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5 tecnologias avançadas da O céu não é o limite: Milênios atrás, um gato deixou Em imagens: Vikings em
Era Napoleônica Bartolomeu de Gusmão sua marca nesta telha ataque

O cangaceiro mais bem sucedido da história

Lira Neto
Em seu aparato de guerra | Crédito: Reprodução

Eles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal, de até 80 centímetros

de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base da clavícula – a popular

“saboneteira” – da vítima. A lâmina pontiaguda cortava a carne, seccionava artérias,

perfurava o pulmão, trespassava o coração e, ao ser retirada, produzia um esguicho

espetaculoso de sangue. Era um policial ou um delator a menos na caatinga – e um

morto a mais na contabilidade do cangaço. Quando não matavam, faziam questão de

ferir, de mutilar, de deixar cicatrizes visíveis, para que as marcas da violência

servissem de exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em forma de cruz na

testa de homens, desfiguravam o rosto de mulheres com ferro quente de marcar o

gado.

Quase 80 anos após a morte do principal líder do cangaço, Virgulino Ferreira da Silva,

o Lampião, a aura de heroísmo que durante algum tempo tentou-se atribuir aos

cangaceiros cede terreno para uma interpretação menos idealizada do fenômeno.

Uma série de livros, teses e dissertações acadêmicas lançados nos últimos anos

defende que não faz sentido cultuar o mito de um Lampião idealista, um revolucionário

primitivo, insurgente contra a opressão do latifúndio e a injustiça do sertão nordestino.

Virgulino não seria um justiceiro romântico, um Robin Hood da caatinga, mas um

criminoso cruel e sanguinário, aliado de coronéis e grandes proprietários de terra.

Historiadores, antropólogos e cientistas sociais contemporâneos chegam à conclusão


nada confortável para a memória do cangaço: no Brasil rural da primeira metade do

século 20, a ação de bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente

ao dos traficantes de drogas que hoje sequestram, matam e corrompem nas grandes

metrópoles do país.

Cangaceiros e traficantes

Foram os cangaceiros que introduziram o sequestro em larga escala no Brasil. Faziam

reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes. Caso não recebessem o

resgate, torturavam e matavam as vítimas, a tiro ou punhaladas. A extorsão era outra

fonte de renda. Mandavam cartas, nas quais exigiam quantias astronômicas para não

invadir cidades, atear fogo em casas e derramar sangue inocente. Ofereciam salvo-

condutos, com os quais garantiam proteção a quem lhes desse abrigo e cobertura, os

chamados coiteiros. Sempre foram implacáveis com quem atravessava seu caminho:

estupravam, castravam, aterrorizavam. Corrompiam oficiais militares e autoridades

civis, de quem recebiam armas e munição. Um arsenal bélico sempre mais moderno e

com maior poder de fogo que aquele utilizado pelas tropas que os combatiam.

“A violência é mais perversa e explícita onde está o maior contingente de população

pobre e excluída. Antes o banditismo se dava no campo; hoje o crime organizado é

mais evidente na periferia dos centros urbanos”, afirma a antropóloga Luitgarde

Oliveira Cavalcanti Barros, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e

autora do livro A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. A

professora aponta semelhanças entre os métodos dos cangaceiros e dos traficantes:

“A maioria dos moradores das favelas de hoje não é composta por marginais. No

sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas, nos dois casos, a população
honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime de terror imposto pelos bandidos,

que ditam as regras e vivem à custa do medo coletivo”.

Além do medo, os cangaceiros exerciam fascínio entre os sertanejos. Entrar para o

cangaço representava, para um jovem da caatinga, ascensão social. Significava o

ingresso em uma comunidade de homens que se gabavam de sua audácia e coragem,

indivíduos que trocavam a modorra da vida camponesa por um cotidiano repleto de

aventuras e perigos. Era uma via de acesso ao dinheiro rápido e sujo de sangue,

conquistado a ferro e a fogo. “São evidentes as correlações de procedimentos entre

cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor, são velhos professores e

modernos discípulos”, afirma o pesquisador do tema Melquíades Pinto Paiva, autor de

Ecologia do Cangaço e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Homem e lenda

Virgulino Ferreira da Silva reinou na caatinga entre 1920 e 1938. A origem do cangaço,

porém, perde-se no tempo. Muito antes dele, desde o século 18, já existiam bandos

armados agindo no sertão, particularmente na área onde vingou o ciclo do gado no

Nordeste, território onde campeava a violência, a lei dos coronéis, a miséria e a seca.

