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Miopatias e Anestesia

Chapter · October 2015

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Carlos Darcy Alves Bersot Ana Karla Arraes


Rio de Janeiro State University Universidade de Pernambuco
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Heber Penna
Clinica de Anestesia
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Capítulo 05

Miopatias e Anestesia
Ana Karla Arraes von Sohsten
Heber de Moraes Penna
Carlos Darcy Alves Bersot
Miopatias e Anestesia

Introdução
Miopatias são desordens estruturais e/ou funcionais dos músculos esqueléticos, resul-
tantes de uma variedade de etiologias. Anormalidades na estrutura ou no metabolismo da
célula muscular que levam a vários padrões de fraqueza muscular e, consequentemente, de
manifestações clínicas.
As miopatias devem ser diferenciadas das doenças do neurônio motor, das neuropa-
tias periféricas e das doenças da junção neuromuscular. Apesar de terem baixa preva-
lência na população em geral, podem levar a graves complicações durante procedimen-
tos anestésicos, como hipertermia maligna, rabdomiólise, crises miotônicas e piora da
função respiratória1.
As miopatias podem ser classificadas em duas categorias principais: hereditárias ou
adquiridas. O curso temporal, o padrão da fraqueza muscular e a ausência ou presença de
história familiar de miopatia ajudam a distinguir entre os dois tipos. O início dos sintomas
em idade precoce associado à longa duração da doença sugere o diagnóstico de miopatia
hereditária, enquanto um início súbito ou subagudo dos sintomas e em idade mais tardia su-
gere miopatia adquirida. As duas categorias apresentam ainda subclassificações, conforme
o Quadro 12 .

Quadro 1 - Classificação das miopatias


Miopatias congênitas
Distrofias musculares
Miopatias hereditárias Canalopatias
Miopatias metabólicas primárias
Miopatias mitocondriais
Miopatias inflamatórias
Miopatias adquiridas Miopatias tóxicas e induzidas por drogas
Miopatias associadas a doenças sistêmicas e infecciosas

Quadro clínico e diagnósticos gerais


A maioria das desordens musculares produz fraqueza e atrofia muscular, especialmente
da musculatura proximal, afetando, em menor grau de intensidade, os grupos musculares
distais. Algumas miopatias, como as distrofias musculares, desenvolvem-se precocemente;
outras, mais tardiamente. Algumas pioram progressivamente sem boa resposta ao trata-
mento; outras são tratáveis e permanecem estáveis ao longo dos anos.
O diagnóstico das desordens musculares é baseado em um tripé investigativo: dosagem
de enzimas específicas; estudos eletrofisiológicos e biópsia muscular, mas sempre precedido
de um exame neurológico completo e cuidadoso. Os dois primeiros exames são vistos como
procedimentos screening e o último, como definitivo, fornecendo, na grande maioria, um
diagnóstico mais exato e definitivo. Todos têm falhas e limitações e devem ser analisados

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em conjunto com o quadro clínico e outros exames complementares específicos para cada
tipo de miopatia3. É frequente a necessidade de aconselhamento genético familiar.

Miopatias Hereditárias
Distrofias Musculares e Miopatias Congênitas
As distrofias musculares envolvem um grupo diverso de doenças, com herança genética,
caracterizadas por fraqueza muscular progressiva e degeneração muscular. Os músculos
envolvidos variam de acordo com o tipo de distrofia (Quadro 2)4,5.

Quadro 2 – Músculos envolvidos nas diversas distrofias


Tipo Músculos Envolvidos

Distrofia muscular de Becker Inicialmente, tronco e membros inferiores


Distrofia muscular de Duchenne Na fase avançada, toda a musculatura estriada

Distrofia muscular de Emery-Dreifuss Ombros, membros superiores e tornozelos

Distrofia muscular distal Mãos, antebraços e pernas

Face, ombros, membros superiores e, ocasionalmente,


Distrofia muscular facioescapuloumeral
membros inferiores

Distrofia muscular de cintura e membros Ombros e cintura pélvica

Distrofia muscular miotônica Face, mãos, pés e pescoço

Distrofia muscular oculofaringeana Pálpebras e faringe

A distrofia muscular de Duchenne (DMD) e a distrofia de Becker (DB) figuram entre


