Acervo Mafuá
Uma etnografia da pintura e do design popular
na obra fotográfica de Edson Meirelles
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
2016
SUIÁ OMIM ARRUDA DE CASTRO CHAVES
Acervo Mafuá
Uma etnografia da pintura e do design popular
na obra fotográfica de Edson Meirelles
Orientador:
Prof. Dr. Marco Antonio Teixeira Gonçalves
Rio de Janeiro
2016
Acervo Mafuá
Uma etnografia da pintura e do design popular
na obra fotográfica de Edson Meirelles
Aprovada por:
____________________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Marco Antonio Gonçalves (PPGSA – UFRJ)
____________________________________________________
Prof. Dr. Amir Geiger (PPGMS – UNIRIO)
____________________________________________________
Profa. Dra. Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto (PPGA – UFF)
____________________________________________________
Profa. Dr. Wagner Neves Diniz Chaves (PPGSA – UFRJ)
____________________________________________________
Profa. Dra. Els Lagrou (PPGSA – UFRJ)
Suplentes:
____________________________________________________
Prof. Dr. John Comerford (PPGAS – Museu Nacional – UFRJ)
____________________________________________________
Prof. Dr. Bruno Cardoso (PPGSA – UFRJ)
Rio de Janeiro
2016
FICHA CATALOGRÁFICA
OMIM, SUIÁ
Acervo Mafuá: uma etnografia da pintura e do design popular na obra fotográfica de Edson
Meirelles. Rio de Janeiro, 2016.
255 pp.
Para Mar
que sabe da arte de colecionar
e para
Reginaldo Saddi,
Soraya Borba e
Joaco
(in memoriam)
RESUMO
A pesquisa do fotógrafo carioca Edson Meirelles, realizada ao longo de mais de trinta anos (de 1972
a 2004), constitui um acervo de aproximadamente 20 mil slides (cromos) de ―pinturas populares‖
produzidas em diversas cidades brasileiras. O que o fotógrafo-pesquisador conceitua como "arte
gráfica popular brasileira" e/ou ―design popular‖ consiste em uma grande diversidade de pinturas
feitas à mão – desenhos, letras, palavras, tipografias, grafismos abstratos e figurativos – encontrados
em estabelecimentos comerciais, placas, cartazes, muros, murais, barracas de festas populares,
carrocinhas de ambulante, painéis de circo, ônibus de espetáculos de ilusionismo, parques de
diversão, etc. Mais do que construir uma extensa coleção fotográfica apropriando-se das diversas
expressões plásticas populares ainda pouco conhecidas e estudadas, o trabalho de pesquisa do
fotógrafo e colecionador possibilita a investigação antropológica sobre uma concepção
―modernista‖ de Brasil, que questiona e reformula a noção de arte popular, valorizando as
criatividades, agências, intencionalidades e (mito)poéticas destas produções pictóricas. O objetivo
central desta tese é pensar as relações entre a obra e a pessoa (distribuída em cromos e arquivos) do
fotógrafo carioca, investigando etnograficamente o seu modo de fazer antropologia visual por meio
da produção desta vasta coleção sobre a pintura e o design popular brasileiros.
The research of the photographer Edson Meirelles, held for over thirty years (1972 to 2004),
constitutes a collection of approximately 20 thousand slides (chromes) of "popular"(folk) paintings
produced in several Brazilian cities. What the photographer-researcher conceptualizes as "Brazilian
popular graphic arts" and/or "popular design‖ consists of a great diversity of handmade paintings,
drawings, letter types, words, abstract and figurative graphic designs, – found in commercial
establishments, ads and signs, billboards, posters, walls, murals, popular festivals‘ stands, street
vendor cars, circus panels, buses with illusionism shows, amusement parks, etc. More than building
an extensive photographic collection by appropriating a diversity of plastic popular expressions, –
practically unknown and not yet studied – the research work of the photographer and collector
enables an anthropological research on the Brazilian ―modernist‖ conception, which challenges and
reformulates the notion of popular art, valuing the creativity, agentivity, intentionality, and
(mytho)poetic aspects of these pictorial productions. The central purpose of this thesis is to reflect
upon the relationship between the work and the person (distributed in chromes and files), a
photographer from Rio de Janeiro, through an ethnographical investigation of the way by which he
makes visual anthropology while producing his vast collection of images on Brazilian
popular painting and design.
1
Para uma lista detalhada das figuras dessa tese ver ANEXO V.
SUMÁRIO
CAPÍTULO 2. O COLECIONADOR 63
BIBLIOGRAFIA 231
ANEXOS 241
a caligrafia das estrelas
a caligrafia da sequência de casas
a caligrafia das roupas no varal
a caligrafia da chuva
a caligrafia dos grãos
a caligrafia dos ossos
a caligrafia da palavra
a caligrafia das placas de rua
a caligrafia das estrelas
(Paul Valéry)
15
INTRODUÇÃO
OU DAS OBRAS DE ARTE GUARDADAS EM GAVETAS
Recobre-se de letras
ou são apenas tretas?
Entrará em catálogo
a custa de monólogo?
2
Enfoques é a Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (IFCS/ UFRJ).
Ver: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/
3
Abigraf, Big, Veredas, Marketing Cultural.
17
perdeu o seu caráter antiartístico, transformou-se numa obra autônoma com lugar
reservado, como as outras, nos museus (Bürger, 2012:108-109)
O trabalho de Edson Meirelles é um caso exemplar de uma obra coletiva que em seu
conjunto leva a assinatura daquele que detalhadamente a confeccionou através do meio
fotográfico. Ainda que a obra em questão não componha, até agora, o acervo fixo de
nenhum museu ou instituição cultural, as fotos desse trabalho intitulado pelo fotógrafo como
Projeto Mafuá foram expostas em espaços bastante reconhecidos nos ―mundos artísticos‖
(Becker, 1977) tais como: o Museu de Arte Moderna – MAM/RJ (1983-4); os SESC São
Paulo e Pompéia (2000); o SESC Araraquara (2001); o SESC Santa Catarina (2004); o Paço
Imperial, no Rio de Janeiro (2004) e o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo (2013) (ver
ANEXO I).
4
“As bases sobre as quais a familiaridade e a distância se assentam são cambiantes. 'Em casa' pode recuar
infinitamente: estaria um cigano que estudasse ciganos em casa? Ou teria de ser um cigano desta e não daquela
região? A resposta que proponho é bastante especifica e não exclui as outras formas possíveis de estar 'em casa'.
Mas ela de fato aponta para um aspecto da prática antropológica que não pode ser ignorado. Considero, pois,
uma forma de livrar o conceito de casa de mediações impossíveis de graus de familiaridade. O contínuo
obscurece a ruptura conceitual. O que se deve saber é se investigador-investigado estão igualmente em casa, por
assim dizer, no que diz respeito ao tipo de premissa sobre a vida social que informam a investigação
antropológica.” (Strathern, 2014: 133-134).
18
outra pesquisa, o que não deixa de ser também uma meta-pesquisa. No procedimento de
transformar a pesquisa de mais de trinta anos de Edson Meirelles – o Projeto Mafuá – na
minha pesquisa de tese foi necessário, antes de tudo, redefini-la sob meu ponto de vista.
Defini o meu ―objeto‖ de pesquisa como – o Acervo Mafuá. Do meu ponto vista, não é
possível separar analítica e metodologicamente a pessoa do acervo. Ou seja, a etnografia feita
aqui é também uma ―etnobiografia‖ (Gonçalves et alii, 2013) de um sujeito e seu acervo e
também dos conhecimentos, técnicas, textos, conceitos, epistemologias e proposições que
constituem a relação entre o acervo e seu produtor.
A minha relação com o Acervo Mafuá se deu de cinco modos distintos:
(1) Primeiramente, tive contato com as publicações que me fizeram decidir os rumos
da pesquisa.
(2) Num segundo momento, fui ―apresentada‖ às imagens do acervo através de alguns
encontros de trabalho na casa de Meirelles. O fotógrafo mostrou-me imagens, explicou sua
pesquisa, contou diversas histórias de vida e respondeu a muitas das minhas perguntas. Para
compor meu material de pesquisa, realizei seis entrevistas longas, outras tantas conversas
telefônicas e também um arquivo de trocas de e-mails.
(3) O terceiro modo de trabalho de campo foi possível pela extrema generosidade e
confiança do fotógrafo em deixar comigo uma cópia das chaves de sua casa, para que eu
pudesse trabalhar lá enquanto ele estivesse ―fora‖ (trabalhando no seu restaurante). Deste
modo, eu pude ―mergulhar‖ no acervo, sem a presença do autor. Esta experiência, longe de ter
esgotado as possibilidades conceituais da pesquisa, apresentou-se como oportunidade de ―ser
afetada‖ (Favret-Saada, 2005) pelos objetos-imagens reunidos no acervo, visualizando os
cromos através de uma mesa de luz.
(4) O quarto modo de trabalho no acervo foi realizar a documentação fotográfica das
cartelas de cromos através da documentação digital das cartelas do acervo.
(5) Esta experiência de estar no acervo, observando as sequências e séries fotográficas
organizadas no móvel-arquivo, estende-se etnograficamente até o presente momento através
da digitalização das coleções, que me permite observá-las instantaneamente. Este, então é o
quinto modo de relação com o acervo, que me foi proporcionado justamente pelo fato das
imagens do acervo e seus demais documentos terem sido reproduzidos, permitindo que
estivessem comigo em qualquer lugar.
Um aspecto irônico da presente pesquisa é o fato de que, se ela teve início na
―familiaridade‖ da vizinhança de Santa Teresa, o seu desdobramento subsequente foi um
extremo ―distanciamento‖, já que no ano de 2012, eu fui morar no Estado do Tocantins. Após
a mudança para o Tocantins, retornei ao Rio de Janeiro por cinco vezes entre os anos de 2012
19
5
Destaco ainda, as tentativas de entrevistar Adélia Borges, em São Paulo, que infelizmente não foram bem
sucedidas, pelo fato das agendas serem inconciliáveis na ocasião.
20
conjunto é constituído tanto por entrevistas realizadas por mim com pessoas que conheciam o
projeto fotográfico de Edson Meirelles – a saber: Guto Lins6, Milton Guran7, e Ricardo
Ohtake8), quanto pelos textos publicados sobre o Projeto Mafuá em diversas revistas, jornais e
catálogos de exposições.
A partir destes cinco corpus de dados etnográficos, o objetivo central da tese é, não
apenas qualificar e recuperar o modo de pensar do autor na criação de seu acervo, como
―intervir‖ e ―ampliar‖ etnograficamente o conhecimento produzido pelo fotógrafo e
pesquisador neste acervo. Trata-se de pensar as relações entre a obra e a pessoa (distribuída
em cromos e arquivos) do fotógrafo carioca Edson Meirelles. Sua obra e os discursos que ele
elabora sobre ela apontam para a visibilidade, como arte, de um tipo de produção manual que
é encontrada em espaços de diversas cidades do Brasil contemporâneo.
As pinturas e os objetos gráficos populares espalhados pelo país estão longe de serem
expressões pictóricas encontradas especificamente no Brasil, pelo contrário, podem ser vistos
em qualquer lugar do mundo que tenha sido marcado por pincel e tinta. O cinema e a
fotografia são dispositivos poderosos de captura deste tipo de produção pictórica. Por
exemplo, no filme Le Bonheur (As duas faces da felicidade), a diretora Agnès Varda faz uso
das pinturas e tipografias em muros, placas e estabelecimentos comerciais das ruas de Paris
dos anos 1960, de modo que tais imagens e palavras tornam-se índices dos acontecimentos do
enredo. Na cena (de fotografia primorosa) em que o personagem do carpinteiro se encontra
em um café com a mulher que virá a ser sua amante, a montagem valoriza elementos ao redor
6
Guto Lins é designer (ESDI/ UERJ), ilustrador, escritor, professor da PUC/RJ. Além de ser um amigo antigo
de Meirelles, Guto assinou o projeto gráfico do único livro publicado por Edson Meirelles, intitulado
Culinária Afrodisíaca. ―Guto Lins é designer formado pela ESDI e professor do Departamento de Artes e
Design da PUC-Rio. Participou da primeira diretoria da ADG-Rio (Associação dos Designers Gráficos/Rio)
eleito pelos profissionais cariocas para o biênio 2000/2001. É sócio de Adriana Lins no escritório de design‖.
In: http://globolivros.globo.com/autores/guto-lins.
7
Milton Guran é antropólogo e fotógrafo. Na entrevista concedida a mim, em 14/04/2014, resumiu do seguinte
modo sua trajetória profissional: ―eu sou fotógrafo, quando eu me envolvi com a fotografia eu já era
jornalista, estava começando no jornalismo. Então eu me desenvolvi como fotógrafo no contexto de foto
jornalismo, enquanto repórter eu conheci... tive a oportunidade de visitar uma aldeia indígena no Xingu. Foi a
primeira vez que eu fui, exatamente num jogo de jawari entre os Suyá e os Kamayurá, como a gente falava
em 1978. Esta experiência me mobilizou bastante, me interessou bastante e eu elegi a questão indígena como
um tema privilegiado de trabalho. Para entender melhor essa questão, indígena, eu fui ler e estudar
Antropologia e aí a vida foi se construindo, eu acabei fazendo uma Pós–graduação Lato Senso, de
Especialização em Recursos Audiovisuais em Etnologia, na Universidade Católica de Goiás. Depois eu fiz
um mestrado e fiz um doutoramento, em Antropologia, na École des Hautes Études en Sciences Sociales de
Paris. Mas, lá, eu não estudei índio, eu estudei a construção da identidade social dos Agudás, que são os
descendentes dos entes africanos escravizados no Brasil, que retornaram para a Costa Ocidental da África e
de traficantes que tinham se estabelecido lá para fazer o tráfico. Então, eis aí a minha trajetória.‖
8
Ricardo Ohtake é arquiteto formado pela (FAU/ USP). ―Dirige o Instituto Tomie Ohtake desde sua criação
em 2001. Foi Secretário de Estado da Cultura de São Paulo, dirigiu o Centro Cultural São Paulo, o Museu da
Imagem e do Som - MIS e a Cinemateca Brasileira. Formou-se em arquitetura pela FAU-USP e trabalhou em
importantes questões urbanas, principalmente quando foi Secretário do Verde e Meio Ambiente do Município
de São Paulo. Atua também na área do design gráfico, desenvolvendo projetos de identidade visual e
caracterização urbana, além de editar várias publicações de arte e cultura.‖ In:
http://www.iea.usp.br/pessoas/pasta-pessoar/ricardo-ohtake.
21
dos dois (o espaço do café, os outros clientes) com a intenção de mostrar a conexão entre os
dois personagens. Após esta conversa com intenso jogo de olhares entre os personagens, a
cena termina com os planos de duas placas penduradas nas portas de vidro do café em que se
lêem: ―tentação‖ e ―mistério‖. Outro exemplo pode ser visto nas famosas fotos de Pierre
Verger dos cultos religiosos na África e no Brasil. No livro Orixás (1997), há uma sequência
de fotos do Templo de Ogum Ondó em Pobê, no Benin, em que se observam dois leopardos
pintados acima da porta do templo (foto 52). Na foto de número 51, Verger enquadrou a
pintura de um dos leopardos, capturando os detalhes dos traços e da criatividade pictórica que
enfeita este espaço sagrado (1997: 100). Com estes exemplos, fica evidente a presença destas
expressões plásticas nos mais variados contextos e localizações, bem como a atenção de
certas sensibilidades artísticas para com estes objetos gráficos e pinturas que Edson Meirelles
qualificou como arte gráfica ou design popular.
O que o fotógrafo conceitua como "arte gráfica popular brasileira" constitui uma
grande diversidade de pinturas feitas à mão – desenhos, letras, palavras, grafismos abstratos
ou figurativos – encontrados em estabelecimentos comerciais, carrocinhas de ambulantes,
painéis de circo e parques de diversão, muros, placas, paredes, etc. Mais do que construir uma
extensa coleção iconográfica, o trabalho de pesquisa do fotógrafo possibilita a reflexão sobre
uma ideia ―modernista‖ de Brasil, investigando os limites da noção de arte popular e
pensando sobre o saber-fazer, a criatividade, a agência e intencionalidade destas produções.
Interessa ainda refletir sobre as formas de elaboração dos discursos produzidos a
respeito de um arquivo imagético de aproximadamente vinte mil fotografias diapositivas,
colecionadas por Meirelles, objetivando assim compreender como um arquivo não deixa de
ser também uma ―pessoa distribuída‖ (Gell, 1998). Este conceito elaborado por Alfred Gell
tem como base uma teoria cognitiva que traça uma nova relação entre o protótipo e a imagem,
deixando de lado a ideia de representação enfatizando a noção de ―agência‖. A estrutura
conceitual e etnográfica articulada por Gell demonstra como os objetos têm agencia social, na
medida em que são engendrados nas relações entre pessoas. Para Gell, a agência dos objetos é
secundária, isto é, implica na interação ou interferência humana. A ―pessoa distribuída‖ é,
assim, a
pessoa que se espalha pelos traços que deixa, pelas partes de si que distribui entre
outras pessoas; do mesmo modo, ainda segundo Gell, existem ‗distributed objects‘
(objetos distribuídos) e a ‗extended mind‘ (mente estendida) que se espalha através de
um grupo de objetos relacionados entre si como se fossem membros de uma mesma
família (Lagrou, 2007: 58 ).
A ideia de uma família de objetos é muito ―boa para pensar‖ o Acervo Mafuá como
construção de coleções de objetos, tanto pictóricos quanto fotográficos, que são também
22
conceitos. Para Henare (et ali, 2007) um dos passos para uma ―antropologia ontologista‖ é a
aceitação de que os objetos implicam atos de criação conceitual, ―atos que não podem ser
reduzidos a operações mentais‖ (2007:15). A partir desta abordagem ontológica, o que
interessa é entender os objetos como conceitos, o que nos termos de Gell são também
―armadilhas do pensamento‖ (2001). Deste modo, a alteridade pode ser pensada como
propriedades dos objetos, ou seja, o objeto é em si um conceito que o relaciona a uma
subjetividade (em construção).
Se, como queria Claude Lévi-Strauss, ―é a diferença das culturas que torna seu
encontro fecundo‖, é precisamente através da observação da ―procura‖ do colecionador pela
alteridade, como modo de produção de conhecimento, que devo levar a sério o meu ―nativo‖,
sobretudo, quando este afirma que sua atividade profissional é de ―fotógrafo e pesquisador de
antropologia visual‖. O que pretendo analisar: a ideia é mostrar, mais especificamente, como
Edson Meirelles faz antropologia através da produção de seu acervo (Wagner, 2011).
O estudo etnográfico deste acervo aponta para uma ―outra‖ antropologia que se apoia
num ―rigor‖ autodidata e ―obsessivo‖ de documentar e produzir imagens, ícones desta arte, na
qual o colecionador se ocupa em construir um artefato da pintura e do design popular no
Brasil. Tomo aqui o fotógrafo como minha primeira fonte etnográfica de pesquisa, que, como
veremos a seguir, é bastante afetado por preocupações modernistas, por meio do 'vínculo
romântico' de registrar, colecionar, exemplificar algo que necessita ser ―salvo‖ da
―tempestade‖ qualificada por Benjamin como o progresso que rumo ao futuro acelera o
―aumento das ruínas do passado‖ (Harent, 2008: 178).
9
―Os cantes de ida y vuelta eram produtos coloniais introduzidos na Espanha, frutos da apropriação e da
transformação de gêneros musicais flamencos praticados nas colônias – as atuais Cuba, Colômbia e
23
Argentina. Daí serem conhecidos como cantos de ida e volta‖ (Carneiro da Cunha, 2009: 311-312).
10
As entrevistas feitas por mim com o autor foram realizadas entre os anos de 2012 e 2014, na casa do próprio,
em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Além das entrevistas presenciais, tivemos outras tantas conversas telefônicas
e trocas de e-mails. No texto que se segue, optei por não diferenciá-las ou identificá-las por data, referindo-me a
este conjunto como: Entrevistas Meirelles.
24
Estas analogias produzem uma reflexão sobre diferentes procedimentos técnicos. A pintura,
assim como o som do violino, evidenciaria um processo mais artesanal de produção de
resultado, enquanto que a fotografia e o som do piano se utilizariam de um procedimento
11
Notifico apenas uma curiosidade sobre o autor do romance O Cortiço. No posfácio, Josué Montello diz que a
verdadeira vocação do Aluísio de Azevedo era a pintura, e não a escrita.
12
Para Hubert e Mauss (2003), a magia é um ―tesouro de ideias‖.
25
técnico mais automático, isto é, um resultado imediato ao toque de uma tecla. Precisamente
estas possibilidades de uso artístico/político das novas técnicas de reprodução de imagens são
um foco de grande interesse na obra de Benjamin, bem como desta tese. Aqui, interessam
também os debates, divergências e críticas sobre os alcances da perspectiva benjaminiana da
―perda da aura‖ e das suas associações ―arriscadas‖ com o pensamento da escola de Frankfurt
(Hennion e Latour, 2003; Gagnebin, 2013)13
A reprodução técnica das imagens, como salientou (...)Walter Benjamin, pode acentuar
aspectos que o olho não vê, dando assim uma autonomia ao objeto e à câmera, com a
consequente fetichização desta – um objeto que produz imagens do mundo, outros
planos de realidade. Esta autonomia atribuída às imagens está estreitamente
relacionada ao seu automatismo e à sua relação com as máquinas que as produzem. A
própria terminologia da produção de imagens através das lentes evoca essa ideia de
apreensão do real pela máquina, refletida em metáforas que vinculam a captura de
imagens fotográficas à caça; em inglês, shot (tiro). (Gonçalves, 2010: 03)
passo que veiculam uma abertura das imagens, já objetificadas, para o olhar do observador,
produzindo encantamento por meio de técnicas e tecnologias e estimulando diferentes
perspectivas, leituras, sentidos, interpretações e questionamentos.
Alfred Gell – que orientou os eixos de fundamentação para uma nova teoria
etnográfica da arte (1999) – privilegia a investigação da ―arte como um sistema técnico‖ em
detrimento dos paradigmas das abordagens estéticas, interpretativas e institucionais. O autor
propõe que antropologia observe a arte, em todos os lugares, como um componente da
tecnologia:
Reconhecemos obras de arte, como uma categoria, porque elas são o resultado de
processo técnico, a espécie de processo técnico no qual os artistas são peritos. A
principal deficiência da abordagem estética é a de que os objetos de arte não são os
únicos objetos esteticamente valorizados: há belos cavalos, belas pessoas, belos
ocasos, e assim por diante; mas os objetos de arte são os únicos que são belamente
produzidos ou feitos belos. Parece haver toda a justificativa, logo, para considerar
inicialmente os objetos de arte aqueles que demonstram certo nível de excelência
alcançado tecnicamente, considerando que ‗excelência‘ seja a função não
simplesmente de suas características como objetos, mas de suas características como
objetos produzidos, como produtos de técnicas. Considero as várias artes – pintura,
escultura, música, poesia, ficção, e assim por diante – componentes de um sistema
técnico vasto e frequentemente não reconhecido, essencial para a reprodução das
sociedades humanas, ao qual eu chamarei de tecnologia do encanto. (Gell, 2005: 52)
A tecnologia do encanto torna-se aqui uma abordagem chave para pensar sobre as
pinturas populares que foram objeto de colecionamento do fotógrafo. Os enquadramentos
fotográficos - tecnicamente executados pela lente-olho de Meirelles e catalogados na
composição e organização do Acervo Mafuá – delimitam uma atividade técnica de pintura que
se afirma como arte. São produções pictóricas anônimas, em sua maioria, espalhadas por todo
Brasil e cotidianamente ignoradas pelos passantes. As fotos (a tecnologia) produzem um
―encanto‖ sobre as pinturas que, em meio à superpopulação de imagens das grandes cidades,
permaneciam apagadas, ou menos reais, como queria Benjamin. A obra de Meirelles
materializa uma documentação imagética produtora de uma espécie de curadoria da arte
pública. Nas palavras de Gell, estas pinturas seriam provenientes de ―processos técnicos que
personificam objetivamente‖, uma vez que ―a tecnologia do encanto é fundada no encanto da
tecnologia. O encanto da tecnologia é o poder que os processos técnicos têm de lançar uma
fascinação sobre nós, de modo que vemos o mundo real de forma encantada (…) o encanto
que é imanente a todas as classes de atividade técnica‖ (Gell, 2005 :46).
