Você está na página 1de 694

1

GERARD JONES

HOMENS DO AMANHÃ

geeks, gângsteres e o nascimento dos gibis

CONRAD

Livro cedido por


Eudes Honorato

Digitalização & Revisão:


ÐØØM SCANS

2
Copyright © 2004 by Gerard Jones
Copyright desta edição © 2006 by Conrad Editora do Brasil Ltda.

Título original: Men of Tomorrow

Capa: Jonathan Yamakami


Imagem de Capa: © Bettmann/CORBIS
Tradução: Guilherme da Silva Braga e Beth Vieira
Preparação: Cristina Carletti e Luiz Maria Veiga
Diagramação: Manoel Carlos C. de Araújo
(www.macrocomunicação.ppg.br)
Índice: Claudia Maki Yanagihara
Produção Gráfica: Alexandre Monti (Gerente), Alberto Gonçalves
Veiga, André Braga e Ricardo A. Nascimento
Gráfica: Cromosete

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Jones, Gerard
Homens do Amanhã / Gerard Jones ; [tradução Guilherme da Silva
Braga e Beth Vieira]. — São Paulo : Conrad Editora do Brasil,
2006.

Título original: Men of Tomorrow


ISBN 85-7616-160-5

1. História em quadrinhos I.Título.


06-2001 CDD-741.5
Índice para catálogo sistemático:
1. Histórias em quadrinhos 741.5

CONRAD EDITORA
Rua Simão Dias da Fonseca, 93 — Cambuci — São Paulo — SP
01539-020 Tel.: 11 3346.6088 / Fax: 11 3346.6078
atendimento@conradeditora.com.br
www.conradeditora.com.br

3
CONRAD EDITORA

CONSELHO EDITORIAL
Cristiane Monti Rogério de Campos

GERENTE DE MARKETING
Márcio Carvalho

GERENTE DE TRADE MARKETING


Silvio Alexandre

GERENTE DE PRODUTO
Cláudia Maria do Nascimento

DIRETOR EDITORIAL
Rogério de Campos

COORDENADOR EDITORIAL E DE COMUNICAÇÃO


Alexandre Linares

COORDENADORA EDITORIAL E DE DIREITOS INTERNACIO-


NAIS
Luciana Veit

COORDENADORA DE PRODUÇÃO
Rita de Cássia Sam

ASSISTENTES EDITORIAIS
Alexandre Boide, Jae HW e Mateus Potumati

REVISORES DE TEXTO
Lucas Carrasco e Marcelo Yamashita Salles

EDITOR DE ARTE
Marcelo Ramos Rodrigues

ASSISTENTES DE ARTE
Ana Solt, Jonathan Yamakami,
Marcos R. Sacchi, Nei Oliveira e Vitor Novais

4
Ao meu pai,
RUSSELL JONES,
que me ensinou o que um maço de folhas de papel
manchadas de tinta pode significar para um jovem
nas horas mais difíceis.

5
SUMÁRIO
——————————

NOTA À EDIÇÃO BRASILEIRA 7


NOTA DO AUTOR 10
PRÓLOGO – IDENTIDADE SECRETA 14
1 A RUA 22
2 O OUTRO MUNDO 59
3 A GRANDE FARRA 89
4 O HOMEM PERFEITO 127
5 A NOVA DIVERSÃO 169
6 AÇÃO 206
7 RAPAZES AMERICANOS 237
8 ÁUREOS TEMPOS 295
9 O TURBILHÃO 352
10 GUERRAS 400
11 CRIME VERDADEIRO 432
12 ROTA DE COLISÃO 471
13 SÓCIOS SILENCIOSOS 522
14 NOVOS DONOS 546
15 CONTINUAÇÃO 583
EXTRAS 631
NOTAS SOBRE AS FONTES 663
ORELHA E QUARTA CAPA 689

6
NOTA À EDIÇÃO BRASILEIRA
——————————

“Geek: um tipo de performer que realiza atos


sensacionalmente mórbidos e desagradáveis como
comer cabeças de animais vivos, como cobras ou
galinhas.” Assim diz o Random House Historical
Dictionary of American Slang. Mas essa é uma
acepção do termo já em extinção, graças aos Servi-
ços de Proteção aos Animais. Pelo menos é o que
todos esperam, inclusive os geeks.
Hoje geek nos dicionários tem como principal
sinônimo a palavra “nerd”. O mesmo sentido: rapa-
zes desajeitados, sem vida social, estudiosos de-
mais. Gente que sabe mais de gibis, séries de TV,
rockabilly, ficção científica ou computadores do
que seria socialmente aceitável.
Tanto “nerd” como “geek” são, de maneira ge-
ral, termos usados para definir indivíduos do sexo
masculino. Até porque o mundo dos nerds é, por
princípio, um mundo masculino, onde mulheres
não entram. E um mundo em que a castidade é
mantida com um rigor que deveria ser abençoada
pela Igreja Católica e o governo Bush (em compen-
sação, o pecaminoso desperdício de sêmen...).
Saiba-se lá por quê, nerds preferem ser chama-
dos de geeks. Tanto que, inclusive, já foram criadas
revistas quase mainstream chamadas Geek, tanto
nos EUA como no Brasil, ambas especializadas em
7
traquitanas tecnológicas. Nerd, que eu saiba, não
batiza nada tão glamouroso. Talvez porque seja um
termo mais recente, criado no início dos anos 1950
pelo dr. Seuss. Geek tem um passado mais nobre.
Shakespeare, por exemplo, que tinha um vocabulá-
rio ricamente limitado fala dos geeks. A origem da
palavra se perde na origem dos tempos (assim diria
o geek fã de Star Wars). Teria surgido do adjetivo
alemão geck: tolo, idiota.
Mas se nerds preferem ser chamados de geeks,
não é o caso de serem contrariados. Até porque o
mundo cada vez mais é formatado por eles.
De Quentin Tarantino a Kevin Smith, de Step-
hen King a Nick Hornby e, é claro, de Steve Jobs a
Bill Gates. E tudo começou, como mostra Gerard
Jones, com outra dupla típica: Jerry Siegel e Joe
Shuster. Por isso, preferimos manter em nossa edi-
ção o termo americano geek.
Em compensação usamos a palavra “gibi” como
sinônima de comic book, ainda que este último des-
creva originalmente um objeto específico: revistas
no formato 17 x 26 cm, com 32 ou 48 páginas.
Muitas vezes se usa equivocadamente a palavra
comics (“história em quadrinhos”) como sinônima
de comic book (que nós traduzimos “gibi”, mas po-
deria ser traduzido como “revista em quadrinhos”).
Sem levar em conta que as strips (as tiras de jornal)
são também histórias em quadrinhos, sem serem gi-
bis. Tanto nos EUA como no Brasil, as evoluções e
8
os retrocessos dos gibis e dos quadrinhos de jornal
aconteceram independentemente. Nos anos 1950,
por exemplo, enquanto os comic books eram mas-
sacrados pela onda de paranóia moralista que to-
mou os EUA, os quadrinhos de jornal começavam
a viver um momento dos mais livres e especiais,
com Peanuts, Pogo, Feiffer e outros.
Hoje, quando os quadrinhos tomam nova força
em todo o mundo, inclusive nos EUA, isso aconte-
ce no mundo das edições para livraria, em brochura
ou capa dura, à parte o universo dos comic books
de super-heróis, que continuam sua decadência de
décadas (iniciada ainda nos anos 1940, no final da
chamada “Era de Ouro”).
Por fim, decidimos manter o nome original dos
personagens, colocando o nome brasileiro, quando
havia, entre parênteses. Não por qualquer especial
preferência pela sonoridade da língua inglesa, mas
porque falamos de personagens que foram, com
frequência, diversas vezes rebatizados no Brasil.
Quantos brasileiros saberiam, por exemplo, que o
Aquaman era chamado de Marinho, quando foi pu-
blicado no Brasil na década de 1940? E quem se
lembra de Mirian Lane e Eduardo (depois conheci-
dos, também no Brasil, como Lois Lane e Clark
Kent)? Além do mais, com o interesse das grandes
multinacionais de consolidarem mundialmente suas
marcas, para otimizar seus gastos com marketing,
cada vez mais os personagens estão sendo em toda
9
a parte rebatizados com seus nomes originais em
inglês. Assim como o ursinho Puff virou ursinho
Pooh, o próprio Super-Homem já se apresenta no
Brasil como Superman.
That’s it!
Rogério de Campos

NOTA DO AUTOR
——————————

Um dos desafios deste livro foi procurar que


fundo de verdade havia nas lendas, mal-entendidos
etílicos e desculpas mentirosas que moldaram a his-
tória até hoje corrente da mais curiosa forma de
arte produzida na América. As entrevistas e conver-
sas que tive com muitos dos que sobreviveram aos
primórdios dessa indústria, e com suas famílias,
mostraram-se a fonte mais importante nesta pesqui-
sa. Foi em Westport Marina, durante uma conversa
com Irwin Donenfeld acompanhada de peixe frito e
cerveja, que compreendi as histórias de Harry Do-
nenfeld e Jack Liebowitz. Nos escritórios do De-
partamento de Desenvolvimento Urbano em Bea-
chwood, comendo roscas doces e tomando café
com Irv e Jerry Fine, delineei os contornos da his-
tória de Jerry Siegel da maneira como a conto aqui.
Muitos outros membros dos clãs Donenfeld, Siegel
e Liebowitz me ajudaram, assim como amigos e
parceiros de negócios dos homens a que este livro é
10
dedicado. Alguns pediram para permanecer no ano-
nimato, apenas por modéstia ou por causa do litígio
que atualmente envolve os direitos sobre o Super-
Homem, mas há um a quem eu posso e devo agra-
decer: o amigo leal de Harris, Jack Adams.
Meus 20 anos de experiência na indústria dos
gibis deram-me a oportunidade de conhecer muitas
das pessoas que criaram essa forma de arte. Em
duas ocasiões durante os anos 1980, tive a sorte de
bater um papo com Jerry Siegel e Joe Shuster na
San Diego Comic Con (Convenção que é o princi-
pal evento dos quadrinhos norte-americanos e
acontece anualmente na cidade de San Diego, Cali-
fórnia).
Algumas das coisas que eles me disseram (até
agora não reveladas) acabaram se tornando partes
importantes do livro que eu escreveria quase duas
décadas mais tarde. Durante esses mesmos anos en-
trevistei e tive longas conversas com Jack Schiff,
Julius Schwartz, Vin Sullivan, Murray Boltinoff,
Jack Kirby e outros desses pioneiros que já não se
encontram mais entre nós. Também devo muito
àqueles que tão gentilmente aceitaram me dar en-
trevistas e responder minhas perguntas, às vezes
desconcertantes, relacionadas a este projeto: o fale-
cido Will Eisner, Stan Lee, Jack Williamson, Alvin
Schwartz, e o generossíssimo Jerry Robinson.
Dependi não só daqueles que vivenciaram a his-
tória dos quadrinhos, mas também daqueles que a
11
estudaram como especialistas e colecionadores, e
que me conduziram através da floresta de contradi-
ções e enganos até o caminho mais plausível dos
acontecimentos reais. Meu Virgílio, meu Tenzing,
minha Sacagawea foi Michael Feldman, que passou
muitos anos juntando pecinhas do quebra-cabeça e
fala com sabedoria e conhecimento sobre o lugar
dos quadrinhos no contexto mais amplo das cultu-
ras alternativas e sobre o empreendimento judaico
num passado quase enterrado da história america-
na. Algumas das outras pessoas sem as quais o li-
vro não estaria completo são Will Murray, Denis
Kitchen, Tom Andrae, Mike Catron, Michael Us-
lan, Mark Evanier, Anthony Tollin, Richard Hale-
gua, Bob Beerbohm, Mark Waid e Paul Levitz. Mi-
nha pesquisa em Cleveland ficou mais agradável e
produtiva graças à hospitalidade de Mike Sangiaco-
mo do Plain Dealer e Carolyn Johnson da Glenvil-
le High School. Agradeço a Art Spiegelman, Jules
Feiffer, Paul Buhle e Michael Chabon pelos mo-
mentos vitais em que me deram força e me ajuda-
ram com correções. Também sou muito grato àque-
les que encontraram erros na primeira edição deste
livro, possibilitando que fossem corrigidos. Foram
eles Roy Thomas, Larry Miller, Alan Light, e prin-
cipalmente Michael Siegel e Douglas Nicholson, fi-
lhos respectivamente de Jerry Siegel e Malcolm
Wheeler-Nicholson.
Se a substância deste livro foi um presente das
12
pessoas a quem agradeci acima, sua forma foi dada
pelos amigos que escutaram meus lamentos, afaga-
ram minha cabeça e leram os capítulos à medida
que me sentia confiante o suficiente para mostrá-
los: Allen Weinberg, Charlie Goldberg, Henry
Jenkins, Heidi Anderson, Joe Filice, Joel Millner,
Andréa Rundgren, Helene Manheim e Erika Silver,
que sem explicação ou motivo me presenteou com
uma edição antiga de G. I. Joe muito reveladora.
Houve também as duas que leram as tenebrosas
páginas de rascunho uma por uma e em suas dife-
rentes versões: Melissa McAvoy, que encontra um
advérbio perdido mesmo em meio a cachorros e
crianças correndo para lá e para cá, e Carla Seal-
Wanner, que transformou sua profunda indiferença
aos super-heróis num arsenal crítico que repetida-
mente me forçava a tentar alcançar a clareza do
texto.
Por fim, minha gratidão a Jennie, que se tornou
uma mãe solteira durante meses para me ajudar a
terminar o manuscrito; a Nicky, que encarou o pou-
co tempo que o papai passava a seu lado com tanta
generosidade; a minha agente Carol Mann, que tan-
to me deu forças; e a todos na Perseus Books que
trabalharam com tanto afinco nos inúmeros deta-
lhes, em especial a Ellen Garrison, Rich Lane, ao
príncipe dos editores de texto, Steven Baker, e prin-
cipalmente, a Jo Ann Miller, a editora cuja sabedo-
ria salomônica, esforços hercúleos, constância de
13
Atlas, autoridade de Zeus, furor de Aquiles e rapi-
dez de Mercúrio arrancaram-me das garras do caos
e do desespero no último instante. Suh-HAZ-am!

Gerard Jones
Junho de 2005

PRÓLOGO
——————————
IDENTIDADE SECRETA

JERRY EMPURROU o jornal até o outro lado


da mesa. — Leia isso — disse, e ficou observando
enquanto ela lia os detalhes. O script de Mario
Puzo. Os planos de colocar Paul Newman, Clint
Eastwood ou Dustin Hoffman no papel principal.
As imagens daquele herói — seu herói — projeta-
das a laser sobre balões gigantescos no Battery
Park davam muito o que falar já antes do lança-
mento. Quando viu a raiva brilhar em seus olhos,
soube que ela tinha chegado à parte sobre os 3 mi-
lhões de dólares. A Warner Brothers tinha torrado
uma fortuna pelos direitos do Super-Homem para
fazer um filme, e nem um centavo iria para Jerry,
Joe ou suas famílias.
— Você não pode deixar eles se safarem assim!
— disse Joanne.
— O que mais posso fazer? — ele retrucou. Já
por duas vezes Jerry os tinha desafiado nos tribu-
14
nais, e nas duas vezes havia arruinado sua carreira
sem conseguir nada, enquanto eles ficavam cada
vez mais ricos.
— Escreva para a Variety. Conte para eles a
verdadeira história — sugeriu ela. Mas ele tinha
medo. Tinham dito que poderiam arranjar uma aju-
da financeira para ele caso desistisse de aparecer na
Suprema Corte. Qualquer coisa que ele fizesse ago-
ra iria acabar com essa possibilidade.
— Nunca vão fazer nada por você! — Joanne
disparou. — A não ser que você os faça passar
muita vergonha. A não ser que você conte para
todo mundo o que Jack Liebowitz fez com você.
— Seria demais para mim — respondeu Jerry, e
saiu para o trabalho. Ao longo da vida ele tinha se
acostumado a esconder a dor e a perda — a primei-
ra, que despedaçara sua infância, e aquela outra,
que experimentava constantemente, a dor de ver
sua grande criação arrancada de suas mãos. Fazia
tudo para ser mais forte que a dor. Mas, no longo
caminho até o trabalho, as palavras começaram a
vir. Desde o ataque cardíaco, andava mais de ôni-
bus do que de carro, e poucas jornadas são mais
sombrias e intermináveis do que atravessar Los An-
geles num ônibus. De Westwood aos trechos obs-
curos de Beverly Hills, passando pelos restos des-
truídos da Miracle Mile e se aproximando das ruí-
nas esburacadas no Centro, ele, os aposentados
com pensão fixa e os mexicanos que faziam faxina,
15
todos naquele ônibus que se arrastava na mesma
velocidade em que um jovem saudável caminha.
Teve tempo para pensar o que dizer ao mundo so-
bre Jack Liebowitz. O duas caras, o traidor, o ban-
dido.
Por fim o ônibus deixou-o no prédio da reparti-
ção onde trabalhava. Lá teria mais tempo para pen-
sar, durantes suas oito horas como funcionário dos
correios, separando e fazendo entregas, além de
pensar em Jack Liebowitz embolsando sua parte
daqueles 3 milhões. Algumas das secretárias ti-
nham ouvido coisas a respeito de Jerry, e dava para
ver o ceticismo em seus olhos quando ele levou as
cartas e encomendas até o escritório. Elas tentavam
conciliar a imagem deste homem pequeno e tímido
com a do herói dos programas de TV e filmes.
— Essa história de que você criou o Super-
Homem... não é verdade, é? — elas perguntavam.
Ele dava um sorriso amarelo e dizia:
— Ah, sim, fui eu!
Então se lembrava de 30 anos antes, quando seu
nome aparecia em 300 jornais por dia, quando era
convidado ao programa de rádio de Fred Allen,
transmitido de costa a costa, ouvido por secretárias
e carteiros idosos que ficavam imaginando como
seria criar algo que todos, no mundo inteiro, conhe-
ciam.
Naquela noite Joanne aumentou a pressão. E se
ele tivesse um outro ataque cardíaco, um mais gra-
16
ve, enquanto ficava esperando aqueles mentirosos
se darem bem? O que seria de Laura? Jerry sabia
como era perder o pai. E de que adiantaria ficar
quieto? Eram outros tempos, e já não era problema
lavar roupa suja em público. Era 1975, e ninguém
tinha segredos. Revelações derrubavam presiden-
tes, enchiam os jornais e mudavam a forma de pen-
sar das pessoas.
— Pelo menos todo mundo ficaria sabendo —
disse Jerry. Em seu coração, aquilo queimava tanto
quanto a questão do dinheiro: saber que seu nome
nunca apareceria nos créditos dos filmes, assim
como nunca tinha aparecido no seriado da TV, do
mesmo modo como tinha sido arrancado dos qua-
drinhos havia três décadas. Se contasse sua história
agora, todos finalmente saberiam do presente que
tinha dado ao mundo. E ficariam sabendo o quanto
ele sofreu.
Por fim Jerry pegou sua máquina de escrever —
a mesma velha máquina manual em que ele tinha
datilografado os primeiros originais, alcançado o
topo e despencado lá de cima. Colocou o papel ofí-
cio e preparou o carbono. Começou a escrever um
release. O primeiro, enviaria para a Variety, mas
haveria mais. Muito mais.
Escrevia pensando na raiva que tinha sentido ao
longo de toda a vida, uma raiva que aumentava dia
a dia muito antes das primeiras batalhas envolven-
do o Super-Homem. Mas nunca tinha aprendido a
17
expressá-la. Seu furor sempre aumentava e ele aca-
bava parodiando a si mesmo. “Eu, Jerry Siegel, co-
inventor do SUPER-HOMEM, roguei uma praga
para o filme do SUPER-HOMEM! Espero que seja
um superfracasso.” E continuava enfurecido por
dez páginas, cheias de erros de ortografia e redun-
dâncias, arrotando letras maiúsculas e melodrama.
“Os editores das revistas em quadrinhos do SU-
PER-HOMEM [...] assassinaram meus dias, mata-
ram minhas noites, sufocaram minha felicidade, es-
trangularam minha carreira.” “COMO É INFER-
NAL E NAUSEANTE O SUPERFEDOR QUE
EMANA DA NATIONAL PERIODICAL PUBLI-
CATIONS.” Ele fundiu décadas de correspondência
e batalhas judiciais numa história de vilões e víti-
mas. “Penso que os executivos da National são as-
sassinos empresariais, monstros enlouquecidos pelo
dinheiro.” ‘‘Jack Liebowitz, membro da diretoria
da Warner Communications, apunhalou a Joe Shus-
ter e a mim, Jerry Siegel, pelas costas. Ele arruinou
nossa vida propositalmente.” Por trás dessa história
havia uma outra que, mesmo não sendo reconheci-
da, ajudou a escrevê-la: a história de um garoto a
quem roubaram algo ainda mais precioso, um garo-
to que foi separado de sua autoconfiança, de sua
energia, e passou a vida inteira tentando recuperá-
las. Agora, ao finalmente contar sua história, Jerry
Siegel recuperaria um pouco do que tinha perdido.
Algumas histórias são importantes já no mo-
18
mento em que acontecem. Outras mostram-se rele-
vantes somente após algum tempo. A história dos
homens que criaram os gibis americanos e aquela
entidade tão singular, hoje conhecida como super-
herói, ficou por quase 30 anos sem ser contada. Es-
ses homens estavam sempre correndo, dia após dia
e mês após mês, enchendo as páginas com suas in-
críveis tintas sem nunca parar para ver que o que ti-
nham feito e vivenciado era digno de uma reflexão.
Quem por fim juntou as histórias foram os fãs, que
compilavam dados para fanzines que não tinham
nenhum propósito a não ser entender melhor os
quadrinhos que já estavam ficando amarelados no
armário. Jerry Siegel foi o primeiro a trazer a histó-
ria ao conhecimento do público. Mas não foi único
a contá-la.
A história é escrita pelos vencedores — mas
nem sempre. Há histórias escritas pelos perdedores.
A das histórias em quadrinhos foi escrita pelos que
foram trapaceados e os que simpatizaram com eles.
Os homens que fizeram fortuna ficaram calados. Os
que fundaram empresas, compraram os persona-
gens e criaram o império de marketing e multimídia
guardaram suas versões para si mesmos e deixaram
os escritores e desenhistas escrever a história.
Enquanto Jerry Siegel datilografava suas cartas,
o chofer levava Jack Liebowitz de seu apartamento
no Upper East Side até o escritório da Warner
Communication no Rockfeller Center. Ele pegou o
19
elevador até o último andar, onde fica a sala de reu-
niões, e cumprimentou os outros membros da dire-
toria. A maioria era de homens muito mais jovens,
homens que não existiam na Nova York que ele co-
nhecia. Enquanto esperava Steve Ross chegar para
o encontro, viu Manhattan através das grandes ja-
nelas, ao sul da ilha aonde tinha chegado, vindo de
um mundo agora destruído. Enquanto olhava pelas
janelas, talvez se lembrasse dos carrinhos-de-mão,
do cheiro de tinta nas pilhas de jornal. Ou então dos
gritos dos trabalhadores durante os encontros socia-
listas, onde ele tinha aprendido como o capitalismo
e a América funcionam. Podia traçar sua própria
trajetória ao longo da ilha, até a Union Square,
onde saiu de um sindicato poderoso e tornou-se um
pequeno editor de girlie magazines (Revista com
fotos de mulheres seminuas) — e percebeu que
aquilo era, em alguns aspectos, mais limpo que fa-
zer parte do sindicato. Mais ao norte havia o prédio
na Lexington Avenue, onde o Super-Homem o tor-
nou rico e respeitável de um só golpe. Ser respeita-
do era algo importante. Ele deixaria Jerry Siegel
contar a história dos quadrinhos — pelo menos as
poucas partes que ele sabia. Mas Jack preferia dei-
xar a maior parte dela escondida.
Jerry Siegel, Jack Liebowitz, Joe Shuster, Harry
Donenfeld, Charlie Ginsberg, Bob Kahn, Stanley
Lieber, Jake Kurtzberg, Mort Weisinger: todos da
mesma geração, conhecidos entre si, todos garotos
20
judeus, filhos de imigrantes, muitos à margem de
suas próprias comunidades. Embora mantidos à
parte do mainstream (Tendência dominante) ameri-
cano, estavam mais em sintonia com os desejos e
angústias desse mainstream do que as pessoas que
faziam parte dele. Em busca de uns trocados fáceis,
uma novidade espetacular e um pouco de alívio
para seus anseios solitários, inventaram uma forma
de cultura que foi como uma revelação para crian-
ças de todas as classes e etnias e iria evoluir a pon-
to de se tornar parte da fantasia de adolescentes e
adultos. Essa cultura sobreviveria por mais de 60
anos após o estouro inicial e estabeleceria a norma
de entretenimento numa época muito diferente da-
quela em que foi criada.
Muitos desses jovens não tinham pais, seja no
aspecto físico ou emocional. Muitos deles não tive-
ram a oportunidade de ser criados da forma mais
apropriada e foram forçados a assumir o papel de
adulto muito cedo ou então mantidos no mundo
emocional infantil. Em alguns casos, as duas coisas
ao mesmo tempo. Disputavam poder e independên-
cia como se fossem crescidos, ao mesmo tempo em
que alimentavam fantasias de jardim-de-infância.
Sonhavam com o amanhã, mas era um amanhã fan-
tástico, feito de sonhos de ficção científica juvenil e
das mais loucas esperanças de sucesso. No entanto
testemunharam e ajudaram a moldar o amanhã
americano.
21
As relações que mantinham com a masculinida-
de, a sexualidade, o poder, a individualidade, a vio-
lência, a autoridade e a moderna fluidez do indiví-
duo eram tão intrincadas e profundas que seu traba-
lho falava diretamente às ansiedades da vida mo-
derna — e com um conhecimento de causa que ja-
mais julgaram ter. A medida que o tempo passava,
suas criações tornaram-se cada vez mais importan-
tes. Eles previram e ajudaram a moldar a cultura
geek, estabeleceram o padrão de franquia para en-
tretenimento, criaram uma fantasia pronta para ser
vendida à cultura do narcisismo de consumo. Pro-
vocaram o surgimento de subculturas artísticas. E
tudo isso sem saber direito o que estavam fazendo.
Apenas seguindo adiante, tentando estar sempre um
passo à frente, reunindo os fragmentos culturais
que encontravam no Lower East Side, em Glenville
e no Bronx e transformando-os em algo que pudes-
se ser vendido de forma barata e rápida. Tudo isso
feito depois de banir da consciência o ontem e
ocupá-la com o sonho das riquezas que acumulari-
am amanhã.

1
——————————
A RUA

NO FIM, Harry era uma coleção de histórias.


Quase não há registros sobre os primeiros 35 anos
22
de sua vida, a não ser pelas histórias que ele e ou-
tros contavam a seu respeito em bares, cassinos,
reuniões de distribuidores, camarotes do estádio
dos Yankees e durante as raras e breves aparições
que fazia à mesa de jantar de sua família. Costuma-
va dizer que tinha nascido na Romênia, em 16 de
outubro de 1893, e chegado via Ellis Island aos 5
anos. Porém, quando seu filho foi atrás disso, um
século mais tarde, não havia nenhum registro de
que Itzhak Donenfeld, sua esposa ou os filhos
Harry e Irving tivessem chegado à América. Harry
dizia que tinha terminado seus estudos na New
York University para aprender administração, mas
lá também não havia nenhum registro. Não havia
uma certidão de nascimento, um histórico escolar,
um documento de negócios que ajudasse a traçar
suas várias carreiras, seus altos e baixos, ou a ori-
gem misteriosa do capital com que construiu sua
posição na indústria de publicações. Tudo o que ha-
via eram as histórias narradas por ele às gargalha-
das, histórias difíceis de crer, cheias de descaradas
bravatas.
Algumas vezes essas histórias beiravam o ridí-
culo. A quem lhe perguntasse como, durante a
guerra, arranjava suprimentos generosos de papel,
afirmava fazer parte do Brain Trust (Grupo de inte-
lectuais que aconselhavam o presidente Franklin D.
Roosevelt no início de seu mandato, durante a
Grande Depressão. O Brain Trust funcionava como
23
uma espécie de gabinete presidencial.) do presiden-
te Roosevelt. Por que o homem mais poderoso do
mundo ia querer Harry Donenfeld, um tampinha
que saía para festejar usando uma camiseta do Su-
per-Homem, em seu Brain Trust? “O velho me
adorava!”, dizia Harry. “Uma vez prendi um fósfo-
ro no sapato dele e toquei fogo.” (Então Harry não
sabia que Roosevelt andava em cadeira de rodas?
Ou será que aí é que estava a graça? Antes que al-
guém pudesse perguntar, Harry já tinha descido três
lances de escada e estava lá embaixo, cumprimen-
tando efusivamente outra pessoa.) Mas às vezes o
que parecia ridículo era mesmo verdade. Era fácil
dizer que as supostas ligações de Harry com os
maiores gângsteres da América não passavam de
ficção. No entanto, assim que se deixava de acredi-
tar nelas, aparecia alguma evidência. Lá estava
Frank Costello (Francesco Castiglia, importante
gângster ligado à Máfia que atuou nos EUA), que
dava um jeitinho em tudo.
A autopromoção descarada, a maneira absurda
como glorificava a si mesmo, a recusa a se subme-
ter à tirania do real e do possível, a crença de que
histórias eram tudo o que importava — essas foram
as dádivas de Harry para a indústria que ele ajudou
a criar, a indústria que por fim tentaria apagar sua
existência da memória, mesmo que carregasse para
sempre um eco de suas risadas e mentiras. Harry
enterrou muito de seu passado, mas as histórias que
24
restaram servem como guias sobre quem ele era e
como chegou onde chegou: de que modo um ho-
mem que não dava a mínima para publicações, en-
tretenimento ou crianças virou o editor da DC Co-
mics e trouxe os super-heróis ao mundo.
Harry foi parar em Nova York na crista de uma
onda, já que 1899 foi o ano da diáspora romena.
Havia mais de 20 anos que os judeus não paravam
de chegar a Nova York vindos do império russo,
mas a Romênia era um lugar melhor para ser judeu.
Para ganhar o apoio da França e da Alemanha du-
rante a guerra da independência, os romenos pro-
meteram respeitar os direitos civis de todos os seus
cidadãos. Falantes de iídiche abarrotaram o país,
vindos da Rússia, Polônia e Ucrânia, misturando-se
a comunidades já estabelecidas havia séculos de fa-
lantes de turco, romeno e ladino e criando um mun-
do judeu muito complexo e cosmopolita. No final
do século XIX, algo entre um terço e metade da po-
pulação de Bucareste e outras grandes cidades na
Romênia era composto por judeus. Eles ocupavam
cargos no governo da capital, e alguns viraram pre-
feitos em cidades menores. Os judeus tinham gran-
des empresas e dominavam o mercado de têxteis.
Advogados e médicos proeminentes eram judeus.
Parecia que a Romênia ia virar um paraíso judeu
por excelência.
Entretanto, depois que o governo romeno assen-
tou suas bases, tudo mudou. A promessa de direitos
25
iguais para todos os cidadãos foi mantida, mas o
conceito de “cidadão” era aplicado somente aos
cristãos. Os judeus foram proibidos de fazer comér-
cio nas ruas. Finalmente, em 1896, os romenos
mostraram, ao expulsar judeus de bairros inteiros e
mobilizar jovens desempregados para promover o
primeiro pogrom (Massacre de judeus. Ao longo do
livro, diversas palavras em iídiche que entraram no
vocabulário da língua inglesa são usadas. Tendo em
vista a importância que o autor atribui à cultura ju-
daica e iídiche, optou-se por preservar os termos
nessa língua.) no país, que seu exaltado orgulho na-
cional poderia ser tão odioso quanto o dos russos.
Para um povo que acreditou nas promessas de futu-
ro melhor, foi uma traição imperdoável. Com uma
rapidez e uma união desconhecidas em qualquer
outro país, os judeus solidarizaram-se. E foram em-
bora. Estima-se que, entre 1899 e 1904, um terço
dos judeus da Romênia emigraram para outros paí-
ses — a maior parte deles para a América, mais es-
pecificamente Nova York. Alguns mercadores ricos
custearam o transporte da comunidade judaica de
cidades inteiras. Milhares de homens e mulheres in-
dignados demais para juntar o dinheiro da passa-
gem de trem ou navio juntaram-se em um bando
que cruzou os montes Cárpatos a pé e saiu do país,
cantando canções em iídiche e por vezes usando os
uniformes do exército romeno, num último kish
mir im tuchus (Literalmente, “beije meu cu”. Usado
26
no sentido de “foda-se”) para o país que os havia
traído. Harry Donenfeld, assim como muitos de
seus compatriotas, tinha uma raiva, uma certa arro-
gância, uma tendência a ver os goyim (Pessoa não-
judia) não como opressores de longa data, mas sim
como trapaceiros e hipócritas.
Então os judeus romenos chegaram a Nova
York, e com eles os Donenfeld. Juntaram-se em
torno da Primeira Sinagoga Romeno-Americana, na
Rivington Street, onde se acomodavam e se espre-
miam nos 15 quarteirões entre as ruas Allen e Lud-
low, Houston e Grand, até que os próprios imigran-
tes das redondezas ficaram perplexos e desanima-
dos com a situação da vizinhança. Nessa época o
Lower East Side já era o bairro mais populoso da
história — meio milhão de pessoas em cerca de 2,5
quilômetros quadrados — e a parte romena era a
mais densamente povoada, chegando a 1.500, 1.800
pessoas num único quarteirão. Rapidamente eles
passaram a se identificar como romenos, encher as
ruas de restaurantes famosos pela comida tempera-
da e shmalts (Gordura de frango, usada na culinária
judaica) e contar piadas sobre a comida e as roupas
dos imigrantes recém-chegados dos shtetls (Peque-
nos vilarejos judeus no leste europeu) russos. Logo
ficaram famosos por suas belas vozes, pavio curto e
crueza nos negócios com os goyim.
Não se sabe muito bem o que Itzhak Donenfeld
fez ao chegar com mulher e filhos. Temos apenas
27
histórias da infância de Harry e Irving, em que ele
aparece ao mesmo tempo como vendedor ambulan-
te e negociante de roupas. Essa falta de documentos
era comum entre os imigrantes judeus daquela épo-
ca. Para passar por Ellis Island, muitas vezes era
preciso desrespeitar a lei, mentir e subornar ofici-
ais. Pessoas pagavam famílias para ser incluídas
como “irmãos” nelas. Outras tinham que trocar de
nome. Já na nova terra, um imigrante poderia ter
outras razões para trocar de nome ou mudar sua
data de nascimento. A crença popular dizia que o
exército convocava primeiro garotos judeus e os
mandava primeiro para o front — assim, dava-se
um dinheirinho para um funcionário municipal e
ele desaparecia com a certidão de nascimento. Ga-
rotos de 12 anos passavam a ter 14 para poder tra-
balhar, e seis anos mais tarde voltavam aos 16 para
escapar da convocação. Anos mais tarde o próprio
Harry quase perderia os direitos do Batman porque
o pai de um jovem desenhista tinha feito sua certi-
dão de nascimento desaparecer.
A falta de documentos, nomes fixos e ascendên-
cia definida, de fatos concretos a respeito das vidas
deixadas para trás no Velho Continente, fazia com
que fosse mais fácil e mais importante reinventar a
si mesmo no Novo Mundo. Para um garoto como
Harry, a realidade não era o que ele era, mas sim o
que dizia ser. Cada conhecido era platéia renovada,
mais um colaborador na autoria do novo Harry Do-
28
nenfeld. Esta foi a tarefa assumida por uma geração
inteira de jovens imigrantes: criar um novo “eu”,
um novo tipo de jovem judeu, a partir do que esta-
va disponível no Lower East Side. O lugar para
onde foram trazidos pelos seus pais não era muito
diferente das antigas vizinhanças em Vilna, Varsó-
via ou Bucareste. O barulho na cidade não era de
motores, mas sim de cascos e rodas de madeira.
Mercadorias eram transportadas em carrinhos-de-
mão e carroças. Os bondes eram puxados a cavalo.
Somente os trens que passavam pelos vales escuros
das ruas Chrystie e Allen traziam os sons do Novo
Mundo. O lixo era jogado em sarjetas e travessas.
Encanamento doméstico era uma coisa rara, e todas
as manhãs o conteúdo dos penicos era despejado
manualmente nos esgotos dos becos. O ar fedia. A
luz elétrica começava a ganhar espaço em locais
públicos, mas lojas e casas usavam querosene. Fora
da sala de aula, a língua falada era o iídiche e, se al-
guém ouvisse alguma outra língua na rua, era muito
mais provável que fosse o russo, não o inglês. Os
adultos se vestiam como sempre — barba, lã negra,
chapéus de abas largas e babushkas (Espécie de
echarpe triangular usada pelas mulheres ao redor da
cabeça e amarrada no pescoço). Quando Harry Do-
nenfeld era garoto, ainda era moda os cristãos bur-
gueses de famílias tradicionais irem até o centro,
aos domingos, para olhar aqueles judeus engraça-
dos.
29
No entanto eles tinham ido até lá para encontrar
um Novo Mundo. Cortar os laços com a terra natal,
vender posses de família, dar o último adeus a ir-
mãos e pais, enfrentar o terror e o castigo durante a
viagem — tudo feito em nome do futuro. A única
vantagem imediata de estar na América era escapar
do pogrom, e as notícias da imprensa iídiche sobre
o crime nas ruas de Nova York e as quadrilhas de
jovens goyim assassinos que rondavam a periferia
dos bairros judeus não eram exatamente animado-
ras. Todas as oportunidades da América — ganhar
dinheiro, arranjar emprego, comprar terra — eram
ainda apenas uma possibilidade. O sentimento mes-
siânico que havia tumultuado o mundo iídiche no
século anterior, o anseio de libertação que mantinha
os hasidim (Judeus ortodoxos) se lamuriando e
dançando nos shtetls enquanto o vizinho com mais
senso prático vendia sua carroça e se mudava, tudo
isso se transformou em fé ardorosa na promessa de
um mundo novo.
As crianças ouviam muitas vezes com toda cla-
reza: não estavam vivendo para o hoje, mas para o
amanhã. Harry disse que chegou a Nova York com
5 anos e sem lembranças do país natal. Só recorda-
va a jornada. O novo mundo, entretanto, deu um
sentido novo à mensagem repetida pelos pais. As
crianças entenderam que teriam de se transformar
em seres completamente novos para poder criar e
depois ingressar nesse amanhã. E a maioria das fer-
30
ramentas para a transformação não estava em casa,
no shul (Sinagoga) ou na escola americana. Estava
na rua.
Os garotos Donenfeld raramente falavam de sua
vida doméstica, mas podemos supor que foi tão di-
fícil quanto a da maioria dos outros imigrantes do
Lower East Side. Quando os dois irmãos mais ve-
lhos, Charlie e Mike, atravessaram o oceano para se
juntar a eles, seis pessoas tinham de dividir o mi-
núsculo espaço no cortiço em que a família mora-
va, na Orchard Street. Provavelmente os quatro ir-
mãos dormiam na mesma cama, ou, como muitas
outras crianças, no “quarto saguão” — arrumavam-
se as camas no corredor de entrada do prédio de-
pois que todos tivessem se recolhido —, o que os
expunha a pisões e pontapés dos que chegavam tar-
de ou acordavam cedo. Os excessos populacionais
não eram os únicos: havia também os psicológicos.
Os pais pressionavam os filhos a ir bem na escola,
aprender inglês, um ofício e arranjar um emprego.
As brincadeiras eram desestimuladas, especialmen-
te as violentas. Um autor lembrou que sua mãe gri-
tou “Alter, Alter, você quer me matar?” quando ele
quebrou a perna jogando stickball (Jogo de rua com
regras similares às do beisebol) “Mãe”, berrou ele,
“afinal quem foi que quebrou a perna?”
Os pais tentavam evitar que os filhos deixassem
a escola para arrumar emprego, mas, quando a situ-
ação financeira apertava demais, não havia escolha.
31
No fim do século XIX, era proibido a crianças me-
nores de 14 anos trabalhar em lojas e fábricas, mas
a cidade de Nova York deu um jeito de burlar a lei.
Cortiços inteiros foram designados “oficinas”, onde
corte e costura e outros serviços poderíam ser exe-
cutados sem supervisão oficial. Assim, as mães po-
diam colocar seus filhos de 10, 8 ou 6 anos para
trabalhar junto com os do vizinho. Um quarteirão
podia ter diversas dessas oficinas. Estima-se que a
Orchard Street abrigasse 200 delas em suas cinco
quadras. Parece que os Donenfeld, às vezes, pega-
vam trabalho terceirizado, já que mais tarde os ir-
mãos de Harry, em seus relatos, falariam de tecido
cortado na cozinha, à luz das lamparinas de quero-
sene. Mas mesmo com o aumento na renda as pres-
sões não diminuíam. Os pais que podiam pagar co-
locavam seus filhos em aulas de hebraico. Alguns
conseguiam bancar aulas de piano ou violino. E o
tempo todo havia as lições de moral: garotos flagra-
dos fumando, fazendo apostas, jogando bola, falan-
do com garotas desconhecidas e andando sem cha-
péu pelas ruas eram criticados e malhados sem per-
dão.
A sinagoga era uma extensão do lar, mas a nova
geração dela se afastava ao mesmo tempo em que
os pais defensivamente se refugiavam cada vez
mais nela. Lincoln Steffens escreveu sobre o abis-
mo entre as gerações: “uma sinagoga onde uns 20
garotos ficavam sentados sem chapéu, com suas
32
roupas velhas, fumando nos degraus da entrada, en-
quanto seus pais, vestidos de preto [...] entravam na
sinagoga, arrancando os cabelos e rasgando os tra-
jes [...]. Os filhos rebelaram-se contra as leis de
Moisés: eram almas perdidas.” Mais tarde, lem-
branças alteradas pela nostalgia criariam uma ima-
gem sentimental do Lower East End como uma
vida próspera, uma experiência feliz para o povo
judeu, mas naquele momento toda uma geração de
jovens ansiava sair dali — ir para longe do bairro,
para longe da Yiddishkeit (Condição iídiche).
A escola era um alívio para muitas crianças, e
uma desculpa para sair de casa que nenhum pai re-
criminava. Mas era também muito sufocante: 40 ou
50 crianças numa sala, carteiras encostadas umas
nas outras. Dez horas de aula por dia para os que
faziam aulas extras de inglês. Além disso, a escola
parecia não corresponder à propaganda que dela fa-
ziam. Os professores não eram rabinos respeitados
pela comunidade, mas jovens irlandesas aguardan-
do por um marido que as arrancasse da miséria. Al-
guns filhos de imigrantes ascendiam socialmente
graças à escola, viravam advogados e médicos, mas
possibilidades como essas eram remotas para garo-
tos como os irmãos Donenfeld, que não tinham
tempo nem dinheiro para isso. Os all-rightniks (Ju-
deus emergentes que passaram a constituir uma
classe média) que economizavam o suficiente para
sair do Lower East Side raramente eram os imi-
33
grantes mais cultos. Eram quase sempre os comer-
ciantes mais astutos, que abriam suas próprias lo-
jas, ou então os sortudos fabricantes de roupas que
entraram no ramo quando ele se expandiu, ou ainda
os negociantes que se deram bem no ramo imobi-
liário do Brooklyn.
Para um garoto inquieto, ambicioso e impacien-
te, o grande palco da vida não era sua casa, a escola
ou o shul, mas a rua. Nela as crianças se encontra-
vam e trocavam opiniões a respeito de como vencer
na América. A rua se abriu para o mundo. Os pais
de famílias imigrantes conheciam pouca coisa fora
do gueto além do caminho que eles tinham de per-
correr — rapidinho e de cabeça baixa — até as
fábricas ou negócios, mas as crianças logo expandi-
ram os horizontes geográficos. Aprenderam a esco-
lher a rota mais segura para atravessar o território
dos irlandeses, eslavos, alemães e italianos ao re-
dor. No cais, descobriram esconderijos onde podi-
am fumar e ver o mundo além da ilha. Aprenderam
a pegar carona em bondes e a dar um jeito de entrar
num trem até Coney Island ou o Central Park.
Poucos garotos eram tão inquietos, ambiciosos
e impacientes como Harry Donenfeld. As histórias
de sua infância giravam em torno de sua energia.
Língua incansável, jeito matreiro, apetites insaciá-
veis. Não há fotos da infância de Harry, mas mes-
mo em suas imagens de adulto é possível reconhe-
cer um pivete: os olhos acesos como faróis em bus-
34
ca de lucro ou travessuras, o sorriso ganancioso e
uma gargalhada pronta para emergir. Décadas após
a morte de Harry, seu filho falou com tristeza sobre
suas longas ausências, sobre o pai mulherengo, jo-
gador e desinteressado da vida dos filhos que era.
“Ele vivia somente para si mesmo”, disse Irwin.
“Sempre tinha mais o que fazer.” Então, sem se dar
conta, Irwin abriu um sorriso de admiração: “Ele
não sossegava nunca!”
Harry cresceu na rua, e foi ali que passou de ca-
çula da família a força motriz dela. Charlie e Mike,
quando chegaram, já eram adolescentes taludos,
não ganharam fluência no inglês, e nunca deixaram
de ser imigrantes recém-chegados e desajeitados.
Irving e Harry eram os americanos da família, mas
Deus deu às suas línguas destinos diferentes: en-
quanto Irving gaguejava, para Harry as palavras
fluíam como vinho. Harry gostava de contar histó-
rias sobre suas implicâncias com o irmão, princi-
palmente se ele estivesse ouvindo. Gritava para al-
guma garota bonita: “Ei! Meu irmão quer falar com
você!” Ao jogar craps (Modalidade de jogo de da-
dos), Harry atirava os dados aos berros de “cante os
números, Irving!” Irving ficava vermelho, saía chu-
tando o ar com raiva, o que deixava Harry feito
uma estrela, sorrindo, olhos brilhando. Quando
chegou a hora de arrumar um emprego, Irving deu
um jeito de dominar as palavras sem precisar falar:
virou tipógrafo. Harry virou anunciador, arrastando
35
clientes para uma loja de roupas com seus berros
musicais ou colocando flores na lapela de solitários
imigrantes recém-chegados, convidando-os a co-
nhecer uma pista de dança onde se podia sentir um
pouco de calor feminino por 5 centavos a valsa.
A habilidade de Harry para fazer com que as
pessoas gostassem dele foi especialmente útil nas
gangues. Quase todos os garotos do Lower East
Side faziam parte de alguma. Elas se formavam nas
entradas dos cortiços, recrutando garotos por meio
de ameaças — menos os que já estivessem em ou-
tra gangue maior ou mais durona, da pesada. Essas
gangues estavam criando algo novo no mundo: cri-
anças judias violentas. Os modos que seus pais ti-
nham aprendido no Velho Mundo, mantendo a ca-
beça baixa e evitando contato com os goyim, não
funcionavam no Novo Mundo. As crianças obser-
vavam seus camaradas da América — irlandeses e
sicilianos — e adotavam aquela arrogância. E isso
não foi um processo inconsciente. Um garoto durão
lembrou dos adultos discutindo na casa de seu pai,
na Polônia, quando alguém disse: “Judeus [...] por
que vocês ficam lá parados como ovelhas estúpidas
e deixam que venham e matem vocês, roubem seu
dinheiro, matem seus filhos e estuprem suas filhas?
Vocês não têm vergonha disso? É preciso resistir e
lutar. Vocês são homens como quaisquer outros
[...]. Revidem e eles vão sair correndo. Se vocês
vão morrer mesmo, pelo menos morram lutando”.
36
Alguns anos depois, o garoto diria que esse discur-
so “ficou gravado na minha memória. Levei as pa-
lavras comigo quando viajei com minha mãe para a
América e para o Lower East Side. Lembrei dessas
palavras quando revidei os ataques dos irlandeses
no East Side, quando era garoto. Elas se cravaram
como flechas de fogo em meus pensamentos”. Mas
esse garoto ainda não fazia parte da vida de Harry.
Meyer Lansky pertencia ao futuro.
Em apenas uma geração, os garotos judeus pro-
varam que tinham tanto talento para roubar e se
meter em brigas como quaisquer outros. Ainda em
1890, observadores afirmavam que “o judeu é um
imigrante exemplar, sem nenhuma tendência à de-
linquência”. Mas em 15 anos o número de crianças
judias levadas ao juizado de menores era igual ao
número de judeus na rede de ensino. Os mais alar-
mistas chegaram a chamar os judeus de “crimino-
sos inatos”.
Já adulto, Harry afirmava ter feito parte de qua-
se todas as gangues existentes no East Side. É fácil
imaginá-lo pulando de uma gangue a outra, ga-
nhando a simpatia de todos, mas jamais desperdi-
çando sua energia em algo como lealdade. Conhe-
cia os membros das “gangues da pesada”, que rou-
bavam os comerciantes, extorquiam dinheiro dos
vendedores ambulantes e, mediante pagamento,
promoviam incêndios criminosos e até mesmo co-
metiam assassinatos. Eles eram parte da paisagem.
37
Jack Kurtzberg, que cresceu no mesmo bairro que
Harry e mais tarde desenhou quadrinhos para ele,
disse: “Alguns de meus amigos viraram gângsteres.
Você também viraria, se quisesse juntar dinheiro
rápido para comprar um terno”. Mas Harry nunca
gostou de sofrer, e durante toda a vida ele se aper-
feiçoaria na arte de ficar longe das brigas e da ca-
deia. Aproximou-se quase sempre dum tipo de gan-
gue menos perigosa. Participava de brigas por terri-
tório, saía atrás de cerveja e cigarros, jogava craps
apostando uns trocados e jogando as moedas nos
degraus, cometia pequenos delitos e batia carteiras.
Harry mostrou-se um especialista em alguns
desses delitos. Foi ele quem descobriu que a grama
do vizinho era sempre mais verde. Liderando sua
gangue, passava pelas ruas Bowery, Kenmare e
Mulberry até chegar ao coração da Little Italy. Era
fácil para aquele garoto franzino, com sotaque iídi-
che, distrair os vendedores ambulantes de comida.
Ele enchia o sujeito de perguntas sobre o que era
cada coisa e fingia que pechinchava. As pessoas
riam e perguntavam que diabos ele estava fazendo
longe de seu bairro. Enquanto isso, seus amigos pe-
gavam algumas maçãs e saíam correndo. Harry era
o último a sair em disparada, mas era bem rápido.
Uma vez, ao atravessar a Bowery, uma gangue de
garotos italianos cruzou o caminho deles. Os outros
levaram uma surra, mas Harry escapou. Quando
voltaram mancando para casa, cheios de hemato-
38
mas e ensanguentados, encontraram Harry nos de-
graus do cortiço, comendo uma maçã. Fingindo es-
tar surpreso e zombando deles, disparou: “Cara, o
que aconteceu com vocês? Eu disse para entrar na
rua Mott!”
A criminalidade fez os pais preocupados tirarem
suas crianças das ruas, e assim a palavra “rua” pas-
sou a ser muito visada pelos imigrantes, professores
e reformadores. Mas as ruas não ensinavam apenas
o crime: nelas as crianças aprendiam a anunciar al-
gum produto, a comprar na baixa e vender na alta.
Aprendiam como mentir sem ser apanhados, até
que ponto deviam proteger os parceiros e quando
era preciso dar um sermão neles. As ruas também
ensinavam um tipo de promoção pessoal que se tor-
naria de suma importância para o novo estilo indi-
vidual americano. Eddie Iskovitz era um ano mais
velho que Harry, morava a alguns quarteirões dele,
na Henry Street, foi seu colega na escola pública
por alguns anos e seu amigo durante os primeiros
anos do novo século. Eram membros das mesmas
gangues, praticavam os mesmos delitos. Mas Eddie
era pobre de dar dó: ficou órfão cedo e foi criado
pela avó, uma viúva que trabalhava como vendedo-
ra de porta em porta. Eddie tinha de pagar boa parte
das despesas com comida e aluguel, então deixou a
escola para cantar e dançar nas esquinas em troca
de moedas. Havia muitas crianças cantando em es-
quinas no Lower East Side. Eddie aprendeu a se
39
destacar dando um grande sorriso, agitando os bra-
ços e cantando a plenos pulmões. Ele segurava a
platéia dando piscadelas, rolando os olhos e dirigin-
do insinuações maliciosas às pessoas que o assisti-
am. No fim da adolescência ele fazia apresentações
cômicas, e Harry já dizia: “Vocês têm que ver esse
Eddie Cantor (Eddie Cantor (1892-1964) foi um fa-
moso cantor, ator e, principalmente, humorista nos
Estados Unidos)! Ele é meu amigo!” O estilo Can-
tor virou o estilo de Harry: sorridente, com olhos
enormes, moleque, o amigo atrevido de todos. Mas,
por baixo de tudo isso, esperto. Sempre atento às
reações do público, pronto para aproveitar as opor-
tunidades.
Sem parar na escola, no trabalho ou nas gan-
gues por muito tempo, Harry moldou sua personali-
dade a partir de uma série de shticks (Palhaçadas) e
histórias. Ninguém dizia que ele era especialmente
esperto, durão ou o que quer que fosse, mas as pes-
soas que o conheciam o achavam engraçado, gosta-
vam de receber sua atenção e acreditavam que um
dia no futuro ele era bem capaz de chegar aonde
queria. Tinha o dom de perder dinheiro jogando da-
dos e cartas, mas também o dom de se recuperar fe-
chando um lucrativo negócio, fazendo um serviço
misterioso para algum brutamontes ou passando
uma rápida temporada como vendedor numa loja
de roupas. Harry estava virando um novo tipo de
vendedor ambulante, capaz de acompanhar sem di-
40
ficuldades uma América que mudava a cada dia,
em plena farra da economia superaquecida e co-
mandada pela publicidade: um vendedor que ven-
dia a si mesmo.

