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A falácia do discurso da doação das leis

trabalhistas
Recuperando outras memórias históricas

Priscila Campana
Olga Maria Boschi

Sumário
1. Introdução. 2. A “omissão da história” e o
mito da doação. 3. Os primeiros operários no Bra-
sil. 4. Raízes das organizações sindicais no Brasil.
5. O ativismo dos trabalhadores na formação da
legislação: as greves. 6. Considerações finais.

1. Introdução
Este trabalho tem por objetivo levar à
reflexão sobre um dos dogmas mais utili-
zados na doutrina acadêmica juslaboral: o
da doação das leis do trabalho. O objetivo
específico é o de questionar tal mito, com-
provando que não houve passividade dos
trabalhadores e sim grandes mobilizações
em torno de reivindicações por melhores
condições de vida e de trabalho. Conse-
quentemente, consegue-se evidenciar que
a construção e positivação desses direitos
deu-se, entre outros fatores, também pela
atuação dos operários.
Dessa forma, a pesquisa busca enfatizar
a importância da própria Consolidação
das Leis do Trabalho, fruto da correlação
de forças sociais e políticas na época de
sua promulgação e, ao mesmo tempo, seu
Priscila Campana é Doutora em Direito das atual valor como principal fonte de normas
Relações Sociais – UFPR/PR. Professora do
individuais do trabalho. É que, no Brasil
Centro de Ciências Jurídicas da FURB/SC.
Olga Maria Boschi Aguiar de Oliveira é
deste início de século, diante de reformas
Doutora em Direito Social – UNAM/México. trabalhistas tão propaladas, existe ainda um
Professora do Centro de Ciências Jurídicas da discurso insistente mas superficial, de que
UFSC/SC. o “negociado” deveria substituir o “legis-

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lado”, pois as normas trabalhistas seriam importante, aqui, é perceber, no desenvol-
desnecessárias e dissonantes das reivindi- vimento do direito do trabalho, o discurso
cações sociais, desde o seu nascimento. sobre a “antevisão” que possuía Getúlio
Vargas para regular as relações de trabalho,
2. A “omissão da história” antes mesmo que os trabalhadores se mobi-
e o mito da doação lizassem. Nesse discurso, oculta-se, então,
o mito de que a positivação das leis traba-
Num contexto reivindicatório de mobili- lhistas teria sido um presente. Até porque
zações sociais, conjugadas ao aparato de leis divulgava-se na época que havia grande
que surgiram na década de trinta no Brasil, paz social no país, sem quaisquer tipos de
entra em cena o ideário do “trabalhismo”, problemas sociais ou econômicos.
bastante estudado pela historiografia. De Exemplo desse ideário foi expresso
modo específico, trabalhismo getulista é num artigo específico escrito sobre a CLT
expressão que sintetiza o elo do Estado por editorial de jornal3, elogiando o texto
social legiferante com a classe operária, e consolidado como de grande valor para o
representa, segundo Gomes (1989, p. 81), “Direito Social Brasileiro”, sendo conside-
“o conjunto de leis e providências le- rado um avanço, não relacionado a reivin-
gais tomadas durante os governos de dicações de movimentos operários:
Vargas visando à garantia de direitos “Marca a mesma toda uma marcha, e
aos trabalhadores e a regulação do todo um processo evolutivo, em de-
mercado de trabalho. Numa versão terminado domínio, onde, em outros
oficial que se tornou hegemônica, o países, resultou assim de graves dese-
Estado teria liderado o processo de quilíbrios sociais, como de uma cruen-
criação e concessão das leis sociais, ta experiência política. Não conheceu
antecipando-se às demandas dos o Brasil os dolorosos ensinamentos
trabalhadores e controlando as con- provindos da grande industrializa-
dições objetivas de implementação de ção. Nos países de elevado e acentu-
uma política trabalhista. 1” ado índice capitalista, as construções
A expressão leva também à ideia do jurídicas, amparadoras do trabalho,
estabelecimento de uma política que bus- e harmonizadoras das duas forças
cou conciliar capital e trabalho.2 O aspecto capitais da produção, decorreu de
sangrentas lutas, e emergiu de graves
1
O caso mais conhecido é o do trabalhismo inglês,
do qual derivou, no início do século XX, o Labour
conflitos. Vamos agora, evoluindo de
Party, caracterizado pela trajetória dos trabalhadores uma forma econômica esteiada nas
em busca de seus direitos. Foi movimento iniciado no atividades agrícolas, para o sistema
século XIX e que incluía a luta pelo reconhecimento baseado na indústria (sic).”
dos sindicatos como interlocutores legítimos, a defesa
do direito de representação política dos trabalhadores No mês de novembro, Getúlio Vargas
e a criação de partidos de trabalhadores. No Brasil, discursou na inauguração do Palácio da
diferentemente do caso inglês, a expressão esteve Fazenda, e, entre outras afirmações, decla-
sempre mais relacionada a uma política pública es- rou que, após a guerra, seria implementada
tatal do que a ações autônomas do movimento dos
trabalhadores. (Cf. GOMES, 1989, p. 81). reforma tributária e bancária, e que, para
2
Nesta mesma conjuntura, mas inserida na matiz o “reajuste da estrutura política da nação”,
cultural, no ano de 1940, uma música de Ataulfo Alves num ambiente de paz, várias classes, inclu-
que dizia: “O bonde de São Januário leva mais um
sive a trabalhadora, seriam consultadas.
sócio otário sou eu que não vou trabalhar”, foi censu-
rada, e modificada: “Quem trabalha é que tem razão, Outro artigo de jornal, em matéria de capa,
eu digo e não tenho medo de errar, o bonde Januário
leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar (...)” 3
EDITORIAL. Consolidação das leis trabalhistas.
(Cf. MOCELLIN, 1987, p. 232). Gazeta do Povo. Curitiba, 20 ago. 1943, p. 3.

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reproduziu o discurso.4 Ou seja, havia um trabalho: “O mito da doação se propagou
ideário aparentemente democrático de que com a maior intensidade, principalmente a
todos os cidadãos participavam do governo partir do ‘Estado Novo’, e pela sua difusão
getulista, e, se isso ainda não ocorria, era se tentou fazer crer que a legislação social
por conta da política externa, refletida na não passaria de uma dádiva caída dos céus
guerra. getulistas sobre a cabeça dos trabalhadores
Era um discurso, portanto, que propaga- brasileiros” (PARANHOS, 1999, p. 23).
va paz social, segundo o qual, inexistiriam A ideia de “concessão” da legislação
quaisquer insatisfações políticas e sociais, trabalhista, difundindo a imagem de
não haveria greves, reivindicações ou mo- Getúlio como “pai”, acabou tendo como
bilizações dos trabalhadores. consequência a propagação de outro dis-
Tinoco (1955, p. 142), na década de cin- curso: o de que o movimento operário foi
quenta, relata sobre a formação dos direitos passivo diante desse processo de formação
sociais, no qual Getúlio Vargas teria tido o legislativa. E esse processo retirou o papel
papel de destaque: “(...) suas leis introduzi- ativo da classe trabalhadora, suprimindo,
ram sangue novo na vida do país, envene- durante décadas, o reconhecimento de suas
nado por uma luta surda de classes durante mobilizações no período.
quatro séculos. Antecipando-se à reação O mito da doação, desse modo, tem
das massas pela solução do problema, re- grande importância: nutre-se de omitir
vigorou a consciência nacional, até então da história o papel desempenhado pelos
empenhada em surtos revolucionários”. sujeitos “vencidos” pois faz subtrair do
Por outro lado, pode-se entender a ques- contexto o seu caráter humano, como ação
tão do mito5 da doação das leis trabalhistas social de classes dominadas. Complementa
como parte do ideário do trabalhismo, em ainda Paranhos (1999, p. 33-34):
que Vargas traçou sua trajetória política com “Ao se desconsiderarem as organiza-
o discurso da outorga das leis protetivas do ções e o movimento operário, ignora-
se a sua ação política. Por outro lado,
4
“Quando terminar a guerra em ambiente próprio essa ação política, no sentido bastante
de paz e de ordem; com garantias máximas à liberdade
de opinião, reajustaremos a estrutura política da Nação
amplo de ação humana, foi objeto de
e faremos de forma ampla e segura as necessárias con- uma certa apropriação indébita por
sultas ao povo brasileiro (...). Das classes trabalhadoras parte do Governo Vargas, que agiu as
organizadas tiraremos de preferência, os elementos coisas, neste caso por intermédio da le-
necessários à representação nacional: patrões, operá-
rios, comerciantes, agricultores – gente nova, cheia de
gislação trabalhista, sindical e previ-
vigor e esperança, capaz de crer e levar avante as tare- denciária, supostamente ditada pela
fas do nosso progresso (...). A primazia das posições, sua livre e espontânea iniciativa.”
direção, controle e consulta caberá aos que trabalham Questiona-se, portanto, que Vargas,
e produzem, e não aos que viciaram cultivar a ativi-
dade pública como meio de subsistência. Encontrarão de forma “iluminada”, captava as neces-
também a oportunidade de fazer-se ouvir e opinar sidades dos trabalhadores sem que estes
representantes da mocidade que nas escolas, fábricas precisassem dizê-las. Retórica que passa-
e quartéis preparam-se e concorrem, cheios de ardor ria despercebida não fossem os registros
cívico, para construir o futuro da pátria, dispondo-se
a defendê-la decidida e virilmente.” EDITORIAL. De- que a própria história tradicional aponta
pois da guerra será consultado povo brasileiro. Gazeta sobre os inúmeros casos de greves que se
do Povo, Curitiba, 11 nov. 1943, p. 1.
5
Sobre a função do “mito”, Paranhos (1999, p. 30) ‘insignificância humana’. (...) Nessa evacuação do
faz interessante análise, com fundamento em Roland real, o mito desloca o plano da história para o da na-
Barthes. Mas sintetiza o entendimento do seguinte tureza, decreta a abolição da ‘complexidade dos atos
modo: “presta-se ao papel de retirar das coisas a sua humanos’, reveste-os da ‘simplicidade’ das essências’
qualidade histórica, provocando a perda da memória e, como num toque de mágica, reorganiza um mundo
da sua produção, condenando-as a significar uma isento de contradições”.

