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O Crente Fiel Pode Perder a Salvação?

C. Kleber Maia

O tema que sacudiu o mundo há 500 anos, quando ocorreu a Reforma Protestante, foi
o mesmo que ainda hoje desperta debates acalorados entre os cristãos: a salvação dos
homens. Os reformadores concordavam em tópicos importantes desta doutrina, como a
justificação unicamente pela fé em Cristo, por meio da graça de Deus. Porém, algumas
questões dividiam opiniões: O cristão fiel pode perder a salvação? O que poderia leva-lo a
isto? Abandonando a fé, o homem pode ser restaurado novamente? Após meio século de
opiniões diversas, teólogos arminianos e calvinistas ainda têm respostas divergentes para
estas indagações.
O pastor da igreja reformada holandesa do século XVI, Jacó Armínio (1559-1609),
num momento difícil para sua congregação em Amsterdã, em que a peste dizimava crentes
fiéis, deparou-se com dois pensamentos equivocados acerca da segurança da salvação:
Alguns não têm confiança na sua salvação e vivem com medo e desespero, enquanto outros
têm excessiva confiança em não perder a salvação, e ignoram a necessidade de vigiar e
afastar-se do pecado. Armínio falou sobre o tema da perseverança dos santos em alguns de
seus escritos.
Primeiro, ele estava convicto de que os crentes fiéis podem confiar que sua salvação
não está em risco de ser roubada ou cancelada por alguém, afirmando: “Meu sentimento a
respeito da perseverança dos santos é que as pessoas que foram enxertadas em Cristo, pela
fé verdadeira, e assim têm se tornado participantes de seu precioso Espírito vivificador,
dispõem de poderes suficientes [ou] forças para lutar contra Satanás, contra o pecado, contra
o mundo e a sua própria carne, e para obter a vitória sobre esses inimigos, mas não sem a
ajuda da graça do mesmo Espírito Santo.” (As Obras de Armínio, vol. 1, p. 232). Armínio crê
que o crente fiel está guardado pelo poder de Deus e é vitorioso contra os inimigos da fé,
tendo a sua salvação garantida pela graça e pelo poder divinos, e não afirmava que um
cristão verdadeiro iria, de fato, perder a salvação.
Porém, o teólogo holandês também afirma a necessidade dos crentes perseverarem
em Cristo até o fim: “No início da fé em Cristo e da conversão a Deus, o fiel se torna um
membro vivo de Cristo. Se ele perseverar na fé de Cristo, e mantiver uma boa consciência,
permanecerá como um membro vivo. Mas se ele se tornar indolente, se não tiver cuidado
consigo mesmo, se der lugar ao pecado, ele se torna passo a passo, meio-morto. E,
prosseguindo desta maneira, por fim, ele morre inteiramente e deixa de ser um membro de
Cristo.” (vol. 3, pp. 472,473).
Contrariando as afirmações dos teólogos calvinistas, que sustentavam a ideia que
“uma vez salvo, sempre salvo”, mas em consonância com a maioria dos teólogos cristãos ao
longo da história e com os pais da igreja (com exceção do Agostinho tardio), Armínio
afirmava a possibilidade de um crente fiel perder a salvação, se deixasse de ser um crente
verdadeiro, rejeitando a graça divina e abandonando a fé, posição esta que é defendida por
quase todos os arminianos.
Cremos que o Senhor Jesus mandou anunciar o evangelho a todos, e garantiu que
todos os que cressem seriam salvos (Mc 16.15,16; Jo 3.16; Rm 10.9; 1.16,17). O arminianismo
prega que Cristo morreu por todos (Rm 5.18; 8.32; Hb 2.9; 1 Jo 2.2) e quer salvar a todos os
homens (Tt 2.11; 1 Tm 2.4; 4.10; 2 Pe 3.9). Pela fé em Cristo, o crente vence o mundo e o
diabo (1 Jo 5.4,5; 2.14; Rm 8.37; 1 Co 15.57; Ap 12.11). O Espírito Santo, que habita em nós,
dá testemunho da nossa filiação divina e combate contra a carne, assegurando a nossa
vitória contra nossa própria inclinação para o pecado (Rm 8.15,16; 1 Jo 3.24; Gl 4.6; 5.17). A
segurança da salvação repousa, portanto, sobre a confiança na obra de Cristo e do Espírito
Santo em nosso favor; naquilo que Deus faz, e não no que fazemos.
Deus é quem toma a iniciativa de salvar o homem, e também fornece todos os meios
necessários para que o cristão persevere em Cristo e alcance a vitória final. O poder de Deus
é suficiente para nos guardar de cair (Jd 24; 1 Pe 1.5; Rm 14.4; 16.25-27; 2 Tm 4.18; Jo 6.39).
Ninguém pode nos afastar de Cristo (Jo 10.27-30) contra nossa vontade, desde que nós
continuemos a segui-lo (Jo 17.12; At 1.25). Deus ampara o crente até o fim, mas há condições
para o homem cumprir (1 Co 10.12): Os crentes têm a responsabilidade de perseverarem na
