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O MITO DO TRANSUMANISMO ESTADOS UNIDOS FUTEBOL E POLÍTICA
AS MÁQUINAS AMEAÇAM POR QUE OS POBRES ENTREVISTA COM
A HUMANIDADE? VOTAM NA DIREITA JOSÉ TRAJANO
POR GUILLAUME RENOUARD E CHARLES PERRAGIN POR ARLIE HOCHSCHILD POR GUILHERME HENRIQUE E LUÍS BRASILINO
00133
BRASIL
diplomatique
OS
PERIGOS
DA
ELEIÇÃO
2 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
A fábula do
31 de agosto
de 2013
POR SERGE HALIMI*
xatamente cinco anos atrás, tuição histórica, iluminada pela refe- Paradoxalmente, alguns dos de- no a deixar o Kuwait. Assim que esse
acreditar que tudo era permitido. Vla- nos envolvemos antes de embarcar em Churchill e Munique. Por exemplo, o “Quem é esse aliado turco que atinge nossos pró-
dimir Putin entendeu que poderia uma terceira?”, chegou a lhe sugerir, seguinte: em 1991, uma coalizão inter- prios aliados?”], Le Monde, 12 mar. 2018.
2 Citado por Jeffrey Goldberg, “The Obama doctri-
anexar a Crimeia e desestabilizar o no caso da Síria, seu ex-ministro da nacional, valendo-se de uma resolu- ne” [A doutrina Obama], The Atlantic, Boston, abr.
leste da Ucrânia”.1 Uma tal reconsti- Defesa, Robert Gates.2 ção da ONU, forçou o Exército iraquia- 2016.
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 3
EDITORIAL
Os endividados
POR SILVIO CACCIA BAVA
© Claudius
S
essenta e três milhões e seis- com alta de 6,69% no mesmo período. no Chile, de 21,59%.3 Já o cheque espe- Romper esse novo padrão de servi-
centos mil brasileiras e brasilei- Já as contas de telefone, internet e TV cial fica em 324% ao ano, e o crédito pes- dão e afirmar para cada cidadão a con-
ros deixaram de pagar contas por assinatura aumentaram a inadim- soal, em 125,7%. Isso contra uma infla- dição de um ser livre, capaz de exercer
que deviam e tornaram-se “fi- plência em 3,57% no mesmo período. ção esperada em 2018 de 4,5% ao ano.4 plena e ativamente sua cidadania, par-
cha suja” nos serviços de proteção ao O avanço da inadimplência é expli- Assim, a tendência global de finan- ticipar com seus pares na dinâmica da
crédito.1 Esses inadimplentes são nada cado pela alta taxa de desemprego, pe- ceirização da vida como forma de con- política, nas decisões de interesse pú-
menos que 42% da população adulta la precarização das relações de traba- trole social ganha contornos radicais no blico, implica questionar a natureza
do país. Mas não nos esqueçamos de lho, pela redução da renda, enfim, Brasil, estabelecendo uma nova catego- da dívida que o sujeita e libertar-se co-
que a questão das dívidas é maior: elas pelos ajustes estruturais impostos pe- ria social, a dos endividados, com muito letivamente desse jugo.
pesam não apenas sobre esses ina- lo neoliberalismo. A reforma traba- mais dificuldades de superar essa con- Isso vale tanto para as dívidas pes-
dimplentes, mas também sobre todos lhista, a reforma da Previdência e o dição e saldar seus débitos que em qual- soais quanto para as atribuídas ao
aqueles que conseguem manter em corte nas políticas de transferência de quer outra parte do mundo. Aqui se co- conjunto da sociedade, como é a dívi-
dia o pagamento de suas dívidas com renda contribuíram para isso. bram os maiores juros do planeta. da pública, que no Brasil entrega para
grandes dificuldades, mediante esfor- Essa situação de endividamento Segundo Negri e Hardt, vivemos o setor financeiro, como pagamento
ços e sacrifícios cada vez maiores. não é uma particularidade da realida- um momento de transição nas formas do serviço anual dessa dívida, quase a
O crescimento da inadimplência é de brasileira. Ela parece estar presente de exploração capitalista: de uma or- metade de todos os impostos arreca-
geral, ocorre em todo o país, com des- em um grande número de países, pois, dem baseada na hegemonia do lucro dados. Consequentemente, essa con-
taque para a região Sudeste, que em desde o crédito educativo, o seguro- (pela exploração do trabalho indus- centração da riqueza aumenta a desi-
junho acusou aumento de 9,88%, se -saúde, a hipoteca, o financiamento trial), transitamos para uma ordem gualdade social e bloqueia a melhoria
comparado com o mesmo mês do ano do carro, tudo passa a ser financiado dominada pela renda, em que a dívida da qualidade de vida de todos.
anterior. Essa tendência de crescimen- pelos bancos e pelo sistema financei- é um elemento central para produzir a
to dos inadimplentes vem se expres- ro, tornando o endividamento uma subordinação e construir os elos de
sando desde outubro de 2017. condição geral da vida social.2 uma nova servidão.5
Dessas dívidas, 51% são contraídas A jabuticaba brasileira são as taxas O trabalhador, que agora se confi-
1 “Brasil fecha primeiro semestre com 63,6 milhões
com bancos e instituições financeiras de juros cobradas do consumidor. Por gura como um consumidor endivida- de consumidores inadimplentes”, Confederação
e se referem a atrasos no pagamento exemplo, os juros cobrados quando o do, é controlado pela dívida. Atormen- Nacional de Dirigentes Lojistas, 16 jul. 2018. Dis-
do cartão de crédito, do cheque espe- consumidor opta por parcelar o paga- tado pela dívida, ele tem medo de ponível em: <http://cndl.cdls.org.br>.
2 Antonio Negri e Michael Hardt, Declaração: isto
cial, de financiamento e empréstimos. mento do débito no cartão de crédito ou perder o emprego, trabalha mais ar- não é um manifesto, N-1 Edições, São Paulo, 2016.
E foram as que mais cresceram em ju- não faz o pagamento na data do venci- duamente, não participa da defesa dos 3 Ver: <www.proteste.org.br>.
nho (7,62%), se comparadas a junho de mento são de inacreditáveis 334% ao seus direitos enquanto coletividade e 4 Vinicius Torres Freire, “Taxa básica despenca, mas
juro do crédito segue alto”, Folha de S.Paulo, 15
2017. A inadimplência com as contas ano. Na Argentina, essa taxa do crédito sujeita-se a novas modalidades de dis- abr. 2018.
de água e luz estão em segundo lugar, rotativo é de 47,4%; no Peru, de 44,1%; e, ciplina e controle em seu trabalho. 5 Antonio Negri e Michael Hardt, op.cit.
4 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
CAPA
As eleições e a retomada
do Estado social
Esta eleição se diferencia de outras da Nova República porque terá um aspecto
central: a restauração de uma concepção pública de Estado em contraposição à forma
privada hegemonizada pelo mercado financeiro que se instalou depois do impeachment
POR LEONARDO AVRITZER*
odas as democracias têm elei- de um lado, o senador Aécio Neves juntura 2016-2018 consiste em uma nham até dois salários mínimos con-
A eleição de 2014 pode ser conside- impeachment. Ela obedeceu apenas Brasil territorial e politicamente. petismo, o mais curioso é que, até
rada a mais desastrosa da história re- às preferências não sancionadas elei- Tal mapa se articula com um mapa meados de julho de 2018 – portanto, a
cente de nosso país. Ela implicou um toralmente da elite econômica no país. de estratificação de renda segundo o setenta dias da realização das eleições
falso debate sobre a economia no qual, A segunda característica da con- qual mais de 60% dos eleitores que ga- –, o partido que estrutura todos os en-
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 5
frentamentos eleitorais desde 1989, o da década anterior. É importante no- MAPA DA DISTRIBUIÇÃO TERRITORIAL DOS VOTOS NA ELEIÇÃO DE 2014
PT, não tem um candidato aceito pela tar que a PEC 55 pretende estender es-
estrutura do sistema eleitoral. São ses efeitos por vinte anos a partir da
conhecidos os motivos pelos quais o composição política de um Congresso
PT não tem um candidato: seu líder que é o pior desde a democratização.
maior encontra-se preso após um Nenhum país com uma política de
processo de duvidosa legalidade e ajuste cometeu erros tão primários
continua, até julho de 2018, declaran- quanto o Brasil. Nesse sentido, é im-
do-se candidato. A insistência do PT portante que o próximo governo reve-
na manutenção da candidatura do ex- ja os parâmetros da PEC 55, se não to-
-presidente Lula acentua a incerteza da a estrutura de tetos de gastos, tal
política por uma razão principal: por- como foi proposta por Henrique Mei-
que diminui a possibilidade de um relles e equipe. A melhor proposta é
desfecho institucional para a crise po- aquela feita pelo candidato Ciro Go-
lítica que abala o país. mes, espelhando a maneira como se
Duas são as questões principais a estabelece nos Estados Unidos, no DILMA ROUSSEFF
serem abordadas por um candidato de qual existe uma negociação de quais AÉCIO NEVES
esquerda nas eleições de 2018. A pri- itens cortar, e não uma proposta gené-
meira é a retomada da relevância das rica de corte de gastos que acaba inci-
eleições na determinação das políticas dindo fortemente sobre a área social.
públicas, em especial as políticas da A segunda questão que está em jo-
proteção social. Até este momento, o go nesta eleição e nos próximos anos
Brasil enfrentou um conjunto errático no Brasil é a capacidade de governar
de políticas, capitaneadas pelo campo sem interferência decisiva do Judiciá-
político neoliberal, visando à estabili- rio no processo de tomada de decisão. pel do Executivo, em especial na área prio Judiciário define seu salário e
zação das finanças do Estado. Os re- A Constituição de 1988, por seu forma- de saúde. Essa primeira fase acabou benefícios, precisa ter fim para permi-
sultados não são animadores. O país to de detalhamento da missão consti- gerando uma fase na qual o STF age de tir uma repactuação da organização
não apenas passou pela pior recessão tucional, abriu espaço para uma am- forma seletiva em todas as questões das finanças públicas e das políticas
de sua história, como também impin- pla interferência do Judiciário na que dizem respeito ao sistema político públicas cuja eficiência e foco são hoje
giu aos mais pobres o preço do ajuste, elaboração dessas políticas. Ao mesmo e passa a interferir nas prerrogativas questionadas pelo Judiciário.
gerando mais de 10 milhões de desem- tempo, os artigos 102 e 103 da Carta de exclusivas do Executivo. Cabem al- Esta eleição se diferencia de outras
pregados. Ao mesmo tempo, realiza-se 1988 ampliaram o rol de legitimados guns exemplos: suspensão da nomea- da Nova República porque terá um as-
o ajuste do Estado poupando as corpo- para a arguição de constitucionalida- ção de ministros; remoção de mem- pecto central: a restauração de uma
rações (Ministério Público e Justiça) de, abrindo ainda mais espaço para a bros do sistema político de suas concepção pública de Estado em con-
que estão no centro de um ataque ao interferência do poder judicial em funções; e, finalmente, em dezembro traposição à forma privada hegemoni-
sistema político em nome de um su- questões políticas. Essa interferência de 2017, a suspensão do indulto natali- zada pelo mercado financeiro que se
posto combate à corrupção. A PEC 55 e se deu em duas etapas bastante distin- no e a redação por um ministro do STF instalou depois do impeachment. O
seus efeitos deletérios sobre a organi- tas: no primeiro momento, que corres- de um novo texto. Mais além, um dos próximo presidente terá como tarefa
zação da proteção social e do sistema ponde ao período de Moreira Alves no ministros da corte defendeu essa nova não só recuperar a capacidade do Es-
de ciência e tecnologia são o resultado STF, elas foram pontuais e nos casos função como o exercício de uma fun- tado de assumir papéis relativos aos
dessa forma equivocada de ajuste e de em que o assim chamado mandato de ção de representação (sic) por uma interesses da maioria da população,
compreensão do setor estatal. Por injunção apontava a omissão do Con- instituição contramajoritária. Esta pa- mas também assumir essa difícil tare-
meio dela está em curso um processo gresso na elaboração de determinada rece ser a segunda questão em jogo fa representando de forma inequívoca
de desmonte do Estado em três arenas legislação; assim, o papel do Supremo nestas eleições: dar ao futuro presi- a maioria da população diante das ins-
principais: a área de saúde, com o SUS se restringia a pedir que o Congresso dente um amplo mandato para pôr tituições do sistema de justiça.
sendo colocado em questão; a área de elaborasse tais leis. A partir de 2003- fim ao caos judicial em curso no país,
assistência social, com o sistema terri- 2004 passamos a ter uma nova forma do qual o Ministério Público e o Judi- *Leonardo Avritzer, doutor em Sociologia pe-
torial da assistência social (Cras e de intervenção do STF na política que ciário são sócios. Esse caos, que causa la New School for Social Research (1993) e
Creas) sendo colocado em questão; e a se iniciou com o próprio tribunal legis- insegurança jurídica, diminui as prer- pós-doutor pelo Massachusetts Institute of
área de ciência e tecnologia, com a vol- lando em diversos casos de políticas rogativas do sistema político e pressio- Technology (MIT), é professor adjunto da Uni-
ta dos investimentos no setor ao nível sociais e assumindo claramente o pa- na as finanças públicas, já que o pró- versidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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6 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
CAPA
A normalização do golpe
O discurso “responsável” do centro teve um apelo nulo, enquanto as incongruências da direita começaram
lentamente a cavar espaço na mídia convencional. A verdadeira funcionalidade do malabarismo discursivo direitista
não é só desmoralizar a política e, assim, conquistar um voto de protesto. Trata-se de representar eleitoralmente
a última ideia de uma sociedade moribunda: o Estado policial democrático
POR LINCOLN SECCO*
bilização monetária que lhes garanti- razão de que se esgotou por suas pró- pendente. O capitão da direita brasi- curso “responsável” do centro teve um
ram um período de apoio popular. prias contradições internas, ainda que leira se curva perante a bandeira de apelo nulo, enquanto as incongruên-
Agora, eles assumem após a crise glo- fossem inegáveis os avanços sociais e outro país. É o símbolo daquilo que o cias da direita começaram lentamente
bal de 2008 sem uma nova mercadoria seu impacto geopolítico progressista. saudoso Betinho (Herbert de Souza) a cavar espaço na mídia convencional.
de valor a entregar como foi a “moeda Mas, se a esquerda teve dificuldade chamava de “Estado transnacional”, A verdadeira funcionalidade do mala-
forte” no passado. As políticas de aus- com o legado do socialismo real, a di- ou seja, que segue ordens externas e barismo discursivo direitista não é só
teridade fiscal (algumas já iniciadas reita também perdeu algo. perde a capacidade de atender suas desmoralizar a política e, assim, con-
sob os próprios governantes da esquer- A direita é extremista quando pre- próprias populações. quistar um voto de protesto. Trata-se
da) aprofundaram a recessão e eleva- cisa propor uma alternativa após a O fracasso de um centro político de representar eleitoralmente a última
ram o desemprego. derrota da esquerda. E é conservadora “técnico” não é inevitável, mas con- ideia de uma sociedade moribunda: o
Mais que a esquerda, é a direita que quando se acha estabelecida no poder venhamos que é difícil convencer a Estado policial democrático. Que a lei-
entra em crise. Isso não é necessaria- sem uma contestação dotada de viabi- população a votar em candidatos que tora e o leitor estejam diante de um
mente uma boa notícia. Novos golpes lidade eleitoral ou revolucionária. dizem que vão retirar seus direitos oximoro, não será novidade. Demo-
de mão ou vitórias em eleições mais ou No entanto, não podemos confun- sociais. A entrega do poder político a cracia liberal (ou burguesa) já o era.
menos fraudadas e com altos índices dir as contradições internas da direita bufões violentos, como aconteceu em Depois que a economia mundial
de abstenção podem dar fôlego ao pre- e da extrema direita com seu ser social. países tão distintos como as Filipinas enfrentou a crise de 2008, a taxa de lu-
domínio das políticas de privatização. Ele é um só e, por mais antiliberal que e os Estados Unidos, talvez demons- cro caiu e a competição planetária en-
Além disso, os ataques à legislação o fascismo possa ser, integra com os li- tre uma crise mais profunda do pró- tre as empresas transnacionais se acir-
trabalhista desorganizaram os sindi- berais um mesmo continuum. prio terreno político e econômico no rou; a necessidade de baratear a parte
catos, embora tendam a tornar impre- A contrarrevolução da extrema qual está assentada a dominação de circulante do capital e de desregula-
visíveis as novas formas de luta da direita não é uma excepcionalidade classe no capitalismo. mentar quaisquer barreiras à riqueza
classe trabalhadora, reacendendo a na história do liberalismo, mas um financeira mundo afora levou os paí-
chama de movimentos antissistêmi- dos resultados da ordem social que CAOS ses centrais a promover a desestabili-
cos que operam fora da frequência ha- ele defende. Democracias liberais O neoliberalismo de fins do século zação política dos países periféricos. O
bitual da esquerda partidária. usaram técnicas de extermínio con- XX apresentou-se como uma revolução controle do fornecimento de matérias-
tra povos colonizados e se serviram anticomunista que, em vez de defender -primas, alimentos e energia e uma
A NORMALIZAÇÃO DE FACHADA de pessoas consideradas inferiores a família, a tradição e disfarçar a hie- força de trabalho barata são os objeti-
No nosso vocabulário político exis- para a prática da eugenia. Isso não rarquia social, incorporou a desigual- vos dos países dominantes.
tem poucos termos tão desacreditados, quer dizer que liberais autênticos, ra- dade como um valor positivo. Isso era Não se trata desta vez de ter gover-
carregados de um conteúdo tão negati- ros no Brasil, não possam honesta- ser moderno. Como sabem os historia- nos comprometidos com uma depen-
vo, quanto a “direita”. Assim iniciava mente se contrapor a ditaduras. dores, o “moderno” é velho e remonta à dência negociada e dotados de algum
um pequeno manual sobre La droite en Ocorre que, sem uma esquerda que época das comunas medievais, segun- projeto de país, afinal o socialismo,
France.5 Publicado em 1973, no rescal- represente um ser social reconhecível e do Gramsci, ou mais precisamente às mesmo como simples técnica de desen-
do de uma vaga revolucionária ainda uma herança histórica aceitável, a di- inovações no interior da escolástica no volvimento, ruiu com a União Soviética.
inacabada, o livro não podia prever o reita pode finalmente abandonar dis- século XIII. Trata-se agora de ter prestidigitadores
golpe neoliberal no Chile e a contrarre- cursos universalizantes e se valer sim- Contração monetária, elevação da amparados por um aparato midiático,
volução monetarista na Inglaterra e plesmente da mentira. Tanto faz se seu taxa de juros, baixa dos impostos sobre jurídico e policial. Uma classe média
nos Estados Unidos dos anos 1980. sistema político não mobilize ninguém renda e patrimônio, desregulamenta- acossada pelo medo aplaude.
