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1 Adélia Prado e a palavra poética

Para compor, Adélia Prado lança mão, impreterivelmente, de dois materiais, “memória
e sentimento” (Prado, 1976, p. 55), comumente encontrados na poesia lírica. Desde Platão e
Aristóteles até o século XVIII, a criação poética foi entendida como imitação da realidade.
Apesar de suas divergências, ambos afirmaram que a obra de arte mantém uma relação de
semelhança e de adequação com o real (assim lemos em Arte poética, de Aristóteles). A
doutrina da imitação sofreu declínio quando se começaram a valorizar os sentimentos e as
aspirações do artista: “os poetas românticos mais confessionais estavam interessados
principalmente em sua própria individualidade e nas coisas que faziam deles pessoas
diferentes das outras” (Hamburger, 2007, p. 58-59). O Romantismo almejou, em geral,
coincidir arte e vida e empenhou-se em fazer com que a voz lírica fosse sincera e apaixonada;
o poema deveria considerar a emoção real sentida como a geratriz da expressão poética.
Alguns poetas chegaram ao extremo dessa convicção e consideraram, como Novalis, a poesia
o “real absoluto[:] quanto mais poético, mais verdadeiro” (1992, p. 69). O objetivo desse
grupo de artistas era viver uma espécie de simbiose com o universo:

O poeta lírico (...), os contornos do eu, da própria existência, não são


firmemente delineados. (...) [Na poesia,] o sentimento de individualidade
dissolve-se. Chegamos na linguagem lírica ao conceito de ‘fusão’. Fusão é o
diluir da consistência. (...) Sentimos a paisagem, a noite, a amada, ou mais
exatamente sentimo-nos na noite e na amada: Diluimo-nos no que sentimos
(Staiger, 1975, p. 63-66).

Outros escritores não acreditavam que pudessem alcançar tal amplitude, tampouco que
ela pudesse ser expressa pela linguagem – e concordavam com Schiller que “se a alma fala,
ah! então, já não é a alma que fala” (apud Staiger, 1975, p. 71). Encaminhavam-se, assim, às
proposições de Charles Baudelaire, que apostava na flexibilidade identitária do eu lírico: “o
poeta goza do incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e outrem” (apud
Hamburger, 2007, p. 74). Poe, Rimbaud, Corbière, Laforgue, Valéry e Mallarmé, para citar
alguns escritores modernos, afirmavam que a arte, movida pela imaginação absoluta,
transformaria e desrealizaria o real. Para tanto, dois elementos da capacidade criativa superior,
o sonho e a fantasia, seriam essenciais na elaboração artística: ambos acumulariam imagens
apresentadas aos sentidos, de maneira a construir uma nova totalidade. Como Shelley,
acreditavam que a poesia era expressão da imaginação e da força que leva o homem a
participar “do eterno, do infinito, do uno: relativamente às suas concepções, não existe tempo,
nem espaço, nem medida” (Shelley, apud Silva, 1973, p. 170). Coleridge, outro grande
escritor que se debruçou sobre a significação da criação poética, também defendia a
imaginação como “o dom mais alto do homem (...) [uma vez que] desdobra ou projeta os
objetos e sem ela não [há] nem percepção nem juízo” (apud Paz, 1996, p. 77), e afirmava que
ela “não é apenas a condição do conhecer, [mas] é a faculdade que transforma as ideias em
símbolos e os símbolos em presenças” (Paz, 1984, p. 76).
Essas concepções românticas e modernas sobre a criação poética subjazem à
concepção adeliana: constatamos a discussão sobre eu lírico e eu empírico nos versos da
poetisa, como também a imaginação e o sonho como estruturadores dos poemas. Os traços
formais de modernidade podem ser aferidos no verso e ritmo livres, empregados na tentativa
de abarcar as flutuações existenciais e paradoxais do ser. Além disso, a autocrítica inserida
nos livros revela uma visão aguda e um julgamento ostensivo de si mesma – estratégia
moderna assumida pela maioria dos escritores do século XX, quando o artista era impelido a
posicionar-se em relação aos problemas sociais, políticos e artísticos.
A metalinguagem, fartamente encontrada na chamada Geração 60 (nome fixado por
Pedro Lyra), é vista, na literatura brasileira,

desde Gregório (“Tercetos”, s/d), [mas] foi só no Modernismo que a


metapoesia – com a constante e progressiva exigência de consciência técnica
posta ao poeta contemporâneo – assumiu uma presença significativa: numa
quantidade considerável de textos, atinge o nível de autêntica teoria poética
num Bandeira ou num Schmidt, num Drummond ou num Vinícius, quase ao
ponto de dominante em alguns nomes de 45, como um Gilberto ou um
Cabral (Lyra, 1995, p. 110).

Poderíamos acrescentar que, na década de 1970, Adélia (e outros escritores) continuou


a empreitada, desejosa de escrever sobre o papel da arte e de seu artífice. No livro
Sincretismo: a poesia da Geração 60, a escritora é incluída num grupo de difícil
sistematização, problema anunciado na seção inicial intitulada “As epígrafes do caos”, que
reúne 29 citações divergentes de artistas e estudiosos a respeito da poesia produzida entre
1960 e 19902. Na tentativa de traçar linhas predominantes da produção literária da época,
embora evidencie sua variedade e complexidade, o crítico insere a poetisa no grupo da
“tradição discursiva”, uma vez que ela explora “dois elementos tradicionalmente mais
caracterizadores da expressão poética: o verso e a imagem” (1995, p. 97), não seguindo as

2
Além da antologia de Pedro Lyra (1995, p. 40-41), outras elencam os principais poetas brasileiros da época e
incluem Adélia: a de Henrique L. Alves (1985), a de Carlos Nejar (1986), a de Denira Rozário (1989), a de
Augusto Massi (1991).
tendências pós-vanguardistas dominantes (o concretismo engajado na abolição do verso e a
poesia marginal disposta a intervir na realidade). Adélia surge em meio a um movimento
literário mineiro, em especial, de contistas, lançando-se à contemplação pungente e atenta das
raízes terrestres da vida, das experiências de felicidade e de dor. Como uma espécie de
palimpsesto, sua poesia rasura a historicidade com a imaginação lírica e o visionarismo
mítico, estabelecendo uma fronteira instável entre o real e o ficcional. Para Lyra,

é compreensível que nada de excepcionalmente monumental ou sublime


tenha sido criado – e a razão não está nem na idade dos autores nem na
situação social, pois nem uma nem outra impediram a criação no passado.
Está no projeto concebido pelos novos grupos ou criadores individuais: fazer
uma arte comunicativa e imediata, sem artifícios e sem ambições, para o
envolvimento cúmplice do receptor. Sem se saber, já era o pós-moderno que
penetrava no Brasil (1995, p. 24).

Para tanto, seus textos defendem, explícita e implicitamente, uma teoria da palavra
poética. Modulada gradativamente ao longo de sua carreira, a concepção acerca do signo
linguístico não sofreu mudança abrupta entre um livro e outro; ocorreu, na verdade, um
espessamento em relação à compreensão artística e, consequentemente, renovações formais
podem ser verificadas no registro poético.
Para ratificar essas afirmações, selecionamos poemas que proporcionam uma visão
panorâmica do conceito de palavra poética defendido por Adélia. Os textos analisados adiante
seguirão uma linha cronológica, para que não percam radicalmente sua localização dentro do
livro de que fazem parte, como também dentro da obra. Primeiro, analisaremos poemas de
Bagagem (1976), O coração disparado (1978) e Terra de Santa Cruz (1981), na subseção “A
palavra poética é coisa”; em seguida, trataremos dos dois livros subsequentes, O pelicano
(1987) e A faca no peito (1988), e dos mais recentes Oráculos de maio (1999) e A duração do
dia (2010), no subcapítulo “A palavra poética flagra a beleza”.

1.1 A palavra poética é coisa

Os três primeiros livros de poemas, espaçados de três anos no máximo (1976, 1978 e
1981), constituem um primeiro ciclo na poesia de Adélia Prado: a quantidade de textos
dedicados ao fazer poético revela a preocupação da novata com a arte e também funciona
como uma espécie de credencial de entrada na vida literária. Embora retome o tema nos
servirão. Várias situações expressam o que ela considera belo, como a inscrição da carrocinha
de doces, simples e profundo registro, encontrado no Brasil, onde ela está inserida. A beleza
da frase pode ser atestada pelo entusiasmo infundido na poetisa e nos passantes, que partilham
da mesma cultura. O título do livro – Terra de Santa Cruz – é um dos nomes arcaicos do país,
dado pelos portugueses quando ainda desconheciam a maior parte do território. Nomeando-o
religiosamente, vincularam seus atos violentos e injustos à religião; mas a prática da caridade
cristã não foi vivenciada. A rigor, o nome do livro faz jus aos antigos acontecimentos só se o
interpretarmos como metáfora da dizimação dos povos indígenas. Entretanto, um país
marcado historicamente pela injustiça pode produzir uma realidade “inefável”, ilustrada
também pelo grupo de pessoas simples que organizam um auto de Natal. Diante daquela
movimentação, o eu lírico avalia que seus “belos versos”, as linhas mais “finamente escritas”,
são como “palha seca”. A beleza registrada poeticamente está sempre aquém da do mundo
empírico e/ou sensível.

