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Josemir Camilo de Melo

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Raízes,
PhD em História, Professor Adjunto do Departamento de História e Geografia, Ano XVIII,
Universidade Federal da Paraíba, Campus II, ex-Coordenador de UNCAL (Unidade de Nº 20,
Estudos e Pesquisas sobre Calamidades/UFPB) Campina Grande, PB, Brasil. novembro/
E-mail: jcamilo@cgnet.com.br.
99
pp. 13 - 21

O fenômeno El Niño
e as secas no Nordeste do Brasil

R ESUMO lítico, social e para a reinversão de


Este artigo tenta reconstruir a série de ocorrências de seca no semi-árido brasileiro, associan- capital através de políticas públi-
do-a a El Niño. A abordagem é interdisciplinar e tenta verificar a correlação existente entre cas paliativas, como frente de tra-
fenômenos naturais e a ocorrência de desastres. Para isto, se utiliza aqui do aparato teórico da
escola de La Red de Estudios Sociales en Prevención de Desastres, sediada em Lima, Peru, para veri- balho e demais congêneres. No
ficar o grau de vulnerabilidade das populações da região, resgatando-se o momento histórico entanto, de acordo com o avanço
das secas para o devido paralelo. Abordam-se também as diversas políticas públicas implanta- da tecnologia, sabe-se que a ocor-
das e seus efeitos, questionando-se a manutenção do status quo de vulnerabilidade ainda ocor- rência de secas está ligada a fenô-
rente no semi-árido.
menos como o El Niño e o Dipo-
Palavras-chaves: El niño, secas, vulnerabilidade.
lo do Atlântico (aquecimento/
ABSTRACT esfriamento do Atlântico Norte/
This article deals with occurrences of droughts in Brazil semiarid region, associated with the Sul) e até ao surgimento de ativi-
El Niño phenomenon. The approach is interdisciplinary and attempts to contest some theo- dades vulcânicas (ver adiante a
ries about the occurrence of droughts, as well as to verify the correlation between other na-
tural phenomenon and the occurrence of disaster. For such purpose, it is used the theoretical teoria de Luiz Carlos Baldicero
approach coming from La Red de Estudios Sociales en Prevención de Desastres, headquarte- Molion).
red in Lima, Peru, to verify the degree of vulnerability which threaten the region’s populati- A ocorrência de secas é secular,
on, taking into consideration the historical moment of the drought for the proper compari-
son. Also approached are the various public policies implemented and their effects, raising porém sua observação como risco
questions on the maintenance of the status quo of vulnerability still existent in the semi-arid. e ameaças se dá a partir do grau de
Key words: El niño, drought, vulnerability. concentração de povos brancos no
interior da região Nordeste, com
sua vida sedentária (ao contrário
Introdução Cearense de Meteorologia)1. Desde do nomadismo indígena), ligada
as primeiras décadas do século à atividade agrícola e pecuária. Os
A área do semi-árido brasilei- XVI, há registros de secas. A con- índios também sofriam com as
ro mede cerca de 788.064 km², o cepção de secas como fenômeno secas, o que prova exatamente seu
que corresponde a 48% da região natural inevitável tem gerado um nomadismo. No caso dos coloni-
Nordeste e 9,3% do país, segundo discurso unificado de vitimização, alistas, foi a tomada das terras in-
um novo redimensionamento pro- o que tem sido aproveitado pelas dígenas e sua fixação nelas, com a
posto pela FUNCEME (Fundação elites para seu fortalecimento po- propriedade privada, que fez sur-

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1 Segundo o Programa de Estudos e Ações para o Semi-árido, PEASA, da Universidade Federal da


Paraíba, o semi-árido teria 882.081 km², ou seja 53,1% do Nordeste. Ver bibliografia.

