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A Ética de Kant: notas introdutórias

Introdução

Iniciar uma exposição sobre Kant é sempre um grande desafio. Especialmente


porque em determinado momento não conseguimos pensar senão conforme suas palavras e
muitas vezes, na tentativa de evitar os excessos de citações diretas, nos pegamos
rearranjando seus próprios termos sem, contudo, dizer nada além do que já foi escrito por
ele. Portanto, já nos desculpamos se o texto que segue não contribuiu para o leitor de forma
substancial ou que as palavras escritas não digam mais do mesmo.

No intuito de apresentar os traços característicos de uma ética no pensamento


kantiano, devemos sempre ter em mente que a propositura moral de Kant é uma moral da
razão pura prática (HERRERO, 2001). Isso requer compreender que ao estabelecer o
conhecimento racional como formal ou material, Kant divide dentro da filosofia material dois
campos de leis, quais sejam: leis da natureza e leis sobre a liberdade

As investigações analíticas que recaem sobre as leis da liberdade constituem


preceitos muito difundidos e influentes no âmbito jurídico, pois a ciência que lida
propriamente com as leis da liberdade é a ciência ética ou dos costumes. Ao debruçar-se
sobre a ética, Kant quer nos demonstrar que as leis nesse caso são de acordo com as quais
“tudo deve (388) acontecer, tomando, todavia, em consideração as condições, mercê das
quais muitas vezes não acontece o que deveria acontecer” (KANT, ano, p.).

Nesse ponto, já pode se entender os sentidos aplicados à ética ou aos costumes.


Entretanto, cabe ainda entender porque se busca uma base metafísica para a ética. Como já
sabemos desde a crítica da razão pura, Kant enuncia uma diferenciação importante em seu
raciocínio entre uma filosofia empírica e uma filosofia pura. A primeira vinculada à Commented [VB1]: página 66 da fundamentação.

experiência se opõe, em sentido distintivo, daquelas doutrinas que derivam seus princípios a
priori (Kant, ano, p.).
A filosofia que define seus princípios em sentido exclusivamente formal é
denominada no estudo de Kant como filosofia lógica, ao passo que a filosofia pura
“circunscrita a determinados objetos do entendimento, recebe o nome de Metafísica.”
(KANT, ano, p.) Portanto, compreendemos a ética em Kant como uma filosofia pura
adstrita a determinado objeto do entendimento, qual seja: a ciência da liberdade [ou as leis
sob as quais tudo deve acontecer].

Nesse sentido, o objetivo de Kant é encontrar um princípio fundante do agir ou um


dever incondicionado, já que após a construção realizada em Crítica da razão pura, se reserva à
razão um uso como constitutivo na esfera do agir e regulativo no processo de entendimento
(SALGADO, 2008, p. 23). Esse princípio da obrigação “não deve ser aqui buscado na
natureza do homem, nem nas circunstâncias em que ele se encontra situado no mundo, mas
a priori.” (KANT, ano, p. ). Isso significa dizer que as preocupações estão voltadas para um a
priori puro da moral, já que, “mesmo no senso comum, prevalece a noção de que a lei, para
ser considerada lei moral e, portanto, instituir uma obrigação, precisa ter em si uma
necessidade absoluta” (SALGADO, 2008, p. 26).

É possível perceber que a ética em Kant não tem ligações como o mundo empírico
ou sensível, é voltada para o sujeito. Isso muito vai em encontro com o desafio que o
filósofo nos faz em O que é o esclarecimento, ou seja: “Sapere aude! Tem a coragem de te servires
do teu próprio entendimento!” (KANT, ano, p. 1). Isso proporcionou não somente uma Commented [VB2]: Adicionar citação do Herrero. Talves
Mayos (criticismo kantiano)
revolução nas formas do entendimento, como também nos fundamentos do agir moral, que
se volta agora totalmente para a o sujeito.

