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COBRA ftORATO

e outros poemas
RAUL BOPP

ABL
NOTA INTRODUTóRTA DE ANTôNIO HOUAISS

ABL
O poema de Cobra Norato- nas suas versões tex-

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tuais públicas, de 1931, 1947, 1951, 1954, 1956, 1967, 1969
(incluído no livro Putirum) e 1973· (esta) - inicia-se
pelos versos

Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-fim

e termina, na versão de 1931, por

·- Então adeus Cumpadre


Fico lê esperando
na boca da terra das febres do Sem-fim
enquanto na versão de 1969 (ou antes, não cotejei)
termina por:
- Pois então até breve, compadre
Fico lê esperando
atrás das serras do Sem-fim
Num caso como no outro está-se no mesmo caso
- a geografia de Cobra Norato é das terras do Sem-

2 - COI;RA KORATO
-fim: está-se em face de um espaço ignoto, que rmc1a
ou termina em um sem-fim e termina ou inicia noutro
sem-fim, tendo de permeio o sem-fim. Por isso, Cobra
Norato e o Compadre, conversando entre si, conver-
sendo com entes ou seres ou coisas antropomorfizados,
de sua passagem, são dois permanentes viandantes do
sem-fim (melhor seria - como topônimo mítico -
Sem-Fim), desde que o poema se enceta até que ter-
mina, ficando Cobra Norato adentro dessas terras e o
Compadre no limiar delas, "na boca de terra das febres
do Sem-fim" ou "atrás de serras do Sem fim"- o que
dá no mesmo, pela imensidão das mesmas.
Mas o Sem-fim tem um nome- que se caracteriza
por tudo o que dentro lhe acontece: seu nome é a Ama-
zônia, por suas águas, suas florestas, suas terras caí-
das, sua fecundidade, sua efervescência de vida, sua

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pululação de morte.
Essa geografia - que desde meados do século
XIX começou a ser matéria da ensaística brasileira e
estrangeira, culminada com nomes retumbantes quais
os de Euclides da Cunha e Alberto Rangel - só inci-
dentemente vinha sendo objeto da "arte literária" em
sentido restrito. Mais ainda, entrando na "literatura",
fê-lo pela porta da ficção, tornando-se "poética" atra-
vés do gaúcho Raul Bopp.
Gaúcho ou menos gaúcho, isso parece incidente
irrelevante para o caso: relevante é o fato de que sua
era uma alma andarilha, perquiridora das paragens do
mundo, viajara e viageira. Sua era, também, essa ma-
neira sintética de ver o mundo, configurando-o verbal-
mente com umas poucas pinceladas essenciais e dando-o
aos nossos olhos ouvidentes. Sua era, ainda, a adesão
de vê-lo e dizê-lo fora dos cânones que o grupo de 1922
quisera quebrar então e ainda vigora, paralelo, numa
proliferaçã.o escritora que está longe de ter sido ven-
cida ou proscrita da república das letras. Sua era, por
fim, a compreensão ou intuição ou intelecção ou per- ·
cepção do que o universo amazônico, de que ele se
deixara penetrar, não podia por ele ser verbalizado
senão através de uma forma de representação oral -
a chamada linguagem poética. Mas cantar a terra, mes-
mo sendo a do Sem-fim? Sim, se penetrada dos seus
mistérios.
Bopp viu-os nos seus mitos, lendas, abusões, cren-
ças - na sua cosmogonia. Iria ele, assim, qual Hesíodo
ou Ovídio redivivos, dar a chave de explicação desse
universo? Didaticamente?
Transfiguradamente. A fecundidade, para a vida e
para a morte, ele viu-a sempre na sua Amazônia. Viu-a
por certo, também, como sexo, humano, masculino, fe-
minino. Viu-a provavelmente na sua própria carne
- e perpassou a andação pelo Sem-fim à busca de sua
Penélope, fiadeira e bordadeira não sei, mas filha da
rainha Luzia.
Nas terras do Sem-fim, palmilhando-as todas, eu=
= Raul Bopp= leitor, metido na pele da Cobra Norato,