1.2 A palavra poética flagra a beleza

A partir de O pelicano (1987), além da afirmação da equivalência entre palavra e


coisa, surge outra questão-chave na produção adeliana. Embora a poetisa já tivesse sinalizado
nos três primeiros livros a ligação íntima entre poesia e beleza, é a partir do quarto que o
signo linguístico assume, em especial, a função de registrar o espanto causado pela
contemplação do que é afetivo e belo. Nesse sentido, o trecho bíblico que introduz o segmento
inicial, “Licor de romãs”, relata uma cena de pessoas no campo, observando a natureza, à
procura de frutos e flores – “Pela manhã iremos às vinhas / para ver se a vinha lançou
rebentos, / se as romãzeiras estão em flor” (Cântico dos Cânticos, apud Prado, 1987a, p. 9). E
o primeiro poema, “Genesíaco”, trata da maneira como a poesia consegue estender o êxtase:

Um homem na campina olhava o céu. As estrelas


pareciam aumentadas, de tamanho brilho.
Estrela, ó estrela, estrelas,
ele suplicou como se injuriasse.
Os que alimentavam o fogo
aproximaram-se admirados:
nós também queremos, repeti para nós.
Ó noite de mil olhos, reluzente.
Os vocativos
são o princípio de toda poesia.
Ó homem, ó filho meu,
convoca-me a voz do amor,
até que eu responda
ó Deus, ó Pai (Prado, 1987a, p. 13).

A beleza dos astros motiva o observador a expressar, por meio de vocativos, seu
encantamento. Quem está ao redor lhe pede que repita o elogio, o que nos lembra a afirmação
de Valéry sobre a tarefa do poeta, que não seria “experimentar o estado poético: essa é uma
questão particular. Tem como função criá-lo nos outros” (apud Dufrenne, 1969, p. 101). A
partir do pedido do grupo, o foco se desloca da natureza para o discurso. Cria-se um
espelhamento: a beleza empírica contagia a palavra, que, elogiada, é estimulada a se
embelezar ainda mais. O homem atende aos companheiros, mas não repete o que havia dito da
mesma maneira; modela a exclamação, enriquecendo-a com metáforas (sem resvalar no
beletrismo, no floreio verbal gratuito). A primeira, feita com simples repetições – “Estrela, ó
estrela, estrelas” –, transforma-se em “Ó noite de mil olhos, reluzente”. Vale recordar que o
primeiro verso exclamativo já havia sido declamado (com mínima diferença) pelo pai do eu
lírico de “A poesia” (Bagagem), sendo transcrito para o poema no intuito de explicar o
desabrochar da criança para a arte literária; seu reaparecimento em “Genesíaco” indica um
retorno a um tempo muito mais antigo, o do nascimento da própria poesia. O breve relato
ilustra o processo poético de Adélia, que se desenvolve de acordo com esta sequência: olhar,
contemplar, exclamar e reformular.
O título do poema sugere um retorno ao momento da criação. O homem elogia a obra
divina, que se torna mais bela ainda no discurso poético. O criador dos astros e do poeta, a
“voz do amor” (de acordo com a tradição bíblica, a palavra de Deus tudo criou), reconhece,
graças ao momento criativo, que o homem é seu filho. Em seguida, construindo um segundo
espelhamento no texto, o homem também o reconhece como pai. Logo, a palavra poética
funciona como “mediação entre o sagrado e os homens e, assim, é o verdadeiro fundamento
da comunidade. Poesia e história, linguagem e sociedade, a poesia como ponto de interseção
entre o poder divino e a liberdade humana, o poeta como guardião da palavra que nos
preserva do caos original” (Paz, 1984, p. 62).
O mútuo elogio torna o poema essencialmente exclamativo – a poesia é,
metaforicamente, uma interjeição (“os vocativos / são a origem de toda poesia”). Sobre a
utilização de elementos expressivos no texto poético, Bosi sugere que “a onomatopeia e a
interjeição teriam sido, quem sabe, formas puras, primordiais, da representação e da
expressão, funções que, no estágio atual das línguas conhecidas, foram assumidas largamente
por palavras não onomatopaicas” (1997, p. 41). Por isso, a poesia consegue expressar
subjetividades e transformar a imagem bela (impossível de ser explicada ou descrita
fielmente) em palavra, mas em palavra poética, uma vez que não apenas faz referência a um
dado extratextual, mas principalmente se desdobra em muitos significados.
A beleza é captada em coisas que tradicionalmente não são assim consideradas. A
modernidade ampliou seu sentido – em especial a partir de Baudelaire, haja vista As flores do
mal –, que se desembaraçou de um padrão, passando a abarcar inúmeras e inusitadas
realidades. A respeito do tema, Bosi lembra a conclusão de Giacomo Leopardi, semelhante à
encontrada por Schopenhauer e Nietzche: “Belo é o que nos arranca do tédio e do cinza
contemporâneo e nos reapresenta modos heroicos, sagrados ou ingênuos de viver e de pensar.
Bela é a metáfora ardida, a palavra concreta, o ritmo forte. Belo é o que deixa entrever, pelo
novo da aparência, o originário e o vital da essência” (Bosi, 1997, p. 112). Em “Fibrilações”,
cujo título indicia os tremores do ritmo inicial do poema construído por versos curtos, o eu
lírico revela:

Tanto faz
funeral ou festim
tudo é desejo
o que percute em mim.
Ó coração incansável à ressonância das coisas,
amo, te amo, te amo,
assim triste, ó mundo,
ó homem tão belo que me paralisa.
(...)
Certa erva do campo tem as folhas ásperas
recobertas de pelos,
te amo, digo desesperada
de que outra palavra venha em meu socorro.
A relva estremece,
o amor para ela é aragem (Prado, 1987a, p. 14).

O sentimento amoroso é o motor da vida e, como o discurso, é várias vezes


reformulado, ganhando a forma de vocativo. Amam-se um coração em especial, o homem de
maneira geral, o mundo: a abundância de beneficiários representa a universalidade do afeto,
devotado a tudo que freme. A repetição da expressão “te amo”, que aparece sete vezes, marca
o ritmo do texto, que tenta imitar o pulsar das coisas vivas, estratégia entendida por Paz como
um desdobramento da “visão romântica do universo e do homem: a analogia se apoia em uma
prosódia. Foi uma visão mais sentida que pensada e mais ouvida que sentida. A analogia
concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma e rima” (1984, p. 88-
89). A imagem final do poema indica as reações suscitadas pelo amor: o tremor da erva, o
pulsar do ser humano, o vibrar do poema, tudo é reunido e motivado pelo sentimento.
Em “O nascimento do poema”, o amor ganha um nome:

O que existe são coisas,


não palavras. Por isso
te ouvirei sem cansaço recitar em búlgaro
como olharei montanhas durante horas,
ou nuvens.
Entender é um rapto,
é o mesmo que desentender.
Minha mãe morrendo,
não faltou a meu choro este arco-íris:
o luto irá bem com meus cabelos claros.
Granito, lápide, crepe,
são belas coisas ou palavras belas?
Mármore, sol, lixívia.
Entender me sequestra de palavra e de coisa,
arremessa-me ao coração da poesia.
Por isso escrevo poemas
pra velar o que ameaça minha fraqueza mortal.
Recuso-me a acreditar que homens inventam as línguas,
é o Espírito quem me impele,
quer ser adorado
e sopra no meu ouvido este hino litúrgico:
baldes, vassouras, dívidas e medo,
desejo de ver Jonathan e ser condenada ao inferno.
Não construí as pirâmides. Sou Deus (Prado, 1987a, p. 29).

A linguagem e a paisagem externa, objetos de amor do eu lírico, são tratadas como


coisas, materialidade. Não é a razão – a decodificação do signo ou a análise minuciosa do
cenário natural – que proporciona esse conhecimento, mas a despojada contemplação da
beleza que há no mundo textual e extratextual (das palavras-coisas: granito, lápide, crepe,
mármore, sol, lixívia, baldes, vassouras, dívidas e medo). O que dá prazer colabora com a
continuidade da vida e, por isso, deve ser registrado (“pra velar o que ameaça minha fraqueza
mortal”). Por isso, Jonathan, que já havia aparecido esparsamente na obra de Adélia, a partir
de O pelicano ganha importância fulcral. O maior desejo do sujeito poético será ver o
personagem misterioso. Mais adiante, apontaremos por que não é coincidência a primeira
aparição do rapaz ocorrer no texto intitulado “O nascimento do poema”.
A proximidade entre os dois livros subsequentes faz com que A faca no peito (1988)
continue os ideais poéticos de O pelicano. A linguagem é tratada como um mistério que
merece contemplação:
Aranha, cortiça, pérola,
e mais quatro palavras que não falo
são palavras perfeitas.
Morrer é inexcedível.
Deus não tem peso algum.
(...)
Palavras, quero-as antes como coisas.
Minha cabeça se cansa
neste discurso infeliz.
Jonathan me falou:
“Já tomou seu iogurte?”
Que doçura cobriu-me, que conforto!
As línguas são imperfeitas
pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu (Prado, 1988, p. 27).

