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0614
Política HumanizaSUS:
artigos
ancorar um navio no espaço*
Martins CP, Luzio CA. HumanizaSUS policy: anchoring a ship in space. Interface
(Botucatu). 2017; 21(60):13-22.
Considerações iniciais
A Política Nacional de Humanização - HumanizaSUS (PNH) foi criada pelo Ministério da Saúde, em
2003, a partir do reconhecimento de experiências inovadoras e concretas que compõem um “SUS que
dá certo”. Há um pouco mais de uma década a PNH fomenta mudanças na atenção e na gestão ao
convidar os sujeitos envolvidos a (re)pensar e intervir no cotidiano da saúde pública brasileira.
O HumanizaSUS prima por produzir movimentos no Sistema Único de Saúde (SUS). Embora tenha
sido disparada pela gestão federal, não se limitou ao grupo de consultores contratados para tal. São os
muitos apoiadores que contribuem para manter aquecida a rede que sustenta a saúde como dimensão
de cidadania, a despeito de tantos desafios. Quem são os apoiadores e como compreendem a sua
tarefa no SUS são as nossas questões norteadoras.
Este artigo é um recorte da tese “A Política Nacional de Humanização na produção de inflexões
no modelo hegemônico de cuidar e gerir no SUS: habitar um paradoxo”, defendida no Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista, campus Assis. Para esta discussão
utilizamos os pensadores da Filosofia da Diferença e também da Saúde Coletiva, principalmente os
alinhados com o HumanizaSUS, que nos auxiliaram na empreitada por enxergar os indícios tanto das
capturas, quanto das formas de resistências, sem lamentar o presente.
Nesta cartografia nos interessamos pelos encontros, histórias, situações corriqueiras de trabalho,
assim como os estranhamentos, questionamentos e embates que foram produzidos ao longo de
nosso percurso no HumanizaSUS. A cartografia configura-se como uma experimentação à procura
de outros modos de narrar, pesquisar e criar. Trata-se de um exercício de lançar-se ao “[...] desafio de
fazer ciência sem uma forma determinada e antecipadas verdades que sobrecodificam e aprisionam as
potencialidades do próprio encontro”2 (p. 10).
Problematizamos o HumanizaSUS a partir de nossa trajetória com e na PNH, principalmente a
experiência como consultora do Ministério da Saúde, no período de 2010 a 2013, no diálogo com os
diversos trabalhadores do e pelo SUS, os muitos apoiadores que serão apresentados a seguir.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unesp/Assis. Foi igualmente
autorizada pelos membros e pela Coordenação Nacional da Política HumanizaSUS. Os sujeitos
envolvidos na pesquisa assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo que uma via
está arquivada conosco.
Tomamos as narrativas como facetas da realidade, preciosos momentos que abrem brechas para
análises, desafios, angústias, constatações e intervenções no atual estado de coisas possam ganhar
força e expressão. As transformações são processos, sempre postos à provas, sem ponto final.
Acompanhadas por Blanchot3, “[...] a narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio
acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer” (p. 8).
Foi um convite para que pudéssemos “rejuvenescer e envelhecer de uma só vez”, um acontecimento
para Deleuze e Guattari4.
Duas dimensões opostas - sujeito e objeto - se encontram nas narrativas e compõem um
mesmo movimento. Ao ler os documentos, escutar os apoiadores e problematizar práticas, temos a
confirmação de que a produção de mundo social e do desejo, tal como nos ensina Guattari5, não está
em polos opostos com insiste a racionalidade moderna. A produção de saúde, de sujeitos e mundo são
grandezas inseparáveis. Ao tomá-las como em constante mutação, elas inauguram questões quando os
apoiadores pensam e narram sobre si no mundo.
das coisas. São acontecimentos que promovem diferenças nos sujeitos, nas
artigos
práticas e nos serviços de saúde, tal como ilustraremos a partir das narrativas dos
apoiadores.