HAVIA OUTRAS maneiras de criar uma nova


identidade. Em 1899, em Proskurov, na província
de Podolia, na Ucrânia, ou quem sabe em um dos
shtetls próximos, uma mulher de vinte e poucos
anos chamada Mindl se casou. Ela e o marido tive-
ram um filho, em 10 de novembro de 1900, e cha-
maram-no Yacov. O pai desapareceu em seguida.
Ninguém sabia aonde tinha ido. Mais tarde, Mindl
disse que ele foi fraco demais para encarar a res-
ponsabilidade de sustentar uma família e se man-
dou para algum outro lugar, onde pudesse ganhar
dinheiro e guardá-lo para si — quem sabe a Améri-
ca. Ela nunca revelou a Yacov o nome do pai:
“Aquele homem nos abandonou. Ele não é o seu
pai.” Todas as pistas sobre a paternidade de Yacov,
sobre seu verdadeiro sobrenome, ficariam perdidas
nas ruas imundas de Proskurov.
Quando desistiu de esperar pelo marido, Mindl
retornou à casa dos pais, divorciou-se na sinagoga e
espalhou a notícia de que uma mulher pobre, aban-
donada com seu bebê, estava à procura de um ho-
mem que ficasse a seu lado. Esse homem apareceu
na forma de Yulyus Lebovitz, quando Yacov tinha
3 anos. A família tinha lá suas dúvidas: Lebovitz
41
era um socialista, um peleteiro envolvido com o
sindicalismo, uma atividade arriscada no império
do czar. Mas ele era honesto e gentil, dedicado a
cuidar das pessoas, e um defensor ardoroso de mu-
lheres exploradas por homens. Prometeu a Mindl
que cuidaria dela e do filho para sempre, e isso já
era mais do que qualquer mulher na situação dela
podia querer. Casaram-se em seguida e logo ela
teve mais filhos: ao completar 10 anos, Yacov tinha
cinco meios-irmãos.
O socialismo ganhava força entre os judeus rus-
sos, porque prometia não apenas livrar os trabalha-
dores da exploração, mas também livrar o mundo
de mentiras que prejudicavam o bem-estar dos ju-
deus. Sob o socialismo, o sentimento de justiça e
ajuda mútua dos judeus sobreviveriam, mas as idéi-
as religiosas sem sentido poderiam ser eliminadas.
Essa ânsia por um futuro melhor foi a mesma que
alimentou as idéias messiânicas entre os ortodoxos
e o assimilacionismo entre os filhos de imigrantes
na América. Mas a luta pelo socialismo também
serviu, involuntariamente, é claro, para alimentar
ainda mais o anti-semitismo russo durante a infân-
cia de Yacov Lebovitz. Os partidários da direita
responsabilizavam os socialistas judeus pela revo-
lução de 1905, que forçou o czar a aceitar uma
constituição. Nos últimos meses daquele ano, 700
pogroms foram promovidos no território do impé-
rio, quase 40 só na província de Podolia. Proskurov
42
escapou sem grandes estragos, mas todos ficaram
sabendo dos 500 mortos em Odessa e dos 100 de
Kiev, assassinados com o consentimento da polícia.
Mais tarde, Yulyus Lebovitz contaria a seu filho
adotivo histórias de encontros sindicais interrompi-
dos pelo exército e da perseguição policial que so-
freu.
Enquanto isso, notícias do novo mundo que es-
tava sendo construído na América enchiam as ruas.
Tudo o que se publicava na Rússia era duramente
censurado, mas jornais em iídiche estrangeiros
eram contrabandeados e distribuídos. O jornal
nova-iorquino Forverts (“A Vanguarda”) defendia
aberta e entusiasmadamente o socialismo e os direi-
tos políticos dos judeus. No inverno de 1909 e
1910, Yulyus Lebovitz leu a respeito da “greve das
blusas”, organizada por um novo grupo chamado
International Ladies Garment Workers Union (Sin-
dicato Internacional dos Trabalhadores da Indústria
de Roupas Femininas, daqui em diante abreviado
SITIRF). Oitenta por cento dos membros eram mu-
lheres judias. O Forverts publicou a história de
uma “frágil menina” chamada Clara Lemlich que,
durante uma reunião do sindicato, deu um jeito de
subir no palco e declarou, em iídiche, “sou uma
operária”. Então passou a descrever as “condições
inadmissíveis” de trabalho e propôs uma greve ge-
ral, idéia recebida com aplausos entusiasmados. Al-
guns dias depois, 20 mil trabalhadores da indústria
43
de roupas interromperam suas atividades. O movi-
mento foi chamado de “Levante das 20 Mil”, ou
“Grande Revolta”. Na verdade, Clara Lemlich tinha
vinte e poucos anos, era militante socialista, e tudo
tinha sido planejado; no entanto, histórias senti-
mentais eram bem-recebidas pelos que apoiavam a
esquerda e pelas pessoas não politizadas. Foi com
certeza uma história bem-recebida por Yulyus Le-
bovitz, defensor das mulheres e crianças. Os jornais
de esquerda continuaram publicando, por semanas
a fio, notícias das trabalhadoras que enfrentavam o
frio, a polícia e os que furavam a greve. No início
da primavera, os fabricantes cederam e aceitaram
uma jornada de trabalho de 52 horas semanais, pa-
gamento de feriados e permissão de assembléias
sindicais. O SITIRF, dominado por socialistas, era
uma importante força política.
Na mesma primavera, outra notícia chegou de
Kiev: 1.200 famílias judias tinham sido expulsas da
cidade. Dezenas delas foram parar em Proskurov,
com os recém-chegados implorando a seus amigos
e parentes um canto onde pudessem dormir, no só-
tão ou na entrada, cheios de maus pressentimentos
a respeito do que ainda estava por vir. Para Yulyus
o futuro era óbvio: na Rússia, a morte abateria
qualquer judeu disposto a ajudar na construção de
um movimento socialista internacional. Mas na
América isso seria possível, e lá sua família não te-
ria que sofrer. Em 1910, ele levou a família para
44
Nova York. Tornou-se Julius Liebowitz, marido de
Minnie, trabalhando às vezes na indústria de roupas
e dedicando-se em tempo integral ao SITIRF. O pe-
queno Yacov, agora com 10 anos, virou Jacob e de-
pois Jack.
Tanto Julius como Jack descobriram, de dife-
rentes modos, as ruas do Lower East Side. Para Ju-
lius, elas eram o lugar onde se vendiam jornais so-
cialistas e distribuíam-se panfletos dos sindicatos;
um lugar onde os trabalhadores podiam se reunir e
promover manifestações. Socialistas, comunistas e
anarquistas brigavam por idéias e concepções po-
líticas, mas no fim concordavam em ridicularizar os
democratas corruptos e os tolos religiosos.
Jack abriu seu caminho nas ruas como jornalei-
ro. As lojas de roupas no cortiço não eram a única
forma encontrada pelos empregadores para burlar a
lei e explorar o trabalho infantil no novo século:
outro modo evidente dessa exploração eram os ga-
rotos que vendiam jornais gritando as manchetes e
correndo para cima e para baixo nas ruas da cidade.
A indústria de jornais dependia muito de meninos
de 9, 10 ou 11 anos que estivessem dispostos a
abrir caminho pela cidade, anunciando jornais e ga-
nhando 1 dólar por dia. O apelo emocional dos jo-
vens jornaleiros, alegres e destemidos que apareci-
am nas tiras de quadrinhos da época eram um es-
forço para manter o sentimento público do lado da
indústria quando os reformadores propuseram que
45
as leis contra o trabalho infantil incluíssem também
a venda de jornais. A vida de jornaleiro não era fe-
liz. O expediente era longo, o dinheiro era incerto,
o risco de ser assaltado era alto e as brigas por terri-
tório e vendas eram constantes. Mas Jack se deu
bem. Ele tinha orgulho de ser jornaleiro. Teve mui-
tos outros empregos durante a juventude, mas de-
pois de adulto só falava a respeito da época em que
gritava as manchetes.
Jack era uma criança séria, de olhos escuros e
olhar penetrante. Parecia mais alto do que de fato
era, graças à sua magreza, à sua forte angulosidade,
ao seu modo de ficar em pé tão ereto quanto possí-
vel e às suas passadas largas. Não sorria nem brin-
cava muito, nem mesmo quando garoto. Trabalha-
va, observava, vendia e aprendia. Aprendeu a fazer
seus patrões deixarem-no ficar nas melhores esqui-
nas e também como vender aos trabalhadores sua
dose diária de crime, corrupção, sangue e quadri-
nhos. Aprendeu inglês rápido, esforçou-se para aca-
bar com o sotaque iídiche e escolheu como modelo
não os cafetões e vândalos que povoavam a imagi-
nação de Harry Donenfeld, mas os homens de ne-
gócios arrumadinhos que compravam seus jornais e
os militantes socialistas que iam até sua casa para
falar sobre o destino dos trabalhadores. Era extre-
mamente leal a seu padrasto, e discutia com ele a
organização de seus colegas jornaleiros, as brigas
com os garotos que criticavam os sindicatos e o de-
46
sejo de entrar para o Partido Socialista Trabalhista
(Socialist Labor Party) assim que tivesse idade su-
ficiente.
Mas a lembrança mais forte de sua infância era
a pobreza. Lembrava das somas irrisórias que o pa-
drasto trazia para casa, resultado do trabalho no
sindicato. Lembrava dos empréstimos que a família
contraía com outros trabalhadores para cobrir o alu-
guel, das roupas esfarrapadas que passavam do ir-
mão mais velho para o mais novo, da preocupação
constante da mãe com a falta de dinheiro. “Conse-
guir pagar todas as contas era sempre complicado
para ele, devido aos seus ideais”, afirmou Jack com
delicadeza, já adulto. A mãe nunca falava nada
contra o pai ou o socialismo: afinal, ele havia sido
sua salvação. Mas Jack percebia que aquela não era
a vida que ela desejava. Um sonho de prosperidade
estava sempre no ar, o mesmo sonho que seu pri-
meiro marido saiu a perseguir junto com outros ma-
ridos e filhos lá da sua terra. Jack trabalhava tanto
quanto podia, e com o dinheiro que conseguia guar-
dar ajudava nas despesas da casa. Quando não esta-
va trabalhando, estava estudando. Queria estar pre-
parado para o que quer que acontecesse em sua
vida.
Jack sempre falava do período difícil nas ruas
com uma certa satisfação, da mesma forma que
Harry Donenfeld se realizava com histórias de gân-
gsteres e encrenca. Ambos pertenciam a uma gera-
47
ção de garotos que nunca foram adolescentes, mas
que conservaram para sempre emoções e fantasias
adolescentes: passaram direto da infância à vida
adulta, virando-se com uma garra que misturava o
cinismo mais negro com uma paixão pela aventura
típica da juventude. Harry viveria mais intensamen-
te sua meninice. Jack já agia como um adulto aos
12 anos, mas sempre era capaz de reconhecer uma
boa fantasia adolescente quando encontrava uma.
Em março de 1911, poucos meses depois da
chegada dos Liebowitz a Nova York, um incidente
horrorizou a comunidade judaica. Esse aconteci-
mento teria muitos reflexos nas histórias de Jack
Liebowitz e Harry Donenfeld. A Fábrica de Blusas
Triangle pegou fogo, e centenas de meninas e jo-
vens mulheres ficaram presas nove ou dez andares
acima do solo. Algumas saltaram das janelas, cain-
do com os vestidos esvoaçantes em chamas e mor-
rendo ao atingir a calçada. Em apenas 15 minutos,
146 meninas, dezenas das quais com apenas 13 ou
14 anos — quase todas judias — morreram. Nos
dias que se seguiram, as pessoas descobriram por
que algumas delas pularam: os donos tinham acor-
rentado as portas de saída para evitar que fizessem
intervalos.
Para Julius Liebowitz e os organizadores do SI-
TIRF, esse foi um momento decisivo, que deu iní-
cio à mais furiosa e bem-sucedida luta pela reforma
das condições de trabalho. Para Jack, então com 10
48
anos, era uma demonstração da brutalidade decor-
rente da pobreza. Ele conhecia crianças na escola
que tinham perdido irmãs na fábrica Triangle. As
histórias contadas pela família Donenfeld divergem
sobre o efeito que o incêndio teve na vida de Harry.
De acordo com uma delas, Harry salvou sua futura
esposa, Gussie, ao pedi-la em casamento e implorar
que deixasse seu emprego de costureira na fábrica
Triangle alguns dias antes do incêndio — mas na
época ele tinha apenas 17 anos e provavelmente
ainda nem conhecia Gussie. Outra versão conta que
ele presenciou o incêndio. Daí em diante, sempre se
recordava do episódio quando ficava bêbado e sen-
timental, repetindo que o que importava eram as
pessoas, não o dinheiro. Talvez nenhuma das histó-
rias seja verdadeira, mas ambas dão idéia de como
o incêndio se tornou para ele um símbolo da proxi-
midade da catástrofe e de como somente a sorte ou
um certo egoísmo podia mantê-la afastada. Harry
correria atrás de dinheiro a vida inteira, mas tam-
bém estaria sempre pronto a queimá-lo com jogo
ou paixões. Talvez o incêndio servisse para lembrá-
lo quão essencial e ao mesmo tempo insignificante
o dinheiro podia ser.
No entanto, o incêndio na fábrica Triangle tam-
bém ensinou algumas lições sobre a confusão que
poder e dinheiro causavam no Novo Mundo. Na
Ucrânia ainda se acreditava que o mundo estava di-
vidido entre o povo escolhido e os goyim, que sem-
49
pre era melhor para os judeus permanecer juntos.
Mas Julius Liebowitz teve que explicar para os imi-
grantes que formavam o baixo escalão do sindicato
que os donos da fábrica Triangle, Isaac Harris e
Max Blanck, também eram judeus, como aliás 90%
dos donos da indústria de roupas nova-iorquina.
Era fácil odiar os policiais irlandeses lançados con-
tra eles em meio a uma greve, mas quem os chama-
va eram judeus austríacos e alemães que moravam
em meio às famílias gentias no Upper East Side, e
foram bombeiros irlandeses que choraram sobre os
corpos das meninas da Triangle dispostos na calça-
da. Os periódicos que Jack Liebowitz vendia na
rua, especialmente o Journal, de William Randolph
Hearst, se aproveitaram do incêndio para posar de
amigos dos trabalhadores, mas ele sabia que, longe
do público, os editores lutavam contra o movimen-
to sindical e as leis de trabalho infantil.
Liebowitz pai e Liebowitz filho também apren-
deram o que era necessário para sobreviver na selva
capitalista. A Tammany Hall, a máquina de corrup-
ção tocada por irlandeses que controlavam o Parti-
do Democrata na cidade, lucrava com prostíbulos e
antros de jogatina que tiravam o dinheiro dos traba-
lhadores e avançavam no bairro judeu. Assim, na
eleição para prefeito de 1896, a comunidade judai-
ca entregou seus votos a um candidato reformista
do Partido Republicano.
Porém, depois de eleito, o prefeito William
50
Strong iniciou de imediato processos contra comer-
ciantes que abriam suas lojas aos domingos (um
golpe mortal para os judeus praticantes que não
abriam suas lojas aos sábados), além de ordenar
que as carrocinhas dos vendedores ambulantes fos-
sem retiradas das ruas. A manobra levou muitos à
ruína. A partir daí, o Lower East Side ficou nas
mãos corruptas da Tammany, ainda que a contra-
gosto. Se a polícia estava do lado dos patrões, sin-
dicalistas como Julius Liebowitz teriam que conse-
guir o apoio dos criminosos mais perigosos da cida-
de.
E os brutamontes já tinham entrado na briga.
Fabricantes de roupas contratavam gângsteres para
acabar com as greves. Na Grande Revolta de 1910,
os donos das fábricas contrataram tantos shlam-
mers (Brutamontes) que os sindicatos se viram for-
çados a pagar um preço mais alto para contratar
gente como “o Viciado Benny” Fein e “o Seboso”
Rosenzweig para proteger os trabalhadores. Os
gângsteres logo se infiltraram não apenas nos pi-
quetes, mas na própria organização dos sindicatos.
Em 1915, 23 sindicalistas, entre eles o tesoureiro
do SITIRF, foram julgados por cumplicidade no as-
sassinato de um trabalhador que furou a greve. Só
foram absolvidos graças à intervenção de um juiz
corrupto da Tammany.
O jovem Jack via os criminosos sob uma outra
perspectiva. À medida que as gangues ficaram mai-
51
ores e mais violentas, passaram a tomar conta de
grandes partes do bairro — de início apenas promo-
vendo alguma atividade ilegal, mas logo consegui-
ram, através da extorsão, negócios legais. Para ter
uma banca de revistas ou colocar jornaleiros nas es-
quinas era preciso tratar com a gangue que coman-
dava a rua. Jack viu garotos que tentavam invadir o
quarteirão de um rival serem surrados e ouviu as
histórias de distribuidores iniciantes que foram re-
talhados com os canivetes usados para cortar o bar-
bante que prendia as pilhas de jornal. Quando He-
arst montou sua própria distribuidora para concor-
rer com o monopólio da American News Agency,
tratou diretamente com as maiores quadrilhas de
criminosos para arranjar territórios lucrativos nas
grandes cidades da América. A maior “guerra de
distribuição” foi em Chicago, entre 1912 e 1913,
quando 27 jornaleiros foram assassinados. Alguns
anos mais tarde, Hearst contratou um de seus bruta-
montes de Chicago, Moe Annenberg, para cuidar
da distribuição em Nova York. O jovem Jack nem
suspeitava que no futuro teria negócios com Moe
Annenberg e, se suspeitasse, provavelmente ia pre-
ferir continuar sem saber. Mas ele começou a pen-
sar que precisaria colaborar com esses homens se
tinha intenção de sobreviver.
Jack foi educado de forma a acreditar que os
ideais defendidos por socialistas, reformistas e seus
mestres eram capazes de trazer ordem ao mundo e
52
aumentar o bem-estar das pessoas. Ao mesmo tem-
po, aprendeu depressa que tudo que defendiam es-
barrava num fundo de competição selvagem e au-
sência de qualquer ética. Sabia desde garoto que as
coisas nunca eram bem como se apresentavam. Ha-
via um grande abismo entre as histórias que a
América contava a respeito de si mesma e a reali-
dade vivida. Algumas vezes as diferenças causa-
vam repulsa, outras eram hilariantes. Quase todos
os conhecidos de Jack, além dele próprio, viviam
nesse abismo, falando sobre uma realidade e viven-
do em outra.
Talvez por isso Jack tenha encontrado paz no
mundo dos números. Havia pensado em estudar di-
reito e contabilidade no colégio, sabendo que o mo-
vimento socialista precisava de gente com essas ha-
bilidades, mas foi nas práticas contábeis que desco-
briu o gosto de fazer o balanço num livro-caixa, de
lançar números que não se alteravam e fechavam
sem diferenças no rodapé da página. Ele sabia, an-
tes da idade adulta, que o que mais queria era ga-
nhar dinheiro para sustentar a família e se livrar do
horror diário das contas e dívidas. Tinha esperanças
de que um dia o socialismo tornaria isso possível,
mas enquanto essa hora não vinha tentava garantir
o que era seu. Estabeleceu como meta tornar-se
contador.
Quando Jack começou a estudar, as perspecti-
vas de um jovem judeu em Nova York eram razoa-
53
velmente boas. A comunidade de imigrantes judeus
já tinha passado pelo período mais difícil. O núme-
ro de novos imigrantes caiu drasticamente em
1914, com o início da guerra na Europa, e a prospe-
ridade crescente levava as famílias ao Bronx, ao
Brooklyn e a New Jersey. O velho bairro, agora
sem a antiga superpopulação, tivera as ruas asfalta-
das, ganhara luz elétrica e bondes, além das pontes
Manhattan e Williamsburg, que davam acesso ao
mundo. Os movimentos reformistas liderados por
judeus melhoraram as condições de moradia e des-
barataram muito da jogatina, prostituição e crimi-
nalidade que ali havia.
A prosperidade econômica que acompanhou a
entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra
Mundial foi especialmente benéfica para a indústria
de roupas. O segmento crescia rapidamente à medi-
da que a moda começava a adquirir importância na
vida dos trabalhadores e da classe média-baixa.
Aliando a guerra a uma economia fortalecida e à
interrupção nas importações da Europa, o ramo de
vestuário deslanchou. Os sindicatos eram fortes e
unidos, capazes de conseguir concessões dos pa-
trões sem a necessidade de apelar para a greve.
Quando a gangue do Viciado Fein foi desbaratada
pela polícia — por certo com ajuda de algum sindi-
calista infiltrado — o movimento sindical livrou-se
das quadrilhas. Socialistas moderados como Julius
Liebowitz mantinham-se firmes na liderança do SI-
54
TIRF e outros sindicatos judeus. Julius nunca fora
tão feliz: a família ainda não era muito próspera,
mas o SITIRF tinha grande potencial. Ele não tinha
se revelado um líder, mas sim um organizador
consciente e diligente. Uma de suas responsabilida-
des era a produção e distribuição de panfletos. Nes-
sa atividade, topou com a Martin Press, uma editora
que pertencia aos irmãos Charlie, Mike e Irving
Donenfeld.
Os judeus estavam ganhando espaço na indús-
tria gráfica no início do século. Em Nova York, o
ramo era dominado por alemães, irlandeses e esco-
ceses. Os negócios passavam dos pais tipógrafos
para seus filhos e aprendizes, e parecia não haver
mais espaço para estreantes. Mas havia algo que os
antigos tipógrafos não dominavam: os caracteres
hebraicos usados no iídiche. E os judeus eram o
grupo étnico mais letrado e os leitores mais vorazes
da América. A demanda por panfletos e catálogos
para lojas surgiu com a vinda dos imigrantes, e na
última década do século XIX florescia um mercado
de jornais em iídiche. Os jovens trabalhadores ti-
nham um apetite insaciável por livros, especial-
mente romances de amor e aventura. E, ainda que
os livros em iídiche importados da Europa tenham
apaziguado essa fome por um tempo, tipógrafos em
Nova York produziam cópias baratas e mais “ian-
quecêntricas” deles já no fim do século. Os que
conseguiam atender à demanda prosperavam.
55
Irving Donenfeld, trabalhando duro sem usar
sua língua gaguejante, fez fama como bom tipógra-
fo. Os dois irmãos mais velhos juntaram suas eco-
nomias às dele para juntos abrirem um negócio. A
medida que o bairro mudava, passaram a publicar
mais coisas em inglês, e se dedicaram com afinco
ao comércio de panfletos, catálogos e páginas para
alguns dos mais baratos entre os “livros baratos” e
“folhas de histórias” nas bancas de jornais.
Ofereceram ao caçula Harry um lugar na firma,
mas suas paixões o levaram por outros caminhos.

NÃO ESTÁ registrado quando Harry descobriu


as garotas mas, provavelmente em 1906 ou 1907,
ele descobriu algo mais interessante do que conver-
sar ou fazer apostas. Ele não parecia adequado para
o papel de conquistador: era baixo, comum e con-
vencido, tinha um senso de humor grosseiro e se
expressava sem muito cuidado. Mas tinha energia,
visão global e uma fome insaciável quando deseja-
va algo. E era isso o que ele queria. Sexo não era
nenhum mistério para os garotos que cresciam no
Lower East Side. A própria vizinhança acabava
com qualquer resquício de pudor ou discrição que
os pais tentassem manter a respeito do tema. A
Tammany Hall tinha ajudado a transformar a área
na mais famosa e talvez maior zona de prostituição
do país. Michael Gold escreveu que os pedestres na
Allen Street “saíam tropeçando naquele corredor
56
formado pelas pernas carnudas das putas”. Lincoln
Steffens descreveu garotinhas que moravam num
cortiço em que passavam as tardes vendo uma pros-
tituta que não tinha dinheiro para comprar cortinas
atender os clientes. Décadas mais tarde, quando os
censores insistiam que as crianças tinham que ser
protegidas de imagens como o traje sumário da
Mulher Maravilha nos quadrinhos de Harry, isso
deve ter parecido mais loucura e hipocrisia dos
goyim.
Na adolescência, Harry já tinha aprendido a se
vestir como um “cadete”, que era como a vizinhan-
ça chamava os cafetões que trabalhavam nos prostí-
bulos e salões de dança. Cultivou um bigode bem
aparado e passou a usar botas de salto, para que pa-
recesse mais alto que seu 1,55 m. Aprendeu a dan-
çar e a ter lábia, a reconhecer as garotas que aceita-
riam dar uma volta pelas ruas à noite em troca de
cigarros, cerveja e um passeio até Coney. Não dei-
xava escapar as oportunidades de entrar numa viela
e levantar uma saia. Harry nunca contava vantagem
sobre a beleza ou qualidade de suas mulheres, mas
exaltava a quantidade delas e seu entusiasmo.
Conheceu também o poder da moda: o brilho
nos olhos de uma garota quando a presenteava com
o mais recente chapéu ou casaco, uma cópia barata
de algum original de Paris comprado numa loja da
Second Avenue. Aqui os desejos e o poder de ven-
da de Harry se misturavam. A boa apresentação, a
57
lábia com mulheres de todo tipo e o olho clínico
para o que existia de mais moderno e elegante se
combinaram e fizeram dele o vendedor de roupas
perfeito. Ninguém lembra em que lojas trabalhou,
mas ele se referia a elas como “classudas”. Harry
falava com entusiasmo dessa época em que manti-
nha uma clientela de jogadores e apostadores à base
de descontos em ternos alinhados, recebia convite
dos atacadistas para ir beber nos bares da Chrystie
Street, para ir aos cassinos da Broadway jogar stuss
(Certa modalidade de jogo de cartas) ou para dar
uma passada num dos prostíbulos mais refinados
do Houston. Era um modo barato de ficar por cima,
parecer graúdo.
Mas Harry não queria só parecer graúdo. Queria
ter sua própria loja. E, para virar um comerciante,
precisava de duas coisas: dinheiro e uma esposa.
Conhecia muitas garotas, mas um jovem ambicioso
não se casaria com nenhuma delas. Ainda assim
precisava de uma companheira, de alguém que ad-
ministrasse seu dinheiro, lhe desse filhos e mais
credibilidade. Encontrou uma garota assim na bibli-
oteca pública do Seward Park, que funcionava
como um centro comunitário, oferecendo aulas de
inglês, contabilidade e outros conhecimentos úteis
para o novo americano. Ela era exatamente do que
Harry precisava.
Devia estar perto dos 30 quando se conheceram.
Ela era cinco anos mais nova. A princípio, os pais
58
dela não se impressionaram com o vendedor de fala
fácil, mas ele era persistente e ela não tinha grandes
atrativos. Sabe-se lá como ele escapou da convoca-
ção em 1917 (provavelmente graças à falta de do-
cumentos), e sem dúvida a guerra diminuiu o nú-
mero de pretendentes à mão de Gussie. Por fim ele
venceu, e os dois se casaram em 1918. Em seguida,
com um pequeno empréstimo dos pais dela, atra-
vessaram o rio e abriram sua própria loja de roupas
em Newark, New Jersey.

NO FINAL DA GUERRA, o futuro era promis-


sor. Julius Liebowitz continuaria lutando por um
mundo socialista mais justo. Seu filho adotivo,
Jack, cursaria a New York University enquanto tra-
balhava para o sindicato e, quando se formasse, se-
ria contador do SITIRF. Três dos irmãos Donenfeld
prosperariam imprimindo material para o sindicato
e outros clientes interessados em preços módicos.
Harry e Gussie Donenfeld seriam gordos e felizes
vendendo moda feminina em New Jersey.
Então vieram os anos 1920.