A pergunta “qual é o fundamento dessas obrigações incondicionadas?” é de fato o


principal ponto na filosofia moral kantiana, levando a alguns autores como Guido Antônio
de Almeida a afirmar que:

[...] a resposta kantiana parece-me plausível e mesmo, arrisco-me a


dizer, a única possível, a saber: porque isso [o fundamento das
obrigações incondicionadas] é uma condição do valor que nos
atribuímos e da consciência que temos de nós mesmos como seres
racionais. (ALMEIDA, 1997, pag. 175)

Quando se trata de um fundamento moral de uma ação o que está em questão não
são as ações exteriores, mas os princípios internos da ação. Isso implica em dizer que nossa
vontade, para estar dotada de um motivo moral, deve ter o poder de se determinar
independentemente de qualquer condição do mundo empírico ou sensível. Mas o que isso
propriamente significa?

Ora, nossa vontade para ser dotada de um valor moral deve ser conforme uma
máxima que não seja a satisfação de objetos ou fins do mundo empírico. Conforme Kant:

Só o que está ligado à minha vontade unicamente como princípio, e


nunca como efeito, o que não serve a minha inclinação, mas a
domina, e ao menos a exclui totalmente da avaliação no ato de decidir,
por conseguinte a simples lei por si mesma é que pode ser objeto de
respeito, e, portanto, ordem, para mim. (KANT, ano, p. )

Assim, dever se torna a necessidade de cumprir ação pelo respeito à lei. E a ação que é
cumprida em respeito à lei retira seu valor moral não do fim que por ela deve ser alcançado,
mas da máxima que a determina. Isso não significa que Kant ignora as inclinações ou os fins
como determinantes das ações humanas. A bem da verdade, como será demonstrado, Kant
dedica esforços para distinguir uma ação pautada na lei moral de uma ação pautada em uma
máxima meramente condicionada, para afirmar que a representação do dever,

e em geral da lei moral, quando é pura, ou seja, não mesclada de acréscimos


estranhos de impulsos sensíveis, exerce sobre o coração humano, por via da só
razão (a qual então, pela primeira vez, se dá conta de que pode ser prática por si
mesma) uma influência muito mais eficaz do que a de todos os outros impulsos
que se podem invocar no domínio da experiência, de sorte que a razão, cônscia de
sua dignidade, despreza esses impulsos e pouco a pouco se torna capaz de os
dominar. (KANT, ano, p.)
Portanto, segundo Kant, uma ação conforme o dever gera um sentimento para com
a ação de imediaticidade [inclinação imediata]. Por mais honrosa que possa ser uma ação
pautada em inclinações ela não merece respeito. Isso, pois, não é fundada em uma razão pura
que estabelece obrigações a partir de princípios a prioristicamente justificados. Falta à máxima
da ação o seu valor moral “que só está presente quando as ações são praticadas, não por
inclinação, por dever” (KANT, ano, p.). O interessante não é observar esse, digamos, já
conhecido entendimento sobre a moral de Kant, mas exatamente o efeito que agir pela razão
acarreta no mundo da experiência. De fato, é somente a partir do agir pela razão que consigo
dotar o meu ato de valor moral e, assim, estabelecer uma relação obrigacional que se reflete
em igual medida.

Nesse ponto, vem à tona umas conclusões metodológicas em Kant. O valor de uma
ação não está no mundo fenomênico ou nas circunstâncias em que o objeto da ação se
encontra inscrito, pois o fundamento moral deve vir de uma filosofia sobre as leis da
liberdade fundamentada em uma determinada metafísica.

É com base nessa rápida distinção do que caracteriza uma ação como dotada de
valor moral que nos permite caminhar com um pouco mais de precisão sobre os significados
do que torna uma ação boa em si mesma e compreender as diversas manifestações da
fórmula do imperativo categórico.

A Vontade

Na sua empreitada pela "busca e fixação do princípio supremo da moralidade" 1,


realizada na Fundamentação, Kant inicia seu trabalho com a análise do conceito de boa
vontade. Seu objetivo será o de demonstrar, pelo método analítico, todo aquele que emprega

1
FMC, p. 19
o conceito de boa vontade "é forçado a admitir"2 o pressuposto daquilo que será chamado
depois de imperativo categórico.