as mais prevalentes, ocorrendo por anormalidades ligadas ao cromossoma X em caráter re-
cessivo. O defeito genético inibe a produção normal de distrofina, proteína estabilizadora
muscular, essencial para manter a integridade do sarcolema, que, uma vez rompido, leva ao
aparecimento clínico da patologia. A DMD tem incidência de 30 casos para 100.000 nasci-
dos vivos e a DB, de 3-6 por 100.000 nascimentos de homens6.
O início dos sintomas na DMD ocorre na primeira infância como fraqueza muscular
e retardo do desenvolvimento motor. O atraso na deambulação até por volta dos 15
meses de vida pode ser o primeiro sinal. Seguem fraqueza progressiva dos membros
inferiores, pseudo-hipertrofia das panturrilhas e significativo aumento de CPK. Prati-
camente todos os pacientes são sintomáticos aos 5 anos. A atrofia muscular progressiva
e severa leva à perda da capacidade de deambular em torno dos 14 anos. Na DB, pela
perda da distrofina ser parcial, os sintomas se iniciam na adolescência ou na fase adulta
e têm evolução mais lenta. Nas duas, nas fases mais evolutivas, ocorrem cardiomiopatia,
arritmia cardíaca e falência respiratória com impossibilidade de desmame ventilatório.
A avaliação pré-operatória deve incluir provas de função pulmonar e rigorosa investiga-
ção do sistema cardiovascular 6,7.

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Por serem mais prevalentes, o registro de anestesias em portadores de DMD e DB tam-
bém é maior. As complicações anestésicas relatadas nesses pacientes podem ser divididas
em quatro grupos de manifestações:
1. Falência cardíaca intraoperatória;
2. Rabdomiólise e parada cardíaca por hipercalemia sem administração de succinilcolina;
3. Hipecalemia e parada cardíaca após o uso de succinilcolina;
4. Síndrome de Hipertermia Maligna (HM).
Os relatos de comprometimento cardiovascular grave foram, em sua maioria, de pacien-
tes submetidos à cirurgia de coluna, em que a causa pode ser atribuída a grandes perdas
sanguíneas ou à disfunção miocárdica previamente existente.
Em pacientes com DMD, as rabdomiólises na ausência de succinilcolina foram observa-
das durante exposição mínima na indução da anestesia e com uso de halotano. Os níveis de
potássio chegaram a 8 mEq/l. Dantrolene foi utilizado empiricamente após documentação
de acidose metabólica e respiratória, sem a presença de febre ou com discreto aumento de
temperatura. Relatos no período de pós-operatório foram confirmados quando do em-
prego de halotano, isoflurano e sevoflurano, tendo sido a evolução desfavorável na metade
dos casos. Há registros de casos semelhantes em portadores de DB em que o dantrolene
foi empregado; porém, sintomas de hipermetabolismo que precedessem a rabdomiólise e a
hipercalemia não ocorreram.
Nas evidências de rabdomiólise e parada cardíaca após succinilcolina, a maioria não
apresentava diagnóstico de miopatia por ocasião do evento, sendo investigado e firmado
secundariamente ao quadro. A mortalidade foi de 30%. Considerando a possibilidade de
anestesia em pacientes sem suspeição de miopatias, o uso da succinilcolina deve se limitar
a situações extremas, em que outras alternativas não estejam disponíveis para acessar as
vias aéreas6.
Casos suspeitos de hipertermia maligna têm sido reportados na DMD e na DB. Pacientes
com DMD desenvolveram febre inexplicada e taquicardia com o uso de halotano e outros
tiveram rabdomiólise sem hipercalemia. Na maioria dos casos, já havia diagnóstico prévio
de miopatia. A dificuldade em se estabelecer a verdadeira correlação entre as distrofias e
hipertermia maligna reside no fato de que as rabdomiólises e os quadros associados com-
partilham muitos sintomas de uma verdadeira crise de hipertermia maligna, e até mesmo os
quadros de hipertermia maligna são bastante variáveis; rabdomiólise e acidose lática podem
não existir8.
Parece não haver confirmação genética entre DMD e HM porque a mutação genética
da DMD encontra-se ligada ao cromossomo X, enquanto na HM está usualmente locada
no cromossomo 19. A existência da demonstração de testes positivos à contratura cafeína/
halotano em portadores de distrofia tem sido questionada; uma vez que já existe alteração
intrínseca do músculo distrófico, tornando-o mais sensível ao teste9.
A real preocupação da não utilização de agentes voláteis e succinilcolina em portadores
de distrofia talvez seja a prevenção da ocorrência de rabdomiólise e/ou hipercalemia, e não
a possibilidade de desencadear crise de hipertermia maligna.