2
——————————
O OUTRO MUNDO

DURANTE TODA A VIDA, nas entrevistas


que deu, nas conversas que teve com editores e co-
59
legas ou nos ensaios autobiográficos que escreveu,
Jerry Siegel nunca revelou o que aconteceu com
seu pai. Na história de sua vida contada por ele
mesmo, o pai aparece apenas como uma figura se-
cundária, alguém que sustentava a casa confortável
em uma Cleveland de classe média onde Jerry des-
cobriu as maravilhas da ficção científica e sonhou
com super-heróis. Os temas da perda, da violência,
do isolamento, da invulnerabilidade e do castigo só
aparecem nesses sonhos, sob a forma de cartoons
esquisitos.
Michel Siegel chegou a Nova York na virada do
século XX, ajustou seu nome para Mitchell Siegel e
foi para Cleveland. Sua esposa, Sarah, e seus dois
filhos esperaram na Lituânia até que ele conseguis-
se juntar dinheiro para trazê-los. Ele tinha uma in-
clinação para a arte e trabalhava como pintor de
anúncios publicitários. A crescente comunidade ju-
daica de Cleveland forneceu um bom mercado para
ele, e rapidamente Mitchell Siegel pôde não apenas
mandar vir Sarah e as crianças, mas também ajudar
outros membros da família e os cinco irmãos e ir-
mãs de Sarah, que também vieram. Em 1914, quan-
do se interrompeu a emigração do leste europeu, os
membros de uma grande família Siegel-Fine esta-
vam espalhados pelas comunidades judaicas ao lon-
go da parte leste de Cleveland.
Sarah era a matriarca. Há várias versões dife-
rentes para a história da família, mas todas concor-
60
dam num ponto: Sarah era uma mulher forte. Ela
comandava os irmãos e irmãs antes de se casar e,
quando o marido e alguns dos primos dele, além de
algumas pessoas de sua própria família, atravessa-
ram o oceano em busca de sucesso, Sarah passou a
ser a força que mantinha as duas famílias unidas. Já
em Cleveland, longe da geração de seus pais, virou
a líder incontestável da grande família. “Ela dizia
para todo mundo o que fazer”, disse Jerry Fine, um
dos sobrinhos. “Para os filhos, irmãs, irmãos e para
os filhos deles. E para o marido.”
Graças a ela, Mitchell largou o ramo de anún-
cios publicitários e aplicou seu dinheiro em algo
mais rentável: vendas no varejo. Abriu uma loja de
trajes masculinos, ganhou dinheiro e comprou uma
casa de madeira de três andares para a família, com
um grande pátio e varanda numa rua residencial em
Glenville, um bairro emergente com grande afluxo
de prósperos imigrantes judeus. Sarah teve um nú-
mero de filhos que rivalizava com o da família em
que tinha sido criada: Minerva, Rosalyn, Harry,
Leo, Isabel, e finalmente, em outubro de 1914, Je-
rome. Ele era o mais novo por quatro anos, o bebê
que permaneceu pequeno e dependente enquanto os
outros cresciam e saíam de casa.
A Cleveland em que Jerry nasceu era uma cida-
de em rápido crescimento. De 1890 aos anos 1920,
sua população cresceu de 250 mil para quase 1 mi-
lhão de habitantes, e passou de décima à quinta
61
maior cidade americana. Era uma meca para os
imigrantes: 40% da população era estrangeira ou de
pais estrangeiros. Era a cidade que mais produzia
gasolina e aparelhos elétricos no país, a segunda na
produção de aço e automóveis e a terceira em rou-
pas. Durante a crise industrial de 1921, Cleveland
foi umas das grandes cidades que menos teve pro-
blemas. O acordo que o SITIRF fechou naquele
ano com os fabricantes de roupas foi o melhor do
país, e eles nem precisaram fazer greve. Era uma
cidade de olho no futuro, e sabia disso — foi a pri-
meira cidade no país com eletricidade e iluminação
pública, bondes elétricos e centro comercial cober-
to. Cleveland estabeleceu o padrão de planejamento
urbano e da construção de “fábricas modelos” cien-
tificamente desenhadas.
Os 70 mil judeus de Cleveland eram bem menos
do que o milhão que morava em Nova York ou os
350 mil em Chicago, mas bastavam para manter
uma cultura muito rica, que incluía imprensa e tea-
tro iídiche, algumas sinagogas com influência no
país inteiro e dezenas de shuls menores e organiza-
ções comunitárias. No início a comunidade ficava
espremida no gueto miserável de Woodland, próxi-
mo às fábricas, mas por volta de 1910 alcançou di-
mensão e prosperidade tais que possibilitaram a
ocupação em massa de Glenville. Era um distrito
bucólico com bosques e campos, córregos de leitos
profundos que corriam em direção ao lago Erie, às
62
margens do qual as mais abastadas famílias protes-
tantes tinham suas cabanas e haras. Porém à medi-
da que a cidade cresceu e os automóveis facilitaram
a locomoção, os ricos subiram até Shaker Heights e
deixaram os vales para os imigrantes emergentes.
Quando Jerry Siegel nasceu, Glenville era 20% ju-
dia. Ao completar 10 anos, a proporção passava dos
70%.
A aorta de Glenville no início dos anos 1920 era
a East 105th Street. “Quase todos os quarteirões, da
Superior até Saint Clair, tinham seu próprio shul e
mercado de carne kosher (Alimento preparado de
forma a respeitar a tradição judaica) — além de
quitandas, farmácias, leiterias, padarias e armazéns
em abundância.” Os moradores “consumiam, na-
moravam e tinham suas discussões amigáveis em
numa atmosfera rica em judaísmo e Yiddishkeit”. A
Kimberly Avenue, onde Jerry cresceu, era uma rua
tranquila de apenas um quarteirão. Uma de suas ex-
tremidades conduzia a um barranco cheio de árvo-
res, na outra estava a 105th Street na altura do
Crown Theater, Spector’s Creamery e Solomon’s
Delicatessen (“aberta a noite inteira”). Alguns
quarteirões mais ao norte, na Saint Clair, havia lo-
jas de departamentos, restaurantes do velho mundo,
mais teatros e cafés com música ao vivo. No outro
sentido, alguns quarteirões depois, ficava o grande
Centro Judaico Anshe Emet, com as estrelas de
Davi pairando alto sobre a rua, com suas danças e
63
aulas sobre qualquer coisa, de sionismo a “america-
nização”.
Mesmo que acontecessem alguns crimes na
Woodland decadente, onde ainda estava a loja de
Mitchell Siegel, e em Mount Pleasant, onde muitos
operários moravam, parecia não ocorrer nenhum
em Glenville. Pessoas que cresceram lá descreveri-
am o bairro com uma ternura que beirava a reve-
rência: “As ruas compridas estavam sempre cheias
de crianças jogando beisebol [...] e enormes varan-
das abrigavam grupos de crianças que toda noite
sentavam nos balanços e parapeitos para brincar,
trocar idéias e dar uns amassos — depois que os
adultos fossem embora.” Esse era o sonho america-
no, que tinha atraído tantos milhares de pessoas
vindas de lugares como Rússia, Romênia, Polônia e
Lituânia.
Crianças como os Siegel sentiam os efeitos es-
tressantes dessa expansão. Crises de superpopula-
ção escolar resultaram em salas de aula com 45 ou
50 alunos em todas as séries, professores sem qua-
lificação e aulas do ensino primário em porões, si-
nagogas e cabanas emprestadas. Apesar disso, as
crianças judias se davam bem. Logo as escolas ju-
daicas ultrapassaram qualquer outra na cidade em
número de alunos laureados. Quando Cleveland,
em sua incansável luta pela modernização, passou a
ser uma das primeiras cidades nos Estados Unidos
a instituir testes de inteligência, a Glenville High
64
School ficou em primeiro lugar. Um educador de
Cleveland concluiu que “o judaísmo é muito mais
uma educação progressista do que uma doutrina re-
ligiosa”. Mas os sucessos não ficaram só no campo
acadêmico. Em 1923, quando os irmãos mais ve-
lhos de Jerry Siegel estudavam lá, a Glenville High
venceu o campeonato municipal de futebol ameri-
cano com a ajuda de um halfback brilhante chama-
do Benny Friedman. Combinaram então um jogo
especial contra a Oak Park High School, de Chica-
go, onde Ernest Hemingway tinha estudado. O time
dessa escola era considerado o melhor do país.
Benny e os magrelas “Morenos Sanguinários” Glen
Hi venceram. À luz da ética do começo dos anos
1920, quando o triunfo e o destaque individual
eram valorizados como nunca, a geração de Glen-
ville brilhava.
As esperanças e exigências para crianças como
os Siegel eram grandes. Os cinco mais velhos esta-
vam bem, todos eram razoavelmente populares e ti-
nham bom desempenho na escola. Os garotos saí-
am para praticar esportes na escola e se misturavam
àqueles que jogavam bola nas ruas e passavam o
tempo nas varandas. Quando eram adolescentes,
trabalharam na loja do pai, aprendendo a fazer ne-
gócios, a se virar longe da força da mãe, aproxi-
mando-se do pai. Todos teriam carreiras estáveis,
Harry no ramo imobiliário e Leo no funcionalismo
público. As duas garotas mais velhas, já com idade
65
suficiente para lembrar do gueto de Woodland,
eram pragmáticas e trabalhadoras como a mãe e se
casaram com homens honestos e decentemente em-
pregados.
Jerry era o que destoava. Era pequeno e míope e
não gostava de brincadeiras violentas. Alguns rela-
tos a seu respeito falam de sua “energia”, mas não
era a mesma energia social de Harry Donenfeld. O
jovem Jerry parece ter sido irrequieto, apesar de
mais ansioso que ativo. Era esperto, mas preferia fi-
car sonhando a estudar. A mãe o incentivava a ficar
em casa, fazendo-lhe companhia e ajudando nas ta-
refas domésticas, em vez de ir correr na rua com os
outros. Muitas vezes ele se recolhia ao quarto que
dividia com Harry, principalmente quando este es-
tava fora, jogando bola ou trabalhando com o pai.
Então ele podia se dedicar à leitura, ao estudo e a
seus sonhos.
Quando Jerry tinha 6 anos, um de seus irmão o
levou para ver A Marca do Zorro. O pequeno Jerry
amou. A escuridão profunda, o teto alto pairando lá
em cima como o alto do céu e a orquestra enchendo
a sala como a voz divina. Além disso, o clarão na
tela branca e a grandeza de Fairbanks: sua estatura
e pretensão, o urro silencioso de suas risadas e a ar-
rogância cômica que transformava um combate em
pastelão e as leis da física em piada. E Fairbanks no
papel de Zorro, primeiro atuando de forma contida,
no papel de um tímido personagem num mundo
66
hostil, até transformar-se secretamente em sua ver-
dade interior, metamorfoseando-se, graças à sua
vontade e a um uniforme, num redemoinho de vio-
lência alegre e habilidades sobre-humanas que
manda para os valentões para o chão com um sim-
ples gesto. E as outras crianças gritando na escuri-
dão, cada uma delas livre, vivendo na pele de Fair-
banks.
Daí em diante, Jerry incluiu em seus planos ir,
sempre que possível, ao cinema, algumas vezes
passando uma conversa para entrar de graça. Assim
que os pais deixaram, começou a ir assistir aos fil-
mes sozinho pedindo uns trocados e caminhando
até o modesto Crown Theater, a dois quarteirões.
Depois de mais alguns anos ele podia ir até a St.
Clair Avenue, atravessar no novo semáforo elétrico
e pagar sua entrada no Doan, no Uptown, ou no Sa-
voy, em estilo rococó, e desaparecer diante do bri-
lho das enormes telas. Quando Jerry falava de sua
infância, mencionava pouca coisa além desses fil-
mes. Amava todo e qualquer filme, mas acima de
tudo gostava daqueles mais estranhos, em que ho-
mens superavam a realidade física e viviam proezas
de tirar o fôlego. Adorava Harold Lloyd correndo a
uma velocidade alucinante em O Calouro e depen-
durando-se de um arranha-céu em O Homem Mos-
ca. Adorava ver Buster Keaton ser jogado pelos
ares e se esborrachar no chão para logo depois se
levantar outra vez em Marinheiro de Encomenda.
67
Acima de tudo ele adorava Fairbanks: Os Três
Mosqueteiros, Robin Hood, O Ladrão de Bagdá —
todos os modelos de másculo heroísmo transforma-
dos num gesto infantil de “ei, olhem para mim!”.
Fairbanks era um menino gigante que de repente le-
vantava vôo enquanto se balançava na ponta de
uma verga em The Black Pirate (“O Pirata
Negro”).
Jerry gostava de desenhar cenas dos filmes a
que assistia ou fazer cartoons imitando as tiras que
ele apreciava: o pastelão de Mutt and Jeff e Os So-
brinhos do Capitão, as aventuras fantásticas do ga-
roto em Little Nemo. Segundo declarou um de seus
primos, Michell Siegel estimulava a veia artística
do filho. Ele próprio só deixara de ser pintor e pas-
sara a vender chapéus para poder sustentar a famí-
lia no conforto da classe média. Jerry foi o primeiro
dos irmãos Siegel a ter esse conforto desde o início,
o primeiro que não sentiu a pressão de arranjar um
emprego antes da adolescência. Além disso, Mit-
chell provavelmente se divertia quando o encoraja-
va a desenhar e fantasiar. Ocupado com a loja e os
outros garotos, Mitchell deixou a criação e a educa-
ção do bebê a cargo da forte Sarah, mas a arte pas-
sou a ser a maneira como pai e filho mantinham
contato. Jerry parece ter sido da espécie de caçula
que encontrou seu espaço como artista da família, o
filho que pôde decidir seu caminho na vida, aquele
que poderia ter ido parar na universidade, num cur-
68
so de arte, para depois trabalhar no ramo publicitá-
rio. Não há motivo para crer que teria sido um
grande artista ou escritor, mas de um jeito ou de
outro podia ter seguido uma carreira criativa e pro-
gredido, aprendendo a se virar longe da influência
da mãe, ganhando o respeito do pai e encontrando
seu caminho no mundo dos adultos. Pelo menos é
assim que deveria ter sido.

A VIDA REAL ficou difícil para Jerry quando


chegou à adolescência. Não conseguia se concen-
trar na escola e repetiu um ano. Observou seus co-
legas avançando e se distanciando dele. Um primo
afirma que ele não tinha amigos nesse período. O
próprio Jerry disse mais tarde que ao descobrir as
garotas ficou aterrorizado. Cada vez mais começou
a buscar um mundo mais longínquo. Sempre tinha
sentido uma certa atração pelos pulp magazines —
as revistas impressas em papel jornal amarelado
que abanavam penduradas nas bancas ao longo da
St. Clair Avenue. Mas agora seria tragado por elas.
As revistas eram grossas e baratas, impressas
em uma tinta de um tom marrom escuro, com cen-
tenas de páginas de ficção em cada número. As ca-
pas eram coloridas, pintadas para inspirar terror,
excitação, desejo e curiosidade. Os enredos eram
cheios de brutamontes, orientais sinistros e namora-
das seminuas de gângsteres, mas as histórias favori-
tas de Jerry giravam em torno de algum machão:
69
goyim de rosto quadrado que lutavam com feras e
venciam pistoleiros com o poder do olhar. Havia
revistas de guerra, westerns, histórias passadas no
mundo do crime e na selva. Algumas eram destina-
das ao público adulto, mas a maioria visava garotos
de 8 a 14 anos — a “idade dos heróis”, como um
editor a chamou. Não era possível encontrar essas
revistas em bibliotecas escolares e poucos pais as
compravam. Na verdade, muitos as arrancavam das
mãos dos filhos e as atiravam no incinerador de
lixo. Mas os garotos dos anos 1920 e 1930 tinham
sede dessas revistas. Senhores idosos, que hoje
vendem suas coleções de pulp por pequenas fortu-
nas na internet, contam histórias em que todos os
garotos juntavam seus trocados para poder comprar
as revistas, e depois elas passavam de mão em mão
até que a encadernação não aguentasse mais e as
folhas caíssem. Will Eisner, filho de um pintor de
móveis no Bronx, lembra-se de um hóspede na casa
de seus pais que o deixava pegar edições da Black
Mask Detective em seu quarto. Quando o pai o pe-
gava, as revistas voavam pela janela aos gritos de
“isto é lixo!” Somente mais tarde Will se daria con-
ta de que o lixo incluía histórias de Dashiell Ham-
met, Raymond Chandler e Horace McCoy.
Sarah Siegel nunca controlou as leituras de
Jerry e cuidou de lhe garantir a mesada com que ele
comprava seus pulps. Jerry gostava de histórias de
detetive, do Tarzan e da revista favorita dos jovens
70
desesperados para escapar de sua realidade cotidia-
na, Weird Tales. Foi no verão antes de completar
14 anos que Jerry viu o homem voador.
Na arqueologia da cultura popular, a edição de
agosto de 1928 da Amazing Stories foi um ponto
crucial para cineastas, escritores de ficção científica
e engenheiros espaciais. Num fundo amarelo claro,
um homem de uniforme vermelho colado à pele,
capacete de aviação e botas pretas reluzentes man-
tém o corpo deitado, mas levemente inclinado para
cima, como se estivesse alçando vôo. Tem a natura-
lidade dinâmica de um guerreiro nos frisos do Par-
tenon, com a musculatura bem definida em traços
fortes e cores sólidas, num estilo ao mesmo tempo
clássico e industrial. Usa instrumentos elétricos e
segura uma espécie de bastão que parecia ajudá-lo
a voar. O enorme “A” de Amazing Stories fica logo
acima de seu calcanhar, com as demais letras for-
mando uma espécie de arco protetor sobre ele. Está
pairando sobre um pátio amplo, onde uma bela ga-
rota abana um lenço. Uma linha de árvores, um la-
boratório numa garagem e uma bela casa numa par-
te plana e segura de um morro arborizado estão ao
fundo. A curva do morro acompanha o arco de seu
torso e das letras acima. Comparado aos laborató-
rios cheios de monstros e planetas devastados que
apareciam na maioria das capas da Amazing Stori-
es, esse era um mundo ensolarado e seguro, defini-
do pela arquitetura, pela ciência e por uma ilustra-
71
ção extremamente econômica. Nas bancas abarrota-
das com histórias de medo, aquele homem estava
sorrindo. Nas bancas abarrotadas de terror, surgia
de repente algo alegre, um firme e grandioso futu-
ro, nascido bem no coração das crianças que viram
naquela capa uma delicada e incansável ascensão
rumo a céus claros e dourados.
Jerry correu para casa com a revista e a devo-
rou. Depois de ler página por página, releu tudo
mais uma vez. A história da capa era a primeira
parte de um romance chamado The Skylark of Spa-
ce, de Edward Elmer Smith, sobre um jovem inven-
tor de um aparelho que permitia viajar ao espaço,
onde ele descobre impérios interplanetários em
guerra, entra para a polícia galáctica e salva sua
noiva de uma gangue de criminosos interestelares.
O romance corria em ritmo alucinante na imagina-
ção ingênua de um garoto que andava para lá e para
cá em seu quarto. O romance, graças a seu formato
em capítulos, contribuiu para que Jerry se isolasse
durante o fim das férias de verão e a renovada ago-
nia da volta à escola. Além de Skylark, a edição tra-
zia mais uma história, “Armageddon 2491”, de Phi-
lip Francis Nowlan, com as aventuras de um solda-
do numa guerra futurística, de nome Anthony Ro-
gers e armado com um disparador de raios. O traba-
lho de Nowlan era mais sombrio que o de Smith,
mas as duas histórias ficavam bem uma ao lado da
outra por trazerem um mundo em que a violência
72
podia ser contida graças às engenhocas e ao know-
how americanos. Esses autores deixavam para trás
a nostalgia bárbara de Edgar Rice Burroughs (Au-
tor americano e criador do Tarzan) e os temores
apocalípticos de H. G. Wells (Autor britânico de
ficção científica que ficou famoso pelas obras A
Guerra dos Mundos, A Máquina do Tempo e A Ilha
do Dr. Moreau, entre outras) e asseguravam aos ga-
rotos americanos que eles teriam um futuro maravi-
lhoso. Juntos, Smith, Nowlan e Frank R. Paul, o ar-
tista da capa, tinham criado um novo mundo para
Jerry Siegel, mais irresistível e coerente do que
qualquer outro que ele tivesse conhecido.
A Amazing Stories era uma revista estranha. Já
estava nas bancas havia anos misturando artigos so-
bre rádios e foguetes com reimpressões da ficção
de H. G. Wells e Júlio Verne. Ao contrário de mui-
tos pulps, a revista trazia na capa o nome do editor,
um certo Hugo Gernsback, que abria cada uma das
edições com um ensaio sobre o poder da tecnologia
para a transformação do mundo num lugar melhor.
Gernsback também editava os títulos Science and
Invention, Radio-Craft e All about Television (em
1927), e além desses — ainda que a Amazing Stori-
es fosse uma das revistas pulp mais comportadas,
que não estampava donzelas seminuas em suas ca-
pas — editava uma revista chamada Your Body,
com alguns dos mais explícitos artigos de orienta-
ção sexual disponíveis nas bancas. Gernsback era
73
um visionário divulgador de um modismo dos anos
1920: pregar às massas, por meio de revistas bara-
tas, o evangelho da ciência e da razão.
Jerry rondava as bancas à espera do próximo ca-
pítulo de Skylark. Quando a revista enfim apareceu,
ele deparou com as pregações de Gernsback em sua
forma mais explícita. A capa da edição de setembro
da Amazing Stories tinha tanto de bizarro quanto a
edição anterior tinha de libertário. Não ostentava
nenhuma imagem de humanos, monstros ou espa-
çonaves. Apenas um brasão sobre um fundo bran-
co: um escudo triangular com um compasso e di-
versos planetas ao fundo. Em duas engrenagens es-
tava escrito “Fact” e “Theory”, e o compasso escre-
via uma palavra estranha: “Scientifiction” (As pala-
vras na capa são, respectivamente, “fato”, “teoria”
e “cientificção”). Uma capa assim nunca tinha sido
feita, e mesmo um garoto de 14 anos incompletos
conseguia ver que seu objetivo ia além de simples-
mente arrancar as moedas de algumas crianças. No
interior da revista, Gernsback expressava seu inte-
resse fervoroso em promover esse novo tipo de lite-
ratura, essa “ficção científica” que declarava guerra
contra a superstição e a ignorância, lançando luzes
sobre o paraíso tecnológico que estava à espera da
humanidade. Naquele mesmo instante Jerry Siegel
se converteu num fã de cientificção.
Outras revistas pulp incluíam cartas de leitores,
mas as páginas da Amazing Stories tinham emoções
74
a mais, já que adolescentes de toda parte uniam-se
para divulgar a novidade: Forrest J. Ackerman, de
Los Angeles, Raymond Palmer, de Milwaukee,
Jack Williamson, do interior do Novo México, A.
Bertram Chandler, lá da Inglaterra, e muita gente
de Nova York, especialmente um certo Mortimer
Weisinger, que surgiria mais adiante no futuro de
Jerry. Gernsback foi engenhoso e incluiu não ape-
nas o nome e o estado de seus correspondentes,
mas seus endereços completos: dessa forma eles
podiam entrar em contato direto. A cientificção co-
meçou a crescer numa comunidade de leitores que
tinham em comum uma causa e uma visão de mun-
do. Aprendiam sobre esse novo gênero de ficção
uns com os outros, formulavam parâmetros críticos
e logo começaram a escrever suas primeiras histó-
rias. Esperavam vê-las nas páginas da Amazing
Stories, mas quase sempre bastava que um colega
as lesse para que se dessem por satisfeitos. Grupos
de aficionados já tinham se reunido graças à ficção
popular no passado — a Weird Tales contava com
seguidores bastante comunicativos. Mas nunca ti-
nha havido nada com essa determinação e esse fer-
vor.
Os fãs eram fiéis a Gernsback: quando ele per-
deu a Amazing Stories numa disputa financeira no
ano de 1929, fizeram campanhas para que o acom-
panhassem em sua nova revista, Science Wonder
Stories. Para diferenciar a nova revista da antiga,
75
ele abandonou o termo “cientificção” e adotou “fic-
ção científica” em seu lugar. Os fãs fizeram o mes-
mo. “Ficção científica” seria o nome de sua paixão
para sempre. Quando o primeiro clube de ficção ci-
entífica se reuniu em Nova York, no mesmo ano,
seus membros discutiram o que cada um deles tinha
feito pela ficção científica no mês anterior. Passa-
dos alguns anos, os fãs cunharam a palavra “fan-
dom” (Fusão das palavras fan “fã” e kingdom “rei-
no”. Indica uma comunidade de pessoas com pro-
fundo interesse comum por coisas como quadri-
nhos, autores, hobbies etc.) para designar sua co-
munidade. Quando adeptos de outros assuntos co-
meçaram a adotar o termo, os fãs de ficção científi-
ca falavam — e não era apenas de brincadeira —
sobre o “Único e Verdadeiro Fandom. Pertenciam a
uma raça diferente e não queriam se misturar. Jerry
Siegel começou a escrever para os leitores da seção
de cartas, e eles respondiam. Tinha encontrado um
outro mundo, com o qual conseguia se comunicar.
A ficção científica era uma invenção perfeita
para a América no final da década de 1920. Os hor-
rores do industrialização e o inferno tecnológico da
Primeira Guerra já se apagavam da memória. Rá-
dios, carros e correio aéreo facilitavam a comunica-
ção de forma inédita e davam ao desenvolvimento
industrial um rosto novo e humano. Uma economia
de produção, que valorizava a parcimônia e a acu-
mulação de capital, era pouco a pouco substituída
76
por uma economia de consumo, baseada em gastos,
crédito, autogratificação e culto às novidades. Em
1927 Charles Lindbergh foi endeusado quando, so-
zinho, usou uma máquina moderna para conquistar
os ares. Com certeza ainda apareceram reflexos do
seu feito e de sua auto-satisfação na capa da Ama-
zing Stories um ano depois. Políticos, publicitários
e contadores de histórias populares louvavam o
mundo dos negócios, a invenção, a América, o in-
divíduo sem culpa e o futuro. Pela primeira vez os
americanos passaram a ver a busca do novo como
dever social e prova do heroísmo individual.
Ao mesmo tempo, a ficção científica estava na
contracorrente do caráter pragmático da América
burguesa, que desconfiava de imaginações muito
férteis e ridicularizava tudo o que remetesse aberta-
mente à infância. O mesmo leitor que apreciava um
dispositivo futurístico descrito na outra revista de
Gernsback, Science and Invention, ridicularizava
esse mesmo dispositivo caso ele derrotasse um ho-
mem-máquina venusiano na Amazing Stories. As-
sim a ficção científica permaneceu à margem, e a
pouca atenção que recebeu foi o menosprezo da-
queles imunes a seu encanto — especialmente ga-
rotos atléticos, sociáveis e realistas que viam seus
colegas excêntricos lendo sozinhos, na hora do al-
moço, essas revistinhas de reluzentes heróis inter-
planetários. Os fãs responderam com a arrogância
dos excluídos — um debate acalorado atingiu o
77
fandom no início da década de 1930 a respeito da
seguinte questão: os fãs eram simplesmente pessoas
com um gosto específico ou uma “ordem superior
de seres humanos”, um nível acima na escala evo-
lutiva graças a sua “vasta imaginação e receptivida-
de ao novo”? Mas a arrogância do excluído, é cla-
ro, está entrelaçada com sua angústia.
No início os fãs eram em sua maioria esmaga-
dora homens, quase todos de classe média e origem
anglo-saxônica ou judaica. Eram pessoas isoladas,
fosse pela geografia, personalidade ou deficiência
física, até descobrirem o fandom. Nas fotos dos pri-
meiros fã-clubes há muitos óculos e poucos portes
atléticos. Assim como Jerry Siegel, poucos falavam
de suas famílias, mas o pouco que diziam revelava
pais ausentes, relacionamentos conturbados e soli-
dão. Um fã escreveu sobre seus últimos anos como
universitário: “Refleti sobre minha vida naquele
momento, achei que ela estava sendo um desperdí-
cio e, na medida do possível, tentei me afastar
dela.” Assim como Jerry Siegel, a maioria deles
não se interessava por garotas antes de concluir o
segundo grau. Quando achavam uma companheira,
falavam com um romantismo comedido sobre a
sintonia intelectual ou o gosto literário que os tinha
aproximado. As histórias de que gostavam e as que
escreviam não conseguiam sair de um mundo in-
fanto-juvenil, muitas vezes nem contavam com
uma figura feminina. Quando ela aparecia, a donze-
78
la em apuros costumava ser assexuada e dócil,
como a noiva na série Skylark, de Smith. Eles des-
confiavam da paixão, do mistério e da bagunça que
era a vida adulta. Valorizavam detalhes e eficiência
mecânica. Escreviam com o otimismo de garotos,
mas para isso era preciso negar a dor e a angústia
com que lidavam no dia-a-dia.
Em sua correspondência, divertiam-se com uma
espécie de propaganda pessoal disfarçada de paró-
dia. Piadas internas e um humor ácido os aproxima-
vam, como acontece com alunos de quinta série
que já conhecem algumas gírias dos mais velhos.
Exigiam categorias claramente definidas. Promovi-
am discussões intermináveis e obsessivas, tentando
chegar a uma conclusão sobre a ficção científica:
tudo no gênero deveria ter bases científicas com-
provadas ou era permitido cair na especulação? O
objetivo das histórias era promover o entendimento
científico ou simplesmente narrar aventuras mistu-
radas com ciência? Viagens no tempo podiam ser
classificadas como ciência ou deveriam ser dispen-
sadas como pura fantasia, comparável a feitiços e
deuses? Eles rotulavam, listavam, classificavam,
incluíam, excluíam e colecionavam com uma pai-
xão pela meticulosidade — já que esse ordenamen-
to hiper-racional era a forma mais divertida de
manter a desordem da vida e das emoções sob con-
trole.
Registravam suas histórias obsessivamente, mas
79
somente as que diziam respeito às atividades que
vivenciavam como fãs. Jamais mencionavam fatos
pessoais ou sentimentos. Nesse sentido, o silêncio
de Siegel a respeito da família era típico. Os fãs se-
guiriam esse código por muitas gerações. Quando
chegou a hora de revelar o segredo da criação de
Jerry Siegel, esquadrinhavam revistas pulps em
busca do termo “super-homem”, examinavam tiras
atrás de heróis vestindo capas e roupas agarradas.
Viam-se em termos de bibliografia, não de biogra-
fia. Faziam perguntas sobre os pais do Super-
Homem, mas não sobre o pai de Jerry Siegel.
O grau de resistência à confusão humana já apa-
rece na primeira história que Jerry enviou a seus
colegas. Em 1929 Jack Williamson era um jovem
fã que começava a publicar suas histórias na Ama-
zing Stories. Então Jerry datilografou uma história
e pediu conselhos. “Ele me enviou um manuscrito
em que os personagens eram sólidos geométricos:
cubos, esferas e cones. Eu disse que aquilo não ti-
nha valores humanos, emoções humanas [...] a his-
tória precisava de interesse humano.” Essa história
está perdida há muito tempo, mas alguns anos mais
tarde Jerry publicou no jornal da escola uma vari-
ante mais curta e bem-humorada, com o título “A
Morte de um Paralelogramo”. Ainda faltava bastan-
te para que fosse capaz de lidar com as questões
humanas.
Foi mais ou menos nessa época que Jerry en-
80
controu seu lugar. Ainda gostava de tiras, mas de-
sistiu de desenhar e se dedicou inteiramente a es-
crever histórias de ficção científica e a trocar cor-
respondência, comentando o trabalho dos outros.
Aprendeu a datilografar. A energia frenética que
sempre o caracterizou se voltou então para as pala-
vras. Enquanto as outras crianças de Glenville joga-
vam bola pelas ruas e davam amassos nas varandas,
Jerry Siegel ficava sentado junto à janela do sótão,
tec-tec-teclando e criando um mundo à parte.
Setenta anos depois, seus primos Jerry e Irv
Fine estavam na imobiliária de Irv, no subúrbio de
Beachwood, em Cleveland, falando sobre o Jerry
que conheceram.
— Ele sempre ficava com as crianças mais no-
vas, como eu era na época, durante as reuniões de
família, porque as que tinham sua idade não queri-
am nada com ele. Ele era um nerd — disse Irv.
— Oh, eu não diria isso. Ele apenas tinha um
temperamento calmo e ficava muito envolvido com
seus assuntos. Costumava levar a gente até o quarto
para nos mostrar a coleção de revistas pulp e todas
as cartas dele que tinham sido publicadas, mas fora
isso não gostava de falar muito — corrigiu Jerry,
que regulava em idade com Siegel.
— Ele era um nerd! — retrucou Irv.
— Bem, não existia a palavra nerd naquela épo-
ca — Jerry respondeu baixinho.
Na verdade não existia uma palavra para definir
81
garotos como Jerry ainda, simplesmente porque
eles não eram muitos. Mas aos poucos surgiam
mais e mais. Claro, sempre houve garotos perdidos
em seus pensamentos e paixões, dominados por
suas mães e com tendências a fantasiar sobre o uni-
verso masculino em vez de aprender a lidar com
ele. Garotos que usavam uma imaginação fértil
para escapar do sofrimento. Mas essa era a primeira
geração que tinha acesso ao universo alternativo
trazido pelo entretenimento comercial, a primeira
que crescia entendendo que a natureza da experiên-
cia e da percepção poderiam ser transformadas gra-
ças a máquinas e artifícios. O “faz-de-conta” tor-
nava-se tão palpável e nobre quanto o “real”: Fil-
mes, revistas pulp, fonógrafo, tiras — tudo contri-
buía para proporcionar um estoque infindável de
experiências emocionais e imaginativas à nova ge-
ração, sem que fosse necessária interação nenhuma
com a realidade. E, graças ao fandom, nasceu uma
comunidade. Era possível contar com apoio para
permanecer espiritualmente naquele outro mundo
mesmo quando a escola ou o trabalho exigiam pre-
sença física. Essa geração também atingiu a maturi-
dade numa cultura que rejeitava Deus, a tradição e
a certeza, e assim encorajava o relativismo de mun-
dos individuais. Foi uma geração de desajustados
que teve uma alternativa que não as de se esconder
do mundo ou de se submeter a ele. Foi dado a eles
um outro lugar para ir.
82
A geração dos anos 1920 foi também a primeira
a crescer em meio a uma cultura de consumo já de-
senvolvida, que incentivava as pessoas a definir sua
identidade por aquilo que compravam. Numa socie-
dade cada vez mais móvel e fluida, os americanos
não queriam mais ser identificados por classe, etnia
ou região. Mas dirigir um Cadillac, ser fã de Rodol-
fo Valentino ou leitor de ficção científica dava um
senso de individualidade e de pertencer a uma co-
munidade, em especial aos jovens que não deseja-
vam se misturar a esse mundo de mudanças cons-
tantes. Os primeiros fãs de ficção científica não
constituíam uma contracultura que defendia valores
radicalmente diferentes do mainstream. Apenas
acreditavam no progresso científico e no individua-
lismo competitivo. Talvez a única crítica real que
dirigiram à sociedade tenha sido a preferência que
deram ao intelecto, deixando as emoções e os mús-
culos em segundo plano — mas eles também gosta-
vam de heróis interplanetários que sabiam brigar. O
que os tornava diferentes era a paixão por uma
combinação específica das ansiedades e aspirações
do mainstream e a aceitação das peculiaridades de
cada um enquanto a paixão unificadora durasse.
Além disso, a solidão e a falta de perspectiva da
infância no mundo moderno os tornava diferentes.
Para a classe média faltava, na vida cotidiana, tudo
aquilo que tinha sempre sido a essência da vida hu-
mana: providenciar comida, fazer roupas, sempre
83
com as crianças trabalhando ao lado dos pais. Para
os povos do norte europeu, tão puritanos, o caos da
vida moderna, a mobilidade e o anonimato, aliados
a uma solidão essencial, eram demais. E seus filhos
cresciam em pequenas famílias nucleares e passa-
vam mais tempo do que nunca sozinhos e dentro de
casa. Um número cada vez maior de jovens preci-
sou buscar contatos e um sentido que, em outra
época, a vida providenciava de forma quase auto-
mática. Então um conjunto específico de caracte-
rísticas e angústias individuais tornou-se a base de
uma subcultura. Os membros dessa subcultura ajus-
tavam sua identidade em torno da autodefinição “fã
de ficção científica” — caracterizada por indiferen-
ça a roupas e aparências, amabilidade extravagante
(ainda que não sentimentalóide) durante os encon-
tros e um desprezo divertido pelos medíocres que
não os entendiam. Na época isso ainda não tinha
nome, mas hoje podemos ver aí o nascimento da
cultura geek. Cada uma das subdivisões dessa cul-
tura — quadrinhos, computadores, bonecos coleci-
onáveis — nasceu daí, ou pelo menos adotou mui-
tas de suas características.
Aos 14 anos, Jerry Siegel já estava virando um
membro de destaque do incipiente fandom. Em
1929 ele contribuiu com uma novidade. Parece ter
tentado provar que a fascinação com o mundo ima-
ginário tinha algum valor no mundo real. Afinal,
era filho de um varejista, e o único filho de Mit-
84
chell Siegel que não ajudava na loja ou trabalhava
fora. E se mostrasse ao pai que ele era mais que um
filhinho-da-mamãe que brincava no quarto, lucran-
do com seu hobby? Juntou todas as histórias que
vinha escrevendo, recusadas pela Amazing Stories,
e montou sua própria revista. Conseguia folhas hec-
tográficas na biblioteca da escola; assinava suas
histórias com uma variedade de pseudônimos, es-
perando convencer os leitores de que elas não eram
o trabalho do mesmo garoto de 14 anos; escreveu
um editorial grandiloquente a la Gernsback anunci-
ando a chegada de uma nova revista para expandir
as fronteiras da literatura e do amanhã. Chamou-a
Cosmic Stories. As páginas eram datilografadas
com todo o cuidado de um mau datilografo usando
uma máquina manual — cheias de partes raspadas
com lâminas e rebatidas — e depois disso ele tirava
dez cópias na escola. Então gastou quase todo seu
dinheiro guardado colocando anúncios minúsculos
na contracapa da Science Wonder Stories.
Anos depois, Jerry Siegel não conseguia recor-
dar se chegou a vender alguma cópia. Mas havia
criado a primeira revista feita por um fã de ficção
científica — que em breve seria chamada “fanzi-
ne”, e depois “zine” — um órgão vital para os futu-
ros geekdoms. Apesar de todo seu amor pela ficção
científica, no fundo sua intenção não era ajudar a
causa, mas encontrar uma idéia que pudesse ser
vendável. Acreditava que em algum lugar havia
85
uma idéia capaz de torná-lo, de repente, importante,
poderoso, adulto.
Os escritos de Jerry não deram em nada, mas
ele continuou sonhando e datilografando até acabar
o primeiro grau. Manteve suas amizades por corres-
pondência, ainda que tal correspondência tivesse
menos de cartas normais de amigos e mais de troca
de conselhos profissionais. Em outubro, quando es-
tava acabando o primeiro grau, a economia ameri-
cana sofreu sua maior reviravolta — o crack da
Bolsa de Nova York —, mas no início as repercus-
sões não alcançaram o mundo particular de Jerry. A
cultura da Depressão iria moldá-lo, mas não ainda.
O acontecimento que destroçou sua vida veio al-
guns meses mais tarde.
Jerry estava em casa com a mãe quando tudo
aconteceu. Mitchell estava no centro, fechando a
loja de trajes masculinos. Um comerciante vizinho
viu a porta entreaberta e a luz acesa depois do ex-
pediente, mas não viu sinal de Mitchell entre as
prateleiras. Ele entrou, chamou por Mitchell, e en-
tão viu o sangue no chão. Deu a volta no balcão e
lá estava Mitchell, caído, já morto, com dois bura-
cos de bala no corpo. O dinheiro tinha sumido do
caixa. A polícia nunca descobriu quem o matou.
Provavelmente apenas um drogado, um bêbado de-
sempregado e desesperado, um jovem aspirante a
gângster ou um brutamontes que invejava os judeus
e que desapareceu com seu dinheiro e seu sonho no
86
coração de Cleveland.

APÓS O ASSASSINATO de Mitchell Siegel, a


família se ajudou como pôde. Ninguém falou sobre
o que aconteceu: disseram aos membros mais jo-
vens da família que o tio Mitchell havia morrido de
ataque cardíaco. Os parentes enviaram ajuda finan-
ceira. Os irmãos de Sarah e os filhos mais velhos
contribuíam com um pouco de seus rendimentos
mensais para garantir que ela não perdesse a casa.
A escola estava fora de cogitação para as crianças,
afinal a sobrevivência vinha antes da educação. E
Sarah se tornou mais firme. Em resposta à perda,
passou a controlar ainda mais os irmãos e as crian-
ças. Os primos mais novos lembram da casa na
Kimberly Avenue como o quartel-general da famí-
lia, um lugar tenso e grandioso onde havia encon-
tros e decisões sobre assuntos familiares. Os adul-
tos costumavam reunir-se na sala principal enquan-
to as crianças iam para o pátio, para a varanda ou
para os quartos no andar superior, tudo para não in-
comodar a tia Sarah.
Jerry bem que podia ter arrumado um emprego,
ocupado uma vaga no duro e assustador trabalho de
jornaleiro ou entregador, mas Sarah não queria. So-
mente Jerry pôde continuar sendo seu bebê. Os ir-
mãos passavam cada vez menos tempo em casa, ao
passo que Jerry ficava cada vez mais tempo com a
mãe, que o deixava sozinho nos longos períodos
87
que passava sofrendo. Quão intensos eram seus so-
nhos de liberdade e invencibilidade nessa época?
Quão pungentes as histórias de dor e perda? Jerry
trouxe todas essas histórias consigo ao entrar na
Glenville High School. Já estava um ano atrasado
em relação aos colegas e ainda muito distante da
vida adolescente. A Glen Hi era um lugar superlo-
tado e competitivo. Havia muitas exigências acadê-
micas e sociais. Seria difícil para Jerry permanecer
lá mesmo se sua vida tivesse sido menos dura. Não
havia mais esperança de alcançar o sucesso naque-
les termos, de ser apenas mais um garoto na Glen
Hi. Sonhava em pular a escola e a adolescência,
tornando-se rico e famoso instantâneamente. Se de
alguma forma ele conseguisse se dar bem, poderia
acabar com a vergonha de ser o único membro da
família que não ajudava em casa. Poderia recuperar
um pouco do que aquele brutamontes tinha roubado
de sua família, tornar-se um homem.
Ao mesmo tempo, recolheu-se ainda mais àque-
le outro mundo composto de escritores e quadrinis-
tas. Começou a sonhar com homens que declara-
vam guerra ao crime e estavam acima de qualquer
necessidade e acima da dor.

