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A importância do elemento biográfico na compreensão da obra filosófica


A definição da filosofia como busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e
vice-versa tem extensas aplicações. Desde logo, é um apelo a que procuremos dar coerência aos
nossos conhecimentos mais elevados de ordem científica, histórica ou filosófica, estendendo
essa coerência às atitudes da nossa vida real. O comum é não ter em conta as ideias “superiores”
como apoio para as decisões da vida concreta, o que mostra que estas ideias são apenas parte de
um fingimento, usadas quando der jeito e apagadas quando não interessa. Nunca foi feita uma
história da idoneidade da classe científica e intelectual, mas olhando para o estudo de Paul
Johnson, vertido no livro Os Intelectuais, percebemos que a situação é assustadora, já que os
mentores da idade moderna eram sujeitos de uma mendacidade extrema ou mesmo
personalidades verdadeiramente perturbadas.
Contudo, o habitual é apelar-se, nestas situações a que se analise apenas as ideias e não a vida
das pessoas. Não é propriamente uma acusação de utilização do argumento ad hominem, dado
que isso seria uma tentativa de desvalorizar as ideias depois de atacar a reputação da pessoa,
mas algo disto ainda é evocado. O que está implícito é que a obra é independente do seu autor.
Isto é verdade no caso da obra literária, que quando terminada ganha uma espécie de
independência ontológica e cujo valor não é alterado por aquilo que o autor fez antes ou depois.
Mesmo que existam problemas posteriores em termos de edição para fazer a versão definitiva
ou, no caso de uma peça de música, exista sempre a interpretaçãos do maestro ou dos
executantes, há sempre uma estrutura que permanece e que pode ser acompanhada por públicos
de gerações consecutivas. Além disso, as obras de arte nada afirmam categoricamente, tudo é de
natureza simbólica, podendo ser interpretado em múltiplas direcções. Mesmo que um autor
queira mostrar algum elemento histórico ou científico como verídico, ele pode ser cobrado
nestas dimensões, mas isso não é uma cobrança artística, que é independente. Então, o criador
da obra de arte não responde moralmente pela sua obra enquanto peça artística.
Mas no caso das obras filosóficas já não é assim. Desde logo, nem podemos falar de obra no
mesmo sentido que o utilizado na literatura ou na arte, que é um livro, um quadro, uma peça. O
livro de filosofia não pode ser considerado obra no mesmo sentido por duas razões. Em primeiro
lugar, porque nunca é uma obra acabada. Mesmo que se trate da última coisa que o sujeito fez,
aquilo não é um ponto final definitivo, e logo outros poderão retomar as investigações. Platão
ficou a vida toda retirando conclusões da sua teoria das ideias, mas ainda deixou o seu famoso
ensinamento oral, onde estariam as partes mais importantes do seu sistema, e após a sua morte
os seus discípulos continuaram a trabalhar sobre este material. Não se pode dizer que os
diálogos de Platão sejam formas acabadas e alguns parecem terminar propositadamente de
forma inconclusiva. Nenhuma investigação sobre qualquer facto da realidade pode alguma vez
terminar, e mesmo que seja enunciada uma teoria, há sempre novos dados que a podem
confirma-la, relativiza-la ou impugna-la. Então, as obras filosóficas não são formas acabadas
como as obras literárias, são apenas etapas de uma investigação e de uma vida em busca de
conhecimento. Uma obra filosófica pode iniciar uma investigação ou continuá-la, mas não vai
termina-la e outras se seguirão, ainda que se passe muito tempo. Já a obra de um artista não é
continuada por outras (obra entendida no sentido estrito, não como um conjunto de esforços
numa certa direcção, que obviamente 347
podem ser retomados por outros). Mesmo a famosa sinfonia incompleta de Schuberth teve
várias tentativas de fechamento, para se concluir que a forma inacabada é a mais perfeita. Em
ciência ainda é mais patente que não pode haver obra acabada. Os estudantes já se inserem
numa longa linha de esforços e raramente conhecem as obras originais.
Depois, a “obra” filosófica não existe para ser contemplada em si, como acontece com os
produtos artísticos, é sempre algo que remete para uma realidade externa. E não é apenas uma
impressão pessoal, porque aquilo que o cientista ou o filósofo dizem tem sempre a pretensão de
validade universal, tal como todas as propostas políticas têm pretensões universais, como
salientou Eric Weil. Então, não apenas os autores não podem se colocar fora do alcance delas
como já estão assumindo, implicitamente ou explicitamente, a posição de que estão tentando
convencer os outros daquelas coisas. Isto é próprio da natureza do pensar – pensar é pensar que
estamos certos –, que é um afirmar de que aquilo que se diz é a coisa mais certa. E mesmo que o
pensamento seja um confronto de hipóteses, é também pensar que fazer esse processo é a coisa
mais certa, não só para si mas para todos os outros, porque se soubéssemos de alguém que já
sabe da resposta, então íamos atrás dessa pessoa.