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gir e aumentar sua própria vulne- Secas, El Niño e vulcanismo ra. No Brasil, ocorre uma redução
rabilidade ao fenômeno das secas2. de chuvas nas regiões Norte e Nor-
Segundo informações históricas Tentamos trabalhar, aqui, com deste, e um aumento na região Sul,
e técnicas, os dois últimos séculos duas vertentes de discussão: o con- como a grande seca no Nordeste e
parecem ter tido o maior número de ceito de desastres atribuído às secas as inundações em Santa Catarina,
secas e também as piores. Não obs- e o motor destes fenômenos, segundo em 1983. Em geral, o El Niño, em-
tante, não é pela repetição das secas as ciências atmosféricas, para veri- bora fraco, em 1992-93 afetou a vida
que a vulnerabilidade tem ocorrido ficar a relação entre secas, El Niño de 8 milhões e 500 mil pessoas, numa
e sim pelo crescimento da popula- e vulcanismo. Ao mesmo tempo, área de 800 mil quilômetros quadra-
ção que se estabelece no interior da fazemos um inventário das secas dos3.
região, que termina por expor a ocorridas na região em séculos pas- Alguns detalhes que formam o
população ao fenômeno, até então sados a fim de contribuir para o ras- evento El Niño já haviam sido es-
natural, da seca, aumentando os ris- treamento do El Niño. tudados desde a década de 1920, mas
cos de desastres. Em geral, devido às El Niño é um fenômeno meteo- foi no final da década de 1960 que
ocorrências de seca, a região Nordes- rológico de escala global, resultan- Jacob Bjerknes, da Universidade de
te já perdeu um século completo de te do aquecimento diferenciado do Califórnia, observou uma conexão
sua produção agro-pastoril, desde o Oceano Pacífico, provocando alte- entre temperaturas quentes na su-
inicio da colonização até nossos dias rações no regime de precipitações perfície do mar, os fracos ventos de
(ver Tabela 01). atmosféricas em várias partes da ter- leste para oeste e as condições de alta
precipitação. A teoria de Bjerknes
associada aos estudos de Walker
Tabela 01 eram partes do mesmo fenômeno,
Ocorrência de Secas no Nordeste conhecido pelo nome de ENOS (El
Niño – Oscilação Sul)4.
Período Secas Anos de Seca Ano p/Seca
Assim, este fenômeno de aque-
Sé culo XVI 5 8 0.6 cimento das águas do Pacífico, ter-
Sé culo XVII 7 8 0.8 mina por impedir que a chuva caia
Sé culo XVIII 15 27 5.5 sobre o Nordeste. No entanto, não
Sé culo XIX 15* 29 5.1 basta surgir El Niño para que haja
secas, como tem demonstrado Dr.
Sé culo XX 12** 28 4.2
Oribe Aragão5 (ver Tabela 02). Ele
To tal 54 100 21.2 associa ao El Niño o fenômeno, his-
(*) Ho uve 11 re p iq ue te s (inve rno s falho s) no sé culo XIX q ue so mad o s ao s 29 ano s se co s
co rre sp o nd e riam a 40 ano s d e p re juízo ag ríco la no No rd e ste ; numa mé d ia p o r ano d e 3,6
toricamente pouco estudado, do
ano s/se ca; no cô mp uto g e ral, até o fim d o sé culo XIX tive mo s ce rca d e 42 se cas e m 87 Dipolo do Atlântico, tese do Dr.
ano s, o u se ja 2 ano s p o r se ca;
Divino Moura. Este evento também
(**) Se g und o d ad o s d e Orib e Arag ão , co le tad o s e m 67 e staçõ e s. Os ano s d e se ca fo ram
co mp utad o s co mo ano s se co s, ante rio re s o p o ste rio re s ao s ano s d e se ca. A mé d ia d e influencia o grau de seca no Nordes-
ano s p o r se ca che g a a 3,5 ano s. te, ou traz mitigação ao impacto do

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2 Sobre o conceito de vulnerabilidade, ver WILCHES-CHAUX (1993:1-50).


3 Segundo a Comissão Especial, criada através do Requerimento Nº 533 de 1997, para gestionar,
junto aos órgãos das três esferas de Governo, medidas preventivas em relação às regiões sujeitas ao
fenômeno atmosférico “El Niño”.
4 Idem, ibidem.
5 Dados apresentados no “Seminário sobre A Influência do El Niño na Agricultura e nos Recursos
Hídricos do Semi-árido”. Prefeitura Municipal de Campina Grande, 12 e 13 de março de 1998.
El Niño e as secas no Nordeste do Brasil