3
——————————
A GRANDE FARRA

88
OS ANOS 1920 de Harry Donenfeld foram algo
muito diferente do que foram os anos 1920 para
Jerry Siegel. Em vez de buscar formas de escapar
da realidade, Harry enfiou-se mundo real adentro
de um modo que nunca tinha imaginado. Assim
como Jerry Siegel, seu caminho acabou sendo de-
terminado pelas revistas. Seu destino, como o de
Siegel, seriam as histórias em quadrinhos. Mas a
entrada de Harry não se deu com naves espaciais e
fandom. Foi com impressoras e garotas nuas.
A aprovação em 1919 da 18ª emenda, que insti-
tuiu a Lei Seca, mudou a vida de Harry, ainda que
ele mesmo demorasse alguns anos até se dar conta
disso. A nova lei deve tê-lo alarmado a princípio.
Seus amigos costumavam brincar, dizendo que ele
sozinho bastaria para sustentar a fábrica da Hei-
neken. Harry gostava de beber enquanto jogava e
sabia que o álcool era o caminho mais curto para
chegar numa garota. Mas logo soube que a cidade
de Nova York não tinha nenhuma intenção de per-
der seu tempo com uma emenda constitucional só
porque isso agradava a legislatura de Ohio ou Mis-
sissippi. Na verdade, Nova York era um dos únicos
dois estados que nunca tinham aprovado uma proi-
bição de álcool. Em Nova York a tarefa de acabar
com a venda de álcool ficou para o governo enca-
beçado pela Tammany Hall e para a polícia irlande-
sa, com os resultados que se podem esperar. Bares
foram fechados, mas, como reclamou um congres-
89
sista chamado Fiorello H. LaGuardia (Um ex-
alcoólatra que se tornou abstêmio e depois um dos
mais famosos prefeitos da história de Nova York).
“Agora nós temos armazéns, salões de bilhar,
farmácias, chapelarias, clubes particulares e 57 ou-
tras variedades de speakeasies (Bares ilegais que
ofereciam bebidas alcoólicas durante o período da
Lei Seca) vendendo álcool e prosperando”.
O único efeito imediato da Lei Seca na vida de
Harry foi reforçar sua crença nova-iorquina na fle-
xibilidade da lei. Eram muito mais leis do que seria
possível para um imigrante obedecer: as leis de
Washington, da Tammany, de Moisés, do bairro, da
economia. Levava-se o cliente mais importante ao
restaurante Delmonico, e lá ele comia lagosta; mas
todo mundo sabia que aquela comida era treyf (Co-
mida preparada sem respeitar a tradição judaica,
considerada imprópria para consumo) e que jamais
entraria na cozinha de sua mãe. Levar uma vida so-
cial implicava fazer apostas; uma vida sexual im-
plicava, geralmente, algum tipo de remuneração.
Tudo isso ia contra as leis. Harry cresceu vendo
isso como simples fatos da vida em seu país adoti-
vo. Colocar o álcool na lista de coisas proibidas era
só mais uma pedra em seu caminho, jogada por um
bando de protestantes malucos lá do outro lado do
rio Hudson.
O grande choque para Harry foi a retração da
economia americana no período pós-guerra. Ele
90
nunca foi um administrador sensato. Era especialis-
ta em fazer novos contatos, fazer com que as pesso-
as lhe dessem uma chance e aproveitar oportunida-
des. Mas não tinha paciência para fazer balanços ou
planos para o futuro, nem autocontrole para man-
ter-se longe das mesas de pôquer ou dos cassinos
de Manhattan. Quando o consumo despencou, entre
1920 e 1921, sua loja de roupas em New Jersey fi-
cou endividada. A esposa tomou conta da adminis-
tração, lutando para equilibrar créditos e débitos
enquanto Harry jogava cartas com algum atacadis-
ta. No entanto Gussie era jovem e ainda estava
aprendendo e, apesar de todo seu trabalho e das ir-
ritadas queixas, a loja faliu.
De repente Harry teve de encontrar um novo
modo de sobreviver. Não sabemos o quanto Gussie
o pressionou mas, tendo em vista que seu filho
Irwin mais tarde descreveria sua mãe como “A Mu-
lher Dragão”, podemos imaginar que tenha sido in-
sistente e pouco amistosa. Parece que a família dela
se recusou a garantir o apoio para o jovem casal
montar outra loja de roupas, porque em seguida
Harry aparece como vendedor e quarto sócio na
Martin Press, que pertencia a seus irmãos.
O ramo de impressos sentia falta das habilida-
des de um bom vendedor, e Harry parece ter levado
alguma ambição à firma familiar. Junto com seus
irmãos — dois imigrantes recém-chegados e um
gago — Harry brilhava como uma estrela. Parece
91
que foi ele quem se interessou por fazer trabalhos
com maior qualidade, que requeriam papel liso e
ajuste de cores. Provavelmente também foi ele
quem descobriu como jogar o jogo da consignação:
vendia os serviços da Martin Press como se tivesse
a tecnologia fotolitográfica mais avançada, e então
terceirizava o serviço para uma gráfica que tinha o
equipamento adequado, mas não o vendedor capaz
de fechar o negócio. Harry também levou um pou-
co de humor para a companhia, que até então era
bastante taciturna. Uma vez um cliente entrou no
escritório e gaguejou:
— O s-s-senhor D-Donenfeld está?
— Um momento, vou chamá-lo! — disse
Harry. Ele foi até os fundos e gritou: — Ei, Irving,
tem alguém aqui querendo falar com você!
Então ficou sentado, esperando Irving encontrar
o cliente. Quando voltou, Irving estava furioso e
gritando:
— Aq-aq-aquele cara p-pensa que est-tou t-
tirando sarro dele! Você tá q-querendo me ver m-
m-morto?!
Harry dava gargalhadas sempre que contava
essa.
Mas o maior benefício que Harry trouxe à famí-
lia tinha pouco a ver com impressos e muito a ver
com a Lei Seca. A geração dos marginais e jogado-
res que cresceu com Harry sofreu uma grande
transformação, graças à quantidade assombrosa de
92
dinheiro que estava disponível a qualquer um que
fornecesse álcool ilegal aos americanos. Jovens que
até pouco tempo antes se davam por satisfeitos ti-
rando algum lucro com cassinos ilegais, fazendo di-
nheiro com cavalos de corrida e arranjando lutas de
boxe uma vez ou outra viram-se de repente nadan-
do em milhões de dólares, comprando juízes e a po-
lícia e organizando gangues bagunçadas, transfor-
mando-as em exércitos de contrabandistas de álco-
ol, sequestradores e conquistadores de novo territó-
rios. Um desses jovens, Francesco Castiglia, arran-
jou um lugar para Harry Donenfeld no mercado ne-
gro.
Castiglia sentia orgulho de ser um americano
moderno, livre dos códigos tribais de lealdade que
tinham jogado as gangues de italianos e judeus da
vizinhança umas contra as outras. Sua esposa era
judia, e ele era o membro mais velho de um quarte-
to de brutamontes ambiciosos que incluía um sicili-
ano, Salvatore Lucania, e dois garotos judeus vio-
lentos, Benjamin Siegel e Maier Suchowljanski.
Para se tornar ainda mais moderno e americano, es-
colheu um nome fácil de lembrar, que soava um
pouco menos “velho mundo” para quem não fosse
italiano: Frank Costello. Dois de seus comparsas fi-
zeram o mesmo: Lucania virou Charles “Lucky”
Luciano e Suchowljanski adotou o nome Meyer
Lansky. Tornaram-se representantes de Arnold Ro-
thstein, um homem elegante, nascido em berço de
93
ouro no Upper East Side e que sempre apostava até
a última ficha. Também organizava o contrabando
de bebida em Nova York no seu início. Quando
Rothstein se retirou do negócio, que estava se tor-
nando cada vez mais violento e arriscado, em 1921,
Lansky, Siegel, Luciano e Costello se tornaram os
líderes do crime com seu quarteto judaico-italiano.
Na época, Lansky e Siegel ainda eram adoles-
centes. Luciano tinha apenas 24 anos. Os três esta-
vam com muita vontade de mostrar o quão durões e
violentos podiam ser nas brigas por território. Com
30 anos, Costello era o mais cauteloso e pragmático
do grupo, e rapidamente se retirou das ruas para
agir na parte mais segura do negócio: trazer álcool
do Canadá para a costa americana, onde outros as-
sumiam a tarefa mais arriscada de descarregar,
transportar e vender enquanto carregavam espin-
gardas. Para isso ele precisava de intermediários
com cara de honesto, que pudessem trazer a bebida
disfarçada de compra legítima. Como tipógrafos
que compravam papel canadense.
Não se sabe como Harry Donenfeld conheceu
Frank Costello. Durante sua época de glória no fim
da década de 1930 e no início da de 1940, Harry se
gabava das amizades com gângsteres, mas quando,
no final da década de 1940, começou a onda de ata-
ques moralistas contra os gibis, ele calou a boca.
Décadas mais tarde, enquanto fãs de quadrinhos
tentavam farejar o que havia acontecido, Irwin, o
94
filho de Harry, jogou gato-e-rato com eles. Numa
entrevista contou que uma vez o telefone tocou e a
mãe atendeu e escutou uma voz áspera perguntar,
“Harry está aí?”. Quando respondeu que não, a voz
disse “diga-lhe que Frank Costello ligou”. Segundo
Irwin, Gussie tremia quando contou isso a ele. Em
outra entrevista, Irwin disse que um dia a campai-
nha tocou, ele foi abrir a porta e encontrou um ho-
mem moreno e atarracado, que perguntou, com a
mesma voz áspera: “Harry está em casa?” Quando
Irwin balançou a cabeça, o homem disse, “diz para
ele que Frank Costello deu uma passada”. Irwin se
virou em direção à mãe e ambos começaram a tre-
mer. Até que um fã-historiador insistiu com Irwin
sobre as verdades que não estavam registradas em
nenhum lugar. Irwin deu um sorriso meio amarelo
e falou: “Digamos que Frank Costello era meu pa-
drinho.”
As histórias da família Donenfeld, anedotas
passadas adiante pela mitologia da indústria do gibi
e a história dos negócios dos irmãos, nos fornecem
algumas pistas sobre a relação entre Harry e Frank.
Harry tinha muitos contatos entre os apostadores e,
antes da Lei Seca, Costello mexia com jogo e apos-
tas. Era uma sociedade fácil. Os irmãos Donenfeld
compravam papel do Canadá regularmente, e com
o pagamento ou a pressão corretos, os agentes da
Receita podiam ser facilmente convencidos a não
inspecionar os carregamentos a ponto de encontrar
95
caixas cheias de cerveja Molson ou de uísque cana-
dense. O depósito da Martin Press era usado para
guardar essas mercadorias. Os tipógrafos negocia-
vam diretamente com os distribuidores de revistas,
que levavam a mercadoria até bancas, tabacarias,
farmácias e lojas de doces — todos esses eram pon-
tos de venda comuns para o álcool contrabandeado.
E, como a distribuição de revistas e jornais já esta-
va sob o controle de quadrilhas, todo o procedi-
mento estava bem seguro. O resultado disso para a
Martin Press foi um aumento súbito de capital e
uma rápida expansão dos contatos com distribuido-
res.
Pode ter sido graças a alguns desses novos só-
cios que Harry realizou seu maior feito como ven-
dedor. Enquanto expandia as operações de venda
de bebida, o time de Luciano e Lansky entrou para
a folha de pagamento do macher (Pessoa influente)
de distribuição de jornais Moe Annenberg. Moe ti-
nha impressionado seu chefe de tal forma durante
as guerras de distribuição em Chicago e Milwaukee
que Hearst o nomeou responsável pela distribuição
de todos os seus jornais e as suas revistas em Nova
York, e em 1922 nomeou-o editor de sua nova pu-
blicação, o New York Daily Mirror. Moe chegou a
aparecer em público chamando a si mesmo de “M.
L. Annenberg”, em imitação a “W. R. Hearst”. Mas
na vida privada ele continuava um brucutu. Trouxe
Dion O’Banion de Chicago para dar um jeito nos
96
bairros de irlandeses carolas e contratou Luciano e
Lansky para cuidar dos carcamanos e salins. “Eu
via o Mirror como meu jornal”, disse Luciano.
“Sempre pensei em Annenberg como meu tipo de
camarada.”
Em 1923 Harry Donenfeld fechou um excelente
negócio: imprimiu 6 milhões de cupons de assina-
tura para a Cosmopolitan, Good Housekeeping e
todas as outras revistas de Hearst. A empresa fami-
liar se mudou para um lindo prédio novo de 12 an-
dares no distrito de Chelsea, investiu numa rotativa
de três cores e se preparou para virar uma empresa
de grande porte. Mas já não seria mais a mesma
empresa familiar: com alguma artimanha — nin-
guém lembra ao certo o quê — Harry tirou seus
dois irmãos mais velhos do negócio e tornou-se
dono dele. Charlie e Mike Donenfeld voltaram para
o ramo de vestuário e, a partir daí, sempre que fala-
vam com Harry tratavam-no com frieza. Irving per-
maneceu como parceiro e tipógrafo. Harry mudou o
nome da firma para Donny Press, por causa de um
de seus apelidos nas ruas.
Na esfera pessoal, Harry ascendeu a um nível
social inatingível para gente do mundo do vestuário
barato. Tinha uma vida noturna repleta de jogo, be-
bedeiras e mulheres, com despesas muito acima das
que podia pagar um vendedor de impressos. Tinha
fotos com gângsteres e seus asseclas nos speakea-
sies mais luxuosos — fotos que mais tarde iriam
97
desaparecer, mas que jovens editores lembram de
ter visto em seu escritório até os anos 1940. Essa
era a grande farra dos anos 1920 em Nova York,
paga com o dinheiro e a decadência social propor-
cionados pela Lei Seca, na época em que bruta-
montes, policiais, banqueiros, estrelas de cinema e
jornalistas juntavam-se com seu uísque em torno do
feltro verde; na época em que criminosos que antes
só poderia ser astros em espeluncas como o Segal’s
Café na Segunda Avenida tornavam-se subitamente
alvo de idolatria por parte de debutantes e roman-
cistas. E Harry Donenfeld estava lá com eles. Para
um homem como Harry, o glamour dos gângsteres
não era apenas a vida arriscada ou o cheiro de san-
gue a seu redor, mas o fato de eles atravessarem
barreiras de classe firmemente mantidas pela velha
elite americana. Como percebeu um detetive de
Nova York chamado Ralph Salerno, “Gângsteres
que nem sequer terminaram o segundo grau rompe-
ram barreiras de que ninguém se aproximava 30
anos antes”. Um contador judeu respeitador da lei
como Jack Liebowitz ficava se arrastando no cami-
nho até a assimilação, trabalhando para clientes ju-
deus e impossibilitado de entrar para uma escola
em que a cota para judeus estivesse preenchida, en-
quanto Harry Donenfeld — ordinário, baixinho, ba-
rulhento, com sotaque desprezivelmente Lower
East Side — podia pagar uma bebida para um juiz
da Tammany e dar uma gorjeta para uma dançarina
98
no Texas Guinan’s.
O modelo de Harry sempre foi Frank Costello.
Para ele, Harry provavelmente era apenas mais um
pequeno operador de negócios, uma engrenagem na
máquina que ocasionalmente precisava de um pou-
co de graxa (era bem fácil aceitar ser o padrinho de
mais um bebê), mas Harry queria considerá-lo um
amigo. Costello era o mestre dos contatos e da reci-
procidade. Sempre fazia com que os capitães de po-
lícia e juízes que visitavam seus cassinos saíssem
ganhando, e avisava-os de que estava tomando con-
ta deles. Sabia como chegar ao centro de informa-
ção e de poder: ficou amigo de Walter Winchell
logo que ele começou a espalhar lama para tudo
quanto é lado em sua coluna de fofocas, e os dois
trocaram informações durante anos, Winchell co-
nhecendo a sujeira do submundo e Costello convi-
vendo com os ricos e famosos. Costello gostava
tanto de negócios sem sangue quanto da alta socie-
dade: seus camaradas gângsteres chamavam-no de
“Primeiro Ministro”. Boatos diziam que ele mesmo
havia neutralizado o maior perigo em potencial
para as gangues, o FBI. Fosse quando fosse, se ele
soubesse que uma corrida de cavalos tinha sido ar-
ranjada, passava o nome do vencedor para Win-
chell, que o repassava a seu amigo J. Edgar Hoo-
ver, que adorava brincar de cavalinho. Segundo a
lenda de Costello, foi esse o motivo de Hoover ne-
gar a existência do crime organizado na América
99
por décadas, mesmo quando até o mais distraído
dos americanos sabia a verdade.
Harry se vestia como Costello, abandonando os
paletós de mau gosto que comprava de caixeiros vi-
ajantes, passando a usar ternos escuros e caros, ape-
nas um pouquinho mais esportivos que os usados
pelos negociantes republicanos. Ele parecia não ter
o autocontrole de Costello: há, nas histórias de
Harry, alguns detalhes que o revelam piegas ou vi-
olento quando enchia a cara, chegando a agredir
mulheres. Todavia, assim como Costello, promovia
contatos e juntava pessoas de grupos diferentes.
Ainda assim, se para Costello essas manobras soci-
ais eram calculadas visando poder e lucro, para
Harry pareciam justificar-se por si mesmas. A sim-
plicidade que ele demonstrava em qualquer encon-
tro, não importando se a pessoa em questão podia
lhe trazer algum lucro ou não, revela um homem
que amava ser conhecido e aceito.
Quando Irwin Donenfeld era jovem, seu pai
sempre o impressionava por ser “amigo de um
monte de juízes”. Para um ex-pivete, esse era o
máximo do poder e da aceitação social. O pior
medo de um jovem batedor de carteira ou ladrão
era ficar cara a cara com o juiz. O juiz era a maior
autoridade pública com que uma criança tinha con-
tato, já que no juizado de menores, lá de seu assen-
to elevado e com sua vestimenta negra infernal, ele
podia enviar um garoto para o reformatório por me-
100
ses — ou até mesmo um ano — sem direito a ape-
lação. Mas, no sistema da Tammany, um juiz era
qualquer pau-mandado escolhido para fazer julga-
mentos arranjados, e durante a Lei Seca esse siste-
ma também servia às gangues de contrabando de
bebida. O próprio Frank Costello cuidava de esco-
lher os juízes que deveriam ser eleitos em Nova
York e New Jersey. Harry Donenfeld teria sido útil
como um intermediário aparentemente honesto en-
tre o sistema público e essas facções secretas. Mais
especificamente, Harry pretendia fechar negócios
para imprimir e distribuir material de propaganda
política, e lá pela metade da década já estava aju-
dando a criar revistas e panfletos para a campanha
para governador de Al Smith, o político maioral
dentro da Tammany. De fato, ele parece ter feito
parte de um grupo de estratégia eleitoral de 1928,
quando Smith concorreu à presidência e Franklin
D. Roosevelt ao governo do estado — talvez essa
tenha sido a origem da história a respeito de sua
participação no Brain Trust de Roosevelt. O pivete
tinha vencido: juízes e políticos lhe deviam
favores.
Na mesma época, outras portas se abriram para
Harry. Era um negócio que provavelmente não ren-
deria tanto dinheiro ou influência quanto sua liga-
ção com Frank Costello ou com a máquina do Par-
tido Democrata, mas a oportunidade era ainda mais
tentadora. Fechou negócio com uma distribuidora
101
de revistas chamada Eastern News, fundada por
dois jovens idealistas com o dinheiro que suas fa-
mílias tinham acumulado no ramo de roupas: Char-
les Dreyfus e Paul Sampliner. Graças à estranha va-
riedade de títulos que eles publicavam, Harry des-
cobriu um outro aspecto da América dos anos
1920: um mundo de fanáticos pela boa forma física
e fotógrafos de mulheres nuas, de reformistas das
leis de bons costumes e pornógrafos, de distribui-
dores de contrabando e visionários sociais, de Hugo
Gernsback e Margaret Sanger. Ao passar por aque-
la porta Harry iria finalmente, e acidentalmente, fa-
zer sua grande contribuição à cultura americana.

TALVEZ SEJA uma medida do peculiar char-


me de Harry o fato de diferentes pessoas gostarem
das diferentes personificações que ele foi assumin-
do. Ao mesmo tempo que fazia amizade com gân-
gsteres e democratas corruptos, continuava a des-
frutar da confiança daquele organizador dedicado
do Sindicato Internacional dos Trabalhadores da In-
dústria de Roupas Femininas, Julius Liebowitz.
Os melhores anos para os contrabandistas de
bebida não foram muito bons para os radicais e
para os sindicatos. Diante das consequências da
Guerra Mundial e da Revolução Russa, o Secretário
de Justiça dos Estados Unidos orquestrou uma lim-
pa geral que colocou 16 mil esquerdistas na cadeia
por meses, sem julgamento, e deportou centenas
102
para a Rússia. (O caso fez de J. Edgar Hoover uma
estrela; sua crença de que os escritos anarquistas de
Emma Goldman eram uma ameaça maior à vida
americana do que os sangrentos negócios envolven-
do bebida ilegal estava de acordo com a opinião ge-
ral no país.) E isso tudo durante um governo demo-
crático progressista. Quando os republicanos assu-
miram o governo, em 1921, fingiram não perceber
as leis ignoradas, o erário público saqueado e os
sindicatos atropelados por cartéis. Nos anos seguin-
tes a economia sofreu altas e baixas na montanha
russa impulsionada pelo dinheiro que encerrou a úl-
tima década do capitalismo emergente americano,
década em que os sindicatos perderam membros e
influência.
Em toda parte, o controle do SITIRF estava nas
mãos de socialistas moderados que desejavam man-
ter os acordos fechados durante a guerra. Mas em
Nova York uma falange de comunistas beligerantes
acusou esses mesmos acordos de terem prejudicado
os sindicatos. Assim, romperam com o conselho
executivo e incitaram o confronto com os donos de
fábricas. Os socialistas de Nova York, liderados
pelo jovem David Dubinsky e que incluíam Julius
Liebowitz, tentavam ajudar o sindicato nacional a
se livrar dos comunistas, mas os fabricantes se
aproveitaram da ruptura para pressionar o sindicato
a ceder. Os sindicalistas passaram a apoiar a greve.
O sindicato enfrentava, ao mesmo tempo, os fabri-
103
cantes e suas brigas internas — e nesse exato mo-
mento Jack, o filho de Julius, começava a trabalhar
lá.
Enquanto trabalhava para sustentar a si mesmo
e à família, Jack recebeu seu diploma da NYU aos
24 anos. Já tinha encontrado e cortejado uma garota
chamada Rose, mas não queria se casar com ela até
que estivesse formado e pudesse começar uma car-
reira. Começou num escritório modesto próximo ao
SITIRF, tendo o sindicato como único cliente. Nas
fotos dessa época ele aparenta mais idade do que a
que de fato tinha — ternos de bom gosto, bigodi-
nho, cabelo puxado para trás, mostrando entradas
discretas —, enfim, o tipo de homem a quem você
confiaria seu dinheiro.
Ao fim de um ano, Jack foi nomeado responsá-
vel pelo fundo de greve do sindicato, bem a tempo
para seu batismo de fogo. No verão de 1926, 50 mil
trabalhadores paralisaram suas atividades. Foi um
desastre que durou seis meses. O sindicato gastou
quase 4 milhões de dólares para custear a moradia e
a alimentação dos grevistas, o que exigiu do jovem
Jack malabarismos numéricos. E quando a greve
terminou sem que o fundo de greve entrasse no ver-
melho, Jack passou a ser muito bem-visto pela lide-
rança do sindicato.
Infelizmente outros homens também se envol-
veram com a liderança. Quando a situação ficou
complicada, os proprietários das fábricas contrata-
104
ram um brutamontes assassino chamado Jack
“Legs” Diamond para acabar com os piquetes. Os
comunistas deram o troco chamando o chefe das
ruas no Lower East Side, “Little Augie” Orgen. A
greve ameaçava transformar-se numa guerra entre
Legs e Augie. A seriedade da disputa, aliada ao
sentimento pró-empregadores do público em geral
e à resistência silenciosa dos socialistas de Du-
binsky, tudo isso começou a pesar para os grevis-
tas. Por fim os comunistas aceitaram negociar. Mas
não se chegou a nenhum algum até que Arnold Ro-
thstein, o jogador que era também o conselheiro de
quase todos os chefes do crime em Nova York,
concordasse em intermediar um cessar-fogo entre
Legs e Little Augie. Nesse processo, envolveu as
gangues com os sindicatos e patrões. Daí em dian-
te, a quadrilha passaria a ser um parceiro invisível
em cada local, cada negociação, cada acordo finan-
ceiro tanto do SITIRF como da Associação dos Fa-
bricantes. Menos de um ano depois, os corpos de
Little Augie e Legs Diamond foram encontrados
crivados de balas — Augie já morto e Legs quase
— num esconderijo na Delancey Street. O homem
que fez os disparos, um protegido de Rothstein cha-
mado Lepke Buchalter, assumiu o controle da qua-
drilha e rapidamente o estendeu a outros sindicatos
e indústrias, tornando-se o homem mais poderoso
no crime e nos sindicatos americanos.
Os comunistas do SITIRF viram-se forçados a
105
aceitar um acordo tão ruim que foram afastados de
seus cargos. Em seguida David Dubinsky, o experi-
ente e pragmático fugitivo que valorizava resulta-
dos mais do que ideologia, estava tocando sozinho
o sindicato — mas um sindicato profundamente
comprometido. Para muitos — ao que parece até
mesmo para Julius Liebowitz — era um compro-
misso que valia a pena, em nome da causa. Para o
filho Jack, achar o equilíbrio entre corrupção e ide-
ais seria mais uma etapa de sua educação pouco
sentimental. Enquanto ajeitava o balanço para es-
conder os milhões de dólares desviados do sindica-
to por Lepke Buchalter, Jack começou a questionar
o socialismo. Se o capitalismo conquistava a tudo e
a todos de forma tão irresistível, talvez a única saí-
da realmente honesta fosse dominar o próprio capi-
talismo.

ENQUANTO A NOBRE experiência da Lei


Seca continuava, a farra dos anos 1920 ficava mais
animada. As quadrilhas profissionais afastaram os
contrabandistas novatos e obrigaram todos os que
tinham a intenção de ganhar dinheiro vendendo be-
bida a jogar seu jogo. Em 1925, outro gângster que
Harry declarou conhecer, Irving “Waxey Gordon”
Wexler, meteu-se em encrencas quando o capitão
de um navio que levava uma carga de bebida cana-
dense para ele ficou indignado com sua parte no
pagamento e foi denunciá-lo à polícia. A história
106
terminou com o capitão morto num quarto de hotel
(onde estava sob proteção da polícia). Waxey teve
que fugir de sua glamorosa Manhattan para New
Jersey. Harry, que não desejava nem uma bala na
cabeça nem voltar para New Jersey, parece ter res-
tringido seu envolvimento com o contrabando nes-
se período.
Harry também estava assumindo novos compro-
missos. Tinha se mudado para uma vizinhança de
classe média na Merriam Avenue, no Bronx, onde
em 1926 Gussie deu à luz seu filho Irwin. Dois
anos mais tarde ela teve uma filha, que recebeu o
poético nome de “Sonia”, mas estava destinada a
ser mais conhecida por seu apelido “Peachy”.
Harry nunca seria um homem de família — tinha
um apartamento só seu em Manhattan e deixava a
residência mais ao norte sob os cuidados de Gussie
e dos empregados. No entanto era ele quem susten-
tava tudo isso, e assim, pressionado pela esposa e
pelo dia-a-dia, foi buscar novas formas de expandir
os negócios da família.
Acontece que Harry não queria ser apenas prós-
pero — também queria ser notado. Para esse filho
ambicioso de judeus imigrantes de Nova York, nos
anos 1920, o ar, as bancas de revista e os cartazes
estavam cheios de histórias de sucesso que ao mes-
mo tempo o atraíam e atormentavam. Quando um
comerciante de peles chamado Adolph Zukor assis-
tiu a um peep show (Aparelho ou cabine em que
107
um espectador individual espia uma cena de nature-
za erótica) de 25 centavos pela primeira vez, em
1903, o comentário que fez foi: “Um judeu poderia
fazer muito dinheiro com isso”. Pouco mais de uma
década depois, Zukor e um pequeno exército de ou-
tros frequentadores de prostíbulos e excluídos com
o mesmo objetivo em mente — Laemmle, Lasky,
Warner, Loew, Cohn — tinham derrubado figuras
tradicionais e influentes, gigantes da indústria cine-
matográfica como Thomas Edison e George East-
man. Enquanto isso Al Jolson, os irmãos Marx,
Jack Benny, George Burns, George Jessel e o velho
amigo de Harry Eddie Cantor promoviam grandes
transformações no palco e no rádio. Irving Berlin,
outro garoto do Lower East Side pouco mais velho
que Harry, não apenas transformou a música pop
americana e se tornou um milionário como também
figurou nas manchetes em 1925, quando roubou, do
pai da moça, uma bela herdeira de 17 anos de famí-
lia tradicionalíssima e casou-se com ela. Alguém
metido a cantor, ordinário e com pouca educação
até podia olhar as beldades shiksa (Garotas não-
judias) e seus elegantes narizes nas colunas sociais
e sonhar com a possibilidade de que elas um dia ha-
bitassem o mesmo mundo que ele. Mas ter 38 anos,
ainda sem educação, ainda ordinário e levar uma
garota daquelas não apenas para a capa do jornal
mas para a cama também — isso era o moderno
triunfo americano. “Deus abençoe a América”, es-
108
creveu Irving Berlin, mas não era o oceano que ele
havia conquistado (Referência à letra de “God
Bless América”, de Irving Berlin).
Para os judeus do início do século XX a rota
mais curta para a fama era através do entretenimen-
to para as massas, áreas nas quais os americanos
tradicionais não estavam interessados em trabalhar,
seja por preconceito, esnobismo ou provincianis-
mo. As habilidades de vendedor de rua ajudavam:
saber fechar um bom negócio, vender ligeiro, rein-
vestir tudo de novo, acompanhar minuciosamente a
moda e ir atrás dos gostos da clientela sem se im-
portar com o que os outros pensavam a respeito de
sua aparência. O ramo disponível para Harry era o
da publicação de revistas, que moldaria sua vida
desde seus 30 anos até sua morte.
Na década de 1920, os americanos começaram a
comprar revistas como nunca. Tecnologia de im-
pressão barata, distribuição na era dos automóveis,
dinheiro para gastar e uma fome de informações so-
bre um mundo que mudava a cada dia conspiraram
para tornar a banca de revistas uma das principais
arenas da cultura nacional. No início da década ha-
via nas bancas mais de 2 mil títulos. Os americanos
passavam mais tempo lendo revistas do que em
qualquer outra atividade de lazer. Cada turma ou
grupo com um determinado interesse tinha periódi-
cos próprios, e o editor sortudo que descobrisse um
gosto ainda inédito do público podia fazer fortuna
109
com investimentos ridículos. Ninguém em 1919 es-
peraria que a True Stories ou a Ranch Romances
vendessem milhões de exemplares, mas elas vende-
ram. O ramo de revistas era um ímã para visioná-
rios, pessoas com hobbies excêntricos, oportunistas
e também para os envolvidos com o mercado ne-
gro. Algumas vezes todas essas características se
juntavam na mesma pessoa.
O modelo de qualquer aspirante a magnata das
revistas era William Randolph Hearst, que desafia-
ra o monopólio da American News Company para
criar sua própria companhia de distribuição inde-
pendente. Mas parecia impossível imitar Hearst, já
que ele tinha na bagagem uma família rica e suces-
so no mundo jornalístico. Quando Harry Donenfeld
e outros homens como ele pensavam em lançar
suas revistas, tentavam ser como Bernarr MacFad-
den.
MacFadden usou sua própria história para fun-
dar um império: um garoto raquítico do Missouri
que descobriu as virtudes da boa forma física quan-
do foi trabalhar na fazenda do tio, criou um novo
método de fisicultura batizado como “cinesterapia”
e se mudou para Nova York por volta de 1890 para
formar o primeiro clube de “cultura física”. De-
monstrou ser um mestre em chamar a atenção. Mu-
dou seu nome de “Bernard” para “Bernarr”, para
que soasse mais como o rugido de um leão. Deixou
o cabelo crescer, como Hércules, e aparecia em pú-
110
blico com tanga de pele de leopardo por cima de
uma malha cor de pele. Em 1899 lançou a revista
Physical Culture para promover seu plano de dieta,
levantamento de pesos e vida racional. Quando ne-
nhum distribuidor quis apostar na idéia, usou a rede
de contatos que tinha em clubes de fisicultura e sa-
natórios para estabelecer seu próprio sistema de
distribuição. Logo estaria também nas farmácias,
tabacarias e outros pequenos pontos de comércio
em todas as cidades da América.
Em nome da saúde e da honestidade, MacFad-
den desafiou os bons modos da época. Foi julgado
culpado de obscenidade por causa de um artigo que
discutia com franqueza as doenças venéreas na
Physical Culture, e então perdoado pelo próprio
presidente Taft. Era atacado pela polícia e pela
igreja devido às exibições que organizava para
mostrar os corpos de seus discípulos em roupas de
natação e malhas colantes. E as pessoas compra-
vam suas revistas. Quando a Primeira Guerra Mun-
dial acabou e o preço do papel caiu, tentou um
novo tipo de revista, com histórias inspiradoras en-
viadas pelos leitores da Physical Culture. Passados
alguns anos, a True Story, um compêndio dos su-
cessos de pessoas comuns em crises de saúde, nas
finanças, na família e na vida amorosa, estava ven-
dendo 2 milhões de cópias. Bernarr não perdeu
tempo e ofereceu mais títulos baseados em histórias
reais. Mês a mês ele se afastava cada vez mais da
111
saúde e da inspiração, aprofundando-se em escân-
dalos, emoções baratas e sexo mal disfarçado: True
Confessions, Photoplay, True Ghost Stories. Em
1924, com a True Crime e o pioneiro do que seria
chamado “jornalismo sensacionalista”, o New York
Graphic, ele deu um giro de 180 graus em sua pro-
posta inicial e passou a vender histórias de doença
e degradação humana. Isso também vendia aos
montes.
Um dos pontos-chaves de vendas para MacFad-
den foi o corpo humano: aproveitando-se do baixo
custo do processo de impressão por rotogravura
que ficou disponível no pós-guerra, estampava fisi-
cultores, atrizes estreantes e belas vencedoras de
concursos para figurar nas capas. Um corpo muscu-
loso vestindo malha se tornou a marca registrada
das revistas de MacFadden. Suas publicações eram
atacadas como pornografia por moralistas e pelo
serviço postal, mas ele sempre dava um jeito de es-
tar dentro da lei. Continuou promovendo seus ide-
ais de cultura física, muitas vezes atraindo as críti-
cas da comunidade médica, mas agora muito mais
para continuar nas manchetes do que para melhorar
a humanidade. Em público ele se fazia de bobo,
aparecendo nos escritórios da companhia apenas de
tanga, rugindo como um leão e promovendo ses-
sões de exercícios calistênicos para sua equipe. Na
verdade era um negociante astuto e predatório, que
devorava outros distribuidores. Em 1926, vanglo-
112
riou-se de vender mais revistas que Hearst. Os críti-
cos chamavam-no de demente, charlatão e pornó-
grafo. Mas acontece que ele era um demente, char-
latão e pornógrafo rico.
Muitos dos que imitaram MacFadden eram ape-
nas homens de negócios. George T. Delacorte tinha
entrado no ramo em 1921, e já estava rico no final
dos anos 1920, sempre comprando revistas que es-
tavam ganhando espaço e vendendo-as quando
atingiam seu ponto máximo. Os irmãos Fawcett, de
Minneapolis, deram sorte com uma revista de pia-
das chamada Captain Billy’s Whiz-Bang e monta-
ram seu negócio como um simulacro do império de
MacFadden. Os Delacorte e os Fawcett dos negó-
cios vendiam muitas revistas, e mais tarde quadri-
nhos, mas trouxeram pouca coisa de original para
esses segmentos. Os que expandiam os horizontes
das revistas costumavam ser aqueles como Mac-
Fadden que, antes de se interessar por negócios ou
publicações, tinham chegado a Nova York para
promover suas paixões particulares e viam as revis-
tas como uma forma de disseminar idéias.
Um dos imitadores de MacFadden que cruzaria
os caminhos de Harry Donenfeld e Jerry Siegel foi
Hugo Gernsbacher. Era um judeu europeu, mas de
uma Europa e de um judaísmo desconhecidos dos
Donenfeld, Siegel e Liebowitz: filho de um merca-
dor de vinhos luxemburguês, fora criado numa aris-
tocracia cultural que falava alemão e francês e con-
113
fiava ser capaz de criar o futuro dos seus desejos.
Ainda na adolescência, apaixonou-se pela tecnolo-
gia elétrica e inventou um novo tipo de bateria, mas
o sistema legal europeu impediu que patenteasse a
invenção. Tinha crescido lendo romances baratos
sobre caubóis americanos, trabalhadores heróicos e
aventureiros fluviais como os de Mark Twain. Aos
20 anos, em 1904, colocou sua bateria elétrica na
mochila e mandou-se para Manhattan. Ao chegar
— mal falando inglês, vestido como um dândi fran-
cês e com um monóculo no olho — apresentava-se
como “Huck Gernsback”. Começou a vender equi-
pamento elétrico através de catálogos postais quan-
do viu que não conseguia alguém para financiar
suas invenções. Mas ele tinha muito o que dizer so-
bre a maravilhosa era da Tecnologia e Razão que
despontava, e seu catálogo iria refletir isso ao ponto
de ser muito mais que um catálogo: os editoriais e
as descrições de novos produtos entusiasmavam
tanto a ele e seus clientes que, em 1908, lançou a
Modern Electrics, e mais tarde a Science and In-
vention, uma espécie de versão futurística e utópica
da Popular Mechanics. Nessa revista, em 1911, pu-
blicou seu estranho romance, “Ralph 124C 41+”,
em que antecipou inventos como a televisão, o ra-
dar, as luzes fluorescentes, as fitas cassetes e até
mesmo as jukeboxes. Era, além disso, uma demons-
tração de como idéias de tecnologia e futuro podi-
am empolgar as massas.
114
Durante o boom dos anos 1920, Gernsback
adaptou essa idéia e criou a Amazing Stories, a re-
vista que seria tão importante para Jerry Siegel e
seus companheiros fãs. Também entrou para o ni-
cho de saúde com a Your Body, flertou com revistas
de humor e chegou a vender reimpressões das tiras
S’Matter Pop? em bancas de revistas. Os esquemas
de distribuição permanecem nebulosos, mas no fim
da década ele já era um cliente importante de Char-
les Dreyfus e Paul Sampliner da Eastern News,
para os quais Harry Donenfeld era um dos impres-
sores favoritos. Segundo relatos, Gernsback era
uma das poucas pessoas imunes ao charme de
Harry, e o achava grosseiro e mercenário. Harry pa-
recia não gostar do estilo condescendente de Gerns-
back. Nada disso surpreende, afinal, era o encontro
de um judeu germânico e culto com um de seus ir-
mãos do leste europeu. Mas seus interessem con-
vergiram o suficiente para torná-los aliados por um
tempo.
Michael Feldman, editor e jornalista que inves-
tigou algumas das misteriosas linhas de distribuição
de revistas, afirma que a Eastern News era “o núc-
leo de uma cultura alternativa importante e não do-
cumentada na América do início do século XX”.
Além das publicações de Gernsback, a Eastern
News também cuidava de jornais feministas, revis-
tas esotéricas, a Psychology e a Sex Monthly, guias-
gêmeos para a saúde mental e erótica editados por
115
um ministro cristão progressista chamado Henry
Knight Miller. Mas os produtos não se restringiam
a publicações.
O próprio Gernsback era um investidor com
muitos interesses. Sua grande paixão era o rádio.
Nele enxergava a esperança de um novo mundo,
um instrumento que superaria o provincianismo e o
primitivismo. Investiu seu dinheiro e conhecimento
na construção de uma das primeiras estações co-
merciais de rádio em toda a América, a WNRY, e
assim que a empresa começou a dar lucro Gerns-
back passou a pesquisar a transmissão de imagens.
Escrevia sobre “televisão” desde 1910 e foi o prin-
cipal responsável por esse termo ter batizado algo
que ainda não existia na época. Em 1928, saíram de
sua estação as primeiras transmissões de televisão
ocorridas no mundo.
Segundo Michael Feldman, Gernsback prova-
velmente continuou vendendo bugigangas eletrôni-
cas e outros bens de consumo por muito tempo
após entrar no ramo de publicações, e pode ter ini-
ciado a Eastern News na arte de distribuir certos
produtos para farmácias e tabacarias junto com
suas revistas. Foi por causa desse interesse que
Gernsback, a Eastern News e Harry Donenfeld se
envolveram com uma figura misteriosa mas onipre-
sente durante a época do estouro das revistas —
Harold Hersey e sua amante Margaret Sanger.
Na segunda década do século XX, Sanger tinha
116
se tornado uma líder política radical do Greenwich
Village. Foi o trabalho como enfermeira no Lower
East Side, cuidando das mulheres que Harry Do-
nenfeld conhecia — mulheres que tiveram a vida
destroçada pela ignorância e falta de métodos anti-
concepcionais — que a levou a promover o contro-
le de natalidade. Precisaria de um editor e um escri-
tor para ajudá-la a lançar seu jornal, The Woman
Rebel, e contratou Harold Hersey, um jovem que ti-
nha se mudado de Montana para o Greenwich Vil-
lage sonhando em ser poeta. Sanger acreditava na
liberdade sexual e era conhecida por seus casos
com ícones do período, como H. G. Wells e Have-
lock Ellis (Médico e terapeuta sexual britânico en-
gajado em movimentos sociais). Hersey ficava
ofuscado em meio ao brilho dos outros amantes de
Sanger, mas ainda assim era importante, já que em
breve estava publicando e distribuindo o jornal e
ajudando-a a construir parte da estrutura necessária
ao movimento pelo controle de natalidade. “Nós
não vendíamos apenas jornais, mas também lâmi-
nas de barbear e outros itens.” Os “outros itens”
eram contraceptivos. Além de defensora do contro-
le de natalidade, Sanger também vendia métodos
anticoncepcionais pelo correio. Tinha sua própria
linha de preservativos, diafragmas e duchas vagi-
nais.
A Eastern News era uma das companhias que
distribuíam as publicações e contraceptivos de San-
117
ger nos anos 1920, segundo Feldman. Harry Do-
nenfeld pode ter sido um dos impressores do Birth
Control Review e outros periódicos. Mas Harry era
mais valorizado na distribuição, uma vez que era
ilegal enviar contraceptivos e até mesmo escritos
pró-contraceptivos pelo correio. Sanger foi presa
diversas vezes pelo envio desse material e, ainda
que as prisões tenham rendido alguma publicidade,
naquela época ela estava mais interessada em ga-
rantir acesso aos contraceptivos e ganhar o apoio
do mainstream do que em ser mártir. A Eastern
News, como todas as distribuidoras de revistas, de-
pendia do serviço postal para chegar até a clientela.
Mas Harry Donenfeld tinha acesso a outros siste-
mas de distribuição: aqueles que transportavam be-
bida canadense até o coração da América. Assim os
preservativos de Margaret Sanger, a ficção científi-
ca de Hugo Gernsback e o uísque de Frank Costello
podiam andar juntos em caminhões e trens e passar
por agências de correio em que os inspetores esti-
vessem na jogada. E em 1928 a literatura de cam-
panha de Al Smith (Político populista do Partido
Democrata originário do Lower East Side. Foi elei-
to várias vezes governador do estado de Nova
York) se juntou a essas mercadorias.
Enquanto isso, Harold Hersey estava usando o
que aprendera com a publicação das revistas de
Sanger para iniciar sua carreira como editor de re-
vistas. Foi o criador da Ranch Romances, umas das
118
revistas pulp de maior sucesso, e The Thrill Book,
um dos precursores da Weird Tales e da Amazing
Stories. Trabalhou em diversos projetos para Ber-
narr MacFadden, incluindo o New York Graphic, e
pode ter dado uma mãozinha a Walter Winchell e
Ed Sullivan para que arranjassem seu primeiro em-
prego jornalístico. Entre suas criações estavam al-
gumas das revistas mais esquisitas de todos os tem-
pos: Strange Suicides, Medical Horrors e Speake-
asy Stories. Também lucrou alguma coisa como
consultor para diversos editores, mesmo que nunca
tenha recebido créditos por isso: ele era muito re-
quisitado para simplesmente entrar no escritório de
algum jornalista novato e dizer “Beeeeem... isso é o
que fazemos na MacFadden...” Hersey era bastante
popular na Eastern News e deixou sua marca nas
publicações de um dos editores mais ousados, um
californiano boêmio chamado Frank Armer. E fo-
ram essas revistas que fizeram de Harry Donenfeld
um dono de editora.
Pouco se sabe da infância e adolescência de Ar-
mer, mas ele parece ter sido um homem de inclina-
ções artísticas que amadureceu em Hollywood na
época em que Adolph Zukor e sua turma estavam
transformando o paraíso sonolento das famílias
protestantes num mundo de ambição, dinheiro, exi-
bições artísticas e corpos jovens e belos. Apaixona-
do pelo negócio, e especialmente pelas atrizes es-
treantes, Armer ajudou, em 1922, a lançar a
119
Screenland, uma imitação da Photoplay de Mac-
Fadden. O gerente de negócios era Paul Sampliner,
que em breve fundaria a Eastern News. Harry Do-
nenfeld imprimia as capas. Lá pelas tantas Armer
tinha se casado com uma judia rica que tinha conta-
tos na indústria de roupas e em 1925 ele estava em
Nova York. Era afiliado da Eastern News e estava
lançando uma revistinha que trazia algumas das
mais energéticas contradições da América nos anos
1920: Artists and Models. As capas continham fo-
tos glamorosas de garotas do Ziegfeld Follies
(Show de variedades apresentado na Broadway de
1907 a 1931) entre elas Joan Crawford e Louise
Brooks. Ao olhar o índice, no entanto, era possível
encontrar uma reprodução monocromática de um
retrato de viúva por Thomas Gainsborough, um ar-
tigo sobre “a arte de Goya” e um poema de Dante
Gabriel Rossetti.
Misturado com tudo isso havia colunas de fofo-
ca (“Broadway Flashes”), ficção levemente erótica
(“Challenge, the Story of a Model”) e ilustrações
de Erté, cenografista e figurinista que estava des-
pontando.
E o mais importante de tudo: cada edição conti-
nha o perfil de algum artista contemporâneo que
Armer julgava merecer atenção — e que sempre fo-
tografava ou pintava nus femininos. “A arte de Al-
fred Barnard” exibia diversas fotos de corpos femi-
ninos jovens e lisos, com seios e traseiros empina-
120
dos. Ao lado, a seguinte observação: “Nota-se que
esse tipo de estudo de figura é especialmente im-
portante para o artista aspirante, conforme fica ates-
tado pelo número de cartas elogiosas que o sr. Bar-
nard recebe de diretores de universidades e acade-
mias de arte”. A Artists and Models era sofisticada,
pretensiosa, um tanto grosseira e dissimulada. Aci-
ma de tudo, era uma maneira esperta de fazer com
que fotos de mulheres nuas passassem pelos censo-
res e autoridades postais e chegassem até as estan-
tes (caso não ficassem escondidas embaixo do bal-
cão) de revistas nas tabacarias e bancas.
Harry Donenfeld imprimia as capas e as páginas
de fotos para Armer, e se realizava com esse servi-
ço. Armer deve ter sido uma figura irresistível. Mo-
rava nas duas costas ao mesmo tempo, tinha escri-
tórios a um quarteirão da Times Square, onde fazia
contato social com artistas de teatro e selecionava
pessoalmente as garotas que apareciam em sua re-
vista, mas apesar disso passava a maior parte do
tempo em San Francisco, onde encontrava poetas,
nudistas e fotógrafos “pictóricos” que vendiam seus
nus a colecionadores de arte, embora o material
fosse frequentemente barrado pela polícia como
pornografia. Harry queria ganhar sua atenção tanto
no nível pessoal quanto profissional. Quando Ar-
mer colocou a Art and Beauty, a Modem Art e ou-
tras revistas de “mulher pelada” na gráfica de
Harry, este arcou com diversos custos. Logo ele se-
121
ria mais que o impressor de Armer — era um par-
ceiro silencioso nos negócios.
Em 1926 Armer dedicou-se a um novo gênero e
acertou em cheio. Revistas de humor sacana e his-
tórias eram uma das fontes inesgotáveis de publica-
ções nos anos 1920: Laughter, La Paree, Snappy
Stories e a French Humor de Gernsback. Todas es-
sas tinham ilustrações insinuantes porém discretas,
até que uma outra revista, a Paris Nights, começou
a incluir cadernos de fotos de 12 páginas em suas
edições. No início eram apenas garotas com roupas
de baixo e fotos de dançarinas, mas aos poucos, já
que a lei mantinha distância, começou a incluir nus.
A Pep! de Armer fez o mesmo, alardeando suas
“novas, emocionantes e provocantes histórias e
ARTE”, arriscando mais do que nunca na parte
gráfica, chegando a colocar a foto de uma mulher
com os seios à mostra na capa da edição de dezem-
bro de 1926. Mas logo chegou a notícia, das bancas
e dos leitores, de que as histórias excitantes e chei-
as de emoção faziam tanto sucesso quanto a tal
arte. Os escritores da Pep! eram um bando de es-
pertinhos graciosos, que incluía o prolífico e caris-
mático Robert Leslie Bedlam. Numa história ele es-
creveu: “Mimi L’Enclos tinha uma queda por rou-
pas de baixo pretas e com lacinhos — e um marido
que aprovava completamente seu gosto nesse as-
sunto”. Mas ela ganha um diamante de presente de
um outro homem, “e então Mimi esqueceu tudo o
122
que estava em sua consciência. Até esqueceu com-
pletamente de Henri. Na verdade, esqueceu de qua-
se tudo que não fosse a felicidade daquele momen-
to e a alegria que tinha sentido quando viu o quanto
as roupas de baixo pretas agradaram Raoul”.
Revistas com histórias eram mais baratas e mais
seguras de publicar do que as com fotos de nus, e
em poucos anos Armer e Donenfeld eliminaram as
fotografias, adotaram novamente as capas pintadas
e causaram agitação com um monte de imitações:
Artists and Model Stories, Broadway Nights, Real
Story, Ginger Stories e Spicy Stories. Na primavera
de 1929, Harry e Irving Donenfeld formaram uma
nova companhia, com Gussie Donenfeld na gerên-
cia, para publicar suas próprias imitações baratas,
Juicy Tales e Hot Tales. Armer e os Donenfeld es-
tavam abrindo caminho para um novo gênero, as
revistas pulp de sexo — ou smooshes, como eram
chamadas. A editora da maioria dessas revistas era
a filha de um pastor metodista chamada srta. Merle
W. Hersey (“srta.” era para impor um pouquinho de
respeito). Ela e Harold Hersey sempre negaram
qualquer parentesco, mas os nomes são suspeitos.
Os contornos daquela “cultura alternativa não
documentada” se definem a partir desses negócios
e dessas relações sociais. Bebida, jogatina e prosti-
tuição num extremo; no outro, feminismo, direito
ao controle de natalidade e utopias científicas. En-
tre os dois, fotografias de nus, humor pornográfico,
123
dançarinas e atrizes estreantes, homens de negó-
cios, camelôs e políticos que se opunham à Lei
Seca e defendiam os métodos contraceptivos, mas
sem poder admitir isso publicamente. A grande far-
ra dos anos 1920 ficou mais animada ao chegar
perto do fim, e bem no meio do salão Harry Donen-
feld dançava — vendedor, impressor, contrabandis-
ta, democrata ferrenho e editor de smoosh.
Então as luzes começaram a se apagar. O pri-
meiro golpe veio com o surgimento do maior pre-
dador na selva de revistas baratas, Bernarr MacFad-
den. Ele entendia o valor dos títulos e ações da rá-
dio de Hugo Gernsback. Algumas semanas após as
primeiras transmissões televisivas de Gernsback,
seus credores juntaram-se a MacFadden para tirá-lo
de cena. “Huck” não era um homem de negócios
muito cauteloso e, ainda que a empresa desse lucro,
nem sempre ele tinha dinheiro em caixa para saldar
as dívidas. MacFadden levou-o à falência em 1929,
orquestrando exigências de pagamento simultâneas
dos impressores, fornecedores de papel e outros.
Então tomou posse rapidamente de suas proprieda-
des: a rádio e a estação de TV. Quando Jerry Sie-
gel, aos 14 anos, em Cleveland, notou o desapareci-
mento de Gernsback da Amazing Stories, ainda não
tinha idéia das artimanhas envolvidas na produção
das revistas que tanto amava.
Gernsback se uniu a novas revistas e sobreviveu
como editor, mas nunca mais teria chance de ser o
124
magnata das telecomunicações que sonhava ser. A
Eastern News estava abalada e especialmente vul-
nerável aos choques que se seguiram ao crack da
Bolsa. O mês do crack, outubro de 1929, foi o mes-
mo mês em que Harry Donenfeld fez sua estréia
como editor, lançando a Juicy Tales e a Hot Tales.
A grande farra estava acabando, mas Harry ainda
tinha mais um contato importante a fazer nos mo-
mentos finais.