A tecnologia também é tematizada em outro famoso texto de Gell ―A rede de Vogel‖
(1996) em que o autor problematiza ―o que é arte‖ a partir das obras e intencionalidades da
exposição Arte/Artefato no Center for African Art (New York), cuja curadora foi a
antropóloga Susan Vogel. Gell analisa a exposição e as obras a partir de uma teoria
27
antropológica da arte que se confronta com algumas questões enunciadas no texto de abertura
do catalogo da exposição, escrito pelo filósofo Danto. O objetivo do artigo de Gell é duplo: 1)
discutir a distinção proposta por Danto entre 'arte' e 'artefato' e; 2) montar uma pequena
exposição (composta por textos e ilustrações) de objetos que Danto consideraria 'artefatos',
mas Gell considera a sua potencialidade em circular como objetos de arte ―mesmo que essa
não tenha sido a intenção original de seus criadores‖ (2001: 177). Precisamente neste ponto,
penso haver uma proximidade entre a ideia de obra de arte defendida por Gell e uma
característica conceitual da obra de Edson Meirelles. Em ambos os casos, há uma importância
da alteridade como forma de produção de conhecimento. Por meio de um deslocamento, um
shifter15, o artefato é transformado em obra de arte. De acordo com Gell:
uma obra pode estar, a principio, fora do circuito oficial da história da arte, mas, se o
mundo artístico coopta esta obra e a faz circular como arte, então ela é arte, porque
são representantes do mundo artístico, ou seja, artistas, críticos, comerciantes e
colecionadores, que têm o poder de decidir esta questão, não a 'história'. (Gell, 2001:
175)
15
Roman Jakobson aborda estrategicamente uma problemática linguística partindo de um caso exceção – o
distúrbio linguístico da afasia, normalmente abordada pela perspectiva médica, torna-se dispositivo de
compreensão de mecanismos básicos da linguística. Como mostra Jakobson, os shifters são uma classe de
unidades gramaticais universais cuja característica principal é seu significado geral no código estar
necessariamente referenciado na mensagem no qual é usado. Os shifters não possuem um significado único,
regular, geral. O que distingue o shifters dos outros constituintes do código linguístico é unicamente sua
referência compulsiva à mensagem. O estudo de Jakobson de um caso periférico é tido como base na proposição
de Peirano para um analise dos rituais e eventos, não por seu caráter extraordinário, mas por investimentos em
eventos corriqueiros e cotidianos do ―mundo vivido‖ (2006).
28
elaborados pelo fotógrafo. Tal ênfase deve-se ao fato de que realizar um trabalho de campo,
com os pintores que ―abrem letra‖ e fazem desenhos em cidades do Brasil, tornou-se algo
difícil de concretizar-se de modo conjunto com a análise e imersão etnográfica neste vasto
acervo composto de fotografias, textos, projetos de exposição, livros não publicados,
matérias, ensaios e artigos publicados em revistas especializadas, além, da convivência e das
entrevistas realizadas com Meirelles e com outras pessoas.
As pinturas colecionadas pela fotografia de Meirelles estão embasadas em uma
―política visual‖ da arte que busca deslocar objetos, ações, tecnologias, agências e
intencionalidades, dando-lhes uma ordem, distinguindo-os em segmentos temáticos,
estudando o uso das cores, os contextos das pinturas (planos abertos) e as imagens-sínteses
(decupagens), produzindo recortes detalhados de modo ―a destacar os elementos gráficos mais
importantes‖ das variadas superfícies cobertas com tinta e realizando retratos de alguns
pintores de letras em atividade.
Lygia Segala realizou um estudo da coleção fotográfica do francês Marcel Gautherot 16
adquirida pelo Instituto Moreira Salles17, em 1999. Tal coleção é pensada através da
vinculação desta obra com ―projetos documentários de instituições como o Musée de
l‘Homme, em Paris, no final dos anos 1930 e, no Brasil, o Serviço de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional e a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, entre os anos 1940 -1960‖
(p) . É interessante refletir sobre o fato dos projetos documentários da obra fotográfica de
Gautherot apresentarem, por assim dizer, ―filiações‖ institucionais com os surrealistas
franceses e os modernistas brasileiros. Estas ideias surrealistas e modernistas reverberam
também (por ―contágio‖) na obra fotográfica de Edson Meirelles.
16
De acordo com Segala, o fotógrafo francês (1910-1996) produziu entre os anos 1940-1980 um extenso
trabalho fotográfico sobre o patrimônio cultural material e imaterial do Brasil. ―Com formação em arquitetura,
como já comentou minha colega Heliana Salgueiro, o fotógrafo busca nas paisagens, nas comemorações e na
vida cotidiana, na história vivida das ruas, o equilíbrio minucioso das formas, o jogo com a profundidade de
campo e o movimento, o registro calculado das luzes. Previsualiza o momento particular em que as disposições
do quadro sintetizam como trama gráfica e representação o acontecimento.‖ (2005: 74).
17
O Instituto Moreira Salles é um espaço cultural no Rio de Janeiro que conta com diversos acervos disponíveis
para pesquisa, tais como: fotografia, música, iconografia, literatura, etc. Ver:
http://www.ims.com.br/ims/explore/acervo-a-z.
18
Utilizo este conceito a partir das proposições de Eduardo Viveiros de Castro (2015).
29
Meirelles investiu na sua atividade fotográfica, criando um arquivo que, sem dúvida,
constaria como documentação ―patrimonial‖ em um hipotético ―arquivo cumulativo‖
andradiano, que não deixa de ser a afirmação de repertórios do design e da pintura nacionais.
Esta ideia de arquivo cumulativo está relacionada não só ao acervo fotográfico, mas também
ao conjunto de documentos bibliográficos, reportagens, livros e demais materiais relacionados
ao tema da sua coleção. A produção do Acervo Mafuá, ao estilo do bricoleur, não está
orientada por uma ideia institucional ou burocrática de patrimônio, pelo contrário, a
confecção do arquivo apresenta uma marca ―pessoal‖ e ―passional‖. Como afirma o fotógrafo:
O Projeto Mafuá, até alguns anos atrás, eu tratava ele com muito cuidado, com muito
carinho. Porque eu sei que é um projeto de gente maluca. Há uma dimensão muito grande
desta pesquisa, por isto que eu tinha muito cuidado. Eu sempre fui muito ciumento com
este projeto. Posso te garantir uma coisa: se eu estivesse engajado fotograficamente
falando, se eu estivesse produzindo, acho que você não teria acesso a este material.
(Entrevistas Meirelles)
19
Uma semelhança no discurso de Mário de Andrade e Edson Meirelles diz respeito à atividade fotográfica.
Mario de Andrade em suas viagens etnográficas usava a fotografia como um instrumento de pesquisa
etnográfica, com uma pretensão documental e não artística (Carnicel, 2005: 171). Meirelles também afirma
que suas fotos do projeto mafuá são ―apenas‖ documentais e não têm uma intenção artística. Eu,
particularmente, discordo desta posição, pois não se trata de ―ou isto ou aquilo‖, como diria Cecilia Meireles,
ou seja, o aspecto documental não exclui o elemento artístico.
30
ativamente no projeto, foi o dispositivo que possibilitou a abertura do acervo para a minha
pesquisa. O fim da duração do projeto Mafuá foi o início da duração do acervo Mafuá.
Em termos teóricos esta tese se apropria da ideia de ―mafuá‖ presente no título deste
vasto acervo aqui analisado. No dicionário Houaiss, encontram-se duas definições para a
palavra Mafuá: 1) ―parque de diversões ou feira de prendas e jogos, espetáculo com
transmissão de música ruidosa nos alto-falantes‖ e 2) ―ausência de ordem, de arrumação;
bagunça, confusão, rolo‖. Se, em termos etnográficos, privilegiei a definição do mafuá como
parque de diversões, entendido aqui como um contexto ―ritual contra-intuitivo‖ (Severi,
2007), povoado por ―personagens da cultura de massas‖, ―seres quiméricos‖, ―rodas
gigantes‖, ―montanhas russas‖, ―carrinhos que batem‖, ―monstros de trens fantasmas‖,
―mulheres que viram gorila‖; em termos teóricos privilegio, por outro lado, a segunda
definição apresentada acima, sobretudo a ideia de ―rolo‖, pois se pretende aqui justamente
―fazer um rolo‖ entre a teoria e a etnografia. Neste sentido, as teorias, autores e conceitos
apresentados no decorrer da tese aparecem à medida que a etnografia avança. É possível,
assim, dizer que esta tese foi ―afetada‖ por este elemento conceitual do mafuá que, por sua
vez, guarda afinidades com uma ―sensibilidade surrealista‖ (Sontag, 2004; Clifford, 1994
;Geiger, 1999 Lagrou, 2008; Segala, 2005).
O caminho da tese
O primeiro capítulo desta tese consiste em uma etnografia visual do Acervo Mafuá.
Este capítulo foi pensado como um artefato de montagem do acervo de modo a apresentar
imagens e textos de Edson Meirelles. A organização das imagens e dos textos do fotógrafo,
neste capítulo, a ordem das coleções delimitadas, pelo fotógrafo, no Acervo Mafuá. São elas:
1) Arte Gráfica Popular Brasileira; 2) Tipografia popular; 3) Mitopoética do Trem Fantasma;
4) A Pintura Mural Brasileira; 5) Nilton Bravo, um Michelangelo carioca e 6) A Pintura
Popular nas Festas de Largo da Bahia.
As sequências de fotos apresentadas no primeiro capítulo são apenas uma maneira
singular de observar o acervo que, sem dúvida, poderia ser organizado de vários outros
modos. A ideia deste capítulo é convidar o(a) leitor(a) a experimentar o ―vaguear pela
superfície‖ das imagens (Flusser, 2009), acompanhadas pelos textos do fotógrafo sobre cada
coleção. Para a leitura das fotografias, Flusser propõe o seguinte método: ―quem quiser
31
20
―Etnobiografia ao problematizar o pensamento sociológico clássico (o individual e o coletivo, o sujeito e a
cultura) produz uma quase reificação positiva da categoria indivíduo por querer justamente, se contrapor a
uma percepção de sociedade entendida como 'máquina sociológica', em que a individualidade e o espaço de
imaginação pessoal é bastante limitado pela concepção de cultura. Portanto, o conceito de indivíduo que se
opera aqui não parece ser uma percepção estrita da fórmula durkheimiana, em que o indivíduo se opõe à
sociedade e à cultura. Pelo contrário, pensa o indivíduo enquanto potência de individuação que, acionada a
partir da chave de uma relação entre pesquisador e pesquisado, produz uma relação entre sujeitos (Rouch,
1980: 57 apud Da-rin, 2004:158). É neste sentido que emerge a conceituação de etnobiografia, que parece dar
conta do sujeito, do indivíduo e da cultura.‖ (Gonçalves, 2012: 29-30).
32
capítulo, o(a) leitor(a) encontra uma qualificação etnográfica desta coleção, tanto em termos
quantitativos quando qualitativos. O conceito de ―mitopoética‖ (Lévi-Strauss, 2008; Frota,
1978) funciona como um operador da análise que permite apreender o espaço do parque de
diversões em sua dimensão ―carnavalesca‖ (Bakthin, 2002), repleta de repertórios da cultura
de massas expressos nas pinturas de parque.
No quinto capítulo, a investigação recai sobre a coleção Mitopoética do Trem
Fantasma, considerada por Meirelles como ―a favorita‖ dentre as coleções do Acervo Mafuá.
Esta coleção revela as imagens de ―terror/assombro/êxtase‖ dos parques de diversão, sendo
constituída por fotos, tanto das pinturas de painéis de trens fantasmas, quanto de espetáculos
de ilusionismo do tipo ―a mulher que vira gorila‖. Esta ―outra‖ face da diversão dos mafuás
coloca em evidência não apenas através de inúmeras formas híbridas, seres monstruosos,
mortos-vivos, como pela ―(des)figuração obsessiva da mulher‖ (Meirelles, 2001), como
vítima das mais variadas formas de violência. Nas imagens, as mulheres além de agregarem
um componente erótico aos painéis, ocupam o lugar de ―vítima exemplar‖, de presa das
monstruosidades, revelando o que Kaja Silverman (1992) conceituou como ―ficção
dominante‖. A mitopoética do trem fantasma é apreendida nos termos de sua cosmologia
―antagonizada‖ frente às imagens e moralidades cristãs. As agências e intencionalidades
destes seres monstruosos e quiméricos pintados nos painéis são pensadas em conjunto com a
moldura ritual destes ―contextos contra-intuitivos‖ (Severi, 2007) dos trens fantasmas e
espetáculos de mulheres que viram gorila. Neste sentido, apresento o esboço do conceito
complementar ao de mitopoética: ―a ritopoética‖.
Na conclusão da tese, remonto a problemática geral da tese à luz da situação atual do
acervo (guardado em gavetas na casa do fotógrafo). Meirelles lamenta o fato de este acervo
estar hoje ―parado e apodrecendo‖, isto é, sem os cuidados necessários para a manutenção dos
slides que o autor realizou até 2004. O ponto crítico para o autor pode ser sintetizado com
duas ideias: (1) a não existência de um livro, em continuidade com (2) a presença de um
arquivo parado, fechado, fora de circulação.
Convido, assim, o(a) leitor(a) a percorrer este caminho repleto de mafuás, imagens e
experimentos etnográficos.
33
Capítulo 1
As coleções do Projeto Mafuá:
Uma etnografia visual
Fig.03. Grafismos do Parque Estrela, Rio de Janeiro. Coleção Arte Gráfica Popular Brasileira.
Encontrei certa vez um rapaz que apesar de ter sido companheiro de quarto de Bopp,
não acreditava na existência dele. Achava que fosse inventado. Talvez Bopp, ainda
vivo tenha uma biografia assim: ABC de Bopp e o subtítulo ―poeta viajante e pintor de
tabuletas‖. Talvez os autores do povo escrevam um dia a verdadeira biografia do meu
amigo, cantada em versos quebrados, bem Bopp. Na Amazônia, continuei a ouvir
coisas malucas sobre ele. Disseram-me que Bopp cruzara não sei quantos estados em
jangada, que em Mato Grosso o bacharel Bopp pintara placas dos armazéns de uns
árabes e que ficara demais antropófago no meio dos índios. Outra vez, na selva,
perdeu-se em companhia de caboclos e durante meses, beirou as margens moles do rio.
Estava atrás da Cobra Grande. Ansiava encontrá-la para desafiá-la a uma partida de
xadrez. (Verônica Stigger)
34
O conjunto das coleções fotográficas de pintura e design popular que será visualizado
a seguir foi nomeado por Meirelles como Projeto Mafuá, uma homenagem aos parques de
diversões (com barracas, jogos e música) que viajam se instalando em subúrbios e cidades do
interior do Brasil. O acervo iconográfico resultante do Projeto Mafuá conta com
aproximadamente vinte mil cromos, constituídos por uma seleção criteriosa do material. Ao
referir-me ao conjunto de documentos produzidos pelo projeto do fotógrafo como Acervo
Mafuá, delimito o meu posicionamento e recorte em relação ao objeto da pesquisa, o ―olhar
construído a partir da forma-arquivo‖ (Cunha, 2004; 2005).
Antes de visualizar as fotos, é necessário destacar, que o acervo fotográfico de Edson
Meirelles é muito mais extenso do aquele resultante Projeto Mafuá. Possui uma parte
dedicada ao carnaval carioca, outra que consiste em diversas fotos de shows de música;
espetáculos de dança e teatro; retratos de artistas; e ainda outra parte constituída pelo
diversificado repertório profissional de publicidade e propaganda. Com exceção das fotos em
preto e branco, todo o arquivo do fotógrafo foi produzido no suporte cromo, slide. Há também
o acervo que Meirelles chama de ―autoral‖ que, diferentemente, do Acervo Mafuá é um
trabalho gráfico com um contorno mais ―artístico‖, nas palavras do fotógrafo: ―o que chamo
de trabalho autoral é aquilo que faço para mim. Estas fotos eu faço para mim, é o meu olhar.
Já o acervo do Projeto Mafuá é para os outros: é uma pesquisa com um conceito de cultura
popular‖ (Entrevistas com Meirelles) .
Em 2001, Meirelles escreveu pequenos textos de pesquisa que buscavam fundamentar
teoricamente o projeto com o intuito de conseguir recursos financeiros para ―salvar‖
(digitalizar, conservar e publicar em livro) seu acervo fotográfico e sua pesquisa ambos
completando 29 anos de trabalho. Este texto serviu de base para as referidas matérias sobre
sua obra publicadas em revistas de arte. O projeto de Meirelles foi aprovado na Lei Rouanet
em 2002, mas não conseguiu patrocínio para realização do livro. O fotógrafo identifica nisto
um traço ―marginal‖ do seu objeto de pesquisa: ―sem dúvida tem este ranço, é popular
demais‖.
Este capítulo visa apresentar visualmente ao leitor os universos gráficos e imagéticos
que compõe o Acervo Mafuá. Apresento a seguir uma etnografia visual do acervo, organizada
através da junção de imagens e textos produzidos pelo autor sobre cada uma das coleções. A
etnografia se aproveita assim da própria forma de organização do acervo em seis ―segmentos‖
da pintura popular brasileira, reproduzindo antes de cada conjunto de imagens o texto escrito
por Meirelles para cada uma das coleções. Seguindo esta lógica nativa, optei por não colocar
legendas ou números nas fotos que se seguem. As legendas podem ser lidas na Lista de
Figuras, presente no início da tese.
35
O capítulo que se segue foi inspirado no livro do alemão Humbert Fichte intitulado
Etnopoesia (1987) no qual apresenta um tratamento ―etnopoético‖ das narrativas de mães e
pais de santos por ele entrevistados, engendrando métodos de pesquisa e teorias da
antropologia com uma escrita experimental, literária, não linear, que produz, antes de tudo,
uma circularidade (Alcântara, 1991).
Vilém Flusser considera que as imagens técnicas, como a fotografia, são capazes de
codificar conceitos em imagens, já que ―imagens de conceitos são conceitos transcodificados
em cenas‖ (2009:32). De acordo com o autor, o produtor destas imagens, o fotógrafo,
procuraria intencionalmente ―codificar em forma de imagens, os conceitos que tem na
memória‖, ―fazer com que tais imagens sirvam de modelos para outros homens‖ e ―fixar tais
imagens para sempre‖ (2009:41). Para a leitura das fotografias, Flusser propõe o seguinte
método: ―quem quiser ‗aprofundar‘ o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve
permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado
scanning‖ (Flusser, 2009:7). Ao invés da linearidade da leitura textual, este ―vaguear‖ traz a
ideia de circularidade como modo de estabelecer conexões.
O desafio aqui é percorrer as inúmeras imagens do Acervo Mafuá e estabelecer
relações entre a(s) criatividade(s) da pintura popular objetivadas pela obra de Edson
Meirelles, com aquela empreendida pelo fotógrafo no seu trabalho de colecionar estes
milhares e multiformes objetos imagéticos e relacioná-los através da organização e confecção
de um acervo, ―inventando‖, assim, uma cultura (Wagner: 2010).
36
Este segmento, com um total de 8.000 fotos, é uma variante das formas de expressão acima
citadas. Composto por diversos alfabetos do mais autêntico “design popular brasileiro”,
forma hoje um acervo inédito nesta área, materializando um dos projetos mais importantes
sobre a cultura popular no Brasil. O resultado desta etapa é o livro “A tipografia popular
brasileira”, uma edição bilíngue, português-inglês, com uma tiragem de 5.000 exemplares,
de 140 páginas, a 4x0 cores em papel couchê, no formato 30 cm x 30 cm. O design do livro e
o texto suporte sobre pintura popular brasileira é de autoria de profissionais consagrados em
suas áreas de atuação.
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Conta atualmente com um acervo de 2.800 fotos, é outro segmento abordado pela pesquisa
sobre “A Pintura Popular Brasileira”, buscando registrar uma pintura popular de riquíssima
expressão plástica que é encontrado nos grandes painéis e murais dos famosos “Trens
Fantasmas” ou dos espetáculos de ilusionismo tipo “A Mulher que vira Gorila” nos parques
de diversões, os antigos mafuás de subúrbios afastados e pequenas cidades do interior do
Brasil. A pintura dos painéis, como se fossem murais ou telas de glandes dimensões, realça o
conteúdo expressionista com uma alta carga erótica, que é acentuada por se encontrar com
freqüência ao lado de temas lúdicos. Uma pintura de alta expressividade plástica, onde a
riqueza da criação rítmica e colorística é exposta através do uso das cores quase sempre
puras.
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É uma das mais belas formas de expressão registrada pela pesquisa sobre “A Pintura
Popular Brasileira”. No chamado “Ciclo de Verão” das festas populares da Bahia, os
barraqueiros, devido ao grande deslocamento imposto pelos roteiros das grandes festas –
Conceição da Praia, Bonfim, Ribeira, Lapinha, Iemanjá, e outras mais – e pela confusão
gerada no “monta-desmonta” das barracas, para evitarem extravios de suas mesas e bancos,
são obrigados a criarem uma identidade visual para os mesmos. Ai, a mão do mestre pintor
encontra campo fértil para expressar a sua arte com sensibilidade e extrema originalidade.
Utilizando quase sempre as cores dos Orixás de sua devoção ou do clube de sua paixão, e
não raramente, combinando o uso das cores dos dois elementos, conseguem produzir uma
pintura de grande vibração colorística e forte conteúdo plástico, seguindo a mesma trilha dos
velhos mestres “Riscadores de Milagres”. Uma parte deste segmento fotográfico participou
do "6o Salão Nacional de Artes Plásticas”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
com obras “Expressões Plásticas da Pintura Popular nas Festas de Largo da Bahia 1, 2, 3”.
63
Capitulo 2
O Colecionador
As duas epígrafes acima postas em relação, apontam para dois traços indissociáveis do
sujeito desta sucinta ―etnobiografia‖: o colecionador / arquivista e o fotógrafo / pesquisador.
Nesta tese, privilegio a produção fotográfica de Edson Meirelles sobre pintura e design
popular, ainda que, seja necessário explicitar que seu acervo fotográfico como um todo é
composto por diversos outros modos de fazer-arquivo.
As duas únicas imagens que retratam o fotógrafo entre as fotos do Acervo Mafuá são
os dois cromos mostrados em que Meirelles aparece de braços cruzados próximo a uma
pintura feita em um restaurante do Rio de Janeiro. A presença do par de cromos no final de
uma cartela da coleção Pintura Mural Brasileira, pode ser vista como aquele tipo de foto em
que os pesquisadores aparecem no campo; uma documentação do tipo ―eu estive lá‖, eu fui
uma ―testemunha ocular‖ (Geertz, 2002). Como a pesquisa fotográfica de Meirelles se
concentra mais especificamente em objetos pictóricos (não-humanos) não é difícil
compreender o porquê de ele aparecer nas duas fotos posando diante de uma grande pintura
mural onde figura uma paisagem bucólica. Não encontrei, por exemplo, nenhuma foto de
Meirelles ao lado do pintor Nilton Bravo ou outros pintores populares que foram retratados
pelo fotógrafo como parte integrante das coleções do Acervo Mafuá. Os cromos mostram o
fotógrafo ao lado de um exemplar do seu objeto de pesquisa – a pintura popular – entendido
aqui como um retrato do colecionador e da coleção, em termos metonímicos (no qual o todo
está contido em uma das partes). Ficam, assim, apresentadas imageticamente a ―pessoa
distribuída‖ (distributed person), a ―mente estendida‖ (extended mind) do colecionador (Gell,
1999).
O objetivo deste capítulo é investigar o sujeito produtor do Acervo Mafuá, o que
implica também em refletir sobre os métodos e técnicas de colecionamento desenvolvidos na
pesquisa fotográfica de pinturas, grafismos, letras, e outras expressões diversas do design
popular no Brasil. Como já foi dito na introdução, este acervo é resultado da extensa coleção
de imagens fotografadas em suporte cromo durante mais de trinta anos. ―Projeto Mafuá‖ é o
modo como Edson Meirelles caracteriza seu projeto de pesquisa de toda vida que se
materializou no que chamo de ―Acervo Mafuá‖, o meu modo de observá-lo como acervo de
uma pesquisa fotográfica feita paralelamente à atividade profissional de fotógrafo freelancer.
O acervo de outro projeto fotográfico de Meirelles – intitulado ―Grafismos‖ - é
considerado o seu ―trabalho autoral‖. O acervo ―Grafismos‖, por exemplo, não teve um
cuidado particular de ―transformar o arquivo em livro‖, como foi o caso específico do Acervo
Mafuá. O Projeto Mafuá é considerado, por ele, o seu ―trabalho de pesquisa‖ ou ―a
documentação de um segmento da cultura popular‖, que se afirma também como um ―projeto
65
de vida‖. Em uma das entrevistas, abordou o tema do Projeto Mafuá como um projeto de vida
com a seguinte interpretação:
Eu devo ter algum karma pra queimar com este negócio de arte, deve ser... Para fazer esse
trabalho de formiguinha, de documentação é karma. Eu tenho uma teoria: em alguma
encarnação passada eu devo ter sido um pintor talentoso mais preguiçoso [risos]. Aí Deus
me puniu: ―volta lá agora, Meirelles, e vai documentar a arte dos outros, seu babaca‖.
(Entrevistas Meirelles)
pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das
responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente no olho.
Como o olho apreende mais depressa do que a mão desenha, o processo de reprodução de
imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível da palavra
oral. (Benjamin, 1994: 167)
NOVA IGUAÇU
Confeitaria Três Nações
Importação e Exportação
Açougue Ideal
Leiteria Moderna
café do Papagaio
Armarinho União
No país sem pecados
O poema, cujo título faz referência ao município de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro,
compõe-se (com exceção do último verso) de nomes de estabelecimentos comerciais que
trazem ao leitor a sensação de terem sido apreendidos pelo autor numa flanada plenas ruas da
baixada fluminense. Oswald cria um pequeno flash cinematográfico a partir da apropriação e
combinação literária dos nomes de estabelecimentos comerciais (índices de modernidade) e,
por fim, contrasta-as com a imagem do verso final: ―no país sem pecados‖, que remete ao
traço de uma alteridade e nacionalidade distintiva, não-cristã, primitivista.