É verdade que a história contempo- e que suas mensagens não tenham ne- ção financeira, ataque aos sindicatos, Mas não é fácil manter Estados
rânea exibiu fases em que todo o terre- nhuma credibilidade. Basta que apare- corte de gastos sociais, privatização e destituídos de suas funções básicas e
no político se deslocou à esquerda ou à çam por uma semana e depois sejam atribuição do desemprego ao fracasso garantir a segurança de enclaves de
direita. Os leitores de Eric Hobsbawm apagadas e substituídas por outra. individual não foram escamoteados, espoliação neocolonial sem promover
se lembram de que a ortodoxia liberal Nesse quesito, o Brasil foi pioneiro. mas propagados. Da mesma forma, o a anomia social e a contraviolência. O
ruiu nos anos 1920 e, depois da Segun- Sem um passado real de lutas nacio- neoliberalismo está assentado num domínio sem consenso organizado é
da Guerra Mundial, seguiram-se os nais coletivas, o conservadorismo não modo de vida. O cidadão é uma empre- insuportável; Estados conquistados e
trinta anos gloriosos em que o Estado teve aqui nada a evocar, e as ladainhas sa em si mesmo; o direito privado é estabelecidos por puro banditismo es-
garantiu um bem-estar mínimo da po- da batalha de Guararapes ou do geno- constitucionalizado, e o Banco Cen- tão fora da política, porque são “mons-
pulação diante da ameaça soviética. cídio no Paraguai jamais teceram uma tral, separado do poder político para se tros históricos”.7
Mesmo políticos direitistas não ou- memória de lutas igualitárias e repu- livrar de incômodas maiorias eleitorais Para as oligarquias togadas, o pro-
savam demolir aquele terreno. No en- blicanas. Um capitão do Exército, ain- circunstanciais.6 O poder se desloca blema da América Latina não é a desi-
tanto, ele estava fundado num longo da que de carreira pouco exemplar, para o controle do Judiciário, e uma gualdade social infame, e sim a cor-
ciclo de crescimento econômico que conseguiu ser o primeiro fascista anti- oligarquia formada por altos funcioná- rupção. Afinal, como disse Rivarol, a
desaguou na queda da taxa média de nacional, e as Forças Armadas apoia- rios do Estado, grandes financistas e igualdade é maravilhosa, mas por que
lucro e, após dois choques do petróleo ram um golpe que pode desmontar a chefes de corporações empresariais contar isso ao povo?
e diante da crise fiscal do Estado, na unidade territorial do Estado. manipula a informação e destrói repu-
contração de gastos sociais. A ascensão política de um come- tações de adversários. *Lincoln Secco é professor de História Con-
A ascensão liberal coincidiu com diante ruim, seja no Brasil ou na Itália, é Todavia, governar não passou a temporânea da Universidade de São Paulo e
a debacle da União Soviética. Dife- edulcorada por dezenas de comentaris- ser entendido como uma gestão téc- autor do livro História do PT (Ateliê Editorial,
rentemente de todas as outras tragé- tas dotados daquela superficialidade nica. Isso é um engano. Partes do go- Cotia-SP, 2011).
dias vivenciadas pela esquerda no profunda que Marx atacava em seus ad- verno foram sequestradas por corpo-
passado, essa foi a primeira que não versários. Adolf Hitler não exibia muita rações do Estado não eleitas e se
1 Lincoln Secco, “Golpe de toga”, Le Monde Diplo-
deixou saudade. Da Comuna de Paris coerência no amontoado de pseudoteo- legitimam pelo discurso da neutrali- matique Brasil, ago. 2017.
à Guerra Civil Espanhola; das tentati- rias e acontecimentos distorcidos que dade. Assim, bancos centrais e tribu- 2 Edelberto Torres-Rivas, Revoluciones sin cambios
vas revolucionárias dos anos 1930 em escreveu em seu Mein Kampf. Mas ha- nais são inquestionáveis. revolucionarios, F&G, Guatemala, 2013, p.318.
3 Tomás Moulin, Chile actual: anatomía de un mito,
El Salvador, Nicarágua ou Brasil ao via ali uma manipulação racional da- O que é, então, governar? Quando o LOM, Santiago, 2017, p.36.
massacre dos comunistas gregos, to- quilo que ele entendia ser a força irra- Poder Executivo podia definir suas po- 4 Marcos Novaro e Vicente Palermo, A ditadura ar-
das as derrotas foram resgatadas do cional contida nas massas. líticas públicas com maior grau de in- gentina, Edusp, São Paulo, 2007, p.111.
5 Jean Christian Petitfils, La droite en France [A direi-
passado como um exemplo a ser re- Outrora, militares entreguistas su- dependência, tratava-se de arbitrar ta na França], PUF, Paris, 1973.
cuperado pela esquerda. bordinavam seu país aos Estados Uni- conflitos sociais. Mas, sem isso, resta- 6 Pierre Dardot e Christian Laval, Ce cauchemar qui
O fim do socialismo real não legou dos em nome de um posicionamento -lhe somente ameaçar os resignados e n’en finit pas [Esse pesadelo que não termina], La
Découverte, Paris, 2016, p.69 e 98.
a ninguém um modelo utópico de so- no xadrez da Guerra Fria e da manu- reprimir os descontentes. 7 Louis Althusser, Política e história, Martins Fontes,
ciedade a ser defendido pela simples tenção de uma zona de soberania de- Eureca! Descobre-se por que o dis- São Paulo, 2007, p.226.
8 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
Caminhoneiros, um ícone
em via de desaparecer
Em 2016, pela primeira vez um caminhão sem motorista fez uma entrega nos Estados Unidos. Desde então, os testes se
multiplicaram, abrindo caminho para um mundo em que as mercadorias se deslocarão sem a intervenção humana. Diante dessa
ameaça à existência de seu trabalho, os caminhoneiros norte-americanos oscilam entre o pânico, a negação e a incredulidade
POR JULIEN BRYGO*
“C
ontratam-se operadores inde- Em frente ao portão, um cortejo listas europeus, mas nada funcionou: recem lutar contra o mesmo obstáculo
pendentes!” Plantados na gra- prepara uma greve, a sexta em quatro a XPO recusa-se a reconhecer os moto- da época: a repressão aos sindicatos.
ma, os cartazes da empresa de anos. Nesta tarde de maio de 2018, ristas como funcionários!” Porém, observando as análises dos
logística XPO Logistics, em com seus camaradas do International Nesse armazém, a maior parte dos bancos de investimento e os comuni-
Longbeach (Califórnia), fazem pensar Brotherhood of Teamsters, o maior 150 motoristas adquiriu o caminhão cados corporativos, notamos que um
naqueles restaurantes de estrada nos sindicato nos Estados Unidos (1,4 mi- por meio de arrendamento mercantil novo participante logo fará sua entra-
Estados Unidos sempre com o mesmo lhão de membros em 2018, 600 mil de- da XPO. A técnica é conhecida pelo no- da no cenário do transporte rodoviário
anúncio na porta: “Estamos contra- les atrás do volante), Santos Castane- me de leasing, que permite à empresa nos Estados Unidos – trata-se do cha-
tando”. A multinacional do transporte da quer que os motoristas da XPO vender a ferramenta de trabalho ao ca- mado caminhão “autônomo”, que não
de mercadorias (que em 2015 comprou assinem uma petição contra a condi- minhoneiro, o qual se tornará, depois precisará, como diz seu nome, de um
o grupo francês Norbert Dentressan- ção de trabalhador independente, que de muitos anos pagando parcelas ser humano para fazê-lo rodar.
gle por mais de US$ 2 bilhões) luta para considera um disfarce para o trabalho mensais, a menos que algo aconteça, o
encontrar novos motoristas para en- assalariado. “Apresentamos queixa feliz proprietário de seu veículo. O do- NA CONTABILIDADE DO VALE DO SILÍCIO
tregar os contêineres dos grandes vare- cinco vezes perante a Suprema Corte no da XPO, Bradley Jacobs (com uma Segundo um relatório do Morgan
jistas, como Walmart e Amazon. Como da Califórnia”, diz. “Fizemos petições, fortuna de US$ 2,6 bilhões em 2018), Stanley publicado em 2013,2 os trans-
quase todas as empresas de transporte entramos com processos. Chegamos não gosta de sindicatos. “Os Teamsters portadores portuários, como os da
rodoviário do país, ela está alarmada até a lançar uma grande campanha não são reconhecidos na empresa”, diz XPO Logistics, serão os primeiros a se-
com a falta de 50 mil caminhoneiros. mundial com nossos colegas sindica- Daniel Duarte, motorista de ônibus rem substituídos por veículos sem mo-
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 9
torista. Depois, “entre 2020 e 2025”, vi- país, motorista de caminhão é a pro- seu caminho”, resume André Ribeiro, comparação com os trabalhadores in-
rão os caminhões autônomos de nível fissão mais comum, na frente de em- funcionário de uma empresa califor- dependentes, que ganham US$ 1.200
4, capazes de se guiarem sozinhos, pregados do comércio, professor e (em niana. Ele acaba de parar em um posto por semana, por mais de sessenta ho-
mas em áreas previamente mapeadas clara alta) programador.4 Mais de 1,8 de gasolina de Minnesota, parecido ras de trabalho, arcando com todos os
e com uma pessoa a bordo para o caso milhão de caminhoneiros, dos quais com dezenas de milhares de outros: custos, estamos muito bem.” Scott la-
de haver problemas. Os veículos com- 93% são homens, operam em longas bombas de gasolina pagas com cartão, menta sobretudo que a empresa não
pletamente autônomos, de nível 5, sem distâncias, transportando cerca de um funcionário precário atrás do bal- esteja mais recompensando seus me-
ninguém na cabine, estarão generali- 70% dos bens de consumo no país – o cão, salsichas girando em uma estufa e lhores motoristas, que antes podiam
zados “por volta de 2030”. “As utiliza- restante é transportado por via férrea. garrafas de café que os caminhoneiros sair com uma máquina de lavar ou
ções em circuito fechado – por exem- Em 2017, o salário médio de um moto- levam em copos. “O mais difícil é a es- uma churrasqueira (por trinta anos de
plo, nos portos – serão as primeiras, rista de caminhão era de US$ 42.480 pera, a solidão, estar confinado em serviço). “Isso acabou”, lamenta, e
seguidas pelos trajetos em rodovias e, por ano, de acordo com o Bureau of La- seus pensamentos. E o cansaço. Todos continua: “Não muito longe da minha
finalmente, pelas utilizações em zona bor Statistics.5 A taxa de rotatividade os motoristas vão dizer a mesma coisa: casa, uma mulher foi morta outro dia
mista, urbana e rodoviária”, prevê o do setor é impressionante: quase todos sentimos que somos um risco, pois so- por um carro autônomo da Uber.8 Eu
Morgan Stanley, que estima em US$ os motoristas que entram em uma em- mos levados ao nosso limite. Eu dirijo não gosto dessa ideia de caminhões
168 bilhões anuais a economia ligada à presa de transporte saem depois de onze horas todos os dias! Onze horas sem motorista. Sempre vamos preci-
automatização do setor: US$ 70 bilhões seis meses. sentado no banco do caminhão! Vive- sar de motoristas, não? Espero que
pela supressão de mão de obra, US$ 36 Por muito tempo, o caminhoneiro mos cheios de cafeína, energéticos; tu- Trump não deixe isso acontecer”.
bilhões em custos de acidentes evita- foi uma figura-chave no grande ro- do o que sai, nós tentamos. Depois to- Os veículos autônomos, porém, são
dos,3 outros US$ 35 bilhões em econo- mance nacional. É ele o guardião da mamos pílulas para dormir.” um fato – ao qual Donald Trump não faz
mia de combustível e mais US$ 27 bi- promessa da América, berço da livre A 1.500 quilômetros dali, Paul nenhuma oposição: hoje, o “caubói dos
lhões em “ganhos de produtividade”. circulação de bens e pessoas. Ele é Scott, de 72 anos, estaciona seu cami- tempos modernos” aparece em verme-
Outros analistas financeiros se mos- “uma figura importante na cultura po- nhão preto com desenhos amarelos lho nas planilhas Excel das start-ups
tram ainda mais otimistas. pular, celebrada ao mesmo tempo co- perto de um posto de gasolina, no No- criativas do Vale do Silício. Os cami-
O relatório do Morgan Stanley colo- mo caubói e renegado”, resume Rich vo México, com ares de Velho Oeste: nhoneiros – com seus intervalos, suas
ca os motoristas que trabalham por Cohen, um autor do Meio-Oeste que saloon, consultório médico, prisão. Há oito horas de sono, seus salários e suas
meio do leasing, como os de Longbea- “sempre sonhou em dirigir cami- cinquenta anos ele é motorista de en- ameaças de paralisações – represen-
ch, entre as primeiras vítimas da “dis- nhão”.6 A música e o cinema – de Fist a tregas da United Parcel Service (UPS), tam até 40% do custo total do trans-
rupção” do transporte. “Isso nunca vai Mad Max, passando por Comboio e maior empresa de entrega de enco- porte de mercadorias. Por isso, após a
acontecer”, acredita André Hart, que Agarra-me se puderes – constituíram mendas do mundo, com 435 mil fun- disrupção no setor bancário, no setor
dirige caminhões de carga há dezessete uma imagem excepcional do cami- cionários –, e tornou-se também o postal, nas telecomunicações, no co-
anos. “Já é muito perigoso na estrada... nhoneiro no imaginário norte-ameri- símbolo da última vitória sindical na- mércio, na indústria fonográfica, no
Computadores não têm olhos. Com as cano: a de um sujeito habilidoso, que cional nos Estados Unidos, após a fa- jornalismo e no transporte de passa-
câmeras, todos os dias acontecem sur- sabe farejar oportunidades, conversa mosa “greve da UPS”.7 geiros, o Vale do Silício os colocou na
presas desagradáveis.” Gerald Daniels com seus colegas em uma linguagem Em 1997, Scott já fazia parte dos 185 lista de seus próximos alvos. Em outu-
se aproxima, com cabelo rastafári até o particular e é capaz de mobilizar os mil grevistas sindicalizados aos bro de 2016, a empresa Otto, adquirida
quadril e óculos escuros: “Claro que vai companheiros para fazer o equilíbrio Teamsters que, em quinze dias de blo- pela Uber, anunciou ter realizado com
acontecer”, lança. “No terminal de con- de forças pender a seu favor. Em Com- queio, dobraram a direção da UPS, re- sucesso a primeira entrega comercial
têineres de Longbeach já não tem mais boio, de Sam Peckinpah, quando um confortando a classe trabalhadora autônoma (de caixas de cerveja Bud-
ninguém carregando os caminhões.” jornalista pergunta qual é o objetivo norte-americana, ainda traumatizada weiser) em um trajeto de 193 quilôme-
Assim como as colheitadeiras guiadas do movimento de resistência à polícia pela decisão de Ronald Reagan de de- tros. Desde então, a coisa está se acele-
por GPS, os cortadores de grama inteli- que reuniu centenas de caminhonei- mitir 11.359 controladores de tráfego rando. Ao lado da Uber, da Google e da
gentes que percorrem o jardim ou os ros, Martin “Rubber Duck” Penwald – aéreo em greve, em 1981. “Graças à Tesla, cinco start-ups competem para
aspiradores de pó domésticos que cir- interpretado por Kris Kristofferson – greve, conseguimos boas condições inventar o primeiro sistema confiável
culam sobre os carpetes, os caminhões responde: “A razão de ser do comboio é de trabalho, bons salários e também de caminhões sem motoristas.9
de amanhã serão “autônomos”, prome- nunca parar”. bons uniformes. Hoje, eu não trocaria
te o Vale do Silício. “Nós, os caminhoneiros, não so- meu lugar por nada no mundo: temos “O GOOGLE MATOU A SOLIDARIEDADE”
Nos Estados Unidos, 3,5 milhões de mos os caubóis dos tempos modernos, oito semanas de férias por ano, ótimas No clube dos cinco, Stefan Seltz-
pessoas trabalham atrás do volante. estamos mais para gatos selvagens que aposentadorias, plano de saúde e bons -Axmacher, de 28 anos, dono da Star-
Na maioria dos cinquenta estados do nunca se cruzam, cada um seguindo salários – até US$ 100 mil por ano. Em sky Robotics, que aposta em cami-
T R O C A DE
RAINHAS "O roteirista e diretor Marc Dugain
desdobra sua história com habilidade
e consegue manter o suspense até o fim.
UM FILME DE MARC DUGAIN Um sucesso!"
BASEADO NO ROMANCE DE CHANTAL THOMAS
(Le Journal du Dimanche)
nhões remotamente controlados, faz o Conselho Conjunto 7 do sindicato. chilar na sala de TV ou ainda experi- Carter extinguiu o controle estatal so-
papel de Pequeno Polegar. Em seu es- “Não somos contra a tecnologia, mas mentar, nas gôndolas de mercadorias, bre as tarifas e licenças, entregando
critório em San Francisco, o jovem saí- ela não pode servir para deteriorar as sandálias com “a autêntica grama do todo o setor à lei do mercado. O painel
do da escola de negócios, com a barba condições de vida dos caminhoneiros Iowa”. “Aqui estão os melhores chuvei- termina com a fotografia de uma
fina raspada apenas no queixo, rosto e tornar seu trabalho ainda mais difí- ros da América”, diz Tonya Brewer, criança abaixo da porta de um cami-
redondo e olhos brilhantes, empenha- cil e sem sentido, reduzindo-os ao pa- com fone de ouvido em uma das ore- nhão, com a seguinte pergunta: “O
-se em explicar já de saída que “nunca pel de assistentes de robô. Além do lhas. “Dizem que os caminhoneiros que o futuro nos reserva?”.
trabalhou como motorista de cami- mais, eu te digo: todos aqueles que, co- são sujos e malvados. Eu tomo banho “Bem”, responde Sandra C., recep-
nhão”. Ele levantou US$ 21,5 milhões e mo o dono da Starsky, dizem que estão todos os dias, ou pelo menos a cada cionista do museu, “espero que não se-
contratou trinta engenheiros, a partir ‘prontos’ estão mentindo. A infraes- dois dias. E não perturbo ninguém na ja o futuro dos caminhões sem cami-
de 2015, para desenvolver um sistema trutura não está pronta, os computa- estrada!” Brewer é funcionária da nhoneiros. A vida deles já é dura como
de caminhões teleguiados, que imagi- dores não estão prontos. Os norte-a- Swift, uma das maiores empresas de está. Muitos só vão para casa uma vez
na navegando entre os galpões da mericanos não estão prontos.” Nem os transporte rodoviário dos Estados por mês, e todos comem muito mal
Amazon e os terminais de contêineres. Teamsters... “Estamos muito longe do Unidos. “Dirijo 25 dias por mês, onze nas estradas. Veja, hoje está vazio; é
Para transformar o país em uma gigan- dia em que caminhões sem motoristas horas por dia, por cerca de US$ 1.200 sempre assim nos dias de semana. Os
tesca cadeia automatizada da Amazon, estarão circulando em quantidade nas por semana, e vou para casa quatro caminhoneiros não têm tempo para
não é necessário gravar milhões de có- rodovias”, garante Bloch. dias por mês. Eu e meu marido nos vir aqui, mesmo que este seja, que eu
digos de barras nos sinais de trânsito amamos, mas quatro dias por mês é o saiba, o único museu dedicado a eles
nem instalar chips eletrônicos no as- suficiente. Eu adoro ficar sozinha. Pa- em todo o país.”
falto. Ligados a câmeras, radares e sen- ra mim, é liberdade. Bem, preciso ir!”
sores de movimento, os caminhões co- “Estamos muito Caminhoneiros não têm tempo. *Julien Brygo é jornalista e autor, com Olivier
nectados serão primeiro guiados a longe do dia em Monitorados pelo electronic logging de- Cyran, de Boulots de merde! Du cireur au tra-
distância por operadores quando esti- vice, a folha de rota eletrônica, seus der – Enquête sur l’utilité et la nuisance so-
que caminhões
verem em estradas “complexas”; de- tempos de intervalo são cronometra- ciales des métiers [Empregos de merda! Do
pois, entrarão em modo “autônomo” sem motoristas dos – e não são pagos. “Se eu pudesse sapateiro ao corretor financeiro – Pesquisa
na rodovia. “Tecnicamente, estamos estarão circulando encontrar o cara que inventou essa sobre a utilidade e o prejuízo social das pro-
quase prontos”, garante Seltz-Axma- em quantidade máquina e forçá-lo a ficar onze horas fissões], La Découverte Poche, Paris, 2018.
cher. “Tivemos um progresso formidá- por dia preso na cadeira do escritório,
nas rodovias”
vel nos últimos três anos.” verificando cada movimento que ele
Filho de um “engenheiro frustra- faz, impedindo que durma ou descan-
do” e de uma jornalista da imprensa de se quando quiser, ele iria ver como é vi-
1 Carismático secretário-geral do sindicato entre
negócios, ele deve sua ideia à Opera- No entanto, o desenvolvimento de ver assim!”, exclama Felipe Ramirez, 1957 e 1971, condenado em 1967 por suas rela-
ção Haymaker, lançada pelo Exército diversas tecnologias já mudou profun- cubano de nascimento e caminhonei- ções com a máfia e perdoado por Richard Nixon
dos Estados Unidos no nordeste do damente a vida dos trabalhadores do ro independente “desde sempre”. No em 1971.