No poema acima, “Em Português”, são citadas palavras caras ao eu lírico. Mais uma
vez, elas são admiradas não por sua capacidade semântica, mas pela beleza visual e auditiva.
Entretanto o registro poético cansa o eu lírico, que se lamenta e é consolado por uma frase
simplória de Jonathan. A interlocução vulgar reanima a poetisa porque ela ama o locutor e
considera o registro belo. Assim, retoma, mais otimista, a questão intransponível em que
estava embrenhada: o “defeito” das línguas permite a existência de um discurso poético que
registre as dúvidas e os sentimentos do contraditório ser humano. No mesmo sentido,
Mallarmé afirmou: "Somente, saibamos não existiria o verso: ele, filosoficamente, remunera o
defeito das línguas, complemento superior" (2010: 162).
A preocupação formal de A faca no peito é evidente: dentre os livros de Adélia, é o
que mais investe numa nova disposição dos versos, ora alinhados à esquerda, ora deslocados
para o centro da página; além disso, os enjambements são mais bruscos. Dessa maneira
convergem conteúdo e forma, haja vista a indefinição registrada em relação ao que é humano
e o que é divino, sobre quem é Jonathan e quem é Deus, sobre quem é o eu lírico. Nesse
sentido, atesta Paz:

A página, que não é senão a representação do espaço real onde se estende a


palavra, converte-se em uma extensão animada, em perpétua comunicação
com o ritmo do poema. Mais do que conter a escritura dir-se-ia que tende ela
mesma a ser escritura. Por sua vez, a tipografia aspira a uma espécie de
ordem musical, não no sentido da música escrita, mas de correspondência
visual com o movimento do poema e as uniões e separações da imagem
(1996, p. 119).
O verso volta ao lugar de costume em Oráculos de maio, lançado quando a autora já
era conhecida e respeitada pelo país pelo seu “pentateuco” (referência nossa aos cinco
primeiros livros de poemas, haja vista a unidade entre eles e sua diferença dos dois seguintes),
publicado no espaço de 12 anos. O sexto livro viria depois de 11 anos de silêncio, espécie de
deserto poético confessado pela escritora, quando publicou apenas um livro de contos, O
homem da mão seca (1994). Digamos que a mão da poetisa ficou curada em maio de 1999,
quando vem à tona o livro que, desde o título, intensifica a relação entre Deus e a poesia.
Sobre isso, Adélia comenta: “O oráculo é aquela voz que fala pelo invisível, é o invisível
falando através daquele instrumento. (...) Tem profecia na poesia: você fala muito além do
que você está percebendo. Isso também eu acho espantoso” (2000, p. 31). Mais uma vez,
aquilo que é considerado maravilhoso é registrado em versos, e a poetisa assume abertamente
a missão de porta-voz da divindade.
Se as revelações fossem do mesmo teor que a epígrafe – “Quero vocativos para
chamar-te, ó maio” (Prado, 2007, p. 5) – seriam felizes. Entretanto, é o viés mais árduo do
oráculo que prevalece: “As quatro fórmulas do oráculo são a ameaça, a promessa, a
recriminação, a advertência” (Mckenzie, 1983, p. 671). O sofrimento produzido é tamanho
que a corte celestial precisaria socorrer o ser a todo instante. Assim, no primeiro poema de
“Romaria”, parte inicial que comporta 35 textos (mais da metade do livro), invoca-se Deus;
no segundo, o Espírito Santo; e no terceiro, a Virgem Maria. Logo no início, em “O poeta
ficou cansado”, o eu lírico angustiado responde negativamente à divindade (e à poesia):

Pois não quero mais ser Teu arauto.


Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
Olha aqui, cidadão,
repara, minha senhora,
neste canivete mágico:
corta, saca e fura,
é um faqueiro completo!
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha,
nem vendedor nem escrivão,
me deixa fazer Teu pão.
Filha, diz-me o Senhor,
eu só como palavras (Prado, 2007, p. 9).

Se o desejo expresso no verso introdutório fosse realizado, o livro que se propõe


conter oráculos não existiria. Contudo, a resistência à missão não significa uma desistência
efetiva, bem porque a fiel sabe que não pode se desobrigar da tarefa, haja vista quem lha
confiou. Sentindo-se oprimida pelo mando divino, questiona as ordens com raiva (note-se a
aliteração de fonemas /c/ e /t/, recurso que expressa violência). A argumentação perde
gradativamente força, ainda mais com a falsa premissa “Tudo progrediu na terra”. Perante a
sabedoria divina, a poetisa se sente miserável e não entende por que Deus precisa dela.
A poesia é considerada um encargo pesado, e o poema é comparado a um instrumento
cortante e multifuncional. Os objetos sugerem as idéias de aparar, amolar e aperfeiçoar,
condizente com a relação poema-mundo. Depois das imagens opressivas, a invocação final
tenta um acordo diplomático com Deus: pede-se um desvio de função, deixar o exigente
ofício artístico-religioso para ocupar um cargo mais simples. Por duas vezes há a súplica
humilde “me deixa”. A resposta divina, rara nos poemas, é negativa e encerra o texto. Embora
a identidade do interlocutor e o conteúdo textual estejam associados à vida religiosa, o poema
não é uma oração. Conquanto Adélia afirme que “a experiência poética é a experiência
religiosa e vice-versa” (apud Costa, 2005, p. 19), no título há menção explícita de que o
sujeito observado é lírico e, além disso, ele é generalizado (masculinizado e impessoalizado).
A poetisa não desiste da carta de alforria: em “O ajudante de Deus”, investiga a
possibilidade de o “Santo Espírito” liberá-la da servidão. A resposta é mais abundante: no
poema anterior, só dois versos revelavam a vontade divina; aqui, apenas dois expressam a fala
do eu lírico, pois os outros são da divindade. Porém a mensagem é a mesma: a metáfora da
alimentação é retomada para rejeitar a proposta humana (“come na paciência / esta
amargura”, a “massa de cinza e fel”, o “pão de mirra” (Prado, 2007, p. 11)). Se, por um lado,
o alimento não falta, por outro, ele é ruim ao paladar. Não há uma motivação, um prêmio
anunciado pelo sacrifício aceito: suporta-se, apenas, a poesia dura, amarga, sem alegrias.
Enfim, em “Salve Rainha”, último poema da tríade introdutória do livro, a poetisa, oprimida
pela missão, supervisionada pelos Céus, tenta se resignar:

A melancolia ameaça.
Queria ficar alegre
sem precisar escrever,
sem pensar
que labor de abelhas
e voo de borboletas
precisam desse registro.
Chorando seus casamentos
vejo mulheres que conheci na infância
como crianças felizes.
A vida é assim, Senhor?
Desabam mesmo
pele do rosto e sonhos?
Não é o que anuncio
– já vejo o fim destas linhas,
isto é um poema, tem ritmo,
obedece à ordem mais alta
e parece me ignorar.
Me acontecem maus sonhos:
a casa só tem uma porta,
casa-prisão,
paredes altas, cômodos estreitos (Prado, 2007, p. 13).

A importância da tarefa é anunciada: é necessário escrever para imortalizar a beleza do


mundo (no poema, representada pelas abelhas e pelas borboletas), principalmente a mais sutil
e efêmera. A arte seria capaz de tal apreensão: essa é a razão que, por fim, vence a
insubmissão da poetisa, mas não consegue tirá-la da melancolia. A constatação e a recusa da
decadência humana entristece o eu lírico, que compara sua situação com um pesadelo.
O tom angustiado diminui aos poucos, e o terceiro bloco de poemas, sintomaticamente
intitulado, “Pousada”, enfeixa textos mais ternos e acolhedores, como “Viação São
Cristóvão”, que mostra paisagens observadas por uma viajante. A velocidade do ônibus não a
deixa captar as imagens de maneira coesa, o que se refletirá no texto:

Não quero morrer nunca,


porque temo perder o que desta janela
se desdobra em tesouros.
É Bar Barranco? Bar Barroso? Bar Barroco?
(...)
Fica meio inventado
pegar com um nome a medula das coisas,
porque o ônibus para,
mas a vida não,
porque a vida sois Vós, Inominável!
(...)
Uma hora e meia de viagem
e a vida é boa que dói.
Os pastos estão bem secos,
mas continuam imbatíveis
no seu poder de me remeterem...
A Vós? À infância?
À Pátria, ao Reino do Céu.
Que posso fazer? Isto é um poema (Prado, 2007, p. 93-94)
A beleza justifica a existência e o desejo de imortalidade, apesar das piores situações
da vida. O que existe externamente está conectado com o interior; daí a intercalação de
descrições e de reflexões íntimas configurando uma correspondência universal dos seres. A
dúvida e a brincadeira a respeito do nome de um bar visto na estrada (“Bar Barroco”) indicia
o desejo de investigar a natureza contraditória do ser humano, que já aparecera em O coração
disparado (“Eu sou de barro e oca / Eu sou barroca” (Prado, 1978, p. 58)). Em resumo, o
conhecimento só pode ser alcançado pela contemplação demorada das coisas e pela posterior
associação entre elas.
Outra cena que a comove é a de um homem que cultiva, ao mesmo tempo, um jardim
e o ódio por um vizinho. Neste ponto, o eu lírico interpela, retórica e ironicamente, o leitor
perguntando se a situação exposta o enternece. Ele mesmo responde: o paradoxo é natural.
Outro quadro descrito é o de uma terra ressecada, mas “imbatível” porque remete a poetisa a
grandes mistérios. A linguagem literária a transporta a outras paragens, a outro tempo e
espaço: “a operação poética consiste em uma inversão ou conversão do fluir temporal; o
poema não detém o tempo: o contradiz e o transfigura” (Paz, 1984, p. 11).
Como nem sempre se contempla o que é tradicionalmente aceito como belo, a última
paisagem é a de uma escavadeira que arranca árvores, e o sujeito lírico se admira com a
demonstração de força. A poetisa tem coragem de ser politicamente incorreta e afirma
“ecologia tem hora” (Prado, 2007, p. 94).
Também não interessa à poetisa a óbvia correspondência entre as coisas, prática
refutada pelos escritores modernos. No empenho de poetizar a beleza, chega a encenar a
supremacia da palavra sobre as coisas:

Agora é definitivo:
uma rosa é mais que uma rosa.
Não há como deserdá-la
de seu destino arquetípico.
Poetas que vão nascer
passarão noites em claro
rendidos à forma prima:
a rosa é mística (Prado, 2007, p. 129).