Ao correlacionar a ―antropofagia visual‖ do projeto de Meirelles com a ―antropofagia
literária‖ de Oswald de Andrade22 e outros modernistas (da primeira fase) como Mário de
Andrade23, pretendo evidenciar certas semelhanças nos modos como estes autores realizam
procedimentos de apropriação, fragmentação, ready-made, que, coincidentemente, despontam
para uma crítica às formas de colonização (do olhar) enfrentando também a questão da
22 ―
Em Oswald [de Andrade], a síntese intuitiva, a legendária falta de leituras, as intervenções provocativas e não
construtivas – tudo parece separá-lo do que há de metódico e objetivo nas ciências sociais. E no entanto, como
ficar indiferente (eu não pude) já não digo ao estilo oswaldiano, ou a sua personalidade ou sua biografia, mas aos
efeitos de aproximação e distância, de estranhamento e familiaridade que sua ficção dos anos 20 é capaz de
provocar? E como não levar em conta em plena avaliação (que efetivamente se impõe) da irrelevância de suas
ideias para a antropologia – que descartar seu pensamento como confuso, não fundamentado, intuitivo e
irracional, etc. É perigosamente semelhante à dificuldade da primeira da antropologia em reconhecer no
primitivo um pensamento digno deste nome.‖ (Geiger, 1999: 4).
23
―Em Mário [de Andrade], uma reflexão profunda e continuada, um conhecimento extenso de tanta coisa que
veio a se tornar objetos dos estudos de folclore e antropologia. Mas cujo exame vem sempre mostrar a distância
que o separa da disciplina da qual pode a justo título ser considerado precursor.‖ (Geiger, 1999: 4).
67
nacionalidade, uma das principais temáticas da agenda modernista da primeira fase. Meirelles
afirma sobre este tipo de produção popular que documentou em sua pesquisa:
tanto é que você passa, olha e não vê. O mote que eu usava nas palestras é ―olha mas não
vê, vê mas não enxerga‖. A sua rejeição cultural não permite que você enxergue. Você
tem um bloqueio de natureza cultural que você só vai descobrir isto através do estudo,
não de sua própria sensibilidade. (Entrevistas Meirelles)
Meirelles procura não só tornar visível estes objetos não percebidos pelo olhar que de
antemão rejeita imagens populares, como quer romper com uma sensibilidade artística que
não considera tais pinturas como arte. Tal escolha de dar visibilidade a estes objetos visuais,
encontra eco nas questões formuladas por Kirschenblatt-Gimblett:
Edson Meirelles nasceu no Rio de Janeiro em 1946. Sua família morava em um lugar
chamado Chave de Ouro, no bairro Méier. Ele descreveu sua família como descendentes de
portugueses do lado paterno e de espanhóis do lado materno:
O meu pai tinha famílias, minha mãe era uma das famílias, ele era mulherengo.
Separaram quando eu tinha cinco e meu irmão tinha sete anos. Nunca mais vi o
meu pai depois da separação. Eu era muito mais próximo da família da minha mãe
que foi criada por uma preta velha que era filha de escravos. A vó Catuta
impregnou a família toda com as crendices, superstições, chás, cozinhas, remédios
da flora medicinal. Então, tinha toda esta mistura do catolicismo português e
espanhol com a crendice do negro, a ciência e o saber do negro, do povo que
gerou um impacto muito grande na minha formação. (Entrevistas Meirelles)
O caçula da família, morador no subúrbio carioca dos anos 1950, relata que quando
criança curtiu muito a rua: ―eu tive uma infância fabulosa, aproveitei muito uma infância na
rua: brincar de pique, pipa, etc. A televisão era uma coisa muito incipiente o que se via mesmo
eram os folguedos de rua‖. Meirelles conta que era muito bagunceiro na escola, o boletim
tinha sempre um zero na conduta: ―eu saí do São Bento (primário) e fiquei um ano no Colégio
Salesiano, um ano no Colégio Central do Brasil e um ano no Colégio Piedade. Era muito
bagunceiro...‖
Mesmo ―comprometido‖ com a bagunça, Meirelles expressou desde a infância seu
encantamento pelas letras, pela leitura e pelas coleções: ―na minha rua, a gente colecionava
gibi, eu ainda não lia, mas colecionava. Quando entrei para a escola, eu tinha muita vontade
de ler. Quando eu fui a aprender a ler, a professora explicou o mecanismo da letra e, na hora,
eu entendi, eu li no mesmo dia‖. O colecionador de revistas em quadrinhos, assim que
aprendeu a ler, passou a colecionar também frases pichadas nas carteiras e banheiros das
escolas, nos muros, paredes e outros espaços públicos: ―eu com sete anos, no Colégio São
Bento, já tinha um caderno onde anotava frases‖.
Eu comecei esta percepção fotográfica do Projeto Mafuá por uma frustração.
Antigamente grafite era feito com carvão, com giz ou com resto de tinta, não tinha spray.
69
Por fim, a terceira fase da pesquisa consiste na elaboração de um texto em que o autor
formula o Projeto Mafuá, através de suas referências e leituras sobre folclore, arte, pintura
popular e história do Brasil. Esta terceira fase acontece a partir do ano de 2001, quando sua
atividade nesta pesquisa completa 29 anos. Nesta ocasião, Meirelles escreveu um texto para
embasar o Projeto Mafuá, com a intenção de divulgar, digitalizar, conservar e publicar este
acervo. Para Meirelles, a publicação era um modo de ―salvar em livro a pesquisa‖. Contudo,
na ausência da concretização do livro, fez-se presente a frustração com o fato de não
conseguir realizar a transposição de seu enorme arquivo num objeto-síntese que possibilitasse
sua circulação.
Deste modo, a terceira fase da pesquisa constitui também a reflexão de Meirelles sobre
seu acervo e pesquisa por meio de outros suportes como o textual, isto é, o acervo visto como
um ―não-objeto-livro‖ ou como o latente ―desejo de livro‖ (Coelho, 2010). Esta terceira fase
cujo resultado é a obra textual do fotógrafo será tratada no Capítulo 3 desta tese.
Passo, assim, para a descrição das duas primeiras fases da ―etnobiografia‖ do
colecionador e da coleção/acervo.
24
Após a escola, ingressou no mercado de trabalho ―Fui contratado pela Companhia Telefônica Brasileira (CBT)
em 1967, na qual exerci a função de Auxiliar Técnico e em seguida, até 1970 a de Encarregado. Nesta época, eu
já tinha uma câmera Rolley Flex que deixava no porta luvas do caminhão em que trabalhava e saía por aí já
fotografando. No mesmo período, em 1969, fiz um curso de fotografia na "Foco Programação Visual" onde
estudei com o grande Nelson Di Raggo, o fotógrafo da Manchete.‖ (Entrevistas Meirelles).
71
garçom que sorteasse um. Saiu o papel escrito Recife e eles comemoraram pedindo mais uma
rodada. Paris e Nova York repousaram no copo.
A ida para Recife teve um processo da ruptura definitiva, do cordão umbilical, ruptura
com a família. Sair para crescer. Com a fotografia a coisa tomou outra dimensão não
mais no grafite [colecionado na infância], eu dei um upgrade, fiz uma ascensão social da
arte. (Entrevistas Meirelles)
Era uma procissão marítima que trazia a imagem da Nossa Senhora de Itamaracá de uma
ermida de uma capela, para a sede da localidade. A festa tinha circo mambembe,
parquinho, espetáculo da mulher que vira gorila. Estas foram as minhas primeiras fotos no
sentido mais plástico do projeto. Depois a minha cabeça se abriu no sentido da percepção
da documentação. (Entrevistas Meirelles)
pesquisa foi o início da documentação do design popular, mas segundo o autor, além de não
ter muito dinheiro para investir comprando e revelando filmes, considera também que seu
olhar fotográfico ainda era muito ―intuitivo‖ e sem conhecimento técnico aprofundado.
Ao perguntar, em uma das nossas primeiras conversas, sobre a gênese do olhar
fotográfico dele sobre a pintura popular, Meirelles descreveu ―a percepção‖ de modo
epifânico: ―aconteceu durante a viagem‖. Chegando a Recife e Itamaracá, ele ficou
maravilhado com a explosão de cores. Explicou que na época usava substâncias psicoativas,
que tinha uma ―cabeça lisérgica‖. Embora já lesse sobre o folclore e arte popular foi nesta
viagem que entendeu ―o sentido da cultura popular‖.
Desde os primeiros anos no Nordeste, até quando voltou para o Rio de Janeiro (1975)
onde mora até hoje, o fotógrafo documentou diferentes expressões da pintura popular de
capitais e cidades do interior do Norte, Nordeste, Sudeste e do Sul do Brasil até o ano de
2004. Considera-se, atualmente, um ex-fotógrafo, já que sua atividade profissional voltou-se
para a culinária e a gestão do restaurante que mantém em Santa Teresa, o Ora pronobis.
A volta para o Rio de Janeiro marcou o início da sua vida profissional como fotógrafo
fixado na sua cidade natal.
Estudei muito quando voltei pro Rio. Na volta para minha cidade que caiu a ficha:
eu era muito intuitivo, as minhas fotos tinham sempre um quê diferente. Você só
consegue quebrar os padrões estabelecidos só consegue ir além do limite, quando
domina todo o processo de execução. Até o processo final da obra é preciso ter
uma depuração muito grande em termos técnicos. Sem técnica você não chega a
lugar nenhum. Eu fui um fotógrafo extremamente técnico. Minha fotografia se
sobressaia pois meu trabalho era autoral, sobretudo, por causa da técnica.
(Entrevistas Meirelles)
A técnica foi aprimorada tanto pelo curso formal que fez de fotografia no Museu de
Arte Moderna (MAM/RJ), quanto pelos seus estudos autodidatas através de livros de
fotografia, revelação, de ótica e, claro, pela prática e experimentação. O curso do MAM, de
acordo com Meirelles, ―foi só para ganhar currículo‖. Para além disto não relatou mais nada
sobre a experiência do curso feito em 1975.
74
25
―Georges Racz (Budapeste, Hungria 1937). Fotógrafo, professor, crítico. Forma-se em ciências sociais pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1964, quando já praticava a fotografia, passando a atuar
como cineasta a partir de 1966. Desenvolve intensa atividade didática, como professor de sociologia, de
fotografia, de cinema e de artes visuais, tendo sido o responsável pela implantação dos cursos de fotografia do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que coordena entre 1972 e 1976. Teve papel importante na afirmação
da fotografia como meio de expressão artística no país, em virtude da criação do grupo Photogaleria, em 1973,
do qual foi presidente, e de sua atuação como crítico de arte, sobretudo na revista Visão, para a qual trabalha
entre 1976 e 1990. Expõe com freqüência nas décadas de 70 e 80, tendo seu trabalho representado nas coleções
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro (RJ), e do
The Art Museum of Chicago (Estados Unidos).‖. http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa15714/georges-
racz acessado em 27/02/2016.
75
Meirelles, embora afirme com veemência sua formação auto-ditada, confere um lugar de
destaque à antropologia no seu devir-pesquisador explorado no Projeto Mafuá. Quando uso o
termo antropologia, aqui, refiro-me a um viés ―modernista‖, ―surrealista‖, ―colecionador‖ e
―sem métier‖ (Geirger, 1999) no qual Meirelles parece estar ―contagiado‖. Certamente foi
contagiado, também, por um ―espírito de época‖ das vanguardas dos anos 1970 que
devoraram ainda mais os modernistas e antropófagos como os movimentos neoconcretistas e
tropicalistas que tiveram impacto nas artes plásticas, na música popular, na literatura, no
teatro, na fotografia, no cinema, nas artes performáticas, etc.
Acho que quando eu fui pro Recife, inconscientemente, eu estava dando continuidade a esta
estória. Na verdade sou um antropólogo desde garoto, se minha mãe não tivesse jogado meu
caderno fora, talvez nada tivesse acontecido. Entende a mecânica? (Entrevistas Meirelles)
Quando eu voltei pro Rio ficou mais fácil realizar a documentação porque eu comecei a
ganhar dinheiro [trabalhando como fotógrafo freelancer]. Todo dinheiro que eu tinha eu
descarregava no projeto: era livro e filme-cromo. (Entrevistas Meirelles, grifo meu).
pelo fim dos seus dois casamentos. Adélia Borges cita em seu artigo a seguinte frase de
Meirelles sobre amor e dinheiro26, como diria o sambista: ―a grana com que eu mergulhei no
Projeto Mafuá me custou dois casamentos‖ (Borges, 2000).
Como será visto no tópico a seguir, a rotina intensa de documentação das pinturas nos
fins de semana, e nas viagens de trabalho, tornaram a convivência cotidiana das relações
amorosas também ―carregadas‖ negativamente, não apenas pelo aspecto financeiro do
―dinheiro‖ empregado no projeto fotográfico, como, também, pelo investimento de outro
capital simbólico: o ―tempo‖. Como explicitou Adélia Borges: ―registrar todas estas
manifestações [da pintura e design popular] foi tarefa feita nos intervalos de seus outros
trabalhos profissionais como fotógrafo de publicidade. O fotógrafo pegava carona no fim de
semana e ia para as cidades do interior e periferias das capitais.‖ (Borges, 2000)
Uma interpretação possível é que, de algum modo, a paixão pelos objetos da sua
coleção estariam acima das relações conjugais. Esta colocação não pretende, de modo algum,
reduzir as complexidades de relações conjugais que não me cabem comentar. É apenas uma
possível interpretação motivada pelo discurso de Meirelles sobre os projeto. Ou seja, como
diria Lévi-Strauss, mais um mito que se pensa a si mesmo.
26
Para uma discussão antropológica sobre parentesco nas sociedades norte-americana ver Schneider (1968)
American Kinship: a cultural account que aborda o amor e o dinheiro como vínculos do código de conduta
familiar. O autor analisa os símbolos do parentesco através do estudo dos nomes e das formas como se chamam
os parentes. Os parentes de sangue são aqueles que compartilham de alguma forma substância biogenética, é
uma relação natural, concreta, segundo se crê na cultura americana. O autor diz que parentesco na cultura
americana é uma questão de natureza, assim, o que é a natureza é o parentesco. E a natureza é aquilo que a
ciência formula sobre a natureza; parentesco então é aquilo que a ciência diz que é natural, e a ciência diz que
cada pai fornece a metade da constituição genética de seu filho. Nada pode terminar uma relação por sangue, ela
é dada. Os parentes por casamento são aqueles que estabelecem relação de parentesco porque ou os próprios
constituíram um casamento ou algum parente constituiu casamento e o parentesco é fruto deste fato. Os parentes
por casamento se relacionam por contrato ou apenas por seguirem os padrões de comportamento próprios de
parentes. Os parentes ―In-law‖ são aqueles que têm apenas o contrato como vínculo, ou seja, um código os liga.
77
séries e sequências pode ser entendida como uma pragmática do colecionar, dividida em três
atos: 1) olhar; 2) documentar e 3) catalogar. Passo a descrever cada um destes atos como um
modo do fotógrafo colecionar ou, nas suas palavras, ―fazer arquivo‖. Primeiramente, trato a
sequência de atos que serviu de base para a construção do acervo. Em seguida, explicito
algumas diferenças criadas nos procedimentos técnicos para o caso específico de algumas
coleções.
1o Ato Olhar-caçar
Meirelles é um cara super organizado, dá até inveja! A coleção [tipografia popular] segue
o alfabeto inteiro: todos os ‗As‘ junto, todos os ‗Bs‘ juntos, todos os ‗Cs‘ juntos... É
assustadora a quantidade de fotos! O processo dele que é um processo quase científico de
garimpo. É passar num lugar, olhar uma letra e voltar um dia depois ou dois dias depois,
para fotografar exatamente como tinha visto. Tem essa coisa de estar muito atento. Então,
tem um garimpo da cidade. Além de estar olhando com outro olhar, tem o processo
metodológico de capturar aquele olhar e transformar numa foto. Não é ―ah, vi a foto!‖
Não é ela que está ali. A foto existe após ser capturada na cabeça, isto é, o lugar de onde
ele viu. Meirelles teve que armar todo um sistema para fotografar aquela pintura, porque
às vezes é num lugar inóspito! Às vezes é complicado fazer a foto. E ele consegue fazer a
foto com qualidade. Porque as fotos são de muita qualidade! Não só, em termos de
fotometria, mas de angulação e enquadramento. Então você sente, que cada foto daquela é
um clique, que tem um pensamento por trás e que dá trabalho fazer. Principalmente, se
você pensar que o outro, está no meio da rua. Acho que é o grande barato é ter um acervo
monstruoso, imenso como é! Se você pensar que em cada foto, em cada clique, tem esse
processo de garimpo, você percebe que tem um método, uma rotina muito bem
estabelecida. (Entrevista Guto Lins, grifos meus)
que se transpõem na predação fotográfica: ―Meirelles teve que armar todo um sistema para
fotografar aquela pintura, porque às vezes é num lugar inóspito!‖. Shot, do inglês, é tiro de
arma de fogo e shot é também fotografar ou filmar. Torna-se evidente a ideia do olhar
―predatório‖27 sobre um mundo gráfico popular, em que, antes da foto, existe o olhar, um
pensamento, a procura, a pesquisa, a caça. Benjamin descreveu a flânerie do seguinte modo:
―Sair quando nada nos força a fazê-lo e seguir nossa inspiração como se o simples fato de
dobrar à direita ou à esquerda já constituísse um ato essencialmente poético‖ (1989:210).
Andanças do flanêur-fotógrafo resultou neste rico conjunto de alfabetos que constitui a
mais extensa coleção do acervo, ocupando toda a primeira gaveta do grande arquivo de metal com
letras e números. A coleção de tipografia popular projeta um alcance extraordinário da obsessão
fotográfica de Meirelles em preencher esta lacuna, ao produzir uma enorme base de fontes
tipográficas populares, fotografando letra-por-letra. Meirelles fez um recorte dentro da diversa
noção de ―arte gráfica popular brasileira‖, excluindo os objetos e contextos. O fotógrafo isolou as
letras numa célula fotográfica, num frame que se repete em todos os cromos da coleção: o
enquadramento centralizado em um índice (letra, número, pontuação, setas), o alfabeto como um
sistema a ser completado28, criando um contexto próprio de execução de imagens. O fotógrafo
tornou-se um ―caçador de letras‖, em especial da letra W:
O W Sempre foi a minha tragédia. (Risos). Não tinha como achar, não existia W. A
dificuldade era esta: não adianta você ter o alfabeto inteiro de A-Z e não ter o W. O
resultado da pesquisa com o engrossar de algumas letras, inclusive letras que parei de
fotografar, comecei a eliminar determinadas letras porque tinha uma quantidade
grande de Bs, de As, de Es, de Os e as letras mais carentes era complicado: o Z, o Y.
Só tinha Y de Yamaha. No Sul eu encontrei Y e W. Para ser preciso, só na cidade de
Blumenau (SC) encontrei o W. (Entrevistas Meirelles).
27
Como aponta Sontag, ―Tal qual um carro, uma câmera é vendida como arma predatória‖(2004:24)
28
―A coleção (colligere: escolher, reunir) se distingue da mera acumulação tanto por sua complexidade cultural (e
exterior pois a coleção também é sempre motivo de status social e é sempre acompanhada de um projeto), quanto
por seu caráter de inacabado, de falta, de incompletude perpétua.‖ (Baudrillard, 1989: 111)
79
se a tipografia utilizada era mal feita, se a letra estava muito trepada, muito em cima da
outra, eu não fazia a foto, não me interessava. O que me interessava era a letra limpa; o
encanto da tipografia é bater o olho e está tudo separado, solto (Entrevistas Meirelles).
O que se mostra relevante para o fotógrafo era a relação ente a figura, no caso a letra, e
o fundo, criando um enquadramento padronizado. A coleção enfoca também as variedades
tipográficas de cada letra. A primeira gaveta é ocupada por diversas cartelas organizadas por
letras (contendo diversos exemplos de cada uma) em ordem alfabética. Esta coleção
caracteriza-se por um padrão técnico fotográfico delimitado e executado de modo que,
justamente, qualifica a documentação como uma base tipográfica.
Meirelles deixa transparecer que a importância do projeto pode ser entendida pela sua
insistência e persistência em encantar através da fotografia esta arte, enfrentando sozinho a
produção das fotos, improvisando ajudantes, numa mobilização constante de captura de mais uma
peça instigante para a coleção.
Tinha situações em que para fotografar as tipografias era complicado pela altura em que a
letra estava, tinha que pegar escada, alguém tinha que segurar a escada para eu subir.
Tinha que posicionar a escada diante de cada letra, para então fazer a foto. (Entrevistas
Meirelles)
eu precisava ou o contexto era sufocante. Nestes casos eu não fazia a foto ou voltava em
outro dia no local, nas condições perfeitas de iluminação para viabilizar sua
documentação. (Entrevistas Meirelles).
eu fui um fotógrafo que estudou muito para quebrar determinados padrões. Para compor
minha visão, eu precisei estudar muito. Você não consegue quebrar paradigmas sem
estudar, sem técnica. A técnica é vital. (Entrevistas Meirelles)
29
Instituto Brasileiro de Turismo. http://www.embratur.gov.br/.
82
Isto é, ele apresentava fotos do contexto da pintura e depois fragmentava, nos termos
nativos, ―decupava‖ as pinturas, produzindo grafismos, re-enquadramentos, pequenos
fragmentos e detalhes. Portanto, o ato de documentar, nos termos de Meirelles, implica no ato
de fotografar, assim, a documentação é entendida aqui como uma produção de imagens do
―ciborgue-flanêur‖ com seu olho-câmera-braço.
O colecionador ressalta o alto custo deste projeto. Diz que originalmente fazia um
filme de 36 poses e ficava apenas com 12 ou 15 fotos. Na seleção, o corte era fundamental já
que algumas ―sobras‖ acabavam por tirar a força das grandes fotos do conjunto. Este aspecto,
83
de acordo com Meirelles, só poderia ser percebido depois de muito estudo. Tal procedimento
iconoclasta de selecionar limitava intencionalmente as possibilidades de inserir outras
imagens em uma segunda avaliação. Afinal, ―uma foto mais ou menos tira a força de uma foto
muito boa‖. Segundo o autor, na mesa de luz, o trabalho era rápido: ―pegava oito filmes,
como o olhar estava treinado já ia cortando. Depois analisava na lupa, fazia a coleção na lupa‖
e cortava outras fotos.
Eu duvido que uma pessoa que comece a fotografar agora com câmera digital tenha o
apuro do olhar que eu ou outros fotógrafos que começaram a trabalhar com analógico
temos. O olhar eu faço no corte visor, eu trabalhava muito com cromo então eu não
tinha como fazer corte de laboratório, o MEU CORTE É CORTE DE VISOR, PURO
ENQUADRAMENTO. O resultado imediato já é o resultado final. Com a foto digital
você não desenvolve o apuro do olhar. É uma etapa que você queimou, não se
desenvolve o olhar [a posteriori]. A etapa do olhar é minada com a foto digital.
(Entrevistas Meirelles)
A subjetividade torna-se assim o modelo da série / coleção, pois a série é quase sempre
uma espécie de jogo que permite privilegiar um dos termos e constituí-lo como modelo.
Baudrillard (1989) conclui que a coleção é feita de uma sucessão de termos, cujo termo final e
referencial é a própria pessoa do colecionador. E sendo a série uma espécie de jogo que
permite privilegiar um dos termos e constituí-lo como modelo, pode-se dizer que o modelo
privilegiado na série coleção é também a própria pessoa ou subjetividade do colecionador.
Isto pode ser percebido nas várias formas e critérios de seleção utilizados por Meirelles para
84
Uma das ideias desta tese é justamente analisar o processo de produção deste ―campo
artístico‖, delimitado muito mais pelo fotógrafo do que por este grupo heterogêneo de
pessoas desconhecidas e não valorizadas pela sua arte que Meirelles denominou ―artistas
gráficos populares brasileiros‖ ou ―designers populares‖. Ao lado das delimitações
conceituais deste campo artístico existe uma intenção política voltada para uma ―política da
visualidade‖ tornada possível através do contínuo trabalho fotográfico e das reflexões
85
conceituais propiciadas pela produção e organização temática destas imagens, e pela posterior
divulgação do conteúdo delas como arte.
Colecionando referências
pontualmente as leituras da obra de cada um destes autores, embora como será visto no
próximo capítulo nenhum deles é citado nos textos sobre o Projeto Mafuá.
Não é o caso aqui de realizar uma investigação exaustiva das leituras do fotógrafo,
buscando uma continuidade com a produção (fragmentada) dos textos. Pretendo, no entanto, e
antes de chegar aos textos, fazer uma pequena nota que visa estabelecer relações interessantes
entre os autores citados como referências da antropologia na ―história teórica‖ da disciplina
antropológica (Peirano, 1997).
Meirelles aponta que uma das afinidades que o aproximou da obra de Luiz Câmara
Cascudo é que ele é também autodidata. Gonçalves identifica esta característica autodidata da
obra de Cascudo como definidor do que denomina o ―etnógrafo nativo‖ (Gonçalves, 2007).
