Portanto, ao falar sobre arte enfocamos a época Pernoud 3, ainda é muito difícil encontrar grande
de seu maior desenvolvimento: a Idade Média, pois número de estudos sobre o assunto. Portanto, ten-
a maior parte da arte produzida na Europa, durante tar conhecer um pouco mais sobre a participação
um período de cerca de mil anos, compõe-se da pin- das mulheres em um dado momento do período
tura medieval. A arte medieval, que nos chegou até medieval, por meio da literatura existente hoje é,
os dias de hoje, tem um foco religioso, fundamenta- no mínimo, uma grande aventura.
do no cristianismo. Essa arte era, muitas vezes, fi- Nessa época, a maioria das ideias e dos conceitos
nanciada pela Igreja; por figuras poderosas do clero, era elaborada pelos eclesiásticos. Eles detinham uma
como os bispos; por grupos comunais, como os dos visão dicotômica acerca da mulher, ou seja, ao mes-
mosteiros; ou por patronos seculares ricos. Essa hi- mo tempo em que ela era tida como a culpada pelo
erarquia determinava também comportamentos, pa- pecado original na imagem de Eva, era também a
péis e espaços de poder do masculino sobre o femi- virgem Maria, aquela que trouxera o Redentor pelos
nino, adquiridos e transmitidos nas estruturas sociais pecados ao mundo. Nesse sentido, havia muito pou-
de dominação (ALMEIDA, 2007, p. 62). ca arte fora do campo da religião. Em sua maioria,
O presente texto busca auxiliar na interpretação as figuras bíblicas retratadas, com exceção de Eva,
do cotidiano das mulheres na historiografia e como Maria e Maria Madalena, são homens.
elas são retratadas na iconografia da época vigente Mesmo tendo notícia de inúmeras mulheres do
dentro dessa sociedade. período medieval que se destacaram em vários se-
tores da sociedade — educadoras, rainhas, médi-
Uma breve passagem pela Era Medieval cas, astrólogas, teólogas, comerciantes e trabalha-
doras braçais no trabalho agrícola — ainda não
Nas obras de conteúdo histórico sobre a Era encontramos, em sua maior parte, citações de sua
Medieval temos visto as mulheres apenas como existência e participação na historiografia. De
meras coadjuvantes, com uma ínfima visibilidade, maneira geral, a representatividade e o valor dessas
por entre páginas e mais páginas elaboradas sobre mulheres, que viveram no período medieval, liga-
a participação e o governo dos homens, eliminando das a várias dimensões da sociedade, se perderam,
a pluralidade da história. pois “o que a história não diz, não existiu”
A história das mulheres na Idade Média é um (SWAIN, 2000, p. 13).
tema que foi desprestigiado, por muito tempo, pe-
los historiadores, mas atualmente vem atraindo Um período de transições políticas,
estudiosos. Segundo alguns historiadores, como culturais e religiosas
Marc Bloch 1 , Jacques Le Goff 2 e Régine
O período da Idade Média foi tradicionalmente
1
Marc Léopold Benjamim BLOCH (Lyon, 6 de julho de delimitado por eventos políticos: inicia-se com a
1886 — Saint-Didier-de-Formans, 16 de junho de 1944)
rica do Ocidente Medieval. Autor de diversos livros sobre
foi um historiador francês notório por ser um dos funda-
a Idade Média, publicou um artigo intitulado “Nova His-
dores da Escola dos Annales e morto pelos nazistas du- tória”, que causou amplo debate acadêmico, cujos desdo-
rante a Segunda Guerra Mundial. É considerado o maior bramentos conduziram à chamada “Nova História”. São
medievalista de todos os tempos, e na opinião de muitos, algumas de suas obras: Em Busca da Idade Média, As
o maior historiador do século XX. Seus trabalhos e pes- Raízes Medievais da Europa, Uma História do Corpo na
quisas abriram novos horizontes nos estudos sobre o Idade Média, Os Intelectuais na Idade Média,
3
feudalismo. Foi um dos grandes responsáveis pelas ino- Régine Pernoud é historiadora e medievalista francesa
vações do pensamento histórico. (1909-1998). Doutora em Letras e diplomada pela École
2
Jacques Le GOFF (Toulon, 1º de janeiro de 1924) é um des Chartes e pela École du Louvre, foi diretora do
historiador especialista em temas da Idade Média, especi- Museu de Reims, do Museu de História da França, dos
almente dos séculos XII e XIII. Historiador da Escola dos Arquivos Nacionais e do Centro Jeanne d´Arc d´Orléans
Annales, sucedeu a Fernand Braudel em 1972 à frente da (que fundou em 1974). Escreveu numerosas obras sobre
École des Hautes Études en Sciences Sociales”; em 1977 a Idade Média, entre as quais destacamos Idade Média:
cedeu seu lugar a François Furet. Posteriormente, consa- o que não nos ensinaram, Luz sobre a Idade Média e A
grou sua vida à direção de estudos de Antropologia histó- mulher no tempo das catedrais.
