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Existem alucinações porque nós temos, através do corpo fenomenal, uma relação
constante com um ambiente em que ele se projeta e porque, separado do
ambiente efetivo, o corpo permanece capaz de evocar, por suas próprias
montagens, uma pseudopresença desse ambiente. Nessa medida, a coisa
alucinatória nunca é vista nem visível (PhP, pp. 455-456).
O alucinado não vê, não ouve no sentido normal, ele usa de seus campos
sensoriais e de sua inserção natural em um mundo para fabricar-se, com os
fragmentos deste mundo, um ambiente factício conforme à intenção total de seu
ser (idem).
A alucinação não é uma percepção, mas ela vale como realidade, só ela conta
para o alucinado. O mundo percebido perdeu sua força expressiva, e o sistema
alucinatório a usurpou. Embora a alucinação não seja uma percepção, há uma
impostura alucinatória e é isso que não compreenderemos nunca se fizermos da
alucinação uma operação intelectual. É preciso que a alucinação, por mais diferente
que ela seja de uma percepção, possa suplantá-la e existir para o doente mais do
que suas próprias percepções. Isso só é possível se alucinação e percepção são
modalidades de uma única função primordial pela qual dispomos em torno de
nós um ambiente de uma estrutura definida, pela qual nós nos situamos ora em
pleno mundo, ora à margem do mundo. A existência do doente está
descentrada, ela não se consuma mais no comércio com um mundo áspero,
resistente e indócil que nos ignora, ela se esgota na constituição solitária de um
ambiente fictício. Mas essa ficção só pode valer como realidade porque no
sujeito normal a própria realidade é alcançada em uma operação análoga.
Enquanto tem campos sensoriais e um corpo, o normal também traz esta ferida
aberta por onde pode introduzir-se a ilusão; sua representação do mundo é
vulnerável. Se cremos naquilo que vemos, é antes de qualquer verificação, e o erro
das teorias clássicas da percepção é introduzir, na própria percepção, operações
intelectuais e uma crítica dos testemunhos sensoriais aos quais só recorremos
quando a percepção direta encalha na ambiguidade. No normal, sem nenhuma
verificação expressa, a experiência privada liga-se a si mesma e às experiências
alheias, a paisagem abre-se a um mundo geográfico, ela tende para a plenitude
absoluta (PhP, p. 458).
si, comme nous l'avons dit, la chose illusoire et la chose vraie n'ont pas même
structure, pour que le malade accepte l'illusion, il faut qu'il oublie ou qu'il refoule le
monde vrai, qu'il cesse de s'y référer et qu'il ait au moins le pouvoir de revenir à
l'indistinction primitive du vrai et du faux (PhP, Ed fr. p. 397). – a perda da referência,
o sujeito cessa de estar referido ao mundo numa modalidade de engajamento
discursivo. Merleau-Ponty chega mesmo a dizer que o doente recalca o mundo
verdadeiro, o que, num sentido mais ou menos lato, poderíamos, sem prejuízo de
interpretação, remeter à função de perda da realidade de que nos fala Freud.
Segundo a leitura que Merleau-Ponty faz das pesquisas da Gestalttheorie, para que
possam ser compreendidos, os fenômenos perceptivos não dependem de uma
representação “anímica” exterior aos elementos sensíveis de nossa
experiência. A descoberta da vinculação entre a “figura” (percebida) e o “contexto”
(em que nosso corpo se situa ao percebê-la) demonstra que os fenômenos estão
indissociavelmente ligados às nossas experiências. Mais precisamente, aquela
descoberta revela que os fenômenos estão inexoravelmente vinculados à
organização espontânea desencadeada por nosso corpo junto aos dados
sensíveis. Segundo Bonomi (1974), Merleau-Ponty afirma que o ser não se
apresenta como positividade, plenitude, mas se define como um campo em
que se abrem dimensionalidades diversas, em que todo ente é figura-sobre-
fundo, relevo em relação a uma profundidade. Para Chauí (2002), o trabalho
filosófico de Merleau-Ponty está empenhado numa interrogação permanente da
razão e da experiência para conduzi-las a uma racionalidade alargada, capaz
de alcançar o universal não como “universal de sobrevoo”, ponto de vista
abstrato e exterior ao mundo, mas como “universal lateral ou oblíquo”, que
permite compreender aquilo que em nós e nos outros excede a razão (p. 121).
