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Os crimes da Rua Morgue: o método heurístico como constituição da trama

narrativa em Edgard A. Poe.


Gládiston de Souza Coelho
O método é antes uma maneira, uma escolha, uma maneira de
escolha por entre possíveis técnicas do que sua utilização pura e
simples.
João Alexandre Barbosa

A escolha da epígrafe que enceta este texto não deve ser tomada como mera
escolha. Ao analisar a obra de Edgard A. Poe, Baudelaire parte das observações acerca
dos traços fisionômicos do próprio autor, como forma de depreender a obra. E deixa
claro o método com o qual se detém, isto é, o perfil físico e psicológico como um traço
inerente ao processo de observação, resultante da leitura biográfica, além das notas
sobre costumes e hábitos. Baudelaire relaciona as características do homem com as
descrições das personagens, os enlaces pessoais com os da trama fictícia.
Estabelecer comparações entre o Conto de Edgard A. Poe, “Os crimes da Rua
Morgue” e o método Heurístico é o escopo deste trabalho, que se insere nos estudos
acerca da metodologia científica como um pressuposto inerente à pesquisa. Determinar
os liames entre a teoria e a crítica é condição indispensável para se trilhar os caminhos
pérfidos nos quais se traçam os estratagemas da produção literária, e principalmente na
criação dos contos policiais de Poe.
O exame do método heurístico presente na construção textual da trama
narrativa em Edgard A. Poe, especificamente em “Os crimes da Rua Morgue”, é o ponto
fulcral na condução da análise do texto. E para isso, levam-se em conta as características
do gênero conto, postulados na teoria da composição, noções que o próprio Poe apregoa
como essenciais na formulação do engenho e provocação da expectativa no leitor.
Tecem-se ao longo da narrativa os subsídios essenciais que corroboram a
metodologia de composição configurada pela formulação analógica, pelo metamétodo, e
igualmente a complexidade, a busca de quase-signos, retrodução, incerteza,
probabilidade, espontaneidade do acaso, o raciocínio abdutivo e o pensamento
hipotético. Tudo isso constitui o método heurístico.
Todos esses subsídios garantem ao texto a característica embrionária de uma
trama policial em que um crime ou um fato é o elemento desencadeador de uma série de
outras situações. No entanto, o autor põe em questão os métodos utilizados com os
quais se busca um determinado fim, que é a descoberta de um suposto culpado ou
criminoso. À parte disso, o texto reabre a discussão acerca da lógica imaginativa capaz
de desconstruir as verdades aparentes que o senso comum as percebe como verdades
absolutas. Esse olhar aparente nivela e ao mesmo tempo cega os olhos pela intensa luz
do brilhantismo que ofusca e desvia o observador do seu foco.
Igualmente a inspiração artística não se encerra em um só molde inalterável,
uma vez que os ideais libertários da razão outorgam ao artista a liberdade de reger sua
produção do modo que mais lhe aprouver, e o desimpede das amarras de qualquer tipo
de manual. Destarte, o artista torna-se senhor absoluto de sua criação e transita
incólume entre as esferas celestiais e os recônditos das encruzilhadas do texto.
Permeiam de igual maneira as tessituras constituintes da malha textual assim como sua
força que coabita no maior grau de flexibilidade com que edifica seu arcabouço
literário/artístico.
A análise do conto em questão permite-nos observar a realização da construção
desse método no modo de operação do enredo. As tramas desencadeiam sequências não
rígidas e revelam manifestações na arte da escrita por meio da complexidade com que se
une instinto e lógica. Exemplos disso são as lacunas deixadas no texto pelo narrador e
pelo personagem detetive Dupin para que o leitor possa penetrar a encruzilhada armada
pelo autor. Tais arquétipos estão presentes não somente nas reticências bem como nas
metáforas, analogias, hipóteses, pistas, dúvidas, probabilidades, evidências e tantas
pistas deixadas como rastros para o leitor percorrê-los.
Dupin perfila uma trajetória delineada pelas imprecisões, e cujo movimento
pendular de afastamento e de aproximação são o modo como opera as vicissitudes. Ora
afasta-se e ora se aproxima da cena do crime. De modo contrário caminham os policiais,
que percorrem apenas a proximidade do objeto. Esse afastamento permite uma
observação mais geral e, portanto, mais apropriada dos fatos, uma vez que se pode ter a
visão do todo. O aspirante a detetive, Dupin, busca, fora do contexto do crime, pistas
necessárias ao quebra-cabeça. E por esse motivo, começa a desvenda a trama do final
para o início, momento em que vasculha nos recônditos da memória um artigo lido na
noite anterior aos fatos, no qual se inscreve:

AGARRADO
No Bosque de Bolonha, ao amanhecer do dia... do corrente (a manhã do
crime), achou-se um enorme orangotango fulvo da espécie de Bornéu. O
proprietário (que se sabe ser um marinheiro pertencente a um navio maltês) pode
reaver o animal de novo se apresentar identidade satisfatória e pagar algumas
algumas despesas pela captura e conservação. Procurar no n° ... da Rua ... Bairro de
São Germano ... terceiro andar. (p. 86)