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Está bem estabelecido que mutações no gene do receptor de ryanodina (RYR1) estão
associadas à suscetibilidade para HM9-11. Dessa forma, algumas miopatias congênitas, em
que as mutações genéticas também se localizam nesse mesmo gene, estão predispostas a
desenvolver crise de HM quando expostas aos agentes desencadeantes. A doença do núcleo
central (central core disease), a multiminicore disease e a miopatia por desproporção do
tipo de fibra encontram-se nesse grupo12,13.
A central core disease constitui uma rara miopatia hereditária autossômica dominante
que apresenta, histologicamente, núcleos centrais no interior da fibra muscular, preferen-
cialmente nas fibras do tipo I. A multiminicore disease é transmitida de forma autossômica
recessiva, apresenta grave comprometimento da musculatura axial e não há atividade enzi-
mática oxidativa do núcleo da fibra muscular em estudos histoquímicos14.
Ainda sabidamente associada à HM temos a síndrome de King-Denborough e a mio-
patia de Evans11. A síndrome de King-Denborough e a síndrome de Noonan comparti-
lham as mesmas características, como estatura baixa, pescoço alado, implantação baixa
das orelhas, pectus escavatum, criptorquidia; algumas vezes, surdez e/ou discrasia sanguí-
nea; exceto a miopatia, que ocorre somente na primeira. A herança genética ainda não foi
estabelecida e a maioria dos casos é esporádica, existindo um único registro de mutação
no gene do receptor RYR115.

Miopatias Mitocondriais
Por meio de processos que incluem o ciclo de Krebs, o transporte de elétrons na cadeia
respiratória e a fosforilação oxidativa; a mitocôndria é capaz de fornecer o principal subs-
trato energético molecular para as células16. Os distúrbios desses mecanismos fisiológicos
levam ao aparecimento das doenças mitocondriais, ocasionadas por mutações primárias ou
herdadas. O primeiro estágio da fosforilação, a conversão de NADH em NAD e o trans-
porte de elétrons constituem as etapas mais frequentemente acometidas nas anomalias
mitocondriais. As três principais formas de apresentação das doenças mitocondriais congê-
nitas são desordem multissistêmica infantil fatal; miopatias e encefalopatias, tendo as duas
últimas evoluções e prognósticos variáveis, conforme o uso de suplementos metabólicos,
as modificações dietéticas e, às vezes, o transplante de órgãos; esse último pode ser o único
tratamento definitivo. A incidência é estimada em 1 para 4.000 nascimentos17.
Atualmente, mais de 200 pontos de mutação no genoma mitocondrial estão reportados
e, por causa disso, as manifestações clínicas se mostram extremamente variáveis e podem se
apresentar em diferentes idades. Em geral, fraqueza muscular progressiva e intolerância ao
exercício são mais frequentes. Entretanto, pode haver debilidade da musculatura extrínseca
do olho, das pálpebras, da face e do pescoço. Em estágios mais avançados, dificuldade na fala e
na deglutição também tem sido relatada. O grau de intolerância ao exercício tem grande varia-
bilidade, indo desde problemas com o simples caminhar até aqueles que manifestam sintomas
somente com exercícios físicos extremos. Dor e lesão muscular resultam em rabdomiólise e
mioglobinúria, que podem culminar em insuficiência renal temporária ou permanente.
Uma vez que a deficiência na produção de ATP constitui o principal ponto de acome-
timento da doença, órgãos com altas demandas metabólicas como cérebro, coração e rins,

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quando atingidos, demonstram quadro clínico com cefaléia, deficiência auditiva, convul-
são, dificuldade de aprendizado e até retardo mental. Devem ser levadas em consideração
as cardiomiopatias e as anormalidades da condução cardíaca, como bloqueios de ramo e a
síndrome de Wolff-Parkinson-White. Podem ocorrer ainda insuficiência respiratória com
necessidade de suporte ventilatório, distúrbios gastrointestinais traduzidos por vômitos ou
disfagia inexplicada, deficiência pancreática exócrina e diabetes18. Pacientes com miopatias
ainda não esclarecidas merecem cuidados especiais, mesmo tendo o risco estimado de de-
senvolver hipertermia maligna ou rabdomiólise em torno de 1,09%19.
Um caso de teste positivo à contratura com cafeína e halotano em paciente portadora de
miopatia mitocondrial foi relatado, mas o emprego de anestésicos capazes de desencadear
crises não parece estar relacionado em caso de miopatias mitocondriais20.

