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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais


Departamento de Filosofia
História da Filosofia Antiga II
Prof. Daniel Nascimento

Aula 6: Deliberação e escolha deliberada na Ética a Eudemo, na Ética a Nicômaco e na


Magna Moralia

26/09/2018

1. O anúncio da investigação

Tendo sido definidos o voluntário e o involuntário, segue-se o exame da escolha deliberada,


pois parece ser mais própria à virtude e mais apta a discriminar o caráter do que as ações o
fazem. Então, a escolha deliberada, por um lado, é manifestamente voluntária; por outro, não
é o mesmo que o voluntário, porquanto o voluntário é mais abrangente, pois as crianças e os
outros animais compartilham do voluntário, mas não da escolha deliberada, e dizemos que os
atos súbitos são deliberados, mas não que são feitos por escolhas deliberadas. EN, III 4 (2),
1111b4-10.

2. Sobre a relação entre a escolha deliberada, apetite, impulso, querer e opinião

2.1 A colocação do problema na EN e na EE

Os que afirmam que a escolha deliberada é apetite, impulso, querer ou uma certa opinião não
parecem falar corretamente. EN, III 4 (2), 1111b11-12.

Uma das principais coisas que se diz acerca da escolha deliberada, e que pode parecer ser o
caso após termos investigado a escolha deliberada, é que ela é uma de duas coisas, a opinião
ou o desejo: pois vê-se que ambos a acompanham (EE, II 10, 1225b22-25).

2.2 Sobre as diferenças entre a escolha deliberada, apetite, impulso, querer e opinião

Com efeito, a escolha deliberada não é comum aos animais irracionais; apetite e impulso,
porém, o são. EN, III 4 (2), 1111b12-14.

Tampouco é querer, embora lhe seja evidentemente afim, pois não há escolha deliberada de
objetos impossíveis e, se alguém declarasse escolher deliberadamente coisas impossíveis,
pareceria ser insano, ao passo que há querer de objetos impossíveis (por exemplo: a
imortalidade). E o querer diz respeito também àquelas ações que de modo algum são realizadas
por si mesmo (por exemplo: querer que um ator ou atleta vença a competição); ninguém escolhe
por deliberação, porém, tais coisas, mas aquelas que crê engendrar por si próprio. Ademais, o
querer diz respeito sobretudo ao fim, mas a escolha deliberada concerne ao que conduz ao fim
(por exemplo: queremos estar saudáveis, mas escolhemos deliberadamente que coisas nos
tornarão saudáveis; queremos ser felizes e o declaramos, mas não é apropriado dizer que
escolhemos deliberadamente ser felizes). Em suma, pois, a escolha deliberada parece dizer
respeito àquelas coisas que estão em nosso poder. EN, III 4 (2), 1111b20-31.

Tampouco é uma opinião, pois a opinião parece ser sobre qualquer coisa, e não menos sobre
as coisas eternas e impossíveis do que sobre as que estão em nosso poder. Ademais, a opinião
se divide em falsa e verdadeira, e não em boa e má; a escolha deliberada, sobretudo nestes
últimos. Talvez, no entanto, ninguém declare que a escolha deliberada é o mesmo que a opinião
em geral. Tampouco que é o mesmo que um tipo de opinião: com efeito, é por escolher
deliberadamente coisas boas ou más que somos de uma certa qualidade, não por opinar.
Escolhemos deliberadamente obter, evitar ou algo semelhante; opinamos sobre o que é, a quem
convém ou de que modo é, mas de modo algum opinamos sobre obter ou evitar. A escolha
deliberada é louvada pelo fato de estar subordinada ao que se deve mais de que pelo fato de ser
reta; a opinião, pelo fato de ser verdadeira. Escolhemos deliberadamente sobretudo aquelas
coisas que sabemos serem boas, mas opinamos sobre as que de modo algum sabemos. Não
parecem ser os mesmos os que melhor deliberam e os que melhor opinam, pois uns, embora
opinem melhor, escolhem por vício as coisas que não devem. É irrelevante se uma opinião
precede ou acompanha a escolha deliberada, pois não investigamos este ponto, mas se é
idêntica à uma certa opinião. EN, III 4 (2), 1111b31-1112a12.

Com efeito, a escolha deliberada é acompanhada de pensamento e reflexão. Também o nome


parece aludir ao que é escolhido antes que outras coisas. EN, III 4 (2), 1112a15-18.

Portanto, se a escolha deliberada não é nenhuma destas coisas, e elas são coisas que se
encontram na alma, a escolha deliberada deve resultar da combinação de algumas delas (MM,
I 17, 1189a22-24).

