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Milton Santos Por uma outra globalizacado do pensamento dnico a consciéncia universal 3°EDIGAO ae EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO + SAO PAULO 2000 I InTRODUGAO GERAL 1. O mundo como fébula, como perversidade e como possibilidade ‘Vivemos num mundo confuso confusamente percebido. ‘Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicagio? De um lado, €abusivamente mencionado o extraordindrio progresso das ciéncias ¢ das técnicas, das quais um dos frutos sio os novos ‘materiais artificiais que autorizam a preciso ¢ a intencionalidade. De outro lado, h4, também, referéncia obrigat6ria & aceleracio contemporanea ¢ todas as vertigens que cria, a comegar pela prépria velocidade. Todos esses, porém, sio dados de um mun- do fisico fabricado pelo homem, cuja utilizagio, alids, permite que o mundo se torne esse mundo confuuso e confusamente percebido. ExplicagSes mecanicistas sio, todavia, insuficientes. Ea maneira como, sobre essa base material, se produz a hist6ria humana que é a verdadeira responsivel pela eriagio da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possfvel a criagio de um mundo veraz, 1 MILTON SANTOS ©que € imposto aos espiritos € um mundo de fabulagSes, que se aproveita do alargamento de todos os contextos (M. Santos, A natureza do espago, 1996) para consagrar um discurso tnico. Seus fandamentos sao a informacio ¢ 0 seu império, que encontram alicerce na produgio de imagens e do imaginario, e se poem 20 servigo do império do dinheiro, fundado este na economizagao na monetarizacio da vida social e da vida pesscal. _De fato, se desejamos escapar & crenca de que esse mundo assim apresentado € verdadeiro, e nic queremos admitir a per- manéncia de sua percepgio enganosa, devemos considerar 4 existéncia de pelo menos trés mundos num s6. O primeiro se- 12.0 mundo tal como nos fazem vé-lo: a globalizacio como fi- ula; © segundo seria o mundo tal como ele €: a globalizacio como perversidade; ¢ o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalizacio, O mundo tal como nos fazem crer: a globalizacao como fibula Este mundo globalizado, visto como fibula, erige como ver- dade um certo némero de fantasias, cuja repeticio, entretanto, acaba por se tornar uma base aparentemente s6lida de sua inter Pretagio (Maria da Conceicio Tavares, Destmugto no ciadora, 1999). A miquina ideolégica que sustenta as ages preponderantes da atualidade € feita de pecas que se alimentam mutuamente ¢ Perm em movimento os elementos essenciais A continuidade do sistema, Damos aqui alguns exemplos. Fala-se, por exemplo, em aldeia global para fazer crer que 2 difusio instantinea de noticias realmente informa as pessoas. A partir desse mito e do encurta- POR UMA OUTRA GLOBALIZAGAO. 19 mento das distancias — para aqueles que realmente podem viajar — também se difunde a nogio de tempo ¢ espago contrafdos. E como se 0 mundo se houvesse tornado, para todos, ao alcance da mo. Um mercado avzssalador dito global € apresentado como capaz de homogeneizar o planeta quando, na verdade, as diferengas locais so aprofundadas. H4 uma busca de uniformidade, a0 ser~ -vigo dos atores hegemdnicos, mas o munco se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente ‘universal. Enquanto isso, 0 culto a0 consumo € estimulado. Fala-se, igualmente, com insisténcia, na morte do Estado, mas © que estamos vendo € seu fortalecimento para atender aos reclamos da finanga ¢ de outros grandes interesses internacio- nais, em detrimento dos cuidados com as populag6es cuja vida se torna mais dificil. Esses poucos exemplos, recolhidos numa lista interminavel, permitem indagar se, no lugar do fim da ideologia proclamado pelos que sustentam a bondade dos presentes processos de globalizacio, no estarfamos, de fato, diante da presenca de uma ideologizacéo macica, segundo a qual a realizacio do mundo atual exige como condigio essencial o exercicio de fabulagées. O mundo como é: a globalizacio como perversidade De fato, para a grande maior parte da humanidade a globalizacio esta se impondo como uma fibrica de perversidades. O desemprego crescente torna-se crénico. A pobreza aumenta ‘es classes médias perdem em qualidade de vida. O salério médio tende a baixar. A foe e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se instalam

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