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Dossiê

Teoria Crítica, Psicanálise e Política na América Latina


Diálogos entre México e Brasil

Leomir Hilário1
UFS

Teoria crítica e psicanálise andam juntas praticamente desde o início: no mesmo


edifício em que funcionava o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt também, a partir
de 1929, o Instituto de Psicanálise de Frankfurt, dirigido por Karl Landauer e Heinrich
Meng, realizava suas atividades. Muitos livros e artigos já foram publicados acerca da
viabilidade e da vitalidade desta relação entre a Escola de Frankfurt e a psicanálise. Mas,
teoria crítica e psicanálise no México? Este adendo geográfico pode soar estranho ou
excêntrico. Afinal de contas, por que é importante conhecer e ler intelectuais mexicanos
que trabalham com a interface psicanálise e teoria crítica?
Embora a teoria crítica tenha surgido em Frankfurt, muito cedo os seus membros
foram todos se exilar na América, alguns deles tendo ali permanecido até o fim da vida,
como Leo Löwenthal e Herbert Marcuse, que faleceram na Califórnia. Este deslocamento
geográfico para além da Europa está inscrito no cerne da teoria crítica, portanto, não é
“forçar a barra” imaginar uma teoria crítica para além de Frankfurt. O título “Escola de
Frankfurt” municipaliza um empreendimento intelectual essencialmente transnacional,
dada sua característica fundamental de produzir um diagnóstico do presente como crítica
radical do capitalismo. Como bem sublinharam Frédéric Vandenberghe e Jorge Coelho
Soares, “Escola de Frankfurt” é um mito acadêmico, já que a teoria crítica é incompatível
com a noção de “escola” e tudo que isso denota: definição de ortodoxia, unidade de
pensamento e método, a existência de um líder em torno do qual gravitariam outros
pensadores de menor relevo etc.
Pode-se imaginar que o México não figura como país relevante na geografia do
pensamento crítico do século XX, assim como a América Latina e a periferia do

1
Professor substituto no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Doutor
em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com doutorado-sanduíche na
Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). E-mail: leomirhilario@yahoo.com.br

Clínica & Cultura v.6, n.2, 2017, pag. 38-43.


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capitalismo como um todo. A produção de novas teorias, conceitos, estudos, pesquisas


etc., parece ser somente oriunda de países como Alemanha, França, Itália, Espanha,
Inglaterra, Estados Unidos, dentre outros. Somente recentemente, com a emergência dos
chamados Estudos pós-coloniais (Post-colonial estudies), por exemplo, passou-se a
colocar a periferia como polo relevante de produção de conhecimento crítico no campo
das ciências humanas.
No entanto, é possível afirmar que o México sempre foi país com certo
protagonismo na história do pensamento crítico. Cabe lembrar que um livro clássico
como Behemoth, de Franz Neumann, foi traduzido pela editora Fondo de Cultura
Económica três meses depois de sua publicação original (obra que até hoje não tem
tradução em português). Erich Fromm viveu no México, fazendo pesquisas que geraram
o estudo chamado Sociopsicoanálisis del campesino mexicano, publicado em 1973. Por
fim, lembremos de que também Herbert Marcuse visitou o México em 1968 para dar
conferências no contexto de efervescência política estudantil. Ou seja, não é exagero
afirmar que há uma relação histórica importante entre o México e os intelectuais
provenientes da teoria crítica.
O fato de que o México tenha sido, junto com os Estados Unidos, o país que mais
recebeu imigrantes exilados pelo nazifascismo e Segunda Guerra, fez com que alguns
psicanalistas tenham passado por ele, como Marie Langer2, além do já citado Erich
Fromm, dentre outros, e se tenha produzido neste país uma psicanálise pública
preocupada com problemas políticos como a tortura, a vingança, a violência urbana,
dentre outros, sem descuidar de sua atuação clínica, como atesta a presença de instituições
de formação psicanalíticas. O objetivo deste dossiê é, por meio da publicação de artigos
escritos por intelectuais mexicanos alinhados com a teoria crítica e a psicanálise, dar