Os elementos etnobiográficos descritos e analisado, até aqui, me permite dizer que Meirelles
também pode ser visto como um etnógrafo nativo, cujos objetos de pesquisa e descrição são a
pintura e o design popular brasileiro.
o Câmara Cascudo se embebe do povo e produz sua obra. O Mário de Andrade faz o
contrário, carece de uma base popular, e não viveu os mitos populares como o Cascudo
que era um homem do povo. Admiro a simplicidade de Cascudo. Fui impregnado desses
mitos na infância. Eu tive uma vó Catuta que me contou mitos e crendices de subúrbio.
(Entrevistas Meirelles)
Esta poderia ser também uma boa definição para o conjunto de questões apresentadas
nos textos analisados no capítulo a seguir. Uma das chaves para compreender esses textos é
pensar o autor como um escritor/colecionador autodidata que ao elaborar a sua temática
compreende um universo comparativo colecionado referências da tradição artística ocidental
(Período Clássico, São Tomás de Aquino, Leonardo Da Vinci, Debret, Breton, Picasso) com
referências da cultura popular (pinturas rupestres, mestres do barroco brasileiro, santeiros,
pintores), criando uma espécie de história universal sem hierarquização dessas referências.
87
Acredito que Meirelles teria sido classificado por Florestan Fernandes como um
―folclorista colecionador‖. Mas fica evidente, aqui, que a discussão entre folclore e cultura
popular já se encontrava no centro da problemática de Meirelles, situada entre os campo da
arte, folclore, design e ciências sociais.
O único trabalho que o autor considera ter uma proximidade com o seu próprio, é o
livro de Lélia Coelho Frota: Mitopoética de 9 artistas brasileiros (1978). De acordo com
Gilberto Velho, Lélia (escritora, poeta, folclorista e pesquisadora de cultura) foi ―uma criadora
em trânsito‖:
Não ficou encapsulada nem isolada, mas ao contrário, não só em termos pessoais, mas,
sobretudo, com liderança intelectual, construiu pontes, abriu janelas e portas, num
movimento contínuo de dinamização da vida intelectual e artística brasileira. (Velho,
2011: 40)
30
Além de ter desenvolvido pesquisas sobre o folclore paulista, escreveu diversos artigos discutindo o estatuto
dos estudos de folclore no Brasil, preocupando-se, sobretudo, com a demarcação das fronteiras da sociologia em
relação às demais ciências (Vilhena e Cavalcanti, 1990). Em linhas gerais, Fernandes discordava da posição
dominante dos membros do Movimento Folclórico (1947-1964), aquela, cujo argumento principal defendia o
folclore como uma ―disciplina científica autônoma ‖. Sobre as relações entre as disciplinas folclore e sociologia,
o autor as concebia como práticas específicas, distintas e mesmo complementares. Fernandes polemizava não
com ―o folclore‖ ou com ―os folcloristas‖, mas com àqueles que consideravam a prática do folclore como
―científica‖ (Vilhena e Cavalcanti, 1990 :82). Reconhecia o valor intelectual dos estudos de folclore e o risco do
processo de modernização para a ―cultura folk‖, identificando, tal como os integrantes do movimento folclórico,
um caráter de urgência em termos de institucionalização. Criticava, no entanto, a pretensão científica da
disciplina cujas pesquisas eram realizadas por artistas e/ou pesquisadores sem uma formação definida, que na
visão de Fernandes era caracterizado pelo ―amadorismo‖ e ―diletantismo‖ presentes nas práticas dos ―folcloristas
colecionadores‖; sem um treinamento sistemático; cujo o ―método‖ não era capaz de identificar as causas dos
dados que investigava‖ (Fernandes, 1978: 545 apud Vilhena e Cavalcanti, 1990).
88
conhecimento nas ciências humanas e sociais. A noção de cultura não é mais entendida
como um conjunto aleatório de comportamentos, mas sim como sistemas de significados
permanentemente atribuídos pelos homens e mulheres ao mundo em que vivem. Uma
peça de cerâmica é mais do que o material de que é feita, ou a técnica com que é
trabalhada. É um elo de ligação entre homens e mulheres. Uma festa é mais do que sua
data, suas danças, seus trajes e suas comidas típicas. Sua materialidade veicula visões de
mundo, integra um conjunto tenso e dinâmico de relações sociais. Não há também
fronteiras rígidas entre os diferentes níveis de cultura: cultura popular, cultura erudita e
cultura de massas comunicam-se permanentemente em todas as direções. O compositor
erudito Heitor Villa-Lobos re-elaborou musicalmente cantigas de ninar tradicionais.
Muito freqüentemente, os enredos dos desfiles carnavalescos das escolas de samba
elaboram, numa outra linguagem, temas eruditos; e a composição de sambas-enredo
abarca tanto aspectos tradicionais como aspectos mercadológicos. Na condição de fatos
sociais plenos, os fatos abrangidos pelas noções de folclore e a cultura popular indicam
vivas dimensões culturais e revelam um fértil campo de estudo e investigação
interdisciplinar. (Cavalcanti, s/d: 5)
Capitulo 3
Um antropólogo “sem métier”
Edson Meirelles escreveu uma pequena coletânea de textos visando tanto delimitar seu
objeto de pesquisa – ―a pintura popular brasileira‖ –, quanto elaborar algumas problemáticas
relevantes para o Projeto Mafuá, tais como: reflexões sobre a arte, a pintura, a arte gráfica
popular brasileira, arte popular, o design popular no Brasil. Nestes textos ele enfatiza certas
especificidades destes temas num panorama universal, e ao mesmo tempo circunscritos nas
discussões sobre uma arte brasileira num contexto de modernidade.
Os textos, escritos em 2001, estão reunidos sobre o título Pesquisa sobre a pintura
popular brasileira. Após pesquisar os textos minuciosamente decidi para fins metodológicos,
dividi-lo em três partes. A primeira parte, denomino As perguntas e respostas sobre a
pesquisa; a segunda parte constitui Os escritos sobre Arte; e a terceira consiste na abordagem
de Dois Segmentos Específicos do Projeto Mafuá. Tal distinção analítica e metodológica
91
É uma pesquisa que vem sendo executada com recursos próprios ao longo de 29 anos, no
exercício de minha atividade profissional de fotógrafo e pesquisador de antropologia
visual, em que procuro estudar e registrar com documentação fotográfica e textos, toda a
forma de expressão da ―Pintura Popular Brasileira‖, além de homenagear o pintor
anônimo dos subúrbios e das cidades do interior do Brasil, este artista anônimo que
consegue transformar letras, desenhos e palavras em exemplos da mais genuína arte
popular brasileira. (Meirelles, 2001, grifo meu)
A antropologia visual foi um termo que começou a circular no final dos anos 1970. Até
então, a fotografia era um mero instrumento de reprodução. Fotografia não era associada
ao contexto antropológico. É a velha guerra contra a fotografia, né? No conceito de
suporte da pesquisa antropológica a fotografia não era importante. O documental passou a
ter um peso maior do final dos anos 1980 para cá. Parece pretensioso [qualificar o projeto
mafuá como antropologia visual], mas acho que não... (Entrevistas Meirelles)
Meirelles aborda, nesta fala, a mudança de status da fotografia no que concerne ao seu
reconhecimento como suporte da pesquisa antropológica. O Projeto Mafuá apresenta como
acervo mais de 20 mil cromos de grafismos populares em contrapartida com 12 páginas de
pequenos textos temáticos. O fato do volume de imagens do Projeto Mafuá ser
quantitativamente maior do que o textual não se deve apenas a uma assimetria numérica, mas
uma evidente afirmação de que a pesquisa antropológica pode ter a fotografia (e não o texto)
como seu principal suporte. Assim, fazer das imagens fotográficas o principal suporte da
―antropologia visual‖ consiste, antes de tudo, em uma escolha epistemológica do Projeto
Mafuá, um modo de conhecer que elege as imagens como principal artefato de descrição e
objetificação de uma cultura.
Sylvia Caiuby Novaes (2005) expõe os vínculos da tradição filosófica racionalista e
positivista das Ciências Humanas, ao investigar o uso da imagem, especialmente, na
disciplina antropológica. O destaque concedido à esfera do inteligível em detrimento à do
sensível demonstram as projeções da leitura cartesiana em que as imagens são entendidas
como engano ou ilusão.
A autora explicita que antropologia acompanhou a virada tecnológica da fotografia e
do cinema, e desde o final do século XIX, incorporando as câmeras disponíveis em pesquisas
científicas (Haddon e Rivers, 1898; Flaherty, 1922; Malinowski, 1922 apud Caiuby Novaes,
2005: 109). Na década de 1940, foi publicado Balinese Caracter a photographic analysis de
Gegory Bateson e Margaret Mead. O livro foi considerado a ―primeira pesquisa antropológica
a se servir sistematicamente da fotografia e do cinema como instrumentos tanto na coleta de
dados quanto na divulgação de seus resultados‖ (Freire, 2006: 64). O livro de Bateson e Mead
93
O fotógrafo demonstra, com esta fala, que a cultura gráfica em questão se torna visível
através da documentação iconográfica realizada por ele, sendo as fotografias não só o
instrumento, por excelência, de objetificação desta cultura, mas também o principal
―controle‖ da pesquisa de Meirelles (Wagner, 2010). Isto é, entendo que a noção de
antropologia visual que está em jogo no Projeto Mafuá traz como pressuposto a imagem
fotográfica como modo de obtenção, que funciona como um ―controle‖ da cultura, na medida
em que constato, com Roy Wagner, que: ―os objetos de estudo a que nos dedicamos nas artes
e nas ciências podem ser vistos como 'controles' na criação da nossa cultura.‖ (2010: 41).
Retomando esta pergunta-resposta de Meirelles, ainda nos resta analisar sua segunda
parte. Trata-se, também, segundo o autor, de ―homenagear o pintor anônimo dos subúrbios e
das cidades do interior do Brasil, esse artista anônimo que consegue transformar letras,
desenhos e palavras em exemplos da mais genuína arte popular brasileira‖ (Meirelles, 2001).
Aqui entra em cena o personagem-conceitual do Projeto Mafuá: o pintor anônimo.
Nesta homenagem, Meirelles coloca-se a tarefa de dar visibilidade às habilidades (skill)
(Ingold, 2000), deste ofício, enfrentando a prodigiosa tarefa de documentar o máximo
possível de formas, estilos e finalidades destas obras anônimas. A questão do anonimato
demonstra a intenção fundamental da sua obra: mostrar que pinturas feitas à mão e pincel –
que alguns consideram ―muito comprometedoras para o crédito profissional‖ do pintor, como
o narrador da epígrafe extraída do romance O Cortiço – são uma espécie de tesouro escondido
94
da arte brasileira. Uma arte invisível ainda que esteja ao alcance dos nossos olhos a todo o
momento. Esse tesouro só se torna 'real' quando o fotógrafo captura a expressividade disso
que não se vê na 'realidade', mas que sua câmera tem o dever de registrar. Como destaca
Walter Benjamin (1994: 104): ―cada um de nós pode observar que uma imagem, uma
escultura e principalmente um edifício são mais facilmente visíveis na fotografia que na
realidade‖.
Cunha (2010).
As fotografias de Meirelles dão visibilidade a uma série de artefatos culturais
produzidos por pintores também invisíveis. O processo de documentar obras anônimas foi o
que fez nascer o pesquisador que havia no fotógrafo. O que nos leva a segunda pergunta-
resposta.
ΩΩΩ
31
Carlo Ginzburg aborda ―o rigor flexível‖ do ―paradigma indiciário‖ nas ciências humanas como uma
inspiração do Método de Morelli, pseudônimo do médico italiano que inspirou Freud na criação da psicanálise.
―Mas pode um paradigma indiciário ser rigoroso? A orientação quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da
natureza a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir o estatuto
científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a
resultados de pouca relevância. (…) Mas vem a dúvida de que este tipo de rigor é não só inatingível mas também
96
indesejável para as formas de saber mais ligadas à experiência cotidiana – ou, mais precisamente, a todas as
situações em que a unicidade e o caráter insubstituível dos dados são, aos olhos das pessoas envolvidas,
decisivos. (… ) o rigor flexível (se nos for permitido o oxímoro) do paradigma indiciário mostra-se ineliminável.
Trata-se de formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que, como já dissemos, suas regras não se
prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-
se a pôr em prática regras preexistentes. Neste tipo de conhecimento entram em jogo (...) elementos
imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição.‖ (1989, 178-179).
97
O fotógrafo delimitou seis tópicos ao escrever sobre arte, são eles: 1) Arte; 2) Pintura
no Brasil; 3) A Arte Gráfica Popular Brasileira – um pouco de História; 4) A Arte Gráfica
Brasileira; 5) A Arte Popular; e 6) A Arte Gráfica Popular Brasileira. Optei por reproduzir
integralmente cada tópico (todos estão demarcados em itálico, incluindo as epígrafes), na
ordem estipulada pelo autor. Ao final de cada um dos tópicos faço os meus comentários
analíticos.
1) ARTE
A mão foi o órgão humano decisivo no processo de descoberta do homem como ser
consciente de si mesmo - “Habet homo rationem et manun” - S. Aquino. É a partir desta
98
integração, homem e mão, que surge a cultura no seu sentido inesgotável. O homem
estabelece, então, uma relação com o todo. Uma relação que só se tornou possível quando
“suas patas dianteiras tornaram-se mãos” e o homem pode fazer ferramentas, executar seu
trabalho e transformar a natureza. O homem possui agora mão e ferramenta. Benjamin
Franklin definiu esse ser como “um animal que fabrica ferramentas”, diferentes portanto dos
outros animais – o homem, este animal insatisfeito que anseia por absorver o mundo na
tentativa de explicar o real em sua totalidade. O homem mantém uma relação antiga com a
arte. Inicialmente utilizada como magia, a arte foi o mecanismo do homem primitivo na sua
busca de domínio da realidade. Uma arte que inseria no seu conceito “a presença da
religião, da ciência, da arte”. Arte e homem fundem-se num todo e, é a partir daí que, o
homem torna social a sua individualidade. O homem primitivo relacionou-se com o mundo de
uma maneira mágica. Sua criação primeira teria por objetivo a sobrevivência mesma da
espécie - “o homem da pedra no seu ritual mágico diz que o semelhante atrai o semelhante e
por isso procura fazer seus animais o mais parecido possível, para que eles possam ser
caçados por seus companheiros”. Arte e Magia, com a evolução humana e social, o papel da
arte se modificou-se no sentido de ajudar o homem moderno a reconhecer e transformar a
realidade. A arte dá conta da realidade intensifica e funciona como elemento de ligação do
homem particular, indivíduo, com o geral, o coletivo. A mudança da sociedade que hoje
apresenta-se complexa, multifacetada, com os homens divididos em(sic) classes, num
acúmulo crescente de contradições, não pode mais ser representada/apresentada de modo
mágico. Na medida em que a sociedade se aperfeiçoa, o homem perde a sua unidade, se
fragmenta, se aprisiona – torna-se dialeticamente aprisionador e libertador de si mesmo.
Hoje a arte assumiu o papel fundamental de integrar esse homem no seu tempo – o presente.
O mito não corresponde ao hoje, a arte não se permite mais ser meramente descritiva, como
acentua Antonio Callado ao dizer que - “a arte incorpora o que é na possibilidade de vir a
ser”. Mas esse artista do tempo presente não pode ficar imobilizado. Sua criação, que tanto é
estimulada no sistema capitalista, sente-se também cerceada pelas próprias particularidades
do sistema. E nessa busca de liberdade para sua criação, o homem tenta de novo captar a
magia do seu distante antepassado/primitivo.
mão como órgão do corpo humano definidor de um atributo de consciência que diferencia o
ser humano como um animal capaz de produzir objetos. Caiuby Novaes (2008) alerta para o
fato dos cientistas sociais ignorarem frequentemente o fato de apenas os homens fabricarem,
reconhecerem e atribuírem sentido às imagens. Entendo que, neste texto, Meirelles coloca a
questão da arte como produção exclusivamente humana, tal como a cultura.
Wagner afirma que as sociedades ocidentais têm uma espécie de obsessão em produzir
mitos históricos dos avanços e conquistas da humanidade.
Não é difícil relembrar as listas de grandes avanços ensinadas no colegial: o fogo,
atribuído ao homem ―pré-histórico‖, o alfabeto, a roda, o arco romano, a estufa de
Franklin [Franklin Stove], aquecedor de ferro criado por Benjamin Flanklin no sec.
XVII,e assim por diante. A despeito das datas, dos nomes, ou das invenções específicas, a
―Cultura‖ emerge como uma acumulação, uma soma de invenções grandiosas e conquistas
notáveis. (Wagner. 2010:58)
É na caverna, essa espécie de 'vaso' cavado na terra, essa cavidade formada pela natureza, que
o homem exercitará sua própria fundação como sujeito. Com os outros. Neste momento, o
acidente topográfico torna-se arquitetura: cultura. (2012: 62).
Assim, de acordo com Rivera, estas pinturas seriam a inscrição do sujeito no espaço
no ―ato criador da própria Cultura‖ (:63). Acredito que a dicotomia entre indivíduo e
coletividade está no centro da reflexão de Meirelles quando afirma: ―arte e homem fundem-se
num todo e é a partir daí que o homem torna social a sua individualidade‖. Esta possibilidade
de inscrever, mimetizar, copiar, fixar, objetificar, inventar, experimentar as imagens do
homem primitivo está colocada em relação de alteridade com o conceito de sujeito
individualista moderno.
Como afirma Caiuby, comentando o trabalho de Hauser (1968)
algumas obras de arte são criadas para serem vistas, outras simplesmente para que
existam. As pinturas rupestres perseguem objetivos mágicos , com animais
freqüentemente representados atravessados por flechas ou lanças , além do desenho de
figuras humanas disfarçadas em animais, ocupadas em danças mágicas. São pinturas
naturalistas. ―Uma representação cujo fim era criar um duplo do modelo — ou seja, não
apenas indicar, imitar, simular e sim, literalmente, substituir, ocupar o lugar do modelo‖
(Hauser 1968:23). Segundo este autor, a pintura permitia ao caçador do paleolítico chegar
à coisa mesma. ―Pensava que com o retrato do objeto havia adquirido poder sobre ele‖
(idem:20). Esta interpretação não difere daquela apresentada por Michael Taussig ao
retomar os trabalhos de Frazer e Benjamim quanto à mimesis. Para Taussig, a faculdade
mimética é ―a natureza que a cultura usa para criar uma segunda natureza, a faculdade de
copiar, imitar, criar modelos, explorar diferenças entregar-se e tornar-se Outro. A magia
da mimesis está no ato de desenhar e copiar a qualidade e o poder do original, a tal ponto
que a representação pode até mesmo assumir aquela qualidade e poder‖ (1993:xiii,
tradução minha). (Caiuby Novaes, 2008: 458-9)
Quando o pensamento pára, bruscamente, numa configuração ele lhes comunica o choque,
através desta configuração se cristaliza a mônada. (…) O fruto do processo histórico
compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas mas
insípidas.‖ (:231). Pensar, nos termos de Benjamin, é, além de movimentar, imobilizar ideias,
criar um choque. Pensar a arte, para Meirelles, apresenta um choque entre o passado em que a
mão humana é indício da cultura, no modelo em que se opõe à natureza em relação ao
presente (em que os homens e as máquinas tornaram-se ―ciborgues‖ isto é, são partes de uma
―indecente interpenetração, o promíscuo acoplamento, a desavergonhada conjunção entre o
humano e a máquina‖ (Tadeu, 2000: 11).
O que parece preocupar Edson Meirelles é o deslocamento das habilidades da mão
humana para a máquina, sendo a capacidade do homem de criar ferramentas um modo de
―obviação‖ da cultura, em relação ao conceito de natureza (Wagner, 2010). Esta obviação da
capacidade de produção de objetos gera uma nova ambiguidade da cultura que aparece
também controlada pelas máquinas, assim como os corpos-ciborgues.
Assim, Edson Meirelles estabelece com a arte rupestre uma imagem de passado
(primitivo, ritual, mágico e iniciático), em contraponto com o tempo presente que é
referencial técnico e artístico do fotógrafo: o capitalismo tecnológico. Como pesquisador e
fotógrafo de obras se arte, ele se utiliza de um objeto-máquina-olho para mediar o seu modo
de conhecer o mundo e fixar imagens. Benjamin afirma que o aspecto da fotografia que traria
uma vantagem em relação às outras técnicas de reprodução (tais como a pintura, a
xilogravura, a litografia, a imprensa) é o fato de que ―pela primeira vez no processo de
reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes,
que agora cabiam unicamente no olho‖ (1994: 167). O deslocamento da habilidade da mão do
artista para o desenvolvimento do olhar através da câmera, no caso especifico do Projeto
Mafuá, apresenta uma sobreposição interessante, na medida em que a fotografia funciona
como epistemologia metodológica para o estudo da criatividade e habilidade manual dos
pintores anônimos.
A arte, para Edson Meirelles, teria como tarefa ―ajudar o homem moderno a
reconhecer e transformar a realidade‖. Meirelles considera, assim, que a arte seria um
elemento de reconhecimento, ação e transformação do homem moderno com o tempo
presente, através daquilo que teria sido perdido ou esquecido (o passado). ―É nessa busca de
liberdade para sua criação, que o homem tenta de novo captar a magia do distante
antepassado/primitivo‖ (Meirelles, 2001: cf). Esta frase final do primeiro tópico pode parecer
vaga, mas entendo-a como fruto de uma síntese resultante da dialética proposta no choque
entre um passado ―ancestral‖ e um presente ―pós-industrial/capitalista‖. A magia da arte
102
primitiva é considerada por Edson Meirelles necessária para libertar o artista contemporâneo
da sua condição de limitação e imobilidade. O olhar para o primitivo torna-se uma condição
de deslocamento, de um enfrentamento da ordem da alteridade, para assim mover-se na
desordem do presente, reabilitando a importância (mágica, metodológica e epistemológica)
dos conceitos de mimesis e alteridade para uma abordagem de uma pesquisa surrealista /
modernista que está em relação de devoração e reapropriação da noção de ―primitivo‖, como
diria Oswald de Andrade, quando propõe uma ―reabilitação do primitivo‖32.
A obra fragmentada de Walter Benjamin funciona aqui como uma ferramenta de
análise do texto de Edson Meirelles, precisamente, pela identificação entre passado e presente
que, de acordo com Taussig, configuram a fascinação benjaminiana que conflui na ideia de
mimesis: alteridade, primitivismo e reabilitação da mimesis na modernidade. Assim a
faculdade de imitar, copiar seria uma capacidade de tornar-se outro (Taussig, 1993: 19). Para
Benjamin, em sua leitura de Baudelaire, a imagem do catador de lixo é associada à do artista
moderno, que trabalha dentro de uma sensibilidade surrealista. Na tese sobre o conceito de
história, Benjamin afirma a existência de um ―encontro secreto marcado entre as gerações
precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera.‖ (1994:223)
Wagner, neste mesmo sentido, afirma:
Na medida em que pacotes mágicos, cerâmicas, mantos e outros itens foram fundamentais
para a definição e a reconstrução museológica de outras "culturas" , adquiriram a mesma
importância estratégica que as relíquias que nós buscamos preservar: a primeira máquina
de costura, mosquetes usados em guerras revolucionárias ou os óculos de Benjamin
Franklin. O estudo dos "primitivos" tornou-se uma função de nossa invenção do passado.
(Wagner, 2010: 63)
O Projeto Mafuá procura documentar uma cultura que se supõe ser uma arte em estado
de extinção, isto é, que do ponto de vista histórico e tecnológico faz parte do passado. Ainda
que esta visão possa ser interpretada como parte de um discurso de uma ―retórica da perda‖
(Gonçalves, 2002), é bom lembrar que, atualmente, estas pinturas têm sido cada vez mais
32
O pequeno texto ―Da reabilitação do primitivo‖ escrito por Oswald de Andrade para ser lido (por Di
Cavalcanti) no Encontro de Intelectuais, no Rio de Janeiro, em 1954, inicia-se do seguinte modo: ―A reabilitação
do primitivo é uma tarefa que compete aos americanos. Todo mundo sabe do conceito deprimente de que se
utilizaram os europeus para fins colonizadores‖ (Andrade, 1991:231). O autor aborda criticamente a questão do
preconceito e do sentimento de superioridade dos ocidentais em relação aos povos ―primitivos‖ e, através da
escolha do conceito de antropofagia, que nos termos de Mariza Peirano expressa uma ―alteridade radical‖,
propõe uma relativização filosófica dos conceitos destes povos. ―Ora, ao nosso indígena não falta sequer uma
alta concepção de vida para se opor às filosofias vigentes que o encontraram e o fizeram submeter. Tenho a
impressão de que isto que os cristão descobridores apontaram como o máximo do horror e máxima depravação,
quero falar da antropofagia, não passava de um rito que trazia em si um alto rito que trazia em si uma
Weltanschauung, ou seja uma concepção de vida e de mundo‖. (Idem). De acordo com Morel: ―Antropofagia
oswaldiana (...) não é apenas uma expressão de assimilação cultural, mas tem um intenso sentido contra-
catequese (e Estado), engole o eurocentrismo, portador do etnocídio. Pretende uma reabilitação da filosofia da
alteridade primitiva que roa a civilização ocidental, o mundo capitalista.‖ (Morel, 2013: 21)
103
substituídas por banners, ploters e placas impressos com tecnologia de alta definição. O
projeto procura documentar através de uma antropologia visual auto-didata esta cultura
gráfica antes que ela ―acabe por completo‖ (Entrevistas Meirelles).