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alastraram na década de trinta, como a de de um agente corretivo ou retificador”, fa-
maio de 1932, em São Paulo, e fortemente zendo parte de um processo rápido para a
reprimida; a de 1935 no Rio de Janeiro, e “criação e o desenvolvimento destas formas
que se alastrou por outras cidades, como de solidariedade social ativa”. (VIANNA,
Recife (Cf. VIANNA, 1995, p. 60). 1951, p. 273).
Justamente a “doação” dos direitos tra- Não é muito difícil questionar esse
balhistas é que organizará todo o discurso discurso porque, se realmente os trabalha-
do trabalhismo getulista, principalmente dores não se mobilizavam para reivindicar
no período de promulgação da Consolida- melhores condições de vida e trabalho, por
ção das Leis Trabalhistas, sendo elemento que então havia órgãos governamentais
dominante do contexto. Entretanto, o controladores e repressores? Segundo Go-
ocultamento das lutas dos trabalhadores render (1990, p. 66): “A tática da repressão
continha em si “a revelação da lembrança não se atenuou. E (...) o Governo Vargas
dessas mesmas lutas, que, por vezes, são pôs em prática uma linha ‘coerente e siste-
lembradas de forma vaga” (PARANHOS, mática’ de conquista ideológica da classe
1999, p. 147). operária e de disciplinamento de suas or-
Sinteticamente, a questão primordial ganizações sindicais sob o controle direto
que se coloca é abordada de modo muito do Estado”.
claro por Paranhos (1999, p. 149): Foram aprovadas várias leis relativas ao
“Havia ou não luta de classes e pres- direito sindical, como a que regulamentou
sões dos trabalhadores pela conquista as convenções coletivas de trabalho, e que
de direitos sociais? A resposta (...) tinham como escopo político o rearranjo da
pode ser negativa ou afirmativa na classe operária aos moldes estatais. Outras
ideologia do trabalhismo, em que leis, protetivas do direito individual, como
pese a negação constituir a regra. Por a regulamentadora da jornada de trabalho
outro lado, em determinados artigos de oito horas, e do salário mínimo, signifi-
publicados no Boletim do Ministério caram grande conquista dos trabalhadores,
do Trabalho, Indústria e Comércio, pelo limite que se impôs à exploração de-
o que se sente é uma indiscutível senfreada da mão-de-obra.
desqualificação das lutas operárias, Dessa maneira, a criação da legislação
cuja preexistência em relação às leis trabalhista tinha como finalidade respon-
sociais do Governo Vargas é aceita. der aos anseios sociais e, ao mesmo tempo,
Nesse caso, as reivindicações dos atender aos fins políticos e econômicos da
trabalhadores e o movimento sindical classe patronal e do Estado.
que então se ‘esboçava’ eram vistos Para a historiografia oficial, a regula-
como tão frágeis que, para todos os mentação das leis trabalhistas (individuais
efeitos, é como se não existissem, já e coletivas) se concretizou graças à coopta-
que se reafirmava o caráter espontâ- ção do movimento operário pelo Estado. A
neo da legislação social.” estruturação sindical seria fruto do atrela-
A luta de classes e a organização ope- mento da organização dos trabalhadores,
rária, nesse raciocínio, tinham vinculação imposta de fora para dentro.
apenas com os imigrantes, vistos como Entretanto, fazendo uma trajetória
“agitadores”. O trabalhador nacional, ao analítica diferenciada, é possível perceber
contrário, era tido como de índole pacífica. a armadilha desse raciocínio, que apenas
Esse foi o pensamento difundido e que confirmaria a ideia de dádiva da legisla-
justificava, na década de trinta, a necessi- ção trabalhista. Para autores como Gomes
dade de o Estado organizar sindicatos. O (1988, p. 195), não houve a mera submissão
sindicalismo, nessa situação, teria “o papel e perda de identidade da classe trabalhado-

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ra, e sim “pacto” entre ela e o Estado, por tamanho”, além de tê-los transformado em
opção, “combinando ganhos materiais com órgãos prestadores de serviços. 6
os ganhos simbólicos da reciprocidade”. Torna-se possível, portanto, refutar a
Esse mesmo pacto social significava um premissa de “concessão” das leis trabalhis-
acordo que trocava os benefícios da legis- tas, pois foram arduamente conquistadas,
lação por obediência política. Conforme a por meio das associações sindicais for-
mesma autora (GOMES, 1988, p. 193): madas desde o fim do século XIX. Houve
“...a classe trabalhadora, ao trocar construção no desenvolvimento do direito
legislação social por obediência po- do trabalho, cujos atores foram também os
lítica, estaria realizando um cálculo trabalhadores, além do Estado e do patro-
de custos e benefícios cuja lógica é nato, na defesa de seus interesses.
predominantemente material e indi- Para tanto, faz-se fundamental a abor-
vidual. O trabalhador almejava estes dagem sobre a formação das associações
novos direitos e por isso concordou trabalhistas, as raízes dessas organizações,
em aderir politicamente ao regime, os primeiros operários no Brasil, e seu
isto é, a seu modelo de sindicalismo ativismo por meio de greves, que levaram
corporativista tutelado e a todos os à construção da legislação trabalhista no
seus desdobramentos.” país.
Como o principal desiderato do Estado
era o estreitamento de suas relações com o 3. Os primeiros operários no Brasil
movimento operário, por meio de represen-
tação sindical, não bastava a simples e dire- A formação do proletariado brasileiro
ta intervenção. Necessária era a vinculação, está inserida num panorama agrário e
mas que fosse construída de modo permis- escravista, marcado posteriormente pela in-
sivo. E foi o que ocorreu, evidenciando que fluência da força de trabalho de imigrantes.
o movimento dos trabalhadores foi ativo A gênese social desses primeiros operários
no desenvolvimento das leis trabalhistas. está entre as camadas mais pobres da po-
A relação travada entre Estado e classes pulação urbana e, a partir de 1840, com o
operárias era contraditória: aumento do número de fábricas de tecido,
“de um lado, almejava-se um maior 6
Este mecanismo, metaforizado por Gomes e
controle do ministério sobre o mo- D’araújo, empresta de Monteiro Lobato a expressão:
vimento sindical, mas de outro, Emília, um de seus personagens, em uma de suas via-
necessitava-se que este movimento gens, chega a um lugar não identificado e vê-se diante
de um casarão cujo letreiro mostra simplesmente:
fosse significativamente representa- “Casa das Chaves”. Ela entra na casa, depara-se com
tivo no meio do operariado. Ou seja, uma parede repleta de chaves e conclui que só podem
não se buscava o mero controle, mas ser as chaves que regulam “todas as coisas do mundo”.
a adesão e a mobilização, o que só é Como está em busca da chave “que abre e fecha as
guerras”, por causa da Segunda Guerra Mundial, re-
possível através de procedimentos solve ir experimentando os objetos, até encontrá-la. No
mais participativos e capazes de gerar entanto, quando alcança uma das chaves, “acontece
certa dose de representatividade real. algo inteiramente fantástico: tudo se transforma diante
(GOMES, 1988, p. 202)”. de seus olhos de boneca e ela quase morre de falta de
ar debaixo de uma montanha de panos. Só depois
Pode-se afirmar, dessa forma, que não de um certo tempo e reflexão diante dos novos fatos
houve passividade do movimento dos tra- produzidos ela percebe que ‘encolheu’ e que, portanto,
balhadores em relação ao Estado. A adesão mexera na ‘chave do tamanho’, aquela capaz de alterar
necessária ocorreu, e um dos instrumentos as proporções de todas as coisas vivas do mundo,
fazendo-as crescer ou diminuir de um momento para
fundamentais nesse processo foi o imposto outro”. Conforme as autoras, ainda hoje o imposto
sindical, pois serviu para aumentar as di- sindical pode ser a “chave do tamanho” dos sindicatos.
mensões dos sindicatos, como “chave-do- (Cf. GOMES; D’ARAÚJO, 1993, p. 317).