O poema acima, “Teologal”, comenta o processo figurativo: a conclusão dos versos


iniciais é inspirada no célebre verso “Rose is a rose is a rose is a rose”, do poema “Sacred
Emily” (Geography and plays, 1922), de Gertrude Stein, importante personagem no cenário
literário anglo-francês. O longo poema promove associações exóticas, semelhantes às dos
vanguardistas brasileiros do início do século XX. Adélia o retoma, vinculando-se mais uma
vez ao círculo de inovação da linguagem artística, para ressaltar a infinita possibilidade de
significação da palavra poética, que faz com que o texto escape das rédeas de seu autor. Nesse
sentido, Mallarmé também afirmou: "Digo: uma flor! e, fora do oblívio, em que minha voz
relega qualquer contorno, enquanto algo de outro que os cálices conhecidos, musicalmente se
levanta, ideia mesma e suave, a ausente de todos os buquês" (2010: 167).
O vocábulo “rosa” ilustra a dificuldade dos poetas em garantir um texto original a
partir de um substrato simbólico tão explorado. Essa capacidade da palavra poética de, mesmo
gasta, sempre poder se renovar, fundamenta a semelhança dela com a transcendência. Por
isso, no penúltimo poema do livro, “Maria”, a poetisa recorre à palavra como metáfora da
personagem santificada.
Muitos intelectuais, como Nietzsche, apontaram que a arte se parecia com uma
religião e seria “a última atividade metafísica dentro do niilismo europeu” (apud Hamburger,
2007, p. 24). Nesse sentido, Paz não vê diferença entre “imaginação poética e revelação
religiosa, salvo que a segunda é histórica e transformável, enquanto os poetas (...) não são
‘the slaves of any sectarian opinion’. (...) quase adolescente, Novalis havia escrito: ‘A religião
é poesia prática. (...) a palavra poética é a palavra de base’” (1984, p. 76).
O sétimo e último livro de poemas, A duração do dia (2010), publicado 11 anos
depois de Oráculos de Maio, apresenta atmosfera mais filosófica e cenário mais sombrio,
entretanto continua a primar pela beleza das coisas e das palavras. Os poemas são por vezes
obscuros (“o que existe fala por seus códigos” (Prado, 2010, p. 10)), o que pode ser
justificado pelo conteúdo abordado: a poetisa, experiente em idade e no ofício de fazer versos,
trata da relação entre literatura e tempo.
O crítico Affonso Romano aprova essa “força irracional e aliciadora”: “o primeiro
mérito de seus versos é pular por cima dessa poesia cerebral e enjoada que se fez no Brasil
nos últimos vinte anos e assumir um tom mágico e fantástico, que recria a vida do interior
mineiro através de uma dicção inovadoramente feminina” (Sant´Anna, 1978, p. 10). Se, no
início da carreira, a poetisa afirmava inaugurar linhagens e reinos e sustentar bandeiras
relacionadas ao seu papel no mundo, agora ela arrecada o que é possível, “recolhe os feixes,
sorrindo”, conforme havia prenunciado na epígrafe do livro de estreia. Em A duração do dia,
quem ilustra a informação é uma mulher pobre e bíblica, que angaria o resto da colheita atrás
dos principais catadores. Analogamente, a poetisa age assim, visto que aproveita “restos de
versos” para compor: o que fora considerado sobejo é também, para ela, “relíquia de ouro
velho quebrado” (Prado, 2010, p. 15). Em “Rute no campo”, reconhece que esse tesouro (as
sobras da plantação e as linhas não aproveitadas) não é estimado por muitos: só quem sente
“fome, fome, muita fome” (de comida, de alegria, de beleza, de arte) enxerga a riqueza. Sendo
a poetisa alguém que chora e vive em lugares exíguos, como Rute, valoriza o pouco que
obtém.
O livro apresenta um crescente alargamento de horizonte, anunciado pelo versículo do
livro de Gálatas – “Vede com que tamanho de letras vos escrevo” (apud Prado, 2010, p. 23) –
que enfeixa a segunda seção. No poema “A escrivã na cozinha”, o eu lírico está em lugar mais
espaçoso, visto que, nos textos iniciais, ele se restringira ao porão, ou a um beco estreito. Na
área mais arejada, trabalha e pensa: se sua vida fosse um livro, se chamaria “Ao meio-dia um
rosal”. O título inventado condiz com sua visão esperançosa, e a hora do dia escolhida, a de
maior incidência de sol sobre a terra, é coerente com a predominância de textos diurnos em
detrimento dos noturnos. A cena eleita revela mais uma vez o motivo de sua escrita: “A
beleza transfixa, / as palavras cansam porque não alcançam, / e preciso de muitas para dizer
uma só” (Prado, 2010, p. 25). A constatação da limitação da linguagem conjuga-se à da triste
existência do ser humano: a vida é um “vale de lágrimas” (Prado, 2010, p. 26). Desamparada,
a poetisa volta a reclamar do ofício de escritora em “Nem parece amor”:

Perdi a conta das vezes


que retomei esta escritura
sem avançar de sítios pantanosos,
tomando por melodia
o que era um ranger de ferros
de máquina contristada em seu limite.
Foi ontem e já tem cem anos,
faz um minuto só,
foi agora e foi nunca,
jamais aconteceu,
não há, não houve,
o que não tem palavras não existe.
(...)
Aquele que não responde
trata-me como a um cão
que por não ter aonde ir
se enrondilha aos Seus pés (Prado, 2010, p. 92).

A dificuldade na lida com as palavras é semelhante à de seu relacionamento com o


divino. Nas duas instâncias – a artística e a religiosa –, o tempo não é mais racional e
cronometrável, pois o que se deseja é registrar a beleza e seus efeitos. Como afirma
Hamburger, “a poesia lírica, por sua própria natureza, sempre esteve menos preocupada com
o tempo contínuo, histórico ou épico, com cronos, do que com kairós e o que Joyce chamava
de epifanias, momentos em que a experiência ou a visão se concentram e cristalizam” (2007,
p. 86). O instante é efêmero; para que a beleza não se esvaia com ele, a palavra poética busca
fixá-la.
No poema acima, homônimo ao livro (“Pelicano”), tanto o navio quanto Jonathan são
objetos que, primeiro, atraem o olhar do eu lírico e, em seguida, conquistam seu amor. A
contemplação é demorada, só interrompida pelas exclamações, que, como já observamos,
embasam o texto poético adeliano. Depois, o discurso admirado é repetido para as pessoas ao
redor, embora muitas vezes o próprio locutor não o compreenda, nem saiba de onde vem.
Nesse momento, experimenta-se o gozo poético, comparado, explicitamente, àquele vivido
pelos discípulos de Jesus, quando assistem, dentro de um barco, à caminhada de seu mestre
sobre o mar. Mais uma vez, a experiência artística é equiparada à mística. Além do navio,
contempla-se, ama-se e registra-se “um sentimento”, chamado de “Tu”, “Vós”,
“Misericórdia” e, enfim, de “Amor”. À visão seguem-se “interjeições, mutismos, / vocativos”:
tal acontecimento é denominado, explicitamente, de “poetização”. A forte experiência, para
não ser confundida com um devaneio, é chamada de visão “lúcida, lógica, / verdadeira como
um navio”. Para Hohlfeldt, “a coerência da imagem é absoluta: o navio carrega em seu bojo
as pessoas, nutrindo-as de seu próprio interior, como o faz o pelicano. Por outro lado, o navio
é símbolo de salvação, não apenas para o náufrago, quanto, metaforicamente, para a alma da
humanidade” (2000, p. 92).
Enfim, em O pelicano preza-se a beleza das imagens: a parte inicial “Licor de romãs”
é como um aperitivo – apresenta a belíssima cena do homem na campina olhando o céu e
exclamando coisas maravilhosas –, e a final, “Colmeias”, reafirma a doçura primeira,
finalizando a “refeição” com uma sobremesa, apostando na continuidade da alegria e do amor,
à revelia do tempo que passa e da dor. O livro seguinte, A faca no peito (1988), é uma
continuação ou, no máximo, uma variação do mesmo tema de O pelicano: o amor por
Jonathan e pela arte. Registra as últimas palavras da escritora antes de um silêncio de onze
anos, antecipado pela epígrafe emprestada, mais uma vez, de Guimarães Rosa, “Coração da
gente – o escuro, escuros” (apud Prado, 1988, p. 5), porém é luminoso e esperançoso. A
poesia existiria por duas razões, que intitulam os blocos: “Por causa da beleza do mundo” e
“Por causa do amor”. Perplexa com a força da Arte, Adélia faz do próprio discurso estético
um mote para seus poemas, investe mais uma vez na escrita metalinguística.
Um dos momentos eleitos para ilustrar o belo é um funeral, apreciado pelo eu lírico de
“A Morte de D. Palma Outeiros Consolata”. Constata-se que o velório, mais que o momento
do enterro, é local ideal para a contemplação detida “durante horas”. O semblante
extremamente severo da morta é focalizado, e quem a vela espera uma suavização. Se a
existência é dor, esperava-se que a expressão da falecida revelasse satisfação. Todavia nem a
presença dos mais queridos a atenua, o que desconsola o eu lírico.
Na esteira da interrogação existencial, “O Demônio tenaz que não existe” exibe uma
cena externa: um avião despenca do céu em um mar “de delícias”, onde “barcos naufragam”.
As antíteses – alto e baixo, ar e água, gozo e morte – são convocadas para expressar a
intensidade do sentimento lírico. A existência, nestes termos, é considerada um desastre:

ser o corpo do tempo,


existir,
o intermitente pavor.
Jonathan, a morte é amor
e por que
– se tenho certeza – ainda temo? (Prado, 1988, p. 35).