O AFASTAMENTO DE Jack Liebowitz da


causa socialista parece ter acontecido de maneira
lenta mas constante durante o fim dos anos 1920.
Para muitos socialistas, a gota d’água foi a execu-
ção de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti no ve-
rão de 1927. A batalha para salvar os dois anarquis-
tas da pena de morte mobilizou progressistas do
mundo todo e despertou novamente a esperança
utópica da esquerda americana depois de anos de
reveses sociais e políticos. O desfecho da batalha,
com a morte dos dois homens, deixou apenas amar-
gura e exaustão. John dos Passos escreveu: “Tudo
bem, vocês venceram. Nossa nação, a América, foi
derrotada por estrangeiros que viraram nossa língua
do avesso [...] eles construíram a cadeira elétrica e
contrataram o carrasco para apertar o botão [...]
tudo bem. Somos duas nações”. Os revolucionários
mais convictos se uniram, e os menos se afastaram.
Jack estava entre os últimos.
125
Ele também estava assumindo responsabilida-
des. Tinha se casado com Rose e se mudado para
um apartamento no Bronx onde os dois pretendiam
começar uma família. Jack estava determinado a
ser um pai e marido ideal, a garantir conforto e se-
gurança para a família. No final da década come-
çou a trabalhar para outros clientes além do sindi-
cato. Também começou a estudar o mercado de
ações. O engajamento que tinha dedicado à causa
socialista se voltava agora para o capital. No início,
os esforços para compreender esse mercado benefi-
ciaram o sindicato também, já que tinha investido o
fundo de greve em ações e obtido bons resultados.
Mas, com o crack da Bolsa, o tiro saiu pela culatra.
O valor dos títulos e das ações do sindicato caiu
vertiginosamente. Não se sabe ao certo se Jack foi
dispensado pelos líderes sindicais ou se saiu, enoja-
do com sua raiva. O certo é que, pelo fim de 1929,
estava em busca de um novo cliente.
Ao mesmo tempo, Harry Donenfeld estava pro-
curando um novo gerente de finanças para sua edi-
tora. Mesmo sendo forte e astuta como era, Gussie
não tinha condições de cuidar de duas crianças e to-
car uma empresa. Foi quando um velho cliente, Ju-
lius Liebowitz, do SITIRF, ouviu sobre a fortuna
crescente de Harry. Perguntou: “Será que você po-
deria arranjar um emprego para Jack, o meu garo-
to?” Harry era sentimental e generoso na distribui-
ção de dinheiro e empregos. Sempre ficava feliz ao
126
contratar um velho amigo ou filho de um amigo da
vizinhança. Jack ficou com a vaga, mas não preten-
dia ocupá-la por muito tempo. Nem o socialista que
tinha sido, nem o pai de família respeitável que
queria ser admitiam a idéia de trabalhar como con-
tador para um pornógrafo.
Nenhum dos dois percebeu como se davam bem
juntos. Harry Donenfeld e Jack Liebowitz amadu-
receram em meio à selva de negócios da América
do início do século XX. Cada um desenvolveu ha-
bilidades diferentes para sobreviver nela: Harry ti-
nha a rapidez, a esperteza e o poder ilimitado de fa-
zer com que as pessoas gostassem dele. Jack tinha
autocontrole, cabeça no lugar e era um especialista
em analisar todas as variáveis. Juntos, formariam
uma entidade completa que iria sobreviver e pros-
perar nos difíceis anos que tinham pela frente. E
essa entidade emergiria da Grande Depressão como
algo que ninguém podia imaginar.
Esse foi o berço das histórias em quadrinhos:
contracultural, inculto, idealista, lascivo, pretensio-
so, mercenário, de olho no futuro e efêmero, tudo
ao mesmo tempo.

4
——————————
O HOMEM PERFEITO

JERRY SIEGEL SAÍA da casa da mãe, na


127
Kimberly Avenue, andava meio quarteirão cheio de
casas de madeira idênticas, virava à direita na
Parkwood e andava mais um quarteirão inteiro até a
Everton. Por vezes atravessava a rua e andava ao
lado das árvores alinhadas que beiravam a vala que
já tinha sido um rio. Nos dias de semana, a Parkwo-
od ficava cheia, com os 1.600 estudantes da Glen-
ville High School que vinham de ônibus, bicicleta
ou a pé. Jerry às vezes passava os olhos pelos ros-
tos das poucas crianças em que confiava o suficien-
te para dar um oi, mas quase todas as manhãs anda-
va ligeiro e com a cabeça baixa, sofrendo sozinho.
Rapidinho ele subia os degraus, passava pelas duas
colunas cobertas de hera e entrava no formigueiro
de pessoas barulhentas, competitivas e no cio que
era a Glen Hi. Passava rápido o bastante para evitar
que pudesse ser pego ou que implicassem com ele.
As poucas fotos de Jerry nos anos do segundo
grau exibem uma combinação de vigilância e dis-
tanciamento: o rosto imóvel deixa perceber olhos
desconfiados, abertos demais, fixos em nós, não
para nos observar, mas olhando para ver que tipo
de ameaça a câmera representa. Os escritos de Jerry
revelam um adolescente infantil demais para a ida-
de, mas nas fotos ele parece um garoto velho.
A Glen Hi não era um lugar fácil para Jerry Sie-
gel. Seu desempenho era fraco, ele não se adaptava,
não tinha créditos extracurriculares. Seu único mo-
tivo de entusiasmo era The Torch, o jornal semanal
128
da escola. Muitas vezes falava sobre virar repórter
quando crescesse, como muitas crianças da época,
porque era a máxima aspiração romântica da
América, o homem das notícias na cidade grande.
Os novos heróis hollywoodianos de Jerry eram jor-
nalistas enérgicos, falantes e empertigados com
seus chapéus diplomata; podiam acabar, por meio
da astúcia, com qualquer criminoso, milionário ou
dama da sociedade. Mas Jerry estava bem longe de
ser aquele típico jornalista falante e extrovertido
dos filmes de Hollywood. Seus colegas de The
Torch lembram-se dele como um garoto nervoso,
ao mesmo tempo convencido e tímido, que facil-
mente se apagava no grupo. Esses colegas o intimi-
davam.
Seymour Heller, responsável pelo lazer da clas-
se e rabino iniciante, era dono de um cupê Hutmo-
bile comprado com o dinheiro que ganhava tocando
clarinete e organizando a banda da escola, e escre-
via uma coluna de fofocas de tom arrogante chama-
da “Subtleville Slander” (“Muitas das novas-loiras
em Glenville estão dizendo que a cor de seus cabe-
los mudou por causa do sol. Por causa do sol, é?”).
Jerry Schwartz se saía com artigos cheios de pose
precoce e empáfia, e foi eleito “o mais popular” da
turma. Willie Gomberg fazia todo mundo estourar
de rir com as poucas e boas da página de humor
“The Blowtorch”. Hal Lebowitz fazia a cobertura
de esportes e andava com os melhores atletas da es-
129
cola. William Herman, que escrevia para concursos
de artigos e colaborava para revistas técnicas no se-
gundo ano, tirava quase mil dólares anuais como
escritor freelance antes de se formar. Nathan Zahm
estava publicando suas reportagens no Cleveland
News. No último ano, Wilson Hirschfeld, um garo-
to aparentemente tão tímido quanto Jerry Siegel,
conseguiu um emprego na redação do maior jornal
da cidade, o Plain Dealer. Dá para adivinhar o ta-
lento desses garotos pelas carreiras que mais tarde
seguiram: Jerry Schwartz e Willie Gomberg vira-
ram escritores de peças da Broadway, como “Jero-
me Lawrence” e “Willie Gilbert”; Hal Lebowitz vi-
rou o maior repórter esportivo de Cleveland; e Sy
Heller, um dos agentes de talentos mais ricos do
país. Wilson Hirschfeld fez carreira na imprensa,
assumiu o cargo de editor do Plain Dealer e se tor-
nou um jornalista nacionalmente reconhecido.
E havia as garotas. Martha Yablonsky, bonita e
com covinhas no rosto, dois anos mais jovem que
Jerry e muito interessada em jornalismo, virou a es-
critora mais prolífica da equipe e a editora do jor-
nal. Charlotte Fingerhut usava a seção “Thimble
Thoughts” para bajular seus colegas: “Na verdade,
Reubie Schrank pensa que o motivo que fazia de
Luís XVIII um bom rei [...] é que ele era gordo e
sofria de gota. Juro, ele disse isso na aula de histó-
ria.” Como Charlotte Plimmer, mais tarde viria a
editar a revista Seventeen para os Annenberg. Lois
130
Amster era também vencedora do título “mais po-
pular”, uma mistura de provocações com espírito
colegial. The Torch a chamava de “Petite Lois”. A
equipe do livro do ano chamou-a de “anjinha”. Um
dos colegas lembra: “Ela era bonita. Os garotos fa-
ziam fila.” As garotas trocavam idéias com os rapa-
zes, dividiam refrigerantes e sanduíches com eles
na confeitaria Bernice ou na Barney’s Deli e apare-
ciam para conversas nas varandas ao cair da noite.
Mas Jerry Siegel parece ser uma memória quase
apagada para eles. Nunca participava da vida social
do grupo e não chamou nenhuma atenção no “escri-
tório” do jornal escolar. Lois Amster afirmou que
tanto Jerry como Joe tinham uma queda por ela e
batizaram seus personagens mais famosos com seu
nome. Jerry, irritado, disse que ele e Joe mal a co-
nheciam. Lois era o tipo de garota que esperava
despertar paixões para depois fazer os rapazes so-
frer.
“Eu era um pouco inibido”, disse Jerry. “Me
apaixonei por garotas atraentes que nem sabiam
que eu existia, ou, se sabiam, não davam bola. Na
verdade, acho que algumas delas gostariam que eu
não existisse.” Então começou a fantasiar sobre for-
mas de chamar a atenção das garotas. “E se eu fi-
zesse algo de especial, como saltar por cima de pré-
dios ou sair arremessando carros por aí...? Talvez
assim elas me notassem.” Em vez disso, começou a
escrever sobre caras que tinham essas habilidades.
131
Jerry fez parte do pessoal de The Torch durante
quase todo o segundo grau, mas nunca entrou ofici-
almente para a equipe. Não estava interessado em
juntar os perfis de alunos exemplares ou em expli-
car os novos procedimentos de graduação. Jerry Si-
egel respirava tinta: passava as noites e fins-de-
semana mergulhado em pulps, revistas, tiras — e à
máquina de escrever. Quando enfim começou a tra-
balhar para ajudar a família durante o período di-
fícil depois do assassinato do pai, arranjou vaga
numa gráfica, entregando maços de papel para os
clientes quatro dias por semana depois da aula. O
desempenho escolar caiu e ele se atrasou nas maté-
rias, mas as leituras de ficção científica, histórias de
detetives, piratas e terror não foram afetadas. Oca-
sionalmente escrevia resenhas de livros para The
Torch. Soavam como propaganda empolgada dos
livros socialmente mais aceitáveis entre os que tan-
to amava: “O Reino do Terror — a lâmina da gui-
lhotina descia ligeira sobre culpados e inocentes. A
última esperança era o ‘Pimpinela Escarlate’, um
inglês misterioso que arrisca a vida para salvar [...]
os injustiçados.” Com certeza nenhum dos esperta-
lhões na equipe de The Torch teria babado dessa
forma por causa de Child of the Revolution, escrito
pela baronesa Orczy, mas Jerry adorava o Pimpine-
la, o Zorro e todos aqueles heróis com identidades
secretas que se disfarçavam de gente comum.
Mas acima de tudo Jerry queria escrever e assi-
132
nar suas próprias histórias. Achou um jeito de fazer
isso e ao mesmo tempo agradar os colegas, zom-
bando de suas próprias paixões. No primeiro ano
em Glenville, criou uma paródia do Tarzan chama-
da Goober the Mighty. O pessoal do Torch achou
engraçado e, no início do ano seguinte, pediram-lhe
uma continuação. “Goober, o filho adotivo de Oo-
lala, o leão, ergueu a cabeça desgrenhada e inspirou
com toda a força. ‘Se eu fizer exercícios respirató-
rios cem 100 por dia, durante 100 anos’, pensou
para si, ‘terei o maior peito do mundo.”’ E claro
que, quando Goober bate no peito, tem um acesso
de tosse.
Goober foi o primeiro sucesso público de Jerry.
Décadas depois já não se lembrava direito dos pri-
meiros escritos, mas ainda ria ao lembrar das peri-
pécias de Goober: “Ele aparecia correndo sobre
fios telefônicos, pulando árvores, enfim, fazia todas
as loucuras que eu imaginava”. Ele continuaria
contribuindo com paródias para The Torch, histó-
rias absurdas inspiradas nos contos de detetive da
Weird Tales que tanto amava. Algumas eram hu-
morísticas e autopromocionais, estreladas pelo pró-
prio Jerry Siegel, “o mestre da dedução”. Outras
demonstravam seu desprezo pela inferioridade inte-
lectual alheia: “‘Diga, aqueles caras não estão mor-
tos?’, ele perguntava. ‘Claro’, respondia Jerry. ‘Do
pescoço para cima.”’ Porém, cada vez que contava
vantagem ou tentava atingir os outros, incluía uma
133
referência humorística a si mesmo. Graças à paró-
dia, Jerry revelou que amava os heróis sobre-huma-
nos, mas que também era capaz de perceber o que
os fazia ridículos. Este foi o espaço que achou em
Glenville: o de excêntrico amado por todos, porque
fazia rir as pessoas antes que elas se pusessem a rir
dele. Seria uma grande vantagem nos anos seguin-
tes — usar o humor para baixar a guarda dos leito-
res, e depois fazê-los embarcar nas mais inacreditá-
veis fantasias.
Com as histórias absurdas de Goober, Jerry Sie-
gel não zombava apenas de seus adorados pulps.
Também satirizava os homens sarados da vida real,
esses adeptos da boa forma que vendiam “exercí-
cios respiratórios” em anúncios na contracapa de
pulps. A “cabeça desgrenhada” não era apenas a do
Tarzan, mas também a do fanático pela cultura físi-
ca Bernarr MacFadden. Em 1931, qualquer criança
em idade escolar podia ver isso. E, de alguma for-
ma, Goober era também um ataque ao novo amigo
de Jerry, Joe Shuster.

JOE ERA UMA criança baixa e raquítica, muito


míope e terrivelmente tímida. A família vinha se
mudando havia gerações: os avós tinham nascido
na Rússia, o pai, na Holanda, e ele próprio, em To-
ronto. Quando tinha 9 anos, seu pai fez as malas
novamente e foi procurar emprego no próspero
ramo de confecções em Cleveland. Os irmãos mais
134
jovens, Frank e Jeanette, se ajustaram rápido ao
novo mundo, mas Joe teve problemas e ficou atra-
sado na escola. Também não fez nenhum amigo. O
pai era alfaiate e, enquanto outros homens da famí-
lia Shuster se davam bem no Canadá, Julius came-
lava. Sonhava em abrir a própria alfaiataria, mas
enquanto isso se virava como tarefeiro e trabalhava
como prensador. A mãe, Ida, é uma figura apagada
na história da família, que se escondia dentro de
casa, incapaz de sequer pensar em trabalhar fora.
Joe chegou a trabalhar como jornaleiro nas ruas de
Toronto para ajudar a família, e agora tinha que fa-
zer o mesmo, de novo, nas ruas de Cleveland. Se
Jerry Siegel era um obstinado e irrequieto, Joe era
um garoto meigo, frágil e calado. Vender jornais
era um suplício para ele. Todas as noites, assim que
deixava as ruas e a multidão apressada, ia direto
para o quarto desenhar. Às vezes o pai estava com
um pouco mais de dinheiro, e então lhe comprava
papel. Mas, quando não dava, Joe desenhava em re-
talhos de tecido e nos papéis de embrulho que pe-
gava do trabalho do pai.
Joe tinha o dom de desenhar rostos engraçados,
e gostava de desenhar cartoons para fazer rir seus
irmãos. No entanto, ao entrar na adolescência, pas-
sou a gostar mais de sonhos heróicos, movimento,
vôo e liberdade. Tinha acabado de completar 14
anos quando viu o homem voador — a mesma capa
da Amazing Stories que estava mudando a vida de
135
Jerry Siegel apenas alguns quilômetros ao norte.
Adorava as elegantes figuras masculinas, as bugi-
gangas maravilhosas e as resplandecentes cidades
futurísticas que Frank R. Paul desenhava nas capas
da Amazing Stories. Na maioria das vezes, não ti-
nha dinheiro para comprar as revistas; então tenta-
va memorizar as imagens nas bancas e ia para casa
desenhar suas próprias versões.
A única fonte de inspiração artística que sempre
chegava a suas mãos eram os quadrinhos de jornal.
Naquele tempo os quadrinhos tinham quase o do-
bro do tamanho atual, o que possibilitava uma vari-
edade impressionante de detalhes e idiossincrasias
artísticas. Os cadernos de domingo geralmente ti-
nham 16 páginas, e uma única HQ chegava a ocu-
par uma página inteira, com todas as complexida-
des visuais impressas com uma riqueza de cores e
uma precisão inconcebíveis em nossa era de jornais
degradados. Ler as tiras era um dos grandes rituais
de unificação da vida americana. Comparar alguém
a Happy Hooligan, Mutt ou Jeff, ou ainda Andy
Gump era falar uma linguagem universal que ultra-
passava classes, religiões e etnias. Ao mesmo tem-
po, os quadrinhos eram um olhar sincero sobre as
classes sociais — os vencidos em Barney Google,
os irlandeses em plena ascensão social em Brin-
ging Up Father (“Pafúncio e Marocas”), o agitado
povo urbano em Gasoline Alley — que não estava
disponível em outros veículos voltados para o gran-
136
de público. As tiras apresentavam maravilhas visu-
ais: as metamorfoses fantásticas do mundo criado
por Winsor McCay em Little Nemo, as complexida-
des de Ruve Goldberg, que necessitavam de tempo
para sua devida apreciação, e as surpresas oníricas
de George Herriman em Krazy Kat. Enquanto Joe
Shuster começava a aprender a fazer cartoons, a
habilidade em superar a concorrência, de atrair a
atenção do público, virou ponto de honra entre a
elite de artistas de quadrinhos.
Em 1927 e 1928, quando Joe estava no segundo
grau, algo de novo apareceu nos quadrinhos. Uma
nova geração de desenhistas, que tinha saído das
fraldas assistindo a filmes e lendo histórias de
aventura, começou a levar as tiras cômicas a sério,
com capacidade de contar histórias mais longas.
Little Orphan Annie (“Aninha, a Pequena Órfã”)
fugiu de sua mansão e entrou para um circo onde se
metia em apuros sempre no último quadrinho. O
Thimble Theater de E. C. Segar acabou indo além
do que seria uma série de sátiras a Hollywood
quando a família Oyl saiu em busca da lendária Ga-
linha Mágica e juntou-se a um marinheiro violento
chamado Popeye. Washington Tubbs (Tubinho) um
boêmio que tinha passado anos correndo atrás das
melindrosas, viu-se posto no trono de um reino na
Ruritânia e aliado a um mercenário chamado Cap-
tain Easy (Capitão César). Wash Tubbs era o qua-
drinho favorito de Joe Shuster, criação de um artis-
137
ta genial de Indiana chamado Roy Crane que com-
binava personagens empolgantes e humor ingênuo
em narrativas leves, rítmicas e fluidas. Joe copiou o
trabalho de Crane e adotou sua estética; nunca seria
adepto dos malabarismos visuais que tinham a pre-
tensão de impressionar o público, preferindo um
encanto mais simples e tranquilo.
A arte tirou Joe do anonimato na escola. O edi-
tor do jornal deu uma olhada em alguns dos dese-
nhos de belas garotas e máquinas voadoras que ele
fazia com longos e curvos traços, e se babou todo:
“Ora, então você sabe desenhar!” Joe ficou emocio-
nado com a atenção recebida e desenhou uma tira
em sua homenagem, Jerry the Journalist; afinal o
editor era Jerry Fine, o primo de Jerry Siegel que
no futuro relutaria em chamá-lo de nerd. Quando
Joe lhe contou que queria ir para a Glenville High,
Fine disse: “Você deve procurar o meu primo por
lá. Ele também adora quadrinhos”.
A maioria dos quadrinhos era escrita para todos
os leitores, adultos e crianças, mas logo algumas
das agências começaram a testar tiras totalmente
dedicadas a aventuras juvenis. As duas primeiras,
Tarzan e Buck Rogers, foram impressas no mesmo
dia de janeiro de 1929. Porém, só aos poucos foram
ganhando espaço nos jornais de Cleveland. Ambas
tinham desenhos desajeitados, feito às pressas para
syndicates (Agências que comercializam material
(textos, fotos, ilustrações ou quadrinhos) para jor-
138
nais e revistas) para os quais não existia algo como
“arte” dos quadrinhos. Uma das histórias contava
com um homem valente que enfrentava animais
selvagens e a outra com um ás da pilotagem que lu-
tava no futuro contra orientais malvados. Até mes-
mo um artista jovem como Joe Shuster tinha que se
esforçar um pouco para não notar a precariedade
daquelas HQs. Ainda assim, para Joe e um bando
de crianças nascidas por volta de 1914, a chegada
da adolescência coincidiu com uma revolução nas
tiras que as impulsionou ainda mais para dentro de
seus corações. Começaram a ver os quadrinhos
como seu mundo particular.
Joe Shuster, no entanto, tinha um outro mundo
para chamar de seu. Os esforços cotidianos e solitá-
rios para moldar e aperfeiçoar uma realidade física
não cessaram com o início de seu trabalho de lápis
sobre papel. Joe era um fisiculturista. Detestava es-
portes — a competição, a imprevisibilidade e a ter-
rível socialização necessária para jogar com outros
garotos — mas adorava escapar para o ginásio da
escola e trabalhar o corpo com pesos, polias e bas-
tões. A fisicultura tinha estourado nos anos 1920,
mas para muitos jovens ainda era algo suspeito.
Frank, o primo de Joe que morava em Toronto, dis-
se: “Eu tentava arrastar ele com a gente para jogar
bola, porque eu era muito mais ativo e ligado a ati-
vidades físicas do que ele. Admito que Joe acredi-
tava em levantar pesos e em ficar mais forte, mas
139
nunca gostou de atividades esportivas de verdade”.
O fisiculturismo era o território dos malucos por
saúde, dos maricas de Muscle Beach e, acima de
tudo, de Bernarr MacFadden.
Em Nova York, homens como Harry Donenfeld
tomavam MacFadden como modelo de como ficar
rico no ramo de revistas de segunda categoria. A
pouco mais de mil quilômetros, um garoto fracote
como Joe Shuster tomava-o como modelo do que
um homem poderia se tornar. A Physical Culture
de MacFadden era um veículo central no meio da
fisicultura, e influenciou Joe tanto quanto Tarzan e
Amazing Stories. Na verdade, MacFadden ajudou a
moldar esse mundo de faz-de-conta: Tarzan vestia
uma pele de leão inteira nas primeiras capas de
seus livros, que foi substituída por uma tanga quan-
do Bernarr fez dela sua marca registrada.
MacFadden prometia sucesso e poder a todos os
seus seguidores, e criava histórias para embasar es-
sas promessas. Em 1922, promoveu um fisiculturis-
ta do Brooklyn chamado Ângelo Siciliano sob o
nome Charles Atlas, “o homem com o corpo mais
perfeito do mundo”. Depois de alguns anos no cir-
cuito de exibições, Atlas se juntou a um publicitá-
rio e entrou no ramo de produtos de boa forma ven-
didos por catálogo postal. Foi o primeiro fisicultu-
rista a usar uma tira para vender a boa forma com
violência: um magrelo de 45 quilos podia dar uma
surra num brutamontes graças a exercícios iso-
140
métricos. Os anúncios apareceram pela primeira
vez em 1929, e o clima pesado no início da Grande
Depressão rapidamente fez dele um sucesso. Joe
Shuster completou 15 anos naquele verão. E fácil
imaginá-lo na Euclid Beach ou no Edgewater Park,
um filho tímido e franzino de alfaiate em meio aos
filhos vigorosos de metalúrgicos alemães e eslova-
cos. Deve ter tido a impressão de que Charles Atlas
estava lá especialmente para ele.
Essas promessas de perfeição se espalharam na-
queles anos. A queda da velha ordem e as maravi-
lhas da tecnologia, juntas, permitiam imaginar que
qualquer futuro seria possível, desde que o sistema
ou o instrumento correto fosse encontrado: socialis-
mo científico, fascismo, pensamento positivo, pro-
gresso tecnológico, espiritualismo e regimes de
saúde. Outros falavam de aristocracias naturais a
quem bastaria se dar conta de sua própria importân-
cia para que assumissem seu poder de direito: capi-
talistas, cientistas, protestantes brancos. Edgar Rice
Burroughs acreditava na virtude inata da “raça an-
glo-saxônica”. Tarzan era um sonho romantizado,
em que um bebê inglês, nascido em berço de ouro e
largado na selva, acabaria não apenas dominando
os animais, mas os negros também. Entretanto, gra-
ças à flexibilidade da ficção, para seguidores de
MacFadden como Joe Shuster o Homem-Macaco
também podia ser uma demonstração das virtudes
da força física.
141
Mas a realidade em que esses sonhos eram ven-
didos geralmente deixava muito a desejar, apesar
do que Burroughs e MacFadden prometiam. A fa-
mília Shuster estava bem o suficiente lá pelo fim da
década e arriscou se mudar para o bairro de Glen-
ville, mais nobre. Alugaram um andar num duplex
na Amor Street, bem pertinho da 105 e a apenas al-
guns quarteirões de distância da casa dos Siegel.
Ainda assim, era uma zona muito mais barata, por
ser próxima à garagem de Glenville. Mal tinham se
mudado quando a recessão dos anos 1930 os atin-
giu. Permaneceram em Glenville mas, como o pai
de Joe estava tendo dificuldades para arranjar em-
prego, sustentar a família ficou muito complicado.
Joe saía catando qualquer emprego que aparecia.
Houve ocasiões em que teve de fazer seus desenhos
em pedaços do embrulho do açougue manchados
de sangue, ou então em tiras de papel de parede que
juntava das cestas de lixo. Mas nada podia impedi-
lo de desenhar.
Essa foi a estranha mescla de sonhos e realida-
des que Joe Shuster levou consigo para a Glenville
High no outono de 1930: um garoto doce, quieto,
mais bonito do que bonitão com seus enormes
olhos inocentes, propenso a desenhar garotas boni-
tas, mas não a falar com elas. Anos mais tarde seus
colegas se lembravam vagamente dele, como um
cara bonzinho, mas pouca coisa mais. Dedicava-se
a desenhar quadrinhos como um garotinho e a le-
142
vantar pesos como um machão. Gostava das ativi-
dades na escola. Participava do clube de ginástica,
desenhava cenários para as peças da escola e foi
presidente do clube de arte por um tempo. Entrou
para o clube The Torch também, e passou a contri-
buir com brincadeiras visuais e ilustrações. O azar
foi que Joe, assim como Jerry, tinha dificuldade de
aparecer em meio a uma equipe tão talentosa. Os
cartunistas habituais do jornal tinham um traço
mais confiante e um feeling para descobrir o que
fazia rir os colegas. Se Joe pretendesse usar seu jei-
to para desenhos fantásticos e de aventura, teria que
desenhar melhor do que Bernard Schmittke, um fã
de pulps que tinha dinheiro para pagar por aulas de
arte e que em alguns anos estaria desenhando para
revistas de ficção científica. Em quatro anos na es-
cola, Joe conseguiu publicar apenas uma de suas
ilustrações em The Torch.
Entretanto foi em The Torch que ele e Jerry Sie-
gel ficaram amigos. Parece ter sido um longo pro-
cesso — mas eles descobriram paixões em comum,
e como fãs tímidos da cultura pop descobriram que
podiam alegremente falar dela por horas, sem ter
que abordar assuntos dolorosos. Os dois adoravam
os filmes de Douglas Fairbanks, tiras e pulps de
ficção científica. Mas, enquanto Joe se aventurava
poucas vezes nos pulps, Jerry tinha dezenas delas
socadas em seu quarto no sótão. Jerry sabia que
Buck Rogers era baseado em um romance da Ama-
143
zing Stories — e não era qualquer romance, mas
Armageddon 2499 AD, de Philip Nowlan, que saiu
na mesma edição de agosto de 1928 que os tinha
conquistado. Jerry tinha um olho crítico bom o su-
ficiente para saber que não era uma tira muito boa,
mas entendia o valor que havia em expor o mundo
diariamente à ficção científica e ao filho adotivo de
Hugo Gernsback. Também sabia que a arte do
Buck Rogers colorido de domingo era muito me-
lhor do que a das tiras semanais porque elas na ver-
dade eram desenhadas por um tal Russell Keaton,
de 21 anos, apenas quatro a mais que Jerry e Joe.
Jerry tinha até escrito para Keaton e descoberto que
ele também era fã de ficção científica. Jerry deve
ter impressionado Joe completamente.
Joe adorava as histórias de humor que Jerry es-
crevia, especialmente Goober the Mighty. Jerry
gracejava com os exercícios de Joe, mas também o
admirava por isso. “Eu costumava ir até o ginásio
da escola para ver Joe se exercitar”, afirmou Jerry.
“Ele era muito bom.” Alguns colegas lembram que
o próprio Jerry chegou a se envolver com progra-
mas de boa forma física por um tempo (mas o limi-
te entre a realidade e a autoparódia não ficava bem
definido no caso de Jerry). Os dois cultivaram uma
amizade sincera — compreendiam que qualquer
coisa que os empolgasse podia ser compartilhada.
Ao lembrar do passado, nenhum dos dois falaria de
outras amizades. Aos 16 anos tinham enfim encon-
144
trado alguém em quem confiar.