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entre camponeses vindos de cidades do Durante esse período, embora a elite
interior, mulheres, menores e artesãos. agrária apoiasse a escravidão, alguns fa-
O país vivia sob o regime de um sistema zendeiros das áreas cafeeiras, na década
agrário, onde a população do campo re- de 1850, preocuparam-se em incentivar
presentava dois terços da população total, a imigração, e substituir os escravos por
e onde o domínio político era o da classe imigrantes, principalmente porque, com a
oligárquica agrária7. interrupção do tráfico, o preço dos escravos
Conforme Carone (1989, p. 13), os traços havia aumentado muito. (Cf. COSTA, 1999,
característicos dessa sociedade brasileira no p. 364).9
século XIX eram: “papel hegemônico da ati- Os primeiros operários industriais
vidade econômica agrária, dispersão popu- tinham um nível de vida inferior aos dos
lacional, desequilíbrio populacional a favor trabalhadores livres que os precederam,
da região Sul, hegemonia demográfica do como os artesãos, já que não possuíam a
campo sobre a cidade, papel secundário da propriedade dos meios de produção, inclu-
atividade urbana”, presença do escravo na sive ferramentas: “os operários imigrantes
fábrica e heterogeneidade social e cultural que trabalhavam em fábricas ao lado de
das classes trabalhadoras nascentes. escravos ganhavam, em 1858, apenas a
Diferentemente do que ocorreu na quarta parte do salário de um mestre pe-
Europa, as primeiras fábricas brasileiras dreiro, quantia, inclusive, bem inferior ao
não deram origem aos primeiros operários salário de um servente de obras na mesma
modernos, haja vista que, ao lado destes, época”. (HARDMAN, 1991, p. 96).
trabalhavam também escravos. Algumas O pagamento de salários era ainda visto
empresas industriais não empregavam tra- como algo excepcional, e somente mestre
balhadores livres até meados do século XIX. e contramestres o recebiam. Operários
Outras os utilizavam apenas para as funções não-qualificados recebiam apenas comida
especializadas, e o trabalho mais pesado era e roupas, conforme seu comportamento e
realizado exclusivamente por escravos 8. qualidade do trabalho.
As condições de vida dos primeiros
7
A classe dominante, neste período, é a oligarquia, operários assemelhavam-se às dos escra-
representando “o elo de ligação com o capitalismo
internacional. Como classe, é a responsável pela pro-
salários destinados, teoricamente, à sua repatriação”.
dução que abastece o mercado mundial de matérias-
Cita como exemplo uma fábrica de vela do Rio de
primas, produzindo o superavit comercial que atende
financeiramente as necessidades de importação para Janeiro que, até 1857, somente empregava escravos e,
o mercado interno. Sua atividade fundamental está num outro, a John del Rey Mining Co., constituída por
ligada à terra, mas ela também ocupa funções urbanas: capitais ingleses e que empregava escravos apenas na
participa das economias suplementares da sociedade perfuração de galerias na mina de sua propriedade.
– indústria e comércio. Importa as teorias liberais e as Contudo, em outros estabelecimentos apareciam ape-
condiciona às suas necessidades”. Por ser mercantilista nas operários livres, como na companhia construtora
(a classe rural é empresarial e a terra não simboliza de estradas de rodagem, de Mariano Procópio, cujos
tradição mas sim geração de lucros), o autor denomina trabalhadores eram alemães e portugueses. Isso
tal classe de oligarco-burguesa, e que está identificada ocorria na construção de ferrovias também, mas, sob
com o Estado (cargos políticos e administrativos lhe a proteção da lei, em 1852, vedando a utilização do
pertencem). (Cf. CARONE, 1989, p. 14-18). braço escravo nos trabalhos de estrada.
8 Segundo Hardman (1991, p. 90-91), eram utili-
9
A autora explica: “O rápido crescimento das
zados diversos tipos de escravos: os “de ganho”, que plantações de café fez do trabalho o problema mais
tinham certa autonomia, custeavam seu sustento e vi- urgente. Como podiam os fazendeiros satisfazer suas
viam como ambulantes, entregando uma porcentagem necessidades de trabalho após a interrupção do tráfico
de seu ganho a seu dono; os “da Nação” e os perten- de escravos? O tráfico interno ofereceu uma solução
centes às Municipalidades, que tinham suas condições temporária, mas a auto-reprodução dos escravos não
de trabalho fixadas pelo governo. Após a abolição da podia satisfazer a demanda imediata. Os fazendeiros
escravatura, surgem os “africanos livres”, que, “confis- das áreas em expansão haviam encontrado a resposta
cados pelo Estado, eram alugados a particulares e seus na imigração”. (COSTA, 1999, p. 364).

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vos: trabalho por treze e até quinze horas, Nesse sentido, Moraes Filho (1971, p.
sem descanso semanal remunerado, nem 42) traz números elucidativos:
férias. “(...) grande era o número de imigran-
Entre 1860 e 1890, havia também os tes em ambas as metrópoles. Basta
operários especializados, maquinistas, dizer que, dos 522.000 de 1890, 124.000
moleiros, mecânicos, mestres de fiação eram estrangeiros no Rio de Janeiro,
e tecelagem, provenientes da Inglaterra. isto é, 25%. De 1887 a 1900 entraram
Posteriormente, aos poucos, foram sendo no Estado de São Paulo 909.407 imi-
substituídos por operários brasileiros. 10 grantes, com uma taxa de aumento
As primeiras fábricas no Brasil surgi- da população de 86%. De 1901 a 1920
ram nas décadas iniciais do século XIX, declina esta quota para 38,5%, com
mas eram de pequeno porte e possuíam a entrada de 823.642 imigrantes. No
existência curta. Somente a partir de 1870 Rio, eram, na maioria, de nacionali-
é que seu número e constância começaram dade portuguesa, espanhola, italiana;
a aumentar. O processo passou a ter inten- invertendo-se esta ordem em São
sidade entre os anos 1885 e 1895, durante Paulo. Somente a partir de 1920, é que
o chamado “primeiro surto industrial”. cresceu a imigração japonesa nesse Es-
(HARDMAN, 1991, p. 21). tado. Mais particularmente ainda, de
Até o ano de 1889, somavam-se 54.000 1900 a 1907, entraram no Estado de São
operários de vários estabelecimentos in- Paulo 308.809 imigrantes e dele saíram
dustriais, e que trabalhavam em ferrovias, 227.029, mostrando que já havia passa-
construção civil, portos e gráficas. Com a do o período mais forte e significativo
chegada da luz elétrica, veio a intensificar- do processo imigratório.”
se a exploração, com jornadas extrema- Assim, até 1920, embora o proletariado
mente longas, como em fábricas do Recife, no Brasil fosse numericamente pequeno,
por volta de 1900, com dezessete horas era formado, em sua maioria, por imi-
diárias de trabalho. (Cf. HARDMAN, 1991, grantes estrangeiros. Conforme Rodrigues
p. 95). (1968, p. 345), o recenseamento daquele
O processo imigratório ocorreu forte- ano registrava 275.512 operários em todo
mente até a década de 1920, principalmente o Brasil, numa população de 30.635.606
nas cidades de concentração industrial: Rio habitantes. Antes disso, não era possível
de Janeiro e São Paulo11. ter com exatidão o número de operários;
entre os vários estabelecimentos, existiam
10
Além da dificuldade de adaptação dos imigran-
tes, seus salários mais altos impeliam os industriais a
pequenas oficinas, dificultando a contagem
procurarem a substituição da sua força de trabalho do total de operários.12
por operários brasileiros: “(...) Já em 1866, na Bahia,
a indústria têxtil empregava quase exclusivamente estabelecimentos industriais, com 14.614 operários”.
operários brasileiros que garantiam um padrão técnico Ele ainda destaca que as indústrias mais proeminentes
de bom nível, assegurando a qualidade de certos pro- eram as de tecidos e as de alimentação, não obstante a
dutos. Em São Paulo e Rio, nos anos 90, os trabalhos existência de numerosos estabelecimentos, oficinas de
especializados eram executados por brasileiros ou por calçados, móveis, tinturarias, e outros. A indústria têx-
imigrantes não-britânicos, em geral italianos, alemães, til, nesse sentido, era a mais representativa, contando,
espanhóis e portugueses”. (HARDMAN, 1991, p. 99). em 1900 na capital paulista, com 17 estabelecimentos e
11
Nas palavras de Moraes Filho (1971, p. 22), 4.570 trabalhadores; em 1910, com 24 estabelecimentos
“em 1907 concentravam-se na Capital Federal 30% e 13.396 operários.
das indústrias nacionais, possuindo todo o Estado de 12
O autor elucida a questão explicando que, “pelo
São Paulo somente 16% do total. No primeiro ano do recenseamento de 1920, havia nas indústrias do Estado
século, conforme inquérito realizado, apresentava a de São Paulo (entre proprietários, empregados e ope-
cidade de São Paulo 144 estabelecimentos importantes, rários) 136.135 brasileiros contra 93.130 estrangeiros.
com 11.590 operários, com exclusão dos engenhos de Na capital paulista, o número de estrangeiros chegava
açúcar. Em 1907, dispunha a mesma metrópole de 153 a ultrapassar ligeiramente o de brasileiros: 51.304

