitos
fronteiras clandestinas. Além disso, é visível humanos dos imigrantes e pelos vários ce-
como os meios de comunicação reforçam nários econômicos e culturais, as mulheres
ainda mais o racismo, a violência e a não migrantes, principalmente as africanas, fo-
aceitação dos africanos no país, associando ram ganhando mais e mais interesse. Além
a vinda dessas pessoas a prejuízos às cidades disso, os cenários multiculturais da cidade
brasileiras. de São Paulo expandem-se com a migração
Concomitantemente, também encontra- e, concomitante ao fortalecimento dos mo-
mos na literatura acadêmica, nos meios de vimentos de protagonismo das mulheres,
comunicação, projetos e grupos ligados às ganha destaque nos debates acadêmicos e
universidades e nos vários espaços sociais, no cenário social, cultural e econômico, o
relatos de experiências de projetos que pro- trabalho de mulheres africanas.
curam mudar essa ótica para então fortale- Atualmente na região central da cidade
cer a identidade cultural, inserção social e o é notória a uma presença de comerciantes
protagonismo dos imigrantes africanos no de diversas regiões africanas. Nas imedia-
país. Francalino e Petrus (2008), por exem- ções do bairro da República há lan houses
plo, relatam a experiência da criação de um que oferecem serviços de internet e telefonia
projeto coletivo com congoleses e angolanos para responder à necessidades de comuni-
no Rio de Janeiro, com objetivo de preser- cação ágil com diversos países africanos a
var a identidade cultural e a tradição oral preços acessíveis. Encontramos, também,
3 Cf.http://noticias.terra.com.br/brasil/imigra- alguns restaurantes especializados em co-
cao-africana-no-brasil-aumenta-30-vezes-en- mida típica africana. No comércio de rua da
tre-2000-e-2012,bcdedc77d62e5410VgnCLD-
2000000dc6eb0aRCRD.html praça da República, juntamente com os ven-
vos e iniciativas têm ganhado destaque na res humanos imaginam e arriscam pelo seu
programação cultural e nos veículos de co- próprio futuro. Sem esta dimensão de futuro
municação na cidade, dando maior visibi- e de imaginação, não se pode de modo ne-
nhum inscrever o nosso nome próprio ou ar-
lidade ao debate da questão migratória, da
ticular a nossa própria voz (MBEMBE, 2010,
mulher e da África. s/p).
Assim, é nessa configuração da cidade
em que as mulheres africanas deparam-se. A mobilidade não tem sido feita somente
Cenário esse permeado de problemáticas, por necessidades ou motivos de guerras. O
possibilidades, demandas e desafios inscri- autor chama a atenção para outras buscas e
tos na dinâmica do contexto urbano com inserções. A dimensão imaginativa dos seres
que elas irão dialogar e criar novos arranjos humanos compõe uma das bases da mobili-
de trabalho, cotidiano, relações e sentidos dade, em que sonhos, desejos e intenções são
múltiplos para suas vidas. Cada uma das motores da criatividade e das reinvenções
interlocutoras da presente pesquisa intera- das atividades cotidianas e das relações de
ge com esse espaço urbano, com diferentes troca que se estabelecem. O autor faz impor-
atores sociais, demandas múltiplas e respos- tante reflexão crítica sobre a falsa existência
tas às dificuldades encontradas, produzindo de uma única e simplista identidade africa-
trajetórias e narrativas singulares nesses na e a necessidade de superação da lógica
processos diversos. da igualdade e da neurose pela vitimização,
Assim, a temática da África, na perspec- para a possibilidade de formas culturais di-
tiva deste trabalho assume outra dimen- versas dentro da mesma humanidade e den-
são, saindo do lugar-comum de discussão tro de uma relação de alteridade (MBEMBE,
do subdesenvolvimento, do tradicional e de 2001, p. 183). Assim, africanos e africanas
violência e miséria, para um olhar de valo- inventam modos singulares, múltiplos e di-
rização, de contribuição cultural, artística e versos de se inscrever no mundo.
intelectual. Achille Mbembe, pesquisador, Diversos órgãos internacionais apontam
historiador e cientista político camaronês, para um processo de feminização da mi-
faz uma discussão sobre arte contemporâ- gração. Segundo dados da Organização In-
nea e reconhecimento cultural em África, ternacional do Trabalho (ORGANIZAÇÃO
que podemos tomar emprestado para essa INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2008),
reflexão: as mulheres correspondem a 51% das mi-
grações internacionais, podendo percorrer a
Para que a África do Sul atinja plenamente o
viagem com cônjuges, sozinhas, em busca de
seu potencial, o país necessita de se imaginar
como uma nação “afriopolitana” precursora oportunidades, ou para se reunir à sua famí-
de uma versão da modernidade africana já lia. Se antes as mulheres migravam para se
visível na maior parte dos modelos artísticos juntar às suas famílias, atualmente há gran-
e culturais africanos contemporâneos. Do de parcela que migra por motivos econômi-
mesmo modo, o país deve distanciar-se de cos e compõe as grandes forças motrizes e
uma visão da cultura como coisa pertencen-
pioneiras do processo de migração familiar.
te ao passado, limitada apenas aos costumes
e às tradições, aos monumentos e museus.
Embora a migração feminina tenha gran-
Precisamos de tomar consciência de que a de importância em termos quantitativos
cultura não é uma outra forma de “serviço (ASSIS, 2007) e também devido à remessa
de abastecimento”, mas o modo como os se- de fundos financeiros aos países de origem e
à movimentação econômica que gera, perce- irregular, acabam ocupando cargos desqua-
be-se ainda a desvalorização da mulher mi- lificados e não condizentes com sua forma-
grante, principalmente em desqualificação ção educacional e profissional (ORGANIZA-
profissional e de gênero, baixa remuneração ÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO,
salarial, condições precárias de trabalho e 2008). A chamada “fuga de cérebros” é uma
invisibilidade do fenômeno no âmbito dos questão importante nos processos migrató-
direitos humanos e no cenário mundial. É rios, onde há perda de oportunidade de de-
sabido que as mulheres migrantes são cons- senvolvimento tanto para o país de origem
tantemente expostas ao tráfico de pessoas quanto do país de destino. Os fenômenos
4
, à exploração sexual e ao aliciamento para contemporâneos da globalização desenca-
o tráfico de drogas internacional (BAILEY, deiam necessidades econômicas e sociais de
2013). mobilidade humana e impossibilitam o de-
Ainda é bastante recorrente a desquali- senvolvimento econômico e social também
ficação profissional e salarial das mulheres nos países de origem.
(DUTRA, 2013), que são muitas vezes aloca- A migração feminina foi um processo
das em postos de trabalhos irregulares, sem invisível e de pouca repercussão nas ciên-
respaldo de legislação trabalhista e com sa- cias sociais, sendo inserido na discussão
lários incompatíveis com a função e a carga da migração sem qualquer atenção para
horária correspondentes. Quando se encon- questões específicas de gênero, embora em
tram em situação migratória irregular, aca- alguns países, como os Estados Unidos, a
bam ficando ainda mais expostas às viola- população já era composta em sua maioria
ções de direitos e exploração. Há ainda uma de mulheres imigrantes de 1930 a 1979, por
associação entre o trabalho das mulheres exemplo (ASSIS, 2007). A migração é majo-
imigrantes e profissões ligadas ao gênero, ritariamente abordada sob o ponto de vista
como trabalhadoras domésticas, de cuida- masculino e foi somente a partir dos anos
dos e de limpeza. Como muitos destes postos 1960 e 1970, principalmente com o advento
de trabalho pertencem ainda ao mercado in- dos movimentos feministas, que os estudos
formal, as mulheres ficam mais vulneráveis sobre migração começaram a ser inseridos
e são privadas de direitos básicos. Ainda so- nas pautas específicas de gênero. A partir
bre a desqualificação profissional, dado que de então, novos questionamentos e debates
muitas mulheres ainda migram em situação foram colocados para se compreender me-
4 A expressão “tráfico de pessoas” significa o recru- lhor os fluxos migratórios, além da ques-
tamento, o transporte, a transferência, o aloja- tão específica da mulher migrante (DINIZ,
mento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo
2009), em que a migração feminina ganha
à ameaça ou uso da força ou a outras formas de
coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso destaque a partir dos estudos e discussões
de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou sobre gênero (história da família e suas di-
à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefí-
cios para obter o consentimento de uma pessoa ferenciações, participação das mulheres
que tenha autoridade sobre outra para fins de nas universidades e movimento de libera-
exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a ção, entre outros).
exploração da prostituição de outrem ou outras
formas de exploração sexual, o trabalho ou servi- A migração feminina ganhou força ex-
ços forçados, escravatura ou práticas similares à pressiva no contexto da migração contem-
escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
porânea principalmente a partir da segunda
ato2004-2006/2004/decreto/d5017.htm. metade do século XX. Assis (2007) refor-
São Paulo. Tem realizado trabalho impor- Ao ouvir Melanito relatar passagens da sua
tante de divulgação da culinária e da cultura história, de sua vinda à cidade, da abertura
africanas através dos veículos de comunica- do restaurante, sua fala vem carregada de
ção e de participação em feiras culturais. muita nostalgia, exprime sentimentos de
O Biyou’z é um restaurante especializado esforço, persistência e lembranças de sua
em cozinha camaronesa, além de oferecer trajetória. Fala sempre de momentos de
pratos de outras regiões africanas, localiza- grandes dificuldades, desafios e incertezas
do no centro da cidade, entre os bairros da para conseguir suas conquistas.
República e Campos Elíseos. Há nas ime- Inicialmente frequentado quase que ex-
diações do restaurante grande circulação de clusivamente por africanos, a virada na vida
africanos, turistas e imigrantes de diversas econômica de Melanito veio com a Copa do
origens e a região configura-se atualmente Mundo ocorrida na África do Sul, em 2010
como referência no cenário gastronômico (lembrando que o restaurante havia sido
de São Paulo. Além de restaurantes tradi- aberto em 2008). Nessa época, o tema da
cionais, nos últimos anos vários outros sur- África estava em destaque nos grandes veí-
giram como os especializados em culinária culos de comunicação devido ao evento es-
peruana, árabe e colombiana, já sendo noti- portivo mundial. O Biyou’z recebeu desta-
ciados em diversos veículos de comunicação que na mídia e acabou por se tornar referên-
da cidade. cia no cenário gastronômico atual da cidade,
Melanito trabalhava em banco no seu marcado por inovações constantes.
país e veio para Brasília para passear, gos- Embora o restaurante ainda seja fre-
tou da cidade e ficou na cidade por cerca de quentado por muitos africanos e tenha so-
quatro anos. Na época, trabalhava como ca- mente funcionários africanos, Melanito pa-
belereira, começou a ajudar no salão de uma rece estabelecer relações importantes com
amiga conterrânea e depois passou a ter outros universos que não os da rede de re-
suas próprias clientes, formadas basicamen- lações referentes à migração: amiga brasi-
te por familiares de diplomatas do Senegal, leira, taxista, fornecedores e compradores,
do Congo, da Nigéria e outros países, e então clientes, vizinhos, em sua grande parte são
passou a atendê-las pessoalmente, em suas brasileiros. Pensando na rede de relações de
residências. interdependência de Elias (1994), Melanito,
Veio então para São Paulo durante suas ao longo de sua trajetória, estabeleceu redes
férias, para passear, conta que gostou mui- múltiplas de extrema importância para seu
to da cidade e que constatou que a percep- projeto de vida, e foi sendo reconhecida e
ção sobre o negro e sobre o continente afri- valorizada por esses laços.
cano era bastante equivocada. Além disso, Além disso, relata que seu cotidiano gira
percebeu também que aqui na cidade ha- em torno do restaurante e seus desdobra-
via uma variedade de restaurantes: italia- mentos. Pouco circula em outros espaços
nos, franceses, japoneses, exceto africanos. que não sejam em atividades voltadas ao
Quis abrir um negócio e ainda criar inicia- trabalho. Tenta frequentar sua igreja re-
tivas em que pudesse falar da beleza e das gularmente e sempre está no restaurante.
culturas africanas. Voltou para Brasília, Como este funciona todos os dias da sema-
trabalhou e reuniu dinheiro suficiente para na initerruptamente e ela mora ao lado, não
sua vinda definitiva para a capital paulista. consegue tirar um só dia de folga ou deixar
Uma das minhas primeiras incursões é abordada por outras mulheres. Sempre
pelo trabalho de campo foi no centro da ci- está atenta ao movimento da galeria, ou so-
dade de São Paulo, local que historicamente mos interrompidas por olhares e conversas
sempre comportou múltiplas configurações curiosas.
culturais, econômicas e sociais. Caminhar Apoliana é do Congo, está há quase seis
pelo centro é deparar-se com grandes edi- anos no Brasil e há cerca de cinco trabalha
fícios, construções históricas, pontos turís- na Galeria. Cursou Pedagogia na sua cidade
ticos, intenso comércio de rua, e também natal e então conseguiu uma transferência
pessoas apressadas, executivos, turistas, am- para cursar Farmácia na Universidade Fede-
bulantes, pessoas e crianças em situação de ral do Pará (UFP), em Belém. Ficou alguns
rua, migrantes. As imediações da República, meses por lá, mas não se adaptou e veio en-
concentra vários pedaços, manchas e circui- tão para São Paulo. Pretendia continuar os
tos (Magnani, 2008) por onde circulam as estudos aqui, acabou não conseguindo e en-
mulheres africanas: pequenas galerias, lojas tão começou a trabalhar de cabelereira por
telefônicas, espaços religiosos, restaurantes, uma necessidade econômica. O processo de
salões de beleza, comércios de rua. É nessa migração também ocorreu paralelamente à
interlocução que se encontra a Galeria Pre- vinda para o Brasil do seu marido, que man-
sidente, talvez um dos principais locais de tém uma função religiosa importante.