A ordem espacial dos versos na página expressa o conteúdo angustiante, a dificuldade


de compreender e de aceitar a si e ao que está ao redor. No entanto, tudo tem um limite:
depois de reflexões profundas, libera-se o sentimento conflituoso e brinca-se com as rimas e
com as aliterações (do /p/ e do /s/) que cria um ritmo mais suave e alegre:

Quando abri a porta de noite,


lá estava um sapo
de pulsante papo,
um pacífico sapo.
Pensei: é Jonathan disfarçado,
veio aqui me visitar.
(...)
Sob céu estrelado,
ficarei sem dormir, admirada (Prado, 1988, p. 35).

A presença atípica do animal em meio a questões existenciais e a capacidade lúdica da


poesia distensionam o ambiente lírico. O ritmo também é essencial em “Como um bicho”, que
anota as sensações mais primitivas do ser humano:

Tan-tan, tan-tan,
um tambor antiquíssimo na selva
(...)
tan-tan, tan-tan,
as estrelas são altas e os répteis astuciosos.
Tan-tan, meu pai, tan-tan,
ó minha mãe,
ponta de faca, dentes,
água,
água não. Um pastor com sua flauta
no rochedo,
o que nada pode erodir.
Assim meus pés descansam
e minha alma pode dormir.
Tan-tan, tan-tan,
cada vez mais fraco.
Não é meu coração,
é só um tambor (Prado, 1988, p. 37).

A repetição da onomatopeia marca as batidas do coração do eu lírico tomado de medo


pelos perigos da selva. Nesse contexto, até Deus é descrito como um animal – que pega, mata
e come. O ritmo truncado do texto está associado ao compasso de um instrumento antigo: o
medo, uma das primeiras reações humanas, como a analogia, está plantado “no tempo do
mito” (Paz, 1984, p. 101). O barulho do tambor e o movimento do músculo metaforizam os
temores ancestrais do homem: a noite, a floresta, os astros e os animais. O ser assustado clama
por proteção paterna, a qual assume a forma de objetos pontiagudos. No entanto, elementos
nada ameaçadores o salvam e, assim, o eu lírico consegue descansar, como se o som
apaziguador da música pastoril vinda do alto das pedras produzisse um efeito mágico sobre
ele. “Pastor” e “rochedo” são epítetos bíblicos de Deus: Ele é quem poderia abafar o “tan-tan”
amedrontador e fazer com que o eu lírico recuperasse a razão, expressa nos dois últimos
sensatos versos.
No segundo bloco, quando os motivos amorosos da escrita são revelados, o sentimento
intensifica-se devido à chegada de Jonathan, em “Matéria”:

Mas não quero que Jonathan se demore.


Há o perigo de eu falar
na presença de todos
uma coisa alucinada.
O que quer acontecer pede um metro imprudente,
clamando por realidade.
Centopeias passeam no meu corpo.
Ele me chama Agnes
e fala coisas irreproduzíveis:
“Entendo que uma jarra pequena
com três rosas de plástico
possam inundar você de vida e morte.”
Você existe, Jonathan? (Prado, 1988, p. 41).

A beleza de Jonathan transtorna a poetisa, que recebe um nome, Agnes, “inspirado no


grego Hagné, ‘pura, santa’ ou no latim Agna, ‘ovelha, cordeirinha’” (Obata, 2002, p. 19).
Apesar de negar a origem divina do ser amado, o relacionamento entre eles é religioso. O
discurso dele – descontextualizado do restante do poema e absolutamente estético – aponta
para outra dimensão transcendental, a da arte: a imagem construída parece uma natureza
morta. Poderosa é sua ação naqueles que a contemplam: vida e morte, realidades que, pelo
viés religioso, só Deus pode determinar. O magnetismo anunciado já havia atingido Agnes,
deixando-a em estado entorpecente – por isso ela responsabiliza Jonathan por fazê-la esquecer
de Deus e por sua produção artística. Reconhece-o, assim, como inspirador de sua poesia, um
ser mais abstrato que concreto, tão fantasmagórico, que o poema é encerrado com a dúvida
sobre a existência dele, desconcertando o título do poema, “Matéria”. O que existe em desejo
pode ser considerado real? De acordo com Paz, “a poesia é a ponte entre o pensamento
utópico e a realidade, o momento da encarnação da ideia” (1984, p. 143). Ou ainda, de acordo
com Adélia, em “Mandala”:

Minha ficção maior é Jonathan,


mas como é poética, existe
e porque existe me mata
e me faz renascer a cada ciclo
de paixão e de sonho (Prado, 1988, p. 63).

O discurso artístico continua em “Formas”, mas agora quem fala “uma jarra pequena /
com três rosas de plástico” (Prado, 1988, p. 43) é a própria poetisa, que reproduz a frase de
Jonathan, focalizando também “manchas de luz na parede”. A proximidade com ele gera uma
alegria imensa (apesar da tristeza que ele também lhe causa) e, em “O encontro”, ela sente
necessidade de falar porque dá um passo à frente no conhecimento do ser amado: para além
da visão e da contemplação, ela o toca:

Acompanhei com os dedos


o desenho miraculoso do teu lábio,
contornei-lhe as gengivas,
bati-lhe no dente escuro
como em um cavalo,
um cavalo meu na campina (Prado, 1988, p. 51).

O corpo do amado não é descrito, nem sentido, sensualmente. Ela contempla sua
beleza, como se estivesse observando uma tela, ou como se modelasse uma escultura. Isso
porque Jonathan é a encarnação da beleza divina, por isso não pode ser visto diretamente,
apenas pode ser vislumbrado – ele personifica uma tensão gerada por forças que, filosófica e
historicamente, foram afastadas: o espírito e a carne; o mal e o bem; deus e diabo:

Se Jonathan for deus estarás certa


e se não for, também,
porque assim acreditas
e ninguém é condenado porque ama (Prado, 1988, p. 25).

Às vezes, os versos revelam um masoquismo inerte a todo ser: no último poema de A


faca no peito, “O aprendiz de ermitão”, afirma-se que a dor é intrínseca à existência. Ao
solicitar a continuidade do sofrimento, deseja-se, na verdade, uma vida longa. Apesar de todas
as contradições e dos males, viver é bom porque há beleza e amor. Por isso o primeiro verso
reclama do jejum prescrito: como não se fartar? Como renunciar ao prazer? As formas dos
seres são admiráveis – da língua dos papagaios ao nariz de Jonathan:

É muito difícil jejuar.


Com a boca decifro o mundo,
proferindo palavras,
beijando os lábios de Jonathan
(...)
dor tão bonita que eu peço
dói mais, um pouquinho só.
Não me peça de volta o que me destes, Deus.
(...)
Borboletas em bando,
bando de estrelas no céu,
feitos para deixar minha alma admirada.
Ó mundo bonito!
Eu quero conhecer quem fez o mundo
tão consertadamente descuidoso.
A língua dos papagaios parece assim
castanhas de caju,
o nariz de Jonathan, o Vosso. Perfeições.
Os papagaios falam, Jonathan respira
(...)
Eu sei? Não sei.
Mas tudo é corpo, até Vós,
mensurável matéria.
O espírito busca palavras,
quem não enxerga ouve sons,
quem é surdo, vê luzes,
o peito dispara a pique de arrebentar.
Salve, mistérios! Salve mundo!
Corpo de Deus, boca minha,
espanto de escrever arriscando minha vida:
eu te amo, Jonathan,
acreditando que você é Deus e
me salvará a palavra dita por sua boca.
(...)
Me dá coragem, Deus, para eu nascer (Prado, 1988, p. 83-84).
A poetisa está feliz porque, finalmente, o ser amado se declara, chamando-a de
“Primora”, “nome de amor inventado”. Atentando para a etimologia da palavra, chegamos ao
vocábulo latino “primor”, que significa “perfeição, excelência” (Houaiss e Villar, 2008, p.
604). O vocativo é um elogio carinhoso, e o amor dele a recria. Se os poemas anteriores
indicavam que a imaginação dela o havia criado, a situação se inverte, e ela aceita ser nova
criatura, haja vista o derradeiro verso de A faca no peito. A figura de Jonathan se confunde
novamente com a de Deus, pois Primora utiliza o pronome de segunda pessoa do plural,
geralmente empregado nas referências à divindade, quando trata com ele. Deus e Jonathan a
amam: essa revelação cumpre o maior desejo de seu coração. Depois disso, não há mais
necessidade de palavras e ela se cala, permanecendo mais de uma década em silêncio. No
livro seguinte, só vislumbraremos Jonathan, implicitamente, no último poema – o que
confirma a resolução do seu caso com ele.
Outras questões serão abordadas em Oráculos de maio (1999), especialmente em
relação ao tempo e seus efeitos físicos e psicológicos:

Tanto mais perto quanto mais remoto,


o tempo burla as ciências.
Quantos milhões de anos tem o fóssil?
A mesma idade do meu sofrimento.
(...)
te amo, ó mundo, desde quando
irrebelados os querubins assistiam.
(...)
ó grão de mostarda aurífera,
coração diminuto na entranha dos minerais.
Em lama, excremento e secreção suspeitosa,
adoro-Vos, amo-Vos sobre todas as coisas (Prado, 2007, p. 15).