fé e na justiça, usando a graça que receberam de Deus (Jo 8.31; At 11.23; 14.22; Hb 10.38; 1
Jo 2.24).
O crente deve persistir até o fim em seguir a Cristo, para alcançar a salvação (2 Tm
2.10-12; Hb 10.35,36; Mt 10.22; Rm 11.19-22; Cl 1.21-23). O crente verdadeiro não perde a
salvação, mas deve ter cuidado para não perder a fé. A salvação é pela fé; seu abandono leva
à apostasia (Hb 3.12-14). O escritor da epístola aos Hebreus alerta sobre a possibilidade de
apostatar-se (6.4-6) e de afastar-se de Cristo por uma vida deliberada de pecado (10.26,27).
Os crentes precisam vigiar e afastar-se de pecar, sendo capacitados para isto pela graça de
Deus. A posse da vida eterna está condicionada a uma atitude persistente de confiança na
pessoa e na fonte da vida eterna – Jesus. Os arminianos advogam a verdade apresentada
nas Escrituras, que o crente deve permanecer em Cristo para ser salvo (1 Jo 2.24,25; Hb
2.1,3; Jo 15.4,5). Se alguém não permanecer em Cristo, o resultado será trágico (Jo 15.6).
Na visão arminiana, o eleito é aquele que Deus conhece por sua presciência, que vai crer e
perseverar até o fim, pela graça divina (1 Pe 1.2; Rm 8.28-30).
O pecado afeta grandemente a comunhão do homem com Deus (Is 59.1,2). O sangue
de Jesus garante a remissão dos pecados, mas não é uma permissão para pecar. A prática
do pecado leva ao amor ao mundo e à consequente rejeição de Cristo. Armínio (v1, p. 441)
aponta quatro causas que podem levar o homem a pecar: por ignorância (1Tm 1.13), por
fraqueza (Jo 18.15-18; 25-27), por negligência (Gl 6.1) e por malignidade (Mt 26.14-16).
O pecado não pode ser considerado normal na vida do crente, mas ainda pecamos
porque, além da nossa inclinação para o pecado ainda vigente, a carne, temos nossas
limitações, e a falta de conhecimento ou de força na hora da tentação pode nos fazer tropeçar
(1 Jo 2.1-5). Contudo, os pecados tidos como falhas comuns não tirarão do crente a sua
segurança em Cristo. Se os cristãos fossem salvos por terem uma vida imaculada, a salvação
seria pelas obras, e não pela fé. O crente precisa do perdão repetidas vezes, mas da salvação
apenas uma vez. Porém, a vida de pecado voluntário e deliberado leva o homem à perda da
fé (ou evidencia que ele já a perdeu).
O pastor Silas Daniel afirma no seu livro Arminianismo, A Mecânica da Salvação:
“Segundo a Palavra de Deus, perdemos a salvação: 1) quando apostatamos e não voltamos
atrás, 2) quando cometemos o pecado de blasfêmia contra o Espírito santo e 3) quando
perdemos a fé em Jesus e sua graça, ou seja, quando simplesmente não há mais fé” (pp.
458,459).
O pecado, especialmente por malignidade, ou seja, intencional, voluntário e
continuado, não é compatível com uma fé ativa e uma vida santa (Rm 14.23). A motivação
para o pecado é um elemento-chave para definir o estrago causado por ele na fé do cristão.
Aquele que pecar tem a certeza de alcançar o perdão, quando confessa seus pecados a
Cristo (1 Jo 1.9), a menos que tenha blasfemado contra o Espírito Santo, o único que o
convence de pecado e o leva ao arrependimento.
O crente fiel pode ter certeza da salvação, pela fé na obra divina por ele. Cristo morreu
por nós e pagou pelos nossos pecados, o Espírito Santo nos capacita a sermos santos e o
poder de Deus nos guarda de cair. Porém, se o crente se afastar de Cristo e negar a fé, se
viver voluntariamente no pecado continuado, deixa de ser crente e passa a ser um infiel,
para quem a salvação não é assegurada. Se o homem não rejeitar a graça divina, cooperando
com Deus neste processo (2 Co 6.1), não se perderá finalmente, e mesmo que enfrente
momentos de esfriamento espiritual e até mesmo venha a cair, poderá se levantar,
arrepender-se e ser restaurado pelo Espírito Santo. Vigiemos, pois, para não descairmos da
nossa firmeza, mas fazer cada vez mais firme a nossa vocação e eleição (2 Pe 1.10-12;
3.17,18).

Bibliografia

ARMINIO, Jacó. As Obras de Armínio. 3 volumes. Rio de Janeiro: CPAD, 2015.


DANIEL, Silas. Arminianismo, A Mecânica da salvação – Uma exposição histórica,
doutrinária e exegética sobre a graça de Deus e a responsabilidade humana. Rio de Janeiro:
CPAD, 2017.
STANGLIN, Keith; McCALL, Thomas H. Jacó Armínio – teólogo da graça. São Paulo:
Reflexão, 2016.
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Carlos Kleber Maia é pastor da Igreja Assembleia de Deus no RN. É bacharel em Teologia
com especialização em Teologia do Novo Testamento Aplicada.

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