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Dessa exposição, é possível fazer uma Os operários, embora heterogêneos
síntese sobre a formação social inicial do em sua formação histórica, nunca ficaram
proletariado no Brasil até a década de vinte, passivos diante da exploração de sua força
em duas épocas. A primeira abrange o pe- de trabalho. Procuraram-se organizar por
ríodo das manufaturas iniciais até década meio dos instrumentos que tinham às mãos:
de 1840, formado por camponeses pobres e jornais, panfletos, comícios.
escravos; e a segunda abrange a imigração
na década de 1850 e vai até a década de 4. Raízes das organizações
1920, com predomínio de trabalhadores sindicais no Brasil
estrangeiros e operários especializados.
Somente após a crise de 1929, é que a Os movimentos coletivos de trabalho,
composição do operariado passou a ser posteriormente expressados em ação sin-
formada por pessoas vindas do campo e dical, instrumentalizam a organização das
das cidades do interior, constituindo uma pessoas a partir da sua inserção no processo
massa de trabalhadores semiqualificados. produtivo (Cf. DURHAM, 1984, p. 24). E
Ante tais oscilações, alguns autores (Cf. é justamente esse traço que diferencia os
RODRIGUES, 1968, p. 346) explicam que movimentos sociais dos movimentos dos
essa seria a principal causa do enfraqueci- trabalhadores, considerando que a sua
mento do movimento operário após 1930, mobilização foi implementada no contexto
se comparado com aquele cuja influência de reivindicações específicas, ao contrário
vinha do anarquismo e socialismo europeu. do que propaga o mito da outorga da le-
Para eles, essa classe operária, pela compo- gislação.
sição étnica, e pelo sistema partidário vi- Durante o período colonial, somente se
gente, ficou marginalizada da vida política tem notícia de “confrarias”, e não propria-
nacional – uma grande parte era formada mente de organizações trabalhistas. Tinham
por mulheres e crianças, sendo alta a taxa de elas cunho religioso, desempenhando um
analfabetismo. A origem desse sindicalis- papel assistencial, e serviam também para
mo, de minorias militantes e trabalhadores regulamentar alguns aspectos profissionais,
mais qualificados, não conseguia atingir os como a aprendizagem de um ofício. Tive-
trabalhadores brasileiros, e exemplo disso ram destaque os oficiais mecânicos e outros
eram os seus jornais, a maioria redigida em trabalhadores, no decorrer dos séculos XVII
italiano ou espanhol. e XVIII, organizados conforme modelos
De qualquer forma, é certo que a maioria portugueses de associação. A Confraria de
urbana dos operários, imigrantes, havia tra- São José, na Bahia, associava carpinteiros
zido consigo “a inquietação e a politização e pedreiros, disciplinando o exercício de
dos seus países de origem, industrialmente suas funções, arrecadação de dinheiro para
mais adiantados. (...) Na ânsia de melhores o santo protetor e habilitação para a profis-
condições de vida ou de mudança de regime são. (Cf. HARDMAN, 1991, p. 100).
econômico-social, neles se fixavam as medi- No Brasil, existem registros da existên-
das punitivas” (MORAES, 1971, p. 43). cia de associações sindicais, “não-oficiais”,
desde a década de 1870. Havia mobilização
contra 49.071. (...) Em 1911, abrangendo 31 fábricas, operária na busca por melhores condições
foram encontrados apenas 1.843 brasileiros (18% do
total de 10.204 operários recenseados). A grande maio-
de trabalho diante do incipiente surgi-
ria (6.044) era composta de italianos (59% do total), mento das fábricas e pequenas indústrias
seguindo-se os portugueses e os espanhóis. Mesmo nacionais.
entre os trabalhadores braçais dos serviços públicos Constituiu-se, nessa conjuntura, a Liga
estaduais da capital paulista, na mesma época, os
imigrantes constituíam a maioria: 1.408 contra 871”.
Operária, simbolizando um avanço na or-
(RODRIGUES, 1968, p. 345). ganização dos trabalhadores, ao cumprir

60 Revista de Informação Legislativa


a função de “auxílio” e, ao mesmo tempo, Ligas Operárias, os Sindicatos de Resistência
de mobilização na contestação ao regime e as Cooperativas.
capitalista. O objetivo da organização não O Auxílio Mútuo foi o primeiro modelo
era a ajuda mútua para a sobrevivência, que despontou, representando oposição
mas a reivindicação por melhores condi- ao sistema capitalista, e tendo, ao mesmo
ções de trabalho, por meio de greves. Em tempo, um cunho assistencialista. 14
Salvador, foram fundadas, em 1881, a Asso- Os objetivos de tais organizações eram
ciação Tipográfica da Bahia, a Companhia a ajuda mútua e o auxílio aos necessitados,
de Operários Livres União e Indústria e a como nas confrarias. Entretanto, nestas úl-
Liga Operária Bahiana. (Cf. HARDMAN, timas, patrões e empregados organizavam-
1991, p. 102). se conjuntamente, o que não ocorria nas
Como classe, a organização operária mutualistas, que eram de iniciativa dos
foi tendo terreno para desenvolvimento, empregados assalariados, independentes
com o processo imigratório no campo e na da Igreja e do Estado.15
cidade, principalmente a partir da década Entretanto, predominantemente, a ma-
de 1890. nifestação de associação que prevaleceu no
Nesse contexto, passa a existir a influên- país foi a de sindicato profissional, sindica-
cia de modelos socialistas na organização to de resistência ou somente sindicato.16
do proletariado europeu sobre o movi- Em tal processo, é importante frisar que
mento operário brasileiro, redundando as organizações sindicais funcionavam ao
no surgimento de associações de auxílio lado do assistencialismo proporcionado
mútuo e no desencadeamento de greves, pelo governo e pelos industriais: “a inicia-
consideradas motivo de “confusão” e “bal-
búrdia”. “Com a entrada do novo século, 14
Hardman (1991, p. 100) explica: “as primeiras
mutualistas surgiram na década seguinte e não eram
os problemas continuavam insolúveis. As corporações de tipo artesanal; foram, isto sim, as pri-
greves se sucediam, com as duas princi- meiras organizações operárias que atestavam, embora
pais reivindicações da época: redução da sob formas ainda embrionárias, que o proletariado
jornada de trabalho e aumento de salário”. procurava constituir-se como classe, tentando, para
tanto, formar suas primeiras associações independen-
(MORAES FILHO, 1971, p. 39). tes das demais classes sociais.” Ilustra ainda algumas
Sendo assim, as formas de organiza- mutualistas existentes no país da época: Sociedade de
ção foram sendo consideradas como tais Oficiais e Empregados da Marinha (1833); Sociedade
somente no início do século XX, embora Mecânica Aperfeiçoadora das Artes e Beneficente
(1836); Sociedade de Auxílio Mútuo dos Empregados
ainda precárias e efêmeras: (a) pelos jornais da Alfândega (1838); Associação Tipográfica Flumi-
e revistas; (b) pela militância individual até nense (1853), Sociedade de Bem-Estar dos Cocheiros
1920; (c) pelo sindicato, que era o modo (1856); a Associação Protetora dos Caixeiros (1858);
mais complexo atingido pelo movimento a Associação de Auxílio Mútuo dos Empregados da
Tipografia Nacional (1873), União Beneficente dos
operário13. Operários da Construção Naval (1884).
Esse movimento operário incipiente, 15
O mutualismo não possui origem nacional:
apesar das dificuldades, foi-se organizando na Europa, “o mutualismo constituiu-se numa das
em mutualistas e em ligas, administrando primeiras tendências organizadas pelo movimento
operário internacional, diretamente impulsionada
mobilizações por meio de greves e publi- pelo projeto político do socialista utópico Proudhon”.
cações de jornais, inspiradas pelas experi- (HARDMAN, 1991, p. 101).
ências europeias. Surgiram organizações 16
São correntes que marcam a organização sindi-
cal: a liberal, a socialista e a corporativa dos católicos.
de Auxílio Mútuo, as Câmaras de Trabalho, as
Contudo é a concepção socialista que possui maior
expressão, sendo composta de três tendências: so-
13
A razão disto está nas “más condições de vida do cialistas, sindicalistas e anarcossindicalistas. Carone
operariado, as dificuldades de adesão dos camaradas, (1989, p. 39) analisa rapidamente cada um desses
e a pressão patronal”. (CARONE, 1989, p. 33). agrupamentos dentro do movimento operário.