Para perceber o sentido dos esforços de um filósofo, uma informação que ele deixou de
passagem pode ser tão importante como os livros que ele escreveu. Cioran escreveu livros muito
depressivos, que parecem que tentam acabar com qualquer esperança de viver. Numa entrevista
ele disse: “Quem me compreende sabe que eu sou um palhaço”. Então, o que ele faz é assumir
um traço da mentalidade romena, que é falar em nome do diabo, como se fosse um exorcismo.
Mas claro que nem tudo o que consta da biografia de um filósofo importa para a interpretação
das suas obras. Por vezes, ele está seguro de ter alcançado algumas certezas teoréticas mas não
consegue acompanhar ao mesmo nível na vida pessoal, como no caso de Scheler, que escreveu
obras importantes de filosofia católica mas não conseguia deixar de ser mulherengo. Havia uma
tensão na sua vida pessoal, de que ele estava consciente, mas que não invalidava a sua obras,
mas noutros casos pode invalidar ou relativizar ou tornar a interpretação mais complexa.
O caso de Rousseau é bem diferente do de Scheler. Ele dizia que a sociedade se origina de um
contrato social, mas um contrato pressupõe já a existência da sociedade. Então, o contrato
social é apenas uma figura de linguagem, mas isto não está claro para Rousseau. No exame da
vida dele vemos que ele desconhecia bastante a sua própria alma apesar de escrever muito sobre
si mesmo. Ele dizia que era incompreendido, que era muito bondoso, mas ao mesmo tempo
cometeu uma série de maldades e abandonou os próprios filhos. Estas contradições na sua vida
pessoal, que ele se impedia de ver, reflectiam-se na impossibilidade de ele ver a diferença entre
uma figura de linguagem e uma descrição de realidade. O caso de Rousseau é tal que o conteúdo
do que ele dizia não tinha autonomia filosófica suficiente, é mais um sintoma que pode ser
julgado a partir de uma compreensão psicológica ou psicopatológica.
Existe sempre algum resíduo psicológico nas filosofias, pelo que temos que perguntar o
significado deste resíduo para o filósofo no conjunto da sua vida. O filósofo pode dizer certas
coisas porque acredita nelas ou porque quer que nós acreditemos. Leo Strauss estudou este
fenómeno da camuflagem, mas não podemos usar esta abordagem como regra geral
interpretativa porque não é um elemento que explique o sentido da obra inteira para todos os
filósofos. Em Descartes a camuflagem é um elemento essencial [244], tal como em Galileu. Na
ciência moderna é assombroso o número de ideias conscientemente falsas que foram
introduzidas, e que se impregnaram por toda a humanidade nos últimos séculos, já se 348
transformando em reacções automatizadas. São coisas que se tornaram traços de personalidade
e são encaradas como se fizessem parte da estrutura do mundo, pelo que nem sequer é possível
compreender a sua contestação num primeiro momento, e quando as pessoas entenderem logo
têm uma reacção automática de rejeição, de desprezo, de gozação, que reflecte o desejo de não
pensar naquilo.
No caso do sistema heliocêntrico, este foi imposto através da propaganda, do apelo a emoções e
a preconceitos de todo o tipo, vindo junto com a ascensão de uma nova classe de intelectuais
seculares, que já falavam para um público duplo, composto não apenas pelos seus pares mas de
leigos quase sempre ignorantes. Isto associou-se uma ideia de progresso e à ideia de uma
sociedade mais livre e pluralista. Já aqui estavam presentes os elementos básicos da
mentalidade revolucionária: o presente e o passado eram julgados em função de um futuro
hipotético. Quando chega Kant, ele dizia que já não podemos ter nenhuma certeza em relação ao
mundo exterior e, assim, converteu as ciências num processo meramente operacional. Este giro
era apelidado por Kant justamente como “revolução copernicana”, como que fazendo
homenagem ao pai do heliocentrismo. Apesar de Husserl, com a fenomenologia, ter tentado
remediar um pouco o estado de coisas e conciliar o mundo das ciências com o mundo da
experiência real imediata, o trabalho ficou a meio, e do dualismo kantiano Husserl passou para
uma interpretação idealista da realidade, em que a consciência é o fenómeno central e qualquer
objecto é apenas um objecto de consciência. Não apenas o fosso entre conhecimento e realidade
não foi fechado como o que veio depois – desconstrucionismo, estruturalismo, pós-
modernidade, etc. – apenas agravou a situação. Na estética da recepção, por exemplo,
considera-se que a obra é criada pelo leitor, como se o autor não tivesse também a sua própria
interpretação. Não existe uma solução óbvia para este estado de coisas e não podemos achar que
se voltarmos a dar ênfase ao sistema geocêntrico os problemas serão resolvidos magicamente.
Para já devemos apenas ter noção do processo, das fraudes científicas, da falsificação de
biografias (Galileu, Newton, etc.), para chegar à conclusão óbvia de que a cultura da
modernidade é uma farsa. α95

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