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O pensar e a redação científica

Antonio Nunes Barbosa Filho*


Centro de Tecnologia e Geociências
Universidade Federal de Pernambuco - Brasil
<nunes@ufpe.br>

a) A primeira tenta lançar luzes à


compreensão acerca da dificuldade
da escrita em geral para jovens
cientistas em formação;
b) A segunda traz à cena um conjunto
de seis deveres do pensar científico,
premissas básicas sobre a particular
maneira de um pesquisador se
colocar diante de um texto científico,
como requisitos a serem perseguidos
* O autor expressa seu agradecimento à Livraria Almedina e necessariamente observados para a
pela gentil permissão para a reprodução desta imagem, sua devida construção e validação;
coletada em seu sítio internet [http://www.almedina.net]. c) Na terceira destas, à guisa de
tentativa de convergência entre as
duas anteriores, tento explicitar
Ao longo de quase duas décadas
alguns elementos finais acerca da
como professor universitário, ano após ano,
redação de textos científicos.
período letivo após outro, costumeiramente,
ouço queixas e lamentos de estudantes da
Parte I:
graduação e mesmo da pós-graduação (lato
e stricto senso) acerca de suas dificuldades
Creio que a dificuldade para a escrita
para escreverem em geral e, em especial,
apresentada pelos alunos se origina em
para redigirem textos científicos, sejam
quatro lacunas de sua formação e que podem
artigos, simples comunicações e até teses e
ser sanadas por cada um destes, pelos
dissertações.
próprios interessados. Duas destas são de
caráter geral e outras duas mais são
São verdadeiras confissões face ao
específicas.
reconhecimento de que a habilidade para a
escrita e, por conseguinte, para a
A primeira delas diz respeito ao
comunicação nesta forma é tão importante
exercício rotineiro da escrita. O treinamento,
quanto todas as demais desejáveis a um bom
a repetição, o esforço para a melhoria e o
profissional. E mais, todos os que professam
aprimoramento não podem ser relegados a
tal sentimento, reconhecem que aqueles que
um plano inferior. Escrever bem requer
têm tal habilidade, ou seja, escrevem bem,
prática, aprendizado. Se possível, cotidiana.
têm larga vantagem competitiva sobre os
demais, inclusive sobre si mesmos.
Tal dificuldade ganha corpo,
principalmente, em razão da limitação
Para a construção do presente texto e
temporal imposta para a conclusão da
para a discussão a respeito de reflexões
redação de trabalhos científicos e isso
muito pessoais acerca desta dificuldade e de
implica, na maior parte das vezes, numa
como superá-las, este ensaio está estruturado
tentativa exasperada de fazê-lo de forma
em três partes:
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abrupta, concentrando-se e se dedicando muitas vezes também desprovidos da
esforços àquele projeto em curto espaço de capacidade de comunicação escrita e, por
dias (quando não horas), na expectativa conseguinte, da própria leitura –
ilusória de que o conteúdo e a forma final necessitavam da ajuda daqueles que
sejam alcançados de maneira satisfatória ao dominavam a linguagem em uso. Surgiu,
colocar-lhe o ponto final. Pouco há tempo neste sentido, o estereótipo de que estes
para se refletir sobre o que se escreve e, eram “seres especiais”, acima e distanciados
igualmente, para a forma como se escreve. dos “seres comuns”, posto que mais
próximos dos saberes e, portanto, dos deuses
Contribui ainda para a redução da e, como tal, devendo ser reverenciados. E
qualidade textual o restrito domínio do receber reverências sempre foi sinal de
vernáculo, seja em seus aspectos estruturais status e de poder. De tal modo, não era
ou gramaticais, seja quanto ao léxico. Pouco incomum utilizarem frases lapidares,
se conhece as regras para uso da língua e o erudição ostentosa, ornamentos de estilo e
acervo de palavras necessário para o uso tudo o mais que buscasse assegurar tal
desejado em relação a um dado contexto. posição, o que contribuiu e ainda contribui
Acredito que este empobrecimento da para que boa parte da população seja
capacidade de se comunicar seja decorrente, mantida à margem da educação formal em
principalmente, mas não exclusivamente, do muitos países do mundo.
reduzido hábito e acesso à variedade de
leituras desde a primeira infância e que, É de senso comum afirmar que