“Ninguém conhece todo o SUS”, como aprendemos com Nelson Santos em
(c)
‘Aprimoranda’ era o
uma aula há mais de uma década atrás como aprimoranda(c) em Saúde Mental
apelido utilizado pelos em Campinas. Essa ideia, vinda de um dos formuladores do SUS e grande
alunos do Programa defensor da saúde universal brasileira, enfatiza a complexidade com as muitas
de Pós-Graduação lato
sensu – Aprimoramento nuances da experiência em andamento no país. O SUS é uma produção coletiva,
em Saúde Mental da e seus inúmeros entraves e riquezas só podem ser compreendidos quando
Unicamp.
olhados por muitos de nós.
Partimos da proposta de Santos e atrevemo-nos a afirmar que a mesma serve
para a PNH, assim como para outras políticas que agregam sujeitos ao primar
pela produção de redes e agenciamentos no SUS. Estes sujeitos comuns que
produzem experiências coletivas, que apostam no público e que lutam pela saúde
de qualidade como direito já indicam um acontecimento.
O HumanizaSUS é mais do que a soma do Núcleo Técnico e da Coordenação
Nacional que estão localizados em Brasília, assim como dos consultores regionais
contratados pelo Ministério da Saúde. Este marcador, valorizar o anonimato e
não as posses e as autorias, não é trivial. Por diversas vezes, participamos de
discussões acaloradas que disputavam o sentido da humanização e os modos
para implementá-la.
A afirmação “para nós da PNH...” traz, no mínimo, três posições não
antagônicas: ora marcava a posição dos consultores como representantes oficiais
do Ministério da Saúde, ora o lugar de autoridade que estava somado a um viés
impositivo garantindo a primazia do sentido da humanização, ora definia um
grande ‘exército anônimo’6, cujas afinidades éticas os mantêm juntos na luta por
mudanças no e pelo SUS.
Fruto dos movimentos reformistas em saúde, o HumanizaSUS é produzido
pelos seus muitos apoiadores. Apoiador é o termo usual para indicar os sujeitos
que exercem a função de apoio institucional, tomado como dispositivo e método,
nas experimentações da Política. Mesmo entre os apoiadores, há diferentes
entendimentos sobre como se realiza essa função.
No fio da navalha, temos por um lado o HumanizaSUS como uma
composição, marcado pela inclusão de diferentes formas de pensar e operar o
apoio, uma Política que aposta na produção do comum e em práticas singulares
que respondam aos problemas e desafios do cotidiano do SUS. E, por outro,
observamos que há indicativos de padronização, na tentativa de um maior
alinhamento, que porventura podem acarretar um engessamento, nos modos de
fazer apoio. Destacamos assim “[...] o ‘risco’ que sempre corre em uma política
– que se quer coletiva, contingente e processual – de funcionar cooptada pelas
forças de Estado”7 (p. 204).
Na gestão federal há os consultores, grupo contratado pelo Ministério
da Saúde, que, dentre outras tarefas, apoiam as ações de humanização nos
territórios para os quais são referência. E, somam-se aos consultores, os sujeitos
que se identificam com a PNH e compõem os muitos parceiros da Política. O
termo apoiador é utilizado, ainda, para designar as pessoas que passaram pelos
cursos de formação fomentados na parceria entre os entes da federação.
Uma das questões problemáticas para a Política é se os processos de formação
e intervenção, principalmente os cursos de formação de apoiadores disparados
desde 2006, conseguem produzir a ampliação da capacidade de análise e de
intervenção dos participantes8. “Formamos apoiadores?” é uma das recorrentes
questões que mobiliza os membros da PNH.
partir de Foucault e
operar no cotidiano do SUS, que implica tomá-lo como algo que não é a priori, Deleuze12, é uma rede de
mas produzido na relação entre pessoas, instituições, saberes, poderes, práticas composição heterogênea,
um conjunto de linhas de
e demais elementos. Sendo assim, apoiar um grupo tem como meta operar diferentes naturezas que
entre os processos de trabalho que compõem o dia a dia do serviço, fazendo configuram uma máquina
agenciamentos diversos, colocando em análise as verticalidades e autoritarismos de fazer ver e falar
artigos
movimentos no interior da máquina e também nos diversos pontos da rede, na busca por contribuir
para a efetivação dos princípios constitucionais.