referência da comunidade africana em São Nunca havia trabalhado com isso, e a vi-
Paulo. Logo no hall da entrada, há várias mu- vência que tinha com a questão da estética
lheres conversando ou tentando atrair clien- do cabelo eram experiências pessoais e de
tes para os salões, e também muitos homens família. Assim como Melanito na culinária
africanos, também conversando, esperan- e o cabelo de Apoliana, as referências cultu-
do outros chegarem, lojistas nas pausas do rais das suas atividades são também da co-
trabalho. Há salões de beleza, comércio de tidianidade, das relações familiares e cultu-
roupas típicas, restaurantes, bares, lojas de rais africanas. Desde então tem um salão de
produtos de beleza especializados em pen- beleza na Galeria Presidente, onde atende
teados afro, tranças, apliques, lojas de músi- turistas, brasileiros, africanos, homens, mu-
ca e de artesanato e temáticas hippies. Seus lheres e crianças, funcionando de segunda a
frequentadores são quase que em sua maio- sábado, em tempo integral.
ria africanos: homens, mulheres e crianças. Aqui, a migração assume diversas di-
As pessoas não fazem uso apenas para o co- mensões enquanto projeto de vida. Estudos,
mércio e trabalho, mas agenciam e articulam reuniões familiares e oportunidades de tra-
reuniões, vão para encontrar-se e conversar balho, a partir dos rearranjos que vão esta-
com amigos, para comer, resolver problemas belecendo-se na dinâmica da sua inserção
e pendências, buscar pontos de apoio. no país. A necessidade econômica é muito
A dinâmica da relação com Apoliana é intensa, mas Apoliana também consegue
um desafio. Aos poucos, estabelecemos uma dialogar com essa demanda a partir das
dinâmica onde quase todos nossos encon- necessidades e oportunidades do mercado,
tros ocorrem no saguão da galeria. Apoliana pois em São Paulo e no contexto da Galeria
então me conta um pouco de sua história, Presidente há grande demanda e visibilida-
mas a todo momento está atenta à movi- de quanto à estética afro. Nilma Lino Gomes
mentação da rua, ao fluxo das pessoas, ou (2003), em sua pesquisa etnográfica sobre
sente, na medida em que: “o opressor, pelo em seus vários espaços sociais, foi uma for-
caráter global e terrível da sua autoridade, ma de criar condições para apreender seus
chega a impor ao autóctone novas maneiras modos de organização cotidianos, suas de-
de ver e, de uma forma singular, um juízo mandas, projetos e desejos. Através dessas
pejorativo acerca das suas formas originais atividades da vida cotidiana, as pessoas
de existir” (FANON, 1980, p. 42). constroem e renovam sentidos e reformu-
Nas dinâmicas dos processos migrató- lam-se em modos de vida diferenciados,
rios, muitas vezes a percepção do outro é constituem ou ampliam redes sociais e afeti-
equivocada, a incompreensão é vivenciada, vas que viabilizam trocas e diálogos. Estabe-
os valores são distorcidos, xenofobia e ra- lecendo-se na movimentação da vida coleti-
cismo são presentes em diversas situações, va do novo cenário urbano de suas existên-
nas relações interpessoais, institucionais cias a vida cotidiana assume seu caráter de
e culturais. Mariama traz em seus relatos inteireza e plenitude.
algumas situações de preconceito, quando Assim, as atividades dão concretude à
certa vez, por exemplo, ao andar de táxi, o construção permanente da pessoa na histó-
motorista afirmou: “Africano no táxi, o Bra- ria, na sua própria história. De forma que,
sil está com crise, eles estão andando de em sua concretude há uma pluralidade de
táxi...”. Uma das questões de debate mais linguagens envolvendo tanto o mundo das
recorrentes nos eventos, reuniões e relatos artes, da culinária, do corpo, da estética. As
dos atores envolvidos na temática foram de atividades e fazeres experenciados pelas mu-
situações de preconceito, despreparo e des- lheres deste estudo circunscrevem espaços
conhecimento da sociedade brasileira para existenciais e criam significação que emer-
lidar com essa questão. Na mobilidade hu- gem da vida cotidiana de cada uma, produ-
mana, a confrontação da alteridade é colo- zindo contradições e emancipação, apon-
cada a todo momento, e há constantemente tando dificuldades e possibilidades econô-
a tensão do desafio da relação com o outro. micas, conflitos e protagonismo na luta pelo
Durante o trabalho de campo, escutei por reconhecimento social e expressivo.
várias fontes, alguns relatos de situações de Atividade aqui assume também uma di-
dificuldades para obter trabalho, despre- mensão criativa e criadora na vida de cada
paro em serviços de saúde e da assistência, uma das mulheres apresentadas, onde tra-
entraves de comunicação, baixa valorização zem seus conhecimentos, saberes e repertó-
profissional e desqualificação de gênero. rios e os reinserem na cidade de São Pau-
As dimensões culturais e existenciais da lo, (re) construindo significados outros. Os
atividade foram abordadas por Castro; Lima universos do cabelo e da estética, da comida
e Brunello (2001). As autoras inserem a ati- africana, da dança e da música são reinscri-
vidade humana no campo da compreensão tos e reelaborados em novas configurações,
cultural e da vida cotidiana, “onde os aconte- e encontram ressonância através das de-
cimentos cotidianos marcam a passagem do mandas e oportunidades que a cidade esta-
tempo, dão consistência à experiência exis- belece: cena cultural e artística em constante
tencial e singularizam” (CASTRO; LIMA; efervescência, polo gastronômico e turístico,
BRUNELLO, 2001, p. 49). Neste estudo, a valorização da cultura afro e visibilidade da
interlocução com observação e acompanha- questão migratória contemporânea, entre
mento do cotidiano das mulheres africanas tantas outras.
As atividades compõem-se nos vários ce- saberes das culturas africanas e aqueles dos
nários cotidianos de vida das pessoas, gru- universos culturais brasileiros.
pos ou comunidade em sua pluralidade cul- Neste sentido, os salões de beleza, os res-
tural, onde são mobilizadas para a inscrição taurantes e oficinas de culinária, os serviços
nos novos espaços existenciais, políticos e de de telefonia para países africanos, além da
criação de economia de vida. Elas são poten- venda de artesanato e objetos decorativos
cializadoras de horizontes e projetos de vida, são arranjos e possibilidades que criam na
de relações de trocas no contexto de novas cidade de São Paulo novas dimensões do
formas de economia e cultura. A atividade país: um Brasil que se molda a partir de novo
permanece um conceito intrinsecamente repertório sobre África. Ao criarem seus co-
inacabado e histórico, dotado de dimensões mércios e agenciamentos, as mulheres afri-
socioculturais e políticas complexas que po- canas dialogam com novas formas de traba-
dem ser apoios para a constante luta con- lho na cidade, veiculando, ao mesmo tempo,
tra as desigualdades e para a emancipação e inscrevendo seus modos de vida, experiên-
(BARROS; LOPES; GHIRARDI, 2002). cias culturais e linguagens. E por outro lado,
Os processos migratórios não se redu- as novas redes de trocas sociais constituídas
zem a deslocamentos geográficos, políticos exercem modificações profundas e ampliam
e econômicos, mas indicam, igualmente, as trocas e redes de trocas culturais da cida-
inúmeros significados e desdobramentos de. Esta se vê chamada a se repensar e criar
sociais, estéticos, religiosos, afetivos e rela-
novas possibilidades econômicas, permitir
cionais, e, portanto, culturais. Neles não se
outros pedaços de pertencimento, circuitos
envolvem apenas aqueles que migram, mas
(MAGNANI, 2002) e, enfim, novas confi-
provocam mudanças, encontros, tensões e
gurações relacionais e econômicas, além do
conflitos e novas possibilidades ampliadas
reconhecimento de outras diferentes orga-
de diálogos e interações humanas. Altera a
nizações da vida cotidiana (BARROS, 2015).
própria experiência da cultura que é, afinal,
Presenciamos na cidade de São Paulo
interculturalidade permanente.
essa multiculturalidade, que é permeada
Essa noção de abertura está no centro
por diversos processos: mobilidade huma-
do cosmopolitismo contemporâneo — e das
na, fortalecimento das periferias, movimen-
formas atuais de mobilidade — em suas di-
tos de luta por moradia, mobilização sobre a
mensões dos diversos e múltiplos arranjos
ocupação do espaço urbano, protagonismo
das atividades significativas, das expressões
da juventude, mulheres e população mi-
estéticas e criativas, do trabalho, das redes
grante. São alguns aspectos que remodelam
de relação que modelam constantemente a
cidade. As mulheres africanas presentes em e transformam a cidade.
São Paulo trazem suas histórias, maneiras
de percepção da vida, universos estéticos, Considerações Finais
conhecimentos linguísticos, além de formas A migração contemporânea, especificamen-
diferenciadas de relacionar-se e de compor te, tem emergido também de maneiras plu-
os arranjos familiares. Tais arranjos são, rais. Cabe aqui ressaltar que, apesar de to-
por sua vez, expressões de linguagens, tro- das as contradições e desafios já citados, a
cas culturais em diálogos que necessitam cidade tem vivenciado uma abertura a essas
encontrar passagens e conexões entre os novas possibilidades e ao diálogo intercul-
tural. Assim, restaurantes de diferentes tra- assim, preciso criar uma consciência e uma
dições gastronômicas tem surgido, coletivos identidade para si, onde a cultura é, igual-
culturais e empreendimentos de imigrantes, mente, instrumento de resistência (SAID,
iniciativas de apoio e divulgação da questão 1995).
são colocados numa perspectiva de enri- Portanto, o estudo da cultura nos proces-
quecimento e contribuição para São Paulo. sos migratórios demanda que se aprofun-
São dimensões que se integram ao cenário dem possibilidades e contradições para ir
multirracial e multicultural da cidade. A mi- além da redução ao exótico, à diferença e da
gração está mudando a paisagem da cidade cisão do contexto e processos históricos. Os
e sua pauta tem inserindo-se em diversos modos de vida e os cotidianos são plurais,
espaços, desde a cena cultural, gastronômi- nas várias dimensões já citadas (trabalho,
ca, até no debate político e nos movimentos relações, família, religião, associações, lazer,
sociais. E as interlocutoras e outras mulhe- estética) e se movimentam ainda mais nos
res africanas têm se inserido nessa dinâmica diálogos relacionais. No entanto, os desafios
através das suas atividades, fazeres e ações e são muitos para se ultrapassar os olhares
cotidiano. curiosos ou discriminatórios, as discussões
Em suas trajetórias, circuitos e lingua- reducionistas, as opiniões apressadas e pre-
gens, as pessoas criam e redesenham inscri- conceituosas, o racismo e a xenofonia que se
ções sensíveis, inovam as dinâmicas de tra- fazem no dia-a-dia. A cidade é um campo de
balho e as relações sociais, ampliam o uni- discurso e utopias em disputa, nela os mo-
verso religioso e político, além dos hábitos dos de vida e os arranjos possíveis são ins-
de vestimenta, comida, formas associativas, táveis.
estéticas, lazer, festas, em grande pluralida- As diferentes expressões, atividades e
de de modos de viver. A multiplicidade dos fazeres das mulheres africanas contêm di-
arranjos culturais que os migrantes promo- mensões de fundamental importância para
vem no diálogo com diversos cenários urba- a construção de uma perspectiva aberta dos
nos da cidade, interagindo com outros gru- processos migratórios e para a questão da
pos sociais e com as diversas instituições, África. Neste sentido, ao construírem suas
transforma e desenha encontros e emprésti- histórias, adquirem um reconhecimento
mos interculturais. social e revalorizam sua cultura e suas ori-
Ao pensar nas diferentes dinâmicas cul- gens. Acabam transformando percepções
turais, as atividades e o fazer dessas pessoas e valores, desconstruindo a ideia de que o
devem ser trabalhadas e inscritas na relação único sentido da migração africana está em
com o outro. Nesse diálogo, ampliam-se os situações de extrema pobreza e inserem no-
espaços existenciais, dinâmicos, possibili- vos olhares e perspectivas para a migração
dades plurais de modos de vida, tanto rela- feminina contemporânea na cidade.
cionais como econômicos, sociais, literários
e poéticos. São reinscrições plurais, mas, Referências bibliográficas
plenas de sofrimento e conflitos. Construir ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução
novos lugares de pertencimento, rever os de Roberto Raposo. 12 ed. Rio de Janeiro: Fo-
sentidos da cultura exige uma passagem e rense Universitária, 2014.
conexão com o conhecido e vivenciado an- ASSIS, G. O. Mulheres migrantes no passado e
teriormente. Edward Said lembra que é, no presente: gênero, redes sociais e migração
Resumo
A expressão “não sou racista, mas...” é muito frequente nas redes sociais.
Quem o utiliza é ou não racista? Este artigo analisa o valor linguístico e his-
tórico da expressão. O caminho metodológico escolhido é a pesquisa biblio-
gráfica. Para a primeira parte da análise serve-se de elementos da Pragmática
e da Retórica; para a segunda, de dados históricos afins. Ao que tudo indica,
ela veicula racismo de forma ostensiva, embora tenha intenção de negá-lo.
Palavras-chave: Negação do racismo; Linguagem; História.
Abstract
“I AM NOT A RACIST, BUT ...”: LINGUISTIC AND HISTORICAL
MOTIVATIONS OF PROVERBIAL BRAZILIAN RHETORIC FOR
DENIAL OF RACISM
The expression “I am not racist, but ...” is very frequent in social networks.
Who uses it is racist or not? This article analyzes the linguistic and historical
value of the expression. The methodological path is bibliographical research.
For the first part of the analysis, it uses elements of Pragmatics and Rhetoric;
for the second, it presents related historical data. In any case, it carries out
ostensibly racism, although she intends to deny it.