O que é uma boa vontade? Kant inicia a argumentação, com o intuito de responder
a essa pergunta, que muitas coisas podem ser boas no mundo. Em geral, quando nos
referimos a coisas boas ou ruins, o fazemos com um fim específico. Aquilo que pode ser
considerado bom à luz de determinadas experiências, pode igualmente ser avaliado como
ruim defronte a outras. Há, no entanto, "uma única coisa no mundo que pode ser
considerada boa em si mesma, a boa vontade."3

A boa vontade tem uma bondade em si, de valor absoluto. A boa vontade é boa
sem reservas. Sua qualidade e valor não são avaliados defronte a um fim que se queira
realizar, mas em virtude dela mesma, de tal modo que "é lícito afirmar que uma tal vontade
deve ser considerada boa independentemente de sua utilidade."4

Por que Kant fala de uma vontade boa em si mesma? Ora, é preciso lembrar que
Kant pretende fundamentar uma ética válida universalmente. Assim, a determinação da
vontade não pode e dar a partir de alguma matéria ou conteúdo, isto é, "o ato moral tem de
nascer da própria vontade que, concebida como desprovida de conteúdo e não se
determinando por nada do exterior, mas por si mesma, é vontade pura."5

No plano da Ética de Kant, só pode ser válida uma lei que consiga se revestir de
universalidade, pelo que uma ação moral, que é individual e parte de um sujeito, consegue se
elevar ao plano universal e objetivo (portanto, válido)6.

Kant rejeita uma ética empírica para propor, então, uma ética de princípios
universais. E se são universais, esses princípios precisam ser a priori, devem estar no próprio
sujeito e não podem pertencer à ordem das sensações. A razão prática não existe com um

2
HERRERO, p. 22
3
KARINE, p. 29
4
KARINE, p. 29
5
SALGADO, p. 77
6
SALGADO, p. 77.
fim, nem mesmo o de garantir ao homem maior felicidade. 7 Kant deixa claro que quer
separar seu caminho filosófico das veredas da ética eudaimônica:

Observamos de facto que, quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da
vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento; e
daí provém que em muitas pessoas, e nomeadamente nas mais experimentadas no
uso da razão, se elas quiserem ter a sinceridade de o confessar, surja um certo grau
de misologia, quer dizer de ódio à razão. 8

No seu intento de rejeitar uma ética forjada nas experiências, o filósofo prussiano
argumenta que a razão não é, aliás, o melhor instrumento para que o homem consiga a
felicidade e auto-conservação. Os instintos do homem seriam suficientes para o alcance de
seus propósitos, se estes fossem todos voltados à satisfação de seu apetite.9 Mas o homem
foi, efetivamente, dotado de razão, e essa razão foi dada como "faculdade prática"10, que irá
exercer influência sobre a vontade.

Essa vontade, assim, não será boa ou má para realizar outras intenções, mas boa em
si mesma. Para todos os intentos de suas necessidades de felicidade e bem-estar, o homem já
está bem servido de outras faculdade e talentos. Sua vontade, motivada pela razão prática,
cumprirá a função de representar o bem supremo - que não é o único bem, mas o bem
acima de todos os outros.11

Ensina o professor Joaquim Carlos Salgado:

Só a vontade pura, e, por isso, formal e autônoma, (livre, não afetada por qualquer
móvel ou inclinação) não empírica, pode construir a ética e dar moralidade às ações
dos racionais. Nenhum argumento extraído da experiência, da região empírica,
pode justificar um comportamento como ético, tampouco pode contradizer os
princípios formais da validade da ação moral. 12

Assim é que Kant irá argumentar, ainda primeira seção da Fundamentação, que não se
pode elevar à categoria de prescrição universal "aquilo que só é válido talvez nas condições

7
SALGADO, p. 77
8
FUNDAMENTAÇÃO, p. 24-25.
9
karine, P. 30
10
FUNDAMENTAÇÃO, p. 25
11
FUNDAMENTAÇÃO, p. 25-26
12
SALGADO, p. 78.
contingentes da humanidade" 13 . As leis que determinam uma vontade não podem ser
consideradas como determinantes das vontades em geral se o seu embasamento for
empírico, se forem fundadas em experiências limitadas. Para serem leis de determinação
gerais, da vontade de todo e qualquer ser racional, essas leis precisam se originar de uma
plena razão pura prática, de modo a embasarem apenas uma boa vontade.14

O homem, que não é um Deus nem um animal, nem sempre consegue motivar sua
ação de tal modo que obedeça ao ditame da lei moral. Além da razão, que lhe dota de
capacidade moral, o homem também está sujeito à sensibilidade. Essa sujeição pode fazer
com que o homem, no momento de agir, o faça de modo contrário à lei moral.