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3. Sobre os objetos e o procedimento da deliberação e da escolha deliberada

De um lado, não há deliberação sobre as ciências exatas e autônomas, por exemplo: sobre
ortografia (não ficamos em dúvida sobre como um termo deve ser escrito); deliberamos, porém,
sobre as coisas que ocorrem por nós mesmos, mas que não ocorrem sempre do mesmo modo
(por exemplo: as da medicina e da arte de enriquecer, e mais sobre a navegação do que sobre
a ginástica: tanto mais quanto menor for seu estado de exatidão). Do mesmo para as restantes:
mais a respeito das artes do que das ciências; com efeito, ficamos mais em dúvida sobre elas.
Deliberar, então, diz respeito às coisas que ocorrem nas mais das vezes, mas nas quais é obscuro
como resultarão, e àquelas nas quais é indefinido como resultarão. Cercamo-nos de
conselheiros em relação aos assuntos importantes, descrentes de nós mesmos como incapazes
de discernir o que fazer. EN, III 5 (3), 1111b35-1112b11.

Ninguém delibera acerca de como se deve escrever o nome Arquicles, pois está estabelecido
como isso deve ser feito. O erro, portanto, não surge do pensamento, mas no ato de escrever.
Pois o erro não está no pensamento, e as pessoas não deliberam acerca dessas coisas. Mas onde
quer que exista indefinição acerca do que deve ser feito, ali o erro aparece (MM, I 17, 1189b18-
24).

Também não são objeto de deliberação os singulares; por exemplo, se isto é pão ou se está
cozido como deve, pois são do domínio da sensação. EN, III 5 (3), 1112b35-1113a1.

Deliberamos não sobre os fins, mas sobre as coisas que conduzem aos fins. Com efeito, nem o
médico delibera se há de curar, nem o orador se há de convencer, nem o político se há de fazer
uma boa constituição, nem ninguém mais delibera sobre o fim, mas tendo ou posto um fim,
investigam como e através de que o obterão; e, parecendo ocorrer através de vários meios,
investigam através de qual mais rápida e belamente ocorrerá; sendo produzido por um único
meio, investigam como ocorrerá através disto e este através de que meio, até chegarem à
primeira causa, que é a última na ordem de descoberta. De fato, o homem que delibera parece
investigar e analisar da maneira descrita, como uma construção geométrica (é patente que nem
toda investigação é uma deliberação, como as investigações matemáticas, mas toda deliberação
é uma investigação), e o termo último da análise é o primeiro na execução. Caso de deparem
com algo impossível, suspendem a investigação; por exemplo, se for preciso dinheiro, mas não
se é capaz de ganhá-lo; caso se revele possível, põem-se a agir. EN, III 5 (3), 1112b11-26.

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O objeto de deliberação e o objeto de escolha deliberada são o mesmo, com a ressalva que o
objeto de escolha deliberada já está determinado: com efeito, o objeto de escolha deliberada é
o que foi preferido na deliberação. EN, III 5 (3), 1113a2-5.

4. A definição da escolha deliberada

Dado que o objeto de escolha deliberada é o objeto de desejo deliberado do que está em nosso
poder, a escolha deliberada será, então, o desejo deliberativo do que está em nosso poder, pois,
julgando em função de ter deliberado, desejamos conformemente à deliberação. EN, III 5 (3),
1113a9-12.

Pois a escolha deliberada é uma escolha, mas não uma escolha sem mais, mas sim o escolher
uma coisa em preferência à outra: e isso não pode ser feito sem consideração e deliberação.
Por isso, a escolha deliberada advém da opinião deliberativa. EE, II 10, 1226b2-9.

5. A excelência na escolha deliberada

A boa deliberação sem mais é a que é correta em relação ao fim, sem mais, mas um tipo
específico de boa deliberação é a que é correta em relação a um certo fim. Se compete aos
prudentes deliberar bem, a boa deliberação é a correção relativa àquilo que é conveniente para
o fim do qual a prudência fornece uma concepção verdadeira. EN, VI 10 (9), 1142b29-33.

6. Aristóteles sobre o predicado ‘ser preferível (αἱρετώτερον) nos Tópicos

Incluem-se no domínio do acidente todos os juízos que exprimem uma qualquer comparação
extraída de atributos ocasionais, por exemplo, «se é preferível (αἱρετώτερον) optar pelo que é
nobre (καλὸν) ou pelo que é útil (συµφέρον)», «se é mais agradável a vida guiada pela virtude
ou pelo prazer», ou praticamente todas as questões deste tipo que se possam colocar, pois a
respeito de todas elas o problema está em decidir a qual delas o acidente em questão se aplica
melhor. Do que dissemos conclui-se com clareza que nada impede um acidente de se tornar
uma propriedade ocasional e relativa: por exemplo, «a posição ‘sentado’», que é um acidente,
torna-se uma propriedade se, num dado momento, apenas um único indivíduo estiver sentado;
mas se houver várias pessoas sentadas, então será uma propriedade destas em relação às que

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não estão sentadas. Ou seja, nada impede que um acidente se torne propriedade de uma coisa
em termos relativos e momentâneos. O que ele não pode é ser uma propriedade em sentido
absoluto. Top., I 5, 102b14-26.