infelizmente, na maior parte das vezes, se persistem e diariamente surgem jargões e
perpetua até a idade adulta. Esta é a segunda expressões típicas ou específicas de
lacuna de caráter geral. determinadas áreas do conhecimento.
Todavia, é indiscutível também que é
Já para a redação de textos imprescindível alargar o acesso aos
científicos, além da habilidade geral para a conhecimentos e que tal intento – como
escrita (o que poderá contribuir fator contribuinte para uma humanidade
significativamente para a adequação e igualitária e democrática – somente se
sucesso do texto à finalidade que se destina) alcançará com o uso de uma linguagem
será preciso conhecer as características clara, sem distinções exclusivistas ou
requeridas para esta natureza textual e, antes privilegiadora de poucos. O que, sem
de tudo, desenvolver uma maneira bem dúvida, poderá ser obtido em todas as
própria de pensar que conduzirá, línguas, face à riqueza expressiva de cada
inevitavelmente, à redação de textos de uma destas. Do contrário, significa dizer que
acordo com tais requisitos. o pretenso cientista que não consiga fazê-lo
desconhece a própria língua.
Podemos, então, sintetizar dizendo
que a escrita de um texto delineado por um E é esta, justamente esta, a terceira
pensar científico conduzirá, lacuna na formação do candidato a redigir
necessariamente, à redação de um texto um bom texto científico. Desconhecer a sua
científico. Sendo assim, tal se processará de própria essência.
maneira natural.
Bem, então nesta transição entre a
Ainda hoje, muitas pessoas redação geral e a de um texto científico
acreditam que a redação de um texto convém conhecermos a natureza e as
científico difere substancialmente de um particularidades deste último.
texto geral. Talvez seja resquício de uma
época em que os “não-iniciados” em Em primeiro lugar cabe destacar ou
determinado assunto ou conhecimento – distinguir esta adjetivação: científico. E,
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para tanto, devemos formular uma
conceituação ou entendimento sobre o que Todavia, uma dúvida persistirá
entendemos por “Ciência”. indefinidamente: quando teremos a certeza
de que conhecemos tudo o que há para se
A ciência nada mais é do que do que saber sobre determinadas coisa? A resposta
a busca do conhecimento sobre as coisas. é simples e direta, conforme afirmamos ao
Não apenas o conhecimento já existente, inicio deste parágrafo: jamais saberemos!
mas numa perspectiva de ir sempre além do Esta é a essência da Ciência, sua qualidade
que está anteriormente estabelecido. (ou beleza) fundamental: sempre nos
Significa, assim, buscar atingir uma conduzir a algo novo, que nos seduzirá, que
pretensão de universalidade ou o domínio nos encantará e que nos desafiará
total sobre todos os aspectos dos objetos de permanentemente enquanto seres providos
um estudo, sejam seres vivos ou inanimados, de consciência e de capacidade de reflexão e
sociedades, enfim, da vida em seus mais de interpretação. Senão, vejamos: basta uma
distintos prismas. pergunta aparentemente banal para
desconstruir qualquer pretensão em sentido
Então, a tarefa da “Ciência” – e dos contrário.
cientistas, por sinal – é, partindo de um
ponto já conhecido, buscar alargar a Afinal, quem é você? Você, em sua
fronteira do saber avançando em direção ao totalidade!
desconhecido, em moto ininterrupto,
contínuo, até desvendar por completo o E quando nos expressamos sobre a
conjunto de conhecimentos sobre totalidade das coisas, de modo que não haja
determinado objeto de estudo. nenhum aspecto a ser descoberto no domínio
do conhecimento acerca destas, significa
Este avançar constante, no desejo de dizer que alcançamos a “verdade” sobre as
reduzir a porção do “desconhecido” no coisas, posto que, saberemos nos expressar
universo das “verdades sobre as coisas”, de com propriedade absoluta sobre todas as
modo a, se possível, um dia, torná-lo suas dimensões, de maneira inconteste.
inteiramente conhecido, ou seja, alcançando
a totalidade ou universalidade do Talvez surja, neste momento, em seu
conhecimento a respeito deste objeto, é a pensar, um novo questionamento: Mas esta
força motriz dos trabalhos científicos. É o forma de se posicionar diante do mundo diz
que podemos, por fim, definir como a respeito exclusivamente aos cientistas e isto
pretensão de domínio irrestrito dos saberes. se passa distante de mim!