A boa vontade, no entanto, não é medida pelos efeitos no mundo sensível, nem pela
sua utilidade. Não deve ser julgada por nenhum critério exterior; se foi determinada pela
razão, de modo independente das "determinações dos instintos"15, então é uma vontade boa.
A boa vontade é fim em si mesma, diz Kant, não se presta como meio a nada, com o que o
filósofo se afasta de uma ética da felicidade ou eudaimônica.16

Dever, Máxima e Lei Moral

A proposta de Kant é de uma "moral deontológica, uma ética do dever" 17 , de


acordo com Javier Herrero. O conceito de dever é central na construção de Kant. Ele
"expressa a necessidade que a ação se realize por respeito à lei"18.

O dever está, assim, intimamente ligado à boa vontade. Quando o homem age
finalisticamente, de acordo com seu interesse, ele não age por respeito a uma lei, mas por
inclinação. Só pode ser respeitado pela vontade aquilo que tem valor como princípio, e não por
seus efeitos; aquilo que domina minhas inclinações, e não que a elas se sujeita. A vontade

13
KANT, p. 42
14
KANT, p. 42
15
SALGADO, p. 80
16
SALGADO, p. 81
17
HERRERO, p. 21
18
KARINE, p. 32
determina o respeito a uma lei moral, e quando se age de acordo com esse respeito, se age
conforme o dever. 19

Ainda a respeito do dever, esclarece a professora Karine Salgado:

Nas ações coincidentes com o dever é possível fazer uma divisão. Há ações
praticadas em conformidade ao dever e outras praticadas por dever. No primeiro
caso, embora a ação seja idêntica àquela prescrita como devida, tem uma
motivação exterior. Ou seja, a conduta é realizada visando a outro fim que não o
próprio cumprimento do dever. Do mesmo modo, há ações que são realizadas por
mero hábito e, muitas vezes, sem objetivar fim algum. Tais ações também não se
efetivam por respeito ao dever e se enquadram no primeiro grupo. 20

Não será difícil, pelo já exposto, concluir que Kant só enxerga valor moral naquelas
ações realizadas em respeito ao dever. As demais, ainda que conformes ao dever, mas
motivadas por interesses e inclinações outras, essas não têm valor moral. O valor de uma
ação moral está no respeito ao dever mesmo, sem ocupar-se de fins externos.21

Ao seguirmos no estabelecimento de conceitos importantes para a Fundamentação,


também nos deparamos com a máxima. Kant a define como um "princípio subjetivo do
querer", ao passo que a "lei prática" seria o "princípio objetivo". Em outras palavras, a
máxima se refere ao sujeito que coloca a sua vontade, por isso é princípio subjetivo. Por
outro lado, as proposições objetivas ou leis práticas "põem uma determinação como
necessária para todos os seres racionais" 22 . A máxima se apresenta, assim, como um
princípio de ação do sujeito que fará a mediação entre a lei moral abstrata e a ação concreta
do sujeito23.

Por ser o homem "de parte inteligível e de parte sensível", suas máximas podem ser
tanto materiais quanto formais, isto é, tanto direcionadas a um fim externo, quanto
constituídas a priori.24

19
20
KARINE, p. 33
21
KARINE, p. 34
22
KARINE, p. 35
23
SALGADO, p. 119
24
KARINE, p. 35
As máximas materiais ensinam o homem a agir segundo finalidades, portanto não
são encontradas no princípio objetivo. Por outro lado, as máximas formais indicam ações
por dever, por respeito à lei moral, que é objetiva. Assim, uma ação individualizada,
conforme a lei moral, realiza a máxima, como princípio subjetivo; e a máxima realizou a lei,
como princípio objetivo. O ser racional, por respeito à lei, a aceita e faz dela sua máxima25.