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El Niño. Outro fenômeno que deve Lima, Peru), já que estes conceitos desigual vulnerabilidade está no fato
ser abordado é o oposto do El Niño: têm também um sentido político que de que os grandes proprietários ja-
La Niña, que corresponde ao esfri- passa pelo crivo do desenvolvimento, mais emigram, nem se desfazem de
amento do Pacífico, como o que para verificar que o fenômeno das suas propriedades, além de serem os
ocorreu, por exemplo, em 1988/9, e secas tem sido maquiado em sua proprietários dos mananciais, não
que chamaria em seu rastro o El extensão natural. O conceito tradi- permitindo uma democratização dos
Niño de 1991/2/3, o maior do século. cional de vulnerabilidade tende a se recursos hídricos, embora curtos, em
El Niño mais forte, antes, havia sido reduzir aos efeitos físicos das comu- tempos de seca.
o de 1982/3, quando houve, na re- nidades afetadas. Um exemplo de Dentre os riscos que a população
gião, seca de 1979 a 83. riscos contornados, na região, no que tem provocado, aumentando sua
Uma hipótese polêmica, defen- se evita a vulnerabilidade, está na própria vulnerabilidade, está a pe-
dida por Dr. Luiz Carlos Baldicero tática dos latifundiários de remover cuária extensiva e a agricultura ina-
Molion, busca as causas das secas no o gado para fazendas situadas em dequada ao semi-árido, além de uma
vulcanismo e, para isso, tem tenta- serras, brejos úmidos de altitude e falta de desenvolvimento das forças
do cruzar dados de secas com os de zonas litorâneas. Outro detalhe desta produtivas na zona semi-árida, o que
vulcanismo para verificar a influên-
cia destes sobre a ocorrência das se-
cas. Molion defende que até o El Tabela 02
Niño seria conseqüência do vulca- Ocorrências de El Niño no Nordeste do Brasil
nismo e, para isso, dá, como exem- Ano Fenômeno Ano Fenômeno
plo, o ano de 1882, em que houve
1914 El Niño mo d e rad o 1952 ano se co
grandes erupções e ocorreu o El
1914 ano se co 1953/4 El Niño mo d e rad o se m se ca
Niño. No entanto, para os histori-
adores, dois fatos necessitam de mais 1915 Se c a 1957 El Niño fo rte
investigações: um é que, em 1882, 1917/9 El Niño fraco 1958 Se c a
não houve seca na região Nordes- 1918 El Niño fo rte e ano se co 1965 El Niño mo d e rad o
te, e sim em 1888; outro é que a sé- 1919 Se c a 1969 El Niño fraco
rie levantada por Molion mostra um 1923 El Niño fraco 1972 El Niño mo d e rad o
período de descenso do vulcanismo 1925 El Niño fo rte se m se ca 1976 El Niño fraco
(1912-1945), quando, no entanto, 1928 ano se co 1979 El Niño fraco e se ca
tivemos três grandes secas: 1915,
1929 El Niño mo d e rad o 1980 ano se co
1918/9, 1932, além de ter havido um
El Niño forte em 1944, seguido de 1930 ano se co 1982/3 El Niño mais fo rte e se ca
seca6. 1931 ano se co 1986 El Niño fraco
Aparte a discussão entre os pes- 1932 El Niño fraco e se ca 1987 El Niño mo d e rad o
quisadores de desastres sobre se as 1941 El Niño fo rte e ano se co 1991 El Niño mo d e rad o
secas são ou não um desastre, visto 1942 ano se co 1992 El Niño fraco e ano se co
que já se tornaram um fenômeno 1943 El Niño fraco e ano se co 1993/4 Se ca
previsível, aplicaremos os conceitos 1944 Se c a 1997 El Niño fo rte
de risco, ameaça, vulnerabilidade e
1951 El Niño fraco e ano se co 1998 ano se co (?) (se ca)
desastres de La Red de Estudios
Dad o s ano tad o s d a co nfe rê ncia d e Orib e Arag ão "O Que é El Niño ?" Se minário so b re a Influê ncia d o El Niño
Sociales em Prevención de Desastres na Ag ricultura e no s Re curso s Híd rico s d o Se mi-árid o , re alizad o e m Camp ina Grand e , Paraíb a, 12 e 13 d e março
en América Latina (com sede em d e 1998.

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6 Idem, ibidem.