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tiva para concretizar os benefícios parte, trutura sindical erigida pelo Estado,
em menor escala, dos próprios sindicatos, num processo em que se combinou a
mas existem outras fontes mais fecundas: violência contra os grupos operários
a iniciativa privada dos industriais e, prin- organizados e a concessão de benefí-
cipalmente, do Estado”.17 cios às grandes massas.”
Na década de vinte, vários fatores con- Formou-se, assim, a ideia de que esses
tribuíram para auxiliar na transformação fatores somaram-se para reduzir o poder de
da composição interna do proletariado: mobilização dos sindicatos, após a crise de
acréscimo de migrantes de outros Estados 1929, levando os operários à acomodação
para São Paulo, decréscimo da imigração pela intervenção protetora do Estado.
europeia e a interferência maior do Estado O certo, entretanto, é que o processo de
nas “questões sociais”. industrialização trouxe forças dispersas e
Os trabalhadores artesanais (carpin- heterogêneas ao grupo do proletariado:
teiros, marceneiros, alfaiates, pedreiros, trabalhadores braçais não integrados no se-
padeiros, etc), que imprimiam ao movimen- tor industrial; empregados subalternos dos
to sindical um tom anarquista, cederam serviços públicos e trabalhadores por conta
espaço aos trabalhadores das indústrias própria, por exemplo. Elucida Rodrigues
modernas, como tecelagem, mecânica e (1968, p. 348) que “as diferenças internas
metalúrgica. e a dispersão dos estratos populares não
O operário, de certo modo politizado, favorecem o aparecimento de formas asso-
tinha agora que dividir seu espaço com ciativas consistentes que possibilitem sua
o operário semiqualificado, significando intervenção política sistemática”.
a “supremacia do sindicalismo organiza- Isso teria trazido mais uma dificuldade
do por indústria sobre o sindicalismo de para a nascente organização operária, além
ofício”, como segue explicando Rodrigues das barreiras culturais existentes para a sua
(1968, p. 347): mobilização.
“os trabalhadores europeus, mais O quadro levava a um aparente parado-
qualificados e portadores de uma tra- xo; os operários de fábrica eram a maioria
dição de luta socialista e sindicalista, da força de trabalho desorganizada, e os
viram-se submergidos pela massa de “grupos artesanais qualificados, estáveis,
operários nacionais, de qualificação em cenários não-fabris possuíam um im-
profissional muito baixa e amiúde pacto desproporcional tanto em termos
sem experiência de vida num centro da composição, quanto da perspectiva
urbano relativamente grande. O velho do próprio movimento operário”, como
sindicalismo de minorias militantes, aqueles formados pelos canteiros de Ri-
organizado por ofício e agrupando os beirão Pires, e que possuíam um alto grau
setores mais qualificados, não soube de mobilização e consciência de classe (Cf.
ou não pôde atrair os recém-chegados HARDMAN, 1991, p. 27).
e foi facilmente substituído pela es- Ou seja, o movimento organizado dos
trabalhadores, na Primeira República, era
17
Conforme Carone (1989, p. 231), “algumas composto, de forma preponderante, por
indústrias beneficiam seus operários, instalando,
junto aos estabelecimentos fabris, casas, cooperativas,
operários qualificados não-fabris, muitos
serviço médico e hospitalar (...) É o Estado, no entanto, artesãos, enquanto a maior parte dos ope-
que arca com iniciativas sociais mais amplas, sob seu rários desorganizados estava concentrada
encargo ou obrigando os interessados a participa- em grandes fábricas. (Cf. HARDMAN,
rem de sua responsabilidade: é o caso das medidas
previdenciárias aos ferroviários ou a categorias do
1991, p. 93).
funcionalismo público, no primeiro caso, ou da Lei Não obstante tal constatação, as pés-
de Acidentes de Trabalho, no segundo”. simas condições de trabalho, atreladas às

62 Revista de Informação Legislativa


de vida dos trabalhadores, foi um fator razzo, foram encontradas máquinas
importante para a mobilização deles no de proporções apropriadas ao ma-
início de industrialização18 nacional. Objeto nejo infantil. Pior ainda, os menores
de preocupação do patronato, “nas três viam-se forçados a horários noturnos
décadas iniciais da República, são as greves de onze horas e, com freqüência,
operárias e outras formas de resistência ao sofriam espancamentos dentro das
patronato (...).” (CARONE, 1989, p. 234). fábricas.”
Com a concentração de 30% das indús- Eram claras as péssimas condições de
trias nacionais no Rio de Janeiro e 16% em vida da população proletária nas metró-
São Paulo, a população nessas capitais foi poles, com problemas de urbanização,
aumentando gradativamente, propiciando saneamento básico e transporte. Segundo
o aglomerado habitacional. Além de indús- Moraes Filho (1971, p. 25):
trias, havia igualmente diversas oficinas “Morando em bairros anti-higiênicos,
de manufaturas de calçados, vestuário, em cabeças-de-porco; aglomeradas
móveis e tintas, embora, geralmente, em as famílias em cômodos imundos,
locais distantes de fiscalização, empregan- sem ar nem luz, entregues os seus
do trabalhadores, em maioria italianos, chefes a trabalhos estafantes e mal
portugueses e espanhóis19. remunerados, executados em locais
Essa fase desconheceu restrições legais quase sempre insalubres, escuros,
à exploração do trabalho humano. As mal ventilados, assim viviam os
condições de trabalho dos operários eram trabalhadores. Mulheres grávidas e
perversas, os salários muito baixos, as jor- crianças de tenra idade eram obri-
nadas de trabalho elevadas e os ambientes gadas a mourejar nos serviços mais
de trabalho insalubres. Como elucida pesados e penosos, durante mais de
Gorender (1990, p. 25) sobre o trabalho de 12 horas, com salários ínfimos, a fim
mulheres e crianças: de poderem contribuir, de qualquer
“na indústria têxtil, em particular, o forma, com alguma coisa, para o or-
proletariado era constituído, em sua çamento doméstico.”
maioria, por mulheres e crianças. As vilas operárias assemelhavam-se a
Segundo testemunho insuspeito do cortiços. As moradias eram pobres, coleti-
começo do século XX, a idade mínima vas, sem iluminação adequada. As condi-
para o trabalho fabril era de cinco ções de trabalho, higiene, saúde, alimenta-
anos! Numa das fábricas de Mata- ção eram péssimas, levando à proliferação
epidêmica, como a febre tifoide, sarampo,
18
Industrialização significa processo de criação de lepra, meningite e tuberculose20.
uma quantidade cada vez maior de indústrias orienta- Essa era a conjuntura do Estado de inspi-
das para a modernização da economia do país, numa
transformação da sociedade, de rural e agrícola, em
ração liberal, em que as questões sociais não
urbana e industrial. “Portanto, não se considera como
industrialização uma simples criação de indústrias 20
“(...) três ou quatro cômodos no máximo, que
isoladas, subordinadas às atividades primárias, mas tinham um fundo comum, às vezes, fileiras de peque-
sim um processo irreversível de criação de indústrias, nas casas contíguas escondiam-se da rua, atrás de uma
com urbanização e domínio da cidade sobre o campo”. primeira fileira que ficava rente à calçada. (...) ainda
(VESENTINI, 1989, p. 89). era mencionada a existência na cidade do hotel-cortiço
19
No Estado paulista, em 1901, dos 50.000 operá- (espécie de restaurante onde a população operária
rios existentes, os brasileiros eram menos de 10%. Na sem família dormia à noite em aposentos privativos
capital, entre 7.962 operários, 4.999 eram imigrantes. comuns); (...) e de ‘protótipos’ das favelas contempo-
Em 1912, nas 31 fábricas de tecidos dessa capital tra- râneas, os telheiros de zinco, barracos feitos de tábua
balhavam 10.204 operários, dos quais 1.843 brasileiros e cobertos de folhas de zinco, em geral instalados nos
(18%), 6.044 italianos (59%), 824 portugueses (8%) e 3% fundos dos depósitos de materiais de construção”.
espanhóis. (Cf. NASCIMENTO, 1995, p. 39). (DECCA, 1990, p. 25).