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FRANÇA FILHO, JL. Acerca da fenomenologia existencial de Maurice Merleau-
Ponty. In: LIMA, ABM., org. Ensaios sobre fenomenologia: Husserl, Heidegger e
Merleau-Ponty [online]. Ilhéus, BA: Editus, 2014, pp. 77-102.
sua intuição motivadora assim pode ser formulada: a vida representacional não é a
primeira nem a única realidade; ou, então, que a vida representativa da
consciência não é originária. A partir dessas ideias norteadoras, o filósofo começa
a falar da percepção enquanto acontecimento fundante da vida subjetiva
ancorada no mundo percebido (realidade originária). Assim, as reflexões sobre a
vida subjetiva tornam-se o lugar em que se situam e se desdobram as análises
específicas sobre a percepção e sobre a noção de corpo próprio (p. 81).
possível uma relação entre a consciência e a natureza? Se for possível, como pode
acontecer? (MUÑOZ, 1975). O primeiro registro sobre isso se encontra na obra A
estrutura do comportamento, onde Merleau-Ponty explica que se trata de
compreender as relações entre a consciência e a natureza (natureza orgânica,
psicológica ou mesmo social) (MERLEAU-PONTY, 1975). Um segundo registro
pode ser encontrado na Fenomenologia da percepção, em que o filósofo ratifica o
que dissera anteriormente: que se trata de compreender as relações da consciência
e da natureza, do interior e do exterior (1999), e explica que se trata de uma
temática clássica, que reduzida ao essencial significa perguntar, em última
análise, pelo sentido e pelo sem sentido (pp. 81-82).
Ce qu'il y a de sens au monde est-il porté et produit par l'assemblage ou la rencontre
de faits indépendants, ou bien, au contraire, n'est-il que l'expression d'une raison
absolue? (PhP, Ed. Fr, p. 491).
La tâche s'impose donc à nous de comprendre si, et en quel sens, ce qui n'est pas
nature forme un «monde», et d'abord ce que c'est qu'un «monde» et enfin, si
monde il y a, quels peuvent être les rapports du monde visible et du monde
invisible (VI, Ed. Fr., p. 46).
Nous sommes mêlés au monde et aux autres dans une confusion inextricable (PhP,
Ed. Fr. p. 519).
Parce que nous sommes au monde, nous sommes condamnés au sens, et nous ne
pouvons rien faire ni rien dire qui ne prenne un nom dans l'histoire (ibid., pp. 14-15).
só pode ser apreendido dentro de uma visão de conjunto: uma totalidade onde as
partes só ganham significação atuando em conjunto com as demais (idem). - aqui a
clara incidência de um idéia que se deve às proposições da psicologia da forma.
a experiência viva de “meu” corpo, desse corpo que nem é absolutamente objeto,
conhecido de fora, nem sujeito transparente a si mesmo (p. 95).
que solo é esse de onde tudo brota sem nada lá ser posto por uma consciência
observadora? (p. 96).
O “Ser bruto” não chega a ser uma positividade idêntica a si mesma e sim pura
diferença interna do que é o sensível, onde a linguagem e o inteligível são
dimensões simultâneas e entrecruzadas (p. 99).
La bifurcation de l'essence et du fait ne s'impose qu'à une pensée qui regarde l'être
d'ailleurs, et pour ainsi dire de front (VI, Ed. Fr., p. 149).
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On ne remarque pas assez qu’autrui ne se présente jamais de face (Merleau-Ponty,
La Prose du Monde, 1969, Ed. Fr., p. 186).
E o que são, em vosso parecer, os olhos?, disse-lhe o Sr. de… “São, respondeu-lhe
o cego, um órgão sobre o qual o ar produz o efeito de minha bengala sobre minha
mão.” (Diderot, ‘Carta sobre os cegos para o uso dos que veem’, 1749).
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Nota sobre o método;
Nota marg. O que pretendo sugerir é que a modalidade dessas referências obedece
mais à lógica da extimidade do que da exterioridade. Ou seja, quando Lacan se
refere a Hegel (ou à linguística estrutural ou às matemáticas), ele visa justamente
aquilo que está mais longe e, ao mesmo tempo, mais próximo do objeto da
psicanálise. Quando ele fala de Hegel não é com a filosofia que ele está dialogando:
é com aspectos de seu pensamento que a própria filosofia desdenhou, desprezou.
Ele lida com o impensado no pensamento, com o que não foi dito no que foi dito
(Gilson Iannini, Extimus, Intimus, Boletim da Escola Brasileira de Psicanálise,
recuperado de : https://www.ebp.org.br/a-diretoria-na-rede/extimidade-extimus-
intimus-gilson-iannini/).
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