No poema acima, “O tesouro escondido”, tenta-se uma associação entre tempo e


sentimento. Conseguiria o tempo medir a duração do sofrimento tal como mensura a
existência de um fóssil? E por que temos a impressão de que o tempo despendido com o amor
e a contemplação da beleza corre de maneira diferente de quando realizamos tarefas comuns?
Para se aprofundar nesse mistério, o olhar da poetisa vai do presente ao passado, dos céus à
terra, do diminuto ao grandioso. Diante da beleza (até a mais exótica, haja vista os versos
finais), da essência divina, os tempos se misturam.
Se o que é marginalizado é chamado para o centro da poesia adeliana, o que é pequeno
também é focalizado: em “Staccato”, os holofotes flagram uma formiga e seu ritmo breve e
sutil. A pergunta que o inseto faz ao eu lírico – “aonde vais, celerado, que não me ajudas?”
a emoção do prazer sexual é semelhante a do êxtase religioso (o gozo é como a sensação de
eternidade).
No terceiro bloco de A duração do dia, quinze poemas contemplam o tempo dedicado
a atividades livres que proporcionam gozo, conforme a epígrafe bíblica anuncia: “Neste
momento, ela descansa um pouco sob a tenda” (Prado, 2010, p. 39). Alguns deles retomam
acontecimentos da infância do eu lírico, como “Harry Potter”, que flagra o gosto pelo
fantástico e pela criação poética indiciado por um hábito de criança, o de hipnotizar galinhas.
Para a imaginação infantil, aquilo não era apenas uma brincadeira:

Alguma força se esvaía de mim,


pois ficávamos tontas, eu e elas.
Ninguém percebia minha ausência,
o esforço de levantar-me pelas próprias orelhas,
tentando o maravilhoso.
Até hoje fico de tocaia
para óvnis, luzes misteriosas,
orar em línguas, ter o dom da cura.
Meu treinamento é ordenar palavras:
Sejam um poema, digo-lhes,
não se comportem como, no galinheiro,
eu com as galinhas tontas (Prado, 2010, p. 41).

Tal como o personagem contemporâneo referido no título (a autora aproveita a série


best seller de histórias fantásticas Harry Potter para se reportar à infância imaginativa), o eu
lírico acreditava em poderes sobrenaturais e ocupar-se com eles era sua atividade preferida.
Na verdade, ainda é, apesar dos efeitos esperados serem de outra ordem. Mudou também a
recepção de suas tentativas: se antes “ninguém percebia” suas esquisitices; hoje, seu ofício é
aplaudido por muitos. Ao invés de encantar os bichos – e por eles ser encantada –, a poetisa
organiza palavras no intuito de que não sejam tolices; a força criativa é a mesma do passado,
apenas foi modelada.

2.2.2 Sonhos

Mais questionáveis que a memória afetiva, os sonhos também são frequentes nos
poemas de Adélia. Como os escritores românticos, que valorizavam extremamente o estrato
onírico, a poetisa também faz dele ‘“uma segunda vida’ e, mais ainda, uma ponte para atingir
a verdadeira vida, a vida do tempo do princípio. A poesia é a reconquista da inocência” (Paz,
1984, p. 86). Ao estabelecer contato com o passado e com o desconhecido, os sonhos
contribuem para o flagrante da beleza. Sua interpretação é fundamental porque eles revelam
imagens fundadoras da poesia adeliana. Em Solte os cachorros, ela revela: “O sonho encheu a
noite, extravasou pro meu dia, encheu minha vida e é dele que vou viver, porque sonho não
morre” (1987b, p. 106).
Em “No meio da noite”, de Bagagem, a cor das flores sonhadas opõe-se à do pano de
fundo:

Acordei meu bem pra lhe contar meu sonho:


sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escuro.
Não fosforeciam, nem cheiravam, nem eram alvas.
Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro, a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
“A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão inchando úmidos, vão brotar sinos.”
Doía como um prazer.
(...)
Respondi que queria ser singela e na mesma hora,
singela, singela, comecei a repetir singela.
A palavra destacou-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou.
O que que foi? – ele disse.
– As buganvílias... (Prado, 1976, p. 29).

A forma (a flor suspensa) e as cores (branca e preta) enfatizadas conferem plasticidade


ao poema. Negações e pormenores terminam de desenhar a flor; embora a visão seja
explorada, a experiência sonhada é tão densa que exige uma expressão sinestésica. O discurso
é coerente com a imagem introdutória: o estado em que a flor se encontra (vigoroso) e sua cor
simbolizam a eterna juventude, algo só possível em sonho, ou na ficção. Estranhamente, a
mensagem boa provoca dor e prazer ao mesmo tempo, pois os paradoxos são essenciais para
Adélia: sem eles, é impossível tratar inteiramente da vida.
Outro poema valoriza a matéria-prima informe: apesar do artigo indefinido do título,
“Um Sonho” é de grande importância:

Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer,


por isso o escrevo tal qual se deu:
era que me arrumava pra uma festa onde eu ia falar.
(...) uma sempre-viva amarela,
que me encantou por seu miolo azul, um azul
de céu limpo sem as reverberações, de um azul
sem o z, que o z nesta palavra tisna.
Não digo azul, digo bleu, a ideia exata
de sua seca maciez. Pus a flor no casaco
que só para isto existiu, assim como o sonho inteiro.
Eu sonhei uma cor.
Agora, sei (Prado, 1976, p. 86).

Detalhes são captados: o cabelo é de aspecto avermelhado; o vestido, azulado; o corpo


e as pernas, joviais. Apesar da preparação – “Todo movimento era de espera e aguardos” –, a
mulher não discursa. Na verdade, no poema, o objetivo da arrumação é o que menos importa:
mais valiosa e bonita é a “sempre-viva” colocada por cima da roupa, devido a sua
representação visual (não é de uma cor só) e ao sentido que evoca (o nome da flor retoma o
desejo do primeiro verso: eternidade). Na ausência da “fala” prometida no início do poema,
temos versos que se ocupam com o som da palavra que se refere ao centro da flor. Exagero?
Confirmação de que o dado mais simples pode ser o mais importante e, por isso, guardado na
memória e escopo do poema.
O poema “A faca no peito”, de Terra de Santa Cruz, prenuncia o livro homônimo
publicado em 1987 e também lança mão de sonhos que, em geral, tratam da dor que há em
toda relação amorosa. O objeto cortante é metáfora do amor que o eu lírico dedica à poesia. O
fascínio causado pela beleza literária é como um golpe fatal: disponibilizam o ser para a vida
e para a morte. No poema, depois de um enfrentamento com os padres, a poetisa vai dormir
“com o peito perfurado de culpa” e sonha com realidades díspares:

Que região é aquela, de areia e mar,


arco-íris góticos?
tão próxima do céu, sendo ela mesmo um inferno?
(...)
Todos se lembravam: de algum lugar
o vento trouxera mesmo um cheiro de cadáver.
Mas quem ousaria supor o acontecido?
O vento do mar dobrava uns postes com fios,
gabirobeiras em flor, como noivas,
eram pura alegria,
luz aquecida contra o sonho cru (Prado, 1981, p. 67).

Na primeira parte do sonho, os pais falecidos queixam-se, sofrem e choram porque


uma das filhas havia matado a irmã; na segunda, mulheres se banham e se masturbam
“ouvindo um rapaz charmoso discursar” em um lugar paradisíaco. As duas cenas distintas são
conectadas pela presença do vento. Ao acordar, o eu lírico quer interpretar o que sonhou e, em
especial, encontrar-se nas ações:
Quem sou eu?
A morta, a assassina, o prevaricador mentiroso?
Só sei que eram ameaçadoras
claridades, bênçãos, cavernas.
Meu coração suporta grandes pesos.
Nem em sonhos repousa (Prado, 1981, p. 67-68).

O sujeito poético acredita na relação entre sonho e vida real, por isso não consegue,
nem ao dormir, descansar. A necessidade de expor o sentimento, como também de
compreendê-lo, continua em A faca no peito. Para isso, a parte inicial de “O conhecimento
bíblico” retoma o princípio de tudo:

Deus me deu um amor e estas palavras


pra que eu possa erigi-lo,
palavras e um rito,
um lugar entre ruínas, longe
de todo bulício humano conhecido.
(...)
você exposto, nu,
à minha sanha de perfeição.
São teus pés que nunca vi
que ameaçam minha vida
porque tua alma já é minha.
(...)
Eu só quero o que existe,
por isso erijo este sonho,
concreto como o que mais concreto pode ser (Prado, 1988, p. 50).