Keywords: Denial of racism; Language; History.
par justificar a exploração de classes, que logia escravista. A Igreja Católica apoiou a
reduziu o negro a cidadão de última cate- escravidão; bulas papais autorizaram a in-
goria” (2012, p. 155). vasão da África; Nicolau V,o grande huma-
O mito da democracia racial também teve nista, que fundou a Biblioteca do Vaticano,
participação decisiva nesse processo; refor- autorizou portugueses a apresar negros, sar-
çou a ideia de que no Brasil não há racismo, racenos e inimigos de Cristo. A justificativa:
apoiado na circunstância de que no Brasil os negros seriam batizados e a escravidão
houve convivência aparentemente pacífica seria para “salvar-lhe as almas”. A Igreja
entre negros e brancos. A tese de Gilberto Católica recebia comissões dos traficantes
Freyre ainda hoje é evocada para a defesa (5%) e os papas concediam indulgências aos
desse princípio. portugueses: se morressem nessa missão
Otávio Ianni (2004) considera que, no estariam limpos de qualquer pecado (CHIA-
Brasil, a ideia de democracia racial se deve VENATO, 2012, p. 77-78). A Igreja e muitos
ao fato de que a escravatura aqui teria sido sacerdotes possuíam escravos; além disso, a
diferente, devido à índole pacífica do povo Bíblia era usada para justificar o sofrimento
brasileiro. Isso seria ideologia das elites do dos escravizados, comparado ao sofrimento
Brasil, resultado de invenção de tradições de Cristo.
e “pasteurização da realidade”. Para Ianni,
Gilberto Freyre foi uma matriz importante, Desdobramentos:
pois estudou a sociabilidade, tendo sido pre- invisibilização e segregação
cursor dos estudos sobre identidade e coti- de negros
diano; contudo,
Em nossa história social formou-se uma cul-
[...] alguns estão valorizando esses estu- tura racista, que teve desdobramentos inde-
dos para contrapô-los às teses de Florestan
sejáveis nos períodos posteriores. A cultura
Fernandes e de Caio Prado, já que estas são
escravista nos eixos escravo-senhor ainda
muito incômodas. As elites sempre foram
contra esses estudos. Ou, frente a eles, ficam vige no Brasil.
indiferentes. Esse pensamento [de Gilberto A estrutura senhorial-escravista está ain-
Freyre] está presente em Jorge Amado, Ro- da arraigada no imaginário do brasileiro;
berto DaMata, Darci Ribeiro etc., todos com além dos espaços simbólicos acima indica-
a melhor das intenções, pensando que apro- dos, expande-se, por exemplo, na organiza-
veitando esse potencial democrático ilusó-
ção espacial de nossas cidades, que repro-
rio, ele se tornaria verdadeiro.
duz o imaginário ideológico do escravismo,
Por fim, é importante registrar que esse figurado na relação casa-grande x senzala,
autor reconhece no Brasil um cenário con- que corresponde hoje à relação centro x pe-
traditório sobre racismo; aqui, o que há é riferia. Os espaços (urbanos e rurais) se or-
uma sociedade injusta, fundada no precon- ganizam nesta lógica: ao centro corresponde
ceito: “É uma negação da ideia de democra- o espaço da casa-grande, com todos os privi-
cia racial porque se ela existe, todos estão légios possíveis (serviços, proteção policial,
participando em situação de igualdade, mas infraestrutura, etc.); à periferia resta o es-
sabemos que não é isso o que acontece”. quecimento na oferta de condições de vida:
A religião não ficou indiferente; foi apoio falta água, asfalto, escolas, transporte, po-
importante para o fortalecimento da ideo- liciamento adequado para a defesa da vida
novo exílio diaspórico, agora de si mesmos, gau de farinha de milho, a tapioca e o pre-
quando se negam ser aquilo que de fato são. paro do peixe assado na folha de bananeira
A invisibilidade do negro é bem sintetiza- são exemplos dessa herança. No Município
nasceu também Mário Augusto Teixeira de
da por Oliveira (2015, p. 24-25):12
Freitas, idealizador e fundador do Instituto
Por muito tempo os descendentes de africa- Brasileiro de Geografia e Estatística.
nos no Brasil conviveram com o estigma de
que sua cor era uma maldição divina, sua
Considerando o aspecto de síntese (tal-
cultura era obscurantista e bárbara, que sua vez por isso mesmo), é digna de nota a au-
religiosidade era demoníaca, sua inteligên- sência total da presença negra no município
cia limitada, e que sua aparência não corres- (e, além disso, nenhuma referência é feita
pondia aos ideais de beleza do mundo civi- ao fato de o município ter participado de
lizado, branco, ocidental. Negros e negras algumas insurreições populares. De fato, o
foram banidos da televisão, das novelas, dos
município se destaca por ter participado em
comercias, dos filmes e dos livros escolares.
A história contada na escola é branca; a be- diversos movimentos de emancipação po-
leza mostrada nos meios de comunicação é lítica no Brasil, tais como a Revolução dos
branca e tudo que enaltece a nossa sociedade Alfaiates (1798), a Independência da Bahia
é branco. (1823), a Revolta dos Malês (1835) e a Sabi-
nada (1837).
Um exemplo breve, mas tocante, sobre
O que choca, contudo, é o silencia quan-
essa invisibilização pode ser buscado em do-
to à histórica presença negra no município,
cumentos oficiais, como é o caso da página
no portal do IBGE. Isso se torna ainda mais
do IBGE sobre o censo de 2010 da cidade de
chocante porque, no excerto reproduzido,
São Francisco do Conde (BA); na página do
há menção honrosa à presença do índio e
portal do Instituto referente à síntese histó-
do branco. A tabela abaixo registra dados
rica da cidade, temos isto:
do censo de 2010 quanto à população que se
A diversidade de etnias que ajudou a cons- autodeclara preta ou parda:13
truir São Francisco do Conde culturalmente
está presente no cotidiano da cidade. As pal- Tabela 1. Dados do censo 2010 (autodeclaração
meiras imperiais, símbolo da administração quanto à cor da pele)
portuguesa, estão por toda parte, as cons-
Critério Valor: Número
truções coloniais são majestosas e conser-
vam a memória da região. Os Tupinambás e População residente 33.183
os Caetés Negros deixaram de legado, entre
outras coisas, uma rica gastronomia. O min- População residente -
16.878
cor ou raça - Parda
Bento e Iray Carone, Editora Vozes. Fora do Bra-
sil, pontifica Frantz Fanon, filósofo e psiquiatra População residente -
martinicano, que escreveu, dentre outros livros, 13.278
cor ou raça - Preta
estes: Pele negra, máscaras brancas e Os con-
denados da terra. Fonte: IBGE
12 A propósito desta invisibilização, Oliveira nota
que, se o negro é invisível em espaços sociais pri- 13 Há oscilação de referência. Negro, preto, pardo,
vilegiados, em outros ele é presença permanente: mulato, etc., são matizes de uma gradação cujo
“no Brasil das favelas, das periferias, das chacinas, objetivo é apagar o negro; a amplitude linguís-
da violência e da miséria a presença do negro e da tica (como se fosse um tabu a pronúncia ou a
negra torna-se bastante visível e concreta e, desta escrita desses termos) é tentativa eufemística de
forma, a política de segregação mantém o negro fuga, é negação da existência do negro, distan-
invisível e à margem da sociedade apesar de sua ciando-o do branco e projetando-o para o lugar
presença ser maciça” (2015, p. 25). do não-ser, da não-existência.
gros e dos esforços em apagá-los de sua ma, seu raciocínio: “Infelizmente, até ago-
história. 15 ra, as interpretações errôneas do censo no
Continua a jornalista com esta ressalva, Brasil têm levado a políticas públicas que
que muito interessa à nossa discussão: “Não induzem a divisões perigosas”. Ora, a divi-
estou dizendo que não existam racismo e são mais perigosa que sempre vivemos é a
discriminação no País. Estou apenas aler- que existe entre brancos e negros, existen-
tando para o fato de que não se pode dizer te desde os primórdios de nossa história.
que é o racismo o causador das diferenças Introduzir na discussão o tema raça-cor é
de rendimento por cor”. Embora não use o perigo que divide? Para a jornalista, sim.
mas para fazer a junção (feita pelo apenas), Isso é mais um efeito da invisibilização dos
há oposição entre as asserções, o que faz negros.
essa afirmação ser equivalente da estrutu- A natureza da matéria é típica do pen-
ra A, mas B, analisada neste trabalho (não samento predominante na mídia brasileira,
estou dizendo que não existam racismo e que reproduz os ideais dos grupos dominan-
discriminação no País, mas estou apenas tes, de ascendência branca. Não é negada a
alertando para o fato de que não se pode conclusão induzida de que, se os pardos e
dizer que é o racismo o causador das dife- pretos ganham menos, é por que são incom-
renças de rendimento por cor). A intenção, petentes. Não seria por que a sociedade nega
com isso, é defender-se da consideração de a eles as mesmas condições de cidadania que
ela afirmar que o Brasil não haja racismo oferece para os brancos?
ou da presunção de ela ser racista, tudo É isso o que está em jogo. Não é somente
porque foi percebido que as considerações a realidade desigual que interessa, mas tam-
defendidas têm teor racista, não assumido bém as explicações para as desigualdades.
(conforme análise feita na primeira parte A matéria representa o pensamento domi-
deste trabalho). nante no Brasil: naturalizar diferenças que
A jornalista conclui alertando para o devem ser entendidas à luz do preconceito
perigo de ser considerado o fator étnico racial que preside ao tratamento desumano
em estatísticas da espécie, aqui e alhures, que os negros temos recebido de forma re-
porque podem induzir a políticas públicas corrente na nossa história; negar conquis-
equivocadas, dentre as quais está a adoção tas, como a política de cotas, projetando
de cotas, no Brasil, concluindo, desta for- elementos de divisão no grupo dos negros,
sugerindo que pardos seriam preconcei-
15 Maggie escreveu o prefácio ao livro Não somos tuosos contra os pretos, porque têm renda
racistas: uma reação aos que querem nos trans-
maior. Pardos e pretos são a mesma gente,
formar numa nação bicolor, do jornalista Ali
Kamel; Miranda-Ribeiro (2006), ao resenhar divididos pela ideologia do branqueamento
essa obra, faz este comentário: “a leitura do livro vigente no Brasil.
desmente essa hipótese [não somos racistas] e
confirma o inverso: o autor acredita piamente A matéria é eloquente exemplo de racis-
na afirmação que faz no título. Portanto, não me mo não assumido contra os negros (como
resta outra alternativa senão afirmar o contrá- revela a expressão “não sou racista, mas...”,
rio: somos racistas”. O livro atesta a permanên-
cia do racismo, sutil ou ostensiva, que estrutu- analisada na primeira parte deste trabalho),
ra a sociedade brasileira, de que faz parte a sua cujos efeitos perversos se multiplicam pela
negação, como se depreende das ideias e textos
de Kamel e Maggie; mas há tantos outros nessa
sociedade brasileira em geral e pela mídia,
trincheira preconceituosa. em particular.
Resumo
O presente artigo intenciona discutir as alternativas culturais em prática na
formação docosmo religioso do candomblé carioca, e como atuam por hibri-
dismos ou sincretismosna composição de uma casa de santo. Procurou-se
compreender como estas estratégias de convivência, entre divindades antes
cultuadas em diferentes regiões africanas, contribuem para a formação da
identidade dos adeptos desta casa. O terreiro e o indivíduo passam a ser o
universo onde estas alternativas culturais serão negociadas mútua e conti-
nuamente. Os contextos históricos do Rio de Janeiro, desde o período co-
lonial, as transformações sociais, e a mobilidade dos grupos praticantes das
religiões de matrizes africanasapresentados concorreram como panos de
fundo dos cenários aonde surgiram religiosidades particulares, consideradas
como sincréticas ou hibridas.
Palavras-chave: Religiosidades cariocas; candomblé; identidades coleti-
vas e particulares.
Abstract
HYBRIDISM, SYNCRETISM AND OTHER MILONGAS: CULTURAL
ALTERNATIVES IN THE SURVIVAL OF CANDOMBLE ORISHAS’
CULT IN RIO DE JANEIRO
The present article intends to discuss the cultural alternatives in practice in
the formation of the religious cosmo of the candomblé carioca, and how they
* Geógrafa, mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutoranda do programa
Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social EICOS IP UFRJ. O presente texto é parte da pesquisa
de doutorado que tem como tema as religiosidades em comunidades quilombolas em curso na Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro-Instituto de Psicologia-programa de pós-graduação EICOS. Email: issa-
nilu@gmail.com
** Psicólogo, Mestre em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Paris X, Doutor em Psicos-
sociologia de comunidades e Ecologia social pelo EICOS/UFRJ. Professor do Instituto de Psicologia da
UFRJ onde atualmente orienta a pesquisa que tem como tema as religiosidades em comunidades quilom-
bolas. Email: claudiocavas@gmail.com
Epígrafe
...o corpo da yaô tremeu de repente em um até o pé de tempo. Comunica-se com gestos
espasmo medonho, e mesmo sentada no bruscos, bate no peito, não é dado a agra-
chão sentiu a força que a fez levantar de dos. Dizem que se porta como um caboclo,
uma só vez... Em torno dela, as pessoas se um bugre, um índio! Mas...
agitaram e se preparam para a chegada de
Iansã. Estranhamente algo diferente acon- (Oyaissanilu, 2014)
teceu, não era a rainha dos eguns que vinha
visitar o Ilê, na comemoração dos seis meses
de feitura naquele final de semana. O “san-
Muito se fala de sincretismo religioso
to” ao mesmo tempo em que deu um salto
soltou o seu ilá, como se fora um pássaro no Brasil, e como exemplo, utiliza-se a um-
selvagem na mata escura, uma gargalha- banda como modelo único desta que seria
da guturalcortou o espaço da casa de santo a composição tanto controversa quanto po-
desde o pé de tempo até onde ficaria a casa pular de religião sincrética. Mas, o candom-
das Yamins. O susto dos poucos presentes bléapontado como aquele que guarda a origi-
foi grande, não tanto quanto a contrarie-
nalidade e pureza africanas, desde seu inicio
dade demonstrada pelo pai-de-santo. O que
fazia aquela divindade na cabeça daquela na Bahia, constituiu-se a partir de fragmen-
yaô tão nova? Como e porque quebrava o tos da memória dos indivíduos organizados
preceito da casa? Apressadamente, o Ba- em grupos para a prática religiosa, portanto,
balorixá intercedeu e solicitou que Baran- é considerável um grau de misturas, sincre-
guanje tivesse paciência e aguardasse que tismos e hibridismos em sua composição,
no ano seguinte, uma festa seria realizada
mesmo que ao longo do tempo, estas ques-
em sua homenagem. Disse-lhe que estava
quebrando um preceito importante e que tões tendessem para um lado ou para outro.