Se pudermos expressar tal busca em Eu diria que na formulação deste


forma de um gráfico, acredito que será pensamento há um equívoco fundamental e
conforme abaixo: este, por sua vez, dificulta sobremaneira a
redação de textos científicos, seja em
qualquer grau ou intuito, conforme anotei ao
início deste artigo.
“O conhecido” NOVA
FRONTEIRA
υ
Em geral, pessoas que estão a
Ciência elaborar um texto científico para as mais
distintas finalidades, não introjetam a ideia
de que justamente por estarem escrevendo
FRONTEIRA
um texto de caráter científico, exatamente
“O desconhecido”
ORIGINAL
por isso, devem assumir que, nesta tarefa,
efetivamente, o são. Este fenômeno, que
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chamo de “distanciamento” ou de “negação grupo social desvalorizado – ou
do cientista interior”, é a quarta e última marginalizado em decorrência da construção
lacuna de que gostaria de comentar na de imagem equivocada – pela sociedade em
primeira parte deste texto. que vive.

Há no imaginário da população a É preciso, portanto, desconstruir esta


equivocada percepção de que cientista é figura no âmbito popular, para que, mesmo
aquele ser de cabelos grisalhos, aqueles que não se tornem “cientistas
desgrenhados e por pentear, quase sempre profissionais”, possam expressar satisfação
excêntrico – quando não completamente em sê-lo ao momento em que exercem tal
maluco – e que vive e trabalha recluso, à papel social, ainda que em determinada e
parte da sociedade e, por conseguinte, do reduzida parcela de suas vidas.
convívio social. Convenhamos, é realmente
desejoso – quiçá imperioso – afastar de si tal Para concluirmos esta primeira parte
rótulo. deste texto, trago para reflexão uma bela
frase do escritor Gustave Flaubert (1821 -
Talvez esta imagem – que considero 1880) que nos ensina que: “Quanto mais os
grotesca, mais que irreal – seja originada nos telescópicos forem aperfeiçoados, mais
longínquos filmes de ficção científica (ou estrelas surgirão”.
quem sabe, de terror!) e se perpetue à custa
da falta de esclarecimentos à grande
população e de incentivos à carreira Parte II:
científica em nossa recente história
acadêmico-universitária.
Pois bem, nesta segunda parte deste
Em algumas ocasiões em que breve relato, voltaremos as atenções para a
ministrei aulas ou seminários sobre questões maneira do cientista se colocar diante do
relacionadas com o tema “metodologia da desafio de trazer a público um texto que
ciência”, quando questionei estudantes que expresse adequadamente os estudos que
se preparavam para escrever suas desenvolveu (ou que pretender vir a
monografias se se consideravam cientistas, desenvolver). Considero que para que tenha
quase que unanimemente a resposta foi: melhores chances de lograr êxito neste
Não! Surpreendente?!? Também não. intuito, o cientista deverá estar atento para
atender ou cumprir seis deveres
Talvez predomine a noção de fundamentais na redação do texto. Vejamos
cientista profissional, aquele que transforma quais são estes.
em sua razão de viver o seu labor e que vive
em função deste, pelo que os aspirantes à Sendo impossível abarcar todos os
redação de textos científicos preferem não se aspectos de um objeto a ser cientificamente
identificar com, se inserir entre estes, tratado, se requer uma delimitação precisa, a
negando tal condição, posto que indesejada definição das dimensões a partir das quais se
a própria percepção estigmatizada, da qual, pretenderá estudá-lo e se dissertar, narrar a
inconscientemente, partilha. respeito. Tal definição de fronteiras dentre
os distintos ramos e campos de
Suas pretensões científicas se conhecimento é o que convencionamos
deparam com um quase intransponível chamar de “Recorte epistemológico”.
obstáculo: o desejo de concluir o texto Quanto mais abrangente o número destas
científico, muitas vezes significando uma fronteiras, dentre as incontáveis arestas do
possibilidade de ascensão social, e a polígono dos saberes, mais complexos serão
necessidade de negar a sua inserção em um os estudos a serem conduzidos e também
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mais amplos em sua duração e em recursos desprendimento de esforços em condições
requeridos para a sua execução, vez que uma similares.
cifra maior de elementos e de contextos
deverão ser verificados no seu decorrer, o Se o estudo deve acrescentar novos
que, igualmente, amplia as chances de saberes, é preciso a cada nova proposta
insucesso e de falhas na sua condução, desde estabelecer os limites da nova fronteira a ser
a sua concepção e construção, passando por buscada. Ou seja, a meta a ser perseguida,
sua implementação e, por último, nas ainda que esta não venha a ser alcançada por
conclusões que possa vir a alcançar. completo, observando-se o primeiro dever
de adequação de magnitude de expectativas,
Assim sendo, para ampliar as ou, mesmo, que seja ultrapassada em seu
chances de que todo o estudo transcorra a transcurso.
contento, se impõe ao pesquisador o
primeiro de seus deveres: humildade no
estabelecimento de seus horizontes, a cada Fronteira
estudo a ser conduzido, de modo a permitir, Atual
“META”