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O livro de Rubén Gallo chamado “Freud’s Mexico. Into the Wilds of Psychoanalysis” conta parte dessa
história da relação entre psicanálise e México. Bem como o livro de Martha Reynoso chamado “Historia
del psicoanálisis en México: pasado, presente y futuro”. Aliás, a história deste último livro diz muito dessa
relação: em setembro de 2011, no Museo Casa León Trotsky se reuniram vários psicanalistas que
compartilharam suas impressões sobre a história e prática da psicanálise no México. Ou seja, no México, a
psicanálise sempre foi e ainda é uma maneira de exercer uma crítica e prática social de esquerda. A
propósito, abusando um pouco da nota de rodapé, foi através de Trotsky que se deu a aproximação primeira
do ponto de vista de uma interface mais radical e produtiva entre Freud e Marx. Ele viveu em Viena de
1907 até 1914. Colaborou com a revista Pravda com Riazanov e Yoffe (que era paciente de Alfred Adler).
Não é difícil imaginar que essa proximidade tenha levado Adler a, em 1908, apresentar uma leitura sobre
as relações entre marxismo e psicanálise nas reuniões de quartas-feiras à noite. Em 1922, mais
especificamente em seu livro “Literatura e Revolução” quebrando com o consenso soviético negativo em
relação à psicanálise, Trotsky afirma que entender que há uma incompatibilidade entre marxismo e
psicanálise é muito simplista.

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maior visibilidade pública a este diálogo e enfatizar a importância da produção teórica


dita periférica para a produção de uma crítica da atualidade.
Neste sentido, o texto que abre o dossiê se chama “Reflexões sobre o marxismo
crítico no México”, do professor alemão radicado no México Stefan Josef Gandler. Ele
resgata e aprofunda o livro Marxismo Periférico, que é sua obra inaugural e demarca seu
encontro com a conjuntura histórica e intelectual mexicana. A princípio, ela foi
apresentada em 1997 como tese de doutorado no Departamento de Filosofia e História da
Universidade Johann Wolfgang Goethe, em Frankfurt. Stefan Gandler, à época, era
orientado por Alfred Schmidt e Joachim Hirsch. O primeiro, falecido em 2012, era um
reconhecido membro daquilo que se chama de “segunda geração da Escola de Frankfurt”,
tendo sido professor desta universidade durante anos e sucedido Max Horkheimer na
cadeira de Filosofia Social, obtendo o título de professor emérito. Sua obra mais
conhecida, O Conceito de Natureza em Marx, publicada em 1962 na Alemanha foi
traduzida para mais de 18 idiomas. O segundo, nascido em 1938 e ainda em vida, é
também ainda relativamente desconhecido na América Latina embora já tenha publicado,
em português, livros como Teoria Materialista do Estado, em português, e Globalización,
capital y Estado, em espanhol, mais exatamente pela Universidade Autônoma
Metropolitana do México (UNAM). O artigo debate o tema que tem sido principal objeto
de investigação de Stefan, a saber, a possibilidade de uma teoria crítica periférica,
exercida desde países que não são oriundos da Europa nem são Estados Unidos e
Inglaterra. O leitor e a leitora têm em mãos, portanto, um pequeno resumo da obra deste
intelectual.
O segundo artigo se chama “Sana locura y normalidad patológica en el
capitalismo neoliberal”, de David Pavón-Cuellar, intelectual amplamente reconhecido no
debate crítico em relação à psicanálise. Autor e organizador de livros como: Marxism and
Psychoanalysis: In or against Psychology?; From the Conscious Interior to an Exterior
Unconscious: Lacan, Discourse Analysis and Social Psychology; De la pulsión de muerte
a la represión de Estado. Marxismo y psicoanálisis ante la violencia estructural del
capitalismo; Psicanálise e Marxismo. As Violências em Tempos de Capitalismo; dentre
outros. Nesse artigo que compõe nosso dossiê, David focaliza o problema da normalidade
a partir de intelectuais como Wilhelm Reich e Erich Fromm, que sugeriram a ideia de
uma “patología da normalidade”, bem como Hannah Ardent que concebeu Eichmann