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tem levado a população ao desma- desde 1914, tomando como base dade, não tem sido diretamente tão
tamento para uso de energia (carvão uma série de ciclos de 13 anos. Para responsável peia ocorrência de secas.
e lenha) e utilidades (móveis, cercas, tanto, no decorrer de 83 anos obser- Isso a começar pelo ano de 1914,
construções) originando, então, vados, o autor verificou que só houve quando o El Niño foi moderado, e
zonas de desertificação. 3 anos chuvosos no Nordeste, (1917, a seca grande, prolongando-se no
As políticas públicas têm privile- 1929 e 1984). Considerou ele, ain- ano seguinte. Em 1918, ocorreu um
giado a mitigação dos efeitos da seca, da, o que chamou de anos normais El Niño forte, mas a seca só apare-
porém não tem sido uma política de a 11 anos: 1916, 1945, 1956, 1957, ceu um ano depois. Durante a dé-
eliminar os riscos, para evitar as 1969, 1971, 1973, 1981, 1994, 1995 cada de 1920 só houve um El Niño
ameaças e, assim, diminuir o grau e 1996. Somados os anos normais aos moderado e nenhum registro de
de vulnerabilidade das comunida- chuvosos, teríamos só 14 anos sem grande seca, embora tenha havido
des do semi-árido. A indecisão no seca, entre aqueles 83, ou seja, algo um ano (1928) seco. Na década de
uso do conceito de vulnerabilidade ao redor de 16,8% de anos produti- 1930, ocorreu só o El Niño de 1932
nas políticas públicas e da concep- vos7. e sua conseqüente seca naquele
ção tradicional de desastres têm le- Não obstante, Oribe só relata 28 mesmo ano9.
vado o governo federal, por exem- anos secos, entre 1914 e 1997, rela- Parece que quando ocorre um El
plo, a incluir o estado do Maranhão cionados com o El Niño e nem to- Niño forte, a seca surge no ano se-
(com predominância de matas) den- dos de intensidade forte. Em sua guinte, como aconteceu em 1918 e
tro das políticas públicas de mitiga- investigação, Oribe aponta só 6 El voltou a ocorrer em 1941. Este ano
ção às secas, quando, em 1981-82, Niño fortes, 7 moderados e 10 fra- foi seco e a situação se agravou nos
teve situação de emergência decla- cos. Parece querer dizer que El Niño dois anos seguintes, continuando,
rada em metade de seus 131 muni- nem sempre é sinônimo de seca e, ainda, a seca em 1944, mas, neste
cípios. mesmo quando esta ocorre em al- ano, alimentado por um El Niño
Assim, o discurso nivelador das gumas microrregiões do semi-árido, fraco, o de 1943. A década de 1950,
elites regionais tem atribuído ao fe- os efeitos do El Niño nem sempre de acordo com os dados levantados
nômeno El Niño uma série de de- significam a mesma ameaça. To- por Oribe, apresenta uma situação
sastres ocorridos entre 1982/3 e 1997/ mando, por exemplo, a seca de 1932, típica, em que a ocorrência de El
8, o que tem levado vários especia- originada por um El Niño fraco, Niño, em 1957, resultou em aquele
listas a estudar o comportamento da naquele mesmo ano, esta seca gerou ano ser seco, porém desencadeou, no
população frente aos riscos, amea- no Ceará uma situação de calami- ano seguinte, uma das maiores se-
ças e desastres ocorridos anterior- dade pública devido à qual foram cas na região. Esta década foi a que
mente com outros aparecimentos de postas em prática políticas de isola- mais registrou situações de seca neste
El Niño. mento das populações afetadas com século: 6 anos secos quase que em
Tem sido, realmente, o El Niño a manutenção de verdadeiros cam- seguida, de 1951 a 1955 (sendo 2 de
o responsável por toda a série de secas pos de concentração8. verdadeira seca) além da de 1958 e
ocorrida no Nordeste desde o perí- Desde 1914, período base da dois anos normais, sem nenhum ano
odo colonial? Este não é o ponto de medição de Oribe, através de 67 es- chuvoso10.
vista de Dr. Oribe (ARAGÃO, 1998) tações coletoras, que a ocorrência do A década de 1960 não conheceu
que rastreou o El Niño e as secas El Niño, seja em qualquer intensi- seca, embora o El Niño tenha ocor-

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7 Idem, ibidem.

8 “Campos de concentração, a face mais cruel da seca”. O Globo, 22 de março de 1998, p.16.