não tinha o direito de estar ali! Passados A contribuição em maior ou menor grau das
quase trinta anos, o Inquice angolano con- culturas africanas, indígenas, e europeiasfi-
tinua a ter rara presença na casa de santo cou marcada, sobretudo na religiosidade do
que tem tradição queto, e quando aparece povo brasileiro. Esta religiosidade, derivada
são momentos marcados por grande como-
das muitas adequações e proveniências his-
ção, já que se manifesta de forma bruta e
fora dos padrões que a casa está acostuma- tóricas em contextos em que se desenvolveu
da a lidar. Não aceita ficar sob a cumeeira no Brasil, incorporou elementos regionais,
da casa de santo, e sai aos pulos e gritos condições de vida, sociabilidades, cotidia-
o candomblé de caboclo7 teria se dado ao acaso das invocações ou dos transes espon-
contrário, “no sentido de a estrutura desse tâneos. No espiritismo de Umbanda, que
culto permanecer essencialmente africana, saiu da macumba, aparece uma dogmática:
os espíritos dos mortos, particularmente dos
e de que são os Espíritos dos índios que vão
velhos negros falecidos e os caboclos que
agora inserir-se nesta estrutura estrangeira” constituem as forças espiritualizadas da na-
(id. ibid. p, 80). Em nenhuma variante reli- tureza formam imensos exércitos chamados
giosa de cultos envolvendo índios e negros, “falanges” e, à frente de cada falange, há um
Roger Bastide admite qualquer espécie de general, que é um Orixá, seja sob seu nome
fusionamento entre ambas. Mesmo quanto africano, seja sob o nome do seu correspon-
dente católico” (id. Ibid. p, 83).
analisa o candomblé de caboclos comparan-
do-o com a pajelança8, que em sua opinião Acusa o sincretismo surgido nas metró-
“o ritual difere pouco das práticas africanas poles de controlador e de impor uma seita
dessas seitas bantos [...]; a estrutura das ce- dentro de padrões de modernização e afas-
rimônias é idêntica à das cerimônias africa- tada das chamadas seitas bárbaras. Nestas
nas – mas não se realizam nem ao mesmo seitas ele se refere à fusão, através do mito
tempo nem no mesmo dia” (id. ibid. p,81). das três raças fundadoras da sociedade bra-
Ele se apega no fato de ser possível a con- sileira recuperando criticamente o mito
vivência entre as duas religiões, e chama de da democracia racial forjado por Gilberto
justaposição entre os cultos de índio e de Freyre (BASTIDE, 1974, p. 83).
africano, inclusive na divisão física do ter- Para o sociólogo francês, o sincretismo
reiro e no calendário litúrgico. existe nas estruturas religiosas sob dife-
Apesar de admitir, a existência de can- rentes formas. O sincretismo espacial, re-
domblés de caboclo como seitas misturadas, ferindo-se aos espaços físicos dos terreiros
conforme descreve, Bastide (1974) consi- de candomblé, seria caracterizado pela “or-
dera que a macumba e umbanda no Rio de dem da própria natureza dos objetos que aí
Janeiro sejam cultos vastos e impulsionados se vão inserir e que são sólidos indeformá-
pelo sincretismo que tende a mistura, já que veis, o sincretismo aqui não pode ser fusão,
ele desenvolve vários tipos de sincretismo permanece sobre o plano da coexistência
nas suas discursões, ele atribui a confusão de objetos discordantes, ou sincretismo em
a excessiva fragmentação dos exércitos de mosaico”, e neste caso, o que ocorre é um
entidades comandadas por orixás, santos processo de justaposição, em que “os pejis9
católicos, índios ou espíritos de pessoas de- africanos e altares católicos se distribuem
sencarnadas como os pretos velhos, para ele sem se encontrar, mas também reconhece
“A macumba do Rio e do Estado da Guana- uma espécie de justaposição nos espaços
bara é uma roda louca de Exu, de Orixá e o maisrestritos como os altares da macumba,
das almas desencarnadas e de caboclos, ao com pedras, garrafas de aguardente, cru-
zes, moringas, terços bentos, círios etc (id.
7 Para Reginaldo Prandi (2011, p.122) os candom-
blés de caboclos surgiram na Bahia, e foram as- ibid.p, 143).
sim denominados para marcar a diferença entre Bastide identificou um tipo de sincretis-
eles e a modalidade de candomblé nagô, já que
mo sem fusão, que a princípio se poderia
em estrutura ritual e litúrgica se assemelha aos
candomblés de nação angola. 9 Os pejis são os lugares reservados em uma casa
8 A pajelança é uma variante de seita de matriz afri- de candomblé onde serão mantidos os elemen-
cana mais difundida na região norte do Brasil, e tos rituais, vestimentas, paramentos que os ori-
tem segundo Bastide (1974), realidade indígena. xás irão utilizar em visita ao terreiro.
imaginar com a associação entre os deuses significa a tendência dos grupos e das identi-
africanos e os santos católicos, nas oportu- dades culturais se combinarem, resultando
nidades que tinham os negros para cultuar em identidades e grupos renovados (SILVA,
seus deuses, enquanto os brancos homena- 2000, p. 67). Por seu caráter ambíguo e “im-
geavam seus santos, e no computo geral, na- puro”, o conceito de hibridismo adequou-se
quele contexto histórico, validou a constru- melhor aos estudos que destacaram a flui-
ção de tábuas de correspondência entre as dez e a instabilidade na formação das iden-
características próprias entre as divindades tidades culturais a partir da valorização de
africanas e europeias. Dessa rápida análi- outros conceitos como: mestiçagem, sincre-
se do conceito de sincretismo em Bastide, tismo, tradução e cruzamento de fronteiras
pode-se começar a entender que talvez, a aplicáveis nesta construção.
incompreensão de seus leitores críticos te- Canclini (1997) foi o teórico pioneiro na
nham o acusado precipitadamente, ou pelo discussão sobre o hibridismo, denominado
menos, faltou prestar mais atenção à grande por ele de hibridação, considerado como
contribuição do sociólogo francês aos estu- um conceito libertário, fertilizador e cria-
dos das religiosidades africanas na América. tivo, próprio para aplicação na análise de
O que Roger Bastide criticou na macum- sociedades multiculturais como as surgidas
ba do Rio de Janeiro não foi o aspecto re- na América após o projeto colonizador eu-
lacionado aos sincretismos, que explorou ropeu. O conceito de hibridação, sugerido
incansavelmente em sua vasta obra, e sim, por Canclini, se refere ao modo pelo qual
a estrutura ritual, a abrangência e admissão “modos culturais ou partes desses modos
de elementos de forma desorganizada, além se separam de seus contextos de origem e
de, no seu entender, a falta de padrão que se recombinam com outros modos ou par-
se pudesse comparar com a emergência do tes de modos de outra origem, configuran-
nagocentrismo10, que estava sendo gestado do, no processo, novas práticas” (CANCLI-
na Bahia sob as ideias de preservação das NI, 1992). O caráter político que encerra o
tradições africanas na América. conceito cancliniano irá fundamentar suas
O mau uso histórico do conceito de sin- discussões a cerca das articulações entre a
cretismo o aproximou da noção de mistura, modernidade e a pós-modernidade, entre a
transformação, deterioração de culturas, de cultura e o poder (id. ibid, p. 264), mas seria
perda de pureza e de autenticidade, e por ultrapassado pelas críticas de servir como
isso, passou a ser um conceito rechaçado “um sucedâneo para o aumento de consu-
pelos religiosos de denominações mais radi- mo dedeterminados bens culturais” (KERN,
cais por um lado, e por outro lado, rejeitado 2004, p. 62).
por teóricos adeptos do conceito de hibridis- A utilização do conceito de hibridismo
mo como uma versão mais ampla e pós-mo- nas temáticas religiosas a partir dos estu-
derna das interações culturais das quais foi dos culturais e pós-coloniais vai ampliar sua
resultante. utilização incorporando os contextos histó-
No contexto da teoria pós-estruturalis- ricos, políticos, sociais e culturais, ao reco-
ta e da teoria pós-colonialista, o hibridismo nhecer mais diretamente as interações entre
10 O conceito de nagocentrismo foi desenvolvido a estes contextos e os fenômenos religiosos.
partir de estudos sobre as religiões de matrizes
africanas com valorização das culturas sudanês
Para Engler (2011), a distinção não é níti-
ou nagôes / iorubás sobre os bantos. da, e na prática; ela aponta para doisextre-
taram no Rio de Janeiro, produziu modifi- canos aprisionados nas regiões centrais da
cações nos sistemas centrais de cada uma África, enviados para o interior do estado
delas. Esta aproximação, entre culturas com ou para ficarem na Corte Imperial, aon-
contribuições maiores ou menores das et- de se aglomeraram nas imediações do Cais
nias africanas e indígenas, estabeleceu um do Porto da cidade. A presença deles e de
campo de forças, que durante algum tempo seus descendentes, durante anos nas regiões
e em determinados ambientes geográficos e centrais da cidade colonial e adjacências,
sociais, teve a cultura europeia como supor- construiu uma espacialidade própria para o
te para o desenvolvimento de uma religiosi- trabalho, festejos e práticas religiosas, que
dade sincrética. desde inicio foram mal vistas pela socieda-
Essa singularidade religiosa do povo bra- de local e autoridades cariocas, que termi-
sileiro, em geral, e do carioca, em particu- naramprimeiro por proibir ajuntamentos e
lar, tem atraído a atenção de estudiosos dos batucadas, e depois, por questões politicas
diversos campos de conhecimento tendo deliberadas, expulsaram estas populações
em vista a sua condição única, e altamente pobres para as periferias, morros e para a
complexa, representada pela confluência de Baixada Fluminense.
dimensões históricas, sociais, econômicas e Enquanto o centro do Rio de Janeiro e
culturais que incidem em sua cotidianidade. adjacências foi polo de encontros com finali-
Incialmente, na tentativa de explicar a gêne- dades religiosas, vários episódios envolven-
se do povo brasileiro, alguns teóricos produ- do a cultura popular que ali nascia, foram
ziram verdadeiros tratados sobre questões registrados na literatura, inclusive do apa-
religiosas, aumentando os “antagonismos recimento do samba carioca (CONDURU,
entre as culturas”: a europeia e a africana, 2010). As crônicas publicadas na Gazeta de
a católica e a maometana, a dinâmica e a fa- Notícias11 no início do século XX por João do
talista (FREYRE, 1932), que Gilberto Freyre Rio (2006), codinome do jornalista Paulo
considerou como sendo caracteres especiais Barreto, apesar do tom “fantasioso” que em-
da colonização do Brasil, e da formação “sui prestou ao personagem “informante”, des-
generis” da sociedade brasileira. creveu pormenorizadamente, cerimônias
A passagem do tempo histórico entre as importantes dos cultos africanos, confir-
duas temporalidades marcadas, entre a che- mando a vocação religiosa diversificada da
gada dos primeiros africanos e a abolição da cidade, registrando que “o Rio, como todas
escravatura no século XIX, foi acompanhada as cidades nestes tempos de irreverência,
pelas discussões sobre os conceitos de sin- tem em cada rua um templo e em cada ho-
cretismo e de hibridismo levando em conta mem um crença diversa” (RIO, 2006, p.15).
os processos socioculturais nos quais estru- Autores como Agenor Miranda (1994),
turas ou práticas discretas, que existiam de em seu livro “Os candomblés antigos do Rio
forma separada, se combinaram para gerar de Janeiro: As nações Ketu – origens, ritos
novas estruturas, objetos e práticas, que po- 11 Periódico que circulou no Rio de Janeiro entre
deriam surgir como resultado imprevisto de agosto de 1875 e 1942, fundado por Manuel Car-
neiro, José Ferreira de Araújo e Elísio Mendes,
processos migratórios na geração de novas introduziu uma série de inovações na imprensa
estruturas (CANCLINI, 2003). O Rio de Ja- brasileira. Promoveu debates de grandes temas
nacionais como: antimonarquistas e abolicionis-
neiro constituiu-se em importante centro tas. Foi em suas páginas que surgiram os primei-
distribuidor de grande contingente de afri- ros artigos a favor da abolição da escravatura.
O baiano de Inhambupe, iniciado aos como se o Rio de Janeiro tivesse sido o úni-
16 anos por Severiano Manoel de Abreu ou co berço delas.
Jubiabá, promoveu grandes festas no seu Enquanto na Bahia ocorriam os movi-
terreiro, que divulgava em um calendário li- mentos de luta para organizar e padronizar
túrgico distribuído pelo comercio local, em os cultos de matrizes africanas evocando as
idiomas estrangeiros, atraindo desta forma, ortodoxias das casas mais antigas de Salva-
os turistas estrangeiros, além de muitas fi- dor comandadas por mulheres, que tinham
guras da sociedade carioca para o terreiro como padrões indiscutíveis de “pureza” e
em Duque de Caxias. Sob a acusação de fazer “autenticidade” o cumprimento estrito dos
macumba para “inglês ver”, em alusão a ex- ritos e preceitos de acordo com o que fora
ploração turística das suas “performances” instituído a partir das discursões sobre os
religioso-artísticas que transformaram o destinos das religiões de matrizes africanas,
seu terreiro de candomblé, em ponto de re- para evitar principalmente, a degradação
ferência internacional, e para onde afluíam dos ritos, e consequente perda das tradições,
figuras importantes do cenário político e do e em consequência, promover a manuten-
“high society” carioca, fatos abundantemen- ção e continuidade da religião, segundo seus
te registrados em jornais e revistas da época. preceitos e fundamentos. O efeito destes
As críticas dirigidas a Joãozinho da Go- movimentos dasvertentes nagôs foi a oposi-
méia falavam de seus trejeitos pessoais, e ção do que não deveria permanecer no lado
de seu comportamento diante da religião, indesejado das práticas religiosas, incluindo
aspectos considerados inadequados pelas aí, as outras variantes do candomblé, sabi-
grandes Yalorixás15 baianas, e pelos pesqui- damente aos candomblés de caboclos, e os
sadores que com elas fizeram coro. candomblés da nação angola, que amarga-
As pesquisas sobre as origens das reli- ram um espécie de “abafo” no cenário literá-
giões dos africanos basearam-se principal- rio nacional.
mente, nas dicotomias que envolveram a O fato de Joãozinho incorporar o seu ca-
hierarquização étnica contrapondo nagôs boclo de pena, “seu Pedra Preta” 16 rompia
e bantos, com acusações dos primeiros so- de vez com as regras nagocêntricas, que não
bre os segundos, de “falta de pulso” para admitiam a mistura de elementos de varia-
manterem suas tradições. Outras polariza- das nações17 do candomblé, portanto, mistu-
ções alimentaram os debates em torno da
rar orixás – divindades iorubanas, com en-
hierarquização entre cultos do candomblé
cantados18 brasileiros não seria admissível
“tradicionais” X “baixa feitiçaria”, can-
16 O nagocentrismo repudiou o fato de um adepto
domblés nagôs X candomblés de outras na- com o título de Babalorixá incorporasse um ca-
ções, e por extensão, entre a Bahia e o Rio boclo de penas, entre outras atitudes considera-
de Janeiro, comparações que relegaram das fora do padrão.