A lei é princípio objetivo, universal. A lei moral é universal porque tem origem a
priori, e também porque é válida para todos indistintamente. Assim:

A lei é fruto da razão, e, por isso, é válida para todos os seres racionais de maneira
apodítica. Em uma palavra, ela não é válida sob determinadas condições, mas, sim,
absolutamente válida. Ora, para que uma lei seja válida incondicionalmente, ela não
pode ter uma motivação exterior, ou seja, não pode estar fundada em algo
empírico. A possibilidade da lei – e do dever que estabelece justamente a
necessidade de observância desta lei - está na ideia de uma razão capaz de
determinar a vontade por motivos a priori.26

A lei moral é princípio formal, sem qualquer conteúdo de ordem material. Sua
principal característica é a universalidade, que a torna válida para todo ser racional. Se
imaginarmos uma vontade santa, sempre conforme a lei moral, a relação entre a vontade e a
lei é feita a partir de uma descrição, pois a vontade sempre coincidirá com a proposição do
princípio objetivo.

Mas o homem tem uma vontade afetada por dois mundos, o sensível e inteligível27;
o cumprimento da lei exige respeito a ela, caso em que a máxima do sujeito será formal e
coincidente com o princípio objetivo. Assim, para o homem, a relação entre sua vontade e a
lei moral é de ordem prescritiva 28 . A lei moral prescreve ao homem um mandamento, na
ordem do dever ser, justamente porque, pela sua natureza, nem sempre o homem
direcionará sua vontade no sentido de sua razão pura prática29.

Nos dizeres de Joaquim Carlos Salgado:

25
SALGADO, p. 120-121.
26
KARINE, p. 37
27
SALGADO, p. 125
28
HERRERO, p. 25.
29
Fundamentação, p. 48
O mandamento, o imperativo que expressa a lei moral só é pensável com relação a
um ser, no qual o cumprimento da lei moral não se faz sem sacrifício, isto é, no
qual a região sensível está sempre a obstaculizar a plena realização da lei moral.
Fosse o homem apenas razão (vontade não perturbável pelos sentidos, santa),
então não apareceria a lei moral sob a forma de imperativo, um mando que coage,
como: "tu deves", mas seria a pura espontaneidade da ação do ser racional. Como
o homem é formado de razão e natureza (esta como impulsos e inclinações), de
parte inteligível e de parte sensível, é necessário que esta se submeta à esfera
racional e que a razão domine totalmente a região sensível humana, para que seus
atos sejam morais, visto que a lei moral tem origem exclusiva na razão. A lei moral
na esfera das condições humanas surge, pois, como um imperativo, lei da vontade
motivada pelo dever, de uma vontade que pode ser afetada por inclinações e
impulsos sensíveis. 30

O Imperativo Categórico
Na Fundamentação, Kant estabelece que um princípio objetivo, enquanto obrigatório
a uma vontade sujeita a inclinações, se expressa por meio de um mandamento, cuja fórmula
será um imperativo31. Para estudar o imperativo categórico, Kant faz antes considerações a
respeito das espécies de imperativos e da possibilidade de um imperativo categórico - tema
da última seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes.

A ordem de um imperativo pode ser dada de maneira hipotética ou categórica. Os


imperativos hipotéticos são condicionados, isto é, determinam-se com vistas a um efeito.
Um imperativo hipotético precisa de um meio para um determinado fim. A ação só é
obrigatória à luz do fim objetivo visado; em outras palavras, o imperativo hipotético não
apresenta uma "obrigatoriedade categórica" 32 . Os imperativos categóricos, por sua vez,
determinam uma ação como necessária por si mesma, não se condicionam por uma
finalidade externa.

Quanto aos imperativos hipotéticos, podemos classificá-los em imperativos de


destreza ou imperativos de prudência. Os imperativos de destreza, também chamados

30
SALGADO, p. 127
31
Fundamentação, p. 48
32
KARINE, p. 40.
imperativos técnicos, ditam qual o meio mais eficaz para se atingir um determinado fim,
"sem qualquer preocupação com a razoabilidade e moralidade do fim".

