apapayêi e as doen
entre os mehina
tos Os espíritos
nças apapayêi e as doenças
entre os mehinako1
ako
R OBERTA GAR CIA ANFFE BRAIDA
Universidade Federal do Amazonas
Braida, R. G. A.
dos nas festas se estabelecem na articu- jetos perdidos em tempos míticos. As-
lação entre mito, performance e ritual, sim, a matriz cerimonial alto xinguana
conectando humanos e espíritos. constitui um emaranhado de relações
Costuma haver duas modalidades de entre humanos, espíritos e animais que
aliança entre humanos e apapayêi. Na precedem o ritual e continuam após
primeira, a alma (yakulapi) somente sua finalização.
pode ser capturada pelos apapayêi, e
isto pode ocorrer muitas vezes ao lon-
go da vida. A tentativa de reparação de O YERUPUHU E O APAPAYËI
uma transgressão original que funda Um apapayêi pode desejar os objetos
uma assimetria, ou seja, o processo de produzidos pelos Mehinako para o uso
roubo e devolução da alma, mantém cotidiano ou cobiçar os alimentos cozi-
o ciclo de festas e trocas de objetos e dos aos quais não tem acesso, pois não
de alimentos. Nesse primeiro caso, em há esses objetos e alimentos nos mun-
todos os momentos, os indivíduos so- dos subterrâneos, aquáticos e nas flo-
frem o risco de perder a alma, e, as- restas. Nos tempos primevos, o fogo
sim, o acordo de mutualidade sofre o e os alimentos cozidos pertenciam aos
risco de ser desfeito, ou seja, a morte apapayêi, mas o mito do surgimento da
encerra qualquer possibilidade de troca humanidade conta que o Sol e a Lua
de conhecimentos, alimentos cozidos os retiraram dos espíritos e os entrega-
e produções de materiais ou músicas. ram para os humanos. Conforme relata
Na segunda situação, a doença pode Maria Heloisa Fenélon Costa:
ser um mecanismo de encontro com “Os Mehinakú acreditam que hou-
os apapayêi, estado ideal para a nego- ve outra humanidade anterior à
ciação com os espíritos que provocam nossa, que partilharia com os ani-
alguns sintomas patológicos. Ao adoe- mais a superfície da terra: quando
cer, o indivíduo pode ter sido afetado Sol e Lua nascem e por sua vez dão
pelo apapayêi ou por um feiticeiro. O origem aos homens, a população
sistema ritual proporciona o diálogo mais antiga habituada à escuridão
e a partilha de elementos fundamen- e ao frio abandona o mundo; eram
tais na sociabilidade Mehinako. Seres eles miúdos, franzinos, não conhe-
humanos e espíritos trocam objetos, ciam o fogo e não tinham meio
compartilham alimentos, dançam, can- de defesa contra as feras, contra a
tam e sentem desejos. Os Mehinako onça em especial que os dizimava.
Os Ierebuhi (assim os chamam
afirmam que pode ser perigoso desejar
os Mehinakú) eram gente desar-
aquilo que não é possível obter, recor-
mada, passiva: “Antigamente não
rendo constantemente ao controle dos tinha sol, só escuro, tem morro,
estímulos de seus desejos para evitar, tem luzinha, não tem fogo. Meni-
assim, a captura da alma pelos espíri- no, mulher, homem, senta assim,
tos apapayêi. Por outro lado, os apapayêi onça pega, come”. Um mito Kui-
também podem roubar a alma para sa- kúro registrado pelos Villas Boas,
tisfazer seus próprios desejos pelos ob- Kanassa, refere-se a esta época de
flautas possuem uma origem similar, aos apapayêi, os homens colocam más-
ambas atuando no processo de trans- caras e utilizam a flauta do jakui para
formação dos yurupuhu em apapayêi. conseguir agradá-los com os presentes
Em suma, aqueles apapayêi que não es- e convocá-los para a festa.
tavam utilizando máscaras ou flautas A familiarização dos apapayêi está ba-
estavam, provavelmente, camuflando- seada em elementos da comensalida-
-se no subsolo, no fundo do rio e nos de: é preciso compartilhar o alimento
brejos, para não ficarem expostos à luz. para produzir parentesco (Vilaça 1992;
No entanto, quando querem aparecer Fausto 2002). De acordo com o mito
para os humanos, utilizam inúmeros de origem, os humanos receberam do
tipos de máscaras e flautas como ins- demiurgo Sol o fogo e a mandioca para
trumentos de proteção solar e trans- produzir alimentos cozidos. A divisão
formação. Com o surgimento da Luz, dos recursos é assimétrica, por isso
estratégia de vingança do Sol contra os os pagamentos através das festas e da
apapayêi, os homens passaram a ser os produção dos objetos devem ocorrer
detentores do fogo, água e bens ma- com muita frequência.
teriais e se beneficiaram da vingança.
