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Aprendendo com o mal

A Parashat desta semana, Vayishlach, começa com a volta de


Yaacov Avinu depois de mais de 30 anos longe de casa, dos
quais 20 anos foram passados na casa de seu tio Lavan,
trabalhando para ele. Como o principal motivo da viagem de
Yaacov havia sido para fugir da fúria de seu irmão Essav, que
queria matá-lo, a primeira providência de Yaacov foi enviar
mensagens apaziguadoras para seu irmão, na tentativa de
promover um reencontro amigável. Ele começou com a seguinte
mensagem: "Com Lavan eu vivi, e permaneci até agora" (Bereshit
32:5).

Rashi (França, 1040 - 1105) explica que as palavras de Yaacov


tinham um duplo sentido, pois a palavra "vivi" em hebraico é
"‫"גרתי‬, que de maneira rearranjada forma a palavra "‫"תריג‬,
equivalente ao valor númerico 613, o número de Mitzvót da Torá.
De acordo com Rashi, Yaacov estava dizendo para seu irmão
Essav: "Apesar de ter passado tanto tempo com Lavan, uma
pessoa completamente desonesta e trapaceira, mesmo assim eu
cumpri as 613 Mitzvót da Torá e não aprendi com os maus atos
dele".

Porém, esta explicação do Rashi é difícil de ser entendida, pois


esta não parece ser uma mensagem de conciliação. Ao contrário,
aparentemente a intenção de Yaacov era intimidar seu irmão
Essav, mostrando que ele era uma pessoa íntegra e, por isso,
certamente D'us o protegeria em um possível confronto. Portanto,
se o propósito era uma tentativa de apaziguar seu irmão, como
entender as palavras aparentemente intimidadoras de Yaacov?
O Rav Isroel Meir HaCohen zt"l (Bielorússia, 1838 - Polônia,
1933), mais conhecido como Chafetz Chaim, explica as palavras
de Yaacov de uma maneira interessante. Ele afirma que Yaacov
não estava atacando Essav com esta afirmação, ao contrário,
estava tranquilizando-o. Quando Yaacov disse que cumpriu as
Mitzvót e não havia aprendido com os atos de Lavan, ele estava
fazendo uma grande autocrítica, e por isso estava comunicando a
Essav que não havia nada a temer.

Mas qual foi exatamente a autocrítica de Yaacov? Nossos sábios


explicam que Lavan era uma pessoa extremamente ágil em
cometer maldades e trapaças. Quando permitiu que suas filhas
se casassem com Yaacov, cobrou muito caro pelo dote, fazendo
com que Yaacov tivesse que trabalhar 7 anos por cada filha, um
tempo absurdo. Além disso, ele trocou as filhas no momento do
casamento, não cumprindo sua palavra. E para completar, Lavan
trocava as condições do salário de Yaacov a todo instante,
sempre buscando formas de levar vantagem. Yaacov estava
dizendo para Essav que, apesar de ter cumprido as 613 Mitzvót
durante todos aqueles anos, ele não havia feito com o mesmo
fervor que Lavan cometia as suas transgressões. Yaacov estava
reconhecendo que não havia aprendido a ter agilidade nos seus
bons atos no mesmo nível que Lavan tinha nos seus maus atos.

Desta explicação do Chafetz Chaim aprendemos uma incrível


lição: nosso cumprimento de bons atos é julgado em comparação
com a forma como os Reshaim (malvados) cometem suas
transgressões. Se os Reshaim fazem seus maus atos com mais
entusiasmo do que nós cumprimos nossos bons atos, isto se
transforma em uma grande acusação espiritual contra nós. Por
isso temos que tomar muito cuidado para sempre fazermos as
Mitzvót com agilidade, alegria e fervor, pois é assim que
infelizmente os Rashaim cometem as suas inúmeras
transgressões.