A participação do eu lírico é ativa: cria para si um lugar próprio, silencioso, onde é


feliz, tanto que chega a despertar a inveja dos demônios, “os que se ocupam em gerar o medo”
(Prado, 1988, p. 49). O sentimento é entendido como a maior angústia do ser humano, pois
desequilibra o que foi construído pelo amor e pelas palavras, pela solidão e pelo silêncio. Um
“pensamento sujo” aflige a poetisa: a exposição da nudez de Jonathan seria motivada pelo
poder do mal. Ela deseja vê-lo nu, e sua imaginação curiosa aumenta a já grande obsessão.
Quando tudo parece abstrato, ela retifica com a concretude: o amado é construído com os
materiais dados por Deus (amor e palavras) e o lugar onde ela deseja ficar, “onde não tenha
ninguém, um lugar entre ruínas” (Prado, 1988, p. 50), é semelhante a ele. Para quem acredita
no amor e na perfeição como realidades possíveis, o tempo sempre é messiânico e suas
barreiras se tornam dobráveis.
2.3 Intertextualidade

A referência a escritores que contribuíram com o desenvolvimento da sensibilidade


estética de Adélia também é procedimento poético que resgata o belo. Como todos os artistas,
a poetisa dialoga, por meio de sua obra, com aqueles que lhe abriram o espírito para a
literatura e que lhe ensinaram a ver e a expressar a beleza. O material produzido por eles está
na lista do que ela deseja imortalizar: “Não invejo os deuses, porque não existem. / Os gênios,
sim, os que dizem: / eis a forma nova, fartai-vos” (Prado, 1978, p. 80). Trataremos, portanto,
de alguns poemas emblemáticos que retomam – e perenizam – a beleza de textos clássicos,
como os bíblicos, e de textos modernos, como os de Carlos Drummond de Andrade,
certamente a quem mais a poetisa se vinculou.
No primeiro texto de Bagagem, o eu lírico pede permissão a alguém para escrever um
texto semelhante; o interlocutor de “Com licença poética” é, em especial, o poeta mineiro
acima referido. Os primeiros versos do livro aproveitam a estrutura sintática e lexical do
“Poema de sete faces”, apesar de este apresentar sete estrofes e aqueles apenas uma (em geral,
os poemas adelianos são monoestróficos). Se a referência explícita ao modernista de Alguma
poesia subordina a recém publicada à obra dele, isso não reduz a importância de Bagagem,
pois a igualdade começa e acaba por aí, impedindo que a poesia nova seja um simulacro da
antiga. O texto da década de 1970 estabelece, convictamente, contrapontos: opõe o anjo torto
e sombrio e o anúncio do destino marginal a uma figura celestial esbelta (também diferente da
tradicional), que toca trombeta e anuncia o nobre destino da mulher que vai à frente de uma
batalha. Além disso, seus versos são mais esperançosos que os do modernista. Dessa maneira,
sua missão de poetisa é revelada:

Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.


Inauguro linhagens, fundo reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô (Prado, 1976, p. 23).

Os três primeiros versos acima citados sintetizam a base poética que sustenta a
poetisa: romanticamente, ela registra sentimentos, escritos não por desejo dela, mas por
imposição; e, assumindo a tarefa irrecusável, não imita ninguém. Logo, a poetisa mineira
estreia com um dialogismo, termo empregado por Bakhtin para indicar uma escrita que se
relaciona com outra em “um movimento de discordância e concordância, de fusão e atrito
entre vozes muitas vezes parecidas, mas que também não deixam de, em muitos momentos,
apresentarem-se ‘estranhas e hostis’ entre si” (Balbino, 2005, p. 27). Aproveita, então, a
capacidade generativa do signo, que o abre “para a réplica, para o prosseguimento e para a
reinterpretação” (Cury apud Balbino, 2005, p. 28).
Outro poema do mesmo livro homenageia Drummond: em “Todos fazem um poema a
Carlos Drummond de Andrade” há duas vozes líricas, a primeira apresenta a segunda, uma
mulher que inveja o poeta e apresenta suas razões:

Vamos ambos à enciclopédia, seguiu dizendo, à cata


de constituição, e paramos em “clematite, flor lilás
de ingênuo desenho que ama desabrochar nas sebes europeias”.
Temos terrores noturnos, diurnos desesperos
e dias seguidos onde nada acontece.
Comemos, bebemos e diante do nosso nome impresso
temos nenhum orgulho, porque esta lembrança não deixa:
uma vez, na Avenida Afonso Pena, um bêbado gritando:
“Todo mundo aqui é um saco de tripas”.
Carlos é gauche. A mim, várias vezes, disseram:
“Não saber ler a placa? É CONTRAMÃO.”
Um dia fizemos um verso tão perfeito
que as pessoas começaram a rir. No entanto, persiste,
a partir de mim, a raiva insopitada
quando citam seu nome, lhe dedicam poemas.
(...)
“Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”
Só à ponta de fina faca, o quisto da minha inveja,
como aos mamões maduros se tiram os olhos podres.
Eu sou poeta? Eu sou?
Qualquer resposta verdadeira
e poderei amá-lo (Prado, 1976, p. 69).

O primeiro eu lírico age com ironia em relação à poetisa invejosa, haja vista o título,
pois a insere em um poema que elogia Drummond. A causa da antipatia, estranhamente, são
as “extraordinárias semelhanças” entre eles, como o interesse de ambos por um mesmo
verbete, a atração que sentem pelas mesmas formas, a ideia de serem pessoas comuns, apesar
de escreverem belos textos (entretanto os “versos perfeitos” que fazem provocam risadas dos
leitores).
O eu lírico sente raiva de Drummond e de si mesmo. A poesia do renomado poeta
parece diminuir a sua, a ponto de se perguntar se é ou não uma poetisa. Assim, pelo avesso,
ela declara seu amor ao escritor que rechaçava a pieguice. Dessa maneira também debate,
antes dos críticos, o diálogo que assume com a obra drummondiana.
Outro escritor reverenciado explicitamente, Murilo Mendes, é personagem do poema
“Fraternidade”, sentimento que pode nomear as convergências entre seus textos: também
mineiro, o autor se enveredou tanto pelo viés místico (Tempo e eternidade, de 1935), quanto
pelo plástico (O visionário, de 1938). No texto adeliano, Murilo ri porque “a paciência de
Deus” lhe pisca “um código” (Prado, 1978, p. 94), ou, de acordo com Bosi, porque “perfura a
crosta das instituições e dos costumes culturais para morder o cerne da linguagem religiosa,
que é sempre ligação do homem com a totalidade” (1972, p. 498). O sentimento religioso e
poético do escritor em muito se alinha ao da poetisa, como percebemos nos versos dele:
“Amor, palavra que funde e que consome os seres, / Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu”
(apud Bosi, 1972, p. 500). E ainda:

Há grandes forças de matéria na terra no mar e no ar


Que se entrelaçam e se casam reproduzindo
Mil versões de pensamentos divinos.
A matéria é forte e absoluta,
Sem ela não há poesia (apud Bosi, 1972, p. 501).

O apontamento de João Cabral a respeito dos versos acima ratifica a aproximação


entre os mineiros: “a poesia de Murilo me foi sempre mestra, pela plasticidade e novidade da
imagem. Sobretudo foi ela quem me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem,
ao plástico sobre o discursivo” (apud Bosi, 1972, p. 498). No poema “Fraternidade”, temos
uma cena popular: um padre milagreiro abençoando mulheres (“de cabacinha de ouro na
orelha”), homens (“de camisa cor-de-rosa”) e crianças (“de todo jeito e de terninho”). O que
mais chama atenção não é a situação em si, mas o olhar do eu lírico em relação às pessoas,
que as caracteriza de maneira singular. Os instrumentos do religioso – “galho de funcho,
arruda, manjericão” – conferem ao quadro cores e cheiros: “Tudo ótico, olfático,
escatológico” (Prado, 1978, p. 94) sendo observado pacientemente por Deus, de “pernas
cruzadas”, fumando e segurando no joelho. A postura blazé com que a divindade é pintada
revela ironia em relação à atitude do religioso e à atenção que as pessoas lhe dedicam.
Em A faca no peito, outro poeta aparece, mas implicitamente, em “A Formalística”:

Seu lápis é um bisturi


que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário (Prado, 1988, p. 15).
Os traços nos lembram João Cabral de Melo Neto – o “poeta cerebral” –, mas também
aqueles que colocaram a forma do verso em primeiro plano, como os parnasianos, muito
queridos pela poetisa em sua juventude. Outra imagem é associada à do poeta no gabinete: a
de uma religiosa que caminha à noite no atendimento da vontade divina. A analogia os
aproxima devido à forte obstinação que motiva um e outro: o homem está tomado pela Musa;
a mulher, por Deus.
Adélia dialoga fartamente também com a tradição judaico-cristã: em “O corpo
humano”, de Terra de Santa Cruz, numerosas passagens bíblicas são inseridas no texto:

Lava-me com o hissopo e ficarei mais pura do que a neve.


(...)
“Seca-se a erva e cai a sua flor,
mas a palavra do nosso Deus
permanece eternamente.”
(...)
“porque meu auxílio está no nome do Senhor
que fez o céu e a terra.” (Prado, 1981, p. 87-88).

Hohlfeldt aponta o procedimento – a “apropriação, transubstanciada, do texto do


Velho Testamento, adaptando-o à organização e à intenção de cada obra” (2000, p. 87) –
como um dos mais reincidentes na obra da escritora. Os versículos citados são muito comuns
dentro do universo religioso cristão e ocupam quase a metade do poema. Apontam para o
apego do ser humano a Deus, atribuindo-Lhe a força, a coragem, a criação. O ser que se
considera fraco e medroso pede repetidas vezes proteção e, especialmente, teme a morte:

Uma sensação que tive esfumou-se, ia causar espanto,


tão insolitamente poética afigurava-se.
Tudo é por causa da morte, a mágica,
a forma provençal de el corazón,
a mão desobturando o peito de seus ossos
e pinçando o que em mim é pura dor,
coração.
Ninguém entenderá bem o que digo
e é bom que seja assim pra que os poemas não desapareçam
e se façam necessários como o ar (Prado, 1981, p. 87).

A poetisa revela seus temores porque acredita que a poesia de alguma forma pode
salvá-la, embora não consiga explicar isso logicamente. Vinculada àquela tradição modernista
que não simpatiza com a transparência da palavra poética, Adélia chama atenção de que
apreciamos a arte não porque abarcamos seu significado completo, mas porque captamos sua
sensibilidade.
Estratos menos clássicos também são valorizados pela escritora: em “As seis
badaladas do entardecer”, de O pelicano, o eu lírico se compara a outros artistas na tentativa
de exprimir a maravilha de um final de dia (exatamente às seis horas da tarde):

Cantores populares do Brasil


fizeram fama e fortuna
cantando-lhe o doce encanto.
Pinhos plangeram,
mágoas rolaram, dolentes,
flores após langores
e até lívidas papoulas
estremeceram de frio nestes versos,
“Como lívidas papoulas
são teus olhos lantejoulas”.
(...)
Papai já jantou faz tempo.
Mamãe já morreu faz tempo,
faz tempo que estou aqui
fingindo fazer chalaça.
Papai olha o relógio:
“6 horas já. Quem não fez não faz mais.”
Vermelhidões de incêndio,
os rostos meio pálidos fulguravam (Prado, 1987a, p. 16).