Já os imperativos de prudência, embora também condicionados, buscam como fim a


felicidade. Ainda assim são de natureza hipotética, vez que seu fim é externo. Os imperativos
de prudência são tomados como conselhos, enquanto os imperativos técnicos se expressam
por regras.33

Em resumo: o imperativo técnico é o princípio da destreza, na medida em que


define a ação (ou o bem) como meio útil ou adequado a determinado fim (por isso
se chama hipotético), que alguém pode querer (problemático). O imperativo
pragmático é o princípio da prudência que define a ação (ou bem enquanto meu
bem) como o que é útil a minha felicidade (hipotético) e que é naturalmente
desejado por todos (por isso, assertório). O imperativo da moralidade define o bem
moral em si mesmo ou a ação humana enquanto boa em si mesma (por isso é
categórico) - e não apenas boa para algum fim externo a ela – e que deve ser
querida por todo ser racional (apodíctico)34.

O imperativo categórico põe uma ação como devida, mas, de modo distinto dos
imperativos hipotéticos, o imperativo categórico não pressupõe uma preocupação com um
fim externo. A ação é devida por si mesma. No imperativo categórico, encontraremos uma
necessidade incondicionada. Se ele ordena de modo incondicional, então seu conteúdo será
sempre o mesmo – por isso, há um único imperativo categórico.35 Sua fórmula será assim
expressa: "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela
se torne lei universal."36

Kant estabelece outros modos de se enunciar o imperativo categórico. Primeiro, o


da fórmula da autonomia, segundo a qual temos que é preciso agir "de tal modo que a vontade
possa considerar-se a si mesma pela sua máxima ao mesmo tempo como legisladora

33
SALGADO, 133.
34
SALGADO, p. 133

35
KARINE, p. 43
36
fundamentação, p. 59
universal" 37 . Com essa fórmula, Kant sublinha um dos pontos basilares de sua teoria:
entender o homem como legislador de si mesmo.

Com isso, Kant retira a ética no campo da heteronomia, isto é, de um


comportamento moral que é regido por regras externas ao próprio homem. Ao fazê-lo,
Kant, também está a colocar em destaque o valor próprio do homem. Em outras palavras:

No cerne do imperativo categórico, já é possível entrever o princípio da igualdade,


na medida em que ele é válido para todo ser racional sem distinções, e qualquer ser
racional pode chegar a ele através do uso prático da razão. Esta capacidade de o
homem se dar a sua própria lei faz dele um ser cujo valor não pode ser expresso
quantitativamente. Os seres e as coisas em geral têm um preço, ou seja, um valor
relativo; somente o homem possui um valor absoluto, somente ele tem dignidade.
Este valor tem grandes consequências. O homem, por expressar um valor
absoluto, não pode ser tratado como meio para atingir um fim eleito por outra
vontade.38

Com isso, podemos afirmar outra fórmula do imperativo categórico, qual seja, a da
humanidade, na qual se estatui: "Age de tal modo que uses a humanidade, tanto na tua pessoa
como na pessoa de qualquer um, sempre e ao mesmo tempo, como fim e nunca como meio
simplesmente."39

A terceira fórmula é a "fórmula do reino dos fins", assim expressa: "Age segundo
máximas de um membro legislador em ordem a um reino dos fins meramente possível."40 O
reino dos fins, assim, descreve uma idealidade da razão prática, uma comunidade que visa
"unificação de todos os seres racionais numa legislação comum e autônoma, um reino, pois,
da razão, da liberdade e da paz." 41 Por essa fórmula, Kant constrói o ideal de uma
comunidade42 de homens iguais e em liberdade43.

37
HERRERO, p. 31
38
KARINE, p. 45-46.
39
SALGADO, p. 140
40
HERRERO, p. 31.
41
HERRERO, p. 31
42
A respeito do homem como membro de uma comunidade (reino dos fins), ensina o professor Salgado: "O bem
supremo ou o universal só pode realizar-se na humanidade, enquanto o homem é concebido, não como indivíduo,
mas como espécie, na ideia de uma paz perpétua no seio da comunidade humana, ideia fundamental que lhe
garante um parentesco com Hegel, reciprocamente honroso. A paz pérpetua, por outro lado, só é possível numa
comunidade de justiça, numa humanidade que tenta realizar, através das nações, a ideia de justiça, e que a realiza
na medida em que a liberdade de todos é assegurada por leis que sejam como um produto da vontade de todos. A
O imperativo categórico não provém da experiência. Com a experiência, podemos
aprender aquilo que é, mas não aquilo que deve ser. O imperativo categórico, nesse sentido,
expressa o dever ser de uma proposição prática não-condicionada e absoluta. 44