pouco a pouco, um avançar contínuo e Desafio

seguro. Reside, então, justamente aí a


importância deste recorte ou demarcação de Fronteira

fronteiras preliminares visando a novos Buscada

horizontes.

Já que a expectativa central da O partir de um ponto já estabelecido,


ciência – e de cada estudo conduzido em seu confirmado e o trilhar em direção a uma
nome – é avançar rumo à totalidade do meta por um percurso que pode ser
conhecimento acerca de cada um dos mais reproduzido por terceiros, assegurando
distintos objetos, impõe-se ao cientista um resultados uniformes ou compatíveis com o
segundo dever, que diz respeito às atingido pelo pesquisador original, configura
contribuições a serem prestadas por seu o que denominamos de “Método” e será
estudo à humanidade: ampliar o descrito em um capítulo próprio no trabalho
conhecimento acerca do objeto tratado, a ser redigido. O grande desafio do cientista
mesmo que estendendo apenas uma das é, portanto, construir e descrever, de
fronteiras limitantes em direção para além maneira consistente, o caminho (hodos) que
de seu ponto anteriormente estabelecido. o levará a alcançar a meta (Método = meta +
hodos).
Com o estabelecimento desta nova
posição fronteiriça, impõe-se que esta seja Como este caminhar, desde o seu
estável e que tão logo quanto possível possa início até o seu ponto final, deve ser
ser consolidada, de maneira a não permitir registrado na forma de texto – de que
retrocessos, neste avançar tão desejado. estamos tratando ao longo deste ensaio –, e
Desta forma, poderá ser considerada como que este não pode se desconstituir em si
definitiva. Para tanto, se requererá, como um mesmo, desde ao primeiro contato dos
terceiro dever, que conduz desde a fronteira futuros leitores com este, ou seja, com o seu
anterior até esta mais recente possa ser título, que tem o intuito ou o desejo de
seguido ou trilhado por outrem além daquele informar, com clareza e exatidão, de que
que a determinou, estabeleceu. Dizemos, trata em seu conteúdo, atraindo o interesse
então, que este deve ser reproduzível. Ou destes para o seu teor, até o seu desfecho,
seja, que outros que venham a adotá-lo onde se espera tenha conseguido cumprir o
possam alcançar o mesmo ponto final desta prometido àqueles que sobre este se
jornada, de idêntica maneira, incluindo o
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debruçaram, surge, assim, o quarto dever estudo (e a pertinente redação do respectivo
para o cientista. texto científico) e o tempo disponível para a
sua consecução. Assim, caberá ao cientista
E, então, em que consiste este dever? ter sempre em mente o requisito da
correspondência no tempo entre os
Como explicitamos ao longo deste propósitos estabelecidos e o horizonte
escrito, para que o leitor de um texto efetivamente existente para torná-los
científico se dê por satisfeito, não apenas a factíveis (e tal, inclui necessariamente, a
redação geral deve ser adequada, com o uso avaliação dos recursos requeridos e a
de um vocabulário apropriado, com correção disponibilidade destes para uso imediato ou
gramatical etc. Se faz necessário também, quando demandados).
que sendo este posto à prova, questionado –
e esta é uma das principais funções do texto O sexto dever, por sua vez, diz
científico, submeter-se (ou ao seu redator) à respeito à capacidade de prospectar, apontar
avaliação dos pares da Academia –, este ou oferecer novos caminhos a serem
deverá ser capaz de se sustentar, de receber trilhados, para que ele próprio ou outros
valor de credibilidade. Ou seja, que seja pesquisadores possam deslocar, mais uma
sustentável, mereça o reconhecimento de vez, a fronteira do conhecimento ainda mais
validade, seja provedor de confiança para em direção ao desconhecido, reduzindo a
aqueles que dele se utilizar. Enfim, que sua proporção no universo do conhecimento.
tenha sustentabilidade. Por esta razão, todos os textos científicos
devem indicar oportunidades ou
E esta sustentabilidade se dará em questionamentos a serem descortinados em
dois níveis, quais sejam: estudos futuros. A cada novo estudo, o
cientista realiza esforços para colocar-se
a) Intrínseca – de modo que o texto sobre o muro fronteiriço do conhecimento.
não se desconstitua em si mesmo, Ao atingi-lo, deve ser capaz, portanto, de
em toda a extensão de sua redação, olhar para frente e indicar que rumos
desde o título até a última linha de deveremos seguir.
sua conclusão;
Até aqui discorremos acerca dos seis
b) Extrínseca – incorporando e deveres que devem orientar o pensamento
demonstrando serem elementos científico em sua busca pela verdade das
confiáveis as referências ou fontes coisas (ou dos objetos e objetivos de seus
externas para os dados ou estudos). Surgirá desta feita, um novo
informações que não forem originais questionamento: como dar vida ao estudo e
do estudo. E isto se obtém na ao texto que dele resultará, como forma de
própria literatura anteriormente trazê-lo ao mundo científico e/ou ao grande
revisada, anotada e devidamente público?
registrada no texto, segundo normas
de citação, direta ou indireta,
conforme o caso. Parte III:

O quinto dever do cientista funciona


como um contrapeso entre um possível No intuito de cumprir o primeiro
excesso de ambições, de um lado, e, de dever, o cientista deverá delimitar o seu
outro, a acomodação que poderá se abater estudo. Esta delimitação ou recorte
sobre o cientista. Este é o dever de epistemológico, como antes já referido, se
adequação temporal. Ou seja, de observar a dará em três níveis: um macro, um micro e
relação entre os objetivos traçados para um um intermediário que servirá de elo entre os
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dois anteriores. A tarefa preliminar a) Contratos – Seguros Industriais –
consistirá, portanto, em estabelecer a grande Seguros Ambientais na Indústria;
área de conhecimento, a partir da qual se b) Antropometria – Diferenças
realizará a revisão da literatura em direção individuais – A influência da
ao nível mais específico ou ponto focal do gestação;
estudo. Ou seja, aquele sobre o qual o c) Teoria Literária – Contos Infantis –
estudioso debruçará todos os seus esforços Arquétipos femininos.
no sentido de alargar a fronteira do
conhecimento a seu respeito. E assim faremos sucessivamente até
especificarmos ou determinarmos
Podemos fazer uma analogia entre adequadamente o campo focal do estudo.
estes três níveis com uma casa: uma base ou Será sempre nesta estrutura em três níveis
alicerce, as paredes e, por fim, o telhado. que se desenvolverá a construção da
Sem uma base bem constituída ou paredes investigação e, por conseguinte, a redação
fortes, a casa não se sustentará e, tampouco, do trabalho científico resultante.
o telhado que a distinguirá entre as demais
de certa localidade não se fará notar. Do Para cumprir o segundo dever o
contrário, este será notada ao longe com pesquisador deverá, ao final do estudo, ter
todo o esplendor do telhado que fará com acrescido algum conhecimento àquele
que pretensos visitantes se encantem com a anteriormente disponível. Este acréscimo,
casa como um todo e não apenas com o por mínimo que seja, será uma contribuição
telhado que lhe chamou a atenção. original no sentido que, inédito, auxiliará no
desbravamento do desconhecido, colocando-
Como exemplos breves dessa se um novo passo percorrido rumo à
estrutura em três níveis, podemos citar: “verdade”.