A palavra cangaço, segundo a maioria dos autores, derivou de “canga”, peça de

madeira colocada sobre o pescoço dos bois de carga. Assim como o gado, os

bandoleiros carregavam os pertences nos ombros.

Um dos precursores do cangaço foi o lendário José Gomes, o endiabrado Cabeleira,

que aterrorizou as terras pernambucanas por volta de 1775. Outro que marcou época

foi o potiguar Jesuíno Alves de Melo Calado, o Jesuíno Brilhante (1844-1879), famoso

por distribuir entre os pobres os alimentos que saqueava dos comboios do governo.
Mas o primeiro a merecer o título de Rei do Cangaço, pela ousadia de suas ações, foi

o pernambucano Antônio Silvino (1875-1944), o Rifle de Ouro. Entre suas façanhas,

arrancou os trilhos, perseguiu engenheiros e sequestrou funcionários da Great

Western, empresa inglesa que construía ferrovias no interior da Paraíba.

Lampião sempre afirmou que entrou na vida de bandido para vingar o assassinato do

pai. José Ferreira, condutor de animais de carga e pequeno fazendeiro em Serra

Talhada (PE), foi morto em 1920 pelo sargento de polícia José Lucena, após uma

série de hostilidades entre a família Ferreira e o vizinho José Saturnino. No sertão

daquele tempo, a vingança e a honra ofendida caminhavam lado a lado. Fazer justiça

com as próprias mãos era considerado legítimo e a ausência de vingança era

entendida como sintoma de frouxidão moral. “Na minha terra,/ o cangaceiro é leal e

valente:/ jura que vai matar e mata”, diz o poema “Terra Bárbara”, do cearense Jáder

de Carvalho (1901-1985).

No mesmo ano de 1920, Virgulino Ferreira entrou para o grupo de outro cangaceiro

célebre, Sebastião Pereira e Silva, o Sinhô Pereira – segundo alguns autores, quem o

apelidou de Lampião. Como tudo na biografia do pernambucano, é controverso o

motivo do codinome. Há quem diga que o batismo se deveu ao fato de ele manejar o

rifle com tanta rapidez e destreza que os tiros sucessivos iluminavam a noite. O olho

direito, cego por decorrência de um glaucoma, agravado por um acidente com um

espinho da caatinga, não lhe prejudicou a pontaria. Outros acreditam na versão

atribuída a Sinhô Pereira, segundo a qual Virgulino teria usado o clarão de um disparo

para encontrar um cigarro que um colega havia deixado cair no chão.


O cangaço não tinha um líder de destaque desde 1914, quando Antônio Silvino foi

preso após um combate com a polícia. Só a partir de 1922, após assumir o bando de

Sinhô Pereira, Virgulino se tornaria o líder máximo dos cangaceiros. Exímio

estrategista, Lampião distinguiu-se pela valentia nas pelejas com a polícia, como em

1927, em Riacho de Sangue, durante um embate com os homens liderados pelo major

cearense Moisés Figueiredo. Os 50 homens de Lampião foram cercados por 400

policiais. O tiroteio corria solto e a vitória da polícia era iminente. Lampião ordenou o

cessar-fogo e o silêncio sepulcral de seu bando. A polícia caiu na armadilha. Avançou

e, ao chegar perto, foi recebida com fogo cerrado. Surpreendidos, os soldados

bateram em retirada.

A capacidade de despistar os perseguidores lhe valeu a fama de possuir poderes

sobrenaturais e, após escapar de inúmeras emboscadas, de ter o corpo fechado. No

mesmo mês da tocaia de Riacho de Sangue, Lampião e seu bando caíram em nova

emboscada. Um traidor ofereceu-lhes um jantar envenenado, numa casa cercada por

policiais. Quando os primeiros cangaceiros começaram a passar mal, Virgulino se deu

conta da tramóia e tentou fugir, mas viu-se acuado por um incêndio proposital na mata.

O que era para ser uma arapuca terminou por salvar a pele dos cangaceiros:

desapareceram na fumaça, como por encanto.