9 Aragão, Oribe. op. cit.



10 Idem, ibidem.

El Niño e as secas no Nordeste do Brasil

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rido duas vezes: em 1965, modera- chuvoso, em 1987, e um El Niño plo, quando em junho de 1990 ha-
do e, em 1969, fraco; não obstante, moderado, sem ano seco. Em 1991, via seca no semi-árido, chuvas tor-
este último resultou na seca de 1970. o El Niño surge moderado e, no ano renciais se abatiam sobre Recife,
Na década de 1970, o El Niño vol- seguinte, fraco, mas gerando um ano durante 15 horas, deixando 18 mor-
taria a ocorrer três vezes. Em 1972, seco, seguido de seca – a de 1993. tos e 2.000 desabrigados. Foram 10
surgiu moderado, com ano seco; em Novamente o fenômeno atinge o dias de chuvas fortes em Recife,
1976, fraco, com ano seco; porém, Nordeste em 1997/8, com uma das matando 31 pessoas e deixando
em 1979, surgiu com este ano e o maiores secas do século. 23.000 desabrigados e 27 casos de
seguinte secos, seguidos ainda de leptospirose11. Mesmo cidades rela-
1982, com El Niño forte, prosseguin- El Niño e as conseqüências tivamente distantes do litoral, como
do até 1983, quando a seca evoluiu, sociais no Nordeste do Brasil Campina Grande, no Planalto da
só sendo interrompida pelo ano Borborema, nos limites do semi-
chuvoso de 1984. A década de 1980 Embora a seca pareça ser gené- árido paraibano, zona de convergên-
ainda veria mais um El Niño fraco, rica no Nordeste do Brasil, não o é, cia de correntes atmosféricas, teve,
em 1986, coincidindo com um ano quanto à zona da mata. Por exem- em 1993, um inverno com bastante
chuva, que inundou casas e ruas,
com prejuízos de 1 milhão de dóla-
Tabela 03
Cronologia de Secas no Século XIX res. Isto também mostra a desigual
vulnerabilidade que se abate sobre
1803/4 Paraíb a a região, com zonas do litoral sob
1809 Se m lug ar d e te rminad o chuvas e 200 quilômetros, a oeste,
1816/7 Paraíb a a seca.
1824/5 Ce ará, Paraíb a e Pe rnamb uco Desde 1990, antes mesmo de a
1826/7 Se cas p arciais ciência mostrar que El Niño chega-
1830 Falta d e chuvas na Paraíb a ria um ano mais tarde, a seca já fa-
1835/7 Se m ind icação d e lug ar zia estragos. Trezentos camponeses,
1844/6 Paraíb a e Pe rnamb uco “flagelados” pela seca, saqueavam
1851 "Re p iq ue te " (inve rno falho ) uma escola no Piauí, ao mesmo tem-
1853 Id e m po em que 250 outros atacavam um
1860 Id e m armazém público em Pernambuco
1865/66 Id e m e, no Ceará, outros camponeses in-
1867/70 Se ca p rincip alme nte no Ce ará vadiam um depósito de gêneros,
1869/70 Re p iq ue te além de cometerem vários outros
1870 e 1872 Alag o as, Pe rnamb uco e Paraíb a saques12.
1877/79 Se ca: to d o o No rd e ste O El Niño, embora moderado e
1888/9 Se ca, p rincip alme nte no Ce ará fraco entre 1991 e 1993, terminou em
1889 "Re p iq ue te " uma seca, em 1993, que se prolon-
1891/2 Id e m gou em 1994. No entanto, em 1992,
1895 Se c a a SUDENE anunciava que a seca
1896 Re p iq ue te s atingia 800 municípios (numa área
1898 Se ca, re g io nal de 869.000 km²) e que grande parte
1889 Se ca e m Rio Grand e d o No rte e Paraíb a da agricultura já estava perdida. Isto
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11 Almanaque Abril. São Paulo: Abril Editora, (exemplares anuais de 1991 a 1995)
12 Idem, ibidem.
Josemir Camilo de Melo