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eram prioridade.21 A relação de trabalho Era Vargas, é falaciosa a afirmação de que
tinha tratamento fundamentado no direito o processo de normatização trabalhista
civil, e essa forma contratual não poderia não significou conquista do movimento
restringir a liberdade dos contratantes.22 operário, mas somente outorga, “presente”
Contudo, o número de greves organi- do Estado getulista.
zadas pelo movimento dos trabalhadores Os historiadores tradicionais normal-
na obtenção por condições dignas de vida, mente omitem a existência dos trabalha-
salários suficientes e redução da jornada de dores como classe social, “como atores da
trabalho começou a se elevar, passando a ser história ou como agentes de sua própria
uma inquietação para o patronato e para o constituição e de seu próprio ‘fazer-se’. A
Estado. Nos primeiros anos republicanos, crônica linear e homogênea destes positivis-
ocorreram em São Paulo três greves em tas faz do discurso histórico algo desprovido
1890 e 1891, e até 1896 uma a cada ano. No de alternativas reais, e transforma todo o
início do século XX, elas passaram a ser mais devir numa preparação escatológica da atu-
frequentes, evidenciando o papel ativo que alidade”. (FONSECA; GALEB, 1996, p. 16).
tiveram os trabalhadores na construção da le- A ordem jurídica é resultado dos anta-
gislação trabalhista, antes mesmo da década gonismos sociais. Nas relações de trabalho,
de trinta. (Cf. NASCIMENTO, 1995, p. 40).
não poderia ser diferente; ao contrário, a le-
gislação é fruto das lutas dos trabalhadores
5. O ativismo dos trabalhadores na por melhores condições de vida e labor.
formação da legislação: as greves Mesmo antes da República, há notícia da
existência da primeira mobilização operá-
Analisando-se as greves e mobilizações
ria: a greve dos gráficos dos três jornais do
do operariado, ainda na fase precedente à
Rio de Janeiro, em 1858. Os jornais eram o
21
Na célebre expressão, as questões sociais eram
Correio Mercantil, o Jornal do Comércio e
tratadas como caso de polícia. Conforme Gorender o Diário do Rio de Janeiro. As condições de
(1990, p. 50): “operários estrangeiros, que se destacavam trabalho eram desumanas:
na liderança sindical ou política, eram sumariamente “(...) trabalhava-se quinze horas por
deportados como rufiões ou sob outras acusações infa-
dia nas oficinas desses jornais; a ilu-
mantes. Outros, eram confinados em locais isolados e
insalubres da Amazônia. As reuniões de trabalhadores minação a gás era deficiente, o que
costumavam ser dissolvidas a patas de cavalo e golpes prejudicava a vista dos que trabalha-
de sabre, não raro com mortos e feridos. O refinamento vam noite a dentro. O custo de vida
da repressão se aperfeiçoou com a organização das listas
tinha subido muito desde dezembro
negras, nas quais a polícia e as entidades patronais inclu-
íam os operários suspeitos de ‘subversão’ e os condena- de 1855, data do último aumento rece-
vam, dessa maneira, ao desemprego permanente.” bido pelos gráficos. (...) Nenhum jornal
22
Conforme Moraes Filho (1971, p. 40), sobre a circulou pelas ruas do Rio de Janeiro
ideologia liberal da época e as razões do veto feito ao durante aqueles dias, e os patrões so-
projeto que regulava a locação agrícola, na década de
1890, de acordo com Manuel Vitorino Pereira, vice- licitaram ‘medidas enérgicas’ à polícia.
presidente em exercício, “intervir o Estado na formação (...) A greve envolveu oitenta operá-
dos contratos é restringir a liberdade dos contratantes, é rios. (HARDMAN, 1991, p. 102)”.
ferir a liberdade e a atividade individual nas suas mais Com o aumento do contingente operário
elevadas e constantes manifestações, é limitar o livre
exercício de todas as profissões garantidas em toda a
nas cidades e o crescente número de greves,
sua plenitude pelo art. 72, § 2o da Constituição. O papel o movimento organizado dos trabalhadores
do Estado nos regimes livres é assistir como simples começou a ser uma preocupação: “nos pri-
espectador à formação dos contratos e só intervir para meiros anos da República as greves eram
assegurar os efeitos e as conseqüências dos contratos
livremente realizados. Por esta forma o Estado não
esporádicas – uma em São Paulo em 1890,
limita, não diminui, mas amplia a ação de liberdade e duas em 1891, quatro em 1893 e até 1896
de atividade individual, garantindo seus efeitos”. uma a cada ano, visando, na maioria das

64 Revista de Informação Legislativa


vezes, melhores salários e redução da jorna- nos primeiros anos de industrialização no
da diária de trabalho. Porém, no começo do país.
século, acentuaram-se” (NASCIMENTO, A primeira paralisação importante, no
1995, p. 40). século XX, consciente e coesa, dos trabalha-
Essa tendência, vinda desde aquele dores, ocorreu em 1906, na maior fábrica
período, caminhou juntamente com o des- do ABC, a Tecelagem Ipiranguinha, em
pontar das primeiras normas reguladoras Santo André, que empregava 500 operários.
da relação individual de trabalho, e que se Tal movimento precedeu uma onda de
mostravam bastante esparsas.23 greves, coincidindo com o aparecimento
As inúmeras greves registradas no Bra- de um operariado urbano, e a realização
sil entre 1900-1920, a criação, pela classe de primeiros encontros de trabalhadores
operária, de uniões, alianças, cooperativas, estaduais e nacionais. Não houve qualquer
associações de auxílio e socorro mútuo, clu- desenvolvimento industrial importante no
bes, bibliotecas, escolas livres, sindicatos, ABC até a virada do século, quando duas
conferências, cursos culturais, congressos fábricas de tecidos se instalaram em Santo
nacionais e estaduais, federações regionais André, São Paulo: “em 1907, essas tecela-
operárias e confederação operária brasileira gens e outras empresas menores do ABC já
refutam a ideia de que o movimento ope- empregavam pelo menos 1.000 operários,
rário era inconsistente e pouco combativo numa população local de 10.000 habitantes,
garantindo assim o status do ABC como o
23
Em 1850, o Código Comercial foi editado, tra- mais importante subúrbio industrial de São
tando da justa causa para dispensa de empregados,
indenização por acidente no trabalho; força maior,
Paulo”. (FRENCH, 1995, p. 19).
aviso prévio para rescisão do contrato de trabalho e Em 1905, foi constituída a Federação
vencimento de salário, nos artigos 74, 226 e seguin- Operária de São Paulo (FOSP), que orga-
tes. No ano de 1852, houve uma lei proibindo as nizou o Primeiro Congresso de Operários
companhias de estrada de ferro possuírem escravos.
O objetivo era de que o trabalho fosse remunerado,
no Estado, no ano seguinte.
haja vista o interesse no capitalismo nascente no país. No ano de 1907, foi deflagrada outra gre-
Por meio do Decreto no 2827, de 15/03/1879, houve ve, cuja principal exigência girava em torno
regulação da locação de serviços e parceria agrícola. da necessidade de diminuição da jornada
No ano da abolição da escravatura, 1888, foi instituída
a Caixa de Socorros para os empregados das estradas
de trabalho para oito horas, e que reuniu
de ferro do Império. Um ano depois, foi criado o fundo 10.000 operários em São Paulo e no ABC.
de pensões para empregados das oficinas da Imprensa Por outro lado, o movimento impulsionou
Nacional, e a obrigatoriedade do Montepio para os a fundação do Centro dos Industriais de
empregados no correio. Durante a Primeira República,
houve algumas disposições legais sobre o trabalho
Fiação e Tecelagem do Estado de São Paulo
coletivo. Entretanto, predominavam as individuais, (CIFTSP), formado pelos proprietários das
restritas a alguns setores sociais, ou de caráter assis- duas maiores fábricas do ABC.24
tencialista. O Decreto no 12-A, de 23/11/1889, fixava Em 1913, o movimento operário ressurge
competências para demissão de servidores. No mesmo
ano, em 14 de dezembro, um Aviso concedia quinze
com ânimo, após um período de crise econô-
dias de férias aos funcionários. No ano posterior, o mica e desintegração de muitas associações,
Decreto no 221, de 26/02/1890, concedia direito de como a FOSP. Naquele ano, a greve de
aposentadoria aos empregados da Estrada de Ferro canteiros, que trabalhavam nas Pedreiras
Central do Brasil. Três meses depois, era dado o
mesmo direito aos assalariados de outras ferrovias
de Ribeirão Pires, na produção de pedras de
(Decreto no 405, de 17/05/1890). O trabalho das crian- calçamento, teve origem num conflito sobre
ças e dos adolescentes nas fábricas foi regulamentado salários atrasados, levando oitenta canteiros
com o Decreto no 1313, de 1891, embora continuasse
existindo. Proibiu-se o trabalho aos 12 anos de idade, Treze principais tecelagens incentivaram a orga-
24

vedou-se o trabalho noturno dos menores de quinze nização dos industriais, que solicitaram a intervenção
anos, e houve limitação da jornada de trabalho para da polícia na repressão contra a greve de 1907. (Cf.
sete horas. (Cf. MORAES, 1971, p. 31). FRENCH, 1995, p. 23).

Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 65


a paralisar a Pedreira Duarte e Aranha. Em cações, entre elas: jornada de oito horas;
1917, os canteiros de Ribeirão Pires entraram abolição das multas; proibição de trabalho
em greve por duas vezes, a primeira por a menores de 14 anos e moças menores
aumento de salário e, posteriormente, em de 21 anos; abolição do trabalho noturno;
solidariedade à greve geral da capital pau- aviso prévio de 18 dias; responsabilidade
lista. Voltaram à greve em 1918, e três vezes dos patrões nos acidentes; redução de im-
em 1919 (Cf. FRENCH, 1995, p. 25). postos aos carroceiros; redução dos preços
Durante o ano de 1917, estouraram dos alimentos, principalmente a farinha de
movimentos grevistas em várias cidades trigo e o açúcar; diminuição dos preços do
do país: São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e aluguéis das casas e higiene nas fábricas
Curitiba, evidenciando o descontentamento (Cf. FONSECA; GALEB, 1996, p. 39).
pelo descaso às causas operárias. O movimento de 1917, em Curitiba,
Na capital paulista, no mês de junho, representou um momento de ascensão do
operários que laboravam no Cotonifício operariado organizado, e um momento
no bairro da Móoca tiveram recusa em seu constitutivo da própria classe operária,
pedido de aumento salarial, e iniciaram um como sujeito atuante na história “não con-
movimento que acabou por se transformar tada”, que a historiografia oficial26 sempre
numa greve geral25, marcando a história da “olvida”.
cidade e das reivindicações operárias no Contudo, o movimento não pôde subsis-
país. Embora reprimida pela força policial, tir à repressão policial. Apesar de as greves
a greve mobilizou cerca de 50 mil operários. não serem proibidas por lei, os grevistas
No mês seguinte, o movimento foi deflagra- estavam sujeitos à violência policial, e os
do também no Rio de Janeiro. sindicatos que mostravam alguma militân-
Em Curitiba, o movimento grevista
também ocorreu em julho, iniciado com um 26
O movimento da greve de 1917 em Curitiba,
comício de oradores na praça Tiradentes, tendo como fundamento o descontentamento da classe
operária com suas condições de vida e de trabalho,
que denunciavam os embaraços da classe
teve seu momento culminante no dia 19 de julho,
operária, causados pelo aumento do preço quando, “logo de manhã, os grevistas procuravam
dos alimentos e os baixos salários. Na So- paralisar os coletivos, ainda na praça Tiradentes. Com
ciedade Protetora dos Boleeiros, deliberou- a adesão de motorneiros e cobradores, e em vista da
afluência de operários que cada vez mais aumentavam
se, então, “que iria ser deflagrada a greve
o fluxo de paredistas, dirigiram-se todos à estação dos
geral dos trabalhadores curitibanos, que se bondes, na Rua Barão do Rio Branco. (...) Foi organiza-
estenderia até que os patrões aceitassem a da então uma comissão para entrar nas oficinas e falar
lista de reivindicações que foi proposta por com os operários. Lá discursou Bortolo Scarmagnan,
Octavio Prado e aclamada pela multidão solicitando a adesão dos colegas, que aderiram sem
restrições. Em seguida, para as oficinas da estrada de
que estava presente”. O jornal “Commercio ferro, que ficava ao lado da estação. (...) Juntaram-se
do Paraná” deveria veicular as reivindi- ao movimento os operários da cervejaria Atlântica,
do Engenho do Jacaré, da Fábrica Favorita, da Fábrica
25
As principais reivindicações da greve geral de de Fósforo Pinheiro além de comerciários, alfaiates e
1917, em São Paulo, eram as seguintes: (a) liberdade pedreiros. (...) Tomar o controle da energia elétrica
para as pessoas detidas por motivos de greve; (b) res- da cidade parecia ser uma meta importante para os
peito ao direito de associação para os trabalhadores; grevistas, que encontraram, porém, a resistência da
(c) garantia contra dispensa de operário participante segurança municipal. (...) Lá chegando, cerca de mil
de greve; (d) abolição do trabalho aos menores de 14 operários invadiram a usina (...) liberaram o vapor
anos; (e) proibição de trabalho noturno para os meno- das máquinas e a cidade ficou às escuras, até aproxi-
res de 18 anos e para as mulheres; (f) aumento salarial; madamente às 19:40 horas. Durante uma hora e meia,
(g) garantia de trabalho permanente aos operários; portanto (...) Curitiba ficou completamente sem luz,
(h) jornada de oito horas de trabalho; (i) aumento até que um destacamento da polícia restabeleceu a
de cinquenta por cento ao trabalho extraordinário. energia elétrica. Os jornais da época traçavam um
Disponível em: <http://www.brasil.htmbrasil.htm>. retrato tétrico da situação que passou a cidade naquele
Acesso em: 21 set. 2003. momento” (FONSECA; GALEB, 1996, p. 40-42).

66 Revista de Informação Legislativa


cia eram duramente reprimidos. A coibição a lei no 1607 estatuiu a proteção ao salário.
era demonstrada também pela interdição Em 1923, é instituída a lei referente aos
do funcionamento de sindicatos, e de as- Ferroviários, Lei Elói Chaves, que criou a
sociações.27 caixa de aposentadoria e pensões para esta
A resistência operária e o embate por categoria, assim como estabilidade para os
melhores condições de vida foram intensos, trabalhadores que completassem dez anos
num longo período histórico que assinala a de serviço, devendo ser a rescisão precedi-
positivação de direitos trabalhistas: da de inquérito.
“(...) entre 1890 e 1935 (...) em con- Entre 1916 e 1929, surgem vários diplo-
dições particularmente difíceis, de mas legais: o Código Civil, tratando do con-
violenta repressão e com uma classe trato de locação de serviços (artigos 1216
operária numericamente fraca e a 1247); a lei de acidentes de trabalho (lei
inexperiente conseguiram os traba- no 3724/19); o decreto criando o Conselho
lhadores anarco-sindicalistas, criar Nacional do Trabalho (no 16027/23), órgão
e desenvolver as organizações de de caráter consultivo dos poderes públicos,
resistência; travar duras lutas para em assuntos relativos à organização do
impor direitos básicos com a liber- trabalho e previdência, sendo composto
dade de expressão e organização dos por operários, patrões e funcionários do
trabalhadores, conseguindo vitórias Ministério da Agricultura, Indústria e Co-
expressivas no campo econômico, mércio; leis regulamentando assistência aos
como aumentos salariais, redução de menores, e regulando também as férias.
horário de trabalho, maior segurança, Com a lei no 4982/25, garantiu-se direito
limitação do trabalho infantil, etc. (...) de quinze dias de descanso remunerado
Estas lutas custaram a muitos desses aos empregados no comércio.
trabalhadores, a prisão, deportação Em 1926, o artigo 34 da Constituição de
e, até a morte (GORENDER, 1990, 1891 foi alterado, estipulando a competên-
p. 26).” cia da Câmara Federal para “legislar sobre
Outros fatores contribuíram para o que o trabalho”. Com ele, a separação entre
Moraes Filho (1978, p. 197) chama de “nova a legislação social, a civil e a comercial
fase de desenvolvimento social-trabalhista foi concretizada, permitindo o avanço de
no Brasil em 1919”, como o Tratado de projetos legislativos na área trabalhista.
Versailles que levou à filiação do Brasil à Entretanto, em 12 de agosto de 1927, a lei
Organização Internacional do Trabalho; e no 5221 autorizou o fechamento das asso-
o crescimento da indústria nacional com o ciações operárias.
decorrer da guerra. Percebe-se, em tal contexto, que, após a
Vários dispositivos legais refletiram a explosão das grandes greves de 1917-1919,
nova fase, dispondo sobre as relações entre principalmente em São Paulo e no Rio de
capital e trabalho: a Constituição da Repú- Janeiro, é que houve criação da Comissão
blica, de 24/02/1891, em seu art. 72, § 1o, e de Legislação Social, com a implementação
art. 75, dispôs sobre a liberdade de trabalho. de várias leis.
No ano de 1903, a lei no 979 facultou a pos- Com a edição do Código de Menores,
sibilidade de organização de cooperativas regulamentam-se medidas de assistência
de produção, consumo e crédito. Em 1906, e proteção aos menores de dezoito anos,
dispondo também sobre o seu trabalho:
27
De acordo com French (1995, p. 23), a lei de atividade laboral noturna foi vedada aos
deportação aos estrangeiros, que constituíam “ame-
aça à ordem pública”, foi aprovada pela Câmara do
menores de doze anos, e limitou-se para
Estado de São Paulo, em 1907, sendo chamada de Lei seis horas o trabalho dos aprendizes em
Adolpho Gordo. certos estabelecimentos.