2 “Autonomous cars: Self-driving the new auto indus-
Afeganistão em 2012: “Observando na asfalto. Nos caminhões modernos, o estacionamento do Iowa 80, o homem try paradigme” [Veículos autônomos: dirigindo so-
TV os drones atacarem o Afeganistão, smartphone substituiu o CB (citizen com 1 milhão de milhas em 24 anos de zinho o novo paradigma da indústria automobilísti-
pensei que, já que era possível guiar band, microfone usado para se comu- condução ajusta suas bandeiras ver- ca], Morgan Stanley Blue Paper, 6 nov. 2013.
Disponível em: <http://orfe.princeton.edu>. Cf.
aeronaves a distância, deveria ser pos- nicar em frequências de rádio reserva- melhas de segurança atrás da carga de também Olivia Solon, “(Self)driving trucks: what’s
sível fazer o mesmo com veículos pe- das às comunicações públicas); as fo- tubos de plástico. Ele vai para Reno, the future for America’s 3,5 million truckers?” [Ca-
sados”. Com os engenheiros e opera- lhas de rota manuscritas deram lugar a Nevada. “Ninguém quer fazer este minhões autônomos: qual é o futuro dos 3,5 mi-
lhões de caminhoneiros dos Estados Unidos?],
dores da Starsky Robotics (em sistemas eletrônicos de controle; os maldito trabalho, e eu entendo os jo- The Guardian, Londres, 17 jun. 2016.
referência à série Starsky e Hutch), ele mapas desapareceram em favor do vens. Nós amamos esta vida, mas é 3 Em 2016, 40 mil pessoas foram mortas nas estra-
se prepara para lançar, até o final de GPS; e os músculos das pernas e dos cheia de sacrifícios. Minha filha está das dos Estados Unidos, 786 delas caminhonei-
ros, de acordo com a National Highway Traffic Sa-
2018, os primeiros testes em tamanho pés foram aliviados pelo cruise control no hospital há três dias com congestão fety Administration, o que faz dessa a profissão
real na Flórida. “No início haverá des- (o nível 1 dos veículos autônomos). “A intestinal; ela está em Miami e eu estou mais perigosa do país.
confiança, mas ela logo se transforma- solidariedade entre os caminhonei- aqui, na estrada. Esta é a minha vida.” 4 No início de 2015, a National Public Radio (NPR)
produziu mapas mostrando as principais profis-
rá em confiança cega. Os seres huma- ros começou a desaparecer com a sões em cada estado [dos Estados Unidos] nos
nos não são muito bons em realizar chegada do Google”, lembra Mike Da- CAFÉ, SOL E MÚSICA COUNTRY últimos cinquenta anos. Duas tendências claras
tarefas repetitivas durante um dia in- vidson, caminhoneiro de Iowa que Atrás dele, o museu do caminhão podem ser notadas: o desaparecimento dos agri-
cultores e o aumento do número de caminhoneiros.
teiro, como dirigir dez horas seguidas tem os dedos e os braços tatuados recebe os visitantes com um modelo “Map: the most common job in every state” [Mapa:
em linha reta. Os computadores são com as palavras “Nadar ou afundar”. original do Big Brute, veículo da Ge- o trabalho mais comum em cada estado], 5 fev.
muito melhores nisso.” Ele acha que “Quando eu comecei, tínhamos de neral Motors de 1927. No fundo do 2015. Disponível em: <www.npr.org>.
5 Os transportadores portuários ocupam a base
terá mais sucesso que o Exército no usar o CB para perguntar aos outros edifício, um vídeo passa em looping dessa pirâmide, com menos de US$ 30 mil anuais.
Afeganistão: “Os caminhoneiros de motoristas como estava o trânsito, um filme de propaganda. Liberdade, Mas em alguns nichos, como no transporte de mu-
quem você fala, que continuam pen- esse tipo de coisa. Éramos forçados a orgulho, autonomia: a imagem do ca- danças de famílias abastadas, o salário anual pode
chegar a US$ 250 mil.
sando que seu trabalho nunca será au- falar uns com os outros. Agora, dize- minhoneiro, a caneca de café na mão 6 Rich Cohen, “The end of the big-rig dream” [O fim
tomatizado, me fazem pensar nos tra- mos ‘Ok, Google’ e pronto.” enquanto o sol nasce nas suntuosas do grande sonho da estrada], The Wall Street
balhadores da colheita de látex no Com novecentas vagas de estacio- montanhas do Oeste. Com fundo de Journal, Nova York, 9 fev. 2018.
7 Ler Rick Fantasia, “Spectaculaire victoire des ca-
Brasil dos anos 1980, que estavam con- namento, um museu e um supermer- música country, a mensagem, carre- mionneurs américains” [Espetacular vitória dos
vencidos de que nenhuma máquina cado dedicado aos caminhoneiros, o gada por trabalhadores de todas as caminhoneiros nos Estados Unidos], Le Monde
poderia substituí-los”. Iowa 80, conhecido como “a maior pa- origens, é inspiradora: “Temos orgu- Diplomatique, out. 1997.
8 Em meados de março de 2018, um Volvo semiau-
Em 15 de maio foi realizada em Las rada de caminhões do mundo”, é uma lho de ser caminhoneiros dos Esta- tônomo da Uber, dirigido por um funcionário da
Vegas – cidade parcialmente construí- espécie de lar doce lar para os motoris- dos Unidos”. empresa em modo automático, matou a pedestre
da graças ao desvio de fundos de pen- tas. Os visitantes são recebidos por um Um mural retoma as principais da- Elaine Herzberg, de 49 anos, em Tempe, no Arizo-
na. Após o acidente, a Uber anunciou a suspensão
são dos Teamsters por Jimmy Hoffa – caminhão em um pivô mecânico que tas da história dos rebocadores. Ela co- temporária de seus programas de testes de carros
uma mesa-redonda com líderes brilha com a inscrição: “If you bought meça em 1750, com os veículos puxa- autônomos em Pittsburgh, San Francisco, Toronto
sindicais da IBT sobre os caminhões it, a truck brought it” (“Se você com- dos a cavalo, continuando com o e Phoenix.
9 Com sede nos estados do sul, a Nikola Motor
autônomos. Uma reunião a portas fe- prou, um caminhão carregou”). Os ca- primeiro quatro-rodas da Ford, em Company, a TuSimple, a Peloton, a Starsky Roboti-
chadas: o caso é “muito sério”. “Foi minhoneiros podem aliviar as costas 1896, o nascimento do sindicato dos cs e a Embark captaram US$ 310 milhões em fi-
instrutivo, mas precisamos nos reunir com cinesioterapia, cuidar das cáries Teamsters, em 1903, e estendendo-se nanciamento, em meados de 2018, para desenvol-
ver vários sistemas de caminhões sem motorista
novamente”, declarou alguns dias de- no dentista, fazer uma sessão de gi- até a data-chave de 1980. Nesse ano, o (autônomos, em comboio, remotamente controla-
pois Doug Bloch, diretor político do nástica em uma máquina elíptica, co- Motor Carrier Act do presidente Jimmy dos e elétricos).
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 11
iva o carro elétrico!”, proclamou tros não funcionaram como espera- INCENTIVOS FISCAIS E APOIOS À INOVAÇÃO coletivo. Também é necessário equipar
Se os modelos a combustão que existência de análises muito mais sas, os carros elétricos podem trafegar “empolgação”: é o que responde, con-
fariam 100 quilômetros a cada 3 li- sombrias (ver boxe). em pistas reservadas para o transporte tra todas as expectativas, Carlos Tava-
12 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
conta que, após exames médicos, o lo- elétrico e o surgimento dessa tecnolo-
UMA PROFUSÃO DE TRAÇÕES cal foi apelidado de “aldeia do câncer”: gia poderiam aniquilar essa liderança
“Sabemos que respiramos ar tóxico e ocidental e dar a Pequim a oportunida-
A combustão. Veículo no qual a energia gerada pela combustão de um combustí- que não temos muito tempo de vida”. A de de “ter um papel inesperado no se-
vel é convertida em força mecânica. O motor de combustão interna mostrou-se mais purificação de 1 tonelada de metais de tor automotivo”, explica Laurent Hor-
eficiente e fácil de integrar em um veículo individual do que o motor a vapor de Denis terras-raras também requer o uso de vath, geoeconomista da energia.
Papin. O primeiro motor a explosão de Étienne Lenoir (inventado em 1859) funcio- pelo menos 200 metros cúbicos de Nenhum outro país armou uma es-
nava com gás, depois foi adaptado para a gasolina. O motor de ignição por compres-
água.9 Os agricultores e moradores das tratégia tão ambiciosa em eletromobi-
são inventado por Rudolf Diesel em 1893 usa diesel.
áreas de mineração estão, portanto, lidade quanto a China. Em 2015, o pla-
Elétrico (ou 100% elétrico). Veículo movido por um motor elétrico cuja energia é sujeitos a um alto nível de estresse hí- no “Made in China 2025” designou as
fornecida por grandes baterias que podem ser recarregadas conectando-as a uma drico. No Chile, maior produtor de co- baterias de carros elétricos como prio-
rede elétrica, como o modelo Zoé, da Renault. Inspirado na “roda de Barlow” (1822), bre do mundo, o déficit hídrico é tal ridade industrial. Da mesma forma, o
Nikola Tesla solicitou a patente do motor eléctrico assíncrono em 1886. Poderoso, que, até 2026, deve forçar os grupos de país tira vantagem de seu gigantesco
mas de baixa autonomia, esse tipo de motorização permite atingir altas velocidades mineração a utilizar 50% de água do mercado interno, que favorece as eco-
sobre trilhos, mas foi abandonado por quase um século em favor do rodoviário. mar dessalinizada10 – processo extre- nomias de escala e permite que suas
mamente intensivo em energia. Os ca- montadoras ganhem em competitivi-
Híbrido. Carro que combina um motor de combustão (gasolina ou diesel) a um sos de poluição gerados pela extração dade. E, para acelerar esse novo come-
motor elétrico de apoio alimentado por uma bateria que armazena a energia elétrica
e o refino de metais raros podem ser ço, Pequim pode contar com a produ-
produzida enquanto o carro funciona, sobretudo durante a desaceleração. A combi-
observados no Chile, na República De- ção dos metais raros de que precisa.
nação diesel-eletricidade era comum nos veículos sobre trilhos. Sobre rodas, o pri-
meiro modelo individual comercializado combinando os dois motores (gasolina e mocrática do Congo, nos Estados Uni- Isso porque, ao deslocalizar a poluição
elétrico) foi o Prius, da Toyota, em 1997. dos e no Cazaquistão, e revelam um da mineração, o Ocidente também ce-
surpreendente paradoxo: o uso de veí- deu a um rival o monopólio sobre os
Híbrido recarregável. Veículo híbrido cujas baterias também podem ser carregadas culos defendidos por sua limpeza re- materiais estratégicos para a mobili-
na rede elétrica, oferecendo maior autonomia, como o Prius desde 2011. quer a extração de metais sujos – po- dade elétrica: a China produz 94% do
rém longe dos olhos e das câmeras. magnésio, 69% do grafite natural e
Com extensor de autonomia. Sem ser informada sobre a origem 84% do tungstênio consumidos no
Carro elétrico com um pequeno motor de combustão auxiliar que permite recarre- desses recursos, que as indústrias pe- mundo. As proporções chegam a 95%
gar as baterias em caso de ameaça de pane seca. O Chevrolet Volt foi o primeiro nam para reciclar e substituir, a maio- para alguns metais de terras-raras.
desse tipo, comercializado em 2010.
ria dos cidadãos ocidentais simples- A China usa essa posição vendendo
mente não sabe nada sobre isso. A alguns recursos até 20% mais caros
A hidrogênio. Uma célula de combustível hidrogênio-oxigênio funciona de modo
contrário à eletrólise da água. Para produzir a eletricidade necessária ao motor, ela distância das minas é o principal moti- para seus clientes estrangeiros. Acu-
consome apenas o hidrogênio do tanque e o oxigênio do ar. Funcionando em labo- vo. Na década de 1990, regulamenta- sando-a de “prejudicar os produtores
ratório desde 1839 (graças a William Robert Grove), esse tipo de produção de ções ambientais rigorosas forçaram norte-americanos”, em 2016 os Esta-
energia foi, durante muito tempo, difícil de miniaturizar. O Toyota Mirai foi o primeiro empresas de mineração e refinarias dos Unidos apresentaram uma queixa
modelo do tipo no mercado, lançado em 2014. A ele se juntaram modelos da Hon- ocidentais a encerrar ou transferir suas à Organização Mundial do Comércio
da e da Hyundai. atividades de produção de metais de (OMC). Além disso, desde o início dos
terras-raras. Candidata de sempre a es- anos 2000 Pequim tem reduzido as ex-
Pneumático. A descompressão do ar comprimido em um reservatório sob pres- ses trabalhos sujos, a China então em- portações de diversos materiais, como
são passou a ser utilizada como força motriz no final do século XIX, para ferrovias barcou em uma estratégia ambiciosa molibdênio, fluorita, magnésio e fósfo-
e principalmente bondes. Muitas vezes anunciado ou apresentado em carros-con-
de desenvolvimento industrial, ao cus- ro amarelo. Segundo a Comissão Eu-
ceito, o dispositivo ainda não equipa nenhum veículo individual.
to da devastação de seus ecossistemas. ropeia, uma miríade de metais conti-
“O povo chinês sacrificou seu ambien- dos nos veículos elétricos já se tornou
te para abastecer o planeta com metais “crítica”, ou seja, há risco de ruptura
res, no Salão do Automóvel de Frank- até 60 quilos de um mineral menos ra- de terras-raras”, admite Vivian Wu, es- do fornecimento.11
furt, em setembro de 2017. “Toda essa ro, o lítio, na bateria de um único car- pecialista nesse tipo de mineral que Essas manobras colocam as mon-
agitação, esse caos, pode acabar se vol- ro. Outro, o cério, é colocado nos para- trabalha em uma filial chinesa da quí- tadoras ocidentais em um dilema: de-
tando contra nós, pois tomaremos de- -brisas para evitar arranhões. Na mica Solvay. Assim, é necessário desde vem manter suas máquinas em casa,
cisões erradas”, diz. O presidente do cabine, as telas de cristal líquido con- já observar com muita parcimônia os correndo o risco de trabalhar abaixo
Conselho do grupo PSA-Peugeot não têm európio e cério... “carros limpos” e os “veículos zero da capacidade por falta de fornecimen-
quer que “em trinta anos todos descu- A extração e o refino desses mate- emissão” tão louvados pelas montado- to de suprimentos? Ou devem desloca-
bram que isso não era tão bom como riais são processos altamente poluen- ras. Embora um carro elétrico não lizar a produção para a China, onde
parecia”. Ele cita os problemas relacio- tes. Essa realidade salta aos olhos na emita carbono quando está andando, podem contar com acesso ilimitado às
nados à reciclagem de baterias ou à China, país produtor da grande maio- seu impacto ambiental foi deslocado a matérias-primas? A mão de obra bara-
“gestão das matérias-primas raras”.8 ria desses recursos. Maior área do montante de sua entrada em funciona- ta vinda do interior, o baixo custo do
A mudança para a eletromobilida- mundo de extração e refino de metais mento para as regiões onde os mate- capital – proporcionado sobretudo por
de de fato promove uma alteração no de terras-raras, a Região Autônoma da riais que o compõem são extraídos, re- uma política de desvalorização do
consumo de recursos naturais. Hoje Mongólia Interior, a noroeste de Pe- finados e incorporados. O cenário yuan – e o forte potencial do mercado
amplamente dependentes do petró- quim, está devastada por minas a céu lembra Metrópolis, a cidade imagina- chinês já haviam convencido muitas a
leo, nossos modais de transporte po- aberto. Nos arredores das usinas da gi- da pelo cineasta Fritz Lang no filme de dar esse passo. Segundo Dudley Kings-
deriam se tornar cada vez mais depen- gante da mineração Baogang, no oeste mesmo nome (1927), onde as classes north, professor da Universidade Cur-
dentes de trinta metais raros. Gálio, da região, um enorme reservatório ar- trabalhadoras respiram fumaça tóxica tin, na Austrália, “o acesso aos metais
tântalo, cobalto, platinoides, tungstê- tificial, o Weikuang Dam, transborda para produzir a riqueza de classes bur- de terras-raras foi um motivo a mais
nio, metais de terras-raras: uma mina de maneira intermitente no Rio Ama- guesas mimadas e indolentes. para deslocalizar as fábricas”.
contém apenas ínfimas quantidades relo (Huang He), após receber os Desde 1994, os grupos estrangeiros
desses metais dotados de fabulosas efluentes tóxicos das fábricas de pro- EUA APRESENTAM QUEIXAS NA OMC que foram para a China foram obriga-
propriedades eletrônicas, ópticas e cessamento de minério. A mudança para a eletromobilida- dos a formar joint ventures de cujas
magnéticas. Sem eles, quase todos os Em Dalahai, uma aglomeração de de também poderia ter péssimas con- ações não podem deter mais que 50%.
veículos elétricos comercializados fi- tijolos e telhas adjacentes ao reserva- sequências industriais. “Por um sécu- Essa estrutura jurídica permitiu que
cariam parados. Há até 3,5 quilos de tório, os mil habitantes que ainda não lo, os chineses correram atrás do motor suas concorrentes chinesas aceleras-
metais de terras-raras – um grupo de foram embora respiram, bebem e co- de combustão interna, [nos] pagando sem as transferências de tecnologias
quinze minerais variados – nos ele- mem rejeitos tóxicos das usinas de re- royalties”, lembrou Tavares em Frank- ocidentais e recuperassem o atraso. O
troímãs; de 10 a 20 quilos de cobalto e fino ao redor. Li Xinxia, de 54 anos, furt. Mas nosso entusiasmo pelo carro país obteve, em três décadas, a indus-
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 13
Do universo pesquisado, 24% delas nacionais ou supranacionais para se ou perfis em redes sociais. Apenas 29% ternet de boa parte da população brasi-
ainda não usam computador em suas manter. Para a área de comunicação, ocupam os dois espaços concomitante- leira), na mídia tradicional e nas ruas. A
atividades cotidianas, um cenário típi- essas convocatórias são escassas. A mente. Os recursos humanos, para além incitação à polarização e aos discursos
co, em especial, das pequenas organi- força de trabalho, além da considerá- dos recursos técnicos, são fatores rele- de ódio tem sido ferramenta de afasta-
zações, que contam predominante- vel rotatividade de pessoal (devido à vantes nesse cenário. Apenas 19% das mento dos cidadãos da política e de
mente com mão de obra voluntária escassez de recursos), aparentou ser instituições entrevistadas possuíam aprofundamento do neoliberalismo no
para o desenvolvimento de seus traba- pouco habilitada ao uso das tecnolo- área vinculada à tecnologia e 18% ti- Estado e na cultura política.
lhos. Mais especificamente, entre estas gias de informação e comunicação. nham um setor de comunicação. Os seg- Falar de incidência política na atua-
que não contam com pessoas remune- Esse último fator é importante mentos que diferem dessa realidade são lidade é abordar as ruas e as redes vir-
radas, somente 29% possuíam compu- para refletir de forma mais complexa as instituições patronais, profissionais e tuais como espaços de disputa. Uma
tadores institucionais. Parte conside- sobre o cenário. A Rede de Informa- sindicais. Foi verificado que apenas 35% vez que essa sociedade em rede tem em
rável dos equipamentos utilizados, ção Tecnológica Latino-Americana desse grupo conta com áreas de comuni- sua centralidade processos de comuni-
sobretudo nas instituições de menor (Ritla) desenvolveu um Índice de De- cação institucional consolidadas. cação, não tomá-los como arenas de
porte e/ou comunitárias, é dos pró- sigualdades Digitais, composto de As barreiras que impedem as organi- ação diminui o alcance e a força dos
prios trabalhadores ou voluntários. três dimensões que reforçam o desa- zações entrevistadas pelo CGI.br de ex- movimentos. Em tempos de ódio às vo-
Antes de continuar, vale destacar fio de pensar a inclusão digital como plorar todas as potencialidades comuni- zes que se levantam em prol da demo-
que, das 37.499 organizações sem fins algo que transcende a mera oferta cativas, de articulação e, inclusive, de cracia e da ruptura com os sistemas de
lucrativos buscadas pelos pesquisado- das estruturas técnicas de acesso à sustentabilidade institucional ofertadas segregação social, a resistência ao si-
res, a taxa de resposta foi de apenas internet. A primeira dimensão cor- pela internet são, guardadas as devidas lenciamento imposto pelas estruturas
11% – uma amostra válida e importan- responde às desigualdades de infoú- proporções, sentidas pelos cidadãos co- de poder hegemônicas, o qual repre-
te, mas que pode ter revelado apenas a so, refletindo diferenças estruturais muns. Essa ressalva é útil pelo contexto senta a morte simbólica desses seg-
ponta do iceberg das dificuldades téc- (disponibilidade de computadores, das novas militâncias, as quais se orga- mentos, passa pela capacidade (e pos-
nicas e estruturais dos processos co- tipo de conexão etc.) regionais que nizam por meio da união de indivíduos sibilidade) de produção discursiva e
municativos nessas instituições. demarcam condições de acesso desi- que se autorrepresentam quando se re- vocalização das lutas por seus sujeitos.