Miopatias adquiridas
Miopatias Inflamatórias
As miopatias inflamatórias são um grupo de doenças raras (incidência anual de
1/100.000 nos EUA) que inclui a polimiosite (PM), a dermatomiosite (DM) e a miopatia
necrotizante auti-imune (MN). São doenças da fase adulta e acometem mais mulheres que
homens21. A dermatomiosite se apresenta como fraqueza muscular proximal de início agudo
ou insidioso, dolorosa, além de rush cutâneo característico nas superfícies extensoras das
mãos e dos dedos, calcificação subcutânea e prurido. Na polimiosite, os sintomas se limitam
ao tecido muscular e a disfagia aparece em um terço dos casos, assim como o quadro de fra-
queza na musculatura facial. A miopatia necrotizante se apresenta como fraqueza muscular
proximal progressiva, de início subagudo e sem rush cutâneo, geralmente mais severa que
na polimiosite.
Há aumento de incidência das doenças pulmonares intersticiais, que leva a dispnéia e
tosse22; desordens autoimunes, neoplasia e doenças cardiológicas, que geram defeitos na
condução e arritmias dos pacientes portadores de PM, DM e MN23.
Em relação ao diagnóstico laboratorial, a creatina kinase sérica (CK) está bastante au-
mentada (acima de dez vezes a taxa normal) na maioria dos casos de miopatia inflamatória.
Por causa das doenças pulmonares e cardíacas associadas, testes de função pulmonar e es-
tudos por imagem do tórax, assim como rigorosa avaliação cardiológica, estão indicados na
avaliação pré-operatória.
Miopatias Tóxicas Induzidas por Drogas
Várias drogas usadas na prática clínica podem levar à toxicidade do tecido muscular de
forma inesperada, gerando diferentes graus de manifestações clínicas: de sensação de des-
conforto e fraqueza muscular a danos permanentes. Pode haver elevação da CK e mioglobi-
núria em pacientes sem história prévia de doenças musculares.
A miotoxicidade induzida por drogas é causada por uma variedade de mecanismos:
lesão de organelas da fibra muscular, como mitocôndrias e lisossomos; alterações dos
antígenos musculares, que geram respostas imunológicas ou causam distúrbios hidro-
eletrolíticos e desequilíbrio nutricional na célula muscular. No entanto, a miopatia

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tóxica deve ser um diagnóstico de exclusão, após serem afastadas as causas endócrinas,
as miopatias hereditárias e as diversas miopatias adquiridas24. Entre as possíveis subs-
tâncias que produzem as miopatias tóxicas, as mais comum são as estatinas (estudos
recentes mostram que cerca de 10% dos usuários apresentam mialgia como principal
efeito colateral) e os corticosteroides usados cronicamente, que levam à seletiva perda
dos filamentos de miosina 25,26 .
Quadro 3 – Principais substâncias envolvidas nas miopatias tóxicas e induzidas por drogas
Estatinas e fibratos Cloroquina
D-Penicilamina Hidroxicloroquina
Interferon Álcool
Procainamida Germanium
Zidovudina Corticosteroides
Colchicina Amiodarona
Vincristina Quinacrina

Miopatias Associadas a Doenças Sistêmicas e Infecciosas


Algumas doenças sistêmicas podem cursar tanto com disfunção da junção neuro-
muscular como com as miopatias. Diabetes mellitus, alcoolismo, insuficiência renal e
doenças neoplásicas, além de infecção pelo HIV, sepse e infecções fúngicas, estão entre
as principais entidades que podem causar fraqueza em diversos grupos musculares 27.
Não se pode esquecer que, com o avanço da medicina intensiva, um grande número
de pacientes sobrevive por longos períodos em ventilação mecânica e, muitas vezes, o
diagnóstico de fraqueza muscular pode ser negligenciado por causa da maior atenção ao
sistema cardiorrespiratório28 .
Como principais fatores predisponentes à miopatia associada a doenças sistêmicas en-
contram-se o tempo prolongado de ventilação mecânica, o uso de relaxantes musculares,
principalmente o pancurônio, e longos períodos de imobilidade. Do ponto de vista histoló-
gico, essa miopatia é caracterizada por variações anormais das fibras musculares, presença
de vacúolos, degeneração gordurosa e necrose muscular29. Essa necrose pode progredir para
rabdomiólise franca em muitos casos.