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Tabela 04 pergunta paira no ar: que se fez para
Vítimas da Seca de 1877/9 (em milhares)
evitar a repetição destas cenas? Em
Província População Estimada População Afetada termos de desenvolvimento, nada.
Piauí 202 - No entanto, se não se substitui a
Ce ará 800 720 consciência de mitigar o flagelo da
Rio Grand e d o No rte 234 117 seca pela de desenvolver o semi-ári-
Paraíb a 362 60* do, a região da caatinga indígena,
Pe rnamb uco 841 200 nada vai reduzir as ameaças do pró-
Alag o as 348 50 ximo El Niño.
Se rg ip e 161 30
Bahia 1.283 500 Aspectos históricos da mitigação
TOTAL 4.231 1.667 de secas no Nordeste do Brasil
Fo nte : Dad o s ab re viad o s d e Re b o uças, And ré . A Seca nas Províncias do Norte. Socorros
Públicos. Rio d e Jane iro , 1877, p p . 32/4. Os d ad o s são e stimativas d aq ue le auto r;
A história mostra os erros na
(*) o s d ad o s p ara Paraíb a são d o Cô nsul ing lê s Walke r. British Parliame ntary Pap e r, LXXV, 1878.
Report be Consul Walker on the Famine in the Northern Provinces of Brazil. London, 1878. política de mitigação das secas, que
tem sido posta em prática desde o
Império (1822-1889) através de tá-
ticas paliativas, esclerosadas, tais
gerou fome e, no ano seguinte, o USP não verificou se aquele poten- como, por exemplo, distribuir
governo enviou 110 toneladas de cial é potável ou não, porque se sabe plantas, mais para incentivar a ar-
feijão para Pernambuco; a Paraíba que só cerca de 25% da água do sub- borização do que para a agricul-
receberia, por sua vez, 270 tonela- solo, na região, serve para o consu- tura (com a criação do Jardim
das de alimentos para mitigar a mo humano14. Botânico, em Olinda), nas primei-
fome. Novamente, se voltava aos Independentemente desta análi- ras décadas do Século XIX15. Com
métodos paliativos, constituindo-se se, a seca continuou durante o ano a seca de 1846, começou a distri-
frentes de trabalho, cujo custo che- de 1994, quando 500 agricultores buição de gêneros alimentícios e
gava a mais de 7,2 bilhões de cru- invadiram a SUDENE pedindo formação de frentes de trabalho.
zeiros para o programa de mitiga- providências contra a seca. O Minis- Esta última tática se generalizou
ção que incluía a doação de 1 milhão tério da Agricultura prometia distri- principalmente a partir da grande
de cestas básicas13. buir 150t de alimentos para as cida- seca de 1877 a 1879. A compra de
Esta crise levou a Universidade des afetadas. gêneros, por parte do governo cen-
de São Paulo, baseada em estudos Em 1997/99, todo cenário se re- tral, terminava por enriquecer a
hidrológicos, a dizer que a área do pete. Veio o El Niño, ocorreu a seca burguesia comercial16.
Polígono das Secas era de 320 mil em todo o semi-árido, os campone-
km² e não de 998 mil km², como ses saquearam vilas e cidades e até Camelos para o Nordeste
alega a SUDENE e que os índices o Movimento dos Sem-terra (MST)
pluviométricos são 7 vezes maiores entrou na campanha junto aos cam- Em 1859, embora não se vivesse
que os de Israel. Provavelmente, a poneses nordestinos. Todavia, uma clima de secas, o Estado Imperial

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13 Idem, ibidem.
14 Idem, ibidem.
15 Esta é uma versão do paper de igual título apresentado no Workshop do Simpósio Internacional
sobre Meio Ambiente, Degradação e Gerenciamento de Desastres, pelo convênio UFPB-Univer-
sity of Manitoba, Canadá, em Campina Grande, 2 a 7/12/1995.
16 PINTO, (1977: 175/6).
El Niño e as secas no Nordeste do Brasil