2) PINTURA NO BRASIL
Pensar a pintura no Brasil é também pensar esse Brasil juntamente com sua história. Pensar
ainda, a imposição de um modelo cultural estrangeiro, suas influências, acréscimos e perdas
para o processo cultural brasileiro. Nesse contexto colonizado, a relação índio-negro-
europeu sempre foi marcada por sérios conflitos ideológicos. O choque de valores resultante
do par colonizador/colonizado encontra-se presente até hoje. Portanto, não nos causa
nenhum estranhamento quando a história oficial registra que a profissão das 'belas artes' no
Brasil foi, durante longo tempo, considerada uma arte menor. Arte menor, porque os artistas
e artesãos da pintura e da escultura da época eram os escravos e, posteriormente os negros
libertos. Ao serem arrancados de sua nação, os negros trouxeram junto com sua força de
trabalho, uma cultura e uma arte própria. O escravo deixou na África o ébano e marfim –
material nobre, básico da sua produção artística – e trocou-o pelo barro e a palha dos
artistas primitivos brasileiros. Não cabia o hiato ente arte e cultura. O Brasil-colônia, por
sua transmissão cultural jesuítica, predominantemente humanista, estava voltado para as
letras. Entre colonizador e colonizado, cultura é um traço exclusivo da classe dominante.
Este estado foi sendo modificado lentamente, e o ponto máximo desta mudança, deu-se no
período barroco, que foi para as artes plásticas no Brasil, um momento decisivo. Esse
movimento, principalmente em Minas, teve por objetivo a “renovação dos velhos modelos
metropolitanos, de influência jesuítica quase todos”. Era já a necessidade de tentar uma
correspondência entre forma e conteúdo que se aproximasse de uma estética nacional. Sob a
influência do barroco (artistas de técnica rudimentar, não considerados artistas, segundo o
conceito intelectualizado de arte que reinava no momento) proliferam os santeiros, a
escultura, a arquitetura e a pintura religiosa. Destacam-se nomes expoentes de origem
popular como: Valentim da Fonseca, o mestre Valentim (entalhador e desenhista), Antônio
Francisco Lisboa – o Aleijadinho (artista plástico), o mestre da pedra sabão, o mestre Ataíde
104
e tantos outros. Convém lembrar que o mercado consumidor de arte da época era bem
reduzido, limitava-se aos centros coloniais de maior prestígio – Bahia, Pernambuco, Minhas
Gerais e Rio de Janeiro. Nesse quadro, os artistas santeiros ganharam fama: Manuel de
Menezes da Costa e mestre Ataíde, são nomes constantemente lembrados em qualquer estudo
sobre pintura barroca religiosa. A chegada da corte de D. João VI, marca o fim do período
colonial e, é comum os compêndios históricos mencionarem que teve início uma nova era
para as artes no Brasil. Nesse renascer das artes, encontra-se uma relegação de quase todas
as manifestações estéticas anteriores. Com a vinda da Missão Francesa encabeçada por
Lebreton e constituída de pintores como J.B. Debret, Nicolau Antônio Tunnay, Montigny,
nomes que juntamente com outros vão construir o corpo docente da Academia de Belas Artes
– 1826. Diz-se que “a arte assume o seu lugar”. Realmente assume um lugar que não é
nosso, elitizada, transplantadas, inautêntica. É certo que sendo a Missão constituída de
figuras ilustres da arte européia da época, intensificou-se a atividade dos pintores, cresceu o
número de artistas, surgem as primeiras exposições. Mas se agora a arte alcança o status de
arte legitimada, esta deixa para bem mais tarde para ser reconhecida como arte tipicamente
brasileira. O que vai dar a procurada autenticidade à nossa arte, certamente não será o
conteúdo, tema ou assunto da mesma. E, sim o sentimento de brasilidade que vem das formas
e cores. Afinal, ninguém pintou tanto o Brasil como Debret.
33
Sobre os diferentes sentidos de ―cultura‖ nas intercessões e ―zonas de ambiguidade‖, aponta Roy Wagner: ―o
sentido contemporâneo do termo – um sentido 'sala de ópera' – emerge de uma metáfora elaborada, que se
alimenta da terminologia da procriação e aperfeiçoamento agrícola para criar uma imagem de controle,
refinamento, e 'domesticação' do homem ele mesmo. Desse modo, nas salas de estar dos séculos XVII e XIX
105
acepção, apresenta claramente uma visão ―eurocêntrica‖ (Shohat & Stam, 1995: 21), isto é,
consiste em ―um discurso de justificação do colonialismo‖, ou como afirma Meirelles: ―entre
colonizador e colonizado, a cultura é um traço exclusivo da classe dominante‖.
Em um instigante e polêmico filme francês contemporâneo intitulado La vie de Adele),
há uma cena em que as duas protagonistas conversam pela primeira vez: Adéle pergunta a
Emma: ―o que faz da vida?‖; Emma responde: ―quarto ano de Belas Artes‖. Adéle questiona:
―Por que se chama Belas Artes (Beaux Arts)? Existem artes feias?‖. Emma oferece a seguinte
resposta: ―Artes Feias não existem, algumas podem ser feias mas isto é subjetivo. Se diz
Belas Artes, por que há Artes Decorativas, Artes Aplicadas, … mas não existe escola de artes
feias.‖ Adéle retruca: ―Por que não?‖. Emma reflete: ―Na época dos impressionistas, todos os
que eram rejeitados, havia salões dedicados a estas pinturas. Assim para todos os rejeitados e
considerados, por exemplo, feios (mauche), havia o chamado salão dos feios e, de fato, são
grandes artistas‖.
Este diálogo se reporta ao peso da categoria Belas Artes na tradição francesa e
européia que vincula os conceitos de arte à beleza e à verdade (Ver: Lagrou, 2009). Se na
França, havia um salão para as obras ―rejeitadas‖ nos grandes salões, no Brasil, afirma Edson
Meirelles as obras populares eram relegadas a um papel de arte menor, quase-arte, mas
sobretudo, àquela que não seria qualificada como ―bela‖. A tarefa de Meirelles é evidenciar,
no processo colonial, a imposição de formas de autoridade moral, política, estética, étnica,
ética e social sobre as populações cujas produções não eram reconhecidas diante da noção
européia de Belas Artes. Meirelles alega que o conceito de belas artes estaria baseado em uma
noção de cultura hierárquica que considera as produções brasileiras como arte menor por
qualificar atividades realizadas por sujeitos marginalizados na hierarquia social colonial:
―Arte menor porque os artistas e artesãos da pintura e da escultura da época eram os escravos
e, posteriormente os negros libertos. Ao serem arrancados de sua nação, os negros trouxeram
junto com sua força de trabalho, uma cultura e uma arte própria.‖ (Meirelles, idem). A
escravidão é evocada como gênese da luta de classes no Brasil. Nos termos de Marx,
Meirelles traz o ponto de vista da ―infra-estrutura‖ colonial (em que as populações negras
eram vistas como coletividades de força de trabalho), ressaltando a ―superestrutura‖ singular
(das populações negras como sujeitos entre dois mundos) que estabelece a criatividade como
foco de autenticidade do ―choque de valores‖ entre os povos que se misturam no Brasil.
As artes plásticas teriam, no período barroco, um momento decisivo de renovação dos
falava-se de uma pessoa 'cultivada' como alguém que 'tinha cultura', que desenvolvera seus interesses e feitos
conforme padrões sancionados, treinado e 'criando' sua personalidade da mesma maneira que uma estirpe natural
pode ser cultivada‖(2010: 54).
106
modelos jesuíticos e metropolitanos. Sobre isto Meirelles argumenta que uma estética
nacional estaria emergindo através das obras populares como aquelas produzidas pelos
santeiros, as pinturas, arquiteturas e esculturas religiosas, aparecendo nomes como Mestre
Valentin, Aleijadinho, Mestre Ataíde. O barroco teria possibilitado a ideia de autoria associada
à figura de ―mestres populares‖.
Como explicita Edson Meirelles, a cultura européia, sobretudo a francesa, serviu como
paradigma artístico, arquitetônico, filosófico, científico para a colônia brasileira, sobretudo no
século XIX. A arte produzida pela Missão Artística Francesa é considerada por Meirelles
como ―elitizada, transplantada, inautêntica‖. A ironia final do texto ―ninguém pintou tanto o
Brasil como Debret‖ procura mostrar que tais pinturas trariam o Brasil colonial como tema,
mas não configuram uma ―arte tipicamente brasileira‖, caracterizada, segundo o autor, pelos
artistas barrocos e outros tantos anônimos. A argumentação de Edson Meirelles procura
distinguir obras ―tipicamente brasileiras‖ dos artistas barrocos daquelas obras ―sobre‖ o
Brasil como aquelas produzidas pelos artistas da Missão Francesa. A autenticidade da arte
brasileira estaria no ―sentimento de brasilidade‖ que vem das formas e cores e não no
―conteúdo tema, ou assunto‖ da obra. Fica claro, até o momento, que a ideia do fotógrafo de
uma ―arte tipicamente brasileira‖ mobiliza um conceito de autenticidade diretamente ligado à
noção de nacionalidade, ao ―sentimento de brasilidade‖ que esteja à margem de um conceito
ocidental de cultura imbricado na ―noção de progresso‖ que, como diria Lévi-Strauss, serviu
de ponto de referencia para uma etnocêntrica ordenação das sociedades humanas em termos
mais ―primitivos‖ ou mais ―civilizados‖ (Charbonnieur e Lévi-Strauss, 1989 :20).
Em entrevista realizada em 2013, Ricardo Ohtake traçou uma relação interessante
entre a arte barroca e a obra de Meirelles em termos de ―brasilidade‖:
a gráfica perfeita da produção brasileira é o barroco. E apesar de eu não ser
católico, quer dizer, o barroco é dos católicos, (...) eu acho que tem umas coisas
barrocas que são muito brasileiras. Com isso, então, eu cheguei nessa questão do
Edson Meirelles, nas questões que ele levantava com aquelas fotos, aquilo tudo,
quando eu procurava e continuo procurando a brasilidade do design gráfico.
(Entrevista Ricardo Ohtake, 2013)
Ohtake afirma que o barroco seria a ―gráfica perfeita da produção brasileira‖ por
colocar em evidencia um tratamento ―popular‖ das obras e gráficas do Brasil. O projeto
Anônimos e Artistas, idealizado por Ricardo Ohtake e Milton Cips, realizou quatro exposições
no Instituto Tomie Ohtake cujo foco era investigar a questão gráfica no Brasil ―pouco
conhecida e praticamente sem nenhuma reflexão‖ (Ohtake e Cips, 2011: 8). Uma das últimas
exposições foi intitulada: ―Edson Meirelles vê a gráfica popular‖ (idem). O vínculo entre as
exposições foi assim explicado: ―Estas quatro manifestações foram escolhidas em função da
107
forte presença de uma estética popular, parte de uma cultura barroca e eclética que contém
uma brasilidade que vai se encontrar também em produtos de massa de então, como as
embalagens de produtos comerciais e as publicações (jornais, revistas, livros)‖ (op.cit: 09).
Assim, os curadores qualificam a obra de Meirelles como uma apropriação fotográfica das
gráficas populares, sendo ―parte de uma cultura barroca e eclética que contém uma
brasilidade‖. Fazem alusão a uma espécie de afinidade (ou até consubstancialidade) entre a
estética popular e a nacionalidade brasileira. Esta relação parece estar em continuidade com a
própria questão colocada por Edson Meirelles em relação ao ―sentimento de brasilidade‖ das
produções artísticas barrocas em relação aos olhares ―inautênticos‖ dos pintores da Missão
Francesa.
Meirelles reflete sobre a ideia de nacionalidade evocando a famigerada noção de
autenticidade das imagens com vínculos populares, negros, indígenas, e isto é, artes das
―zonas de contato‖ (Clifford, 1998, 2000; Gonçalves, 2010) que seriam criadas à revelia das
tentativas de ―aculturação‖ ou imposição de um modelo europeu no Brasil. Para tal, valoriza o
aspecto anti-colonial, minoritário e ―menor‖ destas produções populares, isto é a ―arte menor‖
configura uma ferramenta crítica, uma ―categoria de volta‖ direcionada ao mundo da arte
(Carneiro da Cunha, 2009). Os artistas ―do povo‖, negros, autodidatas, santeiros, escultores
citados por Meirelles são precisamente aqueles marginalizados pela desigualdade crônica
imposta pelos processos coloniais. Ainda que estas imagens religiosas apresentem signos
associados à cultura cristã, colonizadora e eurocêntrica, elas constituem o que Lagrou e
Gonçalves (2013) chamam de ―arte da relação‖, isto é, a arte popular em ―sous differentes
formes, se constitue dans la rencontre entre des mondes distincts mais intrinsèquement em
lien‖(:355).
Estas questões serão aprofundadas nos tópicos seguintes, mais especificamente
naquele relacionado ao debate sobre o conceito de ―arte gráfica popular brasileira‖ formulado
por Edson Meirelles.
O homem primitivo tinha na narrativa oral a sua única forma de recordar os fatos
ocorridos. Apoiada no gestual, esta forma de comunicação transmitida de pai para filho, foi
durante os primórdios do homem a única forma de se comunicar. Estas narrativas,
naturalmente, estavam sujeitas a erros e resultavam muitas vezes em alterações de todo o fato
ocorrido. Aos poucos, a necessidade de transmitir e perpetuar os fatos foi gerando os signos
escritos, pintados ou gravados, dos que nos dão testemunho hoje, por exemplo, a escrita
rupestre, como as encontradas em Sete Cidades ou São Raimundo Nonato, no Piauí, Brasil
ou na famosa caverna de Altamira, em Santander, na Espanha. Nestas pinturas na pedra, que
são verdadeiras obras de arte do homem primitivo, percebe-se na tendência para a
estilização das figuras pintadas, um sentido que ultrapassa o meramente decorativo, para
uma busca de comunicação com o seu semelhante e de forma mais profunda e definitiva, com
a divindade, pois o homem então, relacionava-se com o mundo de uma maneira mágica. A
escrita antiga, definida hoje, acertadamente, “como escrita do pensamento”, representava
graficamente as ideias como figuras pintada, astros, animais, formas humanas ou qualquer
coisa que expressasse o pensamento, e foi com o correr do tempo se transformando até
originar as letras e os alfabetos. Supomos que as mais antigas formas escritas, assim como as
conhecemos, já livres de seus estágios embrionários, datam de cerca de 6.000 anos. Estas
escritas como a cuneiforme dos sumerianos ou a hieroglífica dos antigos egípcios, passando
pela escrita demótica ou pelas diversas formas de escrever orientais, passou por lenta
transformação no tempo, chegando até os fenícios, que foram os criadores do primeiro
alfabeto fonográfico, isto é, onde a fala representa a ideia e a escrita representa a fala.
Desenvolvido por Cadmo, príncipe fenício contemporâneo de Moisés, este alfabeto, composto
de vinte e dois signos ou letras, era necessário para uniformizar suas transações comerciais e
foi rapidamente difundido e assimilado, através de seu comércio marítimo por todo o
mediterrâneo. Do alfabeto fenício derivou o alfabeto grego, que foi alterado por cerca de
1.500 anos a.C, formando com suas dezesseis letras o primitivo alfabeto grego, do qual
nasceram diversos alfabetos, sendo provavelmente o mais importante, o latino ou romano. Os
romanos a medida que iam avançando nas suas conquistas, impunham aos povos dominados
suas leis, seus costumes, sua arte e sua cultura, e neste processo de consolidação e expansão,
tinham no seu alfabeto e no seu idioma, a sua maior arma. Desta forma com suas diversas
transformações e evolução ao longo da história, o alfabeto chegou até nós. E hoje, ao raiar
de um futuro que já está presente, o seu “design” assume ares multifacetados, onde a
linguagem futurista, como não poderia ser diferente, impõem- se quase que definitivamente,
ao assumir o papel fundamental de integrar o homem ao seu tempo – o presente. E nesta
escrita do tempo presente, o homem continua, de uma maneira mágica como o seu distante
109
No título deste texto, Edson Meirelles enuncia o conceito proposto na sua pesquisa – a
Arte Gráfica Popular Brasileira– seguido do subtítulo: ―um pouco de história‖. Se nos textos
anteriores, ele procura refletir sobre as artes em um sentido ampliado, neste tópico o foco são
as escritas, o signos gráficos, as letras, os desenvolvimentos dos alfabetos e o conceito de
design, que aparece abarcando diversas formas de objetos gráficos. Como no texto ARTE,
nota-se a evocação de um ―desenvolvimento do homem como uma história da evolução das
técnicas produtivas‖ (Wagner, 2010: 58) trazendo exemplos desde a escrita rupestre, passando
pelas escritas: antiga, cuneiforme, sumarianas, hieróglifos egípcio, escritas orientais, o
alfabeto fonográfico fenício e a expansão marítima, o alfabeto grego, o latino ou romano que
após transformações chegara ao seu formato atual.
No livro História do Design Gráfico, Philip Meggs (2009) aborda detalhadamente as
produções gráficas desde a ―invenção da escrita‖, que dá nome ao primeiro capítulo, até ―a
revolução digital e o futuro‖, que nomeia o último dos 24 capítulos. O autor caracteriza os
traçados humanos encontrados nas cavernas como algo mais próximo da comunicação visual
do que do conceito ocidental de arte: ―esse não foi o principio da arte como a conhecemos.
Foi mais precisamente a alvorada das comunicações visuais, porque essas primeiras figuras
foram feitas para sobrevivência e com fins utilitários e ritualísticos‖ (Meggs, 2008: 19). O
texto de Meirelles procura estabelecer um discurso ―contra-inventivo‖, nos termos de Wagner,
pois, a partir da convenção cultural (ocidental) que distingue o conceito de arte das produções
de objetos utilitários, ele procura romper com o código, quando afirma, por exemplo, que as
pinturas em cavernas e escritas rupestres ―são verdadeiras obras de arte do homem primitivo‖
(Meirelles, op.cit). A condição do desenvolvimento da escrita dos alfabetos é contrastada com
a narrativa oral como principal dispositivo para comunicar e memorizar os fatos. A
possibilidade da comunicação escrita em relação à comunicação oral tem, para Meirelles, um
impacto na capacidade de ―transmitir e perpetuar os fatos‖ (idem) que vai de encontro com a
interpretação de Meggs:
A escrita é a contrapartida visual da fala. Marcas símbolos, figuras e letras traçadas ou
escritas sobre uma superfície ou substrato tornaram-se o complemento da palavra falada
ou do pensamento mudo. (…) Até a era eletrônica, as palavras faladas desapareciam sem
deixar vestígios, ao passo que as palavras escritas ficavam. A invenção da escrita trouxe
aos homens o resplendor da civilização e possibilitou preservar conhecimento,
experiências e pensamentos arduamente conquistados (Meggs, 2009:18-9)
Meirelles segue as teorias que consideram que a evolução das escritas está
relacionada com o desenvolvimento das transações comerciais, a expansão marítima e a ideia
110
Nos muitos variados estudos e classificações do design e dos alfabetos, existe uma infinidade
de critérios para defini-los e sistematizá-los, normalmente escapam da ótica dos estudiosos
os alfabetos e o design de origem popular. Esta questão, a do reconhecimento das
manifestações artísticas oriundas das camadas menos cultas da sociedade, não é nova, como
também, não é nova a questão da busca da nossa identidade cultural, da autenticidade de
nossa arte. A questão no nacional, do autêntico, da brasilidade, constitui até hoje, às
vésperas de completar quinhentos anos do descobrimento, a preocupação de uma
considerável parcela da intelectualidade brasileira. Porém, quando estas manifestações
emanam das camadas mais cultas da sociedade, como a arte erudita, este reconhecimento é
mais fácil e imediato, pois continuamos mantendo as velhas relações que predominavam no
Brasil-colônia onde a cultura era um traço exclusivo da classe dominante. Nosso design, se
assim o pudéssemos (sic) chamá-lo no principio do século passado, era produzido para um
mercado restrito aos centros coloniais mais importantes – Minas Gerais, Bahia, Pernambuco,
e Rio de Janeiro – onde a igreja pontificava como seu maior e quase que exclusivo
111
consumidor, e era a esse tempo, considerado arte menor. Arte menor, por que os artistas,
pintores e escultores, entalhadores, eram na sua maioria, brasileiros autodidatas e sem
formação técnica, escravos, negros libertos e mulatos. Sua expressão artística era calcada em
valores metropolitanos, onde as estampas e gravuras religiosas, geralmente espanholas,
alemãs e italianas, eram a grande mestra. Esse design, embora não correspondesse à uma
estética faustosa e de ostentação, tão característica do clero e das classes dominantes da
época, influenciando ainda, na técnica e na expressão, pelos maneirismos barrocos que nos
chegavam da Europa, destacou diversos artistas de origem popular, alguns de qualidades
excepcionais. Antonio da Silva Lisboa – O Aleijadinho – sem sombra de dúvida, o maior
expoente deste período, arquiteto designer, artista plástico, escultor, entalhador, o mestre da
pedra sabão, Valentin Fonseca e Silva – o Mestre Valentin, designer e entalhador, Mestre
Ataíde e tantos outros, que sob a influência decisiva do barroco, buscavam já, a renovação de
velhos modelos metropolitanos . Podemos considerar este período para as artes plástica
brasileiras, as primeiras tentativas de um design com uma correspondência entre forma e
conteúdo, que nos aproximasse de uma estética nacional, notadamente no movimento das
formas, no uso intenso das cores e fundamentalmente na expressão exuberante do sentimento.
Todo desenvolvimento, estilístico, e suas consequentes manifestações estéticas do design
brasileiro, foi interrompido com a chegada da Missão Artística Francesa em 1816. Mandada
buscar por D. João VI era encabeçada por Joaquim Montigny, que juntamente com outros
vão construir o corpo docente da Academia de Belas Artes. Formada de figuras ilustres da
arte européia da época, neoclássicos ou acadêmicos todos, produzem aqui uma arte
transplantada, estilizada, inautêntica. Embora a arte alcance agora, o status de arte
legitimada, pois erudita, esta deixa para bem mais tarde, para ser reconhecida como arte
tipicamente brasileira, pois o que vai dar a procurada autenticidade da nossa arte e do nosso
design não será certamente o conteúdo tema ou assunto, e sim o sentimento de brasilidade
que nos vem da forma e das cores.
Muitos brasileiros aprenderam as primeiras letras nos livros religiosos. Temos este
referencial do inconsciente. O português é muito religioso. A estampa religiosa foi
a mãe do desenho brasileiro. (Meirelles apud Borges, 2000).
A ideia de design no Brasil, bem como seu processo de institucionalização nos anos
1960, tem esta marca funcionalista da escola de Ulm, na Alemanha. Como aponta Borges, a
114
Interessante notar que a década que 1970 é justamente o período inicial da pesquisa de
Meirelles. Em 1972, trabalhando com criação de stands em feiras industriais, em várias
cidades do Nordeste, o fotógrafo percebeu a atividade profissional de letrista, as habilidades
manuais destes pintores (sejam os profissionalizados por cursos técnicos ou aqueles
34
Sobre a relação entre design e identidade nacional, Anastassakis comenta que diversos autores abordaram esta
problemática levantada tanto por Lina Bo Bardi quanto por Aloisio Magalhães. ―Se vários deles trazem para a
discussão apenas um ou outro (por vezes os aproximando ou contrastando com outros atores) (Cardoso, 2004,
Cornejo, 2008, Souza, 1996), alguns abordam de forma explícita as relações (implícitas) entre os
posicionamentos de ambos (Borges, 2009, Cara, [(2008) 2010], Chagas, 2002, Souza Leite, 2006, Lessa, 1994,
Moraes, 2006, Nobre, 2008). Acompanhando alguns de seus trabalhos é possível perceber, então, em que quadro
maior de discussão esses autores têm comentado as atuações de Lina Bo Bardi e Aloisio Magalhães, trazendo à
tona, assim, as suas leituras sobre as contribuições de Lina Bo Bardi e Aloisio Magalhães para a conformação de
um design vinculado de forma mais a uma identidade cultural brasileira. Ao atribuírem a Lina Bo Bardi e a
Aloisio Magalhães um certo pioneirismo na crítica à influência germânica entre o design brasileiro, esses críticos
delegam ao pernambucano e à italiana poderes de criação de uma vertente (ou seja, de formação de uma
discursividade (Faria, 2002), que só é assim nomeada por eles, a posteriori, mas que tem sua gênese localizada,
por eles, nas proposições e atuações dos dois, em suas trajetórias profissionais.‖ (Anastassakis, 2011: 57-58)
115
Pedro Luiz Souza explicita que a reação critica ao formalismo técnico do modelo da
Bauhaus foi esta ―tendência nacionalista do design‖ ou ―a idéia de um design sintonizado com
uma realidade nacional‖ (Souza, 1996: 232) ou ainda um ―design de identidade nacional‖ (:
303) que ao invés de reproduzir o design endurecido pela noção industrial funcionalista e
universalista, teria caminhado em uma direção ―mais antropológica‖ e culturalista, inclusive
mais próxima dos modernistas dos anos 20 e 30, especialmente Mário de Andrade (Lessa,
1994).