Também podemos caracterizá-lo como universal, e por isso mesmo formal – a


materialidade, por outro lado, lhe retiraria o caráter universal. Deve exprimir uma
universalidade formal e "independente de fins particulares, sociais ou culturais."45 Se não é
empírico, o imperativo categórico é um juízo a priori46 – e, deve-se acrescentar, sintético.

O imperativo categórico é sintético, porque a expressão da máxima do homem (seu


princípio subjetivo, como dissemos anteriormente) não está incluída previamente na sua boa
vontade. Nos juízos sintéticos, sempre "aparece um terceiro elemento que torna possível a
ligação do sujeito com o predicado que não lhe pertence, mas que lhe é acrescentado." 47
Surge, assim, a tarefa de saber qual é o terceiro elemento que une a vontade racional à
obrigação do imperativo. Este elemento é a liberdade.

A liberdade torna possível a conexão entre a vontade pura e a vontade empírica 48, e
assim o faz porque faz de cada homem um membro do mundo inteligível e do mundo
sensível, ao mesmo tempo. Assim:

Afirmar a existência da liberdade é admitir a existência dos dois mundos a que


pertence o homem: o inteligível e o sensível. A possibilidade do imperativo
categórico se prende ao pressuposto de que o ser humano pertença aos dois
mundos. Não pertencesse ele ao mundo inteligível, então não seria possível alguma
lei moral, muito menos o imperativo categórico que é o desdobramento da própria
vontade pura como razão pura prática; não pertencesse ele ao mundo sensível,

paz perpétua, como esforço de Kant no sentido de realizar o universal, é o coroamente da sua filosofia." Cf.
Salgado, p. 143.
43
SALGADO, p. 141
44
SALGADO, p. 135
45
SALGADO, p. 136
46
salgado, P. 136
47
SALGADO, p. 136
48
HERRERO, p. 29
inócuo seria o imperativo categórico, já que entre os seres não providos de
sensibilidade não há dever, nem comando a estabelecer. 49

Em outras palavras, a liberdade torna possível que o homem, enquanto pertencente


ao mundo sensível e inteligível, dirija suas ações conforme os ditames da lei moral, expressa
na fórmula (ou fórmulas) do imperativo categórico. A vontade pura só consegue obrigar a
vontade empírica se o homem for livre, isto é, se determinar pela razão, e não apenas pela
causalidade da natureza. Como fenômeno, o homem está sujeito às leis da natureza, mas
como "ser em si"50, ele se determina pela sua razão, posto que é livre. Por outro lado, se o
homem existisse apenas como parte de um mundo inteligível, sua vontade seria sempre boa,
e não haveria necessidade do imperativo categórico.

Considerações Finais

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant estabelece o supremo princípio da


moralidade e, com ele, delineia sua compreensão a respeito do homem e da liberdade. A
moral, como "etapa fundamental" 51 da Ética, é um retorno ao sujeito e à sua liberdade
interna, pela qual o homem se encaminha ao cumprimento da lei moral. Pela liberdade, o
homem pode "atingir o incondicionado", isto é, pode se entender como um ser que está para
além do sensível e que encontra morada também no mundo inteligível.

Kant lança as bases de uma Ética fundada na liberdade e na igualdade, vez que todo
ser racional pode encontrar, no uso de sua razão pura prática, a máxima conforme a lei
moral para guiar suas ações de modo autônomo e livre das causalidades do mundo sensível.
Os elementos de sua Ética são, assim, encontrados no sujeito, e não no objeto. Com isso,

49
SALGADO, p. 137
50
KARINE, p. 58
51
KARINE2, p. 44
inaugura-se "uma nova forma de filosofar, cuja partida é dada pela ética kantiana" 52, centrada
na razão.

52
SALGADO, p. 67

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