net/publication/251067339
CITATIONS READS
2 122
2 authors, including:
SEE PROFILE
Some of the authors of this publication are also working on these related projects:
All content following this page was uploaded by Dagmar Elaine Kaiser on 01 May 2018.
RESUMO
Este artigo relata a experiência vivida com um grupo de adolescentes usuários de drogas em uma oficina de
Fanzine, no contexto laboral, em março de 2008, no setor de internação de adolescentes de um centro integrado
de atenção psicossocial de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, produzindo uma revista independente.
Geralmente estes adolescentes levam uma vida na qual a dependência química acaba por ser apenas um dos
problemas que vieram a se somar em suas vidas. A Oficina de Fanzine constituiu-se como instrumento potente
de transformação enquanto processo educativo, uma alternativa de abordagem para o trabalho da enfermagem, com
espaço de expressão de diferentes pontos de vista e percepções com discussões pelos adolescentes,
estimulando-os à utilização das noções discutidas em situações novas e problematizando a construção coletiva
de conhecimentos nessa realidade social concreta, além de contribuir para a conscientização sobre a
dependência química. A prática pedagógica serviu ainda de mediação para o exercício científico da produção de
conhecimentos acerca dos adolescentes e sua própria condição, ponto de partida para abordagens mais efetivas
no que diz respeito a uma vida que seja o mais saudável possível. O ambiente encorajador e positivo favoreceu
o potencial criador dos adolescentes na expressão de suas ideias e emoções enquanto aprendiam pela escuta
de pares e na apreciação da geração de materiais sobre seus problemas.
Palavras-chave: Adolescente. Drogas Ilícitas. Consciência. Grupos de Risco.
_______________
*Extraído da monografia de Especialização em Saúde Mental - Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
2008.
1
Enfermeira. Mestre em Educação. Professora Assistente da Escola de Enfermagem da UFRGS.E-mail: dagmar@enf.ufrgs.br
2
Enfermeira do Hospital Mãe de Deus. Especialista em Saúde Mental. E-mail: julianarsbrasil@yahoo.com.br
Como os adolescentes que usam drogas integrada, e os que têm fácil acesso às drogas(5).
compreendem a sua relação com a dependência Destacamos o importante papel que exercem
química? Quando discutem suas experiências, na formação do adolescente a família, a escola e
seus pontos de vista, e como isto influi em suas os amigos, fontes primárias de socialização que
vidas? Como é contemplada a expressão dos lhe fornecem as bases de interação para o
diferentes pontos de vista e percepções desses convívio social. Vínculos saudáveis previnem
adolescentes no trabalho da enfermagem? que o jovem acabe por ligar-se a grupos e/ou
Foi assim que surgiu a ideia de vivermos a meios de convívio facilitadores da aderência ao
Oficina de Fanzine com os adolescentes usuários consumo de drogas. Quando esses vínculos são
de drogas, promovendo um tempo e um espaço frágeis, acabam se constituindo como fatores de
para a aprendizagem, um processo ativo de risco para a instalação de desvios na estruturação
transformação recíproca, uma abordagem de de sua personalidade(6). A partir de uma
ensino e aprendizagem com novas possibilidades privação, novos suprimentos ambientais, como a
quanto à troca de experiências, uma prática droga ou o roubo, entre outros, compõem as
iluminada pela teoria, compondo uma revista fugas desse ambiente deficitário, em busca de
independente, a Revista Fanzine(3). um lugar que possa lhe oferecer o suporte para
Fanzines são publicações alternativas, com se estruturar(2,7-10). A busca pelo ambiente de
pequenas tiragens, produzidas, em geral, por convívio entre pares é comum na adolescência e
jovens integrantes de grêmios e fã-clubes(4). A não está necessariamente vinculada aos que
sua circulação é bastante frequente entre alguns vivenciam a dependência química. Um ambiente
movimentos com os quais os adolescentes em onde o adolescente consiga elaborar suas
foco se relacionam direta ou indiretamente, fragilidades fará com que ele desenvolva a sua
como, por exemplo, os grafiteiros. capacidade criativa em outros locais, aprendendo
Assim se estaria exercitando a a tolerar situações destrutivas(2).
democratização da informação através de uma É inegável que existe uma complexa relação
revista feita pelos próprios adolescentes e para entre os indivíduos e as drogas no mundo
os adolescentes em um espaço pedagógico que contemporâneo, compreendendo-se a droga
acolhe o universo de seus anseios em uma como uma resposta adaptativa, seja para os que
linguagem própria, criativa e presente em seu se envolvem no tráfico, tomado-a como um
cotidiano. contexto de inserção e acesso ao mercado de
Para a efetivação dessa proposta de trabalho, trabalho e consumo, seja para o consumidor da
a de integrar o grupo de adolescentes em uma droga, que busca na mercadoria uma resposta
Oficina de Fanzine, seria necessário um aos desgastes e à necessidade de prazer rápido e
envolvimento pessoal, o que exigiria dos de alívio para suas angústias(8).
adolescentes concentração para a expressão de A maneira como o uso de drogas é tido
suas ideias e, na produção dos materiais, socialmente reporta a inúmeros erros ao se lidar
promoveria a investigação do pensar, do agir e com este fato: a percepção contemporânea
do sentir pelos adolescentes. As combinações criminaliza algumas drogas e legaliza outras,
sobre o trabalho individual e da tarefa sem qualquer relação com o mal que essas
socializada lhes permitiria expor seus possam causar; a própria mídia comercializa
sentimentos, dúvidas e angústias, desencadeando associações do uso de drogas lícitas ao sucesso
reflexões e encorajando-os à compreensão de financeiro, ao divertimento e à aceitação de
suas próprias relações com a dependência grupos sociais(9-10).