Mas o maior trunfo de Lampião foi o de cultivar uma grande rede de coiteiros. Isso

garantiu a longevidade de sua carreira e a extensão de seu domínio. A atuação de seu

bando estendeu-se por Alagoas, Ceará, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do

Norte e Sergipe. Lampião chegou a comandar um exército nômade de mais de 100

homens, quase sempre distribuídos em subgrupos, o que dava mobilidade e dificultava

a ação da polícia. Em 1926, em tom de desafio e zombaria, chegou a enviar uma carta
ao governador de Pernambuco, Júlio de Melo, propondo a divisão do estado em duas

partes. Júlio de Melo que se contentasse com uma. Lampião, autoproclamado

“Governador do Sertão”, mandaria na outra.

Há divergências – e discussões apaixonadas – em torno da figura histórica de

Virgulino. Ele comandava sessões de estupro coletivo ou, ao contrário, punia

indivíduos do bando que violentavam mulheres? Castrava inimigos, como faziam

outros tantos envolvidos no cangaço? Há controvérsias. “Lampião não era um

demônio nem um herói. Era um cangaceiro. Muitas das crueldades imputadas a ele

foram praticadas por indivíduos de outros bandos. Entrevistei vários ex-cangaceiros e

nenhum me confirmou histórias a respeito de estupros e castrações executadas

pessoalmente por Lampião”, diz o pesquisador Amaury Corrêa de Araújo, autor de

sete livros sobre o cangaço. ➽

Artimanhas do cangaço

As estratégias e técnicas para despistar os inimigos


lampião e os seus cangaceiros / Foto: Domínio publico

Embora seja inadequado referir-se aos cangaceiros como guerrilheiros – eles não

tinham nenhum propósito político –, é inegável que lançaram mão de táticas típicas da

guerrilha. Habituados a viver na caatinga, não eram presa fácil para a polícia,

especialmente para as unidades deslocadas das cidades com a missão de combatê-los

no sertão. Uma das maiores dificuldades de enfrentá-los era a de que preferiam ataques

rápidos e ferozes, que surpreendiam o adversário. Também não tinham qualquer

cerimônia em fugir quando se viam acuados. Houve quem confundisse isso com

covardia. Era estratégia cangaceira.

➽ Tropa de elite: Os bandos eram sempre pequenos, de no máximo 10 a 15 homens.

Isso garantia a mobilidade necessária para a realização de ataques-surpresa e para

bater em retirada em situações de perigo.

➽ Calada da noite: Em vez de se deslocar a cavalo por estradas e trilhas conhecidas

da polícia, percorriam longas distâncias a pé em meio à caatinga, de preferência à noite.


Para evitar que novas vias de acesso ao sertão fossem abertas, assassinavam

trabalhadores nas obras de rodovias e ferrovias.

➽ Os apetrechos: Todos os pertences do cangaceiro eram levados pendurados pelo

corpo. Como não se podia carregar muita bagagem, dinheiro e comida eram colocados

em potes enterrados no chão, para serem recuperados mais tarde.

➽ Raposas do deserto: Cangaceiros eram mestres em esconder rastros. Alguns

truques: usar as sandálias ao contrário nos pés. Pelas pegadas, a polícia achava que eles

iam na direção contrária (detalhe); andar em fila indiana, de costas, pisando sobre as

mesmas pegadas, apagadas com folhagens; pular sobre um lajedo, dando a impressão

de sumir no ar.

➽ Peso morto: Com exceção de sequestrados, quase nunca faziam prisioneiros em

combate, pois isso dificultaria a capacidade de se mover com rapidez. Também não

mantinham colegas feridos ou com dificuldade de locomoção.

➽ Seu mestre mandou: Para resolver discórdias internas no bando, Lampião

sempre planejava um grande ataque. Todos os membros do grupo se uniam contra o

inimigo e deixavam de lado as divergências entre si.

➽ Os infiltrados: Quem dava abrigo e esconderijo aos cangaceiros era chamado de

coiteiro e agia em troca de dinheiro, de proteção armada ou mesmo por medo. Coiteiros

que traíam a confiança eram mortos para servirem de exemplo.


➽ Rota de fuga: As principais áreas de ação do cangaço eram próximas às fronteiras

estaduais. Em caso de perseguição, eles podiam cruzá-las para ficar a salvo do ataque

da polícia local.

➽ Fogo amigo e inimigo: Durante os combates, havia uma regra fundamental: em

caso de retirada, nunca deixar armas para o inimigo; nas vitórias, apoderar-se do

arsenal dele.