O acesso à internet está presente em guais; a segunda, às desigualdades conhecem em uma causa, sem a media- Como o campo da comunicação foi
71% das entidades ouvidas, sendo a socioeconômicas, particularmente ção de instituições. Só pelas clivagens expandido com o advento da rede
maior parte na modalidade de cabo e fi- associadas à renda e à raça/cor dos de classe, as quais se ressaltam na distri- mundial de computadores, é impres-
bra ótica (59%), seguido de conexão por indivíduos; e, por fim, às estratégias buição dos domicílios conectados no cindível incorporá-lo na cotidianidade
linha telefônica – DSL (55%), modem 3G de superação, um conjunto de medi- Brasil, já temos uma dimensão do desa- dos movimentos sociais, sem que isso
ou 4G (32%) e conexão via rádio (14%). das para democratizar e/ou superar fio para o uso concertado e estratégico signifique abandonar a disputa pelo
Os principais motivos para a não utili- as desigualdades de acesso à internet das novas mídias para assegurar o direi- terreno das mídias tradicionais, boa
zação da internet citados pelas organi- existentes. É oportuno destacar ain- to à comunicação e realizar uma inci- parte delas concessões públicas e com
zações foram a falta de estrutura de da que, dado nosso cenário cultural, dência política na internet. Em 2016, se- larga penetração na sociedade. Para as
acesso (46%) e o alto custo da conexão outro fator de desigualdade tem a ver gundo o CGI.br, 54% dos domicílios esquerdas latino-americanas, em es-
(43%). A falta de estrutura de acesso foi com as relações de gênero. Ainda que brasileiros estavam conectados à inter- pecial do Brasil, está posto um novo
a razão mais citada pelas organizações estejamos conectadas como inter- net, um crescimento de 3% em relação desafio: abarcar em definitivo a comu-
das regiões Norte (76%), Nordeste (65%) nautas, o percentual de presença fe- ao ano anterior. Em áreas urbanas, ape- nicação como objeto de luta e campo
e Centro-Oeste (64%), reforçando as de- minina cai drasticamente quando nas 23% dos domicílios classificados co- constituidor de outros direitos.
sigualdades regionais nas políticas de visualizamos o sexo dos desenvolve- mo D ou E estavam conectados; já nas
inclusão digital no país, além dos cen- dores de softwares e programadores, classes A e B, 98% e 91%, respectivamen- *Nataly Queiroz é jornalista, professora uni-
tros de interesse do mercado de tecno- por exemplo. te, das casas tinham acesso à rede de versitária e doutora em Comunicação Social
logia da informação. Em relação aos usos que fazem computadores. pela Universidade Federal de Pernambuco.
As dificuldades de captação de re- das TICs disponíveis e da internet es- O jornalista Lee Fang, em reportagem
cursos e de sustentabilidade são ape- pecificamente, foi possível observar publicada no The Intercept (11 ago. 2017),
nas dois dos empecilhos observados que, mesmo diante de um cenário de destaca os investimentos de organiza-
pelos pesquisadores Debora Bobsin e contingências, as instituições sem ções estatais e privadas norte-america- 1 A pesquisa Media Ownership Monitor pode ser
acessada em: <https://brazil.mom-rsf.org/br/>.
Marlei Pozzebon, no relatório do CGI. fins lucrativos têm envidado esforços nas para financiar movimentos de direita 2 A Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Infor-
br, para a adoção das TICs. A maior para estar presentes no espaço vir- na América Latina, os quais lançam ver- mação e Comunicação nas Organizações sem
parte das instituições sem fins lucrati- tual. Os dados demonstram que 67% dadeiras cruzadas persecutórias a figuras Fins Lucrativos Brasileiras, do Comitê Gestor da
Internet no Brasil, pode ser acessada em: <https://
vos brasileiras depende de editais go- das organizações estavam na rede de e ideais associados às esquerdas, nas re- cgi.br/media /docs /publicacoes /2/tic_os-
vernamentais e de instituições inter- computadores por meio de website e/ des sociais (principal porta de acesso à in- fil_2016_livro_eletronico.pdf>.
16 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
O mito do transumanismo
O medo do fim do mundo assombra a história da humanidade. Desde o início do século XXI, o espectro de uma tecnologia fora
de controle, ultrapassando e depois arrasando nossa espécie, persegue os especialistas. A inteligência artificial e as próteses
digitais prometeriam ao Homo sapiens um destino de Frankenstein. Mas quem difunde essa narrativa e quem ganha com ela?
POR GUILLAUME RENOUARD E CHARLES PERRAGIN*
© Allan Sieber
“O
desenvolvimento indiscrimina- nomista e filósofo Francis Fukuyama victo e pesquisador do Google, não a minuir os “riscos existenciais” ligados
do de uma inteligência artificial vê, nessas teses, o maior perigo da histó- veem como uma catástrofe, mas como ao desenvolvimento de tecnologias,
poderia indicar o fim da huma- ria da humanidade.4 um acontecimento desejável. Embora criado principalmente por Jaan Tal-
nidade.” Por ocasião da morte A hipótese segundo a qual a máqui- esse “tecnotimismo” continue minori- linn, cofundador do Skype, recebeu
de Stephen Hawking, em março de na poderia logo ultrapassar o homem tário, cada um desses analistas concor- uma generosa doação de US$ 10 mi-
2018, essa famosa citação do astrofí- tem um nome. Trata-se da “singulari- da com uma questão: o avanço indiscu- lhões feita por Musk. A Singularity
sico ecoou na imprensa e nas redes dade”, um termo utilizado pela primei- tível e exponencial do progresso técnico University, que visa educar e responsa-
sociais. Durante muito tempo relega- ra vez no ensaio The Coming Technolo- torna a singularidade inevitável. Em bilizar os atores da indústria 4.0 diante
do aos registros da ficção científica, o gical Singularity (“A iminente vez de tentar impedi-la, seria impor- dos “grandes desafios da humanida-
medo da inteligência artificial está singularidade tecnológica”), publicado tante preparar a humanidade para seu de”, foi criada graças aos fundos de pa-
enraizado há alguns anos no debate pelo autor norte-americano de ficção surgimento, de modo a limitar suas trocinadores-engenheiros-ensaístas,
público, associado tanto à automati- científica Vernor Vinge em 1993.5 Ele consequências negativas. como Kurzweil e Peter Diamandis, es-
zação maciça das ocupações e ao de- designa uma data incerta na qual a in- pecialista em turismo espacial e explo-
semprego em massa quanto à pers- teligência artificial ultrapassará a nos- “EROTIZAÇÃO ANSIOSA DO PROGRESSO” ração de recursos de mineração de as-
pectiva não menos aterrorizante dos sa, inaugurando então uma nova era Um paradoxo, contudo, salta aos teroides. Já a parceria para que a
robôs assassinos.1 impossível de ser concebida por nosso olhos: apocalípticos ou preventivos, inteligência artificial beneficie as pes-
Do filósofo e pesquisador Nick Bos- cérebro humano. O próprio Vinge teve esses cenários vêm dos próprios pes- soas e a sociedade (Partnership on AI
trom2 a Elon Musk, fundador das em- seus precursores e inspiradores, desde quisadores e industriais engajados no to Benefit People and Society), lançada
presas Tesla e SpaceX, diversas perso- as reflexões do matemático Stanislaw desenvolvimento do que eles se mobi- com grande pompa em setembro de
nalidades multiplicam, assim, os alertas Ulam sobre a aceleração exponencial lizam contra. Irrigados pelo dinheiro 2016 para promover “ações eficazes”,
sobre o risco existencial que as máqui- do progresso até os escritos de Isaac do Vale do Silício, as organizações e os conta entre seus fundadores com Goo-
nas “superinteligentes” e potencial- Asimov (The Last Question [“A última comitês de ética supõem nos premunir gle, Apple, Facebook, Amazon, Micro-
mente incontroláveis fariam recair na questão”], 1956) e de Philip K. Dick (A contra a sublevação das máquinas, soft e IBM. A lista é longa, mas todas
humanidade. Para o dono da Tesla, seu máquina de governar, 1960; A formiga editando normas e regras que se multi- essas empresas compartilham do credo
perigo seria até maior que o da bomba elétrica, 1970), passando pelas hipóte- plicam. Promotora de uma inteligência de Diamandis: “Um dia, os dirigentes
atômica. A esse medo, acrescenta-se o ses do estatístico Irving John Good so- artificial generosa, a associação Ope- políticos vão despertar, mas será tarde
do transumanismo, uma ideologia que bre as máquinas ultrainteligentes. nAI, por exemplo, foi fundada em 2015 demais. É preciso ultrapassá-los. Acre-
surgiu em 1980 no Vale do Silício e pro- Elevada a problema-chave pelas in- por donos de empresas como Musk, dito muito mais no poder dos empreen-
move a melhora física e intelectual dos dústrias do Vale do Silício e seus inte- Sam Altman, dirigente da poderosa dedores do que no dos políticos ou mes-
seres humanos por meio das novas tec- lectuais orgânicos, a singularidade se aceleradora Y Combinator, e Peter mo no da política propriamente dita”.6
nologias e da inteligência artificial, com transformou durante os anos 2000 em Thiel, cofundador da PayPal. O Future Em seu livro Le Mythe de la singula-
a perspectiva de uma fusão entre o hu- escola de pensamento. Alguns, como of Life Institute (“Instituto para o Futu- rité (“O mito da singularidade”), o es-
mano e a máquina.3 Desde 2002, o eco- Raymond Kurzweil, transumanista con- ro da Humanidade”), que procura di- pecialista em informática e filósofo
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 17
Jean-Gabriel Ganascia resume essa si- mente na leitura do New York Times constituem os institutos de especialis- Nos Estados Unidos, a ideologia
tuação de forma mordaz: “Nós nos en- ou do Wall Street Journal”, avalia por tas, que teriam o poder de decisão. Pa- transumanista ressoa com alguns mo-
contramos, portanto, diante dos ‘bom- sua vez Zachary Chase Lipton, pes- radoxalmente, observa Panese, “a re- vimentos religiosos do protestantismo
beiros piromaníacos’ que, ao mesmo quisador na área de aprendizado de flexão ética tem um efeito tóxico de norte-americano, “em particular com
tempo que provocam voluntariamente máquina da Universidade Carnegie despolitização das disputas. Google, o chamado Quarto Grande Despertar,
um incêndio, parecem dispostos a ten- Mellon que se esforça, em seu blog Amazon, Facebook, Apple, Microsoft que nos anos 1960 fazia do êxito cor-
tar apagá-lo para se beneficiarem da Approximately Correct, para descons- têm um interesse assumido em cir- poral – um corpo são, forte e longevo –
situação”.7 A filantropia autoproclama- truir os fantasmas em torno da inteli- cunscrever o debate ao registro dos va- um sinal da escolha divina”, comenta
da dessas empresas, de fato, não tem a gência artificial. lores, sem deixar espaço para as refle- Damour. Assim, ao contrário dos mo-
ver com sua conduta em matéria fiscal Para Gabriel Dorthe, filósofo inte- xões sobre as consequências imediatas vimentos dos cientistas do século XIX,
e de direito trabalhista. Por que, desde grado pela necessidade de suas pesqui- das tecnologias sobre as desigualdades que tinham uma dimensão coletiva,
então, financiam estruturas que, por sas à Associação Francesa Transuma- sociais ou sobre a emergência de novos como o sansimonismo, no transuma-
intermédio de pesquisadores e filóso- nista, “essas criações antecipadas de espaços de poder”. nismo não se trata mais de salvar a so-
fos, ventilam funestas previsões sobre acontecimentos monstruosos ocultam Além desse deslizamento do políti- ciedade, mas o indivíduo. “Salta-se do
as consequências das tecnologias que ou banalizam certo número de aplica- co para a ética, o discurso da singulari- indivíduo para um discurso sobre a es-
elas desenvolvem? ções concretas da inteligência artifi- dade implica um segundo desloca- pécie humana em geral, sem passar
Independentemente de Musk ou cial” – especialmente os algoritmos de mento: o da racionalidade científica pelo intermediário social”, analisa o
Mark Zuckerberg, fundador do Face- ajuda à tomada de decisão, concebidos para o registro do mito. A técnica não historiador. “A saúde passa inicial-
book, se sentirem ou não sinceramen- para racionalizar as escolhas humanas se tornaria aqui o suporte de uma teo- mente pelo corpo. Não são mais os Es-
te investidos da missão de reconduzir e atualmente utilizados pela polícia, ria preditiva baseada em observações tados que desempenham um papel
e atualizar o ideal de progresso do Ilu- pela justiça, pelas seguradoras e pelos (como a meteorologia), mas de uma decisivo na organização do mundo,
minismo, eles continuam homens de departamentos de recursos humanos grande narrativa trágica da vida hu- mas os indivíduos, por meio das estru-
negócios. Seu êxito está ligado a um nos Estados Unidos. Longe dos radares mana. “O transumanismo é um siste- turas empresariais. Talvez o liberalis-
modelo apresentado há duas décadas: midiáticos, o matemático Cathy O’Neil ma de crenças que tem mais a ver com mo jamais tenha tido uma ambição
divulgar um problema para o qual eles coloca em evidência, em seu livro Wea- a religião do que com a ciência”, afirma tão forte.” E seus adversários se encon-
se preparam para comercializar a so- pons of Math Destruction (“Armas de Richard Jones, professor de Física da tram muito mais desmunidos porque
lução. Alongar a duração da vida e am- destruição matemática”)8 as conse- Universidade de Sheffield e autor de um lhes foi confiscado um poderoso pro-
pliar as capacidades mentais ou cor- quências do uso desses algoritmos nas texto intitulado Against Transhumanism pulsor: a ideia de progresso.
porais representam um mercado populações mais vulneráveis: 9 esse ti- (“Contra o transumanismo”).11 “Ele
promissor, que poderá ultrapassar po de programa categoriza, por exem- apela para os mitos fundadores da hu- *Guillaume Renouard e Charles Perragin
US$ 1 bilhão antes de 2020. É também plo, como potencialmente perigosos manidade, ao reutilizar seus elemen- são jornalistas do Collectif Singulier.
uma boa publicidade, que coloca a in- indivíduos que não cometeram outro tos-chave: a ideia de que poderíamos al-
dústria 4.0 no centro do futuro huma- crime a não ser viver em um bairro po- cançar a abundância e até mesmo a
no... e da atenção dos investidores. bre. Um assunto sério, mas sem dúvida imortalidade graças à intervenção de
Francesco Panese, professor de Estu- menos atraente do que o fim da espécie uma inteligência superior, capaz de 1 Édouard Pflimlin, “Les Nation unies contre Termi-
dos Sociais da Medicina e de Ciências humana... causar nossa felicidade ou nossa infeli- nator” [As Nações Unidas contra o Exterminador],
na Universidade de Lausanne, vê “Somos todos cúmplices disso, in- cidade... De maneira mais surpreen- Le Monde Diplomatique, mar. 2017.
2 Nick Bostrom, Superintelligence: Paths, Dangers,
emergir há alguns anos uma “econo- clusive pesquisadores. O transuma- dente, o transumanismo lembra tam- Strategies [Superinteligência: caminhos, perigos,
mia da promessa”, utópica ou distópi- nismo permite aos que trabalham bém o cosmismo russo, movimento estratégias], Oxford University Press, 2014.
ca. “A emergência das start-ups na es- com pesquisa publicar livros e arti- filosófico do início de século XX e, par- 3 Philippe Rivière, “Nous serons tous immortels... en
2100” [Seremos todos imortais... em 2100], Le
fera da tecnologia se baseia no gos sobre a humanidade em perigo, ticularmente, o pensador ortodoxo Ni- Monde Diplomatique, dez. 2009.
investimento de capital de risco que obter cargos etc.”, afirma Dorthe. Em kolai Fiodorov. Segundo Fiodorov, a 4 Francis Fukyyama, Our Posthuman Future: Con-
desbloqueia fundos em função de pro- 2014, mais de oitocentas pessoas, en- ciência permitiria a realização das pro- sequences of the Biotechnology Revolution [Nos-
so futuro pós-humano: consequências da revolu-
messas de grandes transformações do tre as quais uma boa parte de pesqui- messas da Bíblia aqui na Terra. Ele es- ção da biotecnologia], Picador-Farrar, Straus and
mundo”, explica. Diante de uma lacu- sadores e no mínimo trezentos neu- tava convencido de que a tecnologia Giroux, Nova York, 2002.
na entre os técnicos especialistas que robiólogos, assinaram uma carta acabaria nos tornando imortais.” 5 Vernor Vinge, “The coming technological singularity:
How to survive in the post-human era” [A iminente
inovam e os capitalistas não iniciados, aberta contra o Human Brain Project singularidade tecnológica: como sobreviver na era
o que o sociólogo chama de “erotiza- (“Projeto Cérebro Humano”), um PROMESSA DE SAÚDE pós-humana], Departamento de Ciências Matemáti-
ção ansiosa do progresso” seria uma projeto de pesquisa de 1,2 bilhão de A narrativa da singularidade fun- cas, Universidade do Estado de San Diego, 1993.
6 Fabien Benoit, “À Palo Alto, au royaume des ra-
forma de “seduzir o não iniciado”. euros (dos quais 500 milhões prove- ciona melhor ainda porque ecoa mi- dieux” [Em Palo Alto, no reinado dos iluminados],
Não iniciado, mas não idiota. Essas nientes de fundos europeus) visando tos. “Trata-se de um discurso de tipo Libération, Paris, 9 jan. 2017.
“tecnopromessas” são sistematica- recriar, até 2024, um cérebro humano apocalíptico muito antigo que remon- 7 Jean-Gabriel Ganascia, Le Mythe de la singularité.