ENQUANTO A VIDA dos garotos girava em


torno de quadrinhos, pulps e filmes, havia uma mu-
dança em andamento na indústria de entretenimen-
to classe B. Para começar, os editores e fabricantes
estavam ficando mais atentos ao mercado dos jo-
vens. Mesmo que ainda fossem os adultos a fazer a
maioria das compras, a voz das crianças começava
a ser ouvida nas decisões de família. Uma criança
de 10 anos que adorava as tiras do Tarzan podia fa-
zer diferença na hora de seu pai escolher qual jor-
nal iria assinar. Ao mesmo tempo, coletâneas de ti-
ras vendiam bem nas bancas, e Os Sobrinhos do
Capitão e Tarzan viraram filmes. Empreendedores
começavam a entender o valor de vender o mesmo
personagem para diferentes mídias. Quando um pe-
queno agente de Chicago viu o homem voador na
capa da Amazing Stories de 1928, enxergou uma
imagem que podia vender jornais e lancheiras. Aca-
bou licenciando um outro personagem da revista,
Anthony “Buck” Rogers, mas este também se ocu-
pava das mesmas fantasias juvenis, e assim a ado-
rada ficção científica de Jerry e Joe começou a che-
gar até eles num novo formato.
Este é um pequeno milagre do consumismo ca-
pitalista: à medida que a indústria se tornou mais
mercenária e degradada, passou a produzir um
mundo de fantasia mais completo para os fãs mais
145
devotos. Foi necessário um certo idealismo zeloso e
apaixonado para começar a imprimir as esquisitas
visões de Philip Nowlan sobre o século XXV, mas
os investidores que o levaram aos jornais, à telona,
ao rádio, aos livros e às lojas de brinquedos exami-
navam-nas como se fossem um pedaço de pano.
Para as crianças isso não importava: agora podiam
permanecer imersas naquela realidade ingênua e vi-
brante a qualquer hora e com quase todos os senti-
dos.
No início de 1931, época em que Jerry e Joe es-
tavam se conhecendo, o mesmo processo transfor-
mou os pulp. Essas publicações não tinham perso-
nagens fixos desde 1915, quando a Street and Smi-
th converteu a Nick Carter Weekly na Detective
Story Magazine. Mas em 1930 a Street and Smith
decidiu patrocinar uma radionovela de detetive para
promover a Detective Story. Um dos produtores
achou que o programa precisava de um locutor fixo
de voz assustadora para fazer as narrações e apre-
sentar as histórias, e criou um homem misterioso
que sabia de tudo, “O Sombra”. Os revendedores
logo comunicaram que os clientes estavam pedindo
“aquela revista do Sombra”. Como não existia uma
“revista do Sombra”, os editores trataram de criar
uma rapidamente. Juntaram algumas notas às pres-
sas, pegaram na pilha uma velha ilustração para
capa e arrastaram Walter B. Gibson — designer de
palavras cruzadas, mágico e escritor mercenário
146
que escrevia sob pseudônimo para gente como
Harry Houdini — e lhe disseram para fazer do
Sombra um personagem que prendesse a atenção
dos leitores.
Gibson não era um escritor de ficção. Sua narra-
tiva direta era quase impossível de ler: “Estava ves-
tido num manto preto, aquele ser, exceto pelo cha-
péu de aba larga na cabeça. Essa peça era quase tão
eficiente quanto o manto, porque ambos escondiam
o rosto, mas não as mãos.” Ainda assim ele enten-
dia, como poucos escritores de ficção, o quanto os
jovens americanos adoravam floreios teatrais, ex-
cessos vitorianos e o choque causado pelo inacredi-
tável. O Sombra era um homem misterioso que se
mascarava de playboy e comandava uma rede se-
creta, uma espécie de mistura do Pimpinela Escar-
late com o Fantasma da Ópera. Com a diferença de
fazer uso de um fumegante par de automáticas cali-
bre 45 para lutar contra os gângsteres mais brutais.
Depois de algumas edições, o artista da capa deu-
lhe expressão visual — o chapéu e a capa enrolada
escondendo tudo, exceto o nariz e os olhos de ave
de rapina — e alguém na Street and Smith cunhou
um slogan que ia ao encontro da fome de poder dos
jovens num mundo incompreensível e incontrolá-
vel: “O Sombra sabe”.
O primeiro número de O Sombra esgotou. Em
plena depressão econômica, em 1931, pouquíssi-
mas revistas esgotavam. No início era um título
147
mensal, mas logo, no mesmo ano, começaria a sair
quinzenalmente. Graças a uma série de manobras
comerciais feitas às pressas, a Street and Smith ti-
nha dado aos garotos americanos de imaginação
tempestuosa um outro ídolo tão vivo quanto Buck
Rogers ou o Little Caesar de Edward G. Robinson.
Em 1932 a companhia já estava preparando outros
pulps estrelados por combatentes do crime com ha-
bilidade sobre-humana e aparência bem particular.
Logo, nos escritórios das editoras, já se usava um
novo termo para definir esse tipo de personagem:
“super-herói”. A palavra ainda não estava nas capas
das revistas, mas já fazia parte do jargão dos profis-
sionais da área.
Jerry Siegel era fã do Sombra. Sempre gostara
de heróis que se passavam por tímidos, mas aqui
estava alguém que não era governado pelo código
de honra de um Zorro ou Pimpinela. Aqui estava
alguém que fazia a morte cair impiedosamente
como a chuva sobre os brutamontes urbanos que
matavam inocentes. Esses pulps deram forma a fan-
tasias mais sombrias e menos otimistas do que as
da ficção científica de Gernsback — fantasias que
devem ter atingido diretamente o coração de Jerry.
Seis meses depois da estréia do Sombra, o mes-
mo clima sombrio chegou às tiras. Em outubro de
1931 o Chicago Tribune Syndicate lançou Dick
Tracy, a releitura raivosa e insana de pulps deteti-
vescos e filmes de gângster feita por Chester
148
Gould. O sucesso instantâneo fez com que os qua-
drinhos se tornassem mais soturnos. Mais quadri-
nhos sobre crime apareceram (Secret Agent X-9),
assim como melodramas sociais (Apple Marie) e
westerns (Little Joe). Popeye e Little Orphan Annie
ficaram sombrios e assustadores. Até mesmo
Mickey Mouse passou a participar de aventuras e da
luta contra o crime.
As páginas de quadrinhos estavam virando uma
extensão do mundo dos pulps e filmes de aventura.
Ainda assim, permaneciam como o formato mais li-
vre e idiossincrático da mídia popular. Filmes e
programas de rádio eram produtos de grupos corpo-
rativos e os pulps dependiam da filosofia das edito-
ras, mas os melhores quadrinhos saíam direto das
mesas dos desenhistas sem grandes interferências
editoriais. Eles desafiavam e inventavam gêneros.
Os personagens surgiam como alucinações febris: a
Bruxa do Mar, Daddy Warbucks, Mandrake, Ming
the Merciless, Flattop, Pruneface. Os quadrinhos se
tornaram o palco dos grandes dramas populares
americanos: os sonhos mais loucos, o aviso de
“continua...” na última página, que todo mundo co-
mentava, os heróis mais famosos, as fantasias mais
elementares, a comunicação mais crua entre quem
contava a história e quem a desfrutava.
Joe Shuster era membro de uma geração inteira
de jovens artistas moldados pelos quadrinhos dos
anos 1930, mas havia uma tira que ele e a maioria
149
dos colegas citavam mais do que qualquer outra.
No mesmo mês em que Dick Tracy começou, no
mesmo mês em que a segunda história de Goober
escrita por Jerry Siegel apareceu, um novo artista
se encarregou de Tarzan. Harold Foster era um de-
senhista clássico capaz de entender que a força de
uma história sobre um homem-macaco não estava
na interrupção da narrativa no momento mais cruci-
al, nem mesmo nos animais selvagens, mas sim na
beleza do corpo masculino. Nenhuma figura mas-
culina já impressa em papel barato — nem mesmo
os fortões das revistas de saúde publicadas por Ber-
narr MacFadden — tinha tanta graça e dinamismo.
O poder de Tarzan estava ligado ao sexo. Afi-
nal, o primeiro corpo nu que um garoto vê é o seu
próprio, e ele percebe que o corpo masculino es-
conde todos os terrores e alegrias do sexo. Harvey
Kurtzman, um cartunista dez anos mais jovem que
Joe Shuster, afirmou que a nudez do homem-maca-
co o tinha fascinado enquanto garoto, e que algu-
mas de suas primeiras experiências masturbatórias
foram desencadeadas pelos desenhos de Foster.
Mas Tarzan representava mais do que o sexo; re-
presentava todos os desejos de um garoto a respeito
de seu corpo, sua identidade e seu futuro. O Tarzan
de Foster era muito controlado, um macho invencí-
vel que não vestia nenhuma das fantasias de poder
masculino — apenas seu corpo perfeito. Quando
um garoto frágil anseia se tornar um homem mas
150
não sabe como chegar lá, um símbolo como Tarzan
pode ser uma revelação. Se ele não tiver pai, ou se
o pai não for suficiente, então essa revelação será
ainda mais poderosa. Tarzan virou o assunto de to-
dos os garotos que gostavam de desenhar: “Foster
desenha tão bem!” Ele era bom, mas não melhor do
que os outros desenhistas a seu redor. Era apenas o
melhor que já tinha existido naquilo que os garotos
precisavam ver.
As garotas também gostavam do Tarzan de Fos-
ter. Muitas diziam que só davam uma olhada en-
quanto os irmãos estavam lendo, mas elas também
liam. Também tinham suas curiosidades sobre o
corpo masculino, suas razões para se envolver com
símbolos idealizados da potência masculina — e
uma vez que o Homem-Macaco não apresentava as
mesmas características superficiais que a maioria
dos heróis masculinos, ficava mais fácil para elas
se identificar com ele. Mesmo sendo másculo como
era, Tarzan não estava sujeito ao papel social e à
realidade familiar, e isso propiciava às garotas pro-
jetar sobre ele seus sonhos de poder individual mais
do que nos soldados e caubóis que reinavam nas
aventuras juvenis. Não custou muito para Joe Shus-
ter se dar conta de que as garotas davam bola para
um herói romântico bem desenhado. Assim, garo-
tos desajustados descobriram uma nova função para
as fantasias da cultura classe B: poderiam chamar a
atenção do sexo oposto se conseguissem convertê-
151
las em algo simples, belo e romântico.
No turbilhão de fantasias e imagens trazidos por
Sombra, Tarzan, Buck Rogers, Dick Tracy, Popeye
e Wash Tubbs, Jerry e Joe começaram a trabalhar
juntos em tiras. Começaram com Goober the Migh-
ty, para em seguida experimentar idéias menos hu-
morísticas: uma polícia futurista, um bando de
aventureiros interplanetários, um homem das caver-
nas, um grupo gernsbackiano de combatentes cien-
tíficos do crime, equipados com bugigangas para
ver através das paredes e amplificar o som. Joe gos-
tava de desenhar apenas por desenhar, mas Jerry
mandou os trabalhos para agências de jornal. Todos
foram rejeitados, mas Jerry começou a acreditar
que, no futuro, ele e Joe poderiam fazer carreira no
mundo dos quadrinhos.

ENQUANTO MERGULHAVA no mundo das


tintas, Jerry começou a se identificar cada vez mais
com seu próprio estilo, chegando quase ao ponto de
ficar insuportável. Jerry Fine se lembra dele tentan-
do impressionar os primos numa reunião familiar:
“Consigo escrever uma história sobre qualquer coi-
sa. Estão vendo aquela garrafa de Coca-Cola? Eu
podia escrever uma história sobre ela se estivesse a
fim.” Mas ele não tinha muito mais que isso na
vida. Morava sozinho na casa da Kimberly Avenue
com a mãe, e toda noite se fechava no quartinho do
sótão para escrever. Continuava enviando histórias
152
curtas para os pulps, mas sem sucesso. Essas histó-
rias se perderam — não porque Jerry não guardasse
seu trabalho (na verdade ele não gostava de se des-
fazer das coisas), mas porque esquecia de enviar
selos para que lhe devolvessem os trabalhos.
Mesmo com tanta energia, faltava foco aos es-
critos de Jerry — até que, no fim da primavera de
1932, a terceira edição de The Time Traveller che-
gou pelo correio. Tinha gastado um dólar na assina-
tura do fanzine feito por Mortimer Weisinger, Ju-
lius Schwartz, Allen Glasser e Forrest J. Ackerman,
quatro de seus colegas durante a primeira onda de
fandom gernsbackiana. Muitos jovens tinham tenta-
do vender uma miscelânea de fanzines mimeogra-
fados e duplicados dois anos e meio após Jerry pro-
duzir seu próprio, Cosmic Stories, mas nenhum era
feito por um tão elevado panteão de fãs destacados,
espertos e sabichões. Já de saída, The Time Travel-
ler vendeu 100 assinaturas, e a terceira edição já
era editada e impressa profissionalmente. Assim
que a tirou do envelope, Jerry soube que iria criar
sua própria revista.
Naquele outono Jerry completaria 18 anos. O
ano letivo seguinte seria o terceiro na Glenville
High e também o último; mas acontece que ele e o
parceiro Joe tinham ficado tão atrasados nas maté-
rias que não conseguiriam se formar junto com a
turma. Jerry nunca falou publicamente sobre isso.
Naquele ano, sua primeira aparição em The Torch
153
foi um press release exageradamente auto-congra-
tulatório que anunciava o nascimento de Science
Fiction: The Advance Guard of Future Civilization.
Prometia que a revista iria conter trabalhos de
“muitos glenvillianos de destaque”, assim como os
de escritores “conhecidos”; que “uma grande soma
está sendo usada em anúncios, o que deve trazer re-
sultados surpreendentes”. Os anúncios, presentes
em “praticamente qualquer pulp nas bancas”, seri-
am vistos por 5 milhões de pessoas. “Espera-se
conseguir alguns milhares de assinaturas com esse
recurso.” A revista seria mimeografada somente
“até que uma circulação maior justifique a impres-
são”. Ele teve a audácia de cobrar 15 centavos por
cada número, 50% a mais que a The Time Travel-
ler.
Na verdade, a Science Fiction era quase toda es-
crita por Jerry Siegel, usando vários pseudônimos,
e desenhada por Joe Shuster. A verba para publici-
dade de Jerry garantiu apenas anúncios minúsculos
na Amazing Stories e na Wonder Tales, e para ven-
der assinaturas ele teve que fazer um acordo com
Mort Weisinger para encaixar a Science Fiction no
formulário de pedidos da Time Traveller. (Mort de-
veria enviar a Jerry sua parte do dinheiro das assi-
naturas, mas isso não aconteceu). Bernard Sch-
mittke, do Torch da Glenville, contribuiu com uma
capa moderna e industrial, e Forry Ackerman, um
dos principais defensores de filmes de monstros
154
dentro do fandom, conseguiu imagens do futuro
lançamento King Kong. No entanto, o mais gratifi-
cante para Jerry foi a coluna de resenha de livros, já
que, enquanto fazia a pesquisa para escrevê-la, ele
se deparou com um produto de um universo literá-
rio muito diferente daquele que conhecia, um ro-
mance que desviou suas fantasias para uma direção
significamente nova: Gladiador, de Philip Wylie.
Wylie era um representante de uma América do
final dos anos 1920 muito diferente daquela que
Jerry tinha conhecido. Era filho de um pastor pres-
biteriano que rompeu raivosamente com o Deus do
pai. Tinha estudado teatro em Princeton, desistido
para se tornar um escritor de anúncios, arruinado a
carreira por causa de um processo de paternidade,
decidido escrever ficção e vendido seu primeiro ro-
mance — um ataque bombástico aos presbiterianos
reprimidos — a Alfred A. Knopf. Isso tudo antes
de completar 26 anos. O segundo romance, com o
título sugestivo de Babes and Sucklings, era uma
invectiva raivosa contra seu primeiro casamento e
um sermão contra a moral moderna. Wylie ficou
satisfeito com as acusações de “indecência” feitas
por bibliotecários provincianos. O estilo subia e
descia, porque de uma página para outra ele tentava
imitar Sinclair Lewis, H. L. Mencken, Havelock
Ellis ou Elinor Glyn. Um resenhista do New York
Times disse que ele escrevia em “um estilo que
lembra os homens dos vaudevilles, que tocam toda
155
a orquestra com apenas uma mão”.
No ano seguinte, 1929, Wylie decidiu que já es-
tava na hora de começar a trabalhar numa grande
alegoria social. Queria mostrar como um homem
superior era odiado e destruído por nossa sociedade
medíocre: “Grandes feitos estavam sempre prestes
a acontecer e nenhum deles era alcançado porque
envolviam a humanidade, a humanidade que prote-
ge suas doenças, sua futilidade, suas convicções e
convenções lamentáveis com sua própria essência
— a vida. Não uma vida futura indefinida e fecun-
da, mas uma vida de lucro imediatista, de seguran-
ça nos lugares-comuns [...] de necessidades da pele,
da barriga e do útero.”
O enredo tinha uma premissa “científica”: um
biólogo transforma o filho “num supergaroto, um
homem invencível” que então cresce e vira um ser
de força e vitalidade incomparáveis e de superiori-
dade moral inata. “Lá na floresta, fora da vista dos
olhos humanos, aprendeu que era um super-huma-
no [...] ‘sou um homem feito de ferro em vez de
carne.’” Chega a tentar usar a força para ajudar o
mundo, mas a humanidade é mesquinha demais
para ele. Valentões puxam brigas com ele, o exérci-
to o pressiona a participar de uma guerra mercená-
ria, mulheres entregam-se a ele e depois fogem de
seu poder, um pequeno judeu engana-o nos esque-
mas do boxe, um comunista interessado em ganhar
dinheiro acusa-o de “Idiota! Sonhador! Idealista ab-
156
surdo!” Ele pensa em destruir o Capitólio como
Sansão, mas sabe que isso não resolverá nada.
O uso que Wylie faz da fantasia biológica leva-
ria mais tarde os fãs de ficção científica a aclamar
Gladiator como um produto de seu gênero favorito,
mas o modelo que ele seguiu não foram os pulps de
Gernsback. Wylie ridicularizava a cultura classe B,
ridicularizava o jornalismo sensacionalista, Bernarr
MacFadden e os fisiculturistas narcisistas, e com
certeza teria ridicularizado a Amazing Stories caso
tivesse se dado ao trabalho de notar que ela existia.
Alguns de seus truques eram inspirados nas exibi-
ções satíricas de Henry Fielding e William Thacke-
ray; alguns dos temas vinham das alegorias intelec-
tuais de H. G. Wells e Friedrich Nietzsche. Então
ele se apaixonou por seu herói, um homem de “si-
metria impressionante [...] um homem esplendida-
mente vivo, um homem com a promessa de um jo-
vem deus”, e lançou-o em cenas de descobertas se-
xuais, combates e melodramas políticos tão exage-
rados e acalorados quanto tudo o que aparecia nas
páginas da Cosmopolitan ou da Collier’s.
O resultado foi um desastre de romance. Nas
passagens intelectualmente ambiciosas, era estúpi-
do; nas partes mais apaixonadas, vazio. No fim a
história descambava em baboseiras autopiedosas:
“‘Agora — Deus — oh, Deus — se é que Deus
existe! — Diga-me! Posso desafiá-lo? Posso desafi-
ar Seu mundo? Esta é a Sua vontade? Ou Você é
157
impotente como toda a humanidade? Oh, Deus!’
Então colocou as mãos ao redor da boca e gritou o
nome de Deus em direção ao tumulto lá em cima.
A loucura pairava sobre ele e a amarga ironia que
lhe escurecia o sangue o contaminava.
“Um raio caiu sobre a Terra. Atingiu Hugo e
desenhou sua silhueta em fogo. As mãos caíram-lhe
dos lábios. A voz se apagou.”
Hugo Danner não foi o único atingido por um
raio. Jerry Siegel também foi.
Quando outros fãs chamaram a atenção de Jerry
para Gladiator, em 1932, o livro já estava nas es-
tantes havia dois anos. Wylie tinha lançado mais
dois livros e estava ocupado com seu primeiro
grande romance, Finnley Wren. Estava pouco se li-
xando para a adoração de um certo jovem fã de fic-
ção científica (e sem dúvida ficaria chocado se sou-
besse que oito anos mais tarde processaria esse fã
por plágio). No entanto era o momento perfeito
para Jerry. Aos 18 anos, ainda no meio do segundo
grau, ainda preso àquela tristeza silenciosa pelo as-
sassinato do pai, ainda sem uma namorada ou uma
carreira de verdade mas lançando uma revista e so-
nhando com beldades e fortuna — Gladiator deve
ter mexido com tudo o que ele queria e temia ser.
O “super-homem” já não era mais uma idéia
nova — na verdade era um tema recorrente na alta
e na baixa cultura no início dos anos 1930, produto
inevitável das doutrinas de aperfeiçoamento pro-
158
movidas pelos mais variados autores, de Bernarr
MacFadden a Leon Trotsky. A palavra tinha passa-
do pelo Übermensch de Nietzsche e chegado ao
Man and Superman de Bernard Shaw, mas era fa-
cilmente identificável com idéias nem nietzschea-
nas, nem shawianas. Na Alemanha, Adolph Hitler
proclamava que uma nação inteira de super-homens
poderia ser forjada através do racismo instituciona-
lizado e da força militar, e sua popularidade não pa-
rava de crescer. Na América, a idéia da eugenia es-
tava sendo cuidadosamente investigada nas univer-
sidades da Ivy League. A eugenia inspirou o enredo
pseudocientífico de Gladiator, e o herói considerou
explicitamente a possibilidade de usá-la para me-
lhorar a humanidade.
Até mesmo os esquerdistas usavam a palavra:
um radical de Cleveland chamado Joseph Piricinin
argumentou em suas palestras que os métodos de
produção socialista criariam uma “superabundân-
cia” de mercadorias e oportunidades e fariam dos
cidadãos socialistas do futuro “verdadeiros super-
homens” comparados a nossos padrões. Afirmava
ainda ter dado certa vez uma palestra no centro co-
munitário de Cleveland, onde havia dois jovens ju-
deus que mais tarde... podemos completar a anedo-
ta e desconsiderá-la por ser fantasiosa, mas isso
ilustra a onipresença do Super-Homem simbólico.
O conceito de Super-Homem foi explorado em
boa parte da cultura pulp mais romântica, mesmo
159
que o termo não fosse usado: Tarzan e John Carter
de Marte, ambos criados por Edgar Rice Bur-
roughs, não eram apenas os mais fortes e os mais
nobres de suas raças, eram claramente descritos
como pertencendo a outra espécie — seres de uma
superioridade tão inata e aparente que chegavam ao
comando de qualquer outro mundo que adentras-
sem. Seus laços com a nobreza da Inglaterra e com
a antiga Confederação explicavam o potencial para
a superioridade, mas esse potencial se realizava so-
mente através de um milagre que os retirava da his-
tória: o retorno de Tarzan ao Éden evolutivo dos
macacos e a longevidade inexplicável, quase místi-
ca, de John Carter. Em 1929, Jack Williamson, o
antigo correspondente de Jerry Siegel, escreveu um
romance, publicado por Hugo Gernsback, que ex-
plicava os superseres na forma de ficção científica.
Como o título The Girl from Mars, tinha como pro-
tagonista um estranho visitante de outro planeta
com poderes muito superiores aos de um homem
normal.
Porém, até encontrar o Hugo Danner de Wylie,
Jerry nunca tinha visto um Super-Homem com fei-
tos que apareciam de forma tão convincente à luz
de uma realidade familiar e limitante: “Faço algu-
mas coisas que me assustam, pai. Consigo pular
mais alto que uma casa. Consigo correr mais rápido
que um trem.” Hugo transforma os clichês de cenas
da guerra de trincheiras na França ao descobrir que
160
as balas não furam sua pele e até mesmo tiros de
canhão não fazem mais do que derrubá-lo. E Jerry
nunca tinha visto um retrato tão humano do Super-
Homem, incluindo seus tropeços, suas frustrações,
seu isolamento e sua dor. Hugo Donner, quando
criança, demonstra sua superforça para os habitan-
tes da cidade, assustando-os. O pai puxa-o para um
canto e lhe explica que deve usar a força para “uma
causa nobre e boa” se quer evitar que as pessoas o
odeiem. De fato, quando vêem toda sua força pela
primeira vez, chamam-no de “demônio”. Hugo de-
saparece por um tempo para “acostumar-se a seus
poderes” e constrói uma fortaleza solitária na flo-
resta. Quando traz sua grandeza ao mundo, tem al-
guns momentos de triunfo, mas cada um deles o
deixa ainda mais isolado. Uma beldade da Ivy Lea-
gue leva-o para a cama: “Meio deusa, meio ani-
mal... a vanguarda da emancipação feminina ameri-
cana.” Mas é só por uma vez, porque “ela tinha
aprendido uma coisa também, e assim nunca voltou
para Hugo, mantendo o desejo que sentia por ele
como uma sagrada lembrança numa alma dividi-
da”.
A breve resenha de Gladiator no fanzine de Sie-
gel não dá pistas sobre o impacto que pode ter tido
em um garoto revoltado e solitário. Mas sua histó-
ria na edição seguinte da Science Fiction, datada de
janeiro de 1933, sugere que Gladiator pode ter mu-
dado suas idéias a respeito do objetivo da fantasia.
161
“The Reign of the Superman”, de “Herbert S.
Fine” (um alô para seus primos), foi feita com as
ilustrações de Joe Shuster. Seu trabalho ia bem: o
vilão de traços intrincados e a cidade futurística
com seus arranha-céus desenhados num estilo de li-
nhas simples, baseado nos cilindros e círculos do
design industrial, mostravam que ele estava bem
atento à iconografia da época. Então começa a his-
tória datilografada por Jerry e que enche nove pági-
nas:

A fila da sopa! Aquela fileira de homens de-


caídos e sem esperança; criaturas desafortuna-
das que descobriram não haver nada mais na
vida além de amargura. A fila da sopa! Último
recurso dos andarilhos esfomeados.
Com um sorriso de desprezo no rosto, o Pro-
fessor Smalley observava aqueles desgraçados
avançarem na fila. Para ele, que tinha nascido
em família rica e jamais conhecera as dificulda-
des da vida, a pobreza desses homens parecia
merecida. Pensava que se eles tivessem uma
ambição qualquer, poderiam sair desse terrível
fosso.

O Professor Smalley escolhe um dos andarilhos


como cobaia humana e injeta nele um elemento
misterioso que tinha descoberto num meteoro de
outro planeta. A cobaia escapa e descobre que o
elemento lhe deu poderes sobre-humanos. Conse-
162
gue ouvir os pensamentos de estranhos sob a forma
de palavras: “O que esse pessoal precisa é de cére-
bro, e cérebro é o que eles não têm.” “Passe a gra-
na, dona. A grana!” “Ele é apenas uma criança, se-
nhora. Por que não deixa ele em paz?” “Pro inferno
com os anarquistas!” “Quem ele tá pensando que é?
Que cara de pau tirar uma dançarina famosa como
eu para dançar um foxtrote com um perna-de-pau
como ele.” “Olha aqui, seu moleque, você pode ser
o repórter principal deste jornal, mas, se não entre-
gar seu texto até as três horas, vai ter que vender
cadarços de sapato no olho da rua!”
O fim de 1932 foi um momento de agitação po-
lítica, e a maioria dos judeus com alguma cultura
— especialmente num meio judeu com tendências
de esquerda — podia se exaltar falando sobre de-
semprego e luta de classes; mas Jerry não conse-
guia ir além dos clichês hollywoodianos. As pesso-
as em seu mundo pensavam como se estivessem
num diálogo mal-escrito da Warner Brothers. E era
óbvio que seu interesse por ciência não era maior
do que o demonstrado pela realidade e seus proble-
mas sociais: o “Super-Homem” vai até a biblioteca
para ler “O Universo em Expansão de Einstein”.
“Lixo! Bobagem!”, ele grita. Quando a bibliotecá-
ria pede que faça silêncio, o Super-Homem respon-
de entre dentes, “se tivesse algum tubo de raios por
aqui, eu ia te explodir e acabar contigo!” Jerry atro-
pelava os pequenos detalhes que teriam deixado
163
sua história mais convincente para chegar logo à
longa sequência que parecia incitar seus rompantes:
a enfurecida batalha entre o Super-Homem e seu
criador.
Uma passagem salta aos olhos do leitor que co-
nhece a vida posterior de Jerry Siegel:

[Smalley] pegou lápis e papel e começou a


escrever uma carta longa e acalorada. Contou
como tinha encontrado Dunn na fila da sopa
para torná-lo o nobre participante do maior ex-
perimento científico do século. Falou sobre
como tinha inoculado nele o composto químico
e seu posterior desaparecimento. “Assim,” ele
concluía, “a não ser que essa criatura seja captu-
rada e morta como um animal, ela vai crescer e
ficar cada vez mais poderosa, até o ponto em
que terá o mundo na palma da mão!” Ao termi-
nar a carta, colocou-a num envelope, endereçou-
a ao editor do maior jornal, saiu do laboratório e
a deixou no correio.

Talvez seja apenas uma premonição acidental


das longas e acaloradas cartas que Siegel mais tarde
enviaria, durante sua batalha para reaver o controle
do Super-Homem, mas esse é o momento em que
um personagem sai das amarras do enredo e se
comporta de uma forma estranhamente mesquinha
e humana. Pode ser que mesmo antes de ter alguma
propriedade pela qual batalhar, Jerry já estivesse
164
guerreando por direitos em sua imaginação.
Smalley também tenta aproveitar-se do meteori-
to, mas o Super-Homem o mata primeiro. Agora
ele já aprendeu a controlar a mente dos outros e
planeja dominar o mundo enviando “os exércitos
da Terra para aniquilarem uns aos outros”. “O Con-
selho Conciliatório Internacional estava em sessão
[...] chineses e japoneses, franceses e ingleses, ame-
ricanos e mexicanos, todos sorriam amigavelmen-
te”. O Super-Homem envia “pensamentos de ódio”
e os representantes começam a “atacar uns aos ou-
tros como lobos enlouquecidos e cheios de ódio”.
No entanto um repórter lê a carta de Smalley e
enfrenta o Super-Homem. (O nome do repórter é
Forrest Ackerman; para os fãs, a piada interna é
sempre mais real que o drama.) O fim vem numa
cena religiosa, refletindo e fazendo ecoar o raio no
final de Gladiator: “Nesse momento de medo e ter-
ror o repórter enviou uma oração silenciosa para o
Criador deste mundo ameaçado, lá para cima. Im-
plorou ao Todo-poderoso que acabasse com esse
demônio blasfemo. Será que Forrest tinha visto a
máscara de ódio apagar-se do rosto do Super-
Homem, substituída pelo terror? Ou era apenas im-
pressão?” “Não!”, grita o Super-Homem para o va-
zio. Ele se dá conta de que a droga está perdendo o
efeito. “A figura arrogante e confiante tinha desa-
parecido. Em seu lugar, restava agora um homem
curvado e desiludido [...]. ‘Agora vejo como estava
165
errado. Se tivesse trabalhado para o bem da huma-
nidade, meu nome teria entrado para a história
como uma bênção — não como uma maldição.”
Jerry Siegel não era um garoto religioso. “Acho
que ele nunca foi à sinagoga na vida”, disse Jerry
Fine. O Todo-poderoso tinha aparecido via Wylie.
Jerry não estava muito interessado em lidar com a
idéia de Wylie de que um homem podia ser bom e
que isso não faria nenhuma diferença. Preferia o
clichê do gênero, a garantia de que todos podem es-
colher se a história vai abençoá-los ou amaldiçoá-
los. Mas estava usando a idéia de Gladiator: o que
um Super-Homem pode e deve fazer num mundo
de violência e dor reais?
Poucas semanas após a remessa daquela edição
de Science Fiction, o mundo pulp deu sinais de que
a imaginação de Jerry estava indo pelo caminho
certo. Ele folhava a última edição do Sombra quan-
do uma palavra em negrito saltou a seus olhos:
“Super-Homem”. Logo abaixo havia a figura de um
homem musculoso lutando contra um atirador, e a
legenda “Doc Savage — mestre da mente e do cor-
po”. Era o primeiro anúncio do novo super-herói da
Street and Smith.
Doc Savage também devia alguma coisa a Wy-
lie. Assim como Hugo Danner, a perfeição de Doc
tinha sido cultivada em laboratório, e ele tinha uma
Fortaleza Solitária aonde ia para ficar pensando.
Seu nome e aparência — um gigante musculoso
166
com pele cor de mogno, cabelo cor de bronze e
olhos que pareciam gemas preciosas — podiam ter
vindo do romance mais recente de Wylie, The Sa-
vage Gentleman. Tinha acesso à mesma rede secre-
ta que o Sombra, mas em vez de combater o crime
urbano percorria o mundo salvando inocentes em
perigo. Antes que a revista chegasse às bancas,
Jerry e Joe já sabiam que seriam seus fãs.
Então, em março de 1933, apareceu um produto
esquisito no mercado de revistas que unia as duas
paixões de Jerry — ficção e quadrinhos. Enquanto
a primavera derretia a neve de Cleveland e a nação
esperava para ver o que Franklin D. Roosevelt faria
a respeito da Grande Depressão, e enquanto Jerry
esperava para ver que tal seria o Doc Savage, uma
revista meio desleixada, em tamanho de tablóide e
com capa de papel-cartão chamada Detective Dan
apareceu nas bancas. Seguindo a onda de Dick
Tracy, centenas de jovens desenhistas pegaram
suas tiras de policiais durões e foram, de porta em
porta, vendê-las às agências. Um deles, Norman
Marsh, experimentou imprimir em preto-e-branco
parte de seu material inédito e colocá-lo nas ban-
cas. Lançado com o nome empresarial de “Humor
Publishing”, o material não foi bem distribuído —
na verdade mal saiu de Chicago — e provavelmen-
te não vendeu nem o suficiente para cobrir os cus-
tos de impressão. Detective Ace King, Boh Scully e
Two-Fisted Hick Detective desapareceram sem dei-
167
xar rastros, mas Detective Dan chegou até Cleve-
land. Essas revistas eram o que os futuros historia-
dores dos quadrinhos, sempre em busca das histó-
rias que deram origem ao gênero, classificariam
posteriormente como as “primeiras revistas em
quadrinhos modernas de conteúdo original e perso-
nagem único”. Jerry Siegel, com suas sempre aten-
tas antenas ligadas à cultura pop, que lhe permiti-
ram ser o primeiro criador de um fanzine de ficção
científica e um dos primeiros assinantes do The
Time Traveller, era um dos poucos a se lembrar de
ver um número de Detective Dan nas bancas — e
parece também ter sido o único a tomar uma deci-
são importante sobre sua carreira por causa disso.
Jerry comprou a revista e mostrou-a para Joe.
Este achou que aquilo ainda estava longe de ser
Dick Tracy, mas era bom. O que importava era que
a revista não era muito melhor do que as coisas que
ele e Joe conseguiam fazer — mas estava publica-
da. E aquela publicação não dependia do mundo
longínquo e indiferente das agências de jornal, mas
do mundo das revistas baratas, muito mais próximo
e familiar. Pelo menos era isso o que Jerry pensava.
“Nós podemos fazer isso!”, disse ele.
Em sua cabeça tudo já parecia real: iam escre-
ver e desenhar uma tira com um herói de ação cria-
do por eles mesmos e vendê-la para a Humor Pu-
blishing. Para deixá-la diferente, não copiariam
Dick Tracy ou qualquer outra tira: a inspiração viria
168
dos pulps, como acontecia com Tarzan e Buck Ro-
gers. Contariam com Gladiator e os anúncios de
Doc Savage para criar uma aventura pulp sobre um
valentão bonzinho e com força extraordinária.
Ele até já tinha nome: O Super-Homem.

5
——————————
A NOVA DIVERSÃO

NO PERÍODO PRÓSPERO dos anos 1920,


Harry Donenfeld se contentava em seguir o merca-
do. Usar seu charme e experiência nos negócios
para estabelecer contatos entre distribuidores, edi-
tores e o mercado negro bastava para que o dinhei-
ro entrasse. Mas nos tempos difíceis dos anos 1930
não dava para ficar parado. Quando a venda de re-
vistas caiu, entre 1930 e 1931, foi preciso agir: ou
Harry ficaria pelo caminho, ou teria que chegar até
o topo.
Pequenos editores geralmente saíam de campo
quando as dívidas ficavam muito elevadas e mais
tarde reapareciam com novos produtos. Os distri-
buidores não podiam se dar esse luxo. Havia lugar
para poucos no mercado, e batalhava-se furiosa-
mente pelo “espaço nas prateleiras” e território ge-
ográfico. A guerra se intensificou à medida que as
vendas caíram. O negócio de um distribuidor de-
pendia de suas relações com trabalhadores locais e
169
varejistas, da entrega semanal de produtos. Isso en-
volvia depósitos para estoque, leasing de cami-
nhões, licença do correio e rotas de entrega. Um
distribuidor bem-sucedido tinha bolsos fundos o
suficiente para pagar as contas dos impressores e
manter pequenos editores, mas o mecanismo para-
va assim que o dinheiro deixava de entrar. O que
acontecia era que os editores e varejistas trocavam
de distribuidor. Esse período foi especialmente di-
fícil para os pequenos distribuidores, já que negoci-
antes com dinheiro contado acabavam favorecendo
os que davam desconto nas compras em grande
quantidade. Uma empresa como a Eastern News
podia cair no esquecimento se cortasse despesas
para diminuir os custos.
Lá pelo fim de 1930, Harry Donenfeld estava
publicando quatro smooshes (Joy Stories, Hot Sto-
ries, LaParee Stories e Gay Parisienne) e uma li-
nha de “nus artísticos”. Parece que também se en-
carregou de toda a linha de Frank Armer, incluindo
Pep e Spicy Stories, já que o endereço editorial de
Armer não era mais na rua 42 e sim na 20, no edifí-
cio da Donny Press. O “editor cativo” era uma figu-
ra comum durante a Depressão: quando não podi-
am saldar dívidas com impressores e distribuidores,
os editores davam como pagamento porcentagens
de suas companhias. Esse virou um dos métodos de
expansão favoritos de Harry durante os anos se-
guintes, aquele que o levou a lugares inesperados.
170
Então, no início de 1931, a Eastern News anun-
ciou que não tinha como pagar a quantia que devia
aos editores. Harry fez a única coisa que um editor
cauteloso podia fazer: deu calote nos seus credores.
Ele já tinha fama de atrasar os pagamentos de escri-
tores e artistas para cobrir o fluxo de caixa, o que
lhe rendeu um aviso na revista especializada Au-
thor and Journalist, na qual se advertia que Harry
“não tem a capacidade de pagar pelo material que
aceita”. Dessa vez teria que fazer algo mais ousado.
Decretou a falência de sua empresa de periódicos, a
Irwin Publishing, e em seguida vendeu os títulos
para outra empresa que tinha criado, a Merwil. Ain-
da tinha as revistas mas, como a Author and Pu-
blisher notou, “os escritores que têm dinheiro a re-
ceber da Irwin Publishing Company ficam de mãos
abanando, e o sr. Donenfeld afirma que a nova em-
presa não tem o dever de pagá-los”.
A crise seguinte foi no âmbito legal. Era uma
época de grandes escândalos em Nova York. Um
Partido Republicano que se afundava na confusão
de suas próprias políticas desesperadas culpava os
democratas corruptos por tudo. O juiz Samuel Sea-
bury, um homem de tão marcada linhagem episco-
pal que era conhecido como “o Bispo”, abriu um
inquérito sobre a Tammany Hall que acabaria der-
rubando Jimmy Walker, um prefeito muito popular
e imensamente corrupto. Depois disso outros políti-
cos, até então indecisos, se juntaram à caçada. O
171
Comitê de Decência Cívica dos Cidadãos de Nova
York escolheu como alvo as girlie magazines e, na
primavera de 1932, pressionou o promotor público
a ordenar a prisão de quatro jornaleiros por vender
revistas obscenas. As acusações foram retiradas so-
mente após alguns editores, entre eles Harry e Ar-
mer, concordarem em fazer uma reunião com o co-
mitê e ajudá-lo a acabar com as revistas mais ofen-
sivas e “ficar atento aos bons costumes” de outras.
No encontro com o Comitê de Decência, em ju-
lho, Harry concordou em cancelar a LaParee e
amenizar os outros títulos. Trocaram-se apertos de
mãos e palavras educadas entre os protestantes tra-
dicionais dos bairros nobres e o pornógrafo do su-
búrbio. Então Harry se despediu e continuou publi-
cando discretamente a LaParee. Os exuberantes
mamilos rosados que apareceram na capa de de-
zembro também não deixam claro se ele chegou a
falar com o editor sobre amenizar o conteúdo.
Harry estava aprendendo a não dar bola para os
berros irados de credores e censores. Sua insolência
rendia muitas conversas na mesa de gin rummy
(Tipo de jogo de cartas). Mas ele ainda não perce-
bera o quanto tinha enfurecido os tais cidadãos de-
centes de Nova York.
Três meses mais tarde, em outubro de 1932,
Paul Sampliner e Charles Dreyfus, da Eastern
News, decretaram falência. Tinham tentado segurar
as pontas até a esperada volta dos bons tempos,
172
mas a economia só piorava. Algumas semanas an-
tes da vitória folgada dos democratas nas eleições,
a Eastern espalhou seus editores e vendedores aos
quatro ventos. Sampliner e Dreyfus deviam quase
30 mil dólares a Harry.
Outros editores sobreviveram ao encontrar dis-
tribuidores que cobriam seus gastos em troca de
participação, mas Harry não queria ser um editor
cativo. Ele precisava de dinheiro e de distribuição,
mas sem que interferissem em sua propriedade. En-
tão pagou algumas bebidas a Paul Sampliner e es-
boçou sua idéia para a Independent News Com-
pany. Harry seria o principal vendedor. O irmão Ir-
ving cuidaria da impressão e da produção editorial.
Jack Liebowitz cuidaria das finanças. E, para ban-
car tudo isso, Sampliner podia pegar dinheiro em-
prestado com a mãe.
Harry adorava contar essa história, especial-
mente quando Sampliner estava por perto. Con-
tava-a com um desprezo afetuoso pelo filhinho-da-
mamãe que tinha plantado a semente de sua fortu-
na. No mundo de Harry, era sempre o garoto da rua
que tomava conta de tudo e se dava bem, e um ga-
roto rico e sortudo vinha de carona. De fato, a partir
desse momento Sampliner parecia feliz em seguir
as iniciativas de Harry e ficar rico em silêncio. Na
esfera pessoal, tornou-se um membro proeminente
da comunidade judaica e um líder da Liga Antidifa-
mação (Anti-Defamation League, organização cria-
173
da pela comunidade judaica norte-americana para
combater o preconceito anti-semita). Mas a Inde-
pendent News evitava a retórica pomposa e as po-
líticas pretensiosas que Sampliner tinha defendido
na Eastern News e se concentrava naquilo que
Harry tinha a certeza de poder vender: sexo e emo-
ções fortes.
A Independent estava pronta para pôr em circu-
lação as mercadorias algumas semanas após o co-
lapso da Eastern. Os primeiros e mais fáceis pon-
tos-de-venda para as revistas de nu e smooshes
eram os teatros burlescos e antigos speakeasies
como o Onyx, que tinham “dançarinas”, bandas de
jazz e humoristas desbocados. Entre a Depressão e
a abolição da Lei Seca (em 1933), muitos desespe-
rados donos de bares e pequenos integrantes do
mercado negro se dispuseram a apostar no sexo
para continuar ganhando dinheiro, e Harry sabia
como falar com eles. Sua lábia e disposição para
sentar e tomar umas devem ter sido mais atraentes
que os brutamontes de última categoria que geral-
mente tocavam a indústria pornográfica. Ele pode
ter comercializado os produtos de Margaret Sanger
também — camisinhas para os rapazes que podiam
pagar pelas atenções de uma stripper depois do ser-
viço, Spicy Stories para os que não podiam. O his-
toriador Michael Feldman disse que “o fato de Ar-
mer e Donenfeld batizarem de Trojan Publishing
uma das empresas de revistas pode não ter sido co-
174
incidência (A Trojan Condons é uma popular mar-
ca de preservativo nos EUA). Talvez eles quises-
sem deixar claro para os varejistas que estes esta-
vam comprando as revistas do mesmo pessoal de
confiança que vendia as novidades em látex”.
Mas, é claro, para sobreviver a Independent pre-
cisava recuperar os trabalhadores, os jornaleiros, os
donos de bancas, farmácias e tabacarias que a Eas-
tern tinha perdido. Sua arma mais poderosa para
isso era o sistema de consignação: em vez de arris-
car dinheiro comprando publicações diretamente do
distribuidor, os comerciantes poderíam pegar uma
remessa em consignação, devolver as revistas que
sobravam e pagar somente pelas vendidas. Como as
revistas antigas que sobravam não tinham valor ne-
nhum para o distribuidor, o comerciante podia eco-
nomizar custo de transporte rasgando a parte de
cima da capa das revistas e enviando-as de volta
como prova de devolução. Era um dever contratual
jogar fora o que sobrasse, para evitar que o comer-
ciante fizesse concorrência ao próprio distribuidor,
com uma cópia de segunda mão da mesma revista.
A quantidade de revistas e de quadrinhos que ainda
aparecem à venda com a tirinha arrancada demons-
tra que muitos comerciantes quebravam o acordo e
vendiam os produtos teoricamente devolvidos. Mas
Harry Donenfeld quebrou essa concorrência colo-
cando outras capas nas revistas devolvidas e reven-
dendo-as como edições novas. Os leitores podem
175
ter se sentido enganados ao constatar que já tinham
lido a revista que acabavam de comprar, mas o pes-
soal da indústria dava risadas. Eram crianças de rua
como Harry, e os tempos difíceis eram uma boa
desculpa para mostrar quem era o pilantra mais es-
perto.
O problema com a consignação era a pressão fi-
nanceira sobre o distribuidor. O tamanho das tira-
gens tinha de ser determinado bem antes de serem
feitos os pedidos, e baseava-se em previsões elabo-
radas com meses de antecedência. O segredo era
imprimir um número suficiente para satisfazer os
comerciantes, garantir espaço nas prateleiras e ma-
ximizar as vendas, mas não um número grande de-
mais, para evitar que as devoluções fossem maiores
que as vendas e diminuíssem o lucro potencial. A
necessidade de expandir a linha de produtos estava
em batalha constante com a necessidade de ofere-
cer baixo custo. Isso induzia os distribuidores a
uma espécie de loucura, tornando-os insensatamen-
te ousados assim que surgia um novo nicho no mer-
cado ou uma nova tendência se iniciava; mas de re-
pente davam-se por derrotados e voltavam ao con-
servadorismo.
Os distribuidores vinham usando o sistema de
consignação havia um bom tempo com alguns pro-
dutos e alguns lojistas, mas, durante a Depressão,
esse passou a ser o único sistema que os comerci-
antes aceitavam (Esse sistema ainda é o praticado
176
na distribuição de revistas no Brasil). A Indepen-
dent News não tinha outra escolha a não ser ofere-
cer as melhores condições que pudesse sustentar.
Isso significava que Jack Liebowitz teria que cuidar
do fluxo de caixa e equilibrar os riscos financeiros
com uma precisão extraordinária. Seria necessário
antecipar meses antes o número de exemplares a
ser vendido; estimar os lucros e os prejuízos, levan-
do em conta custos de produção que oscilavam em
curtos períodos (entre eles a estabilidade do dólar
canadense, que tinha tudo a ver com o preço do pa-
pel); e calcular o tamanho das tiragens sempre de
olho numa margem de segurança que permitisse
aos comerciantes atingir o máximo em vendas, mas
sem que as devoluções trouxessem grandes prejuí-
zos. Liebowitz tinha sido um funcionário exemplar
na empresa de publicações de Donenfeld por três
anos. Tinha demonstrado grande habilidade ao cui-
dar das falcatruas de Harry quando este não queria
pagar suas dívidas. Agora pediam que regesse uma
orquestra sem a partitura.
Ninguém no ramo de revistas baratas conhecia
contabilidade como Liebowitz, nem tinha a mesma
paixão por trabalhar com números. Ele e Rose já ti-
nham duas filhas, Linda e Joan, e Jack queria com-
prar uma casa para a família. As empresas de Do-
nenfeld estavam à beira do abismo, mas não havia
muitos empregos disponíveis. Harry também pro-
metia tomar conta de Jack se tudo desse certo; ele
177
ainda não tinha participação na empresa, mas Harry
tinha fama de ser muito generoso nas recompensas.
E Jack compreendia o potencial: como editor,
Harry lucrava o dobro dos concorrentes em cada
cópia, porque cuidava da própria distribuição e da
impressão das capas. Como impressor e distribui-
dor, podia contar com suas próprias publicações
para manter o mecanismo funcionando e repassar
livremente dívidas e fluxo de caixa de uma empresa
à outra para se manter. Se Harry conseguisse novos
clientes confiáveis e propriedades, Jack poderia re-
mediar de vez a situação da família.
Liebowitz sabia que uma grande firma de distri-
buição não sobreviveria às contas pendentes e às
manobras de falência que Harry tinha preparado
como editor. Tomava cuidado para que as contas
fossem pagas sempre em dia e ganhou a confiança
dos clientes. Ao mesmo tempo, ganhou a reputação
de controlar despesas com mão de ferro e pressio-
nar incansavelmente os devedores. Também come-
çou a buscar propriedades e oportunidades. Se o
início da Depressão fez de Harry um líder, também
fez de Liebowitz um chefe. Irwin Donenfeld disse
ter aprendido tudo o que sabia a respeito da empre-
sa com os berros do “tio Jack”. Dentro de alguns
anos, ninguém falava de Donenfeld e Sampliner,
ainda que eles formassem a parceria proprietária da
Independent. Falava-se de Donenfeld e Liebowitz.
Eram uma dupla estranha: Harry, pequeno, li-
178
geiro, beberrão e risonho, gostava de sussurrar bo-
bagens nos ouvidos de quaisquer garotas. Jack, sé-
rio e taciturno, com seu bigodinho e seus ternos
sem graça, aparência que lembrava um protestante
burguês. A primeira vista ele era parecido com
Thomas Dewey, o jovem republicano em ascensão
que representava tudo o que o pessoal de Harry te-
mia. Mas o contraste funcionava bem. Donenfeld
fazia promessas, levava os clientes para os bares e
puteiros e fechava a venda; então Liebowitz entra-
va em cena, enfrentava os números, calculava o lu-
cro líquido, dava as más notícias, saía batendo boca
e fazia o balanço fechar. Jack se dava bem com
Harry e gostava das partidas de gin rummy disputa-
das no fim do expediente, antes que Harry saísse
para encher a cara e ele fosse para casa encontrar a
família, ou de volta ao escritório para trabalhar
mais um pouco. Mas ele também aprendeu muito
bem a vigiar o que Harry fazia e a consertar suas
lambanças.