química. A Oficina de Fanzine, espaço para o manejo
O risco de aderência ao uso de drogas está dessa realidade e intervenção, é uma alternativa
ligado a uma rede de fatores que cercam a vida para o trabalho da enfermagem em que o
do adolescente. Estão mais propensos a usar potencial criativo e as projeções se estruturam
drogas aqueles sem a adequada informação em função da presença dos adolescentes, através
sobre os efeitos do seu consumo, com saúde de uma metodologia pela qual ensinar não é
deficiente, insatisfeitos com sua qualidade de transferir conhecimento, mas sim, criar a
vida e de personalidade deficientemente possibilidade para a própria produção a partir de
A Oficina de Fanzine mostrou-se uma Foi decisiva a atitude da minha mãe para que eu
alternativa de trabalho necessária para se aceitasse ajuda e tratamento. Quando me
deflagrar a livre expressão e o diálogo entre os procurou, ela deixou claro, eu só poderia voltar
adolescentes. Percebemos quanto pensavam e para casa se aceitasse vir. Por isso estou aqui
(Juba).
como se sentiam confortáveis com a geração dos
materiais em decorrência das discussões sobre Que a Oficina de Fanzine foi fundamental
consumo e tráfico de drogas e o seu enquanto processo educativo de transformação,
envolvimento nesse processo, explorando meios ao permitir espaços de expressão de diferentes
para além dos verbais que instruem os trabalhos pontos de vista e percepções com discussões
e debates realizados. A instalação da Oficina de pelos adolescentes, está expresso na Revista
Fanzine confirma esse espaço pedagógico como Fanzine. Estimular os adolescentes à utilização
ponto de partida para abordagens mais efetivas de noções discutidas em situações novas, além
com adolescentes em busca de uma vida de favorecer a construção coletiva de
saudável. conhecimentos, promoveu entendimentos
As atividades lúdicas dos encontros necessários e legítimos de aplicabilidade pelos
permitiram o conhecimento das experiências e a adolescentes em suas vidas e no trabalho da
projeção de seus conflitos. Por vezes, seus enfermagem.
grafismos e discursos reproduziam as dimensões Ao longo dos encontros percebemos uma
afetivas de seus relacionamentos na família, nas notável mudança na forma como os adolescentes
torcidas, nas “tribos”, “ficando” e namorando, o abordam a sua condição. Inicialmente pouco
que traduz a importância desses vínculos e falavam, mas à medida que passaram a
quanto a sua privação, em função do uso de compartilhar informações, foram enriquecendo
drogas, abala seus sonhos. as discussões com o conhecimento agregado
Foi de fundamental importância as discussões gradualmente.
partirem dos próprios adolescentes, isso reforçou Rememorando a experiência vivida, os
o estímulo e a adesão às atividades, levando-os a adolescentes reagiram favoravelmente aos
identificar-se uns com os outros na medida em espaços pedagógicos propiciados. A expressão
que iam percebendo pontos em comum. com e no grupo permitiu verificar a importância
A Oficina de Fanzine permitiu conhecer desses momentos de construção coletiva como
diversos aspectos da maneira como os estratégia ímpar para o trabalho da enfermagem
adolescentes se relacionam com as drogas. A e para o entendimento, por parte dos
negação da dependência química em suas vidas é adolescentes, de como a dependência química
evidente. Em geral eles se colocam como meros influi em suas vidas.
espectadores da dependência química, não se
reconhecendo como sujeitos e afirmando terem
CONCLUSÃO
controle sobre as drogas.
Enquanto usuários de drogas, conviver Desde que nos sentimos no processo de
socialmente é discriminatório e incompreensível elaboração da Oficina de Fanzine, o cuidado na
pela sociedade, ou seja, é difícil a busca por escolha e no desenvolvimento de cada um dos
tratamento ou ajuda e as reações sociais lhes encontros foi marcado de modo a incentivar a
causam temor. participação dos adolescentes enquanto grupo e
Os adolescentes reconhecem que o uso de no grupo, oportunizando se identificarem uns
drogas produz comportamentos naturais de com os outros, compartilhando ideias e emoções,
rechaço na sociedade e na própria família e que além do aprendizado pela escuta e pela
deixar de ser usuário de drogas pode reconstruir expressão de seus anseios, uma interação salutar
laços perdidos: entre pessoas que convivem em um grupo social
Eu queria muito deixar de me drogar [...] é difícil. de pertença onde cada um é singular.
Dias antes de minha internação, fui expulso de Discutir os pontos de vista sobre dependência
casa pela minha mãe, o que piorou ainda mais a química e como isso influi na vida do
situação. Como não tinha para onde ir, fiquei na adolescente, com adolescentes, é possível e
rua. Minha avó me acolheu, mas logo comecei a significativo enquanto protagonistas desse
roubá-la, e fumando muito, fui expulso outra vez.
Cienc Cuid Saude 2010 Jan/Mar; 9(1): 161-166
Oficina de FANZINE com adolescentes usuários de drogas 165
Endereço para correspondência: Dagmar Elaine Kaiser. Rua São Manoel, 963, CEP: 90620-110, Porto Alegre,
Rio Grande do Sul.. E-mail: dagmar@enf.ufrgs.br