17 As primeiras tentativas de organização do culto
candomblés angola e de caboclo, à condi- religioso de matrizes africanas em Salvador tive-
ção de ritos menores. E mesmo existindo rammotivação étnica, e por isso, o termo “nação”
casas baianas de culto dessas variantes, a tentou distribuir os seus adeptos de acordo com
a região geográfica de procedência. Embora,
popularidade de João da Gomeia chamou não houvesse certeza sobre estas procedências,
a atenção para estas modalidades de culto serviu para organizar e separar em grupos reli-
giosos. Mais tarde, outras etnias foram incorpo-
15 Yalorixás são designações para as mães-de- san- radas pelas pesquisas ao universo do candomblé
to, assim como, os pais-de-santo são conhecidos brasileiro.
como Babalorixás (N.A.). 18 Os encantados são figuras centrais nas pajelan-
rioca daquele inicio de construção da nova propalada pelos discursos racistas e pre-
religiosidade brasileira. Entre a aceitação conceituosos da virada do século XIX para o
e a negação a elite intelectual umbandista XX, a umbanda se reafirma como uma pro-
buscou o meio termo para os seus discur- posta religiosa nova que congrega os valores
sos, de forma que a sua proposta impedisse espiritas aos político-sociais brasileiros no
a memória de uma religião “afirmadora de projeto de desenvolvimento, tendo o modelo
heranças culturais incômodas”, mas que ao europeu de modernidade como meta, e em
mesmo tempo fosse “subvertedora” (ISAIA, contrapartida, combateria o atraso represen-
1999) da ordem, a ponto de admitir que em tado pela herança afro-indígena, pela mar-
seus quadros pudessem “baixar” espíritos ginalidade, prostituição e outras categorias
de marginalizados, agradando aos dois la- desvalorizadas presentes nos cultos anterio-
dos da questão. Ortiz definiu este momento res a tentativa de codificação representada
como um quadro dinâmico em duplo mo- pelo projeto intelectual umbandista. Mas, é
vimento: primeiro, o embranquecimento justamente, com esse discurso ambíguo, en-
das tradições afro-brasileiras; o segundo: o tre negar e aceitar a presença de elementos
empretecimento de certas práticas espíritas representantes dos dois polos de alteridade,
e kardecistas (id.,1999,p.33). Estes dois mo- que a umbanda irá se afirmar como religião
vimentos têm base na negação ou aceitação nacional viável. Analisando a estrutura ini-
de que espíritos africanos ou indígenas “bai- cial proposta para que a umbanda se afir-
xassem” nas sessões de mesa que tinham o masse como alternativa às opções religiosas
kardecismo como base do cosmo místico de- menos admitidas, Isaia (1999) afirma
sejável para aquele momento. “A Umbanda como um valor novo na socie-
A construção discursiva do grupo de inte- dade brasileira da primeira metade do nosso
lectuais da umbanda25, que visou uma nova século e sua luta por identificar-se como reli-
forma de religiosidade conciliadora, mo- gião e como nacional integram-na ao quadro
maior da circulação dos significados sociais.
derna e progressista, em cujos quadros não
Assim, se por um lado ela apresentar-se
cabiam os segmentos negros e mestiços da
guardando uma relação de oposição a alguns
população classificados como supersticiosos discursos será justamente com eles que es-
e atrasados, valeu a eles o rótulo de “deten- tabelecerá nexos de inteligibilidade e signifi-
tores da verdade” atribuído pela elite brasi- cação do mundo. [...] Podemos compreender
leiraapoiada pela Igreja, que condenava as [...] a recorrência da umbanda a produtores
práticas mágicas em processos jurídicos, de bens simbólicos historicamente postados
em posição de ataque diante dela, como o
médicos e assistenciais de todos os tipos.
catolicismo, o kardecismo, o Estado e as eli-
No contexto das modificações significa- tes, uma vez que as lutas pela representação
tivas da sociedade nacional com ideais de da realidade configuram situações não só
progresso para o alcance da modernidade de oposição frontal, como de partilha resse-
mantizada de significados” (id.ibid.p,103).
25 Este grupo de umbandistas era formado por
“brancos e mulatos de “alma branca”, que re- Os ideais progressistas e a aversão às
constituíram as antigas tradições com os instru-
práticas consideradas bárbaras conduziu à
mentos e os valores fornecidos pela sociedade
pela sociedade. Não estamos, pois, mais em pre- construção de uma umbanda afastada dos
sença de um culto afro-brasileiro, mas diante de elementos simbólicos que a alçaram à con-
uma religião brasileira que traz em suas veias o
sangue negro do escravo que se tornou proletá-
dição de religião genuinamente brasileira,
rio” (ORTIZ, 1999, p.33). mas, como não se enquadrava na moder-
nidade da vida urbana tendo em vista que tratégia de afirmação de identidade nacional
mantinha sua estrutura ritual antiga de religiosa, que o grupo da cúpula intelectual
fazer “despachos” e sacrifício de animais, umbandista almejava para o país. A quim-
teve as ações totalmente condenadas pelos banda foi o alvo principal deste enfrenta-
intelectuais da sua cúpula religiosa. Junta- mento, aquela que deveria ser atacada, pois
mente com a propaganda contrária à anti- teimava em relembrar os aspectos africanos,
ga umbanda, almejou-se a estruturação de dos quais se queriam livrar. Acolher no seu
uma nova religião espiritista, mas baseada ritual, elementos das religiões africanas e
em altos valores civilizatórios, que passaram indígenas, além de dar voz e espaço para es-
a ser perseguidos coincidentemente com as- píritos considerados como parte do “mundo
recentes mudançassociais presenciadas pelo instintivo, baixo, esquerdo” (ISAIA, 1999, p.
surgimento da nova forma da religião (OR- 112), além admitir em seus quadros ritua-
TIZ, 1999, p.32) durante o período republi- lísticos, falanges inteiras capitaneadas por
cano pós-abolicionista no Rio de Janeiro. Exus26, o que, no entender do grupo letra-
Os valores africanos e indígenas admi- do da umbanda, perfazia a retomada de um
tidos pela nova concepção de religião um- caminho contrário ao alcance da civilização,
bandista seriam apenas aqueles que refor- da modernidade, e da europeização deseja-
çassem o caráter conciliador e conformista da. Mas, não se poderia valorizar o “bem”
expressos pelos “pretos velhos”, e “caboclos representado pela umbanda sem a oposição
de pena” que proclamassem a crença na paz do “mal” ou quimbanda. Para Ortiz (1999,
e crescimento civilizado da população, ao p.88), “a quimbanda se apresenta, portanto,
contrário de outras correntes rebeldes e in- como a dimensão oposta da umbanda, ela é
subordinadas inconformadas com regras e a sua imagem invertida, tudo que se passa
imposições de raças “ditas” superiores sobre no reino das luzes tem seu equivalente ne-
a maior massa de oprimidos, os pobres e os gativo no reino das trevas”. Com a centra-
marginalizados. lidade na figura de Exu que comanda as le-
A base para o surgimento de uma reli- giões demoníacas da quimbanda, o autor de
gião urbana com arroubos de modernida- “A morte branca do feiticeiro negro” (1999),
de foi oferecida como alternativa nacional deixa de considerar que estes mesmos Exus
para livrar os brasileiros dos barbarismos continuaram a “baixar” na umbanda, sem
atribuídos aos cultos afroindígenas, que na terem necessariamente, que trabalharpa-
segunda metade do século XIX já estariam ra o “mal”. Ainda na atualidade, os Exus se
bem disseminados pelo país. A tentativa de constituem de espiritualidades individuais
desafricanização da umbanda identificou-se sem depender de “espíritos de luz” que os
com a passagem de uma cultura de tradições 26 Exus são entidades cultuadas nas religiões afro
oraispara uma tradição escrita, momento -brasileiras, e sua importância para o culto é
proporcional as diversas denominações. No en-
considerável para a aproximação eficaz da tanto, uma característica entre muitas, desta-
civilização e do progresso almejados pelos ca Exu das demais divindades do candomblé e
intelectuais, que tinham os padrões de re- da umbanda. Ele sempre será o primeiro a ser
tratado, para que não atrapalhe no desenvolvi-
ligião codificada como no modelo francês a mento da cerimônia ou ritual. Confundido com
ser seguido. o diabo cristão, Exu foi por muito tempo, a per-
sonificação do mal, mas, Exu tem um carácter
O embate frontal entre a umbanda e suas dubio, e tanto pode fazer mal quanto pode curar
outras variações também fizeram parte da es- (N.A.).
mantenham sob controle. O campo religioso vai se estabelecer na cidade do Rio de Janei-
do Rio de Janeiro se compõe, portanto, das ro, como na maioria da região sudeste como
tendências renovadas da religião codificada uma “religião universal, sem limites de geo-
e embranquecida, mas, também, admitiu e grafia, cor e classes sociais” (PRANDI, 1991,
proveu espaços para a vertente mais antiga p.21), e neste contexto que irá se constituir
e “enegrecida” da religião mais sincrética, como uma religião progressista mais alinha-
e próxima da representação da identidade da com os ditames políticos de um país, que
religiosa nacional. Outras variedades reli- tenta ainda hoje, fazer parte do cenário mun-
giosas, como os candomblés de caboclo e da dial como “moderno” sem no entanto, valo-
nação angola, se mantiveram aqui, confir- rizar as tradições dos povos que inicialmen-
mando o Rio de Janeiro como um lugar de te formaram a sociedade brasileira. A um-
múltiplas religiosidades onde estão presen- banda ao apropriar-se da mitologia do can-
tes as misturas culturais iniciadas no perío- dombléem prol de valores cristãos inclusos
do colonial do país. nas suas noções de ética (id.ibid.), buscou a
O candomblé angola e a umbanda cul- aceitação reunindo em seus quadros rituais,
tuaram os caboclos brasileiros, não somente os elementos que julgou em acordo com as
os índios, mas também os boiadeiros, mar- imposições que supunha serem aceitas para
cando a independência dos ritos, que foram que se tornasse de uma vez por todas, a re-
incorporados também por casas nagôs fora ligião codificada, padronizada, branca, e de
do circulo de lideranças baianas ainda nos vez em quando preta, para que não passasse
anos 30 e 40 do século XX (PRANDI, 1991).
totalmente a ideia de estar desconectada to-
Para Reginaldo Prandi, a razão para que as
talmente da realidade da sua origem. Mas,
religiões codificadas e embranquecidas con-
seria a umbanda a representante indiscutí-
seguissem projeção nos estados da região
vel da religiosidade carioca?
sudeste cujas cidades já sofriam os efeitos
do capitalismo e a população efeitos da vida
moderna, então, teria sido desta forma que
O Rio de Janeiro multicultural
a umbanda pode ocupar os espaços deixa- O encontro entre as raças no Brasil não foi
dos pelos candomblés intitulados “nichos” pacífico, e se deua partir de lutas e de su-
da preservação da cultura africana no Brasil. cessivos processos de negociação que de
Ainda segundo Prandi, coube a umbanda, certa forma, garantiram a sobrevivência de
como herdeira universal destes ritos ocupar tradições e costumes. Os processos de sepa-
ração, distribuição e rearranjosde africanos
“os espaços sagrados das grandes cidades do
escravizados, ocorridos durante o período
Sudeste, onde a etnicidade está perdida, onde
os deuses estão envolvidos na trama das rela- colonial no Brasil, criaram sistemas diver-
ções sociais de um capitalismo já em plenitu- sificados de crenças tanto em sua dimensão
de, onde o tempo que controla o trabalho e o nacional como regional e local, e indepen-
ócio já é o tempo do regime de assalariamen- dente do ângulo de observação que se esco-
to, onde as edificações e o asfalto eliminam o lha, verifica-se que a eles foram incorpora-
espaço do mato e do chão batido dos deuses à
das condições naturais, sociais, políticas e
antiga moda baiana” (id.,1991, p.19).
econômicas, resultando em grupos sociais
Tendo o ambiente politico, econômico e regionalizados como os observados no Rio
sócio multicultural a seu favor, a umbanda de Janeiro.