HARRY ACHAVA que trazia alguma classe às


girlie pulps. Pagava 60 paus pelas ilustrações das
capas — o dobro do valor pago pela concorrência
— e tinha um quadro de artistas ilustres, com ve-
lhos nomes americanos — R. A. Burley, Enoch
Bolles, Earle K. Bergey, H. J. Ward — que bem
podiam ter ido trabalhar nas revistas “classudas” se
o mercado não tivesse entrado em colapso junto
179
com o resto da economia. Pagava um centavo intei-
rinho por cada palavra no script, enquanto outros
pagavam meio, e assim ficava com os melhores es-
critores: Robert Leslie Bellem, mestre do diálogo
cheio de gírias, Bob Maxwell, que também escrevia
canções divertidas para o rádio, e o estranho Jack
Woodford, que uma vez descreveu sua fórmula
para escrever histórias assim: “Um rapaz encontra
uma garota, a garota mete o rapaz em apuros e en-
tão o rapaz se apura para meter na garota”.
As histórias ficaram mais assanhadas: “A seda
fina do vestido rasgava com facilidade enquanto ele
alcançava a bainha [...]. Os belos seios, livres e sol-
tos, avolumavam-se como dois cocos, e os olhos de
Phil se dilatavam [...]. Helen ficou observando en-
quanto ele baixava a cabeça. Ela começou a tremer
e, quando sentiu um puxão no laço do corpete, ge-
meu e se deitou de costas no travesseiro.” As ven-
das aumentaram.
Mas Harry estava de olho em mercados maio-
res, especialmente no assunto mais em voga na
América da Depressão: o crime. Por 13 anos a Lei
Seca vinha transformando cidadãos comuns em cri-
minosos e financiando os impérios do mercado ne-
gro que dominavam cidades inteiras, e agora esses
cidadãos iam à falência e eram dispensados pelo
sistema, porque os milionários corruptos já os ti-
nham usado para o que precisavam. A diretoria do
Mercado de Ações de Nova York estava sendo pro-
180
cessada quase ao mesmo tempo que o prefeito de
Nova York e Al Capone. J. Edgar Hoover e os ho-
mens do FBI viraram heróis nacionais por metra-
lhar ladrões de banco. Fazer justiça com as próprias
mãos, uma prática nacional comum que tinha co-
meçado a desaparecer, voltava a ganhar espaço em
cidadezinhas e povoados. Alguns crimes, como se-
questros, desencadearam uma sede de sangue na
população. A grande maioria dos americanos ficou
feliz ao ver um imigrante alemão desempregado
morrer pelo assassinato do bebê de Charles Lind-
bergh, mesmo se tratando de uma condenação re-
sultante de uma investigação e um julgamento mui-
to duvidosos. Um linchamento em San Jose, Cali-
fórnia, deu cabo de dois acusados de sequestro an-
tes que eles fossem a julgamento, e o governador
do estado disse que essa tinha sido “a melhor lição
que a Califórnia já tinha dado ao país”. Não sur-
preende que o apetite nacional por histórias de cri-
mes de todos os tipos, verdadeiros e ficcionais, ele-
gantes ou brutais, fosse insaciável.
O fascínio da América com o crime tinha o fer-
vor que sempre vem com uma profunda ambivalên-
cia. Quanto mais malvadas, mais raivosas, mais
moralmente questionáveis as histórias ficavam, tan-
to mais vendiam. Alma no Lodo e Inimigo Público
Número Um venderam tantos ingressos que os estú-
dios cinematográficos pouco estavam ligando para
os grupos de cidadãos revoltados e continuaram
181
produzindo mais melodramas sobre gângsteres.
Dick Tracy enchia as páginas diárias com assassi-
nos lunáticos morrendo horrivelmente — ver Flat-
top ficar preso sob um píer e ir se afogando aos
poucos era tão reconfortante quanto ver as fotos
dos policiais junto aos corpos crivados de balas de
Bonnie e Clyde — e suas vendas aumentaram sem
parar. Todos os escritores, editores e redatores no
ramo observavam Dashiell Hammett chegar ao
topo com a força das histórias de detetive que tinha
vendido para um pulp chamado Black Mask; num
momento era mais um escritor mercenário numa re-
vista barata; no instante seguinte, um autor que
vendia como água, com méritos literários e queridi-
nho de Hollywood.
Harry adquiriu os direitos de um jornaleco vito-
riano chamado The Police Gazette e deu a Merle
Hersey a tarefa de reformá-lo para a era moderna.
“Vamos dar aos barbeiros deste país uma Police
Gazette que vai fazer os clientes aparecerem uma
vez por semana para cortar os cabelos”, anunciou a
filha do pastor, “com muito sexo, coisas sobre o
submundo envolvendo sexo, e muitas fotos de dan-
çarinas seminuas.” Harry e Armer começaram a de-
senvolver um pulp de ficção chamado Super-
Detective (o prefixo “super” estava por toda parte
em 1933) e pediram a seu time de freelancers que a
fizessem acelerada, sugestiva e um pouco sexy. En-
tão Armer teve outra idéia: combinar os pulps de
182
crime com os smooshes. Na esfera da vida privada
já se investigavam prostitutas insaciáveis e herdei-
ras seminuas o tempo todo, então por que não dei-
xar seus seios avolumarem-se como cocos nas
páginas? Assim Harry criou uma nova empresa, ba-
tizou-a, num momento de delírio, de “Culture Pu-
blications” e preparou a Spicy Detective Stories
para publicação em fevereiro de 1934.
A capa do primeiro número era adornada uma
loira seminua, defendendo-se de um estuprador
brutal enquanto uma arma aparecia numa janela.
Foi um hit instantâneo. Os homens americanos ti-
nham se virado por tanto tempo com dançarinas
sorridentes e provocações brandas em revistas mal-
feitas porque ninguém tinha percebido antes o
quanto eles queriam ter sexo misturado ao sangue e
ao terror. Só pela reação dos comerciantes, Harry
ordenou que a revista passasse imediatamente de
bimestral a mensal.
Então Nova York deu seu primeiro golpe. No
início de março, o comissário de licenças comerci-
ais disse que cancelaria a licença de qualquer banca
da cidade que vendesse publicações indecentes. Re-
vistas de nus artísticos e smooshes foram retiradas
por mais de 3 mil comerciantes e devolvidas aos
distribuidores. Donenfeld e um de seus concorren-
tes, Henry Marcus, entraram com um mandado ju-
dicial mas, até que o tribunal decidisse alguma coi-
sa, não tinham o que fazer.
183
Passaram-se apenas três semanas e veio o se-
gundo golpe. Alguns meses antes, Harry e Frank ti-
nham decidido testar os limites da lei e publicaram
uma capa da Pep com nudez frontal, sem cobrir os
pêlos púbicos com o aerógrafo. O que dava pra ver
dos pentelhos era mínimo, mas foi o suficiente para
o promotor público. Em 21 de março Harry foi in-
diciado por publicar material obsceno, e o promotor
já falava em cadeia.
Harry custou a entender que a grande farra da
Lei Seca já tinha acabado. Depois da queda de
Jimmy Walker e da Tammany Hall, a prefeitura fi-
cou sob o comando da mais estranha personalidade
na política americana: um republicano meio italia-
no e meio judeu do Harlem chamado Fiorello La-
Guardia, que odiava o mercado negro tanto quanto
odiava a Lei Seca. A mistura que fazia de posições
liberais e conservadoras — era a favor dos sindica-
tos e da previdência social e contra o crime — con-
quistou a imaginação dos nova-iorquinos e lhe deu
um mandato para erradicar as pessoas que conside-
rava inimigas do bem-estar comum. A partir de en-
tão, acusações de imoralidade não seriam mais reti-
radas mediante uma ligação para a Tammany Hall
ou mediante um depósito de fundos.
Mas a acusação de obscenidade não era a única
coisa que assustava Harry. Não era uma boa hora
para ser investigado pelo governo. Dizia-se que ele
ainda tinha ligações com Frank Costello. Todos os
184
contrabandistas espertos vinham se preparando
para o fim da Lei Seca havia anos, e Costello foi
um dos mais criativos. Prevendo a necessidade que
teriam os donos de speakeasies de encontrar novas
fontes de renda para sobreviver com bares e restau-
rantes legalizados, Costello criou uma empresa
chamada Mills Novelty Company, uma distribuido-
ra de jukeboxes e jogos mecânicos de azar, que se
passavam por “divertimentos” mas eram facilmente
utilizáveis como máquinas de aposta. O mercado
negro de distribuição também facilitava apostas
com bookmakers. As máquinas de aposta eram
muito populares em lojas de doces, tabacarias e
bancas de revistas, e uma das distribuidoras que
mais contribuíram para sua expansão foi a Indepen-
dent News. A pornografia podia chamar a atenção
de um promotor, mas ele acharia coisas piores se
continuasse investigando.
O submundo também estava assustado. Thomas
Dewey, o promotor federal draconiano, recém tinha
posto atrás das grades Waxey Gordon, um velho
amigo de Harry. A acusação era de fraude fiscal. E
ele não só foi para a cadeia — também foi humilha-
do. Dewey tornou-o motivo de chacota. Isso não
acabou com a quadrilha de New Jersey — Abner
“Longy” Zwillman assumiu o lugar de Waxey —
mas mostrou que os chefões não estavam mais se-
guros. Agora Dewey estava atrás de Arthur Flege-
nheimer, “Dutch Schultz”. Todos os bandidos de
185
Nova York estavam em alerta.
Harry tinha 40 anos. Batalhava para sustentar
Gussie e as crianças, virava-se como podia após o
colapso da Eastern News e tinha acabado de conse-
guir meter a mão na grana como editor. Precisava
atirar alguém aos lobos. Escolheu Herbie Siegel.
Herbie era um bobalhão a quem Harry tinha dado
um emprego como favor a um parente. Não tinha
muito a perder, e ficava feliz com qualquer coisa
que aparecesse. Harry o levou para jantar — prova-
velmente em algum lugar muito além dos sonhos
de Herbie, como o Stork Club ou o 21 —, pagou al-
gumas bebidas e talvez tenha lhe apresentado algu-
mas garotas. Fez então sua proposta. Se Herbie ju-
rasse no tribunal ter editado aquela edição da Pep e
ter sido sua a idéia dos pentelhos, sem que o pobre
e inocente Harry soubesse de nada, então teria em-
prego para o resto da vida. Mesmo que mudasse de
ramo, Harry tinha muitos amigos que pagariam a
dívida, caso Herbie aceitasse ficar com toda a cul-
pa.
No geral foi um bom negócio. Herbie provavel-
mente ficou preso apenas 60 ou 90 dias e ganhou o
emprego prometido. Os novos empregados da DC
Comics veriam-no 30 anos mais tarde, já velho,
carregando pacotes, servindo café e principalmente
sentado, lendo sobre as corridas. “Quem é esse
Herbie?”, perguntariam depois de um tempo. Então
ouviam a história, o primeiro contato que todos ti-
186
nham com a lenda de Donenfeld.
Harry não hesitou em dissolver a Merwil, edito-
ra da Pep, e vendeu todos os bens da empresa para
uma outra recém-fundada, a D. M. Publishing, com
endereço em Wilmington, Delaware. Com isso,
todo dia alguém tinha que dirigir até Delaware para
buscar a correspondência e voltar com as respostas,
mas o prefeito LaGuardia nada mais podia fazer
contra Harry.
Em maio, o direito que tinha o comissário de li-
cenças para proibir material indecente foi a julga-
mento. Isso prejudicou as vendas num primeiro
momento, mas também auxiliou Harry a expandir
seu pequeno império: o rival Henry Marcus decidiu
cair fora do mercado negro de smooshes e lhe ven-
deu alguns dos títulos que mais saíam, Tattle Tales
e Bedtime Stories. Então Harry ordenou aos edito-
res que mantivessem um certo decoro nas capas —
ou pelo menos um pouco mais de cetim cobrindo
os peitos — para evitar problemas futuros.
No mesmo mês, ainda na onda da Spicy Detec-
tive, Harry lançou a Spicy Adventure Stories. A
capa, magistralmente executada por H. J. Ward,
deu um jeito de seguir as leis de decência pública
enquanto vendia as fantasias sexuais racistas e sádi-
cas mais obscenas. Uma donzela de pele rosada
está amarrada a um poste, os lábios carnudos entre-
abertos e os olhos, enfeitados com rímel, esbuga-
lhados. O corpo se contorce para tentar escapar e
187
empurra os seios exuberantes na direção do leitor.
As roupas estão rasgadas e tudo que resta é um re-
talho de pano branco sobre os mamilos e uma tira
cor cáqui entre as pernas, com as belas curvas colo-
ridas de seu ventre e coxas oferecendo-se ao leitor,
os seios empinados pela corda que a prende ao pos-
te logo atrás. Ao fundo, fogo. E em primeiro plano
está um negro mostrando os dentes — apenas sua
negritude basta para parecer violenta diante daquela
maciez cor-de-rosa. Numa das mãos ele segura uma
lança ensanguentada e na outra, a cabeça decepada
de um homem branco, com os olhos virados nas
órbitas e sangue escorrendo sobre os lábios abertos
em languidez quase sexual. Era Harry se lixando
para os censores. Também foi sua estréia num mer-
cado especial de fantasias masculinas violentas.
Acabou sendo um mercado muito maior do que se
poderia imaginar.
As “Spicies” foram os primeiros grandes suces-
sos de Harry. Ele trouxe mais dois, Spicy Mysteries
e Spicy Western. Spicy Detective saiu do gueto e
entrou no mainstream da ficção, em grande parte
graças às histórias de “Dan Turner, detetive de
Hollywood” escritas por Robert Leslie Bellem —
um mergulho em gírias detetivescas que ele mesmo
tinha criado: “Meti o cano na queixola dele e disse:
‘fecha a matraca, fedorento, ou vou cuspir chum-
bo.”’ S. J. Perelman chamou Turner de “a apoteose
dos detetives particulares” num artigo para The
188
New Yorker, “Somewhere a Roscoe”. “Espero que
ninguém se ofenda com minha declaração pública
de amor, mas se a Culture Publications me quiser,
me caso com eles”, escreveu Perelman.
Harry ficou extasiado. Jack Liebowitz, nem tan-
to. Por pouco 1934 não tinha sido um desastre para
ele. As Spicies ainda não tinham atraído a ira dos
censores, mas isso podia acontecer. Ele queria uma
forma de garantir o futuro e evitar desastres, mas
não havia nenhuma disponível. Até que a cavalaria
americana chegou para salvá-lo. Ou pelo menos um
de seus desgraçados ex-membros: o major Malcolm
Wheeler-Nicholson.

TIRAS DE JORNAIS já não eram novidade. Li-


vros baratos com histórias e sequências de dese-
nhos já eram vendidos em Nova York por volta da
metade do século XIX. Assim que Joseph Pulitzer e
William Randolph Hearst publicaram as primeiras
tiras coloridas, em 1890, os editores já estavam
dando um jeito de compilar Little Nemo e Buster
Brown para colocá-los em livrarias e bancas. Um
editor já usava o termo “comic book” em 1917.
Quando tiras de jornais com histórias que havia
tempo vinham acontecendo estouraram no fim da
década de 1920, as reedições estavam por toda par-
te.
Em 1929 o empreendedor George T. Delacorte,
desejando assegurar um espaço nesse nicho sem in-
189
vestir muito capital, como já tinha feito muitas ve-
zes, bolou um novo projeto para a Eastern Color
Printing, companhia que imprimia grande parte das
seções de quadrinhos para os jornais dominicais. O
The Funnies era um tablóide semanal que imitava
essas seções, mas com tiras que nenhuma agência
ou jornal queria. Delacorte acreditou no projeto o
suficiente para mantê-lo com diferentes preços e
formatos por meses, mas ficava sempre no prejuízo
— foi uma das poucas apostas editoriais que ele
perdeu. Por alguns anos, ninguém mais aproveitou
a idéia. Quando a Humor Publishing de Chicago
tentou uma estratégia parecida em 1933, com De-
tective Dan e companhia, o resultado não foi muito
melhor.
Outro jeito de ganhar dinheiro com quadrinhos
baratos era dá-los como brindes. Os comerciantes
já estavam descobrindo o poderio dos resmungos
juvenis e tirando vantagem deles ao dar de brinde
pequenos livros infantis e outras cortesias. Em
1932, a Eastern Color produziu revistas em quadri-
nhos coloridas em tamanho meio-tablóide — “stan-
dard size”, como os editores de pulps o chamavam
— como cortesia para os assinantes do Ledger na
Filadélfia. A equipe de vendas da Eastern Color,
contando com dois homens que em breve iam virar
gigantes na indústria de quadrinhos, Harry Wilden-
berg e Lev Gleason, tentou vender a idéia para pu-
blicitários e fabricantes, sem muito sucesso. Então,
190
nos primeiros meses frios de 1933, quando os ban-
cos estavam fechando e a economia americana che-
gava ao fundo do poço, um vendedor faminto cha-
mado Charlie Gaines entrou mancando porta aden-
tro.
Ele tinha sido professor e diretor de uma escola
usando o nome de Maxwell Charles Ginsberg até
certo momento nos anos 1920, quando percebeu
que não tinha mais como sustentar a esposa e os
dois filhos. Mudou de nome e passou a cuidar de
todos os esquemas de publicidade e promoções que
encontrasse ou inventasse. Por um tempo vendeu
gravatas pintadas. Era um homem esperto mas pou-
co amistoso, que mancava por causa de um feri-
mento de infância, retorcia o rosto por causa da dor
constante na perna e nas costas e tinha o hábito de
descontar colericamente suas frustrações em seu fi-
lho, Bill. No pior momento da Depressão, viu-se
desempregado aos 40 anos. Falou com o amigo
Harry Wildenberg, na Eastern Color, e ofereceu-se
para trabalhar como vendedor. Aceitaria trabalhar
somente pelas comissões, sem salário. Se conse-
guisse arranjar clientes para quadrinhos de brinde,
ganharia uma parte. Caso contrário, nada.
As lendas da indústria, criadas pelo filho de
Charlie, atribuem a ele a invenção das revistas em
quadrinhos. Uma história conta que Charlie olhou
para as prensas paradas da Eastern Color e perce-
beu que a arte dos quadrinhos podia ser impressa
191
na metade do tamanho, e com isso seria possível
grampear as páginas em um formato mais conveni-
ente. Teria vendido a idéia sozinho aos publicitá-
rios, e sozinho teria percebido que os gibis podiam
ser vendidos nas bancas. Essa é mais uma das his-
tórias da origem dos super-heróis que as pessoas
gostam de imaginar que são verdadeiras, só que
não são. O que Charlie Gaines conseguiu foi criar
uma fila de clientes que desejavam um brinde gra-
tuito chamado Funnies on Parade. Wildenberg
também fechou negócios para usar Joe Palooka,
Mutt and Jeff e alguns outros quadrinhos populares;
a Procter and Gamble encomendou 10 mil cópias, e
as crianças americanas enviaram cupons retirados
de caixas de sabão até que elas acabassem. Gaines
e Wildenberg fecharam o mesmo negócio com a
Kinney Shoes, a Canadá Dry, a Wheatena e outros.
A Eastern se viu às voltas com pedidos de 100 mil
exemplares para a segunda empreitada, Famous
Funnies. Quando A Century of Comics foi lançada,
com 100 páginas, o sucesso foi ainda maior. No fi-
nal de 1933, a Eastern pode ter vendido 30 milhões
de páginas de quadrinhos só com esses três brindes.
Agora George Delacorte reapareceu. Ele conse-
guiu que 35 mil exemplares de Famous Funnies
fossem postos à venda no setor infantil de algumas
lojas de departamentos. A edição tinha 64 páginas,
com uma capa que as envolvia — isso era um “co-
mic book”, como as crianças saberiam em poucos
192
anos. Chegou às lojas em fevereiro de 1934 e esgo-
tou em semanas. Delacorte tentou vender a idéia de
uma banca só com revistas em quadrinhos para a
American News Company, a maior e mais antiga
distribuidora do país — o estabelecimento de quem
MacFadden, Donenfeld e todo o resto se diziam
“independentes”. A American News achou difícil
que as crianças fossem gastar dinheiro em quadri-
nhos que já tinham lido no jornal, mas Delacorte
acabara de se tornar o cliente favorito ao criar uma
série de revistas de palavras cruzadas que vendiam
melhor do que quase tudo nas bancas. A Famous
Funnies chegou às bancas em junho de 1934, e es-
gotou. Delacorte a abandonou prontamente para
criar sua própria editora, a Dell Comics, formatada
por Charles Gaines. Outros distribuidores começa-
ram a procurar por revistas de tiras de jornal. Havia
chegado o momento do major Malcolm Wheeler-
Nicholson.
O major invadiu o mundo das publicações bara-
tas usando um chapéu panamá e um terno cor de
creme, com o paletó jogado sobre os ombros como
uma capa e uma piteira dependurada nos lábios. As
histórias que contava sobre si mesmo eram extraor-
dinárias. No papel de major mais jovem da cavala-
ria americana, ele lutou contra Pancho Villa no
México e contra os bolcheviques na Rússia. Tam-
bém serviu em Versalhes, em 1919, onde seduziu e
se casou com uma condessa sueca. Então, decepci-
193
onado com a tradição do exército de recompensar a
longevidade em vez do mérito, escreveu uma carta
pública de protesto para o presidente Harding, o
que lhe rendeu a corte marcial e uma tentativa de
assassinato (ele gostava de exibir a marca da bala
que tinha na cabeça). Depois disso escreveu um li-
vro — Modern Cavalry — e começou a vender his-
tórias de guerra para a Argosy e outras revistas. O
mais incrível de tudo é que essas histórias eram
verdadeiras. Infelizmente o ambioso major tinha in-
clinação a dar passos maiores que as pernas, fe-
chando negócios com cheques sem fundos e sedu-
zindo investidores com mercadorias que ela ainda
não tinha.
O major ainda estava começando a entender
como funcionava o mercado de jornais e revistas
quando fez sua primeira tentativa de conquistá-lo.
Em 1925 ele montou uma agência para vender sua
ficção, artigos de toda espécie e tiras de diversos
cartunistas. A maioria delas eram as gracinhas usu-
ais, mas ele apostou numa adaptação de A Ilha do
Tesouro e Ivanhoé. Preparava-se para publicar um
catálogo de seu material em formato de jornal, cha-
mado The Syndicator, mas o dinheiro acabou.
O major voltou a escrever pulps por mais oito
anos, mas com o colapso das empresas de revistas,
logo no começo da Depressão, voltou a sonhar em
ter sua editora. Estava especialmente interessado
nas tiras. Seus filhos estavam no auge de um caso
194
de amor com elas. Enquanto muitos jornais reduzi-
am a seção dominical de quadrinhos, William Ran-
dolph Hearst agressivamente ampliou a sua para 32
páginas, o que era inédito. A circulação e o preço
dos anúncios aumentaram. Então o major conven-
ceu a distribuidora da revista McCall’s a deixá-lo
assumir o comando de uma publicação moribunda
que reimprimia tiras inglesas para transformá-la na
New Fun, especializadas em quadrinhos inéditos.
Wheeler-Nicholson foi franco em seu plano de ne-
gócios: “Entendo essas revistas mais como um ca-
tálogo, para que as agências de jornais se interes-
sem pela idéia. É muito mais fácil vender uma tira
se você puder mostrá-la já publicada”. Mas, numa
jogada feita às pressas, típica do comércio durante
a Depressão, as revistas apareceram nas bancas
para que os anunciantes lhes dessem valor, ao mes-
mo tempo em que cobravam pelos anúncios para
cobrir custos. A McCall’s concordou e os anunci-
antes compraram. Um deles era Charles Atlas, que
começava sua longa história com os quadrinhos.
A New Fun tinha piratas, caubóis e Oswald the
Lucky Rabbit (Uma das primeiras séries criadas por
Walt Disney). Era um produto mais barato que a
Famous Funnies: tamanho tablóide, miolo preto-e-
branco e tiras originais que não tinham sido vendi-
das para nenhum jornal. Algumas dessas eram so-
bras dos anos 1920 que o major ainda tinha. As ou-
tras eram fáceis de arranjar com pequenos anúncios
195
em publicações para artistas. O major era um mes-
tre na arte de impressionar jovens talentos. “Ele
sempre se inclinava ao dar um aperto de mão”, dis-
se Craig Flessel. Também era um mestre na arte de
fugir dos credores. Seus primeiros chefes de reda-
ção, Lloyd Jacquet e Sheldon Stark, demitiram-se
após meses sem ganhar nada. Foram substituídos
por dois cartunistas, Vin Sullivan e Whitney
Ellsworth. Alguns meses depois, Ellsworth também
caiu fora.
A New Fun durou seis edições. As vendas não
iam bem, as dívidas eram altas demais e no verão
de 1935 a McCall’s deu o cartão vermelho. Dois in-
vestidores que trabalhavam com o major pegaram a
metade de seu inventário, juntaram-se ao ex-editor
Lloyd Jacquet e saíram em busca de apoio para cri-
ar a Comics Magazine Company. O major passou o
outono procurando alguém que ainda o quisesse.
No fim, tudo o que ele pôde achar foi a Indepen-
dent News.

O SOL BRILHAVA para Harry Donenfeld. Ele


lançava mais revistas de todos os gêneros e quase
todas elas vendiam mais que a concorrência. Gussie
estava transformando a casa nova, no norte do
Bronx, num centro de entretenimento e jogatina.
Ela era popular entre os amigos e associados de
Harry. Chamavam-na de “G” (ou “Gea” quando es-
creviam). Para garantir que as crianças pudessem ir
196
aonde precisassem, Harry mobilizou seu chofer,
Frank Moschello. Este era outro exemplo de que
Harry cuidava de quem cuidava dele: Frank tinha
sido um garoto de rua, boxeador, ex-taxista e pe-
queno negociante de bebidas durante a Lei Seca.
Passou algum tempo no xadrez ao assumir a culpa
por alguma transação de Harry no mercado negro, e
em troca lhe prometeram emprego para toda a vida.
Todos os amigos de Harry o conheciam, falavam
com ele, pagavam-lhe bebidas. Numa homenagem
a Harry, que aprontaram de gozação, alguém lhe
deu o seguinte discurso: “Admiro de verdade o sr.
Donenfeld, principalmente por ele ter aumentado o
nível da minha vida intelectual. Já trabalhei para
muitos outros no passado que só se interessavam
por diversão e mais diversão. No entanto creio que
meu emprego atual é muito melhor para minha for-
mação: aprendi os caminhos para as mais importan-
tes instituições educacionais da cidade, para expo-
sições de arte etc.”
À noite ele conduzia Harry até os cassinos, clu-
bes noturnos e prostíbulos, mas durante o dia Frank
estava à disposição de Irwin e Peachy. “Frank Mos-
chello era muito mais pai para mim do que Harry
Donenfeld”, disse Irwin. “Assistia a todas as parti-
das de beisebol que eu jogava. Ficava lá olhando, e
no fim vinha falar comigo. Meu pai uma vez foi a
um jogo. Depois de algumas entradas ele se levan-
tou e foi embora. Frank ficou.” Irwin completou 10
197
anos em 1936. Nunca demonstrou interesse por di-
nheiro ou negócios. Queria jogar bola e ser boxea-
dor. Não importava o quão bom fosse o bairro ao
norte do Bronx, nem que escola Harry pagava para
ele: Irwin sempre quis ser um garoto de rua.
Harry não tinha tempo para jogos infantis. Sua
vida era uma aventura. Na posição de principal edi-
tor de girlie magazines do país e amigo de gângste-
res, era sempre muito bem recebido em mesas de
pôquer, clubes noturnos e eventos esportivos. Gra-
ças a The Police Gazette, podia dar um jeito de en-
contrar qualquer um que desejasse se promover no
meio dos trabalhadores: lutadores de boxe, jockeys,
chefes de polícia, dançarinas e produtores. Jack
Dempsey chegou a ter seu nome no título de uma
revista publicada anos depois do campeonato de
boxe. Bastava ficar amigo de Harry e tudo podia
acontecer. Mas foi outra a razão de ele ter se afasta-
do da família: estava apaixonado.
Todos os negociantes da mesma geração e do
mesmo nível de Harry tinham uma amante. Os fa-
bricantes e os contrabandistas iam até o 21 na noite
de sexta com suas mulheres e filhos e voltavam no
sábado, dessa vez com garotas jovens e bem-arru-
madas. O maître sabia o nome de todas elas. Mas
Sunny Paley era mais do que um prêmio para
Harry. Era pelo menos dez anos mais jovem que ele
e mais bonita que sua esposa; mas não era uma
shiksa com pernas de dois metros. Era uma garota
198
judia, com bons modos e boa educação. Não se
sabe ao certo como entrou na vida de Harry, nem se
tinha qualquer ligação com a família Paley que
vendia cigarros e era dona da Columbia Broadcas-
ting System. O certo é que em pouco tempo deixou
de ser apenas sua segunda garota: participava com
ele das partidas de gin rummy nos escritórios da In-
dependent. Viajava como companheira de Harry
para as conferências de negócios. Um distribuidor
que saía de vez em quando para beber com ele lem-
bra que Harry ficava se gabando dela quando se
embebedava. Dormia sempre que possível no apar-
tamento em Manhattan e sentia saudades quando
não se viam. Harry começou a falar em casamento.
Gussie sabia. Irwin lembra-se de brigas violen-
tas em casa: depois delas, Harry saía ligeiro para
voltar ao apartamento em Manhattan. De volta para
Sunny. Certa vez, quando tinha 13 ou 14 anos e tra-
balhava na Independent, Irwin ficou até depois do
expediente para poder escapulir até o escritório do
pai e espiar a partida de gin rummy. Queria ver
“aquela mulher” que assombrava seu lar, ainda que
seu nome nunca fosse dito. Viu-a, um pouco bem-
vestida demais, um pouco mais alta que seu pai, jo-
gando cartas e fazendo brincadeiras com Jack Lie-
bowitz, Paul Sampliner e os outros como se fosse
parte da família. Irwin percebeu que ela fazia parte
da verdadeira família do pai, mais do que ele pró-
prio.
199
Cada mudança na vida pessoal fazia com que
Harry precisasse de mais dinheiro. Com uma ener-
gia sem limites, expandiu seus negócios. Harry pas-
sou a fazer viagens em nome da Independent News,
estendendo seus contatos muito além de Nova
York. Irwin, que tentaria fazer o mesmo anos mais
tarde, disse que a essência do negócio era ficar ami-
go dos comerciantes. “Ele se embebedava com o
comerciante de Pittsburgh, saía para caçar alces
com o cara de Detroit, ia pra cama com o cara de
Baltimore. Um atacadista não dá as mesmas vanta-
gens para a Dell ou para a Fawcett se ele foi pra
cama contigo na noite anterior.”
Harry foi até onde a Eastern News nunca tinha
ido, até aquela outra América que ele via passar
quando pegava o trem para Miami: Richmond,
Charlotte, Charleston, Savannah, Atlanta. Então
voltava para o interior, para lugares de que só tinha
ouvido falar nas corridas de cavalo e jogos de fute-
bol: Tallahassee, Chattanooga, Birmingham, Bilo-
xi. O Sul não tinha fama de gostar de judeus nova-
iorquinos que vendiam livros imundos. Harry tinha
idade suficiente para se lembrar do caso de Leo
Frank, o contador do Brooklyn julgado e condena-
do sem provas por estupro e assassinato. Ele foi lin-
chado por uma multidão que invadiu a prisão ao
mesmo tempo em que pessoas se juntavam por toda
a Geórgia aos gritos de “matem o judeu”. Ainda ha-
via algumas cidades naquele estado onde vendiam
200
cartões-postais com Frank pendurado numa árvore
e a legenda “o linchamento do judeu”.
Mas Harry foi a essas cidades. Cumprimentou
amigavelmente os comerciantes de tabaco, traba-
lhadores da indústria livreira, contrabandistas lo-
cais, fornecedores de barbeiros — qualquer um que
mexesse com revistas de baixo nível. Aprendeu a
fazer brincadeiras e achar pontos em comum com
batistas, episcopais e católicos franceses. Nas cida-
des menores, apertou a mão de homens que nunca
tinham encostado num judeu, homens que espera-
vam que Harry fosse aparecer de quipá e barba,
carregando um saco de mercadorias. Atravessou
todo o Sul de trem e de carro, falando alto com o
leve acento judaico de sua voz, agindo como o pa-
lhaço que todos amavam, conquistando qualquer
um que fosse útil para colocar a Pep e a Spicy De-
tective na mesma prateleira da última edição de
The Fiery Cross (Revista da Ku Klux Klan).
Harry também aproximou as pessoas. Assim
que chegou ao Sul, encontrou um sistema de distri-
buição dividido em feudos que quase impossibilita-
va aos comerciantes ter uma variedade maior de
publicações. Ele incentivou os distribuidores e tra-
balhadores locais a juntar seus interesses. Aos pou-
cos, fez da Independent o ponto central na forma-
ção da Southern Distributors Federation.
Harry estava ganhando importância nos círculos
de distribuidores. Uma vez, em Miami, foi convida-
201
do a jogar pôquer com Moe Annenberg, ex-segu-
rança de William Randolph Hearst, que agora pu-
blicava The Racing Form, a mais importante revista
de apostas no país. Arranjava muitas corridas e era
o novo dono do Miami Tribune e do Philadelphia
Inquirer. Harry jogou na mesa de Moe, onde fez
gracinhas, soltou perguntas indiscretas e piscou o
olho como se fosse um velho amigo. Quando foi
embora, Moe perguntou a um outro jogador:
“Quem era aquele sujeitinho?” Apesar disso Harry
foi de novo convidado para jogar e assim entrou
para o círculo de um dos grandes machers da distri-
buição.
Mas o tempo estava fechando para Harry. A
modesta vitória dos censores contra as girlie maga-
zines em 1934 bastou para acalmá-los por um tem-
po. Porém, três anos depois, a opinião pública deu
novo ânimo à cruzada. A reação americana contra a
licenciosidade que a Lei Seca tinha inspirado ga-
nhou força. Nunca tantos contrabandistas tinham
ido parar na cadeia por causa de narcóticos. A in-
dústria de papel vinha tentando há anos usar a ma-
rijuana como desculpa para arruinar sua maior ri-
val, a indústria de cânhamo, mas nisso a população
não tinha muito interesse. Até que o temor nacional
por narcóticos virou a situação, e em 1937 o apoio
popular, com a ajuda de William Randolph Hearst,
enviou leis anticannabis que abarrotaram as legisla-
turas estatais.
202
O país estava adorando os desmanteladores de
quadrilhas, especialmente agora que elas já não for-
neciam mais bebida. Os nova-iorquinos ainda ado-
ravam fofocas sobre gângsteres importantes, mas
não gostavam que eles dirigissem sindicatos, arran-
jassem lutas de boxe ou abrissem prostíbulos pelos
bairros. No outono de 1936, Thomas Dewey, que
agora era o procurador geral de Nova York, reali-
zou a proeza mais descarada já feita por um homem
da lei. Mandou suas forças prenderem todas as
prostitutas que encontrassem, literalmente milhares
delas, numa única noite. Manteve-as presas até que
deixassem escapar o nome de pelo menos um gân-
gster. Assim, usando a palavra das prostitutas para
fundamentar a prisão, mandou para o xadrez deze-
nas de cafetões e arraias-miúdas, forçando-os a fa-
lar o que sabiam. Quando já tinha ouvido o sufici-
ente, Dewey foi atrás do peixão: Lucky Luciano.
Foi um imenso baque para o submundo. Conde-
nações por fraude fiscal e narcóticos eram uma coi-
sa, mas a prostituição em Nova York era tão aceita
no meio comercial e político que ninguém imagina-
va que isso desse cadeia. A maioria dos garotos ti-
nha crescido em puteiros e ganhado alguns dólares
como olheiros e cafetões. Os gângsteres mais cau-
telosos, como Frank Costello, o amigo de Luciano,
não se envolveram com esse mercado negro — tal-
vez porque fosse confuso e de baixo nível, mas até
mesmo eles entenderam que agora ninguém mais
203
estava a salvo. Dewey fez seu show de sempre no
tribunal, descrevendo Luciano como um simplório,
um imigrante da classe baixa que se pretendia ame-
ricano. Então o júri considerou o réu culpado de
três casos de prostituição forçada. Ele foi condena-
do a uma pena que ia de 30 a 50 anos.
O submundo começou a se retrair. Os que podi-
am passar dinheiro para algum bem legal trataram
de fazer isso com mais pressa que nos meses anteri-
ores à Revogação da Lei Seca. Investimentos em
Nevada, Miami e Cuba aumentaram. Os judeus do
mercado negro sobretudo começaram a descobrir
novas formas de usar seu capital, seus contatos e
sua experiência.
Harry conhecia Luciano. Ele tinha feito negó-
cios com Frank Costello por 15 ou 16 anos, e Luci-
ano tinha sido o parceiro de Costello desde seu pri-
meiro dia no crime. Harry sentiu o drama. Quando
o prefeito LaGuardia começou a reclamar das pu-
blicações indecentes outra vez, no início de 1937,
Harry deve ter entendido que isso seria mais do que
apenas mais uma pedra no caminho. Era ano de
eleição. LaGuardia, que tentava se reeleger, era o
favorito e sabia que teria o apoio do eleitorado na
guerra contra a corrupção. A Pep, a LaParee e o
resto das smooshes e revistas de nus estavam pro-
vavelmente condenadas. Seria preciso moderar a
Spicy Detective e suas imitações, e ninguém sabia
que impacto isso teria nas vendas. Até mesmo a
204
Police Gazette e similares teriam que ficar mais
limpas — nada de fotos de homens prestes a ser
executados na capa. Era o que Jack Liebowitz vi-
nha dizendo: precisavam ganhar dinheiro de um
jeito mais seguro.
Mas o que Harry e Jack podem não ter visto era
que a solução de todos esses problemas estava bem
debaixo de seu nariz: no final de 1935, o major
Malcolm Wheeler-Nicholson apareceu na porta da
Independent News procurando um distribuidor.
Não se sabe com quem ele falou nem quem tomou
a decisão, mas o que lhe disseram foi que a Inde-
pendent iria publicá-lo e adiantar dinheiro da pro-
dução sob as seguintes condições: mudar para o
“tamanho padrão” dos pulps; fazer a revista colori-
da; lançar uma outra revista em quadrinhos para ter
mais espaço nas prateleiras; e usar a Donny Press
para imprimir as capas. Deve ter sido difícil aceitar.
Primeiro, era óbvio que Donenfeld e sua turma
queriam ditar os termos. Segundo, o major de cava-
laria do Tennessee não gostava de judeus. Mas fez
a única escolha possível.
Então Harry Donenfeld e Jack Liebowitz entra-
ram no ramo de revistas em quadrinhos. Não era
algo de muita importância para eles em 1936 ou
1937. Mas o futuro estava tomando forma a partir
de uma série de pequenas decisões do major, seus
editores e dois jovens de Cleveland.
6
205
——————————
AÇÃO