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lança mão de uma exótica tentativa Recursos florestais na mitigação
de mitigação dos problemas da seca: 1888), os senadores Dantas e Nabu- da seca
importa 14 camelos, sendo 10 fême- co defendiam um plano de doação
as, da Argélia e os envia para o Ce- de terras aos ex-escravos, junto com Não obstante, tantos erros tam-
ará. Um ano depois, três haviam sido a abolição da escravidão. Porém bém tiveram suas contrapartidas.
mortos, picados por cobra, ou no ninguém, num Congresso de lati- Para mitigar os efeitos da seca, houve
processo de parto, e outros tiveram fundiários, se interessou por estas políticas de adequação de reflores-
a perna quebrada; nasceram cinco idéias. tamento. A mais antiga parece ser a
crias. Segundo o Presidente do Ce- Assim, um dos mais graves pro- introdução da “palmatória” ou sim-
ará, eles se adaptaram muito bem e blemas do Nordeste, a propriedade plesmente “palma forrageira” (uma
“devoram com espantosa avidez da terra, que teve início com a to- variedade de opuntia, durante a seca
todos os vegetais do país qualquer mada das terras indígenas, através de 1877). A tamareira Phoenix dac-
que seja seu estado”. No entanto, em da guerra colonialista, permanece telifera desde a década de 1910. e
abril de 1861, só havia 5 animais intocável até hoje. várias opuntias, nopaleas, cereus,
adultos vivos e duas crias; o restan- manilarios e peireskias, e o feijão “te-
te havia morrido de lepra. A propriedade da água pari”, desde 1917, bem como a al-
garoba Leguminosa prosopis e a Ca-
Projetos esquecidos O problema maior, no semi-ári- maratuba-forrageira, desde 1922
do brasileiro, não tem sido tanto eram usadas nas tentativas de reflo-
Nenhuma tentativa foi feita com a terra, senão a água. Embora a restamento; a faveleira Jatropa hecha-
reforma agrária. Desde tempos co- construção de açudes tenha sido a cantha já era apontada como solu-
loniais, os brancos usaram, inclusi- política número um, até metade do ção desde 1923, e o mandacaru Cereus
ve, o argumento das secas, para au- século XX, não havia sido desen- jamacaru sem espinhos, desde 1926,
mentarem suas terras, através de volvido um sistema adequado de como também a palma forrageira
pedidos à Coroa Portuguesa, pelo irrigação, permanecendo a gran- Opuntia monocantha sem espinhos,
que chamavam de terras “desabita- de massa de água sem sua total dis- desde 1930.
das”. O Imperador Pedro II criou a ponibilidade. Poços e cata-ventos
lei de terras (1850), cujo objetivo era também foram constr uídos no Considerações gerais
a venda das terras disponíveis, inclu- Ceará desde 1914. Não obstante,
sive as dos índios. Durante o Impé- o problema continuava, porque se O discurso das elites por um
rio, o Imperador acabou com todas tratava, então, da propriedade da Nordeste sofrido, “flagelado”, tem
as aldeias indígenas (1862). Inadver- água. Jamais se discutiu sequer o mascarado a vulnerabilidade mais
tidamente, houve tentativas de co- direito das populações campesinas grave, que é a da propriedade da terra
lonização de terras com europeus e à água. Sequer o Código de Águas, e da água. As comunidades rurais
não com os índios ou seus descen- de 1934, mudou esta apropriação “sertanejas” têm desenvolvido capa-
dentes, os caboclos. individualista e expansivista dos cidades de resistência e adaptação às
Tem-se esquecido também de um donos de terra (e água). Ser dono secas, na espera de que os efeitos das
engenheiro negro, André Rebouças, de terra significava possuir e con- secas sejam mitigados através de
que defendia uma colonização de trolar todos os mananciais, o que, políticas públicas. O Estado, por sua
terras do governo, pelos próprios praticamente, ocorre ainda hoje, vez, não tem se baseado no grau de
nordestinos, o que ele mesmo deno- embora haja uma nova lei no pa- risco e vulnerabilidade a que estão
minava de Democracia Rural. Na pel: a Política Nacional de Recur- submetidas estas comunidades,
campanha abolicionista (1870- sos Hídricos. como parte política do processo de

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○


Josemir Camilo de Melo

20
Tabela 05 Convenção das Nações Unidas de
Cronologia de Políticas Públicas
Combate à Desertificação. Brasília:
Ano Evento/Instituição Governo Ministério do Meio Ambiente dos
1909 S Criad o o IOCS (Insp e to ria Fe d e ral d e Ob ras Co ntra as Nilo Pe çanha Recursos Hídricos e da Amazônia
e cas) co nstruíd o s 16 açud e s Legal.
1918/22 Seriacdaso) o IFOCS (Instituto Fe d e ral d e Ob ras Co ntra as Ep itácio Pe sso a*
C

1915/19 Co ncluíd as re p re sas co me çad as no Sé culo XIX V. Brás/D. Mo re ira/E. Pe sso a