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desintegração do Império Romano do Ocidente, no Na contemporaneidade, para que a arte possa ser
século V (476 d.C.), e termina com o fim do Império lida, é preciso uma percepção sensível mediante a
Romano do Oriente, com a Queda de Constan- educação do olhar. Cada obra de arte carrega em si
tinopla, no século XV (1453 d.C.). A Era Medieval uma forma de expressão, como descreve Emília
também pode ser subdividida em períodos menores. Moura (2000):
Num dos modos de classificação mais populares ela
é separada em dois períodos: Alta Idade Média, que A alfabetização dos sentidos, para a arte, envolve apren-
decorre do século V ao X; e Baixa Idade Média, que dizado, treino e questionamento. A obra de arte é uma
se estende do século XI ao XV. forma de escrita cuja leitura permite que se amplie o
Para o povo medieval, todas as coisas eram sa- instante fugidio do prazer de admirá-la. Como toda escri-
gradas: o mundo, a natureza, o corpo humano. ta, para que possa ser lida, é preciso que ocorra um pro-
Tudo o que dizia respeito ao sobrenatural e ao ex- cesso de alfabetização e o primeiro passo, no sentido da
traordinário causava fascínio (LE GOFF; alfabetização artística, é ver arte.
SCHMITT, 2002, p. 105). Dessa forma, os séculos
XII e XIII assinalam o aparecimento de uma civi- Essa referência contribui para uma leitura e inter-
lização cristã das imagens representando as tendên- pretação, hoje, dessas representações pictóricas que
cias da cultura de uma época, expressando e comu- compõem templos, igrejas e catedrais, que nascem
nicando sentidos carregados desses valores não somente em um período de ascensão da burgue-
simbólicos. Eles podem ser encontrados nas pintu- sia, da valorização do homem no sentido individua-
ras, nos vitrais das igrejas, em iluminuras, nas tape- lista e do “mecenato papal”4, mas também de moti-
çarias, entre outros. Ao lado da pintura, a tapeçaria vações religiosas que tornaram esses espaços
foi a mais importante forma de arte medieval. Isso propícios ao diálogo com Deus, à doutrinação dos
decorre em muito de sua utilidade em manter o ca- fiéis e à celebração de rituais sagrados. Essa com-
lor interno dos castelos de pedra durante o inverno. preensão é reafirmada no texto de Emília Moura:
Segundo Régine Pernoud, foi na Idade Média que
se elaborou a linguagem musical em vigor até os Durante a Idade Média européia, o número de pessoas
nossos tempos; o canto gregoriano, atribuído ao papa alfabetizadas era muito pequeno e por este motivo a Igreja
são Gregório Magno (século VII); o livro, em sua Católica usava imagens como recurso para a sua doutrina-
forma atual, ou o codex que substituiu o volumen ou ção. Na parte interna da cúpula do Batistério de Florença,
o rolo; as obras de Aristóteles que foram traduzidas onde Dante foi batizado, encontram-se ainda hoje as mais
do grego, para o árabe e o latim, possibilitando o antigas histórias bíblicas que um fiel precisava saber e,
florescimento da filosofia árabe; o teatro, muito cul- assim, garantir o seu ingresso no domínio do sagrado. A
tivado na Idade Média, tomou aspectos especiais, visualidade da obra alfabetiza-nos em alguma coisa. Às
mediante a liturgia católica de uma encenação pública vezes a forma é literal. Em outras, é necessário decifrar
da Bíblia, especialmente dos Evangelhos. seus códigos e símbolos. (MOURA, 2000).