Não obstante, os seres humanos po-
Os yerupuhu, transformados em apapayêi
dem ter um mau encontro com espí-
depois da criação das máscaras e das
ritos, por isso devem estar preparados
flautas de proteção antissolar, passa-
para conviver com o imprevisível.
ram a interferir na vida dos humanos,
Como mencionado anteriormente, os
atingindo-os com flechas em partes de
apapayêi podem estar no nível subterrâ-
seus corpos, com o intuito de lhes cap-
neo da terra, no fundo do rio ou, por
turar as almas.
vezes, quando estão andando sozinhos
O roubo da alma é uma forma de for- na mata, identificam animais que po-
çar a negociação com os humanos, deriam ter intencionalidade patogêni-
considerando que os apapayêi perderam ca, ou seja, qualquer animal pode ter
os bens materiais nos tempos míticos. apapayêi, pode estar vestindo máscara
Os espíritos ficam extremamente ale- protetora da luz.
gres com as festas promovidas pelos
Os espíritos possuem substâncias pre-
humanos, compartilhando as bebidas e
as comidas. A alma, alimentos cozidos tas e patogênicas em seu corpo que, ao
e objetos passaram a ser materiais utili- atingir um humano, podem capturar
zados nas negociações entre apapayêi e sua alma. Os apapayêi são solitários, e
humanos. No entanto, a única maneira essa solidão pode ser repudiante para
de evitar o roubo da alma ou adquiri- os Mehinako. Dificilmente as pessoas
-la de volta é através de cerimônias que andam em grupo são surpreendi-
utilizadas para seduzir os apapayêi com das por um apapayêi.
danças, objetos, máscaras, instrumen- A qualidade de feio dos apapayêi está
tos musicais, pinturas corporais e ofe- vinculada à aparência peluda, esqui-
recimento de peixes, mingau, pimenta sita, cabeça grande, orelhas grandes,
e beiju. Ou seja, nos rituais oferecidos escamas, rabos, dentes grandes, ca-
festa não consegue alimentar a comu- para as ervas e os chás para o tratamen-
nidade de maneira satisfatória, não re- to de doenças consideradas leves, e o
cebe bons presentes. yakapá, aquele que possui relação direta
Quando a doença é mais leve, o dono com os espíritos e consegue curar atra-
pode aguardar para fazer festa para o vés dos transes, tabacos e cantos, para
apapayêi, minimizando os efeitos pato- assim realizar a extração de feitiços
gênicos com ervas e pajelança. A con- (kauki). Os Mehinako explicam que a
dição de dono não é permanente, de mesma substância preta que transmite
modo que um mesmo apapayêi pode doença também pode ser utilizada no
obter inúmeros donos ao longo dos processo de cura. Os pajés possuem a
anos, ou melhor, cada festa realizada mesma substância que está armazena-
pode ter mais de um patrocinador. da nas flechas do apapayêi, a iyalawû, que
Identificamos casos de haver cinco do- está concentrada nas mãos e na gargan-
nos para o mesmo apapayêi. ta do curador. Os Mehinako ainda res-
Quando algum outro indivíduo é atin- saltam que qualquer pessoa consegue
gido por um apapayêi que já possui um enxergar essa pequena rodela preta de
dono, ele pode optar por manter o cera dentro da garganta de um pajé. O
patrocínio, quando há algum risco de pajé é aquele que consegue lidar com
a doença voltar, ou cessar o compro- frações de apapayêi dentro de si, sem
misso e entregar o ritual a outra pes- sentir dores ou sequelas. Os efeitos de
soa atingida. Nesse caso, ele deve fazer cura são ativados quando a fumaça en-
a declaração, em público, de que está tra em contato com a substância.
transferindo a categoria de dono para Se, por um lado, é extremamente difícil
outra pessoa, e, principalmente, deve para um pajé conseguir ficar resisten-
realizar a última festa para o espírito. te à substância preta iyalawû - os pajés
No período em que realizei a última enfrentam um treinamento intenso
pesquisa de campo, em 2010, estavam e rigoroso para obterem esse feitio -
hospedados em Utawana três suíços por outro lado, pode perder poderes.