a) Direito civil – Contratos – Seguros A “nova verdade” buscada pelo


industriais; pesquisador (ou objetivo geral do estudo)
b) Ergonomia – Antropometria – deverá ser alcançada percorrendo-se,
Diferenças individuais; segundo um método determinado,
c) Literatura – Teoria literária – Contos superando-se ou ultrapassando-se cada um
infantis. das “verdades parciais” anteriormente
conhecidas, que em conjunto e ao lado da
Tem-se, então, uma sugestão de contribuição original compreendem
afunilamento ou aprofundamento do objetivos específicos do estudo.
conteúdo a ser tratado no estudo, saindo-se
da amplitude mais abrangente até se atingir O atendimento ao terceiro dever
o elemento individualizado no qual se deverá assegurar a capacidade de
deterá, mais especificamente, o pesquisador. reprodução do estudo, desde o seu ponto de
partida, indicando o caminho trilhado até as
Se a amplitude definida não for conclusões que foram alcançadas. Fornece
suficiente para a individualização precisa do ao estudo em desenvolvimento o que se
objeto de estudo podemos fazer novo convenciona chamar de “bases”, sendo
aprofundamento, também em três níveis, elemento fundamental para a sua
como se nos servindo de uma lente de sustentação, quando posto à prova, sujeito à
aumento ampliássemos a visão do validação ou exame, conferindo-lhe a
detalhamento. Retomando-se os exemplos sustentação interna.
anteriores, poderemos ter:
Como bem sabemos, todo avançar
que se deseja sólido deve se assentar em
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alicerces ou pontos de partida firmes. É A observância deste sistema, além de
preciso, portanto, formar esta base a partir contribuir para oferecer a devida
de todo o conjunto de dados que possamos rastreabilidade de determinadas informações
levantar a respeito do objeto a que nos e/ou posicionamentos, serve de condição
dedicaremos, ainda que nem todas estes se básica para assegurar a inexistência de
convertam em informações úteis aos plágio e para a atribuição do devido crédito
propósitos que futuramente estabeleceremos, autoral, ou seja, do reconhecimento da
mas se tal se concretizar, lá já estarão contribuição de terceiros ao estudo em tela,
disponíveis para tanto. Assim sendo, a requisitos fundamentais de um trabalho
priori, nenhum destes deve ser descartado acadêmico-científico, sem o que este não
como inútil ou impróprio. A esta etapa de poderá ser validado, posto que, nesta
levantamento denominamos de “Revisão da situação, lacunas quanto à autoria de
literatura” ou “Estudo (ou Estado) da arte” terceiros constituem mais que meras
e fornecerá subsídios para o estabelecimento infrações, uma vez que tipificadas como
do ponto de partida e mesmo para o verdadeiro crime na legislação brasileira
caminhar em direção à fronteira que (Lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 –
desejamos ampliar. Lei de Direitos Autorais).

O método, por sua vez, a trajetória a O atendimento ao quinto dever, que


ser percorrida, com a descrição das impõe ao cientista um senso de objetividade
atividades pertinentes a cada uma das etapas temporal, reforçando a ideia do avançar
a serem satisfeitas, deverá ser definido de contínuo, em pequenos e sucessivos passos,
acordo com a natureza do objeto de estudo e exige objetividade na formulação dos
a prospecção que se deseja realizar deste (os propósitos da pesquisa, confrontando-se
objetivos delineados)1. estes com os recursos disponíveis para tanto.

Ponto de
Ponto de Embora horizontes de maior
chegada
partida “Verdades parciais”
(pretendido) amplitude possam ser buscados, para a sua
adequação temporal, se requer que haja a
...
sua estratificação em (sub)metas
VP1 VP2 VP3 VPn-2 VPn-1 VPn

Contribuição
original
individualizadas que devem ser tratadas
como (sub)projetos, integrados e
Objetivos específicos

coordenados direcionados a um fim comum.