Voltando, assim, ao texto de Meirelles, quando ele afirma que os artistas barrocos,
pintores e artesãos populares são designers, renovadores ―dos velhos valores metropolitanos‖,
Meirelles fomenta um conceito de design ―contracultural‖, isto é, contra o convencional
industrial, universal técnico e racional e apoiado pelo Estado. Edson Meirelles procura com o
design popular estender o conceito de design erudito/acadêmico, acenando como expressão de
autenticidade de uma arte ―tipicamente brasileira‖. Como diz a epígrafe de Picasso ―A arte
não é a aplicação de uma regra de beleza, mas aquilo que o instinto e o cérebro podem
conceber além de qualquer regra‖. Este aspecto contracultural, minoritário (Deleuze),
antropológico, do design e da arte fundamentam as bases de uma ―política da visualidade‖
116
que a obra de Meirelles procura ―inventar‖ através do enquadramento destes objetos gráficos
de toda sorte, embasando o inventário de um patrimônio cultural gráfico.
A disposição contraculturalista foi acabar desembocando no processo de desrecalque das
múltiplas personalidades que nos compõem e no reconhecimento pleno da pluralidade
cultural brasileira. É assim que podemos falar da contribuição da contracultura para o
alargamento e o aprofundamento da consciência e da sensibilidade antropológicas no
Brasil, produzindo rachaduras irreparáveis no superego europeu de nossa cultura
(Risério, 2005: 30)
O uso dos conceitos design e arte tem a intenção de afirmar, não apenas uma
diferença, mas uma aproximação e um ―alargamento‖ do conceito arte, que passaria a abarcar
objetos gráficos mais ―úteis‖, ―cotidianos‖, ―tipográficos‖ como as escritas populares. A
distinção entre os termos simplesmente não importa: ―Arte Gráfica ou Design Popular é tudo
a mesma coisa: o modo do povo se expressar através da pintura.‖ (Entrevistas Meirelles).
Uma afirmação de Lagrou sobre as relações entre as noções de arte étnica e arte
contemporânea, nos permite sintetizar o pensamento de Meirelles e o alargamento dos
conceitos de arte e de design que ele quer proporcionar ―somente quando o design vier a
suplantar as ‗artes puras‘ ou ‗belas artes‘ teremos nas metrópoles um quadro similar ao das
sociedades indígenas‖ (Lagrou, 2009: 14).
5) A ARTE POPULAR
onde a expressão tem uma identidade comum, porém feita com mãos diferentes. O popular
urbano, recebendo influência exterior através dos modernos meios de comunicação, por
maior que sejam os seus apelos e seduções, continua popular. Diferente do popular rural,
muito mais fechado em si e isolado no seu dia-a-dia, ambos sentindo porém, lenta e
inexoravelmente, o impacto das novas tecnologias. Assim, o homem do povo vai dando vazão
a sua sensibilidade, e expressando a sua beleza com sua arte espontânea e simbólica,
provando que, não importa o estágio evolutivo de sua cultura, ele é um animal que cria.
Meirelles parece conceber que a ―arte popular‖, dentre outras artes, como aquela que
apresenta mais influência do meio social, sendo uma ―manifestação do coletivo‖. Como
observa Mascelani: ―a noção de arte popular tem sido usada historicamente para assinalar a
origem social de seus autores e nos remete a um conjunto de valores indicativo de um modo
de ser nativo; de criar e transformar a partir do que tem no em torno; de iluminar os valores da
nacionalidade, sintetizando aspectos do pensamento coletivo‖ (2011: s/p). Quando Meirelles
afirma que as mãos são do artista popular ―mas a criação é da coletividade‖, ele explicita a
existência de um repertório coletivo de formas, figuras, temas, tipos, cores, que seriam, assim,
apropriados pelas habilidades manuais do artista. Este domínio público ―do popular‖ seria
uma espécie de patrimônio coletivo, uma coleção de objetos que são versões de uma forma
adotada coletivamente, mas passíveis de serem apropriados, remontados, personificados,
estilizados pelas mãos dos artistas. Meirelles discute um caráter mais coletivo da criatividade
do povo como um modo de distinção do modelo predominantemente ―autoral‖ da arte
ocidental, onde o artista é entendido como um indivíduo iluminado que cria.
por artistas diferentes, por exemplo, as esculturas de barro das famílias de retirantes, os
personagens do bumba meu boi, do maracatu, as diversas profissões que se encontram na
Feira de Caruaru; as noivas e moringas feita pelas artistas do Vale do Jequitinhonha ou
santeiros no Sertão do Cariri. Na poesia popular dos folhetos também se coloca a questão da
coletividade/ criatividade para a qual Gonçalves encontra uma saída benjaminiana:
O poeta de Cordel, como o entende Ruth Terra (1983: cap. 2), deve ser compreendido
para além de uma figura personalizada de autor, pois compartilha uma visão de mundo
com seu público. Se esta idéia parece ser absolutamente verdadeira, deve-se, também,
evitar tomar o contexto em sua radicalidade de modo que elida a criatividade individual e
poética reduzindo a criação a uma comunidade narrativa, a uma sociedade. Uma saída
possível para o impasse contexto/criatividade é a encontrada na definição de Benjamim
(1980:63), em que a narrativa seria ao mesmo tempo uma formula social e pessoal de
criação, como a obra de um artesão: adere à narrativa a marca de quem a narra como na
tigela de barro a marca das mãos do oleiro. (Gonçalves, s/d: 34).
Esta concepção de arte popular expressa por Meirelles pode ser pensada tanto em
relação às teorias mais materialistas da arte ocidental (conceitual, surrealista, modernista)
quanto em face daquelas teorias mais perspectivistas da ―arte das sociedades contra o estado‖
(Lagrou, 2008, Clastres, 2009). De acordo com Lagrou, ―não é porque inexiste o conceito de
estética que os valores que o campo das artes agrega na tradição ocidental, que outros povos
não teriam formulado seus próprios termos e critérios para distinguir e produzir beleza‖
(2009:11). Entre os indígenas Kayapó, aponta a autora, todos os membros do grupo têm o
direito de produzir enfeites e artefatos cerimoniais, mas o direito de ―uso‖ dos bens é definido
pelo nome do indivíduo.
Como demonstra Lagrou, o artista kayapó é antes ―um rádio transistor do que um
criador‖ que interage, recebendo e transmitindo, afetado pelos seres não humanos. Acredito
que esta imagem do artista como ―rádio‖, capaz de captar e disseminar um conhecimento e
uma estética coletivas traz rendimentos no que tange à argumentação de Edson Meirelles
sobre a arte popular como um repertório de possibilidades apropriativas e criativas de
produção de ―diferenças‖ e estilos a partir de instâncias e domínios coletivos com as
articulações particulares de cada artista.
Não pretendo com estas aproximações criar ―identidades‖ nem ―continuidades‖ entre
as tão diferentes concepções de arte (vanguarda, ameríndia, popular). Entendo, apenas, que há
uma ―zona de contato‖ entre os modos de pensar as criatividades nos mundos artísticos
metropolitanos, urbanos e nas cosmologias artísticas contra-institucionalizantes. Esta questão
será melhor elaborada no próximo e último texto de Edson Meirelles.
A arte gráfica popular brasileira, esta estética tão nossa, quanto ignorada,
normalmente, é encontrada em rótulos de bebidas, garrafadas e unguentos, em portas de
circos e shows de ilusionismo, em reclames comerciais, em barracas, placas, cartazes e
carrocinhas de ambulantes, enfim, em todas as possíveis expressões da arte gráfica do artista
popular, pelos confins do Brasil. A beleza de sua representação plástica manifesta-se de
maneira distinta, combinando ou isolando entre si o ritmo de cores, das formas e do
movimento.
O artista gráfico popular exprime o seu sentimento estético sem regras e sem
barreiras, e o resultado é um “design” despido de tecnicismo conceitual, em que espaço e
profundidade, altura e largura, não têm a mínima importância, pois expressa com emoção e
sentimento uma obra extremamente pessoal. O que vale é a emoção e o sentimento, já que
estamos falando de uma obra extremamente pessoal. De caráter puro, ingênuo, e algumas
vezes irracional, sua maior característica é o anonimato, espécie de divisor de águas ante o
design erudito.
121
pela crítica maior dos séculos. Desta forma, o “design popular”, esse nosso bem ignorado,
continuará expressando o seu apuramento no cerne da nossa cultura nacional, a partir da
matéria-prima e tesouro único das culturas: a sensibilidade do artista anônimo.
Neste último texto dos Escrito sobre Arte, Meirelles delimita o conceito de arte
gráfica popular brasileira que consiste numa espécie de termo geral, definidor do objeto da
sua pesquisa. Além de nomear uma das coleções do Projeto Mafuá, o termo ―arte gráfica
popular brasileira‖ foi criado para conceituar a totalidade das variedades ―ontológicas‖ da
pintura popular brasileira, tanto àquela rigorosamente colecionada por Edson Meirelles,
quanto as tantas outras que se espalham pelo Brasil. O conceito se aplica ao conjunto de
expressões gráficas e delimita também uma técnica específica: a pintura feita à mão com
pincel, sem mediações de outros instrumentos como aeróglifo, serigrafia, spray.
É difícil ter um termo para isto. O pessoal da ABIGRAF (Associação Brasileira de
Industrias Gráficas) me deu muita força, fizeram materiais maravilhosos. E pediram
para eu mudar o termo Arte Gráfica Popular Brasileira, pois gráfico dentro do
contexto literário vernacular, seria a arte da impressora, das pessoas que trabalham
dentro da gráfica. Mas o meu conceito é muito mais elástico. Eu comecei a chamar de
designer popular, que é um pouco pretensioso porque não há termo em português para
isto. Eu gosto mais de arte gráfica popular brasileira. Eu comecei a pensar em mudar
o termo por causa da solicitação do pessoal da Abigraf. Mas não importa, Arte Gráfica
ou Design Popular, é tudo a mesma coisa: o modo do povo se expressar através da
pintura. (Entrevista, 2012)
visibilidade à pintura popular, justo aquela que , dentre as artes ―rejeitadas e populares‖,
apresenta a peculiaridade de ser o ―nó górdio‖, isto é, a mais desconhecida e ignorada de
todas. Meirelles diferencia, por exemplo, a sua conceituação de arte gráfica de outras
produções populares como artesanato e arte popular:
Estes temas já foram explorados: folclore, artesanato, arte popular. A pintura
popular é que é o nó górdio. O sentido de rejeição de toda arte popular por conta
da cultura dominante, a cultura erudita sempre rejeitou o popular. Veja a
dificuldade do samba ser aceito. As artes populares sempre tiveram uma
dificuldade de aparecer, de ter um registro sério. (Entrevistas Meirelles)
O texto se inicia com a demonstração dos diversos suportes em que se produz a Arte
Gráfica Popular Brasileira qualificada como ―esta estética tão nossa quanto ignorada‖. Ao
analisar os suportes enumerados pelo autor – rótulos de bebidas, garrafadas e unguentos,
portas de circos e shows de ilusionismo, reclames comerciais, barracas, placas, cartazes e
carrocinhas de ambulantes – fica evidente que o termo arte gráfica é uma delimitação geral do
seu objeto de pesquisa, que engloba todos os seguimentos e coleções do Projeto Mafuá.
Minha hipótese é a de que o conceito de arte gráfica engloba os conceitos de design e da
tipografia popular, e não o contrário. Isto ocorre na medida em que o ponto crucial para o
autor é a operação conceitual de converter anônimos em artistas, reivindicando um
reconhecimento às produções pictóricas ―cotidianas‖, ―utilitárias‖, ―imperfeitas‖, ―populares‖,
que estão em relação de alteridade com as produções legitimadas pelos mundos artísticos e
museológicos.
O autor prossegue a argumentação afirmando que a ―beleza‖ encontrada nestas
plasticidades populares se expressam de ―maneira distinta, combinando ou isolando entre si o
ritmo de cores, das formas e do movimento‖. Afirma, deste modo, que há uma beleza ―outra‖
nestas produções, modificando os termos de valoração estética estabelecida pela cultura
dominante.
Meirelles afirma o valor desta arte, inclusive pela característica que distingue como
―ausência de técnica‖, apreendida no sentido de serem produções que não dialogam com os
rigorosos padrões acadêmicos de perspectiva, composição, luz, cores, matizes. A ―ausência de
técnica‖ dos artistas gráficos é entendida como uma ―intuitiva sabedoria plástica‖ que denota
124
arte popular e a arte consagrada. É possível ver neste posicionamento do autor uma atitude
semelhante àquela apresentada por Lévi-Strauss no livro O Pensamento Selvagem (2008)
quando afirma que uma das vocações destas outras formas de pensamento, ação e produção é
justamente provocar ―o alargamento da visão ocidental‖ . Podemos extrair desta comparação a
ideia de que um dos objetivos de Meirelles é justamente desestabilizar o conceito de arte,
horizontalizando, ou melhor transversalizando (Clastres, 1978), certas oposições duais: o
popular e o erudito, o formal e o informal, o primitivo e o civilizado, o belo e o feio. Na base
destas oposições residem as categorias de alteridade ―ocidentais‖ que Meirelles parece estar
agindo ―contra‖.
Sem dúvida, Meirelles teve contato com o pensamento de Lévi-Strauss através do livro
de Lélia Coelho Frota (Data), Mitopoética de 9 Artistas Brasileiros. No livro, a autora se
propõe a analisar ―a produção e comportamento social dos artistas comumente chamados de
primitivos‖, e ressalta que as ―especulações relativas à criatividade de conotação popular, ou a
ela recorrentes, tornam, como é notório, especialmente difícil e delicada uma primeira
conceituação dessas manifestações artísticas‖ (Frota, 1978: 03).
Em sua abordagem psicológica de nove artistas populares, a autora trabalha com as
histórias de vida e motivações de cada artista: ―o artista popular desconhece implicações de
autoria e gratuidade em arte, conforme a entendemos. O 'primitivo' proveniente em geral de
estratos populares olha com uma visão altamente pessoal através da cultura que recebeu.‖
(Idem). A diferença básica, para Lélia, entre o artista primitivo e o artista erudito seria o fato
do último ter um ―conceito intelectual de arte e da natureza, formado por valores elitistas da
civilização ocidental‖. (1978:06). Qualificando, assim, este artista como 'marginal', tal como
definida por Evertt V Stonequist, que revela a ambiguidade e a liminaridade de estar entre
duas normas. Algo que o aproxima da ideia de bricoleur utilizada por Lévi-Strauss para
abordar o mecanismo de pensamento mitopoético: ―subsiste entre nós uma forma de atividade
que, no plano técnico, permite conceber perfeitamente aquilo que, no plano da especulação,
pode ser uma ciência que preferimos antes chamar de 'primeira' mais que de primitiva: é
aquela comumente designada pelo termo bricolage.‖ (Lévi-Strauss, 2008: 32). Embora Frota
não cite o termo bricoleur, encontra na noção de mitopoética a chave analítica para abordar
este universo artístico considerado, aos olhos do mundo ocidental, ―ingênuo‖ e ―bruto‖.
(…) Como o espaço que passa a existir do outro lado de uma linha que
traçamos, é constantemente reivindicada por Claude Lévi-Strauss, não apenas
para a reconceituação e recuperação, para nós, das sociedades sem história,
mas também para que reintegremos elementos das sociedades industriais
urbanas, onde ele denomina de mitopoético o caso exemplar da arquitetura de
Ferdinand Cheval (1836-1934) em Hauterives, França. Lévi-Strauss, citando
Jaques Lacan, defende também uma revisão de nossa atitude em relação aos
126
Podemos dizer que uma semelhança primordial entre as obras de Lélia Coelho Frota e
Edson Meirelles, consiste na utilização da noção de mitopoética associada a ―palavra
127
primitiva com a sua carga positiva‖ (Frota:1978: 04) de modo a qualificar as respectivas
―artes‖ de que estão tratando, criando conexões com a abordagem que Lévi-Strauss apresenta
em O Pensamento Selvagem, e posteriormente nas Mitológicas.
Meirelles aponta o anonimato das obras populares como ―um divisor de águas‖ em
relação ao design erudito. Acredito que a argumentação está, aqui, em continuidade com a
obra fotográfica produzida no âmbito do Projeto Mafuá. Diferentemente do trabalho de Lélia
Coelho Frota, Meirelles privilegia o aspecto não-autoral (com raras exceções) das obras que
se ocupou em documentar, criando um registro gráfico numeroso e inédito de uma obra que
apresenta a pretensão de um enquadramento ―coletivo‖ e que informa também sobre uma
noção de ―brasilidade‖
O que o Projeto Mafuá e seu autor delimitam como arte gráfica popular brasileira
constitui-se como uma relação de alteridade, uma ―categoria de volta‖, nos termos de
Carneiro da Cunha (2009), já que, propõe uma questão política para os especialistas do
―mundo da arte‖ (Becker, 1977) ou mais especificamente, para ―o mundo da arte popular
brasileira‖ (Mascelani, 2002). A proposta do fotógrafo apresenta uma crítica feroz ao não
reconhecimento (e consequente ―não-patrimonialização‖) do objeto de sua pesquisa - ―a
pintura e o design popular brasileiro‖ - que não tem seu lugar garantido nos museus e
publicações brasileiros.
Provavelmente seja esta a razão, de continuarmos, teimosamente, a ignorar o
significado da expressão ―arte popular‖ e sua legitimidade, procurando com
definições sofisticadas, mascarar a expressão artística do homem do povo,
depositário de uma arte que foi depurada pela crítica maior dos séculos. Desta
forma, o ―design popular‖, esse nosso bem ignorado, continuará expressando o
seu apuramento no cerne da nossa cultura nacional, a partir da matéria-prima e
tesouro único das culturas: a sensibilidade do artista anônimo. (Meirelles, 2001)
Capítulo 4
A Mitopoética
dos Parques de Diversão
Edson Meirelles estabeleceu alguns métodos para encontrar os grafismos populares nas
diferentes cidades por onde viajou (ver Capitulo 2). Em entrevista, Meirelles me relatou que
aproveitava qualquer hora vaga no trabalho para caçar pinturas com sua câmera. Nestas ocasiões,
dirigia-se aos pontos de ônibus, às rodoviárias, aos motoristas, e indagava: ―onde tem um
parquinho?‖. Esta pergunta-fórmula do fotógrafo tinha constantemente um efeito positivo para seus
objetivos: ―sempre aparecia alguma coisa‖, afirma. Além de ser um lugar constantemente procurado
pelo fotógrafo para documentação de imagens, acredito que foi também ―um campo‖ num sentido
mais ―etnográfico‖, isto é, um modo de se aproximar empiricamente dos personagens da pesquisa.
Por exemplo, a documentação de certos parques no Rio de Janeiro foi fruto de trabalho de
meses a fio. O Parque Centenário, em Marechal Hermes, o pesquisador frequentou ao longo de seis
meses: ―o parque era enorme, todo fim de semana eu ia para lá fotografar e documentei tudo‖. Esta
disciplina de pesquisa e documentação semanal desenvolvia um contato mais estreito do fotógrafo-
pesquisador com os pintores, auxiliares e funcionários do parque. Estes trabalhos de campo ―etno-
foto-gráficos‖ realizados em diversos parques (ver Anexo II) fundamentaram a observação e a
reflexão de questões essenciais do projeto mafuá como a questão do anonimato e assinatura das
130
Parques de Diversão
Um provérbio chinês diz que ―a tinta descascando na parede é melhor do que qualquer
memória‖. Meirelles parece querer com seu Projeto Mafuá produzir diversas imagens desta
memória. Seja a da tinta que já está descamando ou aquela que irá descamar, ou ainda aquela que
não existirá por ocasião da substituição por outras técnicas. Se por um lado segmenta em coleções,
por outro, engloba todos os segmentos e classificações internas através do conceito geral de Arte
Gráfica Popular Brasileira. Afirmando-se a sua existência, afirma-se também a sua ruína.
Ao pintar temas lúdicos presente nos Carrosséis, Autopistas, Rodas Gigantes e outros
brinquedos, o artista pintor não só mantém essas características, como as extrapola, produzindo
uma obra de beleza ingênua e primitiva, mas cheia de qualidades pessoais. Devido aos
deslocamento constantemente em busca de público – festas folclóricas ou religiosas, exposições
agropecuárias, etc. – a pintura dos mafuás itinerantes acaba sofrendo danos e sendo renovada
constantemente, razão de sua diferença para com a pintura dos mafuás fixos. (Meirelles, 2001,
trecho do texto Mitopoética do Trem Fantasma)
132
A segunda gaveta do grande arquivo de metal amarelo é ocupada pela coleção Arte Gráfica
Popular Brasileira. A coleção ―Parques de Diversão‖ encontra-se no fundo desta mesma gaveta
dentro da classificação geral, mas ao mesmo tempo como uma ―outra coleção‖ dentro do segmento
Arte Gráfica Popular Brasileira. O fato de o fotógrafo ter classificado separadamente a coleção
Parque de Diversões, não quer dizer que na coleção Arte Gráfica Popular Brasileira não se encontre
também diversas fotografias mais esparsas de parques, colocadas ao lado de outros objetos bem
diferentes. Isto é, a segmentação da coleção ―Parques de diversão‖ não delimita uma fronteira desta
com a coleção Arte Gráfica Popular Brasileira, mas demonstra a existência de um desdobramento
singular. Como certos parques foram minuciosamente fotografados, o autor criou uma catalogação à
parte para eles.
A organização da coleção segue o mesmo padrão de ordenação das demais: os cromos se
encontram em cartelas com espaço para 24 slides cada, numeradas, com o nome do parque, o local e
a data de documentação. Como mostra a foto abaixo:
133
A coleção conta com onze parques de diversão totalizando mil seiscentas e dezessete fotos,
sem contar com as cartelas e cromos que não estavam no acervo na ocasião da pesquisa. Todos os
parques desta coleção foram fotografados no Estado do Rio de Janeiro, com a única exceção do
Parque Celina, em Caruaru, Pernambuco. O parque de Caruaru que vem a ser, justamente, o
primeiro deste conjunto a ser documentado, no ano de 1974. Os cromos referidos a ele estão
guardados em duas cartelas, com um total de quarenta e duas fotos.
Os demais parques da coleção foram fotografados no Estado do Rio de Janeiro. A seguir um
pequeno resumo cronológico da coleção.
Em 1975, Edson Meirelles documentou o Parque Shangai, no bairro da Penha, um dos
mafuás fixos da coleção que existe até os dias de hoje. Da documentação resultaram três cartelas,
totalizando setenta e uma fotos. Em 1976, o fotógrafo realiza uma documentação bastante volumosa
do Parque Santa Cruz, no bairro de mesmo nome do parque, gerando dez cartelas, com um total de
duzentas e quarenta fotos. No ano de 1977, o Parque Estrela em Vila Kosmos, após a visita do
fotógrafo, resultou em muitas fotos para o acervo com oito cartelas preenchidas com cento e
noventa e dois cromos. Em 1978, o Parque da Quinta foi afixado em São Cristóvão e as pinturas
foram prontamente enquadradas por Meirelles que estão alocadas em duas cartelas com quarenta e
duas fotos. No ano de 1979, ele fotografou o Parque Voluntários localizado no bairro de Botafogo,
134
O olhar clínico de Edson Meirelles através da câmera procurou registrar, nesta coleção,
diversos objetos gráficos bi e tridimensionais. Para sistematizá-los organizei alguns tópicos que
possibilitassem estabelecer relações comparativas (sucintas) entre os diferentes enquadramentos dos
parques por meio destes objetos.
Brinquedos
A Roda Gigante
Juliana girando/ Oi girando!
Oi, na roda gigante/ Oi, girando!
Oi, na roda gigante / Oi, girando!
O amigo João...
O sorvete é morango/ É vermelho!
Oi, girando e a rosa! / É vermelha!
Oi, girando, girando/ É vermelha!
Oi, girando, girando
(Gilberto Gil)
a mulher por quem é apaixonado girando inúmeras vezes na roda, aproximando-se do chão e do
céu, aparecendo e desaparecendo. Ao lado da amada está seu amigo João, que não apenas se faz
presente na cena como presenteou a namorada com uma rosa vermelha (símbolo dos enamorados) e
um sorvete também vermelho (que pode ser visto como um índice cromático da paixão do casal). O
sorvete e a rosa afirmam o vínculo entre Juliana e João e completam a infelicidade de José. A rosa e
o sorvete, igualmente, giram na roda gigante que por sua vez, também é vermelha, como indicam os
três últimos versos (indicando a predominância do vermelho na cena). A cor vermelha tinge toda a
narrativa que antecede o crime motivado pelo ciúmes de José que ao verter sangue dos amantes
inaugura o vermelho em uma indicação reativa (violência e morte) àquela expressada pelos
vermelhos que marcam a rosa, o sorvete e a roda (da paixão).
Se a canção de Gilberto Gil apresenta o movimento da roda gigante como um elemento
importante (poético e rítmico) do vínculo do casal, para Edson Meirelles a roda é importante,
sobretudo quando está parada, imóvel. Deste modo a sua câmera pode capturar sua forma, suas
cores, seus detalhes pictóricos, sua tipografia. Assim, fica evidente que o fotógrafo enxerga nos
brinquedos do parque o suporte das pinturas que registra enquanto o parque não está funcionando, e
se, obviamente, a luz do dia estiver adequada e os brinquedos estiverem em uma posição favorável.