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faço-me o Cobra Norato e vou casar-me com a filha da
rainha Luzia. Está-se em plena mitologia, vencendo to-
dos os obstáculos, inclusive os do espaço e do tempo.
Toda a racionalidade da ensaística era abandonada,
em favor das regras de um jogo de imprevistos, previ-
síveis somente pela limitação ecológica, inclusive para
os convidados do epitalâmio, o caxiri-grande, que na
primeira versão já iria ter como convidada a paulista
Tarsila, mas de certa edição em diante iria também ter
a do fraterno Augusto Meyer, pois o herói queria na
sua festa nupcial "povo de Belém de Porto Alegre de
São Paulo" em subidas e descidas que abarcassem o
Brasil inteiro - festa nupcial que era, a seu modo, a
descoberta da Amazônia, aberta tantas e tantas vezes
à integração nacional, que essa, de Bopp, passados
quarenta anos, tem o direito de se supor ser uma das
mais pervividas dentre todas.
Assim Cobra Norato não apenas ficou como canto,
senão que também como mito, como ato inaugural e
como rito de iniciação - uma das fases da iniciação
- da literatura brasileira.
A quem logrou esse feito, poder-se-ia pedir mais?
Suspeito que sim, mas de coração pesado. A mim, bas-
ta-me esse poema para ter Raul Bopp no meu coração.
É por isso que, em lugar de deter-me alongadamen-
te nos milagres dos versos de Cobra Norato, prefiro, em
síntese, louvar-me do meu querido Othon Moacyr Gar-
cia, a quem se deve o mais cabal estudo a respeito, in-
titulado - Cobra Norato, o poema e o mito - , publi-
cado em 1962 pela Livraria São José, desta cidade do
Rio de .Janeiro.
Se alguma diferença se pode ter para com o en-
saio de Othon Moacyr Garcia, creio que tal diferença,
de pormenor, se esbate ante sua síntese aferidora- e
com ela me identifico a tal ponto, que o só jeito de
lhe ser fiel é transcrevê-la, ipsis litteris, aqui, para
regozijo do leitor:

Em resumo: o mito da Cobra Norato, mito


etiológico sincrético de origem amazónica, na sua

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feição de símbolo de fecundação, de símbolo de
poder criador ou gerador, de símbolo de nasci-
mento ou de maternidade, idéias que lhe são im-
plícitas ou que dele decorrem pelos seus aciden-
tes - digamos, ecológicos, como águas e árvores
e toda a paisagem de um modo geral - oferecia
ao poeta um conjunto de idéias-temas ricas pelo
conteúdo poético, férteis em sugestões e adequa-
dissimas à veiculação das idéias-teses do movi-
mento modernista. Essa coincidência de idéias-te-
mas e de idéias-teses, o Autor soube aproveitá-la,
servindo-se, mas não abusando, dos artifícios que
a língua lhe proporcionava e evidenciando um
virtuosismo metafórico que é uma das suas maio-
res riquezas, tão expressivo e afeiçoado à nature-
za do tema, que a unidade do poema ressalta
através de todas as suas peripécias. E essa é a
grande virtude de Cobra Norato: a sua unidade
inteiriça; nele fundem-se, numa só peça, como
mensagem poética de grande ressonância, o sim-
bolismo do tema, a paisagem, que é uma alegoria
da terra, da geografia sem-fim, e a linguagem,
plasmada em moldes de tal efetividade e universa-
lidade, que funciona como um espelho - desses
que reproduzem a imagem em miniatura - onde
se refletem as particularidades regionais de toda
a língua.
Sendo o único e verdadeiro poema épico da
literatura brasileira (porque popular pela essên-
cia do tema e pela feição da forma verbal), já
que às tentativas anteriores - desde de o Cara-
muru e O Uruguai até o I Juca Pirama e O Caçador
de Esmeraldas e quantos se arrolem como tais-
falta-lhes a feição de unidade temática e lingüís-
tica de vínculo popular e legítimo sabor de brasi-
lidade,- é Cobra Nomto um dos melhores lega-
dos do Movimento Modernista, um dos grandes
poemas destes sessenta anos de literatura brasi-
leira do século XX. Seu valor é permanente.

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E mais não direi. A não ser - amém.

Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1972.

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