“o terreiro é uma associação liturgicamente 27 Os iorubás são grupos linguísticos dos habitan-
tes da região sudanesa correspondente atual-
organizada, em cujo espaço dá-se a trans-
mente aos países Nigéria, Daomei e Costa do
missão e aquisição dos conhecimentos de Ouro. Ao serem trazidos como escravos foram
uma determinada tradição religiosa... Neste tiveram, geralmente, o desembarque na Bahia.
provocados pela adoção deste modelo foram cias, sob as condicionantes discriminatórias
avassaladores para as outras variantes da re- do “descredito”, “mistificação”, “charlata-
ligião, eembora não se possa negar a impor- nismo”, “degenerescência”, “baixo espiritis-
tância das pesquisas da temática religiosa mo”, “feitiçaria” e “magia” marcaram pejo-
negra como contribuição para compreensão rativamente as religiosidades cariocas.
da religiosidade brasileira, devemos admitir A espacialidade das casas e roças de santo
que as acusações de “misturadas” e de serem no Rio de Janeiro foi sendo constituída se-
ritos menores dos candomblés de caboclo e gundo as condições e necessidades de seus
angola, além da umbanda, praticados no Rio componentes, portanto, os filhos de santo de
de Janeiro (PRANDI, 1991) amargaram um cada casa refletem a composição dos cosmos
alto preço, sendo elas relegadas ao segundo religiososfísicos, tornando-se eles mesmos,
planodo sistema religioso nacional. um espaço refletido do terreiro onde as parti-
Como vimos rapidamente em sessão lhas, negociações e adaptações se constroem.
anterior, as religiosidades no Rio de Janei-
ro se desenvolveram sob condições especí- Espaço reconfigurado,
ficas, que envolveram política, economia, adaptações aceitas: o Axé
preconceito, e discriminação, que incidiram
diretamente sobre a população praticante
Palmeirais28
e adepta dos batuques no centro da cidade. Durante os trinta anos de existência, o Ilê
Como centro econômico do poder colonial, Axé– Casa de Palmeirais passou por vários
o Rio de Janeiro supriu as fazendas produ- endereços entre a zona oeste da cidade do
toras de café, e outros produtos agrícolas, Rio de Janeiro à Baixada Fluminense, vol-
com homens e mulheres escravizados vin- tando para zona oeste há mais de 10 anos.
dos em sua maioria das regiões centrais do Agora estabelecido em sede própria, locali-
continente africano, portanto, os bantos são za-se no bairro de Guaratiba em um terreno
o grupo étnico mais numeroso a desembar- de aproximadamente 500 metros quadra-
car na capital colonial da Coroa Portuguesa. dos. O grande portão de entrada da casa de
Esta posição central de mercados e serviços santo é encimado por um grande pote de
do poder português presenciou o trânsito barro pintado de branco, que é a cor domi-
incessante, de pessoas de diversas proce- nante das paredes e muros da casa, e não
dências e objetivos, promovendo trocas cul- poderia ser diferente, pois a casa pertence
turais cotidianas. a Oxalá29, mais especificamente, a Oguiã.30
Em ambientes multiculturais como es- Entra-se no terreiro por uma alameda pe-
tes, em que as diferentes comunidades con- quena ladeada por jardins estreitos atrás
vivem e tentam construir uma vida comum, dos quais se encontram os “quartos” dos
ao mesmo tempo em que retêm algo de sua santos de “fora”. A esquerda do portão de
identidade “original” (HALL, 2003, p.52), 28 A fim de manter o ineditismo da pesquisa, foram
as religiões ditas “sincréticas” encontraram utilizados nomes fantasia para a identificação da
casa de candomblé, do terreiro, e dos filhos de
no Rio de Janeiro, terreno fértil, por sua vo-
santo (N.A).
cação política e cultural, que atraiu pessoas 29 Oxalá sintetiza várias outras divindades conhe-
de todos os lugares do mundo durante um cidas como fun fun. O elemento que distingue
Oxalá é a cor branca, indicativa de paz, união e
grande período de tempo. Mas, as misturas pureza entre os iorubás.
culturais construídas por estas convivên- 30 Diz da qualidade do Oxalá na sua versão jovem.
entrada fica a casa de Exú, que a divide com ampla das paredes brancas enfeitadas por
seus companheiros, observados de perto pe- quadros que relembram aspectos do culto
los exus escravos dos santos, que moram ao aos orixás e cenas dos eventos da casa de
lado, em ambiente separado por uma pare- candomblé. A parede à frente da qual ficam
de. Cada um destes ambientes guardam os as cadeiras do Babalorixá, e outras destina-
objetos ritualísticos dos Exus, assim como, das aos convidados importantes presentes
seus assentamentos. Junto à parede da ao culto, é decorada com grandes quadros
casa de Exu, pelo lado de fora, está o casal com representação dos Orixás Oxum, Oxalá
de Exus de rua, cuja casa é aberta, o chão e fotografias ampliadas do Zelador de san-
é nu, e é coberta por um meio-telhado. Em to. 36 Os símbolos de Xangô que enfeitam
frente à casa dos Exus mora Ogum31 de rua, e suportam a cumeeira em Palmeirais, são
sua casa não tem nenhum obstáculo à visão representados pelo poste central do bar-
de seu imponente assentamento a não ser a racão sobre o qual repousa uma gamela37
folhagem espessa do majestoso dendezeiro. com outros elementos rituais, a exemplo,
Ao lado dele, ficam os quartos de Ogum e das casas tradicionais da Bahia, e contém a
Oxóssi32 da casa, construção de meias pare- mesma simbologia dos “aspectos que ligam
dessubdividida internamente, arejada por a presença destes símbolos aos seus mitos
fileiras de tijolos vazados e com portas de de origem” (BARROS, 2011, p. 33), e sen-
entrada protegidas por mariôs. 33 do Palmeirais uma casa da tradição Queto
Seguindo por este lado direito de quem entrega a cumeeira a Xangô como no Axé
entra no terreiro, se vislumbra um novo am- Opô Afonjá. No entanto, a história da casa
biente aberto com uma vegetação mais va- de Palmeirais começou a ser construída há
riadaservindo de limite, é a casa de Ossãe 34, muitos anos atrás, na tradição de angola,
o orixá detentor do segredo das plantas. Ao fato que será tratado mais adiante.
lado, uma mureta baixa em forma de arco O grande barracão toma o terreno de
limita o pé de Tempo, inquice angolano, e lado a lado, e não se oferece somente às prá-
ainda abriga Oxumaré – a serpente sagra- ticas religiosas, mas também, às reuniões
da da nação jêje. Do outro lado da alameda sociais e comemorações após os toques de
em frente ao pé de tempo, está Azanadô 35 candomblé. No canto esquerdo do barracão
- a árvore sagrada cultuada na nação jêje e foi construído um lago para Oxum38 onde
que recebe dos filhos da casa oferendas de nadam diversas espécies de peixes, que divi-
frutas, doces e comidas secas para proteção dem o espaço com plantas aquáticas e uma
de mazelas e problemas ligados à saúde. fonte central.
Após as casas dos orixás de fora, o gran- Em dias de festa, as laterais do barracão
de barracão, onde acontecem os festejos e são utilizadas para se distribuir cadeiras,
danças, recebe quem entra com uma vista do lado direito o público em geral, e do es-
querdo os convidados mais ilustres e prati-
31 Orixá iorubano guerreiro.
32 Orixá iorubano caçador.
cantes da religião. No fundo a esquerda do
33 Folha de palma desfiada utilizada para prote- 36 O mesmo que Babalorixá ou pai de santo.
ger da presença e influência dos maus espíritos 37 Utensilio feito de madeira utilizado na cozinha
(nota da autora). votiva, além disso, é normalmente, neste reci-
34 Orixá iorubano detentor do segredo das plantas. piente que se oferece as comidas rituais ao orixá
35 Representado por uma árvore consagrada por Xangô.
oferendas e pedidos de saúde pelos componen- 38 Divindade iorubana que no Brasil tem como ele-
tes da casa de santo. mento principal as aguas doces.
barracão, uma construção mais elevada que bém as dos convidados, tanto em datas co-
o nível do chão fica o pepelê39 da orquestra memorativas como também nos frequentes
de atabaques, de onde os Ogãs40 invocam os encontros para o funcionamento cotidiano
orixás através de cantigas e ritmos próprios da casa. As duas portas da cozinha se abrem
a cada um. Os três atabaques, principais ins- para um pátio interno, que é rodeado pelos
trumentos do culto do candomblé, têm no- quartos de santo, onde estão abrigados os
mes específicos, sendo que do maior para o assentamentos dos orixás dos componentes
menor, são denominados “rum”, “rumpi” e da casa, Yaô e abiãns. 46 No primeiro quarto,
“lé”. 41 Os atabaques podem ser acompanha- ao lado da cozinha, moram tanto os santos
dos por outros instrumentos musicais, como cujos ibás47 são de “louça” quanto os santos
o “gã ou agogô” 42 e pelo “bambolon” 43, ins- assentados em peças de “barro”. Os santos
trumentos de percussão, que juntos dão so- cujas representações são em peças de “fer-
noridade às cantigas e marcam o ritmo da ro”, Ogum e Oxosse, Oxumarê e Ossãe, além
dança dos orixás. dos Baras ou Exus, ficam em seus respecti-
Para o barracão, ao lado da cadeira do vos quartos do lado de “fora”, na parte da
Babalorixá, se abre a porta que o liga à parte frente do Ilê.
intima da casa de santo. O primeiro cômodo No outro lado do pátio internose locali-
é o pegi 44 destinado a guardar os pertences zam oquarto de dormir e de trocar de roupa,
dos orixás, vestimentas, paramentos, ob- embora nesta casa a maioria dos compo-
jetos de uso durante as cerimônias. O pegi nentes sejam mulheres, os homens também
está ligado ao roncó45 e separado deste por
fazem uso destes quartos para as mesmas
uma parede que tem uma porta constante-
finalidades. Separando os quartos de ves-
mente fechada. O roncó é um dos espaços
tir do quarto dos assentamentos dos santos
mais sagrados da casa de santo, aonde ocor-
dos filhos de santo da casa, está a morada
rem as obrigações sacrificiais em que se ho-
de Oxalá, onde ficam os ibás dos santos per-
menageiam os orixás. O corredor ao lado do
tencentes ao Babalorixá, cuja centralidade
pegi, pelo lado de fora, leva à cozinha onde
do cômodo reforça a importância do orixá
são preparadas as comidas votivas e tam-
para o culto em geral, e para esta casa em
39 Nicho onde se pode destacar ou guardar ele- particular.
mentos específicos, geralmente, religiosos.
40 Titulo honorifico que tradicionalmente no can-
Nesta sucinta descrição dos espaços do
domblé é designado aos homens para que cui- Axé Palmeirais é possível verificar mais uma
dem e defendam os terreiros de perigos de in- vez, a afirmação de Pessoa de Barros, que
vasão ou outro. Para estes homens há categorias
diferentes de Ogãs atribuídas pelos lideres de relaciona a coexistência de divindades origi-
terreiros. Os Ogãs podem ter atribuições desde nais de lugares diferentes em um só lugar,
tocar os instrumentos até o sacrifício de animais.
quando afirma: “as casas de santo redese-
41 Instrumentos musicais rituais de percussão uti-
lizados nas cerimonias de candomblé. nham, no caso brasileiro, este antigo reinado
42 Instrumento composto de cones de ferro que federativo, onde os quartos de santo, ou Ilês
produzem um som estridente e marcante.
43 Instrumento musical feito de madeira cavada e
-orixás representam as antigas cidades-esta-
tocado com um bastão, que produz um som aba- 46 Denominações que marcam o nível de aprendi-
fado, original da Guine Bissau. zado dos praticantes. Yaos são filhos de santo até
44 Comodo sagrado interno a casa de candomblé os sete primeiros anos de iniciação. Os abiãns
onde são guardados os pertences e paramentos são pessoas que ainda não se submeteram a fei-
dos orixás utilizarem durante as cerimonias. tura de cabeça (N.A.).
45 Comodo sagrado interno onde ocorrem as obri- 47 Representação particular das divindades dos
gações dos filhos de santo da casa. componentes da casa.
dos, inscritas neste território simbólico” (id. sim como o fator de maior polêmica na his-
2011), a coexistência de orixás de diferentes tória dos candomblés de angola no Rio de
“nações” do candomblé em Palmeirais pode Janeiro, se assemelhava a de Joãozinho da
ser considerada como um padrão utilizado Goméia: Ode Coiaci incorporava o caboclo
pela maioria das casas de candomblé no Rio Sultão das Matas, assim como Joãozinho da
de Janeiro. No Axé Palmeirais, a definição Gomeia ficou famoso pelo caboclo incorpo-
para esta coexistência sagrada pacífica esta- rava, “seu Pedra Preta”. Ainda no inicio da
ria mais próxima a definição de milonga48 de década de 1970, Odé Coiaci iniciou a mãe de
Xicarangomo49, ou seja, uma mistura de sa- santo falecida do líder de Palmeirais, quan-
beres e práticas construídas a partir de frag- do este apesar da pouca idade, já trabalhava
mentos de religiões de matrizes africanas com caboclos e exus na umbanda.
mantidas nas memórias recuperadas daque- Essa herança de misturas foi implantada
les aspectos culturais e religiosos deixados no Axé Palmeirais, embora os cultos se rea-
no continente distante. lizem em diferentes datas encaixadas no ca-
lendário litúrgico anual da casa de candom-
A constituição das blé, as festas para os Exus e para os caboclos
identidades no Axé Palmeirais ocorrem anualmente. O Axé Palmeirais é
constituído por núcleos de famílias consan-
Nos mais de trinta anos de existência o Axé
guíneos, inclusive pelos filhos e netos da mãe
Palmeirais recebeu e iniciou muitos filhos
de santo falecida. Os componentes da casa,
de santo, que na maioria das vezes vieram
na sua maioria, chegaram a casa por indi-
para a casa por indicações de familiares que
cação de um parente. Alguns descendentes
já faziam parte do axé, portanto, as ligações
da casa que já atingiram a maioridade reli-
familiares sociais podem sofrer transforma-
giosa fundaram seus próprios Ilês-Axé, e se
ções na lei do santo. A origem do Ilê é bem
não empregam os ensinamentos conforme
“sui generis” tendo em vista queprovem da
receberam reconhecem que prevalece um
raiz de angola, que na década de 1970 esta-
eixo central de conhecimentos adquiridos, e
va no auge dos noticiários sobre o candom-
que, variam os ritos segundo alguns fatores,
blé do Rio de Janeiro. O Axé da Goméia co-
tais como: influências externas, demandas
lhia os frutos do sucesso do seu líder, cuja
modernas e adaptações necessárias a cons-
fama ultrapassou as fronteiras do estado e
tituição e manutenção do seu grupo social.