➽ As narrativas de velhos cangaceiros contrapõem-se à versão publicada pelos

jornais da época, que geralmente tinham a polícia como principal fonte. Com tantas

histórias e estórias a cercar a figura de Lampião, torna-se difícil separar o homem da

lenda. “Acho que está justamente aí, nessa multiplicidade de olhares e versões, a

grande força do personagem que ele foi. É isso que nos ajuda inclusive a entender sua

dimensão como mito”, explica a historiadora francesa Élise Grunspan-Jasmin, autora

de Lampião: Senhor do Sertão (Edusp).

“Lampião VP”

Um livro lançado na França aumentou a temperatura dessa discussão. Assinado pelo

escritor Jack de Witte, Lampião VP, compara a trajetória do Rei do Cangaço com a do

traficante carioca Marcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, protagonista do livro-

reportagem Abusado, best-seller do jornalista Caco Barcelos. “O que produz a

violência das favelas? A miséria, a injustiça social, a polícia e os políticos corruptos. As

mesmas causas produzem os mesmos efeitos”, diz De Witte. O historiador e professor

titular da Unicamp Jayme Pinsky adverte: “É um tanto simplista comparar cangaceiros


e traficantes. Corre-se o risco de cometer o pecado historiográfico do anacronismo”.

Leia-se: analisar um momento histórico com base em conceitos e ideias de outro.

Já foi moeda corrente entre os especialistas interpretar o “Rei do Cangaço” como um

“bandido social”, expressão criada pelo historiador inglês Eric Hobsbawm para definir

os fora-da-lei que surgiam nas sociedades agrárias em transição para o capitalismo.

Em Bandidos (Forense Universitário), de 1975, Hobsbawn cita Lampião, Robin Hood e

Jesse James como exemplos de nobres salteadores, vingadores ousados, defensores

dos oprimidos.

A imagem revolucionária começou a se desenhar em 1935, quando a Aliança Nacional

Libertadora citou Virgulino como um de seus inspiradores políticos. A tese foi reforçada

em 1963 com o lançamento de um clássico sobre o tema, Cangaceiros e Fanáticos, no

qual o autor, Rui Facó, justifica a violência física do cangaço como uma resposta à

violência social. Na mesma época, o deputado federal Francisco Julião, representante

das Ligas Camponesas e militante político pela reforma agrária, declarava que

Lampião era “o primeiro homem do Nordeste a batalhar contra o latifúndio e a

arbitrariedade”.

“Lampião não era um revolucionário. Sua vontade não era agir sobre o mundo para lhe

impor mais justiça, mas usar o mundo em seu proveito”, afirma a também a

historiadora Grunspan-Jasmin, fazendo coro a um dos maiores especialistas do

cangaço da atualidade, Frederico Pernambucano de Mello. Pesquisador da Fundação

Joaquim Nabuco e autor de Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste

Brasileiro, Mello diz que o cangaceiro e o coronel não eram rivais. Os coronéis

ofereciam armas e proteção aos cangaceiros, que, em troca, forneciam serviço de


milícia. Dois dos maiores coiteiros de Lampião foram homens poderosos: o coronel

baiano Petronilo de Alcântara Reis e o capitão do Exército Eronildes de Carvalho, que

viria a ser governador de Alagoas. “Aprecio de preferência as classes conservadoras:

agricultores, fazendeiros, comerciantes”, disse Virgulino em uma entrevista de 1926.

Marqueteiro da caatinga

A ideia de que Lampião fosse um vingador também é contestada por Mello. Ele

argumenta que, em quase 20 anos de cangaço, Lampião nunca teria se esforçado

para se vingar de Lucena e Saturnino, o policial e o antigo vizinho responsáveis pelo

assassinato de seu pai. De acordo com um dos homens de Virgulino, Miguel Feitosa, o

Medalha, Saturnino chegara a mandar um uniforme e um corte de tecido com o

objetivo de selar a paz entre eles. Um portador teria agradecido por Lampião. O

mesmo Medalha dizia que o ex-soldado Pedro Barbosa da Cruz propôs matar Lucena

por dinheiro. “Deixe disso, essas são questões velhas”, teria respondido Lampião.

Segundo o autor de Guerreiros do Sol, os cangaceiros usavam o discurso de

vinganças pessoais e gestos de caridade como “escudos éticos” para os atos de

banditismo.