A partir daí, tece conjeturas acerca de todos os elementos internos e externos ao


arranjo investigativo posto em cena. Dupin demonstra para o narrador que nada dever
ser descartado, mas, ao contrário, examinados à luz da razão e do insight.
Pignatari, ao debruçar sobre o estudo de Valéry acerca do método múltiplo de
Leonardo da Vinci – da sua não rotulação, pelo caráter imaginativo, cuja proposta é a
analogia – propõe uma teoria do quase-método ou metamétodo. Assim, ao volvermos
nosso olhar ao conto de Poe, inferimos a maneira peculiar criada por este autor, no
momento em que faz significar os elementos de uma investigação pautada na busca de
formas de expressão e significação de algo ainda tido como ilógico.
Dupin, nesse sentido, lança-se a um tipo de lógica desconhecida pela polícia
técnica. Isso, pelo fato de que tudo aquilo que foge à realidade concreta deva ser
descartado. O que importa para os policiais é apenas os dados físicos observados, não há
aí o afastamento essencial da cena em que estão postas as provas, como já formulamos
anteriormente. Em caminho inverso a ele, a polícia técnica exclui as afinidades entre os
fatos investigados e outros eventos paralelos. Já Dupin põe em jogo duplo do
movimento do afastamento e da aproximação, como argumenta Dupin:

Mas sem intelecto educado, equivocava-se continuamente, pela intensidade


mesma de suas investigações. Enfraquecia sua visão, por aproximar demasiado o
objeto. Podia ver, talvez, um ou dois pontos com uma clareza maravilhosa, mas, ao
assim fazer, perdia necessàriamente de vista o caso em seu conjunto total. Tal é o
que acontece quando aquilo é demasiadamente profundo. (PP. 75-76)

Na medida em que se afasta para aproximar elementos díspares, colineares,


como é o caso do marinheiro que havia perdido um orangotango, estabelece “nexos de
continuidade únicos e surpreendentes” (Pignatari) ao crime da Rua Morgue e também
ao leitor na compreensão da arquitetura textual. O que parece muito complexo projeta-
se como um quebra-cabeça lógico e racionalmente possível. O detetive amador busca no
aparentemente ilógico índices que se juntam e se encaixam como marcas delineadoras
do perfil do responsável pelas mortes das duas personagens, Sra. L’Espanaye e sua filha
Srta. Camila L’Espanaye, ocorrida dentro de um quarto no quarto andar. Ele,
conscientemente e se utilizando de suas abduções, vai “às raízes invisíveis” que revelam
elementos dos objetos em análise.
A contextura amarra-se justamente nas relações entre os elementos internos e
externos aos trechos narrados. E de mesma maneira, nós, leitores, elaboramos
logicamente as conexões entre o dito e não dito, os fatos e os não fatos. O narrador
recomenda que “[...] ter uma boa memória e jogar de acôrdo com o “livro” são pontos
comumente encarados como o sumo do bem jogar. Mas é nas questões acima dos limites
da simples regra que se evidencia o talento do analista.” (p. 66)
E, também, tal como os como jogadores, tecemos ligações entre o jogo da cena
investigada e a trama do texto, poi “Em silêncio, faz êle uma série enorme de
observações e inferências.” (p. 66) Como verdadeiros “experts”, acionamos nosso
raciocínio lógico e nos lançamos a antevisões com o fito de prever os próximos passos
da narrativa e a cada índice inserido no texto por Poe.
Adiante, mais uma vez, o narrador observa a estreita analogia entre os dados do
jogo e aqueles externos a ele: “O mesmo talvez façam seus parceiros e a diferença de
extensão das informações obtidas não se encontra tanto na validade da dedução como
na qualidade da observação.” (p. 66)
Em decorrência, estabelecemos conexões entre todas as partes envolvidas na
tessitura fictícia. Como uma espécie de insight, retornamos à epígrafe inicial para
relacioná-la aos fatos e à estratégia do “autor- jogador”. Na epígrafe inicial

Que canção cantavam as sereias? Que nome tomara Aquiles quando se ocultou
entre as mulheres? Perguntas como estas de embaraçosa resposta, é certo, mas que
não estão fora de possíveis conjeturas. SIR THOMAS BROWNE: Urn-Burial (p.
65)

O autor já alerta, desde início, para nós leitores considerarmos toda e qualquer
probabilidade, para não nos centrarmos apenas nas provas expostas na cena tal qual o
faz os policiais. Nem mesmo nos fecharmos em um tipo de leitura que exclua as
aberturas propostas pelas diversas possibilidades que um texto oferece e deve oferecer
ao leitor, mas um leitor perspicaz. Qualquer que seja a hipótese deve ser tomada como
algo possível e válido, como uma probabilidade inerente ao estratagema literário.
No primeiro parágrafo, o narrador ainda faz as seguintes advertências:
As faculdades do espírito, denominadas analíticas, são, em si mesmas, bem pouco
suscetíveis de análise. Apreciamo-las sòmente em seus efeitos. (...).Adora os
enigmas, as adivinhas, os hieróglifos, exibindo nas soluções de todos êles um
poder de acuidade, que para o vulgo, toma o aspecto de coisa sobrenatural. Seus
resultados, alcançados apenas pela própria alma e essência do método, têm, na
verdade, ares de intuição. (p. 65)