7. Aristóteles sobre como devemos determinar o que é preferível no livro III dos Tópicos

Qual, de entre duas ou várias coisas, deve ser considerada a preferível ou a melhor, é o que
devemos analisar a partir
dos pontos que se seguem. Em primeiro lugar dê-se por estabele-
cido que não iremos analisar coisas muitos díspares, ou que apre- sentem grande discrepância
entre si (ninguém, por exemplo, tem dificuldade em afirmar se é preferível a felicidade ou a
riqueza),
mas sim coisas muito próximas, e em relação às quais é discutível
a qual delas se
deve dar a preferência, dado que não é evidente a superioridade de uma sobre a outra. A respeito
de coisas deste tipo, é óbvio que, caso se evidencie um, ou vários pontos de superioridade de
uma sobre a outra, o nosso pensamento reconhecerá como preferível aquela que for na realidade
superior. Top., III 1, 116a4-12.

Em primeiro lugar, portanto, merecerá ser escolhida uma coisa mais duradoura ou mais segura
de preferência a uma que tenha estes atributos em menor grau; (…). Top., III 1, 116a12-14.

8. Pontos de superioridade, razões para agir e o modelo de pesagem da razão prática

8.1 Thomas Scanlon e a idéia de razão para agir

Se um certo fato é uma razão, e o que esta razão recomenda, depende das circunstâncias nas
quais o agente está envolvido. O fato de que este pedaço de metal seja afiado é uma razão para
que eu não pressione minha mão contra ele, mas em circunstâncias diferentes pode ser uma
razão para que eu pressione minha mão contra ele, e em outras circunstâncias pode ainda ser
uma razão para que eu faça outra coisa, como por exemplo coloca-lo dentro de uma cesta de
piquenique caso mais tarde eu tenha razões para querer cortar um pedaço de queijo. Isso nos
sugere que ‘ser uma razão para’ é uma relação de quatro termos, R (p, x, c, a), entre um fato p,
um agente x, um conjunto de condições c, e uma ação ou atitude a. Essa relação obtém se e
somente se p é uma razão para que a pessoa x na situação c faça ou sustente a (Scanlon, 2014,
p. 31).

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8.2 Três tipos de razão propostas em Scanlon 2014

Um agente (A) possui uma razão simples para fazer uma ação (F) quando existe um fato p que
conta em favor da realização de F de tal modo que, sendo ele o caso e tudo o mais sendo igual,
a razão manda que A faça F. Por ‘tudo o mais sendo igual’ entendo um cenário onde estejam
ausentes quaisquer outras razões que falem em favor ou contra a realização ou não-realização
de F.
Um agente (A) possui uma razão suficiente para fazer uma ação (F) quando existe um fato ou
um conjunto de fatos que cria uma ou mais razões cuja força normativa prevalece sobre todas
as demais razões criadas para o agente pelos demais fatos que são o caso em c. Toda razão
suficiente é uma razão simples, mas nem toda razão simples é uma razão suficiente. Para
determinarmos que razões simples são razões suficientes devemos sistematizar a ideia de
prevalecimento entre razões.
Diremos então que num cenário onde F1 e F2 são ações mutuamente exclusivas, uma razão
(R1) que recomenda uma ação F1 prevalece sobre uma razão (R2) que recomenda uma ação
F2 quando constatamos que, dadas certas circunstâncias idênticas, R2 é suficiente para que,
sendo ela verdadeira, a razão recomende que o agente realize F2 na ausência de R1, ao passo
que R1 é suficiente para que, sendo ela verdadeira, a razão recomende que o agente realize F1
tanto na ausência quanto na presença de R2.
Um agente (A) possui uma razão conclusiva (R1) para fazer uma ação (F) quando existe um
fato p que que cria uma razão de tal força que a razão manda que A faça F independe de o que
mais seja o caso. Uma razão conclusiva torna qualquer deliberação e investigação adicional
acerca da situação normativa do agente desnecessária. Toda razão conclusiva é suficiente, mas
nem toda razão suficiente é conclusiva. Isso significa que deve ser verdade de toda razão
conclusiva que ela é a razão mais forte que o indivíduo possui na circunstância na qual ela é
conclusiva. Ao contrário das demais razões suficientes, no entanto, existe algo acerca da razão
conclusiva que dispensa o agente de sequer se inteirar acerca dos demais fatos normativamente
pertinentes de sua situação. Quando se tem uma razão conclusiva, já se sabe tudo o que se
precisa saber para decidir.

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8.3 O modelo de pesagem da razão prática (Berker 2007)

As diferentes ações que podemos realizar possuem uma variedade de aspectos, ou propriedades
que são fatos acerca desta ação, p. ex., o fato de que ela causa prazer, ou o fato de que ela seja
uma mentira. Alguns destes aspectos geram razões para que nós as façamos, e outros geram
razões para que nós não as façamos. Cada uma dessas razões, por sua vez, possui um
determinado peso, ou força, e o valor de cada ação pode ser determinado através da pesagem
das diferentes razões que pesam contra e a favor da performance de cada ação. Através desta
pesagem, nos é possível tanto descobrir que ações são melhores ou piores quanto determinar
porque elas são melhores ou piores. Pois os fatos que geram as razões são os fatos que agregam
ou desagregam valor a cada ação.

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