Apesar da vida árdua, quem entrava no cangaço dificilmente conseguia (ou queria)

sair dele. Havia um notório orgulho de pertencer aos bandos, revelado também na

indumentária dos cangaceiros. O excesso de adereços, os enfeites nos chapéus, os

bordados coloridos foram típicos dos momentos finais do cangaço. Lampião era um

homem bem preocupado com sua imagem pública, o que colaborou para que

permanecesse na memória nacional. O Rei do Cangaço também era o rei do

marketing pessoal. Assim como adorava aparecer em jornais e revistas, deixando-se


inclusive fotografar e até filmar, fazia de seu traje de guerreiro uma ostensiva e

vaidosa marca registrada. “Nisso, talvez apenas o cavaleiro medieval europeu ou o

samurai oriental possa rivalizar com o nosso capitão do cangaço”, escreveu

Pernambucano de Mello. ➽

Bonnie e Clyde do sertão

O amor de Maria Bonita e Lampião provocou uma revolução no cotidiano dos

cangaceiros

Maria Bonita e Lampião / Foto: Wikimedia Commons Images

Uma sertaneja amoleceu o coração de pedra do Rei do Cangaço. Foi Maria Gomes de

Oliveira, a Maria Déa, também conhecida como Maria Bonita. Separada do antigo

marido, o sapateiro José Miguel da Silva, o Zé de Neném, foi a primeira mulher a entrar

no cangaço. Antes dela, outros bandoleiros chegaram a ter mulher e filhos, mas

nenhuma esposa até então havia ousado seguir o companheiro na vida errante no meio
da caatinga. O primeiro encontro entre os dois foi em 1929, em Malhada de Caiçara

(BA), na casa dos pais de Maria, então com 17 anos e sobrinha de um coiteiro de

Virgulino. No ano seguinte, a moça largou a família e aderiu ao cangaço, para viver ao

lado do homem amado. Quando soube da notícia, o velho mestre de Lampião, Sinhô

Pereira, estranhou. Ele nunca permitira a presença de mulheres no bando. Imaginava

que elas só trariam a discórdia e o ciúme entre seus “cabras”. Mas, depois da chegada de

Maria Déa, em 1930, muitos outros cangaceiros seguiram o exemplo do chefe. Mulher

cangaceira não cozinhava, não lavava roupa e, como ninguém no cangaço possuía casa,

também não tinha outras obrigações domésticas. No acampamento, cozinhar e lavar era

tarefa reservada aos homens. Elas também só faziam amor, não faziam a guerra: à

exceção de Sila, mulher do cangaceiro Zé Sereno, não participavam dos combates – e

com Maria Bonita não foi diferente. O papel que lhes cabia era o de fazer companhia a

seus homens. Os filhos que iam nascendo eram entregues para ser criados por coiteiros.

Lampião e Maria tiveram uma filha, Expedita, nascida em 1932. Dois anos antes, aquele

que seria o primogênito do casal nascera morto, em 1930. Entre os casais, a infidelidade

era punida dentro da noção de honra da caatinga: o cangaceiro Zé Baiano matou a

mulher, Lídia, a golpes de cacete, quando descobriu que ela o traíra com o colega Bem-

Te-Vi. Outro companheiro de bando, Moita Brava, pegou a companheira Lili em amores

com o cabra Pó Corante. Assassinou-a com seis tiros à queima-roupa. A chegada das

mulheres coincidiu com o período de decadência do cangaço. Desde que passou a ter

Maria Bonita a seu lado, Lampião alterou a vida de eterno nômade por momentos cada

vez mais alongados de repouso, especialmente em Sergipe. A influência de Maria Déa

sobre o cangaceiro era visível. “Lampião mostrava-se bem mudado. Sua agressividade

se diluía nos braços de Maria Déa”, afirma o pesquisador Pernambucano de Mello. Foi

em um desses momentos de pausa e idílio no sertão sergipano que o Rei do Cangaço


acabou sendo surpreendido e morto, na Grota do Angico, em 1938, depois da batalha

contra as tropas do tenente José Bezerra. Conta-se que, quando lhe deceparam a

cabeça, a mais célebre de todas as cangaceiras estava ferida, mas ainda viva.