que pagaram pela realização dos ritu- Acompanhei o caso, por exemplo, de
ais, situação considerada muito favo- um pajé que perdeu sua capacidade de
rável para a realização das festas para cura porque aceitou a comida de uma
os apapayêi aguardados. Neste caso, mulher menstruada.
aquelas pessoas que optaram por pou-
par apapayêi para uma situação determi- As pessoas que são atingidas pela fle-
nada, puderam realizar as festas para cha dos espíritos não suportam essa
mostrar aos estrangeiros e receberam pequena porção do corpo do apapayêi
dinheiro para isso. dentro de si. “O doente é aquele que
carrega em seu corpo uma extensão de
apapaatai, tornando assim uma espécie
CURA de presa: o doente é o cativo, a doença
Na aldeia Utawana existem dois tipos é um cativeiro” (Piedade 2004:55).
de pajé: o panalawekehe, aquele que pre- O pajé yakapá é um indivíduo escolhi-
à distância, mas não obteve êxito; por ca de São Paulo (PUC-SP). Atividade pro-
isso os familiares decidiram transportá- fissional: Docente bolsista de pós-doutora-
-la para a aldeia do pajé. Logo que ele do da Universidade Federal do Amazonas.
teve contato com a doente, percebeu Endereço físico para correspondência:
que mais de um apapayêi havia rouba- Rua Cinco, 158, CEP: 69055-230, Manaus,
do a alma dela, por isso ele não estava Amazonas. E-mail: rgabraida@yahoo.com.
br
conseguindo realizar a cura à distância
nem fazer um diagnóstico imediato, 2
Este artigo trata de um recorte de mi-
devido à quantidade de apapayêi que nha pesquisa de doutorado, voltada para
capturaram a alma da mulher. festas promovidas para os apapayëi entre
os Mehinako, que envolvem a produção
de um grande número de objetos e curas.
Hospedei-me na casa do chefe Yahati, du-
CONCLUSÃO
rante quase toda a duração das pesquisas
Objetos e rituais permitem que os apa- de campo. É muito comum no Alto Xingu,
payëi se integrem às dinâmicas sociais assim como entre outros povos indígenas,
dos Mehinako, de tal modo que sejam que todos os caraíbas tenham um anfi-
percebidos não mais sob uma ameaça trião, alguém responsável por hospedá-lo,
constante, mas como aliados em po- acompanhar em todos os momentos da
tencial. As negociações intermináveis pesquisa, observar a sua relação com to-
das as pessoas da aldeia, e algumas vezes a
permitem a internalização dos outros
disputa entre anfitriões de facções distin-
em uma rede de trocas materiais e ce-
tas pode gerar conflitos. A princípio, fui
rimoniais. recebida pelo chefe mediador das relações
Os apapayêi demonstram, enfim, que dos brancos com os Mehinako, aquele que
não há pacificação sem a produção sempre está fora da aldeia vendendo ob-
de doença, morte e violência, o que jetos e buscando contatos de parcerias, e
nos remete à hipótese de Viveiros de nome Anapuatã. Mas após algumas horas,
Castro sobre o parentesco ameríndio fui encaminhada para a casa do grande
como um processo de construção de chefe, conhecedor das tradições e dos cos-
identidade a partir da diferença, pro- tumes dos Mehinako, Yahati. Ao longo da
pesquisa, desenvolveu-se um site de ven-
cesso fadado à incompletude: todo apa-
das online para estimular a coleta de da-
payëi pode gerar doenças em graus mais
dos e a catalogação de objetos. Como os
acentuados ou não, pois a inimizade é Mehinako estavam iniciando o projeto da
algo que pode ser revertido entre os Associação Indígena Ahira, propusemos
povos alto xinguanos. para o grupo a realização de um site de
venda dos objetos produzidos por eles. O
NOTAS aumento nas vendas através desse canal de
contato cooperou com a renda da popula-
1
Formação: Graduação em Turismo pela
ção e, além disso, contribuiu com as son-
Pontifícia Universidade Católica de Campi-
nas (PUCCAMP), Mestrado em Geografia dagens que precisávamos para a realização
pela Universidade Federal de Mato Grosso da pesquisa.
do Sul (UFMS) e Doutorado em Ciências 3
As flautas Jakuí são consideradas o apa-
Sociais pela Pontifícia Universidade Católi- payêi mais perigoso e temido. Aqueles
Mehinako que ficaramdoentes de Jakuí de- Junqueira, C. 2005. Pajés e feiticeiros. In:
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de fazer as festas quando os pais donos da Paulo: Editora terra virgem.
flauta morrem.
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4
Os Mehinako não souberam identificar a reflexões sobre o perspectivismo em uma
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