Você está na página 1de 14
Um Olhart Transdisciplinar na. Psicologia: Biase eh stls lake Monique Augras* Agradeco 0 convite do CRP para abrir aqui os encontros sobre transdisciplinaridade. Quanto mais que, em regra geral, esse tipo de atitude é raro em nosso meio. Muitas vezes se ouve dizer, esté muito na moda, que transdisciplinaridade € bacana, é lindissima a pluralidade de enfoques, etc. Mas na hora que se quer implementar em nivel concreto, cada um protesta: mas isso aquilo é meu! Disso ew entendo! Dé licenga? Ela se vio as boas intengdes de implantar a transdisciplinaridade. Parece que cada especialista tem de estar encerrado em seu escaninho, precisa dele, ¢ nao deixa ninguém chegar por perto. Quantas vez me perguntam “o que eu sou”! Outro dia, estava iniciando um curso }4 na PUC, sobre “Imagindrio Social Brasileiro” ¢ um aluno me perguntou, afinal 0 que vocé €? Costumo responder: “Eu sou uma cientista social com formagio de base em Psicologia”. Por mais que a gente transite em varias areas, actedito que a formagio basica permanece como referéncia. E um pouco como a socializagio primiria da crianga, jamais se apaga. Sou francesa com perto de quarenta anos de Bras I. Ha muito tempo, durante alguns anos tive a fantasia de ter virado brasileira. Mas acabei me dando conta de que nao era bem assim, sobretudo quando tive filhos e meu filhos sao filhos de brasileiro com francesa, quer dizer que também sio um pouco diferentes de criangas puramente brasileiras. A infincia molda, marca, estrutura um. tipo especifico de cédigo do relacionamento com 0 mundo, que fica registrado para sempre. A minha socializacao priméria nao é brasileira, entio jamais serei brasileira. Aliés, hoje eu acho até uma vantagem, eu sou marginal de duas culturas, quer dizer, ha coisas da minha cultura de origem que eu estranho, e coisas daqui que eu estranho também. E isto é uma maneira muito boa de a gente comegar a pesquisar. Eatio, do mesmo modo, a minha formagio de base em Psicologia me da uma maneira de me relacionar, uma escuta. Acho que esta é uma das marcas da Psicologia, a escuta. F, ao pormos a transdisciplinaridade BSEeesenIRS em pritica, é claro que nem poderemos deixar essa especiticidade de lado Penso, aliés, quando a gente fala em transdisciplinaridade ¢ exatamente uma coisa de mao dupla, de mao miiltipla. Quer dizer, nao € que a gente vai se passar para um outro campo € deixar 0 campo antigo. Isso é algo que tento transmitir aos meus alunos ¢ aos pesquisadores que estio comigo. Para mim, a transdisciplinaridade é basicamente um exercicio de didlogo. Um dialogo para o qual, conforme a trajetéria de cada um, a s idéias vao circulando. gente vai se abrindo mais, ora se abrindo menos, ¢ Nao € uma posicio trangiiila, facil e garantida, porque estamos sempre descobrindo coisas que nao estio dentro da nossa maneira habitual de pensar. Mas, em retorno, estamos questionando os outros. Este € um dos aspectos do exercicio da tra sdisciplinaridade que cu colocaria em primeiro lugar. Permitam que cu dé exemplos do meu percurso nesse sentido, para mostrar como € possivel transitar de uma tea para a outra. FE, mais facil desctever como a gente se vai construindo como pesquisador na intersegao de varias disciplinas, do que falar em nivel exclusivamente tedrico.... Quando eu vim para cé, foi devido a um convite de Mira y Lopes ¢ trabalhei no ISOP até o seu fechamento. A primeira pesquisa que i realizei, nos anos 1966/67, foi uma tentativa de estabelecer padrdes brasileitos para o teste de Rorschach, que até entio nao existiam. Como se pode ver, logo ao chegar me dera conta que nao fazia sentido aplicar normas européias ou norte-americanas para a avaliacio psicologica de brasileiros. Ou seja, a diferenca cultural foi, de cara, © primeiro motor de minhas pesquisas. Vinte anos depois, j4 havia realizado varios trabalhos sobre cultura brasileira, em nivel de psicologia social e nao mais clinico, e tive a oportunidade, acompanhando as investigagdes de orientandos meus, de fazer pesquisas no candomblé ¢ gostei muito. Publiquei um livro sobre a identidade mitica no candomblé, foi bastante bem recebido pelo pessoal da Antropologia, ¢ muito bem recebido, felizmente, pelo pessoal dos terreiros também, mas quando o livro foi publicado me dei conta que estava mexendo com um monte de conceitos que na verdade nio dominava. Nao tenho uma cabeca tedrica. Sempre comego pela pesquisa. Sou intrinsecamente pesquisadora, perguntando-me porque que as coisas iO assim e nao 10 assado. JA que as coisas funcionam de uma maneira, poderiam funcionar de outras maneiras, é isso que me interessa. Primeiro cu faco. Depois vou para a teoria para entender 0 que estou fazendo. Até onde eu posso ir? Que linguagem é essa que eu estou usando? Foi isso que aconteccu em relagio ao candomblé. Me dei conta que tinha mexido com muitos conceitos diferentes de identidade naquele livro. Nao tinha parado para perguntar em nenhum lugar o que eu entendia por identidade, isso é muito feio nao €? Quem trabalha em pés-graduacio sabe que tem compromissos epistemoldgicos, mas cu nao tinha parado antes para considerar em que bases tedricas estaria me apoiando. Havia levantado varias coisas sobre a construgao da pessoa dentro do candomblé, era © que cu estava estudando, mas cu nao sabia o que as teorias da Antropologia diziam a respeito. Ai passei dois anos metendo a cara na Antropologia, ou melhor dizendo, estudando as teori s que dizem respeito & construgio da pessoa, ai aprendi montes de coisas novas, ajudada pelos antropélogos que havia conhecido nos congressos onde a publicagio do livro me valera convites. Como disse, ja havia orientado trabalhos de pés-graduagio na PUC € no ISOP, que se situavam em um campo que nio era exatamente © campo tradicional da Psicologia. E ja se colocava uma questio. Na hora da defesa da tese ou da dissertagio alguém vai dizer: — Mas isso nao € Psicologia. Nessas alturas cu j4 estava com muita quilometragem, ¢ nto estava muito preocupada em dizer qual era o rétulo que estava pregado na minha testa. Mas para o pessoal novo que esta entrando na carreira académia, fica meio complicado. Ai juntei 6 que havia aprendido com os antropélogos, ¢ escrevi um artigo intitulado “A Psi cologia da Cultura”, publicado em 1985 pela revista da UnB, que foi, devo dizer, muito bem recebido pelos psicdlogos. E. criei no ISOP uma linha de pesquisa com o mesmo nome. Na verdade, muito mais do que a criacio de uma Area nova, foi a reivindicacio de um nome que pudesse legitimar 0 que o pessoal que estava comigo estava fazendo. Quando alguém dizia: Mas isso nfo é Psicologia! A gente respondia: é Psicologia da Cultura! Fo outro ficava quieto porque nao sabia o que que era. Lu

Você também pode gostar