do país. A roça de Ode Coiaci50 localizava-se
Durante as reuniões na cozinha da casa
no bairro do Campinho entre Madureira e
de santo nos preparativos das comidas e
Jacarepaguá, e a reputação do seu líder, as-
outros afazeres, foi possível verificar, atra-
48 A milonga significa mistura na linguagem ritual
vés das narrativas de algumas mulheres, as
dos candomblés angola, e é assim, referida por
Xicarangomo durante no encontro entre as na- informações que ilustram também, a convi-
ções do candomblé em Salvador. vência pacífica e as trajetórias interessantes
49 Dijina de Emetério de Santana, sacerdote baiano
do candomblé angola, que durante um encontro
de componentes da casa. Nestas ocasiões
de pesquisadores e praticantes do candomblé em que as “egbomins” 51 relataram suas
realizado em Salvador, desenvolveu a ideia do convivências, adaptações, justaposições e
que chamou milonga aquilo que seria uma mis-
tura de saberes dos povos do santo de diversas 51 Pessoas iniciadas na religião do candomblé que
proveniências. (N.A.). já atingiram a maioridade no santo, estando ap-
50 Dijina pelo qual era conhecido João Pedro Ce- tas a abrir suas próprias casas e iniciar seus fi-
lestino, Odé Coiaci – o preto. lhos de santo (N.A.).
misturas, estavam presentes em Palmeirais que muito se tem que adaptar para suprir as
para as obrigações e afazeres cotidianos na necessidades do “santo” 52 mediante as im-
casa, embora já tivessem constituído seus posições da vida moderna, traduzidas pelas
próprios terreiros. Segundo elas, replicam dificuldades de encontrar objetos, folhas e
em suas casas, as orientações e as práticas outros materiais fundamentais ao culto dos
segundo o aprendizado que obtiveram do Orixás, Voduns ou Inquices. Entre elas, uma
seu Zelador. Com base nas conversas ao pé declarou:
dos fogos, verificou-se que as misturas cul- “Eu sou muito a favor do compartilhamento
turais, são estratégias comuns no cotidia- de conhecimentos dentro da religião, o com-
no das casas daquelas mulheres, como o é partilhamento de competências para se che-
também, em Palmeirais. O tratamento das gar a um objetivo, se um orixá bate a sua por-
qualidades de santo (considerando-se que ta, ele quer ser cultuado por você, pelo seu
axé e é muito valido que busquemos o conhe-
as qualidades são indicativas de nações do
cimento ou a competência de outro zelador,
candomblé), e as formas de reconhecimen- de outra nação para fundamentar a iniciação
to de divindadesde outras nações, que não daquele individuo, é muito rico e importante
aquela que a casa mantém os fundamentos, aprender com o outro, entender o diferente
é questão de sensibilidade e bom senso. Dos ou novo, saber ouvir e aprender com outro
olhar, com o olhar do outro que naquele mo-
ricos detalhes na descrição do arsenal de es-
mento tem as competências necessárias para
tratégias que empregam no culto em suas te subsidiar naquela função” (Egbomin de
casas, pequenas partes foram selecionadas Iansã. Entrevista realizada em 2015).
para compor este texto.
É unanime entre elas, que há acolhimen- Complementado por outra egbomin
to de Orixás, Inquices ou Voduns, ou seja, “Já tive uma pessoa feita do Nkise Kitembo
qualquer divindade, independente da anti- que veio me pedir ajuda espiritual, procurei
ga origem regional no continente africano, orientar como pude, mas expus que não do-
minava o conhecimento para cuidar do Nkis-
e que são encaminhadas de acordo com os
se, e a encaminhei para uma amiga da minha
seus desejos em relação ao filho de santo. total confiança, e ambas, se afinaram muito
Não se constitui, portanto, empecilho para bem. Acredito que temos que reconhecer os
o desenvolvimento das obrigações, suas ori- nossos limites. Então, não vejo problema al-
gens convencionadas. Mas, as egbomins es- gum em encaminhar uma pessoa de outra
clarecem que, para a concretização dos de- nação, a uma pessoa que efetivamente vai
poder ajudá-la” (Egbomin de Oxum. Entre-
sígnios dos Orixás é necessário conhecer os
vista realizada em 2015).
fundamentos, a partir dos quais o tratamen-
to será oferecido. Além de concordarem que, A partir destas falas, outra questão
é necessário ter esse conhecimento, elas con- emergiu dos diálogos na cozinha do terrei-
sideram ir à busca de informações junto aos ro. Como seria possível verificar que Orixá,
mais velhos, ou recorrerem a outras autori- Vodun ou Inquice estava diante da Yalorixá
dades que possam auxiliar nos momentos de durante o jogo de búzios? Na prática, como
dúvida. Evocam para isso, suas qualidades estas diferenças são reconhecidas? A via de
pessoais que definem como: fé, sacrifício, comunicação mais comum entre elas e os
ehumildade, além da cultura que pretendem
52 Designação corriqueira entre os componentes
preservar com o seu ato de solidariedade. da casa de santo para denominar orixás, inqui-
Compreendem que muita coisa se perdeu e ces ou voduns.
orixás, é o jogo de búzios, o oráculo que é um religioso foram estudadas no âmbito da so-
dos elementos centrais da religião dos orixás ciologia das religiões, que se propôs verificar
trazidos pelos escravos iorubanos (PRANDI, como os “efeitos sociais do “pertencimento
1993, p. 82). A confiança e a fé de que o pró- religioso” interferem no comportamento e
prio Orixá encaminha a pessoa para a casa na tomada de decisões do individuo” (NO-
escolhida também apareceu em seus rela- GUEIRA, 2009). Dessa forma, o indivíduo
tos. As egbomins reconhecem também, que passa a desempenhar um papel que foi de-
há diferença na natureza de cada uma das finido e organizado pela religião, que inter-
forças divinas que se apresentam, pois não fere no seu pensamento e na sua forma de
sendo humanas podem ter energias diferen- se ver, tornando-a necessária a ele, e ao seu
tes, e como tal, devem ser cultuadas. Orixás, desempenho frente à humanidade. Na teo-
Voduns, e Inquices, têm a mesma essência, ria de Durkheim (1997), a religião é um “fato
porém, são originariamente cultuados de eminentemente social” e se configura como
formas diferentes, e sob outras condições a forma de explicar o impossível contextua-
sociais e culturais. lizado na vida humana (PEREIRA, 2015).
Da mesma forma como houve interpene- Às crenças cabe à construção das repre-
tração entre culturas, convivência pacífica sentações ou dos “estados de opinião”, e
no espaço dos terreiros, misturas de práti- aos ritos, a organização dos modos de ação.
cas e conhecimentos em certa medida, e as Sendo a religião um fenômeno social/cole-
milongas no final das contas, todas estas for- tivo (DURKHEIM, 1997), como tal, impli-
mas se constituem em estratégiasreinventa- ca na organização social e na elaboração de
das no Brasil para a sobrevivência e manu- mitos e ritos, na modelagem dos indivíduos
tenção do culto religioso. de uma mesma crença, interferindo na sua
Este nível de análise mais abrangente so- visão de mundo, não havendo como anali-
bre a cultura de uma população inteira se re- sar as representações coletivas sem consi-
flete e reproduz, passando do nível coletivo derar, que o todo é formado pelas partes, e
para o particular. Assim, o grupo social reli- que juntas formam o todo, as influências e
gioso projeta sua constituição cosmogônica contribuições identitárias são mútuas e con-
no próprio indivíduo, componente da casa tínuas.
de santo. Se as culturas africanas, indígenas Embora seja difícil separar elementos es-
e europeias se interpenetraram, e sob con- pecíficos de cada uma das religiões originais
dições naturais, econômicas e sociais for- da formação cultural do povo brasileiro, é
maram uma nação, outros elementos mais possível identificar com alguma segurança
específicos formaram os grupos regionais e aqueles pertencentes a uma ou a outra, mes-
locais, que por sua vez são constituídos por mo correndo o risco de incorrer na naturali-
indivíduos que tem suas trajetórias, valores zação que advém desse processo analítico. O
e processos seletivos forjados nos contex- mergulho no universo do ser humano depa-
tos oferecidos por estas condições. Neste ra-se com processos mais complexos como
universo mais reduzido, que se encerra no reflexo das interpenetrações e misturas reli-
individuo a estratégia de sobrevivência reli- giosas que o levam a admitir que, divindades
giosa e cultural, contribui para a formação de “origens” geográficas diferentes podem
de sua identidade particular. As relações conviver pacificamente em um mesmo espa-
entre os indivíduos e seu grupo social ou ço físico, seja o terreiro, seja o próprio corpo.
RESENHA
Mariana P. Candido*
* Doutora em História da África, York University, Canadá. Professora Associada, Universidade de Notre
Dame, Estados Unidos. E-mail: mcandido@nd.edu
conseguiram, com variados níveis de suces- dos estados centro-africanos. Ela enfatiza
so, resistir à invasão de suas terras. Os dois ainda a expansão da violência e da instabi-
capítulos também revelam como imagens lidade política dos estados locais frente aos
dos africanos como rebeldes, selvagens e in- ataques e negociações com a administração
civilizados foram lentamente construídas ao portuguesa e a consolidação do comércio de
longo dos séculos XVII e XVIII para deslegi- seres humanos por detrás das reformas ad-
timar a resistência e as expressões políticas. ministrativas portuguesas.
Os capítulos exploram a relação dos ambun- Em Sobas e homens do rei, Flávia Car-
du com seus vizinhos, sejam eles os súditos valho apresenta a história política e social
do Reino do Kongo ou os povos ao sul do Rio da África Centro-Ocidental em diálogo com
Kwanza. Atenção especial é dada à expansão a historiografia e alinhavada com as fontes
das guerras coloniais, aos processos de inte- históricas. Além do mérito de investigar as
riorização e ocupação além do litoral, à apro- relações de poder e sua íntima conexão com
priação do saber africano e à escravização a expansão do tráfico de escravos, Carvalho
de africanos livres. Carvalho destaca como ainda discute a natureza do estado, os sis-
o conhecimento técnico dos ambundus foi temas matrilineares de sucessão, os avassa-
vital para a implementação dos chamados lamentos e a apropriação das instituições e
“grandes projetos Iluministas” e questiona o saberes locais, sem perder de vista as trans-
projeto de governo polido.1 formações históricas que essas categorias
O capítulo 4 interroga o sucesso das re- passaram ao longo do tempo. As questões
formas pombalinas e revela a fragilidade dos abordadas pela autora devem motivar novas
tratados de avassalamento, devido à deser- pesquisas nos arquivos brasileiros, portu-
ção dos sobas e ao não-cumprimento das gueses e angolanos e servir de modelo para
cláusulas do contrato. Ao analisar as fontes contribuições futuras sobre a história de
primárias disponíveis no Instituto Histórico Angola. A publicação de Sobas e homens do
Geográfico Brasileiro e no Arquivo Nacional rei é contribuição importante e disponibiliza
de Angola, a historiadora estuda a expansão para o público brasileiro uma investigação
da guerra e da violência para o interior de de ponta sobre a região do continente afri-
Angola e ao sul do Rio Kwanza durante o cano demograficamente mais afetada pelo
final do século XVIII e o começo do século comércio transatlântico de escravos. E con-
XIX. No processo, Flávia Carvalho defende solida Flávia Maria de Carvalho como espe-
que a colonização de Angola precede a Con- cialista no passado angolano.
ferência de Berlim (1884-1885) e que o pro-
jeto colonial não logrou expandir-se além de Recebido em: 23/06/2017
Luanda graças à intervenção e à força militar Aprovado em: 14/08/2017
RESENHA
LOVEJOY, Paul E. Jihād in West Africa during the Age of Revolution. Athens:
Ohio University Press, 2016.
O período entre os anos finais do século te histórica, poisos povos de parte conside-
XVIII e primeiras décadas do século XIX rável da África Ocidental eram muçulma-
foi de intensas transformações estruturais nos desde meados do século XI.1 “Pessoas
na África Ocidental e no Sudão Central. se converteram. Este não é problema, mas
Uma série de Jihād lideradas por líderes quando, onde e porque a conversão ocorreu
religiosos eruditos e reformistas transfor- requerem uma análise de contexto histórico”
mou as instituições políticas e sociais da (LOVEJOY, 2016, p. 05). Para o historiador,
região e contribuiu para as mudanças em a questão relevante não é a da “conversão”,
curso no mundo atlântico. De autoria do mas sim a do impacto do Islã e das Jihād na
historiador africanista Paul E. Lovejoy, o África e no mundo atlântico no período.
livro Jihād in West Africa during the Age Um segundo ponto, importante no decor-
of Revolutions [Jihād na África Ocidental rer do livro, é a reflexão sobre etnicidade. O
durante a Era das Revoluções] pretende in- autor, em prévio artigo (LOVEJOY, 2002a)
serir a África nos debates na chamada Era discorre sobre o que chama de uma análise
das Revoluções. mais sofisticada sobre o conceito de etnia no
O livro se divide em oito capítulos e uma contexto da África Ocidental, o que faz tam-
introdução, sendo a primeira parte do tra- bém em outrosartigos (LOVEJOY, 2002b;
balho dedicada a uma explicação da organi- LOVEJOY, 2014). “Como eu tenho explica-
zação dos conteúdos do livro, de alguns ter- do, etnicidade é um fenômeno complicado e
mos centrais e reflexões conceituais a serem que é situacional” (LOVEJOY, 2016, p. 06).
desenvolvidas no decorrer dos capítulos. A Para esta análise crítica, segundo Lovejoy,
ideia de africano “islamizado”/ “islamiza- referências às etnias nas fontes precisam ser
ção”, muitas vezes correntes em trabalhos explicadas para identificar o que elas signifi-
sobre o Islã na África e na diáspora africana,
1 VÉRAS, Bruno. Viagem e Alteridade: A
é criticada tanto por seu caráter eurocêntri- construção do “outro” na Rihla de Ibn
co quanto por uma incoerência propriamen- Battuta – séc. XIV. Recife: EdUFPE, 2013.