Faut-il craindre l’intelligence artificielle? [O mito da
mente acompanhadas de um discurso graças a um supercomputador. Como ta, no Ocidente, ao joaquimismo do singularidade. Será que é preciso temer a inteligên-
pragmático, menos midiático. Embo- muitos, Richard Hahnloser, professor século XII”, explica Franck Damour, cia artificial?], Seuil, Paris, 2017. Jérôme Lamy, “In-
ra, na realidade, os investidores não de Neurociências da Universidade de historiador e pesquisador da Universi- telligence artificielle ou collective?” [Inteligência
artificial ou coletiva?], Le Monde Diplomatique, jun.
esperem passar pelo processo de crio- Zurich, condenou, na época das “pro- dade Católica de Lille. A decolagem 2018.
genização para viajar no espaço ou messas sem conteúdo real”,10 a ausência das novas tecnologias promete saúde 8 Cathy O’Neil, Weapons of Math Destruction: How
voltar a viver após a morte, eles sabem de cientistas nas instâncias dirigentes e que varia conforme as determinações Big Data Increases Inequality and Threatens De-
mocracy [Armas de destruição matemática: como
que essas pesquisas levarão a melho- o peso dos industriais, atraídos mais culturais. Na concepção cíclica da his- o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a
rar os procedimentos de conservação, pela perspectiva de computadores com tória própria ao hinduísmo, a chegada democracia], Crown, Nova York, 2016.
o que interessará, por exemplo, aos maior desempenho graças à informáti- da inteligência artificial não prefigura, 9 Frank Pasquale, “Mettre fin au trafic des données
personnelles” [Acabar com o tráfico de dados pes-
grandes supermercados. Prometer a ca neuromórfica do que pela compreen- como no pensamento ocidental, um soais], Le Monde Diplomatique, maio 2018.
vida eterna para melhor congelar filés são de nossa massa cinzenta. acontecimento único, uma guinada ir- 10 Lise Loumé, “Human Brain Project: faut-il continuer
de bacalhau? “Inúmeros pesquisado- A promoção de uma pós-humani- reversível para uma era singular e fun- ce projet à 1,2 milliard d’euros? [Projeto Cérebro
Humano: será que é preciso continuar esse projeto
res e empreendedores que se mos- dade tecnológica tem também como damentalmente diferente, como no de 1,2 bilhão de euros?], Sciences et Avenir, Paris,
tram muito prudentes em um con- consequência contornar a política. Tu- pensamento do Apocalipse. Trata-se, 9 jul. 2014.
texto acadêmico tendem a dar do se passa como se a inteligência arti- sobretudo, de uma volta, de uma res- 11 Richard Jones, “Against Transhumanism” [Contra
o transumanismo], e-book, 15 jan. 2016. Disponí-
declarações sensacionalistas quando ficial pusesse uma questão séria de- tauração de um tempo cosmogônico vel em: <www.softmachines.org>.
falam para a imprensa: um apelo di- mais para ser deixada para os antigo. Assim, os indianos reencontra- 12 Robert Geraci, “A tale of two futures: Techno-es-
reto aos investidores, que têm a maior governantes ou para a deliberação pú- riam logo a idade gloriosa do Satya Yu- chatology in the US and India” [Uma história de
dois futuros: tecnoescatologia nos Estados Unidos
parte dos conhecimentos técnicos li- blica, e que deveria sobretudo ser re- ga, que representa o renascimento da e na Índia], Social Compass, v.63, n.3, Nova York,
mitados e baseados consideravel- servada aos círculos de iniciados que idade de ouro da humanidade.12 set. 2016.
18 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
ESTADOS UNIDOS
cia delas. Elas me garantiram que sim. ação afirmativa colocados em prática
Como uma peça, ela se passa em pelo governo federal, eles têm acesso
vários atos. privilegiado a universidades, estágios,
Você espera pacientemente em emprego, assistência social, refeições
uma longa fila que leva ao topo de uma gratuitas. Mulheres, imigrantes, refu-
colina, como em uma peregrinação. giados, funcionários públicos: onde
Você está no meio, entre pessoas todas isso vai parar? Seu dinheiro escorre
tão brancas como você, todas de igual num coador igualitarista que escapa a
modo cristãs, algumas mais velhas, que, por sua vez, já se esforçavam para seguiram o mesmo destino. A maior seu controle e aprovação. Você gosta-
outras menos, a maioria delas do sexo se dar melhor que os deles. É um so- parte deles nem se incomoda em pro- ria de ter as mesmas oportunidades
masculino, às vezes graduadas, às ve- nho maior que dinheiro e bens mate- curar um emprego decente, porque quando precisou delas – ninguém
zes pouco ou nada qualificadas. riais. Por um salário miserável, você acha que é um tesouro fora do alcance pensou em oferecê-las a você em sua
Do outro lado da colina se situa o suportou trabalho escravo, demis- de pessoas como eles. juventude, então não há razão para fa-
sonho americano, o objetivo da via- sões, exposição a produtos tóxicos. zer com que os jovens de hoje possam
gem de cada um. Bem no final da fila Você aguentou firme na prova de fogo. PACTUAR COM OS FURA-FILAS? desfrutar delas. Isso não é justo.
estão as pessoas de cor – pobres, jo- O sonho americano de prosperidade e Você se acomodou a essa situação E Obama! O que diabos esse cara
vens ou velhas, a maioria sem diploma segurança é apenas a justa recompen- porque não é do seu feitio reclamar. fez para chegar à Casa Branca? O filho
universitário. Olhar para trás lhe cau- sa por seus esforços, uma maneira de No fim das contas, você tem sorte. Vo- mestiço de uma mãe solteira de baixa
sa medo; elas são muitas a seguir você. reconhecer o que você tem sido e o cê gostaria de ajudar mais sua família renda que se tornou presidente do país
Em princípio, você não as quer mal. que você é – uma espécie de medalha e sua igreja, porque é neles que coloca mais poderoso do planeta, isso era al-
Mas você esperou por muito tempo, de honra. sua fé. Você gostaria que eles lhe agra- go que você ainda não tinha visto. Em
trabalhou duro e, à sua frente, a fila Faz cada vez mais calor e a fila con- decessem sua generosidade. Mas a fila que posição o coloca o triunfo de um
mal se move. Você mereceria avançar tinua não avançando. Parece até que continua não avançando. Depois de homem como ele, quando, ao mesmo
um pouco mais rápido. Você aguenta ela está recuando. Você não recebeu tanto trabalho duro, de tantos sacrifí- tempo, lhe explicam que você é muito
pacientemente, mas está muito preo- um aumento por anos e não vai ser cios, você começa a se sentir preso nu- mais privilegiado? Que favores Barack
cupado. Seus pensamentos estão vol- amanhã que terá a chance de alguém ma armadilha. Obama obteve para estudar em uma
tados para aqueles que o precedem, lhe conceder um. Na verdade, seus ga- Você pensa no que o enche de or- universidade tão cara quanto Colum-
em especial para aqueles que já alcan- nhos diminuíram constantemente gulho – a começar por sua moral cris- bia? Onde Michelle Obama encontrou
çaram o topo. nos últimos vinte anos, sobretudo se tã. Você sempre apreciou a probidade, dinheiro suficiente para estudar em
O sonho americano é um sonho de você não tem um diploma universitá- a monogamia, o casamento heterosse- Princeton e depois na Faculdade de
progresso – a esperança de que você rio e ainda mais se não completou o xual. Nem sempre foi fácil. Você mes- Direito de Harvard, quando o pai dela
vai se dar melhor do que seus pais, ensino médio. Todos os seus amigos mo sofreu uma separação, talvez até era apenas um humilde funcionário
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 19
do serviço de água? Nunca se viu nada velmente terroristas, determinados a incluir todos os fraudadores que se Você pode não ter uma casa grande,
assim. Certamente, foi o governo fede- abusar da sua educação na fila e levar acotovelam à sua frente. Você é vaci- mas isso não o impede de se orgulhar
ral que pagou a conta. Michelle deve- uma boa vida com o dinheiro dos seus nado contra a ideia de ter de ser sim- de seu país. Qualquer um que ataque
ria ser grata por tudo que tem, em vez impostos. Você não sofreu inunda- pático. As pessoas nunca param de os Estados Unidos também estará ata-
de ficar o tempo todo furiosa. Ela não ções, derramamentos de óleo e polui- reclamar. O racismo. As discrimina- cando você. E, se você não pode mais
tem direito algum de ficar com raiva. ção química? Há dias em que parece ções. O sexismo. Impuseram a você se orgulhar dos Estados Unidos por
As mulheres: outro grupo que pas- que você mesmo é um refugiado. histórias de negros oprimidos, mu- meio de seu presidente, resta-lhe se
sa impunemente na sua frente. Elas lheres dominadas, imigrantes explo- juntar àqueles que, como você, se sen-
reivindicam o direito de ocupar os rados, homossexuais perseguidos, tem estrangeiros em seu próprio país.
mesmos cargos que os homens. Ainda refugiados desesperados. Em algum
bem que seu pai não precisou se preo- Negros, mulheres, momento, você acha que é hora de fe- A MÁQUINA DE SONHOS ESTÁ SEM SISTEMA
cupar com a concorrência delas para imigrantes, char as fronteiras da simpatia humana Entre as imagens dos negros enrai-
conseguir emprego. E o que dizer dos – especialmente quando isso beneficia zadas no espírito das pessoas que co-
refugiados, pelicanos,
funcionários públicos, recrutados em pessoas que podem prejudicá-lo. Você nheci, uma estava faltando: a de uma
sua maioria entre mulheres e grupos todo mundo suportou mais do que sua parcela de mulher ou de um homem que, como
de minorias? Pelo que você sabe, eles vai passando sofrimento, sem nunca choramingar. eles, apenas esperava a justa recom-
são muito bem pagos para fazer muito na frente embaixo A partir daí, você fica desconfia- pensa por seus esforços. A história pro-
pouco. Veja o caso dessa assistente do seu nariz do. Se todas essas pessoas se permi- funda contada por brancos, cristãos,
executiva do Departamento de Regu- tem disputar espaço com você na fila, idosos ou reacionários da Louisiana
lamentação: sem dúvida, ela desfruta é porque alguém importante as está respondia, no entanto, a um trauma
de horários confortáveis e de um cargo apoiando. Quem? Normalmente, há real. De um lado, o ideal nacional do
garantido para a vida inteira, tendo, Não cabe ao pelicano-pardo zom- um homem que controla a fila, que a sonho americano, isto é, do progresso.
diante de si, a perspectiva de uma bela bar de você batendo suas largas asas percorre de cima a baixo, garantindo De outro, uma dificuldade crescente
aposentadoria. No momento, ela pro- cobertas de óleo. Essa típica ave da que todos permaneçam em seu lugar para progredir.
vavelmente está postada de forma in- Louisiana, o símbolo oficial do estado, e que o acesso ao sonho americano Para a população “inferior”, ou seja,
dolente à frente do computador fazen- aninha-se em mangues ao longo da seja feito em condições equitativas. nove em cada dez americanos, a má-
do compras on-line. O que a torna costa. Há muito tempo ameaçada de Esse homem é Barack Hussein Oba- quina dos sonhos instalada no lado in-
merecedora de favores a que você nun- extinção pela poluição química, ela ma. Sim, mas olha só: em vez de re- visível da colina não funciona mais,
ca terá direito? havia se recuperado a ponto de ser re- preender os espertinhos, ele os saúda desativada pela automação, pelo des-
O mesmo vale para os imigrantes. tirada da lista de espécies ameaçadas amigavelmente, demonstrando-lhes locamento de empresas para outros
Com um visto ou um green card na em 2009 – apenas um ano antes do ter- uma simpatia que ele evidentemente países e pelo poder exorbitante das
mão, filipinos, mexicanos, árabes, in- rível derramamento de óleo causado não sente de forma alguma por você. multinacionais sobre sua força de tra-
dianos ou chineses passam na sua pela British Petroleum (BP). Para so- Ele está do lado deles. Aquele que tem balho. Dentro desse grupo muito gran-
frente, quando não acabam furando a breviver, ela precisa de peixes não con- a responsabilidade de regular o avan- de, a competição entre brancos e não
fila. Bem recentemente, você viu ho- taminados, água livre de óleo, man- ço da fila quer que você pactue com brancos tornou-se cada vez mais acir-
mens parecidos com mexicanos cons- guezais limpos, costas protegidas da os fura-filas. rada – seja pelo emprego, seja por um
truindo o acampamento que vai abri- erosão. É por isso que o pelicano-par- Você se sente traído. Suas defesas lugar na sociedade ou pelos auxílios.
gar encanadores filipinos do grupo do também passa na sua frente na fila. agora estão bem ativadas. Esse presi- O fracasso da máquina dos sonhos
Sasol. Você vê que eles trabalham duro Ainda assim, é apenas um pássaro! dente não sabe nada do imenso orgu- remonta a 1950. As pessoas nascidas an-
e respeita isso, mas não os perdoa por Negros, mulheres, imigrantes, refu- lho de ser americano. Ser americano tes dessa data viram suas rendas crescer
expulsarem a força de trabalho ameri- giados, pelicanos, todo mundo vai pas- é uma honra que você mais do que à medida que envelheciam. Para aque-
cana aceitando baixos salários. sando na frente embaixo do seu nariz. nunca tem de defender, dada a lenti- las nascidas depois, é o contrário.
Os refugiados? Quatro milhões de Mas são pessoas como você que fize- dão da fila do sonho americano e a
sírios fugiram da guerra e do caos, ram a grandeza da América. É preciso insolência dos comentários feitos so- *Arlie Hochschild é socióloga da Universi-
parte deles em direção à costa grega. O reconhecer: os fura-filas irritam você. bre brancos, homens e cristãos. Hoje, dade da Califórnia em Berkeley. Autora de
presidente Obama decidiu acolher 10 Eles desrespeitam as regras do jogo. Vo- basta ser ameríndio, mulher ou gay Strangers in Their Own Land: Anger and
mil em território americano [dos quais cê não os carrega no coração e não vê para atrair a simpatia da opinião pú- Mourning of the American Right [Estranhos
dois terços são mulheres e crianças]. por que deveria se desculpar por isso. blica. Esses movimentos sociais dei- em sua própria terra: raiva e luto da direita
Todo mundo sabe que nove entre dez Você não é desprovido de compai- xaram apenas um grupo para trás de- norte-americana], The New Press, Nova
refugiados são homens jovens, possi- xão. Mas sua compaixão não poderia les: o seu. York, 2016, de onde este texto foi adaptado.
PROMESSA
C H A R LOT T E
GAINSBOURG AO PIERRE
NINEY
AMANHECER
JU
OT
UM FILME DE
ERIC BARBIER
Suco detox e
cardio training,
o novo espírito
© Daniel Kondo
da burguesia
Competição ou solidariedade, culto do resultado ou do
esforço, reino do individualismo ou aprendizagem do
espírito de equipe? As forças políticas há tempos disputam
os valores associados ao exercício físico. A ascensão das
academias de luxo sugere uma retomada do entusiasmo
burguês pelo corpo. As performances e a boa saúde
justificariam o status social
POR LAURA RAIM*
quilíbrio do corpo e da mente”: “educadas”, que “não se metem de- Arthur Benzaquen não esconde: “Não to lucrativo: nos Estados Unidos, mem-
sado por um boom nas grandes cida- forma onde pontifica o treinador-DJ, greza, mostrando que elas poderiam esportes existentes – transformando a
des: “Quando abrimos a Usine Opéra, munido de seu MacBook e de um ser sexy e musculosas. caminhada em step e o ciclismo em
em 2004, havia vinte academias em Pa- headset para guiar as pedaladas, fle- O fenômeno atravessou o Atlânti- spinning –, os exercícios concebidos
ris. Hoje são trezentas”, revela Rizzo. xões e levantamentos de peso, mas co na década de 1980 graças ao pro- para manter a forma ou perder peso
De acordo com a empresa de auditoria também para transmitir instruções grama de TV Gym Tonic, apresentado passaram a ser considerados modali-
e consultoria Deloitte, em 2016 a Fran- mais espirituais. No estúdio do nono por Véronique e Davina no canal An- dades competitivas: “Agora, fitness vi-
ça tinha 5,46 milhões de praticantes de distrito onde estivemos uma manhã, tenne 2 (futuro France 2), que colocou rou esporte”, dizia em 2012 um slogan
esporte em recinto fechado, ou seja, 5% “John” nos convidava, com rap e músi- em movimento mais de 10 milhões de da Reebok, que acabava de criar cam-
a mais do que em 2015. Crescimento ca eletrônica de fundo, a “amar a espectadoras em frente a seus televi- peonatos mundiais de crossfit.
impulsionado sobretudo pelas marcas criança de 7 anos em nós” e a “nos for- sores todas as manhãs de domingo. Desde os primeiros Gymnase Clubs,
low cost, mas também, em menor me- talecermos fisicamente para nos forta- Isso porque a década iniciada pela o cuidado de si sofisticou-se, captando a
dida, pelo aumento dos estabeleci- lecermos mentalmente”. eleição de François Mitterrand e pelo aura esotérico-espiritual das práticas
mentos de luxo, normalmente em Pa- Se a ideia do corpo como matéria a alinhamento dos socialistas franceses orientais (da ioga ao jiu-jítsu), mas tam-
ris: a Usine prepara-se para abrir um ser aperfeiçoada remonta a Esparta e às lógicas de mercado “foi também a bém adotando, em um registro menos
terceiro espaço em um prédio revitali- desdobra-se no Iluminismo, as pri- década da espetacular convergência zen, os códigos da virilidade militar,
zado da estação Saint-Lazare; os ir- meiras ginásticas foram desenvolvi- entre esporte e dinheiro”,5 analisa o com aulas de boot camp, nome do méto-
mãos Benzaquen, uma quarta casa no das no contexto da racionalização historiador das ideias François Cus- do de condicionamento físico utilizado
Boulevard Raspail. Indicador adicional científica das atividades humanas no set. Convergência que cristalizou a pelo Exército norte-americano. Sob a
da gentrificação do leste de Paris, o século XIX. “Elas estão em grande par- notável passagem do golden boy fran- pressão da concorrência, a oferta de ca-
bairro do Canal Saint-Martin abrigará te subordinadas, para os homens, a cês Bernard Tapie pelo Gym Tonic, em da sala não para de se diversificar, lan-
em setembro a inauguração de um So- fins militares (na França, a vingança 17 de junho de 1984: “Bernard Tapie, çando mão de inovações tecnológicas
cial Sport Club. No programa dessa an- contra a Prússia, no final do século conhecido homem de negócios, que (e linguísticas). Até mesmo uma marca
tiga fábrica de balões de ar quente, en- XIX) e, para as mulheres, higienistas dirige um monte de empresas, com como a Neoness oferece mais de qua-
contramos: “Música, drinques e (preparar o corpo para o parto)”, resu- um visual e uma forma incríveis. Co- renta atividades. Enquanto as acade-
quadríceps”, além de “quinoa, alegria e me o sociólogo do esporte Philippe mo você faz isso?”, perguntavam as mias low cost compram licenças de
[músculos] isquiotibiais”. Liotard. “A popularidade das acade- apresentadoras-ginastas. “Antes de zumba, body pump ou sh’bam para
Paralelamente às academias gene- mias privadas na França é muito mais mais nada, eu sou atlético”, respondia oferecer cursos padronizados, as aca-
ralistas, desenvolvem-se espaços espe- recente, com o esporte, sob todas as o convidado, enxugando a testa. “Isso demias de luxo gabam-se de propor-
cializados. Mais de uma centena de suas formas, tendo sido apoiado por talvez tenha me permitido, aliás, gozar cionar experiências “únicas”, impor-
academias de crossfit surgiu no país. um denso tecido associativo.” Desde a de um estado de espírito que difere um tando com exclusividade técnicas
Segundo seu inventor, o ginasta Greg década de 1950, de fato, a Federação de pouco daquele de meus colegas. Por- patenteadas. Na Klay, a antigravity fit-
Glassman, essa modalidade intensa Ginástica Voluntária, precursora do que no esporte aprendemos que o esta- ness, vinda de Nova York, permite fazer
que combina levantamento de peso, gi- fitness, oferecia cursos baratos, inspi- do de espírito, a mente, a inteligência, ioga aérea pendurada de cabeça para
nástica e corrida prepara “não apenas rados em um método sueco, em mi- nada disso existe fora do corpo. Na ver- baixo com um arnês. Algumas desen-
para o desconhecido, mas para o incog- lhares de seções locais – um legado das dade, tudo é reflexo do estado de saúde volvem suas próprias criações: o
noscível”.3 As academias de white collar políticas de democratização do espor- de seu corpo. É indispensável estar fisi- u’stretch, da Usine, “permite aumentar
boxing (literalmente, “boxe de colari- te colocadas em prática pela Frente camente bem se você quiser estar a temperatura intramuscular e colocar
nho-branco”) são populares entre mui- Popular. Nomeado em 1936 como pri- mentalmente disposto.” em alerta diferentes sistemas de con-
tos executivos e diretores. Do ponto de meiro subsecretário de Estado para a trole do corpo (propriocepção)”, en-
vista do cuidado com a forma, “o boxe organização do lazer e dos esportes, o A SAÚDE É A NOVA RIQUEZA quanto a breath and stretch da Klay
cobre todas as casas: condicionamento socialista Léo Lagrange mandou cons- Hoje, aeróbica com leggings fluo- mistura shiatsu e sofrologia. O poten-
aeróbico, emagrecimento, fortaleci- truir centenas de piscinas e estádios rescentes e sorrisinho forçado pare- cial para cruzamentos parece infinito,
mento muscular”, enumera Cyril Du- públicos para “permitir que as massas cem uma coisa ultrapassada e um tan- e algumas hibridizações soam um tan-
rand, fundador das academias Temple da juventude francesa pudessem en- to embaraçosa. A imagem de uma to improváveis, até mesmo antinômi-
Noble Art, refutando a ideia de que se contrar na prática esportiva a alegria e prática fora de moda reservada aos ad- cas, como a boxing yoga. Reforçando a
trata de fitness: “Somos um verdadeiro a saúde”.4 “Uma concorrência desleal miradores de Jane Fonda ou aos fãs do individualização da prática, o personal
clube de boxe”, diz o orgulhoso empre- que criou uma zona sem igual”, pra- fisiculturista Arnold Schwarzenegger trainer ganha terreno. A Usine conta
sário trintão, admirador da “coragem” gueja Rizzo, lamentando a “cultura da puxando ferro está gradualmente de- com uma equipe de quarenta treina-
de seus membros, que ousam “sair da gratuidade” na França, onde grassaria saparecendo. “Os excessos caricatu- dores para aulas particulares vendidas
zona de conforto” e subir ao ringue. o infeliz hábito de “ver o esporte como rais do entusiasmo dos primórdios”, em média a 60 euros por hora.