Conduta anestésica
O manejo anestésico de pacientes com patologias musculares é um desafio. Além das
respostas esporádicas imprevisíveis, como rabdomiólise e intenso catabolismo, podem
ocorrer complicações associadas à fraqueza muscular respiratória, miocardiopatia prévia e
alterações na anatomia das vias aéreas, entre outras.
Para identificar e minimizar os riscos, uma avaliação pré-anestésica minuciosa é funda-
mental. Portadores de miopatia devem ter diagnóstico baseado em aspectos clínicos, mas,
se possível, deve-se estabelecer o mecanismo molecular subjacente, identificado através do
exame histopatológico.

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Todos os pacientes portadores de miopatia devem ser investigados do ponto de vista car-
diológico. Em muitas miopatias, de fato, pode-se observar uma cardiopatia pré-clínica ou
uma cardiomiopatia dilatada manifesta, além de distúrbios de condução, encurtamento do
intervalo PQ , prolongamento do QT, especialmente em estágios avançados30,31.
A função respiratória e a capacidade do paciente para mobilizar secreções devem ser
avaliadas. Em estágios avançados, essas patologias são acompanhadas por insuficiência
respiratória; assim, adequado suporte ventilatório pós-operatório pode ser necessário e a
disponibilidade de uma unidade de terapia intensiva pós-operatória, prudente. Baseado no
grau de fraqueza da musculatura esquelética, a indução com via aérea em sequência rápida
pode prevenir a aspiração broncopulmonar.
A dosagem pré-operatória do potássio sérico basal e da creatina quinase em pacientes
com doenças musculares é importante para avaliar a integridade da membrana muscular,
por causa do risco aumentado de rabdomiólise. Considerar a não utilização de soluções
com lactato. Distúrbios hidroeletrolíticos e ácido-básicos, alterações da coagulação e hiper-
glicemia devem ser rapidamente corrigidos.
É recomendado jejum mínimo de 6-8 horas para sólidos e de 2 horas para líquidos claros,
conforme recomendações habituais. Estudos sugerem que esses pacientes não só estão em
maior risco de aspiração do conteúdo gástrico, por causa da fraqueza muscular e dismoti-
lidade intestinal, mas também podem desencadear uma crise metabólica pelo inadequado
metabolismo da glicose32 .
Todas as técnicas anestésicas e drogas apresentam vantagens e desvantagens em pacien-
tes portadores de miopatias. Assim, os anestésicos voláteis são contraindicados apenas nas
miopatias congênitas com o risco associado de hipertermia maligna32 . Esses fármacos tam-
bém têm sido implicados em rabdomiólise e reações semelhantes a HM.
O uso de bloqueador neuromuscular despolarizante deve ser evitado em pacientes com
doenças neuromusculares. A succinilcolina é um gatilho reconhecido para desencadear HM
em pacientes suscetíveis. Além disso, pode levar à despolarização prolongada com liberação
de potássio para o meio extracelular e influxo de cálcio muscular, que aumentaria o risco de
rabdomiólise. Esses efeitos são mais proeminentes em pacientes com receptores de acetilco-
lina extrajuncional, como ocorre no paciente portador de DMD. Como os mesmos efeitos
podem ser desencadeados por anticolinesterásicos, estes também não são recomendados. A
recente introdução da gamaciclodextrina (sugamadex) oferece alternativa atraente nessas
circunstâncias. Se o bloqueio neuromuscular for necessário, um bloqueador neuromuscular
adespolarizante deve ser preferido.
A anestesia venosa total tem sido defendida por muitos autores como a técnica anes-
tésica mais segura, porém, o uso de propofol tem sido questionado por apresentar com-
ponente lipídico, que pode afetar a oxidação de ácidos graxos, e por seus efeitos diretos
sobre a função mitocondrial. Ambos podem predispor o paciente à síndrome de infu-
são do propofol, sendo essa caracterizada por acidose láctica, bradicardia, rabdomió-
lise e insuficiência renal. Embora seja mais frequente com infusões de maior duração
(> 48 horas), em pacientes suscetíveis, mesmo infusões de curta duração podem levar
ao quadro33-35 .

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A ketamina não tem sido implicada como agente prejudicial, e suas propriedades analgé-
sicas podem ser um adjuvante nesses pacientes17.
Por fim, autores sugerem que esses pacientes deveriam ter prioridade para realizar o pro-
cedimento anestésico e todas as medidas profiláticas e terapêuticas para o adequado preparo
cirúrgico disponível. Mesmo em casos de extremo cuidado no intraoperatório, o acompa-
nhamento em unidade de terapia intensiva logo após a cirurgia é altamente recomendado.

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