Todas as fotos do acervo foram feitas durante o dia, para valorizar as cores dentro do
aproveitamento fotográfico da luz. O horário de funcionamento dos parques de diversão está
relacionado ao cair do sol, pois os brinquedos metálicos já esfriaram e o clima está mais fresco. Este
era justamente o momento em que o fotógrafo estava deixando o parque após ter feito a
documentação, em mais um dia de ―trabalho de formiguinha‖ como define o próprio.
Voltando à roda gigante, gostaria de observar uma sequência de fotos que tem o brinquedo
como foco.
visualizada aqui no registro dos brinquedos dos parques de diversão, pode ser visto como um
procedimento de documentação presente em todas as coleções.
Carrossel
Encontramos aqui nesta imagem uma semelhança assombrosa com a clássica foto de Eugene
Atget que também tem por tema um carrossel vazio. É impressionante que as fotos tiradas em
contextos, locais e épocas tão distintas ressaltam em conjunto um interesse de documentar ―não-
lugares‖ (Augé, 1998), modernos por excelência e completamente vazios.
142
A foto do carrossel tirada em preto e branco não nos possibilita ver a composição de cores
do brinquedo, mas permite perceber uma série de detalhes que aproximam ainda mais as duas
imagens. Tal como no carrossel do parque centenário, o carrossel do parque parisiense é elaborado
através de pinturas manuais com grafismos que se destacam no centro da estrutura circular. Do
mesmo modo, nota-se nos cavalinhos e outros animais o uso de cores distintas e a composição dos
enfeites com tintas variadas. Na foto de Atget, percebe-se também ao fundo do carrossel, um
letreiro pintado à mão que remete claramente ao que Meirelles chamou de arte gráfica popular.
Walter Benjamin aponta as fotos parisienses de Atget como precursoras da fotografia
surrealista, justamente por escolher temas e enquadramentos muito diferentes daqueles utilizados
―pela fotografia convencional, especializada em retratos, durante a época de decadência‖
(Benjamin, 1994: 100). A semelhança entre as fotos e seus temas, permite compreender Atget
também como um precursor do próprio Projeto Mafuá, no sentido em que seus enquadramentos e
temáticas ―surrealistas‖ podem ser reconhecíveis na epistemologia imagética proposta por
Meirelles. Um dos exemplos mais claros desta relação epistêmica está presente na ideia de
―mitopoética‖: um dos grandes temas da produção surrealista e também do próprio Projeto Mafuá.
Ainda que o objetivo de Atget não apresente um recorte específico de fotografar as pinturas,
como ocorre no Projeto Mafuá, outras fotos do francês evidenciam o seu interesse pelas pinturas e
143
gráficas da moderna Paris, do início do século XX. Um exemplo disto é a foto abaixo, em que Atget
retrata a fachada de dois cafés na cidade de Paris, no cruzamento entre as ruas Montaigne Saint
Genevieve e L'École Polynetechnique, exibindo os letreiros com tipografias bem distintas. No
centro da foto há um outdoor que indica duas lojas próximas uma especializada em ―Pinturas e
Decorações‖ (Peitures et Décoration), na Rua Benéveau, e outra de Cores e Vernizes (Colours et
Vernis) na Rua Laplace, como indica a ilustração de uma mão com o dedo indicador apontando o
caminho para as lojas.
Fig. 12 Porta em forma de boca com um guarda enquadrado. Foto: Eugène Atget
145
Na análise dos próximos brinquedos esta relação ―mitopoética‖ entre os dois fotógrafos
ficará mais clara, principalmente quando chegarmos ao trem fantasma.
Não haveria espaço aqui para analisar todos os tipos de brinquedos dos parques
documentados, mas é válido fazer uma passagem rápida pelas fotos de outras atrações.
No Parque Filadélfia, o brinquedo ―Auto Skooter‖, mas conhecido como carrinho bate-bate,
tem pinturas no painel superior com o seu nome do e desenhos dos personagens Disney – o Mickey
Mouse e o Pato Donald – brincando no carrinho. Como se observa na sequência de cromos abaixo,
o painel foi registrado num plano mais aberto (foto centralizada na segunda linha), e os personagens
nos carrinho foram objetos de enquadramentos mais aproximados. Na foto à direita, da primeira
linha, temos a decupagem das pinturas do carrinho do Mickey, que demonstra a busca dos
grafismos ―mínimos‖ dos objetos pelo fotógrafo.
146
Fig. 14. Decupagens das pinturas do brinquedo Auto Skooter. Parque Filadélfia, Teresópolis.
No mesmo parque, próximo ao Auto Skooter, outro brinquedo foi registrado: o ―Trenzinho‖.
No primeiro cromo da primeira linha, pode-se ver o nome do brinquedo em composição com dois
pequenos vagões. No cromo ao lado, apenas o nome do brinquedo foi enquadrado com uma
tipografia que Meirelles qualifica como ―típica de parque de diversões‖, pois estes tipos apresentam
detalhes e enfeites com mais de uma cor. No terceiro cromo, à direita, encontra-se a frente do
―Trenzinho‖ seguida dos vagões coloridos. Atrás deste brinquedo, é possível identificar o ―Auto
Skooter‖ e, ao fundo a ―roda gigante‖ também aparece. Na segunda linha, a foto da esquerda mostra
um enquadramento em perspectiva do trenzinho no trilho. Na foto centralizada, os vagões são
enquadrados de modo que valorizem a forma curvilínea do brinquedo. No último cromo, à direita, o
trenzinho é enquadrado de outro ângulo, que evidencia a cor das hastes que sustentam cada vagão
em relação às próprias cores do brinquedo e a base vermelha da roda gigante.
147
Além das pinturas dos brinquedos, Meirelles registrou a arte gráfica de outras formas de
entretenimentos presentes nos parques como os jogos: tiro ao alvo, tiro de rolha, tiro esportivo,
barracas de prendas, souvenir, etc. Na sequência abaixo, a barraca de ―tiro esportivo‖ é enquadrada
três vezes, numa crescente aproximação dos grafismos. Com a barraca fechada o observador tem
uma visão completa das formas e cores pintadas nela. Quando a barraca está em funcionamento, a
figura do triângulo azul do junto ao fundo branco e amarelo dá lugar ao espaço onde os tiros se
direcionam.
tiverem sucesso no tiro ganham uma prenda. Enfim, os jogos são a parte mais ―agonística‖ do
entretenimento do parque, já que as crianças, como ocorre na maior parte dos jogos, competem
entre si para ver quem acerta o alvo. Nos parques as crianças usam armas, pilotam aviozinhos,
helicópteros, dirigem barcos, carros, caminhõezinhos, enfim vivem as sensações ―maravilhosas‖ e
―desestabilizadoras‖ da modernidade tecnológica num mundo de miniatura ou melhor ―de
brinquedo‖, que aqui não é um substantivo mas um adjetivo. A noção de diversão está associada
com a liberdade das crianças de fazerem nos parques coisas que na vida cotidiana são objetos de
interdições, privações e proibições. No parque, o ―desvio‖ (Goffman, 1984) vira norma.
O último brinquedo tratado aqui, é o barco que se movimenta como um pêndulo
balançando alto para um lado e depois o mesmo para o outro, conhecido mais comumente como
―Barco do Piratas‖. No Parque Finlândia, este brinquedo se assemelha a uma espécie canoa cuja
proa tem uma forma de pássaro. Não é possível saber o nome do brinquedo, neste parque, pelo fato
de não haver nenhuma foto que o registre, como ocorre em outros brinquedos já citados.
Nas duas fotos acima, vê-se o brinquedo-canoa com destaque para proa-pássaro com traços
imponentes, cujas penas são demarcadas com grafismos e cores contrastantes (amarelo e preto) que,
de longe, dão a sensação de serem também ―músculos‖. O bico do pássaro traz uma acentuada
inclinação para baixo que provoca uma imagem de assombro.
Nesta sequência, a foto à esquerda apresenta o brinquedo canoa de um ângulo que exclui a
proa que se encontra mais próxima do local de onde o fotógrafo enquadra o brinquedo. O restante
da canoa é mostrada sem a proa indo até a outra ponta onde vê-se, muito distante, a cabeça do outro
pássaro-proa. No cromo do meio, a proa está enquadrada frontalmente bem de perto de um modo
que o pássaro ganha destaque em relação à canoa, apresentando uma proposta simetricamente
inversa à foto anterior, tirando a proa do enquadramento.
Nesta foto, as hastes de sustentação do brinquedo formam uma espécie de moldura que
ressalta o impacto da imagem do pássaro sombrio com um grande peitoral. Aqui a forma-pássaro
fica mais evidente que a forma-canoa. Na última foto, à direita, o ângulo lateral com a proa volta a
ser explorado pelo fotógrafo, trazendo à tona o contraste da cores do brinquedo, com as cores das
pinturas com a cor do céu ―de brigadeiro‖.
A proa da canoa pode ser considerada um objeto de destaque na literatura antropológica.
Um exemplo notável é a etnografia Os Argonautas do Pacífico Ocidental. O autor, Bronislaw
Malinowski (1978) dedica um capitulo inteiro à produção do objeto mágico, o tabuyo, a tábua de
proa oval que compõe a canoa trobriandesa usada nas expedições marítimas do kula (sistema de
trocas de colares e braceletes).
Alfred Gell reinterpreta a eficácia da proa trobriandesa em um instigante artigo em que se
apropria dos dados etnográficos de Malinowski para demonstrar o conceito de ―tecnologia de
encanto‖. De acordo com Gell:
Há um caso exemplar óbvio que podemos considerar no que diz respeito a uma boa
parcela da arte do mundo existir como meio de controle. Em alguns casos, os objetos de
arte são criados com a intenção explícita de funcionar como armas na batalha
psicológica; como no caso das tábuas de proa das canoas das Ilhas Trobriand –
certamente um exemplo prototípico da arte primitiva advinda de bases antropológicas
prototípicas. A intenção por trás da colocação dessas tábuas de proa nas canoas Kula é a
de fazer com que os parceiros Kula de além mar, das Ilhas Trobriand, que vigiam a
chegada da esquadrilha Kula do litoral norte, abandonem a cautela e ofereçam, aos
membros da expedição, braceletes ou colares mais valiosos do que eles tenderiam,
normalmente, a oferecer. As tábuas são presumivelmente usadas para fascinar quem as
admira e enfraquecer o domínio de si. E elas realmente são fascinantes, especialmente
considerando-as visualmente em relação ao cenário dos arredores que as cercam, ao
qual o melanésio comum é acostumado, que é muito mais uniforme e uníssono que o
nosso próprio. Mas se a desmoralização de um oponente em uma contenda de força de
vontade é a real intenção por trás da tábua da canoa, pode dar o direito de perguntar
como o truque deve funcionar. Por que a visão de certas cores e formas exercem um
efeito desmoralizante em alguém? (Gell, 2005: 46; grifo meu )
A produção das proas trobriandesas têm intencionalidades que Gell busca abordar não
somente como o encanto da tecnologia mas como uma ―tecnologia do encanto‖:
150
Meu argumento aqui pode ser sintetizado através da seguinte formulação: as fotografias de
Meirelles são um modo do fotógrafo etnografar visualmente a ―tecnologia do encanto‖ das pinturas
dos parques de diversão. No tópico seguinte, esta hipótese será explorada mais amplamente.
Na foto à esquerda, a superfície em forma de cone está pintada com figuras geométricas de
várias formas e cores. O cromo seguinte é uma decupagem desta imagem que isola apenas as
figuras azuis sobre o fundo vermelho, demarcados pelas hastes brancas do brinquedo. Na última
foto, vê-se uma decupagem que valoriza a mistura das cores primárias em composição com o
branco. Se na primeira foto a tridimensionalidade fica em evidencia, nas duas últimas fotos, a
decupagem torna as imagens bidimensionais. Pode ser vista a atenção do fotógrafo aos mínimos
detalhes das pinturas.
Na sequência seguinte, vê-se uma pequena amostra dos principais personagens que
aparecem na documentação desta coleção, são eles: os personagens dos desenhos animados e
quadrinhos Disney e os personagens dos quadrinhos brasileiros da Turma da Mônica.
quadrinhos que aparecem nas pinturas dos parques: da branca de neve e dos sete anões (primeira
produção Disney para o cinema), da história do Peter Pan, vários da turma da Luluzinha e super-
heróis.
Como afirmado acima, defendo a hipótese de que a etnografia visual produzida no âmbito
do projeto mafuá toma como tema central, justamente, a produção quase anônima dessa ―tecnologia
do encantamento‖ presente na decoração complexa dos brinquedos dos parques de diversões.
As fotos (da primeira linha da sequência acima) mostram os stands do Parque Voluntários,
alguns abertos e outros fechados, mas todos cobertos de pinturas. As tipografias chamativas usam
duas cores em cada letra que compõem com as cores dos motivos coloridos (estrelas e círculos) que
156
enfeitam os stands. Na segunda linha, o cromo à esquerda mostra as pinturas da bilheteria que
cobrem a placa, a grade e a estrutura do compartimento. O cromo que está no centro indica ao
público: ―acompanhante paga‖. No cromo à direita nota-se, no primeiro plano, a grade pintada e
logo acima a placa com o nome do brinquedo ―Safári‖. No centro da imagem aparece um visitante
do parque, em um dos raros registros do público no parque. As fotos dos visitantes existem, mas são
claramente uma minoria em relação ao material ―não-humano‖ por assim dizer. É relevante dizer,
no entanto, que as pessoas aparecem nas fotos, invariavelmente, em relação às pinturas.
Na foto acima, a pintura no painel de metal aparece no primeiro plano, criando uma
perspectiva, orientada pela presença do menino de suspensório que caminha ao fundo. Atrás do
menino, vê-se parte de um brinquedo pintado com as mesmas cores do painel. Em outro exemplo da
presença humana nas fotos, nota-se o seguinte aviso dentro de uma barraca ou stand de jogo: ―favor
não bater com as armas‖. Nota-se também a presença de uma pintura enunciando uma das regras do
157
Não apenas as regras dos jogos são pintadas à mão, como também informações básicas do
parque são assim produzidas. Abaixo, segue um exemplo da placa de ―funções do parque‖ cuja
tipografia está pintada de vermelho sobre um fundo amarelo.
Outro exemplo são as pinturas que alertam a proibição de fumar dentro dos brinquedos do
mesmo parque.
158
Esta pintura consiste em um exemplo dos tipos de soluções criativas para comunicar as
mensagens de alerta, sobretudo em um espaço no qual circulam diversas crianças que podem não
saber ler palavras, mas sim, imagens. Na segunda linha, o fotógrafo registra diferentes frames das
placas indicativas do banheiro masculino do parque . No mesmo parque, há um enorme painel
amarelo com um pássaro pintado no centro que indica a classificação de idade de um brinquedo:
Fig. 33 Detalhes de superfície com pregos calculadamente pintados no Parque Shangai, RJ.
160
Com estes exemplos das superfícies pintadas e, principalmente, quando contrastados com os
exemplos anteriores de personagens e desenhos, pode-se afirmar que não há na proposta
metodológica de documentação do Projeto Mafuá uma hierarquização dos temas e objetos a serem
documentados. Neste sentido, é possível apreender um dos princípios metodológicos de
documentação das pinturas nos parques de diversão, a saber: aonde há pintura, há documentação,
165
Resta ainda perguntar quem são os produtores destas marcas e matérias de expressão.
O projeto mafuá e todo o esforço de sua produção não pode ser entendido sem ser
relacionado com os pintores de mafuás. De início, é preciso reconhecer que não possuo dados sobre
estes pintores além dos fornecidos pela pesquisa de Meirelles. Neste sentido, assumo o próprio
―desinteresse‖ de Meirelles em realizar pesquisas mais aprofundadas sobre as biografias destes
pintores. Seu interesse era especificamente na produção gráfica dos artistas. Esta ênfase na
produção da arte e não diretamente em seus produtores tem a ver com a própria escolha
epistemológica da antropologia visual feita pelo fotógrafo, que enfatiza o anonimato dos pintores
como forma de inventar uma coletividade.
Em entrevista, Meirelles contou que nos anos iniciais do Projeto Mafuá uma editora se
interessou em publicar parte de sua pesquisa. O problema, segundo Meirelles, era a intenção dos
166
editores de publicar a obra de apenas um pintor, justamente aquele que exercia seu oficio no parque
mais documentado pelo projeto. O fotógrafo recusou prontamente a proposta, assim me explicando
sua decisão:
Peguei um pintor do Parque Centenário de Marechal Hermes e documentei o trabalho dele por
seis meses. Todo domingo eu ia documentar. Chegava lá oito horas da manhã, na hora da função,
e saía às cinco da tarde. Durante seis meses eu documentei o trabalho de um artista. Não é justo.
Este artista não é o projeto. A minha intenção não era pensar e documentar a obra de artistas
populares como uma Djanira ou um Paulo Cesar. Eu queria dar à pesquisa um sentido mais
universal. (Entrevista Meirelles, grifo meu).
O artista popular tem sua criação na coletividade, não se sobressai como indivíduo, não é um
criador individual uma vez que se acha imerso no ambiente cujo comportamento determina seu
espírito criador, coloca-se de acordo com a temática da sua gente; as mãos são do artista, a
criação é da coletividade. (trecho do texto sobre o Mitopoética do Trem Fantasma)
Na etnografia realizada até aqui sobre a coleção Parques de Diversões, fica evidente que os
principais temas são apropriações dos repertórios gráficos da cultura de massas. Ou seja, estão mais
próximos de uma execução individual sobre um tema coletivo. Esta percepção de Meirelles
aproxima-se de elementos de algumas tradições artísticas ameríndias onde o que é valorizado é,
justamente, o virtuosismo presente na execução de um padrão gráfico conhecido coletivamente
(Lagrou, 2009). O exemplo dos personagens Disney, abundantes em todos os parques, ilustra a
escolha por entender o artista popular como um exímio conhecedor e executor que captura imagens
de um repertório gráfico da modernidade.
Isto não impede, no entanto, a criatividade dos pintores. Os temas apropriados pela cultura
de massa passam também por processos de ressignificação, imbuídos de um ―saber local‖ (Geertz,
1999). No Parque Filadélfia, o pintor se apropriou de uma imagem de grande sucesso na televisão
dos anos 1990: o personagem Baby Sauro, do programa norte-americano ―A Família Dinossauro‖.
167
Neste conjunto de fotos, o bebê dinossauro aparece gritando o seu bordão, tal como faz na
TV. No entanto, o pintor traduziu a fala do Baby para uma linguagem local, tipicamente nordestina.
Assim, com este processo de ressignificação o bordão: ―Não é a mamãe!‖, transformou-se em: ―Ocê
não é a mainha‖. Tal exemplo demonstra a inventividade dos pintores em seu tratamento gráfico e
artesanal dos padrões e personagens da cultura de massas. Meirelles não problematiza
especificamente estas adaptações criativas dos pintores em seus textos e também nas entrevistas,
mas percebe-se de modo mais geral uma preocupação em positivar a sensibilidade artística do povo,
haja visto seu interesse em documentar os ―erros‖ ortográficos dos cartazes e placas como uma
forma de arte popular imbuída por saberes locais compartilhados coletivamente.
Esta escolha de tratar a arte destes pintores como algo coletivo não impediu o fotógrafo de
registrar em suas fotos o trabalho individual de cada pintor, documentando inclusive suas
assinaturas quanto estas existiam. Além disto, sempre que possível fotografou os pintores na
execução de seu trabalho.
168
Como mostram as fotos acima, o pintor do Parque Centenário é fotografado ao lado do seu
jovem aprendiz, pintando os detalhes de uma miniatura de igreja. No parque Finlândia, Meirelles
fotografou outro pintor em ação no seu ―atelier ao ar livre‖ (Entrevista, Meirelles).
Fig. 45 Documentação do pintor em ação. Detalhes da mão com o pincel. Parque Finlândia. RJ
169
na maioria dos parques de diversão pintor era parte de staff do parque, acumulando as funções
de eletricista ou mecânico. Os poucos mestres que viviam deste tipo de pintura, eram pintores
caros, inacessíveis para os parquinhos mais humildes. Só os grandes parques tipo o Filadélfia é
que podiam contratar. Por outro lado, acho interessante também o fato de que nem todos os
pintores são mestres, para ser pintor basta ser um cara que ―leva jeito‖.
170
O pesquisador afirmou que fazia anotações numa espécie de caderno de campo, o qual
nunca tive acesso. Ali estariam anotados os nomes e demais informações que não constam na
catalogação do acervo. Quando, durante uma entrevista, o questionei sobre o tipo de pesquisa de
campo que ele realizava com os pintores, ele me respondeu:
Dentro do contexto da pesquisa eu tinha que fazer uma opção. Era muita coisa para documentar.
A visão mais do antropólogo, como você está falando, de sentar com o gravador e fazer um
monte de perguntas, seria moleza, mas eu iria perder o foco do olhar do conjunto da obra que eu
queria documentar, aquilo era mais importante. Minha opção foi sempre pela imagem. Eu não
tive condição de fazer esta parte de entender quem eram os pintores. (Entrevista, Meirelles;
grifo meu).
Nesta passagem, mais uma vez Meirelles declara sua opção por uma antropologia visual
focada na produção de imagens sobre o universo gráfico popular. Outro modo dos pintores
aparecerem indiretamente nas fotos da coleção é através da presença da assinatura do pintor entre as
sequências de cromos, tal como aparece abaixo:
O nome Giovani Roberto vem seguido da indicação de que se trata da assinatura do pintor. A
assinatura é mais um dos elementos de documentação dos parques, mas não há nenhum tipo de
hierarquização entre as pinturas dos grandes mestres e dos pintores que não assinavam seus painéis.
Pode-se extrair destas características do Projeto Mafuá uma preocupação em mostrar que
tais pintura são arte, mais do que provar que os pintores são ―artistas‖, no sentido ocidental do
termo, isto é, no sentido de que são produtores de uma obra única e singular. Nestes termos,
Meirelles pode ser visto como o grande artista do Acervo Mafuá, uma vez que sua obra reuniu um
material inédito e singular sobre algo jamais documentado. Um exaustivo trabalho de ready-made
fotográfico que ao fim levam à assinatura do fotógrafo. Um dado importante que corrobora este fato
171
é que cada foto da coleção possui o nome do fotógrafo e alguns dos seus dados pessoais como
telefone e email. Deste modo, pode-se perceber que a ênfase no anonimato dos pintores deve ser
compreendida em relação à afirmação do fotografo como o grande criador do Projeto Mafuá.
Anteriormente destaquei, a partir da etnografia da coleção Parque de Diversões, dois
princípios norteadores do Projeto Mafuá. Primeiro, o que professa que onde há pintura, há
documentação. E o segundo, como sendo o próprio processo de decupagem dos elementos gráficos
elaborados pelo fotógrafo. Destaco aqui para encerrar este capítulo um terceiro princípio
epistemológico do Projeto Mafuá presente na ideia de ―mitopoética‖. A coleção Parques de
Diversão, tal como analisada aqui, assim como a coleção Mitopoética do Trem Fantasma, tema do
próximo capítulo, são exemplares do conceito de ―mitopoética‖ que acredito perpassar, talvez de
modo não tão evidente, todas as outras coleções.
Aqui estou pensando, precisamente, na (mito)poética dos ―erros linguísticos‖ capturados
pela lente do fotógrafo na coleção da Arte Gráfica Popular Brasileira (Ver Anexo III).
Outro exemplo do caráter mitopoético do Projeto Mafuá estão presentes nos temas bucólicos
pintados nos bares por Nilton Bravo e outros pintores muralistas.
172
Mais uma vez encontro ressonância entre o modo de ser artista concretizado por Meirelles e
a figura do bricoler, na medida em que sua obra consiste em operações de coleta, decupagem,
classificação, montagem e sequenciamento que resultam em um processo de ressignificação dos
objetos gráficos fotografados. A série de operações mencionadas acima, repetidas exaustivamente
por Meirelles durante os longos anos de pesquisa, é que compõem, nos termos de Deleuze &
Guattari, sua ―assinatura‖35. Ou seja, a produção de um estilo próprio cuja operação fundamental é a
apropriação de uma arte não institucionalizada, que poderia ser classificada como de ―domínio
público‖. Uma arte onde o povo não falta, muito diferente da arte burguesa tal como registrada por
Deleuze & Guattari na passagem abaixo:
(...) a relação dos artistas com o povo mudou muito: o artista deixou de ser o Um-só retirado de
si mesmo, mas deixou igualmente de dirigir-se ao povo, de invocar o povo como força
constituída. Nunca ele teve tanta necessidade de um povo, no entanto ele constata no mais alto
grau que falta o povo – o povo é o que mais falta. (Deleuze & Guattari, 1997: 164)
O Projeto Mafuá pode ser pensado, então, como uma reação à constatação de que, na arte
burguesa, ―o povo é o que mais falta‖. As centenas de cartelas preenchidas com cromos
emoldurados de pinturas resultam da contestação ―epistemopolítica‖ (Viveiros de Castro, 2015) de
uma arte identificada como sendo de uma ―ausência latente‖. Como visto até aqui, a mitopoética
dos parques de diversões produzida pela obra imagética de Meirelles afirma a existência de um
acervo que cobre esta lacuna, inventando, assim, uma arte popular e, ao mesmo tempo, uma
assinatura (um estilo) sobre esta arte.
No próximo capítulo, este processo de invenção da arte popular e suas assinaturas e marcas
serão compreendidos através da etnografia das imagens de ―alteridade radical‖ presentes na
coleção Mitopoética do Trem Fantasma.