* Doutorando em História pela York University, Canadá. Coordenador do Freedom Narratives Project,
SSHRC, Canadá. Coordenador do Projeto Baquaqua – www.baquaqua.com.br
cam e o que elas não significam. E a história obra. O livro é também resultado de vários
da África é chave para tanto. Como aponta anos de trabalho colaborativo junto a inte-
Martin Klein (2017, p. 240) em relação ao li- lectuais de diferentes países e línguas. Este
vro em questão, Lovejoy nos faz lembrar que método de trabalho possibilitou-o acessar
“afro-americanos foram/ eram africanos na dezenas de bancos de dados diferentes, em
América”. Algo que deve ser tomado, obvia- meia dúzia de línguas, o que pode ser perce-
mente, também para o caso do Brasil, Cuba, bido nestae em outras obras do autor.
Haiti e toda a diáspora africana. Paul Lovejoy discute no capítulo 1que
O argumento central do livro – o que a historiografia da chamada Era das Revo-
colocado de maneira clara em diferentes luções não deu a devida importância aos
seções – é de que os líderes das Jihād e os eventos ocorridos no interior do continente
regimes por eles criados posicionavam-se africano (em um pedaço do mapa que vai do
contra a escravização e venda de muçulma- Senegal ao vale do rio Nilo, no atual Sudão),
nos livres para os mercados e entrepostos eventos estes que também ajudaram a dar
cristãos (apesar disto ter, de fato, muitas forma aos episódios históricos e transfor-
vezes ocorrido) e com isso a exportação de mações populacionais do período. Este mo-
muçulmanos via rotas transatlânticas sofreu mento, que segundo Eric Hobsbawm vai de
um declínio no decorrer do século XIX. Para 1789 a 1848, foi de intensas transformações
defender este argumento, Lovejoy vale-se de estruturais e políticas. Exemplos destas fo-
uma extensa bibliografia secundária, bem ram as revoluções liberais e de caráter ilu-
como documentos e fontes primárias es- minista na França e EUA, a revolução em
critas em inglês, francês, hauçá, português, Santo Domingo, pressões abolicionistas no
alemão, kanuri e árabe. atlântico, independências na América Lati-
Boa parte da documentação já era bem na e transformação no mundo da produção
conhecida e fora trabalhada pelo autor em e circulação decorrentes da Revolução In-
diferentes livros e artigos.2 Logo, parte do li- dustrial inglesa.
vro também é dedicada a um esforço de sín- Nos três capítulos seguintes, o autor tra-
tese e de um exercício acadêmico de fazê-las ta propriamente da história das Jihād no
conversar em prol do argumento central da Sudão Ocidental e Central. Ele começa sua
2 Por exemplo: LOVEJOY, Paul E. Caravans of narrativa mostrando como as primeiras
Kola. The Hausa Kola Trade, 1700-1900. Jihād do Fuuta Bundu, Fuuta Jalon e Fuu-
Zaria: Ahmadu Bello University Press; Ibadan:
University Press, 1980; LOVEJOY, Paul E.; LO- ta Toro estavam conectadas através de uma
CKHART, Jamie Bruce (ed.). Hugh Clapper- ideologia reformista comum, bem como
ton into the Interior of Africa: Records of
a circulação de professores e eruditos mu-
the Second Expedition 1825-1827. Leiden:
Brill, 2005; AL‑BAGDADI, Abd al‑Rahman. çulmanos fulanis dentro destes espaços. A
The Amusement of the Foreigner. Trand partir do início do século XIX, estas ideias
Yacine Addoun and Renne Soulodre‑La Fran-
ce. Toronto: Nigerian Hinterland Project, York ganham força no Sudão Central e levaram
University, 2001 (Disponível em: <www.yorku. a construção do Califado de Sokoto em ter-
ca/nhp/shadd/baghdadi.pdf>; acessado em ritório hauçá a partir de 1804. Este Estado
20/11/2017); LOVEJOY, Paul E. The Clapper-
ton-Bello Exchange: the Sokoto Jihād and the foi o coração intelectual, inspiração e mes-
Trans-Atlantic Slave Trade, 1804-1837. In: mo suporte militar para outras várias Jihād,
Christopher Wise (ed.). The Desert Shore:
Literatures of the African Sahel. Boulder:
ainda na primeira metade do século XIX.
Lynne Rienner, 2000, p. 201-228. Este foi o caso, por exemplo, da Jihād res-
ponsável pela guerra no território bambara lhos futuros, assim como Mariana Candido
e a formação do Império do Mancina com (2013) o fez de forma interessante para o
capital em Hamdullahi, em 1820. Um úl- caso da África Centro-Ocidental em An Afri-
timo movimento dentro da cronologia da can Slaving Port and the Atlantic World.
chamada Era das Revoluções iniciou-se em Nesta seção sobre a diáspora africana e o
1848 com a hijra de Al-Hajj ‘Umar, genro de Brasil, Paul Lovejoy pôde revisar alguns pon-
Muhammad Bello de Sokoto. Ele conquistou tos levantados em seu artigo Jihād na África
a região aurífera do Bambuk, entendendo- Ocidental durante a “Era das Revoluções”
se ao Segu e às fronteiras com as colinas de (LOVEJOY, 2014) e respondidos por João
Bandiagara. O estabelecimento de um cen- José Reis (REIS, 2015). As críticas de Lovejoy
tro militar em Dinguiray serviu como apoio com relação à interpretação das etnicidades
para campanhas militares em larga escala em Rebelião Escrava no Brasil (REIS, 2003)
(SMITH, 1961, p. 181), bem como para o ex- são colocadas de forma diferente do debate
tensivo comércio de armasdefogo compra- citado acima, o que torna a leitura dos dois
das de comerciantes franceses. capítulos essencial para um entendimento da
Os capítulos 5 e 6 conectam de forma presença e da concentração excepcional de
mais direta a história das Jihād da Áfri- africanos muçulmanos na Bahia, bem como
da historiografia e das interpretações sobre o
ca Ocidental e a diáspora africana em seus
tema desde o início do século XX.
aspectos culturais, populacionais e de re-
O capítulo 7 conecta a história do Cali-
sistência escrava. O destaque para estes
fado de Sokoto com os esforços britânicos
capítulos está no estudo demográfico das
para o fim do tráfico atlântico de escravos.
populações escravizadas nas Américas em
As negociações diplomáticas para o fim do
relação aos eventos ocorridos no interior da
tráfico entre o diplomata Hugh Clapperton e
África Ocidental e do Sudão Central. Para
o califa Muhammad Bello na década de 1820
tanto, Lovejoy faz uso extensivo – e crítico –
são analisadas em comparação com o fenô-
de diferentes bancos de dados digitais sobre
meno antiescravista (de indivíduos nascidos
a questão. Sete das tabelas dentro do livro
livres e muçulmanos) dentro do próprio ca-
foram elaboradas com a ajuda do The Trans
lifado. Lovejoy argumenta que a “África Oci-
-Atlantic Slave Trade Database (www.sla-
dental poderia ter suprido todos os escravos
vevoyages.org), outras duas através do Sla- que foram enviados às Américas no período
ve Biographies: The Atlantic Database Net- posterior à em torno de 1760, mas não o fez”
work (www.slavebiographies.org) além de (LOVEJOY, 2016, p. 165). A questão do au-
materiais consultados no Liberated Africans mento do número de escravos e o uso de seu
Project (www.liberatedafricans.org). Estes trabalho na produção de commodities co-
são bancos de dados contendo toneladas de nectadas à industrialização em vários espa-
dados sobre a diáspora africana e migração, ços do Atlântico em um período de combate
além de documentos originais que ainda são ao comércio de escravos é colocada dentro
subutilizados no Brasil, tanto para pesquisa de um debate maior na chamada Second
e ensino universitário. O preço para utilizá Slavery [Segunda Escravidão].3
-los é excelente: grátis. Acredito que o mé- 3 KAYE, Anthony E. The Second Slavery: Moder-
todo com o qual Lovejoy faz uso destes ma- nity in the Nineteenth- Century South and the
Atlantic World,” Journal of Southern History 75,
teriais para conectar os dois lados do Atlân- no. 3, p. 175-195, 2009; TOMICH, Dale. The ‘Se-
tico pode servir como inspiração para traba- cond Slavery’: Bonded Labor and the Transfor-
Por fim, o capítulo 8 é de fato o mais inte- não tarde, pois o livro e as discussões nele
ressante em termos metodológicos. No Bra- presente merecem ser lidas e debatidas no
sil, como no Caribe e outros espaços atlânti- Brasil.
cos, é comum olhar para a África no intuito
de entender os fenômenos e práticas sociais Referências Bibliográficas
do outro lado do Atlântico. É um exercício CURTIN, Philip D. (ed.). Africa Remembe-
básico. Porém, neste capítulo, Paul Lovejoy red Narratives by West Africans from the
utiliza documentos biográficos e autobiográ- Era of the Slave Trade. Madison: University
of Wisconsin Press, 1967.
ficos produzidos nas Américas (e em Serra
Leoa) para entender os fenômenos e eventos KLEIN, Martin. Paul Lovejoy. Jihād in West
ocorridos na África Ocidental. Este é o caso Africa during the Age of Revolutions.
Athens: Ohio University Press, 2016. African
de Muhammad Kaba Saghanughu4 do Fuuta Studies Review, 60(3), p. 239-240, 2017.
Jalon (1823), Mahommah Gardo Baquaqua5
LOVEJOY, Paul E. (ed.). Slavery on the Fron-
(1854), entre outros.
tiers of Islam. Princeton: Markus Wiener,
Enfim, o livro tem aspectos comuns 2004.
em volumes de caráter narrativo: eventos,
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África.
fenômenos e acontecimentos históricos; Uma história de suas transformações. Rio
porém é um livro essencialmente analíti- de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
co, levantando questões e interpretações
LOVEJOY, Paul E. Identidade e a Miragem da
polêmicas. É um livro não só sobre histó- Etnicidade: A Jornada de Mahommah Gardo
ria da África, mas da diáspora em sua co- Baquaqua para as Américas. Afro-Ásia, Vol 27,
nexão com o outro lado do Atlântico. Por p. 9-39, 2002 (b).
fim, pensando com um estudante e prole- LOVEJOY, Paul E. Jihād na África Ocidental du-
tário, o preço do material não é alto: 27,00 rante a ‘Era das Revoluções’ - Rumo a um Diá-
dólares. No mais, espero que o mesmo es- logo com Eric Hobsbawm e Eugene Genovese.
Topoi, Vol. 15, n. 28, p. 22-67, 2014.
teja disponível em mais algum tempo em
“bibliotecas digitais compartilhadas” flu- LOVEJOY, Paul E.Methodology through the
tuando com seus PDFs em nuvens piratas, Ethnic Lens: The Study of Atlantic Africa. In:
FALOLA, Toyin; JENNINGS, Christian (eds.).
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4 DADDI ADDOUN, Yacine; LOVEJOY, Paul E. REIS, João José. Resposta a Paul Lovejoy. To-
Muhammad Kābā Saghanughu and the Mus- poi, v. 16, n. 30, p. 374-389, jan./jun., 2015.
lim Community of Jamaica. in LOVEJOY, Paul
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201-20 (Disponível em: http://www.yorku. lutions of the 19th Century. Journal of the
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ter10%20pages%20199-218.pdf Acessado em
p. 169–85, 1961.
20/12/2017).
5 VÉRAS, B. R. et al. Projeto Baquaqua. (Dis-
poníel em: <www.baquaqua.com.br> Acessado Recebido em: 08/07/2017
em 20/12/2017. Aprovado em: 11/09/2017
Os originais podem ser enviados em português, francês, espanhol e inglês. Todos os artigos devem
ser acompanhados
A submissão de artigos e resenhas para a revista África(s) só poderá ser feita por mestres e doutores.
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quanto à sua adequação aos objetivos mencionados acima, a ser realizada pelos Editores.
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cebidas e aprovadas.
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Roman 12, com espaço 1,5. As citações de mais de cinco linhas deverão ser feitas em destaque,
com fonte 11 e recuo 2,5 cm. Margens: superior e esquerda: 3,0 cm; inferior e direita: 2,0 cm. Os
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chave. Os resumos deverão ser acompanhados de uma tradução em inglês, ou nas línguas aceitas
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dos artigos. Devem referir-se a livros nacionais publicados até cinco anos anteriores a data da
submissão à revista. Para livros estrangeiros admite-se que tenham sido publicados nos últimos
dez anos.
7. As referências bibliográficas completas devem ser listadas em ordem alfabética, no final do ar-
tigo. Quando citada, a obra deve ser indicada de maneira simplificada no corpo do artigo: (AU-
TOR, ano, p. número).
Capítulo ou parte de livro: SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson André da Silva.
Coquí: um coronel negro no sertão baiano (Morro do Chapéu- BA, 1864-1919). In: LIMA, Ivaldo
Marciano de França; DAMASCENO, José Jorge Andrade; SANTOS, Joceneide Cunha dos; VIEIRA
FILHO, Raphael Rodrigues; SAMPAIO, Moiseis de Oliveira; FERREIRA, Jackson Andre da Silva
(Orgs). Áfricas, Índios e Negros. 1ª Ed. Recife: Bagaço, 2016, p. 365 – 399.
Artigo em periódico: LIMA, Ivaldo Marciano de França. Selvas, povos primitivos, doenças, fome,
guerras e caos: a África no cinema, nas histórias em quadrinhos e nos jornais. África(s). V. 01, p. 81-
105, 2014.
Dissertação: SANTOS, Joceneide Cunha dos. Entre farinhadas, procissões e famílias: a vida de
homens e mulheres escravos em Lagarto, Província de Sergipe (1850-1888). Dissertação (Mestrado
em História Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2004.
Tese: VIEIRA FILHO, Raphael Rodrigues. Os Negros em Jacobina (Bahia) no século XIX. Tese
(Doutorado em História do Brasil) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.
Trabalho apresentado em evento: SANTOS, Cristiane Batista da Silva; BISPO, Daniana Oli-
veira. Identidade negra no ensino e aprendizagem de história local e regional nas experiências do
PIBID. In: V Encontro Nacional das Licenciaturas - IV Seminário Nacional do PIBID, 2014, UFRN.
Natal, ENALIC, 2014, p. 10-15. Disponível em: http://enalic2014.com.br/anais/anexos/1247.pdf
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