Rompendo com a imagem hippie um direito”. suspira Rizzo com ternura. Mas as coi- Além da inventividade de modali-
do passado, os estúdios de yoga design No início dos anos 1980, Rizzo e Joly sas mudaram ou foram refinadas? Co- dades, que já viu passarem muitas mo-
vicejam. Eles oferecem mais de cin- fundaram os primeiros Gymnase Clubs mo a Usine, a Klay comemora atrair das efêmeras, a mudança mais impor-
quenta métodos, que vão das tradicio- (depois chamados de Club Med Gym e, muitos atores, criadores e artistas, co- tante, segundo Joly, relaciona-se ao
nais hatha yoga e ashtanga yoga até as em seguida, de CMG), oferecendo apa- mo Thomas Lélu, artista plástico e fo- objetivo buscado: “Nos anos 1980,
versões mais originais – e muitas vezes relhos de musculação e cardio training tógrafo que expôs no Palais de Tokyo; nosso motor era principalmente a es-
patenteadas –, como a bikram yoga, (principalmente para os homens) e au- na academia também podemos encon- tética: grandes bíceps para os homens,
praticada em salas aquecidas a 40 °C, a las de aeróbica (principalmente para as trar algumas de suas obras. Mas o esta- barriga lisa para as mulheres. Hoje,
strala yoga, desenvolvida por uma mo- mulheres). “Foi o movimento da aeróbi- belecimento vive principalmente da transformamos o esporte em saúde,
delo nova-iorquina, ou ainda a warrior ca que inaugurou a fase de mercantili- assinatura de executivos e banqueiros, com uma abordagem holística”. Rizzo
yoga, inventada por uma ex-bailarina zação da boa forma. Não apenas a práti- em busca, como Tapie, de um corpo nos mostra a “máquina de 29 mil eu-
do cabaré parisiense Crazy Horse. ca esportiva foi transferida para as capaz de acompanhar sua “mente”. ros” que analisa a composição (massa
Em três anos, o spinning imersivo academias privadas, como também “Por muito tempo, os locais dedica- hídrica, massa gorda, massa magra)
conseguiu reciclar a boa e velha bici- passou a ser necessário ter a roupa dos ao fitness foram considerados ape- de cada parte do corpo dos novos
cleta ergométrica, transportando-a certa, o sapato certo...”, explica o so- nas lugarzinhos pequeno-burgueses membros, anunciando os cuidados
para um ambiente com som e luz de ciólogo Christian Bonah. Fazendo fa- para mães entediadas ou de prepara- médicos da Usine. Arthur Benzaquen
discoteca. Nos estúdios da rede Dyna- ma nos Estados Unidos, na década de ção física para um ‘verdadeiro esporte’, também lembra a mudança da cliente-
mo, a sessão de 45 minutos se passa 1970, por causa dos vídeos da atriz Ja- ou seja, um esporte competitivo ou ao la da Ken no início dos anos 2000: esta-
em uma área exígua mergulhada na ne Fonda, essa prática desenvolvida ar livre, na natureza”, avalia Joly. “Le- va ficando para trás a época “em que
escuridão, brevemente iluminada pe- por um médico do Exército dos Esta- vamos décadas para que o fitness fosse empresários cinquentões como Paul-
los flashes regulares de um spot. Qua- dos Unidos teve o mérito de libertar as reconhecido como um esporte em si.” -Loup Sulitzer vinham fumar um cha-
renta bicicletas apontam para a plata- mulheres da cultura misógina da ma- De fato, se a sala de fitness absorveu os ruto e comer à beira da piscina, colo-
22 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
cando um pé na água para aliviar a marcas esportivas. Stella McCartney, ciólogo Christopher Lasch na década social e se reconhecer uns aos outros.
consciência. Os novos membros ha- por exemplo, cria há quinze anos pe- de 1970, em La culture du narcissisme,9 Isso exige práticas mais sutis: utilizar
viam perdido dez anos de média de ças para a Adidas. se a política institucional foi repu- sacolas de compras de algodão, beber
idade e queriam realmente cuidar do diada por causa do paternalismo, leite de amêndoa em vez de leite de va-
corpo, da saúde”. TAMBÉM É PRECISO CUIDAR DA ALMA... em seu lugar erigiu-se um “superego ca, praticar kundalini yoga...
“Desde a transição epidemiológica Com a queda no preço das calorias, severo e punitivo”. Esse modo de consumo diz respeito
da década de 1960, já não são as doen- o excesso de peso já não é sinal de opu- No entanto, a obsessão contempo- a uma categoria social que a autora cha-
ças infecciosas que matam, mas as lência, mas de pobreza,6 assim como o rânea por uma vida saudável não pro- ma de aspirational class, literalmente
doenças crônicas, a começar pelo cân- desejo de parecer forte e musculoso tege contra a doença e a morte, como “classe aspiracional”, o que não deixa de
cer e as doenças cardiovasculares”, surge em um momento no qual o tra- vêm lembrar alguns exemplos tragicô- lembrar a “classe profissional” estudada
lembra Bonah. Uma grande parte des- balho nunca foi tão pouco físico, em micos listados no livro de Ehrenreich: nos Estados Unidos pelo jornalista Tho-
sas doenças não transmissíveis poderia decorrência da automação e da tercia- Jerome Rodale, fundador da revista mas Frank. Não se trata do 1% de Wall
ser evitada pela redução dos chamados rização da economia. Já os percursos Prevention e campeão da alimentação Street nem da oligarquia dos iates e ja-
comportamentos “de risco”, como o de treino “inspirados pelas forças es- orgânica, o qual declarou que viveria tos particulares, mas dos 5% ou 10%
consumo de tabaco e de álcool, por peciais britânicas” seduzem executi- até os 100 anos, morreu de ataque car- cujo comportamento “ecológico” os
uma alimentação equilibrada e, claro, vos que terão poucas oportunidades díaco aos 72. Lucille Roberts, a atlética distingue da multidão de empurradores
pela prática de atividade física. Essa é a de ir para o front, forçosamente em dona de uma rede de ginástica para de carrinhos no Walmart.11 Talvez ain-
mensagem que desde 2001 o Programa uma época na qual também a guerra mulheres, que nunca comeu batata da mais do que as do 1%, são as escolhas
Nacional de Nutrição e Saúde (PNNS) foi automatizada. frita nem fumou, sucumbiu a um cân- de investimento dessa classe criativa
vem se esforçando para difundir, com cer de pulmão aos 59 anos de idade. urbana e liberal que “reproduzem a ri-
slogans como “Coma movimento” ou Poderíamos acrescentar o exemplo do queza e a mobilidade social ascendente
“Mexa sua saúde!”. “As pessoas estão fundador da Apple, Steve Jobs, grande em detrimento da classe média”, avalia
entendendo que precisam cuidar de
As academias de promotor do vegetarianismo, da natu- Currid-Halkett.
seu envelope corporal, assim como es- white collar boxing ropatia e da meditação, morto aos 56 Nos Estados Unidos e na França,
tão tomando consciência de que não (literalmente, “boxe anos de câncer pancreático. Nós ten- são esses cidadãos abastados que vão
podemos fazer qualquer coisa com a de colarinho-branco”) demos a esquecer: apenas 60% dos cada vez mais a academias, inclusive
Mãe Natureza”, alegra-se Benzaquen. É cânceres podem ser ligados a agentes as menos caras. Nos Estados Unidos,
difícil ignorar os riscos de uma vida se-
são populares entre cancerígenos. os 20% mais ricos praticam por sema-
dentária, com tantos estudos ansiogê- muitos executivos A manutenção de uma silhueta es- na seis vezes mais exercícios que os
nicos proliferando na imprensa. Em e diretores belta traz alguns benefícios, a come- 20% mais pobres.12 Na França, 87%
um artigo de 13 de junho de 2018 intitu- çar pelo de legitimar uma condição dos proprietários de microempresas
lado “Levanta e anda!”, o jornal Le Mon- corporal que é, em grande parte, um praticam uma atividade física, contra
de alertava mais uma vez seus leitores: privilégio de classe. A superioridade 48% em média para o conjunto da po-
“Ficar sentado mata”. O exercício físico, porém, é apenas social é, portanto, justificada por uma pulação.13 O aumento global da fre-
O padrão estético também evoluiu uma das dimensões dessa injunção superioridade moral: manifesta-se sua quência às academias não conteve a
para integrar a exigência de saúde com para conservar seu “capital-saúde”. capacidade de autodisciplina, auto- prevalência de sobrepeso e obesidade,
a aparência do corpo: “Na década de Você também precisa comer alimen- controle, até de sofrimento, o que pode mais difundidos na parte inferior da
1990, era preciso ser magra por todos tos orgânicos e sem glúten para cuidar ser visto “como um símbolo de esfor- escada social. E a ascensão do fitness
os meios, como [a top model britânica] da nutrição e meditar de maneira ço, atestando o mérito e a superação low cost ou a recente adição de couve
Kate Moss, que tinha uma aparência consciente para cuidar da alma, por de si mesmo”, observa Queval. no cardápio do McDonald’s não inver-
anoréxica. Hoje é preciso ser esbelta, exemplo, em um “bar de meditação”. Uma vez que temos o corpo que terão a tendência.
porém saudável, atlética e musculosa, A forma como Alison Beckner, consul- merecemos, a obesidade torna-se sinal
como Gisele Bündchen”, resume a jor- tora de lifestyle, descreve sua prática de preguiça ou de falta de vontade. Em *Laura Raim é jornalista.
nalista de beleza Valentine Pétry. esportiva reflete essa gestão aguda, outras palavras, não é porque somos
Adepta da healthy selfie – a “selfie sau- quase medicinal, do bem-estar: “Fisi- pobres que estamos acima do peso, é
dável” – no Instagram, a modelo brasi- camente, futebol e tênis. Emocional- porque nos falta força de vontade que 1 “On n’a jamais autant aimé suer qu’à Blanche, le
club de sport le plus sexy de Paris” [Nunca foi tão
leira posta regularmente fotografias mente, equitação. Espiritualmente, somos obesos e pobres: uma visão das agradável suar quanto na Blanche, a academia
de suas proezas no clube de boxe ou no ioga e meditação”.7 coisas perfeita para desacreditar os mais sexy de Paris], Vanity Fair, Paris, 7 jun. 2018.
estúdio de samba, quando não são os Inscrevendo-se no movimento geral princípios da solidariedade. Apesar de 2 Ibidem.
3 Greg Glassman, “Understanding crossfit” [Enten-
paparazzi que se encarregam de sur- de despolitização iniciado na década de o nível social, a profissão e os sistemas dendo o crossfit], 1º abr. 2007. Disponível em:
preendê-la em plena corrida. 1970, essa busca pelo bem-estar indivi- de saúde pública terem um papel de- <crossfit.com>.
Ser saudável e atlético virou ten- dual também se explica pela nova con- terminante na saúde, “a doutrina da 4 Léo Lagrange, discurso transmitido por rádio em
10 de junho de 1936.
dência. “Health is the new wealth” juntura econômica, assim como pelo responsabilidade individual significa 5 François Cusset, La Décennie. Le grand cauche-
(“Saúde é a nova riqueza”) é o credo fantasma do desemprego e da despro- que a pessoa em má forma será objeto mar des années 1980 [A década. O grande pesa-
do momento. “O tênis robusto, quase moção social. Sem esperança de trans- não apenas de repulsa, mas também delo dos anos 1980], La Découverte, Paris, 2006.
6 Ler Benoît Bréville, “Obesidade, mal planetário”, Le
ortopédico, contagia os fashionistas”, formar o mundo ou mesmo de contro- de ressentimento”, diz Ehrenreich. “A Monde Diplomatique Brasil, set. 2012.
constatou a revista feminina Elle (20 lar a vida e a carreira, cada um se objeção recorrente às propostas de ex- 7 “Alison-Paris”. Disponível em: <Insideoutparis.com>.
nov. 2017). O athleisure (contração em contenta em tentar “liberar seu poten- tensão da seguridade social é a seguin- 8 Barbara Ehrenreich, Natural Causes: An Epidemic
of Wellness, the Certainty of Dying, and Killing
inglês de “atlético” e “lazer”) está em cial” para melhorar seu corpo e sua te: ‘Por que eu deveria pagar por esses Ourselves to Live Longer [Causas naturais: uma
seu momento de glória. Leggings, mente. “Eu não posso fazer muito con- degenerados que optam por fumar e epidemia de bem-estar, a certeza da morte e como
tops esportivos, agasalhos de capuz e tra a injustiça no mundo”, ironiza a mi- comer hambúrguer?’.” estamos nos matando para viver mais], Twelve,
Nova York, 2018.
roupas de corrida invadem as ruas e litante socialista Barbara Ehrenreich, A prática regular de atividades físi- 9 Christopher Lasch, La Culture du narcissisme [A
os desfiles de alta-costura. Os tecidos em seu livro Natural Causes, “mas pos- cas tem outra função: a da distinção so- cultura do narcisismo], Flammarion, Paris, 2008 (1.
sintéticos passaram a circular fora so decidir aumentar em 10 quilos o peso cial. Em seu livro The Sum of Small ed.: 1979).
10 Elizabeth Currid-Halkett, The Sum of Small Things:
das aulas de ginástica, até mesmo no em minha máquina de quadríceps”.8 Things,10 Elizabeth Currid-Halkett ana- A Theory of the Aspirational Class [A soma das
trabalho ou à noite. A marca cana- Esse poder, no entanto, tem dois lisa as consequências da relativa demo- pequenas coisas: uma teoria da classe aspiracio-
dense de roupas esportivas Lulule- gumes: “Se a pessoa tem a sensação de cratização dos bens de consumo “visí- nal], Princeton University Press, 2017.
11 Ler Serge Halimi, “A armadilha dos 99%”, Le Mon-
mon foi pioneira desse movimento, ser um escultor do próprio corpo, de veis” nos Estados Unidos. Com a classe de Diplomatique Brasil, ago. 2017.
lançando no início dos anos 2000 a ser responsável por sua saúde, então média tendo acesso, graças ao crédito, a 12 “Spin to separate” [Pedalar por distinção], The
moda das leggings de ioga... a US$ 100 ela também é potencialmente culpada carrões e bolsas de marca, os membros Economist, Londres, 1º ago. 2015.
13 “Sport and physical activity” [Esporte e atividade
cada. Depois, estilistas famosos co- por suas falhas”, observa a filósofa Isa- das classes superiores encontraram ou- física], Special Eurobarometer, n.412, TNS Opi-
meçaram a desenhar coleções para belle Queval. Como diagnosticou o so- tras maneiras de sinalizar sua posição nion & Social, Bruxelas, mar. 2014.
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 23
China e Rússia,
cúmplices,
mas não aliadas
Destinado a normalizar as relações entre
Estados Unidos e Rússia, o encontro de Trump
com Putin no dia 16 de julho aumentou a confusão.
Empurra-se assim Moscou um pouco mais aos
braços de Pequim, apesar do desequilíbrio entre
as duas potências. Rússia e China reforçam suas
conexões, mas defendem seus próprios
interesses, que nem sempre coincidem
POR ISABELLE FACON*
nquanto no Ocidente comenta- sanções ocidentais: a China National Estados Unidos (67%), da Ucrânia chineses superaram assim o principal
mento do projeto da usina de gás natu- da como “inimiga” (vrag) da Rússia por rou um pouco, já que a empreitada só dependentista no Xinjiang.4 Ambos
ral liquefeito Yamal, provocadas pelas 2% dos entrevistados – muito atrás dos se concretizou em 2004. Os russos e os também viram a mão do Ocidente na
24 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
das razões pelas quais Moscou, apesar É claro que Moscou se resignou à neses não obedeceriam a considera- ções para o desenvolvimento de in-
de difíceis arbitragens (respeito à pro- ideia de que o desenvolvimento do Ex- ções geopolíticas ligadas ao “grande fraestruturas que tanta falta fazem na
priedade intelectual e à concorrência tremo Oriente exigia investimentos acordo” sino-russo, e sim a objetivos de Rússia. Mas não é certo que a China ve-
nos mercados globais de armas), deci- estrangeiros. Mas preferiria que fos- racionalidade econômica, a Rússia de- ja a situação dessa maneira: ao mesmo
diu, após 2014, subir a um novo pata- sem de múltiplas fontes e, embora ad- ve admitir que a dinâmica chinesa na tempo que respeita seu parceiro, ela
mar, passando para as vendas de ar- mitindo que, sem mão de obra estran- Ásia Central não é afetada por sua relu- não se sente obrigada a seguir seu rit-
mas (S-400, Su-35). Além disso, a geira, o desenvolvimento regional não tância e suas preocupações (isso tam- mo, seja qual for o assunto. A bola está
China investe muito mais na Rússia do será fácil, ela, também nesse caso, pri- bém é verdade para o Cáucaso e a no campo da Rússia. Isso a levará a
que o contrário.9 vilegia fluxos de entrada diversifica- Ucrânia, incluídos na BRI).16 Na melhor acelerar sua modernização econômica
Desequilíbrios também existem na dos. O sucesso ainda muito relativo das hipóteses, ela conseguiu salvar as e a desenvolver uma abordagem mais
área de fronteira. A situação do Extre- das receitas que ela aplicou alimenta aparências – de maneira bastante su- aberta das relações internacionais?
mo Oriente russo (desindustrializa- seu medo recorrente “de que, ao se perficial no momento – graças ao
ção, despovoamento...) é apreendida abrir em demasiado para o vizinho anúncio conjunto dos presidentes rus- *Isabelle Facon é pesquisadora da Fonda-
pelas autoridades em termos de segu- chinês, o Extremo Oriente fique per- so e chinês, em maio de 2015, segundo tion pour la Recherche Stratégique (FRS),
rança nacional: a possibilidade de per- manentemente congelado no papel de o qual a BRI e a UEE seriam conecta- França.
da de soberania sobre essa parte do simples fornecedor de matérias-pri- das. Ninguém sabe se a assinatura, três
território é considerada plausível em mas, em detrimento de qualquer espe- anos depois, de um acordo de coopera-
caso de fracasso dos programas de de- rança de diversificação”.14 ção econômica e comercial China-UEE
senvolvimento. Ainda que isso não se- (controles aduaneiros, propriedade in-
1 Dmitri Trenin, “Russia’s Asia strategy: Bolstering
ja dito, a percepção desse risco está re- telectual, cooperação intersetorial e the eagle’s eastern wing” [Estratégia russa para a
lacionada, em parte, às assimetrias mercados públicos, comércio eletrôni- Ásia: reforçando a asa leste da águia], Russie.Nei.
demográficas (1,1 habitante por quilô- Se o orçamento co, concorrência...) produzirá efeitos Visions, n.94, Instituto Francês de Relações Inter-
nacionais (Ifri), Paris, jun. 2016.
metro quadrado, em comparação com de defesa chinês mais tangíveis. 2 A OCS não tem realmente uma unidade ideológi-
cem ou mais para as províncias do A parceria estratégica sino-russa ca: a Índia e o Paquistão se enfrentam na Caxemi-
norte da China),10 bem como à ativida-
continua muito maior, parece sólida por causa da sede de es- ra, enquanto a Índia e a China ainda não resolveram
de econômica chinesa que ali vem se Moscou ganha tabilidade dos dois países e de sua re-
seus problemas de fronteira.