CUNHA, Euclides da. Os Sertões.
1920 Criad a a Caixa d e So co rro às se cas Ep itácio Pe sso a
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
1922 60% d a Paraíb a é o ficializad a co mo áre a d e se ca Ep itácio Pe sso a
1932/35 Camp o s d e co nce ntração /fre nte s d e trab alho , açud e s G. Varg as
Canudos e Outros Temas. Brasília:
1936 De limitad o o Po líg o no d as se cas G. Varg as
Senado Federal, 1993, pp. 148-159.
Criad o o DNOCS (De p artame nto Nacio nal d e Ob ras
1945 co ntra a Se ca) Varg as/ Dutra DOMINGOS, Manuel Neto. Seca,
1946 De limitad o o Po líg o no d as se cas Dutra Seculorum, Flagelo e Mito na Econo-
- Criação d o Banco d o No rd e ste d o Brasil (?) - mia Rural Piauiense. 2a edição, Te-
1951 Re d e limitad o o Po líg o no d as se cas G. Varg as resina: CEPRO, 1987.
1959 Criad a a ag ê ncia SUDENE J. Kub itsche k
1968 Co nstruíd o s, p e lo DNOCS, 8.299 p o ço s Go ve rno Militar GIRÃO, Raimundo. Pequena Histó-
1990 Fe chad o o DNOCS F. Co llo r ria do Ceará. Fortaleza: Ed. Univer-
(*) Ep itácio Pe sso a e ra p araib ano . sidade do Ceará, 1984.

MELO, Antônio Sérgio Tavares. De-


sertificação, aridez e seca Uma contri-
desenvolvimento, limitando as ações buição didática. Texto preparado para
a mitigar os efeitos da seca, tendo, NOS RECURSOS HÍDRICOS a mesa redonda, secas e estratégias
com isto, lucros políticos, eleitorais, DO SEMI-ÁRIDO. Campina no semi-árido, aspectos ecológicos,
econômicos e sociais. Os anos de seca Grande – PB, 12 e 13 de março de sociais e degradação ambiental, João
têm aumentado com os séculos, não 1998. Pessoa, (PB) 1996.
porque aumenta o número de secas,
de aparecimento do fenômeno, mas BRASIL. Ministério do Meio Am- MELO, Josemir Camilo de. Aspec-
pelo grau de povoamento e, portanto, biente dos Recursos Hídricos e da tos da mitigação de secas no Nordeste
pelas áreas de risco que se ampliam, Amazônia Legal. Lei Nº 9.433 de de Brasil. (Workshop). In: SIMPÓ-
aumentando com isto a vulnerabi- 8 de janeiro de 1997, que regula a SIO INTERNACIONAL SOBRE
lidade. Política Nacional de Recursos Hí- MEIO AMBIENTE, DEGRADA-
dricos. ÇÃO E GERENCIAMENTO DE
DESASTRES, UFPB/University of
Bibliografia BRITISH PARLIAMENTARY Manitoba, Canadá. Campina Gran-
PAPER, LXXV, 1878. Report by de: 4 de dezembro de 1995.
ALMEIDA, José Américo de. A Pa- Consul Walker on the Famine in the
raíba e seus Problemas. (3a. edição) Northern Provinces of Brazil. Lon- MOLION, Luiz Carlos Baldicero.
João Pessoa, A União, 1980. don, 1878. Secas, o Eterno Retorno. Ciência
Hoje, vol. 3, Nº 18, maio/junho,
ARAGÃO, Oribe. O Que é El Niño? CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO, 1985, p. 26-32.
(Conferência). In: SEMINÁRIO a face mais cruel da seca. O Globo,
SOBRE A INFLUÊNCIA DO EL Rio de Janeiro, 22 de março de PINTO, Irineu Ferreira. Datas e
NIÑO NA AGRICULTURA E 1998, p.16. Notas para a História da Paraíba. João
El Niño e as secas no Nordeste do Brasil

21
Pessoa, Editora da UFPB, 1977, (2
vols.).

REBOUÇAS, André. A Seca nas


Províncias do Norte. Socorros Públi-
cos. Rio de Janeiro, 1877.

TAKEYA, Denise Monteiro. Um


outro Lado do Nordeste: O Algodão
na Economia do Rio Grande do Norte
(1880-1915). Fortaleza: BNB, 1985.

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mento Integrado para o Semi-Árido.
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WILCHES-CHAUX, Gustavo.
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MASKREY, Andrew (compilador)
Los Desastres no son Naturales. La
Red de Estudios Sociales en Pre-
vención de Desastres en América
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