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Assim, interessante é notar que a legis- movimento grevista reivindicatório
lação trabalhista no Brasil iniciou seu de- sem precedentes. (VIANNA, 1995,
senvolvimento somente após a abolição da p. 19).”
escravatura e a Proclamação da República, Assim, as greves se multiplicavam pa-
período em que o país assiste a um início ralelamente à repressão governamental ao
de industrialização e consequente expansão movimento operário. Além das existentes,
da relação assalariada. e de grande repercussão nacional, no ano
A partir da década de trinta, com o de 1917, nas cidades de São Paulo, Curitiba
governo de Vargas, a legislação trabalhista e Recife, interessa abordar as décadas de
desenvolveu-se mais, e o movimento dos trinta e quarenta. No ano de 1935,
trabalhadores foi fundamental nesse pro- “o movimento operário também vol-
cesso. Como a repressão era muito grande, tava a atuar. No dia 10 de novembro,
a resistência ocorria de forma clandestina: 10 mil metalúrgicos do Rio de Janeiro
“A historiografia rompeu com as entraram em greve. No dia 12 já eram
interpretações mais estáticas (...). Os 15 mil. (...) As greves operárias conti-
sindicatos no período de Vargas não nuavam em todo o país. (...) No dia 18
mais parecem monolíticos, ou sim- de novembro, várias outras fábricas
plesmente instrumentos artificiais do de fiação e tecelagem entraram em
regime, nem tampouco os trabalha- greve. No dia 19, vinte mil metalúr-
dores parecem meros espectadores gicos estavam parados, havendo ame-
passivos, ou vítimas. Certamente aça de greve da categoria em outros
a extensão da oposição sindical às estados. (VIANNA, 1995, p. 46).”
medidas oficiais do começo dos anos No Nordeste, houve reação semelhante,
1930 está mais clara agora, e sabemos com manifestações grevistas. No início de
algo sobre formas de resistência clan- novembro de 1935,
destinas, cotidianas, que ocorreram “a Estrada de Ferro Great Western,
quando as manifestações abertas que ligava o Nordeste de Alagoas
de protesto tornaram-se inviáveis. ao Rio Grande do Norte, teve seus
(HALL, 2002, p. 15).” trabalhos paralisados por um grande
Com esse mesmo entendimento, Vianna movimento grevista. No Recife, a
(1995, p. 18) relata que, logo após a posse greve foi muito combativa. Cerca de
de Getúlio Vargas, ocorreram várias greves, 3 mil manifestantes chegaram até a
como a de maio de 1932, em São Paulo, arrancar os trilhos em alguns trechos
reprimidas com extrema violência poli- da ferrovia. Operários da Companhia
cial. O governo, agora legal, articulando a de Força e Luz, dos transportes e do
aprovação da Lei de Segurança Nacional, carvão também pararam, solidarizan-
com o intuito de reprimir os opositores, do-se com os ferroviários. (VIANNA,
deparou-se com a mobilização operária 1995, p. 60).”
contra tal medida: A resistência operária ao controle
“logo depois da revolução, ainda em sindical, preponderante após 1930, é re-
novembro de 1930, ocorreram várias forçada por Antunes (1982, p. 82): “esta
greves operárias. Em maio de 1932, o luta sindical, agregada à luta econômica
movimento operário grevista em São grevista desencadeada na primeira metade
Paulo assustou a burguesia, sendo da década de 30, dá o quadro da dimensão
reprimido com extrema violência. da combatividade e do nível da consciência
A partir de 1934, os trabalhadores operária, especialmente se a estas lutas
passaram a ter uma presença mais acrescentarmos a atuação propriamente
constante no cenário político, com um política da classe operária”.

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No mesmo sentido, Koval (1982, p. 278) consideram os trabalhadores como indiví-
esclarece sobre a mobilização operária na duos ativos na construção de seus quereres,
Era Getulista: e destituem o valor da Consolidação das
“O movimento democrático de- Leis do Trabalho como fruto na correlação
senvolvia-se sob o fundo geral de de forças sociais e econômicas da época,
ascensão da luta dos trabalhadores com sua importância nos dias de hoje.
por seus interesses vitais. Entre as Torna-se importante a ruptura de dog-
maiores ações do proletariado em mas como esse e um novo “olhar” sobre os
1933, devem-se destacar a greve dos acontecimentos históricos, especialmente
10.000 ferroviários da Paulista, a relacionados com a construção da legisla-
greve política dos trabalhadores de ção trabalhista.
Belo Horizonte, a ação dos têxteis de Assim, o ensaio contesta o discurso da
Salvador e a luta armada dos traba- doação da legislação trabalhista com base
lhadores de Recife.” em dois fundamentos: (a) o de que, desde
Entretanto, pode-se afirmar que o o século XIX, os operários se organizavam
processo de grande motivação legislativa e reivindicavam melhores condições de
durante os anos vinte, referente aos as- vida e trabalho, atuando por meio de mo-
suntos trabalhistas, teve seu fundamento bilizações e greves, inclusive na década de
em fatores internos, como as greves, mas, trinta; e (b) o de que ocorreu um “pacto”
também, em fatores externos: a Revolução entre a classe trabalhadora e o Estado
Russa de 1917 e a formação do Bureau In- getulista, pelo qual a primeira aderiu ao
ternacional do Trabalho28, órgão da Socie- sistema corporativo institucional tendo em
dade das Nações. Nas décadas de trinta e vista a garantia das conquistas dos direitos
quarenta, por outro lado, foi a mobilização trabalhistas primários.
dos trabalhadores, conjugada à política Não houve “doação das leis trabalhis-
de intervenção econômica do Estado, tas” e o movimento dos trabalhadores não
nacional-desenvolvimentista que fomentou foi passivo diante da sua regulamentação.
a positivação de leis trabalhistas. O trabalhador foi sujeito ativo na constru-
ção das normas trabalhistas, e, portanto, do
6. Considerações finais próprio direito do trabalho brasileiro.

O propósito central da pesquisa foi o de


desconstruir o discurso de que a legislação
trabalhista foi doação do governo Getúlio Referências
Vargas, pois equivocadamente arraigado ANTUNES, Ricardo. Classe operária, sindicatos e partidos
no pensamento do direito trabalhista bra- no Brasil: um estudo sobre a consciência de classe – da
sileiro. Revolução de 30 até a Aliança Nacional Libertadora.
Discursos como esses, e chamados de São Paulo: Cortez, 1982.
mitos, reforçam ideias que levam ao confor- CARONE, Edgard. Classes sociais e movimento operário.
mismo, como se a história tivesse linearida- São Paulo: Ática, 1989.
de; encobrem novas possibilidades, pois não COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república:
momentos decisivos. São Paulo: Fundação Editora
28
Criado em 1919, passa a ter o compromisso da UNESP, 1999.
governamental brasileiro somente após 1930. O
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. Cotidiano de tra-
Brasil não ratificou nenhuma das suas leis aprovadas
balhadores na República: São Paulo – 1889-1940. Coleção
na década de 20, nem colocou em prática as suas
Tudo é História. n. 131. São Paulo: Brasiliense, 1990.
recomendações. Sua função era a de funcionar como
mecanismo para manter “a cordialidade ou o equilí- DURHAM, Eunice. Movimentos sociais: a construção
brio entre os interesses patronais e do proletariado” da cidadania. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.
(CARONE, 1989, p. 231). 10, out., 1984.

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