3 Yang Cheng, “Sino-Russian border dynamics in the
desenvolvendo desde a década de de longe em jeição conjunta de qualquer interven- Soviet and post-Soviet era: A Chinese perspective”
1990, reativando as antigas tensões li- ção do Ocidente, liderada pelos Estados [Dinâmica da fronteira sino-russa na era soviética e
termos de armas pós-soviética: uma perspectiva chinesa], Docu-
gadas à condição sensível desses terri- Unidos, em sua vizinhança imediata.
tórios na história comum. No final do
nucleares Essa base robusta, no entanto, não sig-
mento de Discussão, Sétima Conferência de Ber-
lim sobre Segurança na Ásia, 1º-2 jul. 2013.
século XIX, a fraqueza do controle es- nifica que as duas potências se sintam 4 Cf. Marc Lanteigne, “Russia, China and the
Shanghai Cooperation Organization: Diverging se-
tatal russo sobre o Oblast de Amur e o obrigadas a concordar em seus pontos curity interests and the ‘Crimea effect’” [Rússia,
Krai do Litoral havia permitido a for- A Rússia também está tentando de vista sobre as principais questões China e a Organização de Cooperação de Xangai:
mação de enclaves que estavam sob a conter a expansão econômica da Chi- internacionais – mesmo que cada uma, interesses de segurança divergentes e o “efeito
Crimeia”]. In: Helge Blakkisrud e Elana Wilson
influência das corporações comerciais na na Ásia Central. Por exemplo, no se não apoia a iniciativa da outra, pelo Rowe (orgs.), Russia’s Turn to the East: Domestic
chinesas, cujas atividades o Kremlin âmbito da OCS, ela recusou (com o Ca- menos evite atrapalhá-la. Além disso, a Policymaking and Regional Cooperation [A Rús-
procurava reduzir.11 zaquistão) a criação de uma zona de China, parte forte do binômio, traça sia se volta para o leste: política doméstica e coo-
peração regional], Global Reordering Series, Pal-
No início da década de 1990, co- livre-comércio ou mesmo a de um seu próprio caminho. Ela pretende in- grave McMillan, Basingstoke, 2018.
merciantes chineses investiram no banco de desenvolvimento.15 Isso figu- vestir na Rússia somente se os projetos 5 Dmitri Trenin, op. cit.
mercado russo do Extremo Oriente, rava também entre os objetivos origi- forem economicamente convincentes 6 Fu Ying, “How China sees Russia” [Como a China
vê a Rússia], Foreign Affairs, Nova York, jan.-fev.
que se caracterizava então por severa nais da criação da União Econômica e se abstém de seguir seus passos em 2016. Fu Ying é presidente do Comitê de Relações
escassez, e para lá exportaram uma Eurasiática (UEE), organização de in- sua crítica virulenta ao Ocidente, com Exteriores do Congresso Nacional do Povo.
grande quantidade de bens de consu- tegração econômica entre a Rússia e o qual compartilha interesses econô- 7 Ler Didier Cormorand, “Por algumas pedras a
mais...”, Le Monde Diplomatique Brasil, jun. 2016.
mo. Ao longo dos anos, essa presença quatro ex-repúblicas soviéticas (Ar- micos significativos. 8 “La politique étrangère de la Russie: regard sur
diversificou-se: comércio sempre, mas mênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Cabe a Moscou lidar com os fatores 2018” [A política externa da Rússia: um olhar para
também agricultura, construção etc.12 Quirguistão) lançada em janeiro de que aprofundam o diferencial de po- 2018] (em russo), n.36, RSMD, Moscou, 2017.
9 Ibidem.
O programa de cooperação de 2009 2015. No entanto, a margem de mano- der, o qual corrói sua imagem, espe- 10 Jean Radvanyi, “Les paradoxes de l’Extrême-Orient
dá testemunho disso: os dois governos bra de Moscou permanece limitada, rando talvez comprometer sua segu- russe: façade maritime dépressive cherche nou-
vêm buscando há alguns anos orientar pois esses países não hesitam em assi- rança. Daí, por vezes, uma retomada veaux moteurs de croissance” [Os paradoxos do
Extremo Oriente russo: região portuária em de-
e regular melhor as relações econômi- nar acordos bilaterais com Pequim da postura defensiva, que ajudou a pressão procura novos motores de crescimento],
cas entre as regiões do nordeste da (energia, investimento etc.) quando derrubar a compra de 14% do capital Regards de l’Observatoire franco-russe, Le Cher-
China e do Extremo Oriente da Rússia. consideram que isso serve a seus inte- da petroleira Rosneft pelo consórcio che-Midi, Paris, 2015.
11 Malin Østevik e Natasha Kuhrt, “The Russian Far
Pequim, preocupada com o desenvol- resses. A Rússia não avança muito so- China Energy Fund Committee (CE- East and Russian security policy in the Asia-Paci-
vimento regional – o Extremo Oriente bre a influência financeira da China, FC). Até agora, Moscou se contentou fic region” [O Extremo Oriente russo e a política
como um mercado “natural” no nor- cujo projeto de Nova Rota da Seda (Belt em canalizar o “risco chinês” dedican- de segurança russa na região da Ásia-Pacífico].
In: Helge Blakkisrud e Elana Wilson Rowe
deste da China –, e Moscou, preocupa- and Road Initiative, BRI) deveria levar do muito esforço para estabelecer uma (orgs.), op. cit.
da com o controle.13 O lado russo, aliás, à concessão de mais empréstimos e relação de confiança adequada para 12 Jean Radvanyi, op. cit.
nem sempre é muito cooperativo na créditos para os países da Ásia Central reduzir as fontes de atrito. Sua vitali- 13 Cf. Tobias Holzlehner, “Economies of trust. Infor-
mality and the State in the Russian-Chinese bor-
execução desse programa. Esse é o (ela própria precisa recorrer a emprés- dade diplomática e militar no Oriente derland” [Economias de confiança. Informalidade
efeito transversal da falta de recursos timos de bancos estatais chineses, em Médio tranquilizou o Kremlin por en- e o Estado na fronteira russo-chinesa]. In: Caroline
financeiros e da inércia burocrática, condições de negociação com fre- quanto, reequilibrando visualmente o Humphrey (org.), Trust and Mistrust in the Econo-
mies of the China-Russia Borderlands [Confiança
mas também de certa ambivalência quência muito duras). equilíbrio bilateral de poder. Se o or- e desconfiança nas economias da fronteira sino-
das autoridades nos níveis local e fede- Além disso, após a anexação da Cri- çamento de defesa chinês continua -russa], Amsterdam University Press, 2018.
ral em relação à presença econômica meia, os Estados-membros da UEE se muito maior (US$ 150 bilhões em 2017, 14 Jean Radvanyi, op. cit.
15 Alexander Gabuev, “Taming the dragon: How can
chinesa. A Rússia pretende manter o mostram muito mais desconfiados em contra US$ 45,6 bilhões da Rússia, se- Russia benefit from China’s financial ambitions in
controle: criou em 2012 um Ministério suas relações com a Rússia, cujo inter- gundo o Instituto Internacional de Es- the SCO?” [Domando o dragão: como a Rússia
do Desenvolvimento do Extremo vencionismo na Ucrânia causou medo. tudos Estratégicos), Moscou ganha de pode se beneficiar das ambições financeiras da
China na OSC?], Russia in Global Affairs, 19 mar.
Oriente, construiu o cosmódromo (lo- Moscou parece ter perdido sua cota de longe em termos de armas nucleares. 2015. Disponível em: <http://eng.globalaffairs.ru>.
cal de lançamento) de Vostochny, mo- simpatia, o que a favorecia regional- A Rússia espera que Pequim dê ga- 16 Cf. “Chine-Russie: Moscou à l’initiative face aux
dernizou a linha ferroviária Magistral mente contra uma China cujo poder rantias de sua vontade de superar as nouvelles routes de la soie chinoises” [China-Rús-
sia: Moscou na iniciativa das novas rotas da seda
Baikal-Amur (BAM), reequilibrou sua preocupava. Da mesma forma que teve assimetrias econômicas – por meio de chinesas], Revue Défense nationale, n.811, Paris,
política externa em relação à Ásia... de constatar que os investimentos chi- cooperações industriais, contribui- jun. 2018.
26 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
Às margens do Rio
do desenvolvimento
No Rio de Janeiro, entre a serra e o mar, populações pobres enfrentam a poluição e o racismo
impostos pelos megaprojetos. Uma caravana de movimentos sociais seguiu a trilha das resistências
POR THIAGO MENDES E MARINA PRAÇA*
os últimos quinze anos, proje- tradicionais e empobrecidas se fize- cos em Magé, passou pela área conhe- broca. A fábrica de pesticida do antigo
cho “não é caminho para lugar ne- países periféricos como o Brasil. Não
nhum”, resumiu a moradora Jovelita há siderúrgica nem refinaria no Le-
Miranda durante a caravana. No bair- blon. É fácil saber por quê.
ro onde não há serviço bancário nem Neste cenário, para discutir racis-
loteria, é preciso contar com a sorte mo ambiental, como sublinhou du-
para sobreviver. rante a caravana Cristiane Faustino,
No começo, repetia-se a promessa da Rede Brasileira de Justiça Ambien-
ouvida em tantos outros lugares. O tal (RBJA), é preciso entender a forma-
JURISDIÇÃO SUBVERTIDA
A via crucis de
um habeas corpus
Não há prefeito, não há gestor de políticas públicas, não há ordenador de despesa neste país que não tenha sentido
na pele a arrogância no trato com o Ministério Público. Prazos impostos com ameaças expressas de incriminação são rotina.
Não existe um “por favor” nem um “obrigado” na linguagem funcional de seus agentes. Têm o rei na barriga
POR WADIH DAMOUS*
© Flavia Bomfim
degeneração não têm muito apego à
realidade, antes reproduzem o confli-
to vítima-vilão, com Lula e seu partido
no centro da discórdia.
O discurso de lustração política
tem inegavelmente ganhadores e per-
dedores. Ganharam as corporações do
serviço público. Ganhou o capital es- tida conexão entre si. Não há adminis- No entanto, parece que tamanho Forçosamente somos levados a
peculativo. Ganhou a cobiça interna- trador e são poucos os atores parla- poder e tamanha blindagem os torna- constatar que boa parte deles são me-
cional pelos ativos brasileiros. Perdeu mentares que ousam enfrentar essa ram reféns de si mesmos. O absoluto ninos mimados da classe média. Pri-
a maioria da população, que vê defi- máquina persecutória penal, até por- isolamento social daí decorrente fez meiros colocados em concursos públi-
nhando as políticas públicas de inclu- que muitos têm telhado de vidro e ra- fermentar a atuação política interna, cos de decoreba, adestrados pelos mais
são e redistribuição da riqueza. Perdeu zões de sobra para se manterem longe descompromissada com o resto da so- caros cursinhos, enquanto se prepara-
a economia produtiva, beneficiada pe- dela. Mas, se resistência houver, a má- ciedade. Picados pela mosca azul, não vam sem trabalhar, cevados por papai
la expansão do mercado na esteira da quina passa por cima com o supremo há quem os convença de que são me- e mamãe, que os queriam importan-
inclusão social. Perdeu o interesse na- rolo compressor, como no caso do au- ros servidores públicos, pagos pelos tes, nos melhores postos da República.
cional com a erosão do lugar do Brasil xílio-moradia universalizado por pro- contribuintes para servirem à socie- Frustram-se com qualquer desafio
como player no mercado global. vimento cautelar monocrático no STF. dade, e não para se servirem dela nem à sua excelência. Lidam pessimamen-
Algo de muito errado aconteceu se porem em guerra contra sua repre- te com essas frustrações. E reagem
INSTITUIÇÕES JUDICIAIS E PARAJUDICIAIS com nossas instituições judiciais e pa- sentação política. com histrionismo. A crise não pode
O Poder Judiciário e seus periféri- rajudiciais. Na Constituinte, lograram Não há prefeito, não há gestor de atingir seu bolso! Têm-se como incon-
cos (Ministério Público e polícia judi- significativo fortalecimento para ser- políticas públicas, não há ordenador testes corifeus da meritocracia. Veem
ciária) estão entre os ganhadores e virem de garantes da democracia e do de despesa neste país que não tenha no concurso que lhes permitiu a inves-
têm exercido um papel central na crise Estado de direito. Foi-lhes confiado sentido na pele a arrogância no trato tidura o bilhete-prêmio para a felicida-
nacional. Seu ativismo midiático lhes enorme poder para se impor sobre o com o Ministério Público. Prazos im- de. Para todo o sempre! Ninguém tas-
conferiu protagonismo político ímpar. Executivo. Deu-se-lhes até iniciativa postos com ameaças expressas de in- ca! Reforçam essa convicção com a
Mantêm-se sólidos no topo da cadeia legislativa em causa própria, para que criminação são rotina. Não existe um interpretação inflada das prerrogati-
alimentar do serviço público, presti- ficassem distantes da disputa política “por favor” nem um “obrigado” na lin- vas constitucionais da vitaliciedade,
giadíssimos com seus altos ganhos e e agissem altivos, sem se preocuparem guagem funcional de seus agentes. da inamovibilidade, da irredutibilida-
seu poder de coerção, que guardam ní- com eventuais represálias. Têm o rei na barriga. de de ganhos e da independência fun-
AGOSTO 2018 Le Monde Diplomatique Brasil 29
cional, por eles erigida em verdadeira gador Gebran Neto, não fosse inteirado entrou em contato verbal com o mi- dos mesmos fundamentos de pedidos
soberania funcional. Na verdade, não da situação. Deixou a polícia atordoada nistro Raul Jungmann, da Segurança já julgados! O que poderia ser discuti-
são excelências, são majestades! e paralisada. Somente às 12h colocou Pública, e solicitou não cumprir a or- do, em tese, era a urgência do pleito de
São atores que nada devem a quem por escrito sua “determinação” de não dem do desembargador plantonista, pré-campanha a ponto de ser levado
quer que seja. Nem à sociedade nem a dar cumprimento à ordem de soltura do porquanto iria dirimir o conflito entre ao plantão do TRF. Mas juízes são in-
seus atores políticos. Se Lula respeitou a desembargador Rogério Favreto. Tudo os colegas. dependentes até para avaliar a urgên-
autonomia orgânica do Ministério Pú- isso está devidamente registrado no li- Thompson Flores é outro desem- cia, ou não, de um provimento judi-
blico e não aparelhou as cortes superio- vro de ocorrências do plantão. bargador que se desempenhou com cial. Não cabe a outros juízes atropelar
res, “nada mais fez que sua obrigação”. O incidente escandaloso, tanto por inadmissível ativismo ao dizer que o competente para desfazer publica-
Eles correspondem aos burocrata- sua gravidade como pelo inusitado, este teria invadido a competência da mente essa avaliação.
zinhos que, na Revolução Russa de fe- clama por correção disciplinar, no mí- 8ª Turma do tribunal ao redecidir O pior de tudo nesse episódio des-
vereiro de 1917, só marcharam com o nimo, contra o folguista usurpador da matéria ali já julgada. Poderia dizer moralizante para o Judiciário brasileiro
proletariado para não ficarem de fora, função judicante. Sérgio Moro, àquela qualquer coisa, menos esta: a matéria é que todo barulho seria rigorosamente
mas tentaram, até a última hora, ga- altura, não detinha jurisdição – o po- sobre a participação de Lula na cam- desnecessário. Fosse cumprido o rito
rantir privilégios de sua condição na der legal de decidir as causas judiciais panha presidencial era processual- processual normal, o habeas corpus, de-
monarquia imperial, tornando-se os em curso – para qualquer medida que mente inédita e não fora decidida pois de liberado Lula, seria encaminha-
mais ferrenhos contrarrevolucioná- impedisse a soltura de Lula. ainda em nenhuma instância. do na segunda-feira à decisão do relator
rios, aliados aos cadetes em torno do No entanto, ainda que estivesse re- A ministra Laurita Vaz fechou a prevento, Gebran Neto, que poderia,
general golpista Kornilov. gularmente exercendo a função judi- confusão com chave de ouro. Na terça- sem nenhum estrépito, revogar a ordem
Manter Lula preso tem uma força cante – que não era o caso –, o juiz de -feira seguinte, exarou despacho no de livramento e depois submeter a ma-
simbólica enorme para nossos buro- piso não podia dar contraordem a uma plantão do Superior Tribunal de Justi- téria ao julgamento da turma. Com se-
cratas privilegiados. Lula preso é um decisão de um desembargador do tri- ça, batendo na tecla de que o habeas renidade e altivez. Mas não. O desespe-
troféu precioso, o prêmio que seus ato- bunal ao qual se subordina, sob a pífia corpus despachado por Favreto não ro de Moro, típico de um sméagol do
res se atribuíram para ser exibido co- motivação de que o desembargador continha fato novo – a pré-campanha romance épico Senhor dos anéis, prestes
mo sinal de poder. Soltar Lula, ao con- plantonista não teria “competência” de Lula –, pois o fato de Lula ser pré- a perder seu precious, não condisse com
trário, põe a nu o caráter mesquinho para a soltura de Lula. Se a moda pegar, -candidato não seria novidade... o distanciamento sentimental que se
desse esforço por prestígio corporati- qualquer juiz de primeiro grau, insatis- exige do magistrado na relação com os
vo e significa a submissão das institui- feito com a reforma de suas decisões, feitos sob sua responsabilidade. Talvez
ções e da burocracia à macropolítica e passará a determinar a obstaculização nem sequer se lembrasse de que a juris-
à soberania popular. É tudo o que essa de sua execução!
Picados pela mosca dição brasileira se exerce no território
gente não quer. Pois bem: o “despacho” do cidadão azul, não há quem nacional, e não fora dele.