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como indivíduo normal, apesar de seus feitos condenáveis. Ao fim, problematiza a


questão da normoapatia capitalista que se exacerba na normopatia neoliberal.
O terceiro artigo, intitulado “Confrontar o capitalismo do século XXI:
contribuições de Bolívar Echeverría”, de autoria da professora Andrea Santos Baca, parte
de um diagnóstico do presente marcado pela catástrofe. No entanto, negando as
alternativas da resignação e do pessimismo, Andrea busca resgatar o potencial da crítica
marxiana para a compreensão da atualidade histórica. Em paralelo, traz também os
argumentos do intelectual mexicano Bolívar Echeverría e realiza uma leitura categorial
(sobretudo a partir da categoria de valor) de Marx como maneira adequada de entender o
capitalismo do século XXI.
O quarto artigo, “La actualidad y inactualidad del EZLN en el siglo XXI”, do
professor Joel Jair Contreras García. Filósofo, interessado em nomes como Friedrich
Nietzsche, Gilles Deleuze e Bolívar Echeverría, e em problemas como a política, o poder
e a cultura. O artigo trata do movimento social conhecido como “Exército Zapatista de
Libertação Nacional” (EZLN). Embora tenha aparecido ao mundo em primeiro de janeiro
de 1994, quando se dava por certo a vitória sem oposição do neoliberalismo, suas raízes
remontam à década de 1980 ou, segundo eles próprios, ao período anterior ao capitalismo.
Um de seus ilustres conhecidos é o “subcomandante Marcos”. O governo mexicano certa
feita afirmou que ele é, na verdade, Rafael Sebastián Vincente, professor da Universidade
Autônoma Metropolitana (UAM). Quando perguntado diretamente quem era, assim ele
respondeu: “gay em São Francisco, asiático na Europa, negro na África do Sul, judeu na
Alemanha, palestino em Israel, pacifista na Bósnia, dissidente do neoliberalismo etc.”. O
artigo foi escrito por ocasião do Seminário “El pensamento crítico frente a la hidra
capitalista”, ocorrido em maio de 2015 na Universidad de la Tierra Chiapas e no Caracol
de Oventik. Ele oferece ao público uma apresentação deste movimento, sua história, sua
potencialidade crítica e sua singular capacidade emancipatória.
O quinto artigo se chama “La cultura de la producción capitalista y su malestar:
acerca del fundamento psicoanalítico de la teoría crítica”, cujos autores são os profesores
Lissette Lazcano e Emílio Allier Montaño. Trata-se de uma reflexão rigorosa sobre o
entrelaçamento da teoria crítica com a psicanálise na formulação de uma análise radical
da cultura. Lissette Lazcano publicou, em 2014, o livro “Entre el polvo del mundo: la
irracionalidad, el pesimismo y la compasión en Max Horkheimer”, originalmente sua tese
de doutorado em Filosofia na qual ela se propôs a realizar uma apresentação da obra e do

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pensamento de Max Horkheimer a partir de três conceitos centrais de sua obra:


irracionalidade, pessimismo e compaixão. Também assina o texto seu companheiro,
Emílio Allier, doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Essex, Reino Unido, e
que trabalha com análise do discurso e ideologia, segurança e democracia no México.
Publicou, em 2013, o livro chamado “Democracy and neo-liberalism in Mexican politics
(1988-2006): a discursive approach”.
O sexto e último artigo se chama “Formação e deformação do Brasil: modelos da
tradição crítica brasileira no século XX”, de autoria de Leomir Hilário, cujo objetivo é
apresentar uma leitura panorâmica da tradição crítica brasileira enquanto uma modalidade
de teoria crítica exercida desde a periferia. Para isso, sugere a existência de dois modelos
de análise dessa tradição no século XX: o da formação e o da deformação do Brasil.
Agrupando intelectuais como Caio Prado Jr., Antonio Candido, Roberto Schwarz e
Francisco de Oliveira, propõe uma leitura histórico-conceitual desta tradição crítica
situada na periferia do capitalismo. Diante dos atuais acontecimentos do Brasil, revitalizar
a tradição crítica brasileira deve ser uma palavra de ordem para todo aquele que quer se
opor ao existente.

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