35
―O que uma matéria faz como matéria de expressão? Ela é primeiramente cartaz ou placa, mas não fica por ai. Ela
passa por aí, e é só. Mas a assinatura vai tornar-se estilo‖ (Deleuze & Guattari, 1997: 124)
174
Capítulo 5
Mitopoética
do Trem Fantasma
instalaram, gera uma obra múltipla de estilos, porém unida na riqueza da expressão
plástica, onde o pintor comumente amplia o espaço e a imaginação.
Com esta passagem de Segato, pode-se dizer que o sofrimento das mulheres
pintadas nos painéis é uma imagem complexa que explicita uma relação de
dominação. Estas imagens são índices de atos violentos contra mulher que remontam
36
Denomina-se "ficção dominante" o entendimento dos papéis de gênero em uma ―cena originária
como uma verossimilhança do que acontece, de fato, na estrutura que organiza as relações desta cena e
que se encontra, ao mesmo tempo, oculta e revelada por elas‖ (Kaja Sirverman apud Segato, 1998).
178
37
―O confinamento compulsivo do espaço doméstico e das suas habitantes, as mulheres, como
resguardo do privado tem consequências terríveis no que respeita à violência que as vitimiza. É
indispensável compreender que essas consequências são plenamente modernas e produto da
modernidade, recordando que o processo de modernização em permanente expansão é também um
processo de colonização em permanente curso. Assim como as características do crime de genocídio
são, por sua racionalidade e sistematicidade, originárias dos tempos modernos, os feminicídios, como
práticas quase mecânicas de extermínio das mulheres são também uma invenção moderna. É a barbárie
da colonial / modernidade mencionada anteriormente. Sua impunidade, como tentei argumentar em
outro lugar, encontra-se vinculada à privatização do espaço doméstico, como espaço residual, não
incluído na esfera das questões maiores, consideradas de interesse público geral (Segato, 2011).‖
(Segato, 2012: 121).
179
que o público saiba que aquele é apenas um ―brinquedo‖ do parque, com cenários e
personagens monstruosos, não deixa de ser afetado pela ―agência‖ que provoca medo,
horror e susto. Roland Barthes (1990) observa o teatro como uma prática ―que calcula
o lugar olhado das coisas‖. Podemos dizer o mesmo deste tipo de entretenimento dos
parques, na medida em que o trem fantasma é eficaz quando ele consegue
efetivamente afetar o público, ou seja, quando as pessoas são capturadas pelas
―armadilhas‖ (Gell, 1999) de terror previamente elaboradas.
Com o perdão do(a) leitor(a) pela longa citação, considero importante iluminar
algumas questões mencionadas acima que recaem na onto-cosmologia do terror
abordada neste capítulo. As críticas feitas à Borges, no primeiro livro por não ter
186
Os trens fantasmas
187
Fig. 08. Decupagem das três cabeças de mulheres perfuradas por estacas. Parque Centenário. RJ
Fig. 09. Foto do altar das cabeças do bando de Lampião e Maria Bonita. Autor Anônimo.
cangaceiros, da polícia volante, duas pestes que nos assolavam. E contei de uma
noite, após a ceia, em que atraído pelos foguetes saí à calçada e vi os caminhões,
as cabeças cortadas espetadas em estacas, de Lampião, Maria Bonita e mais dez
outros, os soldados empunhando archotes, gritando vitoriosos, um cortejo
macabro pelas ruas de Maceió. Sonhos assombrados, semanas de pesadelo
(Ramos, 2014: 03)
Celebrado com fogos e gritos de vitória, o efeito de tal ―cortejo macabro‖ dos
volantes conduzido em torno do artefato de cabeças cortadas é certamente intimidador
e aterrorizante. A lei expressa em um ritual ―macabro‖ produz imagens que
transformam em pesadelos. A exemplo deste evento histórico de punição exemplar
descrito a partir de uma memória infantil pode-se extrair uma semelhança com o
terror provocado nas crianças que visitam o parque ao verem as cabeças de mulheres
degoladas pelo lobisomem. A narrativa mítica que se produz no painel do trem
fantasma faz o espectador compreender qual será o destino da mulher de vermelho
recém capturada pelo lobisomem de paletó.
Neste painel, quatro diferentes lobisomens são apresentados, apenas um deles
estando morto, em contraposição a uma mulher desacordada e três cabeças degoladas.
Fica evidente a contraposição dos personagens masculinos como os carrascos das
vítimas femininas. Na matemática dos corpos do painel, apenas um lobisomem está
liquidado, embora não mutilado, enquanto todas as mulheres se encontram
dominadas. Ainda que a mulher de vermelho não esteja morta, encontra-se
desacordada, sem oferecer resistência.
Outro aspecto da narrativa é a própria relação de predação entre o lobisomem
e mulheres que são as presas por excelência destas feras quiméricas. No entanto, um
último elemento do quadro pode ser pensado sobre o mito do lobisomem pintado
neste painel. No centro da imagem, acima do lobisomem maior, há uma coruja
pousada num galho de arvore e atrás dela vemos uma enorme lua cheia cujo aspecto
se assemelha também a um grande olho (como os da coruja). Além de uma relação
metonímica entre a coruja com a lua (ambos os signos noturnos), há uma imagem que
apenas os olhar mais atentos percebem. A decupagem feita nas fotos de Meirelles foi
o que de fato me fez notar, o outro personagem do painel que eu não tinha visto
quando olhei o painel como um todo.
192
Fig. 10. Detalhes do painel dos Lobisomens. Lua engolindo homem. Parque Centenário. RJ
Fig. 11 Painéis do Trem Fantasma com personagens de terror. Parque da Quinta. RJ.
193
Fig. 22. Decupagens do painel: Boca de fera, cabeça humana servida no prato, mulher flechada no
peito, e diabo, Parque Centenário. RJ.
200
Fig. 23 Decupagens dos painéis de trem fantasma. Drácula e Lobisomem. Parque da Quinta. RJ.
38
―Até a metade do século XVIII, havia um estatuto criminal da monstruosidade, no que ela era
transgressão de todo um sistema de leis, quer sejam leis naturais, quer sejam leis jurídicas. Portanto, era
a monstruosidade que, em si própria, era criminosa‖ (Foucault, 1999: 69).
201
Fig. 24. Decupagem do Rosto da personagem Honga, a mulher que vira macaco. RJ
202
A humanidade é desumana.
(Renato Russo)
***
Nos cromos acima, fica mais evidente a extensão do painel composta por três
partes de um mesmo cenário: 1) à direita, a figura da mulher (a metade humana), 2) ao
centro, paira a paisagem com árvores, espécies vegetais e animais, e finalmente, 3) à
esquerda, está disposta a imagem da fera (metade animal): um enorme gorila. A
divisão que se interpõe entre as imagens da mulher e da fera (dispostas nos extremos
do painel) é a paisagem que retrata a fauna e a flora, uma imagem que de acordo com
o pensamento ocidental seria entendida como ―natureza‖.
Seguindo a ordem na qual as fotos do enorme painel foram dispostas nas
cartelas do acervo, analiso as decupagens que permitem a visualização dos detalhes
das pinturas do painel. A primeira personagem a ser decupada é a mulher cuja pintura
encontra-se à direita do painel, próxima a bilheteria.
205
39
Ainda que a estampa de ―oncinha‖ tenha se popularizado no mundo da moda, no painel a aparência é
mais de uma tanga feita com ―pele de onça‖.
206
dos gorilas de bater no peito enquanto gritam para afugentar o inimigo 40. A altura do
gorila fica evidente na pintura por estar próxima à copa da árvore que aparece atrás da
fera. Outro animal que aparece na cena é uma serpente enroscada da árvore. A
imagem da serpente na árvore remete ao mito cristão do criacionismo. A serpente e a
mulher neste mito estabelecem uma ―aliança demoníaca‖ que, por ―contágio‖, afeta
também o homem, Adão. O homem e a mulher sagrados que viviam no paraíso, ao
desobedecerem a Deus por influência ―demoníaca‖ da serpente, transformam-se em
seres mundanos passíveis de serem ―contagiados‖ pelas bestas, diabos e demais
monstros. O pecado original incide na concepção ―anômala‖ da mulher no
cristianismo, que cede ao demônio e prova o fruto proibido. Nos cromos da segunda
linha, apresentam outras decupagens do mesmo painel.
***
A outra atração do tipo ―mulher que vira macaco‖ documentada por Meirelles
é denominada Honga. Os painéis do espetáculo foram fotografados 23 anos depois da
Fera Humana, em Piratininga, na cidade de Niterói, no ano de 1999. Nas pinturas da
Honga, observa-se, ao mesmo tempo, traços semelhantes e diferente em relação aos
painéis da Fera Humana.
40
Este gesto-sonoro do gorila foi bastante espetacularizado no célebre filme King-Kong.
211
41
Neste espetáculo da Honga, a cartela 1 não estava no acervo, deste modo, não é possível identificar
o ―contexto‖das pinturas, nem se há decupagens específicas do gorila, já que Meirelles em geral
iniciava a documentação a partir do sentido de leitura ―ocidental‖ das imagens, isto é, da esquerda para
à direita.
213
Nas fotos acima, encontra-se o ônibus com pinturas em cada um de seus lados.
Na ocasião das realizações das fotos de Meirelles o ônibus estava justamente sendo
pintado pelo líder da trupe: o pintor. Sua esposa era a personagem principal da
atração: a noiva do Drácula.
216
Fig. 39 Fotos das pinturas do ônibus, do pintor em ação e de sua trupe-famíla. RJ.
Dentre tais espetáculos de mulheres que viram bicho, Dawsey assistiu junto
com grupo de visitantes do Jardim das Flores, aquele que performática a
transformação da mulher em lobisomem. Em tal transformação a mulher não apenas
de vira animal, mas metamorfoseia-se em monstro-quimérico, evidenciando ainda
mais a metamorfose ―transgênero‖. Afinal, não há uma versão feminina do
personagem do lobisomem, como há, por exemplo, do vampiro, visto no espetáculo
Vamp.
É interessante notar que uma performance de um homem que vira lobisomem
seria uma transformação comum, que já está explicitada nas narrativas orais, nos
mitos, nas imagens e rituais que compõem a mitopóetica do lobisomem. Entretanto,
nos espetáculos é sempre a mulher a escolhida como protagonista do processo ritual
de metamorfose. É ela o objeto da espetacularização.
Dawsey descreve a sua experiência como espectador tomando como referência
o instrumental desenvolvido por Richard Schechner que utiliza a estética japonesa do
―jo-ha-kyu‖ (jo = retenção, ha = ruptura, kyu = velocidade)‖ para analisar a
performance ou ritual, tal como Victor Turner fez com o drama social, através do
forma estética da tragédia grega (idem). Segue a descrição do espetáculo feita por
Dawsey:
Uma moça aparentemente frágil e serena é introduzida em uma jaula. Entre
estrondos e lampejos, com sinais de inervação corporal, ela agarra as barras de
ferro. Configura-se um estado de retenção de forças (jo). Rompe-se a jaula (ha).
Em velocidade (kyu), a mulher-lobisomem salta em meio aos espectadores,
grunhindo, avançando e ameaçando, até ser novamente retida (jo). Chama a
atenção o modo com que as duas experiências que envolvem a santa e a mulher-
lobisomem se articulam. Se a passagem pela santa, a descida para a sala dos
milagres, a ascensão – subindo ladeira, até a velha e pequena igreja no alto de
Aparecida – podem produzir estados de transe, a mulher-lobisomem pode
provocar, entre o riso, o susto e a inervação corporal, um efeito de interrupção.
(2006: 140-141)
222
Fica evidente nesta passagem de grande valor etnográfico para análise aqui
desenvolvida que os excursionistas ao voltarem da peregrinação demonstravam ter
mais vivas em sua memória não as imagens ―normatizadas‖ da santa, mas sim, justo
àquelas vividas em um contexto contra-intuitivo de comunicação. Contrariando as
expectativas do etnógrafo, ―o auge da visita‖ (no sentido do que mais marcou os
peregrinos) não foram as imagens produzidas pelas experiências religiosas, mas sim, a
vivência de uma transformação quimérica que condensa, como visto até aqui, uma
série de conotações contraditórias, colocando em questão as definições ocidentais do
que é ser mulher, ser monstro, ser animal, ser homem, ser transgênero, ser trans-
específico.
A experiência de vivenciar estas imagens ―carregadas‖ é, para Severi, uma das
formas de produzir memória em seu sentido imagético:
Existem pelo menos dois modos de construir memórias sociais: um opera através
da narração (e renovação contínua) de uma série de histórias; o outro, sempre
vinculado à elaboração da memória ritual, tende a criar um número relativamente
estável de imagens cada vez mais complexas, cada vez mais ―carregadas‖ de
significados e cada vez mais persistentes ao longo do tempo. (...) Antes de mais
nada, essas imagens são sempre construídas em um contexto ritual (Severi,
2000:148).
proposta por Lévi-Strauss demonstrando que ela é muito mais complexa do que a
mera encenação do mito. No entanto, não há como deixar de notar que derivam do
mito e do rito as duas formas de perpetuação da memória apontadas acima por Severi.
Retomar essa definição levistraussiana, desenvolvida por Severi, permite pensar na
ideia de uma ―rito-poética‖, exemplificada etnograficamente, aqui, pelo espetáculo
das mulheres que viram bicho com todas as implicações e questões sociais, culturais e
―cosmo‖ políticas que tal espetáculo engendra.
Deste modo, pode-se dizer que as pinturas dos painéis destes espetáculos
ganham em potência analítica quando entendidos através desta moldura ritual. Ou
seja, seu aspecto que em um primeiro momento parece ser apenas narrativo, quer
dizer ―mítico‖, ou mitopoético, se complexifica quando pensado também nos termos
do ritual que tais pinturas ilustram. O ritual é a presentificação das pinturas, e o
espectador observa estas imagens carregadas já presentes nos painéis. Essa conclusão
permite dizer, que por trás de toda mitopoética há também uma ―ritopoética‖.
Neste ponto, gostaria de estender esta moldura ritual como uma forma de
compreender toda a diversidade presente nos painéis de parques de diversões.
Retomando assim as questões colocadas no capítulo 4 sobre o contexto
―carnavalizante‖ do parque de diversões, pode-se facilmente entender que a
experiência da ―diversão‖ é vivenciada em contextos contra-intuitivos de subversão
da ordem social. Os parques, como foi demonstrando, exaltam a partir de seus
brinquedos a ruptura de regras, leis e normas geralmente seguidas socialmente. Foi
visto também que os personagens que enfeitam os brinquedos compondo uma
mitopoética são parte de uma experiência desta atmosfera ritual que preenche a
vivência de se adentrar em um parque de diversão. A ideia aqui é chamar atenção não
apenas para a mitopoética presente nos inúmeros desenhos e pinturas dos brinquedos,
mas também para a 'ritopoética' deste ―contexto contra-intuitivo de comunicação‖ que
são os parques de diversão e os espetáculos de ilusionismo. Trata-se por fim de
perceber que com esta nova dimensão ritual, ou ritopoética, estas imagens tornam-se
muito mais potentes e agentivas para os visitantes dos parques de diversão.
224
Fig. 43 Detalhe de painel. Mulher-passáro e mulher jacaré sendo atacadas por lobo.
225
Conclusão
O Acervo Mafuá Hoje
(Manuel Bandeira)
226
42
Poderia citar, aqui, diversos exemplos de viagens e pesquisas inspiradas pelas Missões Etnográficas
de 1938 ou por outras iniciativas do ―Múltimário‖ (Carnicel, 2005: 170), mas vou me contentar apenas
com alguns destes exemplos. Nos anos 1940, as viagens de Luiz Heitor Corrêia de Azevedo refizeram
percursos e renderam diversas gravações musicais (Mendonça, 2007); nos anos 1960, a atuação de Lina
Bo Bardi na criação do Museu de Arte Moderna da Bahia; nos anos 1970, tanto a postura institucional
de Aluísio Magalhães frente ao Serviço de Patrimônio Artístico Nacional, quanto as produções do selo
independente Discos Marcus Pereira; nos anos 1990, o projeto Música do Brasil coordenado por
Hermano Vianna; nos anos 2000, o projeto Responde à Roda coordenado por Carlos Sandroni, cuja
equipe refez os trajetos da Missão de 1938 em Pernambuco e Paraíba; Amarildo Carnicel que refez os
trajetos fotográficos de O Turista Aprendiz, em que Mário de Andrade descreve suas viagens ao
Nordeste (Carnicel, 2005). Este mesmo livro serviu de referência para o grupo musical A Barca realizar
suas expedições pelo Brasil no premiado Projeto Turista Aprendiz (ver: http://www.barca.com.br/).
228
Para encerrar esta tese, é necessário dizer ainda que, para Meirelles, a primeira
grande lacuna de sua pesquisa consiste na não-concretização do livro, que reuniria o
conjunto de objetos gráficos presentes no acervo Mafuá. Nas palavras do fotógrafo: ―a
230
minha maior frustração é o fato de não ter salvado este projeto em livro‖. Segundo
Sontag, o objeto livro foi, durante muitas décadas,
o mais influente meio de organizar (e, em geral miniaturizar) fotos, assegurando
desse modo sua longevidade, se não sua imortalidade (…). A foto em um livro é
obviamente, a imagem de uma imagem. Mas como é, antes de tudo, um objeto
impresso, plano, uma foto, quando reproduzida em um livro, perde muito menos
de sua característica essencial do que ocorre com a pintura. (Sontag, 2004: 15)
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241
ANEXO I
LISTA DE EXPOSIÇÕES DE FOTOS DE EDSON MEIRELLES,
EXCLUSIVAMENTE, DO ACERVO MAFUÁ.
2000. Arte Gráfica Popular Brasileira. Balaio Brasil. SESC São Paulo. (De
agosto a dezembro de 2000).
2001. Arte Gráfica Popular Brasileira. SESC Araraquara (de 19/06 a 9/07 de
2001).
2004. Tipografia popular. Tudo é Brasil. Paço Imperial, RJ. (de 04/08 a
10/10/2004).
ANEXO II
CATALOGAÇÃO DA COLEÇÃO PARQUE DE DIVERSÕES
ANEXO III
ANEXO IV
CATALOGAÇÃO DA COLEÇÃO MITOPOÉTICA DO TREM FANTASMA
ANEXO V
LISTA DE FIGURAS
Introdução / Capítulo 1
Número Legenda Local Autor Página
da
Figura
01 Pintor abrindo letra no muro Madureira, Rio de Edson I
(Capa da tese) Janeiro. Meirelles
02 Pintura na parede Proibido São Paulo. Edson 15
estacionar Meirelles
03 Grafismos do Parque Estrela Rio de Janeiro. Edson 33
Meirelles
04 Cartela da Coleção Arte Rio de Janeiro. Suiá Omim 36
Gráfica Popular Brasileira
05 Pintura em carrocinha Niterói, RJ. Edson 37
ambulante Meirelles
06 Pintura de anúncios em São Paulo. Edson 37
muro. Meirelles
07 Pintor e placa de anúncio. São Paulo. Edson 38
Meirelles
08 Pinturas em muro. Bom Despacho, Edson 38
MG. Meirelles
09 Pintura em fachada de casas Bom Despacho, Edson 39
comerciais. MG Meirelles
10 Pintura em fachada de Bom Despacho, Edson 39
sorveteria. MG Meirelles
11 Pintura de espiga de milho. Conselheiro Edson 40
Lafaiete, MG. Meirelles
12 Pintura em fachada de casa Florianópolis, SC. Edson 40
comercial. Meirelles
13 Pintura em fachada de casa Joinville, SC. Edson 41
comercial. Meirelles
14 Pintura em fachada de casa Laguna, SC. Edson 41
comercial. Meirelles
15 Escritos pintados na parede Santa Teresa, RJ. Edson 42
247
do bonde. Meirelles
16 Pinturas do Profeta Gentileza Rio de Janeiro. Edson 43
Meirelles
17 Pinturas do Profeta Gentileza Rio de Janeiro. Edson 43
Meirelles
18 Cartela da Coleção da Rio de Janeiro. Suiá Omim 44
Tipografia Popular Brasileira
19 Gaveta da Coleção da Rio de Janeiro. Suiá Omim 45
Tipografia Popular Brasileira
20 Cartela da letra T. Rio de Janeiro. Suiá Omim 45
21 Cartela da letra S. Rio de Janeiro. Edson 46
Meirelles
22 Cartela da letra A. Rio de Janeiro. Edson 47
Meirelles
23 Cartela da letra T. Rio de Janeiro. Edson 48
Meirelles
24 Letra K. Rio de Janeiro. Edson 48
Meirelles
25 Cartela da Coleção Rio de Janeiro. Suiá Omim 49
Mitopoética do Trem
Fantasma.
26 Pintura de painel de trem Cabo Frio, RJ Edson 50
fantasma Meirelles
27 Pintura de painel de trem Cabo Frio, RJ Edson 50
fantasma Meirelles
28 Pintura de painel de trem Cabo Frio, RJ Edson 50
fantasma Meirelles
29 Decupagens de painel de Rio de Janeiro. Edson 51
trem fantasma Meirelles
30 Decupagens de painel de Rio de Janeiro. Edson 52
trem fantasma Meirelles
31 Decupagens de painel de Rio de Janeiro. Edson 52
trem fantasma Meirelles
32 Decupagens de painel de Cabo Frio, RJ Edson 53
trem fantasma Meirelles
33 Detalhe de painel de trem Marechal Hermes, Edson 54
fantasma Rio de Janeiro. Meirelles
34 Detalhe de pintura feita em Piratininga, Edson 55
ônibus de espetáculo de Niterói. Meirelles
ilusionismo.
248
Capítulo 2
Número Legenda Local Autor Página
da
Figura
01 Auto-retrato de Edson Rio de Janeiro Edson 63
Meirelles ao lado de um Meirelles
painel de pintura popular.
Capítulo 3
Número Legenda Local Autor Página
da
Figura
01 Pintura de Yemanjá Indefinido Edson 89
Meirelles
02 Pinturas da bilheteria de Botafogo, Rio de Edson 94
parque de diversões Janeiro. Meirelles
249
Capítulo 4
Número Legenda Local Autor Página
da
Figura
01 Detalhe de grafismos e Parque Finlândia, Edson 129
pintura de barcos. Niterói. Meirelles
02 Rasuras na pintura de Jacarepaguá, Rio Edson 132
brinquedo do Parque de Janeiro. Meirelles
Centenário.
03 Rasuras e inscrições em Caruaru, PE. Edson 133
pintura do Parque Celina. Meirelles
04 Cartelas com os dados de Rio de Janeiro. Suiá Omim 134
catalogação do Parque Celina
05 Roda Gigante do Parque Marechal Hermes, Edson 138
Centenário. RJ. Meirelles
06 Detalhe da cadeira da roda Marechal Hermes, Edson 140
gigante do Parque RJ. Meirelles
Centenário.
07 Pinturas do Brinquedo Tapete Parque Shangai, Edson 141
Mágico. Enquadramentos do Penha, RJ. Meirelles
personagem Fantasma e
detalhes de seu cinto.
08 Carrossel do Parque Marechal Hermes, Edson 142
Centenário. RJ. Meirelles
09 Carrossel parisiense. Paris, França. Eugène 143
Atget
10 Letreiros da Rua Montaing Paris, França. Eugène 144
Saint Genevieve. Atget
11 Ruela parisiense repleta de Paris, França. Eugène 145
cartazes. Atget
12 Porta em forma de boca com Paris, França. Eugène 145
guarda enquadrado. Atget
13 Carrossel Parque Finlândia. Niterói, RJ. Edson 146
Detalhes da pintura da sela Meirelles
do cavalo.
14 Decupagens das pinturas do Parque Filadélfia, Edson 147
brinquedo Auto-Skooter. Teresópolis, RJ. Meirelles
15 Trenzinho do Parque Teresópolis, RJ. Edson 148
Filadélfia. Meirelles
250
RJ. Meirelles
49 Enquadramentos de um Rio de Janeiro. Edson 173
painel de Nilton Bravo. Meirelles
50 Tipografias variadas da letra Rio de Janeiro. Edson 173
A Meirelles
Capítulo 5
Número Legenda Local Autor Página
da
Figura
01 Pintura do trem fantasma Parque Edson 174
(capa). Centenário, Meirelles
Rio de Janeiro.
02 A atração Fera Humana ao Parque Edson 181
lado do Carrossel. Centenário, Meirelles
Rio de Janeiro.
03 Cartela Parques Diversos n. 2 Parque Shangai. Suiá Omim 182
Rio de Janeiro.
04 Painel Fantástico dos Trem Fantasma do Edson 188
Lobisomens. Parque Meirelles
Centenário,
Rio de Janeiro.
05 Decupagens do painel do Trem Fantasma do Edson 189
lobisomem. Parque Meirelles
Centenário, Rio de
Janeiro.
06 Decupagens do painel do Trem Fantasma do Edson 190
lobisomem de calça jeans. Parque Meirelles
Centenário, Rio de
Janeiro.
07 Decupagens do painel de Trem Fantasma do Edson 190
lobisomens. Parque Meirelles
Centenário, Rio de
Janeiro.
08 Decupagem das três cabeças Trem Fantasma do Edson 191
de mulheres perfuradas por Parque Meirelles
estacas. Centenário, Rio de
Janeiro.
09 Foto do altar das cabeças do Indefinido. Autor 192
253