➽ A antropóloga Luitgarde Barros enxerga aí um outro ponto em comum com a

bandidagem atual: “Os traficantes também gostam de ostentar sua condição de

bandidos e possuem um código visual característico, composto por capuzes e

tatuagens de caveiras espalhadas pelo corpo”. A violência policial é outro aspecto que

aproxima o universo de Lampião do mundo do tráfico. Como ocorre hoje nas favelas

dominadas pelo crime organizado, a truculência dos bandoleiros sertanejos só

encontrava equivalência na brutalidade das volantes – as forças policiais cujos

soldados eram apelidados pelos cangaceiros de “macacos”. Nos tempos áureos do

cangaço, não havia grandes diferenças entre a ação de bandidos e soldados. Não

raro, eles se trajavam do mesmo modo – o que chegava a provocar confusões – e uns

se bandeavam para o lado dos outros. Cangaceiros como Clementino José Furtado, o

Quelé, abandonaram o grupo e foram cerrar fileiras em meio às volantes. O bandido

Mormaço fez o movimento contrário. Havia sido corneteiro da polícia antes de aderir a

Lampião.

Como é comum à história da maioria dos criminosos, uma morte trágica e violenta

marcou o fim dos dias de Virgulino. Traído por um de seus coiteiros de confiança,

Pedro de Cândida, que foi torturado pela polícia para denunciar o paradeiro do bando,

Lampião acabou surpreendido em seu esconderijo na Grota do Angico, Sergipe, em 28

de julho de 1938. Depois de uma batalha de apenas 15 minutos contra as tropas do

tenente José Bezerra, 11 cangaceiros tombaram no campo de batalha. Todos eles


tiveram os corpos degolados pela polícia, inclusive Lampião e Maria Bonita. Durante

mais de 30 anos, as cabeças dos dois permaneceram insepultas. Em 1969, elas ainda

estavam no museu Nina Rodrigues, na Bahia, quando foram finalmente enterradas, a

pedido de familiares do casal mais mitológico – e temido – do cangaço.

A saga de Lampião na caatinga

➽1898: Virgulino Ferreira da Silva nasce em 4 de junho, na comarca de Vila Bela,

atual Serra Talhada, Pernambuco. É o terceiro dos nove filhos de José Ferreira e

Maria Lopes.

➽1915: Começa a briga entre a família Ferreira e a do vizinho José Saturnino.

➽1920: José Ferreira é morto. Virgulino e três irmãos (Ezequiel, Levino e Antônio)

entram para o cangaço. Durante um tiroteio em Piancó (PB), ele é ferido no ombro e

na virilha: são as primeiras cicatrizes de uma série que colecionará na vida.

➽ 1922: Sinhô Pereira abandona o cangaço e Lampião assume o lugar do chefe. A

primeira grande façanha é um assalto à casa da baronesa Joana Vieira de Siqueira

Torres, em Alagoas.

➽1924: Toma um tiro no pé direito, em Serra do Catolé, município de Belmonte (PE).

➽1925: Fica cego do olho direito e passa a usar óculos para disfarçar o problema.

➽1926: Visita Padre Cícero no Ceará e recebe a patente de capitão do “batalhão

patriótico”, encarregado de combater a Coluna Prestes. Em Itacuruba (PE) é ferido à

bala na omoplata.
➽1927: Ataque do bando a Mossoró (RN). A cidade resiste. É uma das maiores

derrotas de sua carreira.

➽1928: A ação da polícia de Pernambuco faz com que atravesse o rio São Francisco

e passe a agir preferencialmente na Bahia e em Sergipe.

➽ 1929: Primeiro encontro com Maria Bonita, na fazenda do pai dela, em Malhada do

Caiçara (BA).

➽1930: Maria Bonita torna-se sua mulher e ingressa no bando. O governo da Bahia

oferece uma recompensa de 50 contos de réis para quem o entregar vivo ou morto.

Em Sergipe, é baleado no quadril.

➽1932: Nasce Expedita, sua filha com Maria Bonita.

➽ 1934: Eronildes Carvalho, capitão do Exército e coiteiro de Lampião, é nomeado

governador de Sergipe.

➽1936: O libanês Benjamin Abraão, ex-secretário de Padre Cícero, convence

Virgulino a se deixar filmar no documentário Lampeão. O filme é recolhido pelo Estado

Novo.

➽ 1938: Em 28 de julho, o bando é cercado em Angico (SE). Lampião, Maria Bonita e

nove cangaceiros são assassinados.

Saiba mais
Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Frederico Pernambucano de Mello,

2004

Lampião: Senhor do Sertão, Élise Grunspan-Jasmin, 2006

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