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O CLERO NORTENHO E AS INVASOES FRANCESAS —PATRIOTISMO E RESISTENCIA REGIONAL por Jodo Francisco Marques E flagrante o parafelismo estabelecido pelos plumitivos portugueses. coevos das invasdes francesas, entre o feito patridtico Je 1640 e 0 Jevantamento nacional oitocentista, tanto na forma por que odenominam, como no relevo dado. intervengo do clero. E,emboraa similititude dos doisacontecimentosesteja circunstancialmente longe de seajustar,asua repercussao no sentir dos naturais ecoa de maneira id&ntica, Comefeito, verifica-se queameméria colectiva, porrazdes Sbvias, conotava © que se passara de finais de 1807 ao verdo de 1811 com 0 sucedido mal volvidos eram dois séculos. Na verdade, se, no primeira caso, a dominagio estrangeira fora longa de seis dezenas Je anos ¢, na segunda, nem sequer se chegara a estabelecer com alguma solide, isso no obstara a aproximagao intentadla, Ambos so rotulados de restauracco, libertagdo. aclamagdo!. Na sua maioria, os autores, em geral a coberto do anonimato, que rubricaram muitos desses «papéis» dados & estampa de norte a sul do pais por altura da expulsdo do invasor francés, optam. Ver: FONSECA, Martinho da — Elementos bibliogrficos para a histria das gueras chamadas da Resowaedo: 1640-1668, in «Arquivo de Hist e Bibiogna, 1823-1926», intro. de Jorge Peixoto Lisboa, imprensa Nacional Casa da Maeda, 1976: 128-257; ARANHA, Brito — Nota cerca das vasses Francesas ens Portigl, Lisboa, Academia Real das Sciencas, 1909; SEPULVEDA, Chistovam Ayres de Magalies — Diciondrio Bibliografco da Guerra Peninsular, 3 vols, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1929, 165 invariavelmente por «feliz restauragio», «ploriosa aclamagdon, etestauraco da liberdade da patriaw”. De resto, as narrativas dos eventos, que constituem 0 discurso hist6rico-patridtco deste titimo sucesso, corroboram a justeza semictica dos titulos, subtinhando com frequéncia haver-se tratado da libertacio de tum jugo tiranico imposto A nago portuguesa e da restituigao ao legitimo monarca de uma soberania politica usurpada. Prova concludente, pois, a forma como fora conduzida e justificada a tuta patriética nos dois, momentos em causa denotados com cativeiro e governo apodado de tirdnico, tio incontroversa tinham sido, se nfo uma efectiva ocupagio territorial, o controle estreito da esfera administrativa e uma actividade eudente a eliminar a iudependéucia nacional. Pot isso, a weaccio antonomista desencadeada através da solidariedade dos corpos sociais, pde assentarnuma base popular extensae diversificadaeserestimulada por umagente interventor que detinha condigoes fmpares para dinamizs- -la. E, se a crenga religiosa fosse atingida pelas ideias difundidase pelos atentados sacrilegos perpretados contra pessoas, recintos e objectos, consagrados 20 culto, maior veeméncia podia ser dada A campanha libertadora, em que o clero desde o inicio se empenrou. Julgamos dever acentuar-se este dado, considerando-o como um dos factores primordiais para essa mobilizagdo quase undnime, sem limite nem tréguas ¢ a partir de 1808, dos eclesiésticos contra os executores do imperialismo napole6nico. ‘A taiz.poltico- institucional da resisténcia encontramo-ia na alianga do trono com o altar», vigente nas monarquias europeias do antigo regime, Havia, pois, ideotogicamente, necessidade se se estruturar um discurso, como de facto acontecia, capaz de justficar uma espécie de guerra santa, em redor dos referentes: religido, principe e patria. E, na Conjuntura das invas6es francesas em Portugal, veo-lo de imediato 20 compulsarmos a propaganda patriética e a documentagao oficial. Os préptios editais para a mobilizagio militar nfo se furtam a utilizar esta teia, bem como oagitar de um pendao simbélico. Tomandoum exemplo entre muitos, 1é-se no edital da Camara de Barcelos de 28.6.1808: «a cauza que vamos defenderhe nossa, ehe de Deos; porque os ini pertendiio s6 esgotar os nossos bens, mas destruir a nossa religifo que professamos; por isso 0 voluntério que se nio alistar mostra nfo «ser 2 Cf. VALENTE, Vaseo Pulido — 0 Povo en Armas: Revotta Nacional de 18081808, in «Tentar Perceber», Lisboa, Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1983, notss 3, 8, 18, 20, 57, 60,62, 78,101, 16 amigo de Deos, da Patria, nem de sin’, Se areconquista da liberdade e a reivindicagao do rei natural foram razGes suficientes para alimentar & nsia de autonomia que conduziu & restauragio de 1640, agora juntava- -se-Ihe a indignagao incontida face ao comportamento deplorével da soldadesca ¢ 20 Sbvio facciosismo das autoridades francesas na atribuiglo de cargos pilblicos. Com efeito, se as violéncias contra as populagées enfureciam os Jesados e os parentes das vitimas, sobretuco mulheres, velhos e doentes, as profanagdes cometidas € os desrespeitos ¢ atentados contra o clero ‘etam considerados acgées diabélicas, 1. Intervengio religiosa: dindmica ideolégica e importancia do piilpito O estendal de crimes © prepottneias deixados na passagem das tropas, por vezes acossadas pela fome, como também sucedia até no lado anglo-luso, era agravado por procedimentos que se anotavam de irreligiosidade e publicamente se verberavam‘, «No cons, escreveu Ft. Indeio de 8, Carlos em seu Didrio, que em todo 0 exército francez hhouvesse hum s6 Capellao: que algum dos seus chefes se confessasse; ‘que se inquirisse por elles disto, como entre nés, a respeito dos seus soldados; que fossem formados & Miss; que dessem finalmente alguma ‘demonstragdo piblica de que ero Catholicos Romanos; mas de palavra ninguém 05 excedia»*, Algumas atitudes irreverentes de Junot ¢ de seus oficias graduados eram condenadas pela opinio publica, nio bastando para contrabalangé-las a presenga nos templos em dias solenes ¢ as promessas de que asseguraria 0 respeito pela igreja. Disso os eclesisticos logo tiveram na pritica desmentidos chocantes a partir da profanacio dos templos de Santa Maria do Castelo e do convento dos capuchos de Abrantes pela soldadesca a caminho de Lisboa®. E ocrescen'e cortejo de > Ct. Didro de Fr. Ignacio de S. Cartas, a SEPULVEDA, Chrstovam Ayres ‘de Mogalhies — elfistéria Orginice ¢ Politica do Exércto Portugués, Provasm, ‘vol. XIII, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1921: 343, Aceree deste «Didsion ese, autor, ver: Hem, idem. 185-189, *”"Yers Colecgdo das Ordens do Dia do lasssimo ¢ Execelemts+mo Guilherme Carr Beresford. Anno 1810, Lisboa, Anténio Nunes dos Santos, 810+ passim, SCh oe. et 311. © Ver: NEVES, José Actirsio das — Histria Geral das nvasdes Francesa em Portugal ¢ da Restauracao deste Reino, | (ts, Le ID, Porto, Edigdes Afrontament0, 337-338. 167

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