Este conceito também é trazido pela Torá em outro episódio que


teve grande importância para o povo judeu. Quando Bilaam, o
grande profeta dos outros povos, partiu para amaldiçoar o povo
judeu, a Torá descreve que ele se levantou cedo de manhã,
utilizando a linguagem "Vaiakam" (se levantou). O Midrash (parte
da Torá Oral) nos descreve que quando D'us viu esta agilidade
de Bilaam para fazer a enorme transgressão de amaldiçoar um
povo inteiro, Ele exclamou: "Seu Rashá (malvado)! Avraham, o
patriarca deles, já te superou!", pois está escrito (em relação ao
episódio do sacrifício de Ytzchak): "E (Avraham) madrugou
("Vaiashkem")" (Bamidbar 22:21). Apesar de a linguagem
"Vaiakam", que está escrita em relação a Bilaam, se referir a
acordar cedo, a linguagem "Vaiashkem", que está escrita em
relação a Avraham, se refere a acordar ainda mais cedo.
Portanto, D'us estava informando a Bilaam que Avraham, em sua
vontade de cumprir a vontade de D'us e sacrificar seu filho, havia
se levantado mais cedo do que Bilaam se levantou quando tentou
amaldiçoar o povo judeu. Mas que mensagem o Midrash está nos
ensinando? Na prática o que importa qual dos dois acordou mais
cedo?

Explica o Rav Yehonasan Gefen que a grande força de maldição


de Bilaam era mostrar para D'us falhas nas pessoas ou povos, e
com isso despertar um Julgamento Celestial mais rigoroso sobre
seus inimigos. Foi justamente isto que ele tentou fazer contra o
povo judeu. Bilaam queria retratar o povo judeu de uma maneira
negativa ao mostrar que ele fazia seus atos de maldade com
muito mais agilidade e fervor do que o povo judeu cumpria suas
Mitzvót. Isto realmente teria se transformado em uma grande
acusação espiritual contra o povo judeu e teria trazido
consequências trágicas. Porém, D'us respondeu para Bilaam que
o patriarca do povo judeu, Avraham, já havia demonstrado um
nível ainda maior de agilidade e fervor no cumprimento das
Mitzvót do que Bilaam havia demonstrado quando cometeu suas
maldades. O que protegeu o povo judeu da enorme acusação
espiritual que surgiria naquele momento foi que os descendentes
de Avraham herdaram dele esta característica de agilidade nas
Mitzvót, e por isso possuíam suficientes méritos para vencer a
acusação de Bilaam.

No "Shemá Israel", que nós repetimos duas vezes todos os dias,


dizemos: "E amarás a Hashem, teu D'us, com todo teu coração"
(Devarim 6:5). A palavra "coração" está escrita de uma maneira
diferente, "‫"לבבך‬, e não como seria esperado, "‫"לבך‬. O Talmud
(Brachót 54a) aprende do fato de a letra "‫ "ב‬estar escrita duas
vezes que devemos amar a D'us com nossos dois "Yetzer", com
o nosso "Yetzer Hatov" (boa inclinação) e também com o nosso
"Yetzer Hará" (má inclinação). Mas como podemos utilizar nossa
má inclinação para servir a D'us?

Uma das maneiras é observando a agilidade e fervor que


utilizamos para ir atrás dos nossos desejos e tentar aplicar esta
mesma agilidade em relação ao nosso Yetzer Hatov. Para
preencher nosso desejo de comer algo ou de obter algum outro
prazer material nós estamos dispostos a incríveis esforços e
sacrifícios. Se aprendermos com a força da nossa má inclinação,
poderemos utilizá-la como modelo e canalizá-la para o nosso
lado espiritual. Atualmente as pessoas dedicam incontáveis horas
para satisfazer seus desejos por dinheiro e honra. Muitos chegam
a passar noites sem dormir para atingir seus objetivos. Algumas
empresas mantêm turnos de madrugada para aqueles que
passam a noite trabalhando no escritório. Por que não utilizar
este mesmo potencial para manter a quantidade de horas de
estudo de Torá diária que definimos para nós, ao invés de
estarmos sempre procurando desculpas para justificar a nossa
"falta de tempo" com os nossos compromissos espirituais?

Não é necessário nem mesmo procurar nos atos dos Reshaim


inspiração para o nosso crescimento espiritual. Se procurarmos
em nossos próprios atos, certamente encontraremos áreas nas
quais sentimos mais entusiasmo e fervor do que no nosso
Serviço Divino. Pode ser com comida, com trabalho, com esporte
ou qualquer outra área. Então temos que tentar internalizar que
racionalmente o cumprimento das Mitzvót certamente traz muito
mais satisfação do que qualquer outro prazer material, e com isso
poderemos tentar atingir em nossa espiritualidade a mesma
alegria e entusiasmo. Pois se os Reshaim podem fazer muito,
mesmo indo contra D'us, imagine o verdadeiro potencial dos que
caminham junto com Ele.

Rav Efraim Birbojm

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