A aliteração do /f/ e de outros fonemas (“cantores”, “cantando” e “encanto”) explicita


a repetição musical e vocabular das canções referidas, no entanto, elas não são rechaçadas,
pelo contrário, o eu lírico valoriza a capacidade de os artistas, mais humildes, enxergarem as
belezas do mundo e tentarem expressá-las. A análise parte da fonética e chega aos lugares-
comuns das letras: a noite, extremamente cantada, é chamada de “negro manto”, “restos de
luz no poente”, “ocaso” e “crepúsculo”. A indicação de metáforas simples parece zombaria,
mas não é: as expressões populares são respeitadas pelo que veiculam de vital, haja vista a
ação daquelas músicas nas pessoas que as ouvem, colorindo-as de emoção.
Em “Tarja”, de Bagagem, a beleza contemplada é fúnebre: o eu lírico acha bonita a
seção “À sombra da Cruz”, de uma revista religiosa, “onde se recomenda à oração dos leitores
as almas dos assinantes”. Oito nomes, acompanhados pelas cidades dos falecidos, são citados
no poema; seis em um só bloco, os outros intercalados com assuntos diversos:

O nome das pessoas e de seus lugares,


registrados na página encimada por uma cruz
de pontas arredondadas, eu acho bonito sempre.
É necrofilia não, é simpatia, dor
que aos domingos me adula, açula um galo,
o gosto da melancolia
(...)
No domingo amarelo passa o chapéu florido.
A poesia, a mais ínfima, é serva da esperança (Prado, 1976, p. 67).

O gosto fora do comum leva a poetisa a se justificar. Registrando as pessoas em seu


poema, ela acredita cumprir, da maneira mais bela, o apelo da revista de rezar pelos falecidos:
poesia e oração, ambas provenientes da mesma Musa, ligam o mundo à eternidade. A
solicitação foi prontamente atendida também por uma particularidade: o capricho estético da
página decorada com cruzes a cativa, a visualidade toca sobremaneira a sua sensibilidade e
provoca-a a fazer um poema.
A intertextualidade foi empregada por Adélia de maneira progressiva decrescente, ou
seja, há mais referências em Bagagem e bem menos em A duração do dia. Aos poucos a
autora diminuiu o emprego do recurso: nos primeiros livros, sente a necessidade de explicitar
os vínculos intelectuais (até para, quem sabe, garantir respaldo); nos últimos, a presença de
outras escritas se restringe quase aos textos bíblicos.
3 Conclusão

Nos poemas de Adélia, a fixação de imagens objetiva a presentificação do mundo – ou


a criação de outros – por meio da palavra escrita. O relato da memória afetiva suspende o
tempo para que se experimente de novo – imperfeitamente embora – o passado. A beleza das
escritas fundadoras é retida por meio do diálogo intertextual, que expressa a herança literária
de que Adélia é devota. Esses três procedimentos são os mais recorrentes na obra poemática
de Adélia Prado, e visam, como observamos, eternizar a beleza por meio da palavra poética.
Dessa maneira, sublinha-se a capacidade transcendental da poesia, uma vez que ela consegue
algo só possível para Deus: de acordo com a doutrina judaico-cristã, com a qual Adélia se
afina, apenas a divindade pode romper as barreiras do tempo.
Ao valorizar ao máximo a palavra poética, Adélia sobreleva a função do poeta: se o
signo é capaz de captar a beleza e perenizá-la, o escritor pode ser considerado um semideus.
Em “O nascimento da poesia” (de O pelicano), o eu lírico encerra com a chocante
informação: “Sou Deus” (Prado, 1987a, p. 29). A afirmação é abrandada pela notícia
insistentemente anunciada de que o poeta é apenas o arauto que pronuncia oráculos divinos,
porque, “no fundo, a obra é sempre maior do que o seu autor” (Prado, apud Costa, 2005, p.
12). Contudo, se por um lado, o conteúdo advém da transcendência, por outro, há marcas
estilísticas do indivíduo, alcançando-se alguma autonomia, como lemos em “Direitos
humanos”:

Sou sua paisagem,


sua retorta alquímica
e para sua alegria
seus dois olhos.
Mas esta letra é minha (Prado, 2007, p. 69).

Nota-se um abrandamento, no livro Oráculos de maio, que trata da vocação


irredutível, em relação à obrigação assumida e, mais ainda, certo orgulho de haver forjado,
para além da passividade, uma dicção singular. Quem lhe sussurra os versos é Deus, mas a
mão que segura a pena é dela. Em síntese, a poesia nasceria do encontro de Deus com o
homem, do conluio entre eternidade e efemeridade, da mistura entre o confortável e o
desagradável, da aceitação do bem e do mal porque ela é “filha do embate dos opostos do
mundo” (Prado, apud Costa, 2005, p. 14).
Alguns poetas românticos já haviam prefigurado essa concepção. Goethe, defensor da
poesia como revelação da verdade, indicou que “o poema é, antes de tudo, Gestalt, forma
vida, beleza. Variando a concepção de Platão, declara que a beleza ‘não é luz e não é noite; é
crepúsculo; é resultado da verdade e não-verdade. Coisa intermediária’. São quase os termos
com que Sartre descreve a ficção” (Rosenfeld, 1981, p. 22). O paradoxo observado pelo autor
de Fausto e, posteriormente, por Rosenfeld, é “o objetivo dos poetas, (...) ‘dizer verdades’,
mas de maneiras necessariamente complicadas pelo ‘paradoxo da palavra humana’”
(Hamburger, 2007, p. 56).
Logo, se nosso estudo aponta que a palavra poética, em Adélia, é estratégia de
captação da beleza, tal objetivo só é conquistado no terreno ficcional e afetivo: a rigor, o
tempo evolui e as coisas fenecem. Da mesma maneira miramos o amor, que é bom, mas pode
ser mau. Como Deus é, e também não é. Portanto, a linguagem que se empenha em abarcar a
realidade integralmente será, sem ressalvas, paradoxal. O problema insolúvel aparece a todo
artista que se dedica à percepção do mistério da vida. Não é possível defini-la em um termo
apenas: o desejo de registrar tudo o que se refere à humanidade leva o artista a agir como o
narrador machadiano de Dom Casmurro, para quem “há um só modo de escrever a própria
essência, é contá-la toda, o bem e o mal” (Assis, 1966, p. 122).
A epígrafe escolhida para o bloco “Catequese” (de Terra de Santa Cruz) confirma a
não polarização da vida, nem mesmo em relação às coisas sagradas: “Tomei o livrinho da
mão do anjo e o devorei: / na boca era doce como o mel; quando o engoli, / porém, meu
estômago se tornou amargo” (apud Prado, 1981, p. 73). Até o texto bíblico entregue pelas
mãos angelicais possui dois sabores: a princípio, como consola o fiel, é açucarado; por fim, ao
simbolizar a fase das exigências religiosas, torna-se fel. Mais uma vez, sentem-se os
contrários num mesmo objeto: a leitura pode ser agradável e não provocativa (quando
superficial), como pode causar modificações interiores (quando digerida vagarosamente). No
mesmo sentido, em “A seduzida” (de A faca no peito), “Amor e morte são casados / e moram
no abismo trevoso” (Prado, 1988, p. 53): o sentimento passional da poetisa por Jonathan leva-
a, romanticamente, a desejar a morte dele para que, enfim, eles se encontrem pela eternidade.
Um dos filhos do casal fúnebre é “Felicitas”, que “tem o apelido de Fel” (Prado, 1988, p. 53).
Conclui-se, com isso, que:

O centro da luz é escuro


do negrume de Deus,
é sombra espessa de dia,
de noite tudo reluz (Prado, 1988, p. 53).
A gradação de luz aponta para a impossibilidade de definição sobre Deus, sobre o ser
humano e sobre o amor. A palavra poética, por maior que seja seu poder, consegue, no
máximo, eternizar as coisas, mas não decodificá-las, pelo contrário: no impedimento de
compreender mistérios, ela capta, imageticamente, a vida; por isso o texto resulta mais
plástico que discursivo.
Cada livro revela mais uma tentativa, mais um viés apreendido, mais um lance de
beleza eternizado, o que torna a obra adeliana coerente e coesa, pois sempre está a serviço do
mesmo objetivo. A interligação de obras sequenciais é relacionada, por Paz, com a ideia de
analogia, pois “cada obra é uma realidade única e, simultaneamente, é uma tradução das
outras. Uma tradução: uma metáfora” (1984, p. 92-93) – o que justifica nosso
empreendimento de análise – panorâmica e cronológica – dos sete livros de poemas da autora.
Os textos comentados são exemplares do viés poético e do procedimento estético
adeliano. Analisados numerosos poemas, constatamos a autonomia de sua dicção. A poetisa
ocupa um espaço de relevo na literatura brasileira contemporânea, realizando as palavras de
Drummond, em conversa informal com Pedro Paulo de Sena Madureira a respeito da novata,
na década de 1970: “Eu vou dizer a você que provavelmente estamos diante de um fenômeno
poético” (Madureira, 2005, p. 67).

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