Os entraves e os desafios do SUS, tão conhecidos pelos seus atores, foram tomados como
ponto de partida para a PNH, que buscou reescrever as experiências, enfatizando a potência para
reinventar a clínica, a gestão e os modos tradicionais de trabalhar em saúde. Assim, o tom de
benevolência, de festividade e de ‘perfumaria’, que marcava a temática até então, foi substituído - ao
menos na perspectiva dos documentos oficiais e nos posicionamentos de muitos apoiadores - pela
radicalidade de um convite para que os envolvidos se atrevessem a repensar os processos de trabalho,
transformando-os de forma a batalhar pela garantia de direitos de usuários e trabalhadores.
Um apoiador conta que
“[...] nem sempre se necessita de grandes manobras, grandes investimentos (claro que em
muitas situações faz-se necessário), eu aprendi que não é preciso esperar ou buscar grandes
soluções, soluções mágicas, mas acima de tudo buscar parceiros coparcerias, diálogo, dividir
problemas e soluções”.
Há um acontecimento, sinalizado nas narrativas, que é da ordem da construção do comum. Nestes
tempos em que o capital está entranhado em corpos e almas, o apoiador acima nos diz de mudanças
nos processos de trabalho que não possuem correspondente monetário que as alcance. O trabalho
em saúde a ser repensado nos espaços coletivos “[...] não se reduz à aplicação de um procedimento:
trabalhar é exercitar um pensamento e é também viver”17 (p. 130).
artigos
corpo biológico como objeto de intervenção, com gestões comumente solitárias,
autoritárias e corporativas, associada aos trabalhadores anestesiados, esgotados e
silenciados, somados às condições de trabalho aquém das necessidades de saúde
da comunidade, pela falta de financiamento adequado, enfim, por dificuldades
e desafios de várias ordens. Mas algo acontece em alguns (muitos?) sujeitos e
coletivos. O mundo não está pronto, terminado e nem é eterno. Estamos no
meio, em meio a, em um movimento cuja tarefa é sintetizada por outro apoiador:
vista. Assim, não há descansos, folgas ou férias suficientes porque é a vida que compõe o processo
produtivo. Agora é a vez da “[...] ‘alma do operário que deve descer na oficina’. É a sua personalidade,
a sua subjetividade, que deve ser organizada e comandada. Qualidade e quantidade do trabalho são
reorganizadas em torno de sua imaterialidade”20 (p. 25).
Um apoiador sintetizou como compreende a sua tarefa com o seguinte comentário: “[...] este é
o problema de trabalhar no que a gente acredita...”. A criatividade e capacidade de invenção estão
postos a trabalhar cada vez mais. Os apoiadores precisam produzir imaterialidades como a ampliação
do compromisso ético-político com a saúde de qualquer um/uma, os exercícios de democracia, a
qualificação das ofertas assistenciais, a humanização das práticas e a construção de uma rede de
cuidados. E, ainda, para muitos do HumanizaSUS que mantinham relação com a academia, nesta já
longa lista estavam incluídos também a produção e a publicação de conhecimento científico.
Apoiar visa a produção de imaterialidades que não são triviais em um mundo como o nosso. Há
uma batalha em curso ‘por uma outra militância’21, uma luta travada nestes tempos paradoxais. Nas
rodas de conversa da PNH, acompanhávamos as narrativas sobre as inúmeras inovações construídas
no cotidiano dos serviços de saúde e também o enorme silêncio e o esgotamento dos sujeitos
envolvidos nessa tarefa. Colocar-se na função de apoio, com a tarefa de fazer a máquina (de guerra15)
funcionar, construir um coletivo que não se quer conivente, exercitar uma Política que se pretende
desestabilizadora, produz vários tensionamentos que ressoam nos envolvidos. Não é sem sentimentos,
nem sem consequências que se produz exercícios de democracia.
Alinhadas com a produção teórica sobre a Política e com os princípios da transversalidade e
do fomento à autonomia e do protagonismo dos envolvidos que compõem o HumanizaSUS22,
compreendemos que só os nômades conhecem a muralha da China e o tamanho do deserto, tal como
na literatura menor de Kafka23,24, ou seja, a PNH é um rizoma, produz rizomas e é alimentada por eles.