A história, sob uma ótica masculina de como A reprodução de iluminuras, dos séculos XIII ao
deveria ser o comportamento feminino, é retratada XVI, retratou, em grande parte, atividades das mu-
por Duby da seguinte forma: “[…] Não se preocu- lheres como guerreiras, defensoras de seus castelos,
pavam em descrever o que existia, tiravam da ex- construtoras de catedrais, mineiras, musicistas, cam-
periência cotidiana, e sem se proibirem de retificá- ponesas, fiandeiras, caçadoras, pintoras etc. Tânia
la, elementos que proporcionassem uma lição Navarro Swain, em seu livro De deusa a bruxa:
moral. Afirmando o que se devia saber ou acreditar, uma história de silêncio, aborda a existência de uma
buscavam impor um conjunto de imagens exempla- coleção de iluminuras que retratam uma série de
res” (DUBY, 1995, p. 11). atividades femininas, além das já citadas anterior-
Essa visão não se estendia apenas às mulheres mente, na historiografia tradicional medieval.
de classe baixa, mas também àquelas “bem-nasci- A seguir, estão relacionadas algumas obras de
das”. Estas eram uma ameaça à ordem estabelecida arte segundo a leitura e o olhar da época medieval
e por isso deviam ser vigiadas e subjugadas sobre o feminino, em uma breve leitura:
(DUBY, 1995, p. 88). As mulheres da aristocracia
também se ocupavam dos trabalhos agrícolas, po- 1. Eva
rém no aspecto organizativo, quando os maridos se
ausentam, principalmente em caso de guerra. Mas Lucas Cranach, o Velho, Adão e Eva (1531).
fossem aristocratas ou pobres, havia uma função Staatliche Museen, Berlim. (http://www.wga.hu/).
em comum entre elas: fiavam e teciam.
A mulher ficou limitada a ser identificada,
tipologicamente, como:
Nessa imagem de Lucas Cranach, o velho, percebe- A Virgem é considerada a segunda Eva,
mos Eva (note o rosto angelical), oferecendo a maçã redimindo o pecado da primeira. A maçã é um sím-
a Adão. Por sobre o ombro direito dela está a serpente bolo em comum entre ambas as pinturas: na ima-
(geralmente retratada próxima à mulher). Por entre os gem de Adão e Eva num sentido negativo da maçã,
arbustos, aparecem ainda um cervo e um leão. A pre- o do pecado, e nesta de Maria, a Virgem, num sen-
sença destes dois animais na cena representa a harmo- tido positivo, o da salvação. Nessa imagem de
nia existente no Éden, que possibilitava o convívio Lucas Cranach, o velho, Cristo, ainda menino, se-
pacífico entre um predador – o leão – e sua presa – o gura em suas mãos um pedaço de pão (a redenção)
cervo. O cervo, que se encontra próximo a Adão, é e uma maçã (o pecado original). A maçã possuía
um portador da luz, inimigo da serpente e representa um sentido ambíguo durante a Idade Média. De
Cristo (Cristo, por sua vez, é o segundo Adão, que
um lado era identificada como causadora do peca-
vem ao mundo redimir as faltas do primeiro). O leão
do original. “Porém, também pode ter um signifi-
simboliza a encarnação do poder. É o animal mais re-
cado positivo, pois desde o século XI a maçã nas
presentado na heráldica por estar associado ao valor
mãos do menino Jesus e na de Maria significa uma
e à força. Por sua vez, na Primeira Epístola de Pedro,
referência à absolvição do pecado e à vida eterna”
o leão aparece como símbolo do diabo: “Vosso adver-
(LURKER, 1997, p. 405).
sário, o diabo, vos rodeia como um predador a rugir,
procurando a quem devorar” (A Bíblia de Jerusalém,
1995, 1Pd 5.8, p. 2276). 3. Bruxas
2. Maria, a Virgem
bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável criaturas fantásticas, detalhes em capitéis de colunas
nas mulheres. ou em margens de ilustrações). Os artistas tinham
Albrecht Durer. The Four Witches (1497). uma predisposição a expressar o erotismo em suas
(http://www.wga.hu/). obras, mas por causa do controle exercido pela Igre-
ja Católica, detinham-se a expressá-la no mesmo
4. Nudez local dedicado à nudez: o Inferno. Na pintura de
Luca Signorelli “Os danados”, podemos notar uma
nudez carregada de erotismo e sensualidade.
Luca Signorelli - The Damned (Inferno ou local
dos danados) (1499-1502). (http://www.wga.hu/).
Conclusão
Referências bibliográficas
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Cabral e Antonio de Pádua Danesi. 2. ed. São Paulo: SWAIN, Tania Navarro. De deusa à bruxa: uma história de
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