Observamos que de igual modo já prediz a estratégia nos momentos em que


estabelece ideia análoga entre o jogo de damas e a criação literária como em

No jôgo de damas, pelo contrário, em que os movimentos são únicos e pouco


variam, as probabilidades de engano ficam diminuídas e, a atenção não estando de
todo absorvida, tôdas as vantagens obtidas pelos jogadores só o são graças a uma
perspicácia superior. (p. 66)

Anuncia, mais uma vez, nesse trecho o método da complexidade quando declara
que é na simplicidade dos fatos que reside a aparente facilidade, caso jogador e também
leitor estejam desatentos ao processo que se estabelece entre as diversas partes do jogo.
Como está presente no texto, quanto menor pareça a variabilidade da trama
maior deve ser o grau de atenção. Não é sempre o mais hábil o vencedor, mas, sobretudo,
o mais atento. Os policiais julgam-se mais hábeis na investigação, porém escapam-lhes
as antecipações do jogo e os pormenores, bem como, nessa questão, serem-lhes as
técnicas adotadas bastante previsíveis.
Poe espera um leitor atento a esses pormenores da escrita, as pistas, texto no
qual não se descarta as espontaneidades do acaso, as imprevisibilidades reestruturadas
e fugazes às leis gerais. E, conforme Peirce, a necessidade do raciocínio abdutivo,
organizado pela complexidade da união entre o instinto e a lógica.
Enquanto os policiais jazem em seus esforços guiados unicamente pela
racionalidade, Dupin faz do instinto a sua capacidade imaginativa, movida pela estreita
relação entre o conhecimento e o insight. Na voz de Dupin, “A profundidade jaz nos vales
onde a buscamos, e não no alto das montanhas onde é encontrada.” (p. 76)
Além dessas características, o texto está permeado de um tipo de argumento que
expressa ou a dúvida nas diferente vozes dos interrogados “Não podia garantir fôsse voz
de homem ou de mulher. Não entendeu o que dizia, mas acha que estava falando
espanhol.” (p. 73), suposições “Não se suponha, do que eu acabo justamente de dizer,
que estou circunstanciando algum mistério, ou escrevendo algum romance.” (p. 69)
Também estão presentes as peculiaridades do método como se lê em “Então me
perguntou, de súbito, se eu havia observado qualquer coisa de peculiar no teatro do
crime.” (p. 78), ou mesmo em “[...] referentes a estas vozes, mas o que havia de peculiar
nesses testemunhos. (p. 79) , suspensão do pensamento marcado pelas reticências e
possibilidades “Como é possível que soubesse você que eu estava pensando em...” (p.
69) ou a probabilidade “É verdade que êle pode não vir, mas há probabilidades de que o
faça.” (p. 78).
De igual maneira, o texto é constituído de hipóteses como é exemplo em “De
fato, a facilidade com que eu chegarei, ou já cheguei, à solução deste mistério está na
razão direta de sua aparente insolubilidade aos olhos da polícia.” (p. 78), o que o torna
um corpo aberto As especulações feitas pelo leitor. Ao encaixar todas as provas, o
detetive Dupin chega à conclusão já esperada por ele de que o assassino era, na verdade,
não um ser humano, e muito menos algo sobrenatural, mas o mesmo orangotango que
escapara dias anteriores.
Em suma, se tomarmos como axiomáticas as argumentações postas, Poe, na
constituição do conto “Os crimes da Rua Morgue”, emprega o método heurístico como
uma das vias pelas quais as encruzilhadas do texto revelam em todo o seu
emaranhamento uma teia de possibilidades de leitura. No entanto adverte ao leitor que
a previsibilidade e o encanto com o brilhantismo pode-lhe ofuscar a beleza da verdade.

Referências bibliográficas
Edgard A. Poe. Ficção completa, poesia & ensaios. Org. Trad. Oscar Mendes, com
colaboração de Milton Amado. Rio de janeiro, GB: Companhia Aguilar Editôra, 1965.
Edgard A. Poe. “Os crimes da Rua Morgue”. In: Ficção completa, poesia & ensaios.
Org. Trad. Oscar Mendes, com colaboração de Milton Amado. Rio de janeiro, GB:
Companhia Aguilar Editôra, 1965.
PIGNATARI, Décio. Semiótica & literatura: edição reorganizada e acrescida de
novos textos. 3. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1987.
VALÉRY, Paul. Variedades. Org. e Introdução de João Alexandre Barbosa. Trad. Maiza
Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991.

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