Estes são sempre uma multiplicidade que foge para vários lados ao mesmo tempo. Com isso queremos
marcar que um apoiador, embora saiba das asperezas do deserto, continua nele e faz um recorte,
avalia junto ao seu coletivo onde e quando apoiar. Mas a cada momento, novas experimentações
surgem e outras perdem a força, sendo difícil acompanhá-las. É preciso estar no território para
conhecer suas dimensões, seus desafios e (re)conhecer as parcerias. A nossa experiência, assim como
o diálogo com os muitos apoiadores, aponta que há sempre novas pessoas que passam a compor uma
“[...] comunidade eternamente provisória e sempre já desertada”3 (p. 74).
Considerações finais
Neste percurso buscamos colocar em evidência algumas narrativas dos apoiadores da PNH que
sinalizam que há outras histórias a serem contadas e novas saúdes a serem inventadas. A tarefa do
apoio no HumanizaSUS parece-nos como “Ancorar um navio no espaço”1. Para esta empreitada, é
preciso uma multidão; são necessários muitos de nós.
Este nós habita tempos e situações paradoxais em que a saúde como dimensão de cidadania ora
avança, ora é atropelada pelos ventos neoliberais. Existem princípios constitucionais que respaldam a
construção de ousadias para garantir a saúde da população brasileira, sendo a PNH um exemplo. Há,
ainda, um ‘exército anônimo’5, os trabalhadores do e pelo SUS, que insistem na construção do que é
público. E, ao mesmo tempo, temos a naturalização do abismo entre ricos e pobres, de um Estado que
funciona para manutenção das iniquidades e de um mercado que cresce impulsionado pelo próprio
Estado. Sendo assim, o nós é uma estratégia por reafirmar o caráter político e as riquezas do SUS, dos
movimentos reformistas e da PNH, como experiências - processos – projetos que visam romper com a
privatização e o empobrecimento da vida.
Em meio aos inúmeros desafios de fazer saúde pública de qualidade em um país como o nosso, há
um movimento de resistência que enxerga tanto as reais fragilidades do SUS, quanto as brechas para
produção de mudanças. Consideramos que os apoiadores produzem e se incluem nos movimentos
coletivos por reinventar as práticas, dando-nos indicativos de novas suavidades. Embora o cenário
brasileiro seja marcado por iniquidades e desigualdades, onde até então víamos somente regularidade,
uma outra história pode coexistir. Há uma rede produzida e aquecida por muitos anônimos, dentre eles
artigos
os apoiadores da PNH, que mantém a saúde como dimensão de cidadania de qualquer um/uma, como
sintetiza a narrativa da apoiadora a seguir: “somos uma rede de apoiadores em busca de um SUS
melhor”.
Por fim, sabemos que o HumanizaSUS e o investimento no apoio são políticas do atual governo e
têm a sua duração cronológica incerta. Mas defendemos que, a despeito das disputas autorais e das
alternâncias de poder e projeto inerentes à democracia, muitos ecos ainda serão ouvidos. Como nos
ensinam Deleuze e Guattari4, pode parecer que nada mude, mas nós mudamos no acontecimento. E
ressaltamos que
Colaboradores
As autoras participaram, igualmente, da formulação e revisão do texto.
Referências
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quotanota-ai-eu-sou-ninguemquot.shtml
Martins CP, Luzio CA. Política HumanizaSUS: anclar la nave en el espacio. Interface
(Botucatu). 2017; 21(60):13-22.
El artículo discute la Política Nacional de Humanización - HumanizaSUS (PNH), el
Ministerio de Salud, a partir de los relatos de todos los colaboradores y sobre cómo
entender su labor en el Sistema Brasileño de Salud (SUS). Presenta algunos resultados
de la investigación de doctorado, las perspectivas cartográficas, en las cuales fueron
entrelazadas las narrativas de los colaboradores de las diferentes instancias del SUS. Por lo
tanto, se considera que una red es producida y calentada por muchos agentes anónimos
y los trabajadores para él SUS, dentro de estos hay también los que se autodenomina
colaboradores de la PNH, que mantienen la salud como una dimensión de ciudadanía de
cualquier persona, a pesar del complejo escenario nacional.
Palabras clave: Política Nacional de Humanización. Apoyo institucional. Sistema Brasileño
de Salud.