O juiz Sérgio Moro virou um herói de folga foi recebido também pelo de- os convença de que
para os nossos cadetes. É seu Kornilov. E sembargador Gebran Neto, igualmente são meros servidores MAGISTRADO MAIÚSCULO
Lula é feito Lenin preso pela falsa acusa- afastado do exercício durante seu mere- Do que aqui foi relatado e deveria
ção de ser colaborador do inimigo ale- cido descanso dominical. Enfurecido,
públicos, pagos fazer corar de vergonha qualquer ju-
mão. Mas é importante lembrar que o tomou o inexistente ato de Moro como pelos contribuintes rista brasileiro sério, pode-se concluir,
golpe de julho de 1917 não impediu a Re- fundamento suficiente para avocar o para servirem independentemente do juízo sobre o
volução de Outubro. Antes a precipitou. habeas corpus do colega e declarar invá- à sociedade acerto ou a falha da decisão que profe-
lida sua decisão de soltar Lula. Ignorou a riu, que o único ator que merece ser
O IMBRÓGLIO PROCESSUAL DE 8 DE JULHO impossibilidade de dois magistrados tratado, nesse palco, de Magistrado,
A sociedade acordou naquele do- serem igualmente competentes para Para leigos, talvez seja importante com “M” maiúsculo, é o desembarga-
mingo com a estranha e incrível notícia um mesmo processo. Judicatura não é explicar. Não é o fato que deve ser no- dor Rogério Favreto, que heroicamen-
de que Lula estava livre, pronto para bufê de cafeteria, onde se escolhe o pe- vo, mas o thema decidendum – o as- te defendeu sua jurisdição e não bai-
cair de cabeça na campanha presiden- tisco que vai para o prato. sunto posto a debate –, pois a questão xou a cabeça à prepotência ignorante.
cial. A ordem de soltura tinha sido dada Sobre a jurisdição de Rogério Favre- temporal não apaga a gravidade da ile- Revelou-se Favreto um raro espéci-
pelo desembargador Rogério Favreto, to não pode haver dúvida. Decorre do galidade denunciada. Não é porque me no Judiciário, motivo de alento pa-
no plantão do TRF4, com base em um ato que o nomeou plantonista e do regi- deixei de levar ao tribunal um fato gra- ra todos aqueles que querem um Brasil
pedido de habeas corpus da autoria de mento que lhe atribuiu competência ve ao tempo em que era recente que melhor: mesmo tendo sua jurisdição
três deputados federais do PT. Almeja- para conceder medidas liminares em deixo de ter o direito de levá-lo agora. atacada por seus colegas, que coones-
vam forçar o Judiciário a permitir que habeas corpus. Gebran, por sua vez, agiu O tempo não apaga o abuso. Se fosse taram a empáfia, e pelo topete do fol-
Lula promovesse sua pré-campanha de forma ilegal, usurpando poder do co- assim, não precisaríamos nem mais guista Sérgio Moro, ele mostrou, com
em condição idêntica à de seus adversá- lega. Pior: fez isso baseado em procedi- levar a juízo os criminosos do Holo- sua resistência, que, para desautorizá-
rios. Pedidos para liberar Lula para dar mento imaginário que chamou de causto, porque o fato já é conhecido -lo, não basta passar sobre ele a patrola
entrevistas e participar de debates já “consulta” do juiz folguista, sem forma por todos há mais de setenta anos! da arrogância e da bronca. É preciso
dormitavam havia mais de um mês na nem conteúdo processual (“consulta” é Os limites temporais, em direito, seguir o devido processo legal, agindo
mesa da juíza responsável pela execu- figura inexistente no direito proces- são dados pela prescrição, quando um com imparcialidade e respeitando a
ção penal antecipada imposta ao candi- sual). Despido o subscritor da “consul- fato tenha se encerrado, completado. A publicidade dos atos jurisdicionais,
dato. A juíza não decidia e criava, com ta” do poder jurisdicional, esse ato nem lei então prescreve o lapso de tempo não satisfeita com telefonemas dispa-
isso, intolerável desigualdade entre os nulo era. Era muito menos um ato for- durante o qual se pode levar aquele rados nas costas dos impetrantes e do
disputantes na eleição presidencial. malmente inexistente, incapaz de se acontecimento passado à apreciação paciente, numa verdadeira subversão
O alvará de soltura chegou às 9h46 à prestar à provocação de uma manifes- de um juiz. Mas evidentemente isso do republicanismo. Ficou patente, pa-
Superintendência da Polícia Federal, tação judicial. Um não ato. não vale para a violência ainda em cur- ra a sociedade, graças à envergadura
onde Lula está preso. A reação por parte Rogério Favreto reafirmou sua ju- so: a denegação do direito de Lula fazer de Favreto, que Lula é, tal e qual a ju-
do establishment burocrático-judicial risdição e estabeleceu o prazo impror- pré-campanha como todos os outros risdição sequestrada pelo TRF, um ca-
foi de pânico. Foi dito que Sérgio Moro, rogável de uma hora para o cumpri- pré-candidatos! É irrelevante, para le- tivo privado da sanha corporativa. Até
cidadão de folga, que, em versão não mento da ordem de soltura. A Polícia var ao Judiciário, se o fato da candida- que – quiçá – o STF diga melhor!
confirmada, estaria em Portugal, quase Federal, contudo, fez ouvido de mer- tura de Lula é notório ou não. Não é a
teve uma síncope e disparou telefone- cador e enrolou para não cumprir a notoriedade que desqualifica a novida- *Wadih Damous, advogado e deputado fe-
mas para todo canto, inclusive para a ordem, alegando haver duas ordens de da matéria posta à decisão da corte. deral (PT-RJ), foi presidente da OAB-RJ
Polícia Federal, “ordenando-lhe” que contraditórias. Enquanto isso, o presi- O debate levado à apreciação do (2007-2012). É graduado em Direito pela
não soltasse Lula enquanto o relator dos dente do TRF, Carlos Eduardo Thomp- desembargador de plantão era efeti- Uerj e mestre em Direito Constitucional e do
feitos da Lava Jato no TRF4, desembar- son Flores, alarmado com a balbúrdia, vamente novo e não implicava revisão Estado pela PUC-Rio.
30 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
IMPOTÊNCIA POLÍTICA
No Líbano, o fantasma
dos barris tóxicos
As eleições legislativas realizadas no Líbano no dia 6 de maio
consagraram o campo pró-Hezbollah. Apresentadas
à margem das grandes formações, as listas pluralistas da
sociedade civil não tiveram o resultado que suas diversas
mobilizações ambientalistas permitiam imaginar. O problema
da coleta e do tratamento de lixo permanece
POR EMMANUEL HADDAD*
© Suryara
ma aurora ainda tempestuosa Kehdy limpa a praia de Zouk Mos- lixão de Bourj Hammoud, na confusão bores continham uma elevada con-
descobriu que diversos funcionários nistro do Meio Ambiente, Tarek Khatib, terromper o projeto de aterro de Bourj para reabilitar a montanha de Bourj
do Ministério do Meio Ambiente esta- admitiu em frente às câmeras:4 “Os re- Hammoud. “Deveria haver sondagens Hammoud e transformá-la em aterro
vam entre os responsáveis pelo caso síduos deviam mesmo ser lançados no em diferentes áreas do depósito para para acomodar dois novos depósitos
dos barris italianos. Dois conselheiros mar, mas deveria haver um quebra- avaliar a natureza de cada camada da de lixo. No total, mais de US$ 600 mi-
próximos de Mokbel renunciaram no -mar ali. Houve uma violação das es- montanha”, avalia o septuagenário. lhões de dinheiro público foram dis-
início de fevereiro de 1995, e o próprio pecificações”, disse ele, prometendo Um pedido ambicioso: “Inicialmente, tribuídos para a coleta e a gestão de re-
ministro foi retirado do governo du- fazer o máximo para garantir que os o juiz pediu que se interrompesse o síduos domésticos desde 2016.
rante uma reforma ministerial em ju- pescadores sejam indenizados. trabalho, mas os políticos fizeram Essa soma poderia até dobrar com
nho do mesmo ano. Para verificar a ausência de subs- pressão e o trabalho foi retomado”. a escolha da incineração, técnica que a
Restava então condenar os respon- tâncias perigosas na montanha de Dinamarca está rejeitando, mas que a
sáveis pelo crime ambiental. Surpresa: três décadas, o Conselho Nacional de “NOVOS REIS DO LIXO” empresa de consultoria dinamarquesa
em fevereiro de 1995, o promotor Said Pesquisa Científica (CNRS) libanês No local, Toufic Kazmouz, chefe do Ramboll recomendou para o Líbano.
Mirza, encarregado da investigação, deve realizar testes regulares. Conta- projeto de gestão do depósito de resí- Em um estudo vendido ao governo li-
acusou Pierre Malychef de falso teste- tado, o órgão de pesquisa, ligado ao duos da empresa Khoury Constructing, banês por US$ 850 mil, ela recomenda
munho por ter declarado na televisão Conselho de Ministros, não quis re- está impaciente: “Há um boato sobre a um investimento de US$ 500 milhões
que os resíduos tóxicos estavam espa- velar seus resultados. Ele também se existência de lixo tóxico. Alguém pode para um incinerador de 750 mil tone-
lhados pelo país. Os importadores dos recusou a compartilhar com a asso- provar que isso é verdade? Ninguém. ladas por ano. A cereja do bolo: uma
barris tiveram as acusações que pesa- ciação Saha Ouladna (“Saúde de Nos- Não precisamos dessas histórias assus- vez o litoral aterrado e os aterros subs-
vam sobre eles retiradas. A franqueza sos Filhos”) seu estudo sobre a quali- tando as pessoas. Temos de ser objeti- tituídos pelo incinerador, um antigo
de Malychef rendeu-lhe duas semanas dade da água no litoral do Líbano em vos. Evidentemente, há um lado negati- projeto de desenvolvimento imobiliá-
atrás das grades, inúmeras ameaças e, 2017. “A lei, no entanto, obriga o CNRS vo em jogar lixo no mar para aterrá-lo. rio chamado Linord poderia finalmen-
por duas vezes, a explosão de sua far- a divulgar publicamente essas infor- Mas essa é a única solução no momen- te ser posto em obra. Para Elias Azzi,
mácia. Então ministro dos Desloca- mações”, comenta Samar Khalil, to. Se alguém tiver outra, diga!”. isso é tudo menos coincidência: “Se o
dos, Walid Jumblatt – citado no relató- membro da associação e diretora de Em 26 de outubro de 2017, uma de- depósito de Naameh fechou em 2015,
rio do Greenpeace – denunciou a segurança ambiental e química da cisão do Conselho de Ministros lhe não foi por razões ambientais, mas pa-
acusação à sua maneira: “Existem bar- Universidade Americana de Beirute. deu razão. Tal como o depósito de ra reativar o projeto Linord. No final,
ris na terra e no mar. O Líbano, como Elias Azzi, pesquisador especializado Naameh, uma resposta de emergência parece que todo o litoral norte de Bei-
todos os países do Terceiro Mundo, é em gestão de resíduos do Instituto que se tornou uma solução permanen- rute será aterrado, do porto de Beirute
um depósito de lixo. As autoridades Real de Tecnologia de Estocolmo, ga- te, os dois depósitos costeiros da Costa ao aterro de Dbayeh. Isso permitirá a
prenderam Malychef porque ele ousou rante: “Não há nenhuma análise re- Brava (criados em 2015) e de Bourj alguns colher os frutos da terra con-
falar a verdade”. cente e cientificamente válida dos re- Hammoud deveriam ser ampliados e quistada do mar”. No Líbano, nada se
O fantasma dos barris azuis ressur- síduos de Bourj Hammoud atestando sua vida prolongada até a anunciada perde, nada se recicla, tudo se trans-
giu em março de 2016, após a adoção, sua não toxicidade. Se há poluição construção de um incinerador. Uma forma... em dólares.
pelo Conselho dos Ministros, de um química, é certo que alguns dos pro- política que coroa os “novos reis do li-
novo plano de emergência proposto dutos perigosos já foram para o mar xo”, como já fala a imprensa libanesa.5 *Emmanuel Haddad é jornalista em Beirute.
por Chehayeb, a partir de então minis- ao longo dos anos, e a construção do Um deles, o Al-Jihad Group for Com-
tro da Agricultura. O plano incluía aterro só piora as coisas”. merce and Contracting, que ganhou
transformar a “montanha” de Bourj Wilson Rizk é o último sobreviven- um contrato de US$ 59,5 milhões para
Hammoud em matéria-prima para um te do trio de cientistas que investigou a construção e a gestão do depósito de 1 “Liban: violences policières contre des manifestants”
[Líbano: violência policial contra manifestantes], Hu-
aterro destinado a acomodar dois dos os produtos tóxicos importados da Itá- lixo de Costa Brava, receberá US$ 100 man Rights Watch, Nova York, 22 ago. 2015.
três depósitos de resíduos costeiros lia. Em casa, ele guarda cuidadosa- milhões para sua expansão. A compa- 2 Sobre a visão neoliberal de Rafik Hariri a respeito
previstos para Beirute, onde será ar- mente seu relatório, que contém as fo- nhia, pertencente ao empresário Jihad da reconstrução do pós-guerra, cf. Hannes Bau-
mann, Citizen Hariri: Lebanon’s Neoliberal Re-
mazenado 1,4 milhão de toneladas de tos tiradas por Malychef comprovando al-Arab, amigo da família Hariri, tam- construction [Cidadão Hariri: a reconstrução neoli-
novos resíduos em quatro anos. O lixo a presença de barris tóxicos no aterro bém ganhou duas vezes um contrato beral libanesa], C. Hurst and Co, Londres, 2016.
foi colocado em dezenas de caminhões de Bourj Hammoud. Trinta anos de- para a modernização da usina de com- 3 Fouad Hamdan, “Toxic attack against Lebanon”
[Ataque tóxico contra o Líbano], Greenpeace Mé-
e jogado em pleno Mar Mediterrâneo pois, ele foi chamado pela justiça co- postagem Coral, que ainda não come- diterranée, Malta, ago. 1996. Disponível em:
pela empresa Khoury Constructing. mo especialista, após uma queixa çou. Seus funcionários não quiseram <www.fouadhamdan.org>.
Em 13 de junho 2017, após várias mani- apresentada em março de 2016 pela responder às nossas perguntas. 4 LBC, 13 jun. 2017.
5 “Les nouveaux rois des déchets” [Os novos reis do
festações de pescadores locais apoia- Coalizão contra o Plano Governamen- Já a Khoury Constructing recebeu lixo], Le Commerce du Levant, Beirute, fev. 2018.
das por grupos ambientalistas, o mi- tal de Tratamento de Resíduos para in- US$ 109 milhões durante quatro anos Disponível em: <www.lecommercedulevant.com>.
32 Le Monde Diplomatique Brasil AGOSTO 2018
Bolívia, na contracorrente
da América do Sul
Enquanto as forças conservadoras avançam no continente sul-americano, um país permanece ancorado à esquerda:
a Bolívia de Evo Morales, onde a contestação se concentra cada vez mais no seio do próprio campo político do chefe
de Estado. A história singular do partido presidencial, o Movimiento al Socialismo, esclarece essa situação surpreendente
POR HERVÉ DO ALTO*
andar obedeciendo”: pro- em que se acotovelavam sindicatos de Morales: primeiro, os confrontos entre do acesso a esse território amazônico,
E a Europa criou
Compostela...
Na rota para a Galiza, os caminhos de Santiago atraem todos os anos centenas de milhares
de caminhantes. Promotor desse sucesso, o Conselho da Europa realizou um sonho que os papas Leão XIII
e João Paulo II partilharam com Francisco Franco: alimentar, por meio desse mito, as raízes cristãs do
Velho Continente, ainda que tomando algumas liberdades com a história e a geografia
POR LOLA PARRA CRAVIOTTO*
FUTEBOL E POLÍTICA
José Trajano: um
operário do jornalismo
Crítico dos novos tempos na profissão, o carioca fala sobre ódio nas redes sociais,
decadência da cobertura esportiva e atuação do Brasil na Copa do Mundo da Rússia
POR GUILHERME HENRIQUE E LUÍS BRASILINO*
uas câmeras posicionadas no comenta. Auxiliado também pelo filho O que você achou da utilização do ár- Tinha o Arthur [meia ex-Grêmio,
Passando um pouco para a internet, Todos esses livros passam por um Rio
onde você tem atuado com o blog, co- de Janeiro que não existe mais. Como
mo tem sido a relação com o público? você vê a cidade atualmente?
Como você encara a hostilidade em Muita preocupação. É um Rio
alguns momentos? abandonado, violento, com um prefei-
É terrível, porque a burrice está to de quinta categoria. O Luiz Fernan-
© Cristiano Navarro
MISCELÂNEA
livros internet
O OFÍCIO MARX SELVAGEM NOVAS NARRATIVAS DA WEB
Serguei Dovlátov, Jean Tible, Sites e projetos que merecem o seu tempo
Kalinka Autonomia Literária
PODCAST BRASILEIRO
DE STORYTELLING
A grande maioria dos podcasts produzi-
dos no Brasil (e provavelmente no mundo)
segue o modelo de juntar uns amigos e
convidados e fazer um bate-papo sobre
um assunto escolhido para aquela edição.
Storytelling é uma narrativa mais imersiva,
um personagem, a montagem da estrutura
DIRETORIA
Li chorando. É o tipo de texto que inflama e rea- Diretor da edição brasileira e editor-chefe
cende o que se acredita. PAZ PELA FORÇA Silvio Caccia Bava
Editores de Arte
CAPA
É triste a nossa realidade. No entanto, fico aliviada 4 As eleições e a retomada do Estado social
Adriana Fernandes e Daniel Kondo
cessidade cada vez mais urgente. Trata-se de um EM BREVE, CAMINHÕES SEM MOTORISTA? Gestão Administrativa e Financeira
exercício diário de persistência e paciência. Para- 8 Caminhoneiros, um ícone em via de desaparecer
Arlete Martins
REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA,
Um balanço da gestão de Pedro Parente
11 TRANSFORMAÇÃO GEOPOLÍTICA
Tradutores desta edição
Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
O petróleo, um dos ativos mais importantes do Carro elétrico, uma miragem ecológica
nosso país, saqueado por piratas que vão lutar até Por Guillaume Pitron Conselho Editorial
Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
o fim, porque o petróleo é deles, e não nosso. Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
MOVIMENTOS SOCIAIS
Adauto Dauctus 14 A internet como objeto de luta
Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
Camponeses moçambicanos derrotam o Por Nataly Queiroz Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
agronegócio Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.
BOMBEIROS PIROMANÍACOS DO VALE DO SILÍCIO
O Brasil exportando modelo excludente, concen- 16 O mito do transumanismo Apoiadores da campanha de financiamento coletivo
trador antissocial. Esse projeto não visa à produ- Henrique Botelho Frota, Pedro Luiz Gonçalves Fuschino,
Por Guillaume Renouard e Charles Perragi
ção de alimentos para reduzir a fome; ele busca Rita Claudia Jacintho e Vinícius D. Cantarelli Fogliarini
Esse projeto reduz a terra a um simples bem mer- Por Arlie Hochschild Escritório Comercial Brasília
cantil e não leva em conta sua importância para os Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br
pequenos produtores rurais dessas regiões. SUAR, MAS EM BOA COMPANHIA
Morei Ivo
20 Suco detox e cardio training, o novo espírito Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria com o
da burguesia Instituto Pólis.
Investem nesse setor não só os grupos alimentí- Por Laura Raim
Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
cios, mas também atores originários das altas fi- São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
OS SEGREDOS DE UMA PARCERIA
nanças: corretoras, fundos especulativos, fundos 23 DESEQUILIBRADA, MAS FUNCIONAL
Tel.: 55 11 2174-2005
diplomatique@diplomatique.org.br
de investimento de todas as espécies, operados por www.diplomatique.org.br
indivíduos que trabalhavam até então para bancos China e Rússia, cúmplices, mas não aliadas
Por Isabelle Facon Assinaturas
comerciais, tais como Goldman Sachs, Merrill Lyn- assinaturas@diplomatique.org.br
ch e outros... E o pior é que, com tanto apoio publi- Tel.: 55 11 2174-2015
RESISTÊNCIAS AO RACISMO AMBIENTAL
citário da Globo, os brasileiros vão acabar defen- 26 Às margens do Rio do desenvolvimento Impressão
dendo o agronegócio como se fosse deles. Plural Indústria Gráfica Ltda.
Por Thiago Mendes e Marina Praça Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Walkiria Cassanaz Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
JURISDIÇÃO SUBVERTIDA
A uberização da Uber 28 A via crucis de um habeas corpus
Distribuição nacional
DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
Ótimo texto! Poucas pessoas no mundo acadêmi- Por Wadih Damous Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –
Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624
co parecem dispostas a pensar o problema central
do capitalismo contemporâneo – a dissolução do IMPOTÊNCIA POLÍTICA LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
uma máscara nova; e nem por isso melhor. Diretora de Relações e das
NASCIMENTO DE UM DESTINO TURÍSTICO
Eduardo Klein Fichtner 34 E a Europa criou Compostela...
Edições Internacionais
Anne-Cécile ROBERT
Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas Por Lola Parra Craviotto
Le Monde diplomatique
críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e,
FUTEBOL E POLÍTICA secretariat@monde-diplomatique.fr
se necessário, resumidas para a publicação. 36 José Trajano: um operário do jornalismo
www.monde-diplomatique.fr
Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus Por Guilherme Henrique e Luís Brasilino
autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava com 37
edições internacionais em 20 línguas: 32 edições impressas e 5
do periódico. eletrônicas.
MISCELÂNEA
Capa: © Vitor Flynn
38 ISSN: 1981-7525