O quarto dever, em sua porção
extrínseca, deve ser cumprido à custa de um Assim, se estabelecerá um equilíbrio
sistema estruturado de validação que inter- entre a prudência – que visa proporcionar
relaciona o saber e o pensar do autor com um avançar sólido – e a ousadia que fará o
aqueles de outros autores, ainda que cientista trilhar novos caminhos ainda não
discordantes. Este sistema é o que percorridos, experimentar novos saberes e,
denominamos de normas para citação e por fim, consolidá-los.
referenciação bibliográfica. No Brasil este
sistema é definido e regulado pelas normas O sexto dever será tanto melhor
NBR 10520 e NBR 6023, respectivamente, satisfeito quanto o autor do estudo
da Associação Brasileira de Normas acadêmico tenha capacidade de prospectar
Técnicas (ABNT). novos horizontes para o seu trabalho, fruto
de indagações pessoais, de questionamento
de terceiros (colegas de grupos de pesquisa,
1
Este texto não se trata de um artigo sobre membros de bancas examinadoras, revisores
metodologias de pesquisa, pelo que recomendo aos de revistas científicas etc.) ou de quaisquer
leitores, caso julguem necessário, busquem dentre os
diversos textos específicos disponíveis para tal fim.
outros indivíduos que possam levá-lo a
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perceber novas nuances ou dimensões até Federal de Pernambuco, da qual tenho
então não tratadas ou de novas orgulho de ser professor:
possibilidades em face de um refinamento,
desdobramento ou mesmo reconstrução sob “Não há nada mais motivador para
nova perspectiva do trabalho concluído ou um pesquisador de que ver o seu
em curso. Certamente que quanto mais aprendiz encantar-se com a mais
experiente for este autor, maior será a óbvia das descobertas, porque isso
tendência para que surjam maiores e mais significa que ele terá muito mais
apropriadas extrapolações, sendo certo estímulo para ir além e buscar
também que, inquietações bem próprias da descobrir, até mesmo, o infinito!”
juventude e da inexperiência podem
descortinar novos horizontes a serem Por último, a título de conclusão,
trilhados. podemos assumir que para a realização de
um bom trabalho acadêmico, dentre os quais
A incerteza de que os objetivos a redação de um texto científico, três
traçados serão alcançados e, mesmo diante qualidades são fundamentais ao pesquisador:
desta, a obstinada busca para alcançá-los – paciência, determinação e fé!
ainda que no caminho descobertas de outras
naturezas possam ter lugar, redirecionando Paciência para saber percorrer,
todo o estudo e, até mesmo, a vida paulatinamente, cada uma das etapas à
profissional dos cientistas – os torna pessoas adequada consecução dos objetivos
a quem se deve admiração e respeito. Não traçados;
obstante possam não lograr o êxito esperado
dedicam imenso esforço aos objetivos de Determinação para persistir na
seus estudos e, por diversas ocasiões, se teve caminhada, apesar das dificuldades de todas
notícia de havê-los superado e em muito. as ordens que, porventura, possam se
apresentar durante sua execução; e,
Como bem pontua o jornalista e
filósofo espanhol José Ortega Y Gasset Fé, como fixação na verdade a ser
(1883-1955) “Pouco se pode esperar de alcançada, a ser buscada, com a certeza de
alguém que sé se esforça quando tem a que esta será atingida face à dedicação dos
certeza de vir a ser recompensada”. O esforços devidos, cumpridos os deveres aqui
verdadeiro profissional sente mais prazer estabelecidos.
por sua obra do que pelos benefícios, de
qualquer natureza e grandeza, que esta possa
lhe proporcionar.

Tudo se inicia quando somos meros


aprendizes. Em meus estudos de graduação
tive a felicidade de ter bons mestres, na
essência da palavra. Hoje, na posição de
mestre, mais do que professor universitário,
tento retribuir ao mundo acadêmico e à
sociedade em geral um pouco da
generosidade e dos ensinamentos que deles
recebi. E com toda certeza posso expressar o
sentimento que abaixo transcrevo de um dos
discursos que proferi na condição de
paraninfo de uma turma de concluintes dos
cursos de engenharia da Universidade
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