JERRY SIEGEL SEMPRE disse que o surgi-


mento do Super-Homem nada mais foi que um sim-
ples caso de inspiração e fé. E o mundo sempre se
mostrou muito disposto a acreditar nele.
Numa noite abafada de verão, sem conseguir
pegar no sono, deitado em seu quarto, no sótão da
casa da Kimberly Avenue, as idéias foram chegan-
do. “Então pulei da cama e anotei tudo”, conta
Jerry, “depois tornei a me deitar e passei mais umas
duas horas pensando, me levantei de novo e anotei
mais coisas. E assim foi, a noite inteira, de duas em
duas horas.” Ao amanhecer, ele tinha escrito o
equivalente a várias semanas de Superman. “Voei
até a casa do Joe e mostrei tudo pra ele.” Joe ficou
animado. “Nós simplesmente sentamos e manda-
mos ver. Se não me engano, eu tinha levado uns
sanduíches, e trabalhamos o dia inteiro.” Quando
tornou a escurecer, a dupla estava com várias pági-
nas prontas para mostrar.
Em seguida começaram a mandar amostras das
tiras para os editores. E os editores começaram a
mandá-las de volta. No programa de rádio de Fred
Allen, Jerry viria a declarar: “Levamos seis anos
para vender Superman. Praticamente todos os edi-
tores do país recusaram nosso trabalho.” Essa foi
sua versão padrão durante muitos anos; havia inclu-
206
sive uma série de frases que ele gostava de citar, ti-
radas das cartas de recusa. “Um trabalho um tanto
imaturo”, sentenciara a United Features Syndicate.
“Prestem um pouco mais de atenção ao desenho”,
dissera a Esquire Features. Até o dia em que, se-
gundo a lenda, quase que por acaso, Superman en-
controu um pouso amigo, fazendo sucesso logo de
cara, e então todos aqueles editores que o haviam
recusado perceberam a tolice que tinham cometido.
Não haviam levado Jerry Siegel a sério, mas Jerry
sabia o valor do que possuía e no fim mostrou a
todo mundo que era bom de fato. E assim se tornou
um herói para jovens sonhadores de todas as partes
do mundo.
Só que existem alguns problemas nessa história.
“Seis anos para vender Superman” situaria aquela
noite de insônia entre os anos de 1931 ou 1932.
Mas acontece que os fãs descobriram o elo com
Detective Dan, de 1933. A história de Jerry mudou
um pouco. Alguém da Humor Publishing de Chica-
go, disse ele, manifestou um vago interesse por al-
gumas cenas de Superman. Jerry e Joe, naquela em-
polgação ingênua deles, tomaram aquela possibili-
dade de venda como negócio fechado e trataram de
desenhar a história toda. No entanto, depois de vá-
rios meses de silêncio de um lado e diversas cartas
insistentes de outro, o editor acabou enviando os
quadrinhos de volta com um bilhete em que expli-
cava não ter planos de lançar nenhuma nova revista
207
naquele momento. Os rapazes ficaram arrasados.
“Sou um perfeccionista”, disse Joe, “e acho que o
fato de os desenhos terem sido rejeitados me levou
àquele impulso destrutivo. Simplesmente rasguei
tudo.” Ele e Jerry não guardaram nenhuma lem-
brança desse Superman, a não ser o fato de ele ser
“um homem de ação” que ainda não se tornara um
super-ser vestido a caráter. As únicas coisas que so-
braram foram um quadrinho e a capa. A capa mos-
tra um sujeito valentão, de camiseta sem mangas,
erguendo um criminoso nas mãos enquanto enfren-
ta o fogo da metralhadora de outro bandido. Já o
quadrinho, de traços duros, mostra um herói de pei-
to nu pondo fim a um sequestro, encimado por um
slogan que diz: “Uma história de ficção científica
em quadrinhos”.
A essa altura Jerry já havia transportado para o
verão de 1934 as lembranças daquela noite abafada
em que as idéias não paravam de surgir, pouco
mais de três anos antes de o Super-Homem ser en-
fim vendido. Naquela noite, disse ele, foi que pen-
sou no Super-Homem como nós o conhecemos
hoje, e escreveu os roteiros que acabariam sendo
publicados, assim como foi por volta dessa época
que teve início a cadeia ininterrupta de recusas.
Mas também nessa história existem alguns senões.
E aquela correspondência de 1934 com alguém do
escritório da Super-Detective Stories, um dos pulps
de Harry Donenfeld, em que, ao que tudo indica, a
208
pessoa manifestara interesse pelo Super-Homem? E
o que dizer da promessa feita em 1935 pelo major
Wheeler-Nicholson de conseguir um contrato da
HQ com um syndicate? E por que aquela capa de
1933, supostamente a única coisa que restara do
Superman original, que Joe destruíra, foi encontra-
da, décadas mais tarde, na escrivaninha de Charlie
Gaines, vendedor da Famous Funnies? Jerry disse
que havia enviado amostras para a Famous Funni-
es em 1934, mas que o pacote fora devolvido sem
ter sido aberto. Então como foi que Charlie ficou
com a capa?
Quando juntamos as informações todas, o retra-
to que surge de Jerry Siegel aos 20 anos de idade é
bem mais complexo e muito mais interessante que
a figura ingênua que ele queria parecer.
Em junho de 1934, Jerry Siegel e Joe Shuster se
formaram na Glenville High School. Os colegas ti-
nham todos terminado os estudos um ano antes.
Até mesmo alguns garotos mais jovens, como a
campeã de popularidade Lois Amster, já tinham se
formado em janeiro. Faltava um mês para Joe com-
pletar 20 anos e quatro meses para Jerry. Dali em
diante, teriam que pegar no batente, fazer parte da
força de trabalho; os dias do jornalzinho Torch, da
audiência cativa para os devaneios de ambos e do
mimeógrafo de graça tinham ficado para trás. Mas
eles continuavam morando na casa dos pais, traba-
lhando em bicos de meio-período e falando da fama
209
e fortuna a ser obtida com pulps e revistas em qua-
drinhos. Na tentativa de ser mais comerciais, come-
çaram a desenvolver uma tira baseada em O Gordo
e o Magro e a produzir uma adaptação livre de P.
G. Wodehouse chamada Reggie van Twerp. Foi en-
tão que Jerry descobriu que tinha o dom de persua-
são.
As gravações que temos do jovem Siegel não
sugerem nenhuma figura imponente. A voz é fina e
meio atrofiada, a timidez parece sufocá-lo, o tom é
monótono e é evidente a impaciência com que lida
com as amenidades das conversas sociais. No en-
tanto, quando fala de uma, idéia que o emociona,
surge uma vibração repentina. Nós ouvimos a fé
que ele tem naquilo que apresenta. Então não é di-
fícil imaginá-lo convencendo o editor do Cleveland
Shopping News, um jornal de anúncios, de que po-
deria produzir um tablóide em quadrinhos capaz de
aumentar a circulação e o número de anunciantes.
E também não é difícil imaginar seu otimismo ao
fechar o negócio. Em vez de apenas vender para
um syndicate ou para uma editora, ele poderia ser
tanto uma coisa como outra e vender sua Popular
Comics para anunciantes de outras cidades, depois
quem sabe para jornais de verdade, e então poderia
passar de histórias mensais para histórias semanais,
contratar outros escritores e desenhistas para traba-
lhar em seu nome. Ele tinha a paixão, tinha as idéi-
as e, através do fandom, tinha também os contatos.
210
O trabalho que Siegel e Shuster fizeram para a
Popular Comics mostra o quanto estavam apren-
dendo. Gloria Glamour abre com um magnífico ce-
nário cinematográfico no mais puro estilo art déco,
que mostra o gosto de Joe pelo monumentalismo e
pelo modernismo. De repente surge, em traços flui-
dos, econômicos, um assessor de imprensa que in-
terpela uma emblemática beldade impecavelmente
desenhada — na intensidade desajeitada, descaída e
inábil do corpo do assessor de imprensa e na indife-
rença lânguida da estrela, Joe demonstra habilidade
para representar a linguagem corporal. O diálogo
hollywoodiano de Siegel agora se mostra animado,
compacto: “Qual é a piada?” “Esta carta de um fã
de Lone Peak, em Montana... uma respeitável pro-
posta de matrimônio!” “Matrimônio... casamento!
Ei, isso daria o que falar na imprensa!”
Ao final da história, de uma única página, Glo-
ria arranjou seu próprio noivo e o pobre coitado de
Montana se despede na estação de trem de um ban-
do habilmente desenhado de gente que lhe deseja
boa sorte. O estilo deriva em grande parte da cria-
ção de Roy Crane e em certos momentos quase
iguala a vivacidade e a capacidade de narração de
Wash Tubbs. A história é uma adaptação de Made-
moiselle Dinamite, filme lançado um ano antes, e,
num meio nem sempre adequado para a sutileza
dos personagens, Jerry e Joe conseguem captar um
pouco do fogo de Lee Tracy e Jean Harlow. Já aí
211
eles demonstram o talento que tinham para levar às
páginas dos quadrinhos material dos pulps e do ci-
nema.
Mas novamente Jerry e Joe se decepcionaram.
O Shopping News deu para trás antes que o primei-
ro tablóide em quadrinhos fosse impresso. Parte do
material foi vendido para uma loja de departamen-
tos da região, para ser distribuído durante o Natal
— o primeiro trabalho pelo qual Siegel e Shuster
receberam remuneração — mas a coisa parou por
aí.
As páginas que sobreviveram do Popular Co-
mics mostram que Jerry e Joe estavam tentando do-
minar todo e qualquer gênero: gags de comédia
pastelão, suspense sobrenatural, melodrama operá-
rio, ficção científica, humor judaico e até mesmo
uma retomada de Jerry the Journalist, dos tempos
de colégio de Joe. Mas há uma criação que se faz
notar pela ausência. Porque, mesmo enquanto pre-
paravam o tablóide, Jerry já estava tentando tirar o
Super-Homem de Joe e lançá-lo com outro artista.
Quase todas as histórias do Super-Homem, du-
rante décadas depois disso, se referiam “aos dois
adolescentes de Cleveland” que o criaram. Essa é
uma das partes mais encantadoras da lenda: dois
garotos solitários que se encontraram e juntos reali-
zaram um sonho. E é verdade — só que falta uma
parte. Jerry Siegel era um jovem com um bom faro
comercial e, quando viu que o Super-Homem não
212
estava indo a lugar nenhum com Joe, saiu à procura
de outro colaborador.
Tony Strobl era um ano mais novo que Siegel e
ainda cursava o Cleveland Art Institute; não era do
tipo de se arriscar numa nova idéia e se tornou um
dos melhores artistas fixos de Walt Disney depois
de formado. Mel Graff era alguns anos mais velho
e já trabalhava no departamento artístico da Nea, o
syndicate que cuidava de Wash Tubbs e de Alley
Oop (“Brucutu”). Mais tarde, Graff disse que tinha
se interessado pela idéia de Jerry Siegel, mas que,
antes do final de 1934, havia se mudado para Nova
York para lançar uma nova tira para a Associated
Press, uma fantasia infantil chamada Patsy. Na pri-
mavera de 1935, Graff apresentou ao público o
amigo de Patsy, o Mágico Fantasma, um herói de
capa e malha justa no corpo que usava mágica para
resolver as coisas. O historiador de quadrinhos Will
Murray chegou a se perguntar se Graff teria tirado
essa idéia das conversas que manteve com Siegel
ou se Siegel tirara de Graff a idéia da capa e da ma-
lha colante.
Depois de ter perdido Graff para Nova York e
para o sucesso, Siegel apelou para Russell Keaton,
o artista anônimo das páginas dominicais de Buck
Rogers. O estilo alegre e fluído de Keaton não era
muito diferente do de Joe Shuster, mas ele tinha um
diploma da Chicago Academy of Fine Art e era um
profissional respeitado, com uma possibilidade real
213
de lançar sua própria tira através de um dos princi-
pais syndicates do país. Ele e Jerry trocaram idéias
para as tiras do Super-Homem por alguns meses.
As esperanças de Jerry cresceram, como sempre
acontecia, e quando Keaton acabou decidindo não
se arriscar com um escritor tão jovem e inexperien-
te Siegel mandou-lhe uma carta cheia de mágoa. Se
Keaton desse para trás naquele momento, escreveu,
ele ficaria “empacado com um amador”. No início
de 1935, Jerry e Joe estavam de volta ao ponto de
partida.
E foi então que a cavalaria baixou em Cleve-
land. O New Fun do major Malcolm Wheeler-
Nicholson chegou às bancas da cidade e Jerry Sie-
gel prontamente lhe mandou uma lista de idéias
para novas histórias em quadrinhos. O major enco-
mendou duas delas e os rapazes puseram as mãos
na massa mais do que depressa, produzindo Henri
Duval of France, Famed Soldier of Fortune e Dr.
Occult, the Ghost Detective. De novo, eles se inspi-
raram mais em Hollywood do que em outros qua-
drinhos. Henri Duval é uma aventura de capa-e-
espada com despropósitos inspirados diretamente
por Douglas Fairbanks: Siegel faz de seu herói um
dândi que puxa da espada para qualquer um que in-
sulte suas roupas. O Dr. Occult (“Dr. Oculto”) é ti-
rado do doutor Van Helsing dos filmes do Drácula.
O traço de Joe consegue um belo resultado quando
tenta captar a atmosfera dos filmes de horror, mas
214
os personagens ficam duros, sem leveza, quando
ele começa a ficar sério demais; a única figura que
de fato demonstra ter vida é a de um vampiro que
sem querer acabou saindo cômico.
O major gostou do que viu. Comprou uma pági-
na de cada, pagando 6 dólares a peça, para lançar
no seu sexto número. E, no final do verão de 1935,
os quadrinhos foram impressos. Ninguém tirou o
corpo fora; nada deu para trás. As histórias de Sie-
gel e Shuster foram publicadas. Eles continuaram
pobres. Numa de suas cartas, o major pede descul-
pas a Shuster por ter perdido um material “na con-
fusão aqui do escritório, porque parecia ser apenas
uma folha de papel de embrulho”. E os dois conti-
nuariam pobres ainda por um bom tempo. Os dese-
nhistas de Nova York davam plantão no escritório
do major para conseguir receber um cheque dele;
sem dúvida boa parte do encanto de Siegel e Shus-
ter era estar ambos a mais de mil quilômetros de
distância. Seja como for, antes de completar 21
anos, já tinham alguns frutos de seus sonhos doidos
para mostrar.
O major havia encomendado novas histórias, e
eles corresponderam. Toda frenética energia que
Jerry dedicara a alimentar sonhos grandiosos e a in-
ventar macetes autopromocionais foi canalizada
para a produção de quadrinhos. Joe desenhava sem
parar, numa concentração incansável, sentado horas
seguidas numa cadeira dura de cozinha, usando a
215
tábua de cortar pão da mãe como apoio para dese-
nhar, os olhos fracos grudados na página, comendo
os sanduíches que Jerry ou a mãe levavam para ele.
Parece que os dois faziam o trabalho conjunto sem-
pre na casa de Joe, ainda que fosse menor e tivesse
mais gente; a mãe de Jerry nunca aparece nas me-
mórias deles. Talvez a presença controladora de Sa-
rah Siegel fosse demais para os garotos. Às vezes o
irmão de Joe, Frank, ajudava e às vezes Jerry cola-
borava na hora de fazer as letras e finalizar os dese-
nhos a lápis. Joe continuou fazendo entregas para a
mercearia, e Jerry, para uma gráfica, enquanto es-
peravam por aqueles primeiros cheques do major;
as noites porém eram dedicadas aos quadrinhos. E
entre os projetos que eles enviaram para aprovação
estava Superman.

NÃO É POSSÍVEL saber qual era a forma do


herói naquela época. Temos apenas uma carta do
major para Jerry Siegel, de outubro de 1935: “A
tira do Super-Homem está aguardando um pedido
iminente de um syndicate nacional... Uma enco-
menda para um tablóide com 16 páginas, em quatro
cores, que poderia incluir o Super-Homem lá pelo
início do ano... Acho que o Super-Homem tem óti-
mas chances.”
E a essa altura nós tropeçamos em mais uma pe-
drinha no caminho da lenda de Siegel e Shuster.
Eles supostamente acreditaram que o Super-
216
Homem era uma propriedade valiosa demais para
ficar à espera de um pedido “iminente” que seria
feito ao major e, por esse motivo, recusaram-no.
Mas tudo o que Jerry e Joe tinham feito até aquele
momento mostra a disposição mútua de mergulhar
de cabeça onde quer que houvesse o menor sinal de
incentivo, e nada poderia tê-los deixado mais ani-
mados do que o interesse de um syndicate disposto
a negociar quadrinhos coloridos. E, de fato, a única
prova que nos resta sugere que eles levaram muito
a sério esse pedido iminente.
Trata-se de uma folha de papel em que Joe ha-
via desenhado uma mulher num vestido de noite,
possivelmente em alguma aula de desenho. Pelo
visto foi a primeira coisa que achou, ou era tudo o
que tinha, na hora em que ele e Jerry começaram a
pensar em slogans para promover o Super-Homem
como “a tira de maior sucesso de 1936”. Eles dizi-
am que era “sem dúvida a tira que CONQUISTA-
RIA A NAÇÃO! A Supertira! A Melhor de Todos
os Tempos! O maior acontecimento desde o surgi-
mento das histórias em quadrinhos! A melhor tira
de super-herói de todos os tempos!” Eles prometi-
am “Velocidade — Ação — Risadas — Emoções
— Surpresas. A mais inusitada de todas as tiras de
humor e aventura jamais criadas! Uma nova perso-
nalidade saúda o mundo! Você vai rir! Você vai se
admirar! E preciso ver para crer!” E, em palavras
que são provavelmente de Jerry, eles se tornaram
217
os heróis de suas próprias imaginações: “Muito de
vez em quando surge uma tira em quadrinhos que
se mistura à corrente sanguínea de uma nação ape-
nas pelo vigor e potência da narrativa.”
Entre os slogans, há desenhos de caixas de cere-
ais matinais e biscoitos integrais no formato do Su-
per-Homem. Siegel sabia como promover um pro-
duto e também sabia que o dinheiro grosso, para
um syndicate, estava na concessão de licenças. O
Super-Homem que Shuster desenhou é rústico, mas
parece com o herói que conhecemos hoje. Ele usa
uma capa e uma malha colante com um símbolo tri-
angular no peito, embora ainda não haja nenhum
grande “S”. O estilo é extravagante. O herói exibe
um imenso sorriso. E óbvio que Siegel e Shuster ti-
nham distanciado bastante seu personagem daquela
combinação de Doc Savage e Gladiator que pode-
mos inferir do pouco que nos restou dos desenhos
de 1933. Esse último se parece com o Super-
Homem por quem os Estados Unidos iriam se apai-
xonar no início dos anos 1940.
O Super-Homem era um herói em desenvolvi-
mento, e poderia continuar assim para sempre. Por
mais simples que possa parecer por fora, ele conti-
nha uma enorme miscelânea de inspirações contra-
ditórias, de Philip Wylie a Douglas Fairbanks, pas-
sando por Edgar Rice Burroughs e Bernarr Mac-
Fadden. Nos primórdios, diria mais tarde Jerry Sie-
gel, “os desenhos animados do Popeye foram uma
218
das influências mais fortes”. Esses desenhos anima-
dos eram crias de uma dupla de imigrantes judeus
casca-grossa de Nova York, Max e Dave Fleischer,
e nunca houve violência animada mais frenética e
fantástica. “A super-força e a ação”, disse Jerry,
“eram absolutamente sensacionais. Pensei comigo,
isso é de fato muito bom, mas... e se o personagem
fosse um herói de aventura?” E assim foi que a
“tira de humor e aventura” que iria conquistar a na-
ção fundiu elementos das criaturas ficcionais mais
pretensiosamente sérias com o mais cômico paste-
lão. E nessa fusão Jerry e Joe injetaram também um
pouco de comédia de época. Em 1934, Leslie
Howard e Merle Oberon protagonizaram uma adap-
tação para o cinema de O Pimpinela Escarlate, um
dos romances favoritos de Jerry sobre o tema da
dupla identidade. A submissão abjeta de Howard ao
desdém de Oberon (tudo para preservar o segredo
de sua identidade como Pimpinela, claro) acabou
sendo o modelo perfeito para o confuso relaciona-
mento de Clark Kent com Lois Lane — e a beleza
altiva de Merle Oberon parece de fato presente nos
primeiros desenhos que Joe fez da jovem repórter.
Ao tentar reunir suas muitas paixões numa úni-
ca, Jerry e Joe acabaram criando um personagem
que transcendia e redefinia o gênero: o Super-
Homem era ao mesmo tempo um símbolo construí-
do com as cores primárias da mais pura fantasia e
um desenho elaborado a partir do diálogo com qua-
219
se todas as tendências do entretenimento de massa.
Ambos sabiam que tinham algo de muito especial
em mãos e, no final de 1935, estavam navegando
numa onda de otimismo sustentada pela “nova per-
sonalidade” que se preparava para saudar e enfren-
tar o mundo. E que também ajudou os dois a saudar
e encarar o mundo de uma nova maneira. Joe resol-
veu contratar uma modelo para criar Lois Lane. Até
certo ponto, por razões profissionais. Os ilustrado-
res de revistas gostavam de usar modelos de carne
e osso e os diretores de arte se orgulhavam da capa-
cidade que tinham de detectar os impostores que
surrupiavam suas mulheres de fotos e outras ilus-
trações. Mas havia também motivos pessoais nessa
decisão. As inibições, sobre as quais Jerry e Joe fa-
lavam tão amiúde, continuaram depois do colégio;
na verdade, terminado o contato diário com suas
colegas de classe, a distância entre eles e o sexo
oposto só fez crescer. No decorrer das décadas, vá-
rias mulheres de Cleveland vieram dizer que havi-
am conhecido ou Joe ou Jerry, ou mesmo ambos,
“naqueles tempos”, mas todas falavam de encon-
tros apenas depois de Superman ter se tornado um
sucesso. Nos anos anteriores a isso, parece que pelo
menos Joe não teve uma única namorada.
Quando Joe viu um anúncio de classificados
feito por uma certa Jolan Kovacs, oferecendo seus
serviços como modelo para fotógrafos e artistas, ele
a chamou. Jerry protestou, alegando que era um
220
desperdício de dinheiro por parte de Joe, mas arran-
jou um jeito de estar presente quando a garota che-
gou. Jolan era uma adolescente baixinha, magrice-
la, de olhos juntos e nariz pronunciado; era gracio-
sa, mas não uma beldade. “Meu pai estava desem-
pregado”, contou ela, “por isso, para ganhar uns
trocados, tive que ir à luta. Mas percebi que nin-
guém me contratava porque eu não sabia fazer
nada, não tinha experiência... Eu havia lido um arti-
go falando de modelos e pensei que talvez desse
para me virar com isso. Então ensaiei várias poses
na frente do espelho e pus um anúncio no Cleve-
land Plain Dealer.” Ela tomou o ônibus na zona
oeste de Cleveland e foi, junto com a mãe, até
Glenville, onde bateu numa porta; “ela se abriu um
pouquinho e eu vi um garoto do outro lado, e eu en-
tão disse: ‘Sou a modelo que o senhor Shuster está
esperando.’” O garoto a convidou para entrar e co-
meçou a paquerá-la. “Por fim, eu falei: ‘O senhor
Shuster sabe que já estou aqui?’ E ele disse: ‘Eu
sou o senhor Shuster.”’ A data do encontro é incer-
ta, mas Joe, que parecia tão jovem, já tinha pelo
menos 21 anos de idade e era ao menos cinco anos
mais velho que Jolan.
Quando Joe a levou até a sala, ela conheceu
Jerry Siegel. “Fiquei absolutamente atônita com a
energia dele — e que superenergia! Ele estava sen-
tado numa cadeira e os pés não paravam quietos;
folheava revistas, esperando ansioso para me co-
221
nhecer.” Jerry então lhe explicou como era a perso-
nagem. Contou a ela como era forte o murro que o
Super-Homem dava nos bandidos e ergueu o punho
para o alto com um berro de “Pow!” Depois disse
que os saltos que ele conseguia dar eram enormes,
e pulou de um lado a outro da sala, caindo no sofá.
“Puxa vida”, disse Jolan. Décadas mais tarde, re-
cordaria: “Éramos todos crianças brincando de ser
adultos, tentando desesperadamente ser adultos”.
No entanto os dois rapazes mais velhos que se es-
forçavam para impressioná-la não eram crianças, e
sim homens ainda presos à infância tentando blefar
e achar uma saída fácil para as partes mais difíceis
do amadurecimento.
Jolan posou para Joe várias vezes. Os desenhos
que ainda existem não se parecem nem um pouco
com ela. Parecem, na verdade, uma fantasia de
Merle Oberon sonhada por um menino solitário.
Contratar Jolan foi uma tentativa de obter uma ex-
periência emocional. “Ela foi uma grande inspira-
ção para mim”, disse Joe. “Ela me incentivou; era
uma grande admiradora dos quadrinhos.” Eles saí-
ram juntos algumas vezes, mas o namorico nunca
foi além das conversas. Ela deixou Cleveland, en-
controu trabalho posando para artistas sob o nome
de “Joanne Carter”, se casou e se divorciou. Joe e
ela se corresponderam durante alguns anos e os
dois voltaram a se encontrar uma década depois.
Ele nunca deixou de falar muito bem dela, mesmo
222
depois de perdê-la para Jerry Siegel. Não há nada
de Jolan em seus desenhos de Lois, não num senti-
do literal. Mas as paixões que ela desperta estão lá,
nos desenhos, transformadas, como aconteceria du-
rante toda sua vida, numa nuvem de linhas sobre
papel.

O OTIMISMO DO final de 1935 não durou


muito tempo. Fosse qual fosse o syndicate com o
qual o major tentava negociar, o contrato nunca
saiu. Na verdade, durante alguns meses antes que a
Independent News aparecesse para salvá-lo, o ma-
jor não conseguiu sequer publicar a New Fun. Jerry
e Joe pensaram ter entrado em mais uma roubada.
No começo de 1936, a segunda revista do major, a
New Adventure, e o sétimo número da primeira
chegaram às bancas, graças ao novo distribuidor.
Dali em diante, as publicações entraram nos eixos
e, depois que Jack Liebowitz assumiu as dívidas do
major, os cheques começaram a chegar no dia cer-
to. Jerry e Joe engavetaram o Super-Homem e se
concentraram no trabalho que estava sendo publica-
do.
Calling All Cars eram aventuras de polícia, e
Federal Men, um pastiche vigoroso de Gang Bus-
ters (Série radiofônica supostamente baseada em
casos reais da luta contra o crime que foi muito po-
pular nos anos 1930 e, a partir de 1939, ganhou sua
primeira versão para quadrinhos. Chegou a ter uma
223
versão como série de TV nos anos 1950). Federal
Men ganhou popularidade suficiente para levar o
major a tentar formar um fã-clube chamado Junior
Federal Men of America. Ele inclusive aumentou o
tamanho das histórias para quatro páginas, permi-
tindo que Joe fizesse quadros maiores e experiên-
cias gráficas. Jerry e Joe se tornaram mais ousados
com o sucesso, e as séries, mais fantásticas. Os fe-
derais lutavam com robôs gigantes que haviam in-
vadido Nova York, dando a Joe a oportunidade de
desenhar assombrosas cenas apocalípticas de ficção
científica, que pareciam saídas diretamente das ca-
pas da Amazing Stories e da Wonder Tales. O Dr.
Occult pegou a deixa de Flash Gordon e trocou o
terno por uma malha colante, botas, uma capa ver-
melha e uma espada. Joe adorava o efeito dramáti-
co de uma capa escarlate.
E é nesse momento que o Super-Homem reapa-
rece na história, dessa vez em companhia de Char-
lie Gaines. Desde os tempos em que ajudara a lan-
çar a Famous Funnies para a Eastern Color Prin-
ting, Charlie vinha fazendo progressos como forne-
cedor de quadrinhos para George Delacorte e tam-
bém como representante freelance (sob o nome de
“M.C. Gaines”) do McClure Syndicate. Se Super-
man chegou até ele diretamente pelas mãos de Jerry
Siegel ou se foi através de algum outro contato não
se sabe ao certo, mas em algum momento no ano
de 1936, Charlie tentou, em vão, colocar o super-
224
herói na revista Popular Comics de Delacorte. No
começo de 1937, vamos ver o Super-Homem recu-
sado pela Tip Top Comics, cliente da Eastern Color
e editada por um velho amigo de Charlie, Lev Gle-
ason. A Tip Top era produzida pela United Featu-
res Syndicate e foi nessa época que Jerry recebeu a
tão citada carta chamando Superman de “um traba-
lho imaturo”.
E possível até que, por volta dessa época, Siegel
e Shuster tenham redefinido o Super-Homem para
um mercado diferente. Entre outras coisas, porque
Worth Carnahan, um dos capistas e editores de Do-
nenfeld, lembra que Siegel e Shuster apareceram
em seu escritório querendo publicar o Superman
nas revistas masculinas. Sabemos que Siegel fez
várias viagens de trem a Nova York, depois que os
cheques do major passaram a chegar com regulari-
dade. Sabemos também que, por volta de 1936, as
fronteiras entre a empresa do major e a editora de
Donenfeld eram tênues; e que algumas dos pulps
de Donenfeld incluíam quadrinhos. Sabemos ainda
que Joe gostava de desenhar garotas sensuais e que
o texto de Jerry era às vezes apelativo. Talvez te-
nham imaginado que poderiam adaptar o Super-
Homem à malícia da Pep ou à lascívia da Spicy
Detective. Carnahan não viu o menor futuro para
aquilo e o Super-Homem voltou à pilha dos rejeita-
dos. A bem da verdade, por volta dessa época ele já
podia estar em diversas pilhas de rejeitados — na
225
do major, na de Donenfeld, na de Gaines e na do
próprio Siegel — e sob diferentes formatos.
Mais uma vez, o trabalho pago teve prioridade
na vida de Siegel e Shuster. A grande preocupação
deles, no início de 1937, era um novo título que o
major iria lançar: Detective Comics.

JACK LIEBOWITZ e Harry Donenfeld viram o


mercado para comic books crescer em 1936. E os
dois títulos do major eram os que mais vendiam.
Seus parceiros anteriores tinham feito The Comics
Magazine decolar e lançado outra revista chamada
Detective Picture Stories, feita a partir dos contos
policiais publicados nos pulp. As revistas Famous
Funnies, Tip Top e Popular Comics de Delacorte
iam todas muito bem, reproduzindo tiras que saíam
primeiro nos jornais. Os gibis ainda não rendiam
dinheiro grosso, mas proporcionavam um trunfo
valioso para a Independent News. Distribuir revis-
tas eróticas, na época, não era das coisas mais fá-
ceis, os lojistas ficavam arredios, mas se os vende-
dores pudessem entrar num armazém em Toledo,
Lubbock ou Butte e dizer: “Olha só estes quadri-
nhos aqui — eles são fantásticos para a garotada”,
ele seria ouvido. Depois, o sujeito poderia acres-
centar: “Se gostou destes aqui, por que não se arris-
ca comprar alguns Super Detective ou, quem sabe,
alguns Spicy Detectives para os marmanjos?” Era
uma oportunidade imperdível e, mais que depressa,
226
Jack e Harry adiantaram um dinheiro ao major para
que ele aumentasse para quatro títulos sua linha de
gibis.
O editor mais leal do major, Vin Sullivan, cui-
dou do lançamento da Detective Comics. O outro
lançamento, Thrilling Comics, parece de certa for-
ma ter envolvido Charlie Gaines. O major havia
contratado um novo editor, um adolescente chama-
do Sheldon Mayer, que também trabalhava para
Gaines. Um belo dia, Mayer largou o trabalho, furi-
oso porque o major não estava pagando direito, e
foi trabalhar só para Gaines no McClure Syndicate.
Na confusão subsequente causada pela falta do fun-
cionário, a Thrilling Comics não pôde ser concluída
e a Detective Comics apareceu sozinha na primave-
ra de 1937. Gaines e Mayer, porém entraram para a
órbita da Independent News, e de lá não sairiam até
ter mudado o cenário das histórias em quadrinhos
mais de uma vez.
Vin Sullivan havia concebido a Detective Co-
mics não como um suplemento que sairia junto com
os jornais, e sim como algo equivalente aos pulps,
publicados com histórias completas de um único
gênero. Para os quadrinhos principais, queria séries
com 13 páginas cada — duas ou três vezes o tama-
nho habitual — e para fazer uma delas apelou para
sua equipe favorita: Siegel e Shuster. Eles, por sua
vez, apelaram para o seu amado Wash Tubbs and
Captain Easy, de Roy Crane, como inspiração, com
227
algumas pitadas de Terry and the Pirates (“Terry e
os Piratas”), de Milton Caniff, o que resultaria no
pugilismo itinerante de Slam Bradley.
A primeira aventura de Slam o atirou direto no
território de Terry, onde ele acabou com uma horda
de chineses diabólicos. “Seus punhos trovejantes
parecem estar por toda parte!”, diz a legenda. “Fui
Onyui cai sem querer no caminho de Slam e dali a
pouco está voando pelo espaço, seguro pela ponta
do rabicho. Os chineses ficam desmoralizados di-
ante da coragem indômita de Slam, de sua força
surpreendente e de seu riso diante dos contratem-
pos mais arrasadores!” “Quem quer ser o
próximo?”, berra Slam. O texto de Siegel era de
uma corajosa estupidez. A arte de Shuster era es-
quemática mas ousada. Há um júbilo tão absurdo
em Slam girando no ar dois chineses absolutamente
idênticos, estereotipados, ambos presos por rabi-
chos de um comprimento tão ridículo que nem
mesmo sensibilidade moderna se dá ao trabalho de
se revoltar essa imagem.
Siegel e Shuster criaram uma outra série de qua-
tro páginas, chamada Spy, para essa mesma revista.
Com isso, 17 das 64 páginas eram deles. Não de-
morou para começarem a vender quase 30 páginas
mensais ao major; o preço subiu para 10 dólares a
página. Dividir quase 300 dólares por mês não era
nada mau para dois jovens em plena Depressão. Joe
não desenhava mais em papel de parede; na verda-
228
de, tinha começado a usar Craftint, um papel caro,
tratado quimicamente, que possibilitava uma boa
textura com pouco esforço. E Jerry, pela primeira
vez na vida, era um homem aos olhos da família.
Continuava morando na casa da mãe, mas agora ti-
nha como comprar coisas para ela, colaborar com
as despesas, devolver parte do que a mãe perdera
com a morte do marido. Ainda datilografava seus
textos no mesmo quarto no sótão, olhando lá para
baixo, para os garotos jogando bola na Kimberly
Avenue, vendo a mocinha bonita da casa em frente
chegar da escola toda tarde. Mas daquele momento
em diante pôde sair à rua sem sentir tanta vergonha.
Levava consigo o conhecimento secreto de seu va-
lor. Podia até chamar a garota para sair.
O sucesso infelizmente também estava prejudi-
cando a qualidade do trabalho da dupla. Aquelas 30
páginas mensais significavam uma página completa
por dia; era trabalho para roteirista, desenhista, le-
trista e colorista. Já no primeiro número da Detecti-
ve, a sobrecarga transparece na parcimônia dos ce-
nários de fundo e na rigidez de certos traços de Joe.
Logo no primeiro capítulo de Spy, aparecem figuras
muito pesadas para terem sido obra dele, mesmo na
correria. Ele havia contratado ajuda, devia estar de-
legando o trabalho a ser feito. Alguns conhecidos
de Jerry, fãs de ficção científica, lembravam-se de
ele ter oferecido dinheiro em troca de idéias para
histórias.
229
Então veio o novo gibi. O major estava profun-
damente endividado com Harry Donenfeld e preci-
sava de um sucesso com urgência. Em novembro
de 1937, ele e Vin Sullivan começaram a juntar os
fragmentos da revista que eles não conseguiram
lançar meses antes. Agora eles a chamavam de Ac-
tion Comics. Não havia tempo para encomendar
material — a equipe de vendas da Independent
News precisava que ela chegasse às prateleiras na
primavera para poder promovê-la com força total
então eles tiveram que apelar para as pilhas de ma-
terial rejeitado. Vin conseguiu reunir um conjunto
aceitável de tiras de aventuras, mas não havia um
protagonista carismático para ilustrar a capa. Então
ele perguntou a seu amigo e antigo colega de traba-
lho Sheldon Mayer se ele tinha algo dando sopa
que não tivesse conseguido vender para o McClure
Syndicate.
Shelly Mayer era um sujeito baixinho, magro e
míope. Era também um cartunista de talento e um
rapaz inteligente e engraçado, que nunca tinha sido
levado muito a sério. Trabalhava como assistente
de um grupo variado de cartunistas de jornal desde
os 15 anos de idade; antes de completar 18, já ven-
dia a própria tira para o major Wheeler-Nicholson.
Tinha talento para o disparate movimentado e vigo-
roso: The Strange Adventures of Mr. Weed. Havia
crescido numa casa turbulenta, com um pai muito
severo, e guardava uma reserva razoável de raiva
230
explosiva dentro de si, mas era uma raiva que cos-
tumava vir à tona apenas sob a forma de birras e
berros. Quando o major tentou driblá-lo para não
lhe pagar o que devia, ele estourou. Na verdade,
trabalhava melhor com o rabugento Charlie Gaines,
talvez porque ambos se achassem espertos demais
para o mundo ao seu redor, e também porque não
se incomodavam com a gritaria.
Shelly encontrou uma amostra do Super-
Homem, feita para ser publicada em jornal no meio
da pilha de rejeitados de Gaines. A versão que ele
viu era barra-pesada. Começa com o Super-Homem
salvando um sujeito de um linchamento; esse sujei-
to então lhe conta que a mulher que irá naquela noi-
te para a cadeira elétrica por assassinato é inocente.
O Super-Homem sai atrás da verdadeira assassina,
uma loira oxigenada, cantora de cabaré. Entra no
camarim dela e leva um tiro. A bala ricocheteia,
não o perfura. Ele arranca o revólver da mão dela,
esmaga a arma e agarra o braço da mulher. “Está
pronta pra assinar sua confissão? Ou quer experi-
mentar o que sentiu aquela arma quando eu fechei
minha mão?” A mulher escreve a confissão, saben-
do que aquilo significa sua morte. Ele então amar-
ra, amordaça e leva a cantora até a mansão do go-
vernador. O mordomo do político ataca o Super-
Homem com uma faca, mas a lâmina entorta. O Su-
per-Homem estraçalha a porta de metal do quarto
do governador e exige que o velho escute o que tem
231
a dizer. Ele concede o perdão à mulher inocente.
No dia seguinte, convoca uma reunião secreta com
seus assessores para falar do ser aterrador que o vi-
sitara na noite anterior: “Ele não é humano!”
Esse era um Super-Homem sombrio, quase cru-
el. Suas façanhas não tinham brilho, não havia nada
ali que sugerisse a verve de Siegel e Shuster da
época de Slam Bradley. A história toda tinha o odor
metálico do início da Depressão. Talvez porque as
amostras que Shelly Mayer encontrou fossem uma
versão de Superman mais próxima do conceito ori-
ginal de 1933, ou então uma versão feita para as re-
vistas masculinas de Donenfeld.
Shelly gostou do que viu. Embora olhares mais
velhos pudessem achar aquela mistura de feitos
fantásticos e realismo suarento um tanto discutível,
Shelly de 20 anos de idade, entendeu o que tinha
diante de si. Conhecia a capacidade dos jovens de
enxertar fantasias super-heróicas — consideradas
tolas e românticas pelos adultos — num sentimento
de raiva genuína. Sabia como às vezes, entre os
anônimos fanáticos por ficção científica, é intenso
o desejo de ser forte o suficiente para assustar e
machucar. Quando o amigo Vin lhe perguntou se
tinha algo para servir como carro-chefe da Action
Comics, Shelly sabia o que sugerir.
Vin ficou animado. Ele também era um jovem
desenhista sintonizado com o mercado. Lá pelo fi-
nal de 1937, o Super-Homem parecia mais vendá-
232
vel que dois anos antes, e isso porque o entreteni-
mento em geral, sobretudo para a garotada, estava
entrando no molde das mesmas histórias de sucesso
que haviam empolgado Jerry e Joe. O Sombra ins-
pirara a criação de uma série de personagens com
dupla identidade que combatiam o crime tanto no
rádio como nas páginas das revistas e jornais. O
corpo masculino virara tema popular com a chega-
da das tiras de Tarzan; e o Flash Gordon de Alex
Raymond se tornara uma sensação graças tanto à
arte arrebatadora de seus quadrinhos como aos he-
róis românticos e à beleza dos corpos retratados
dentro das malhas colantes. No início de 1936, o
criador de Mandrake, o Mágico, Lee Falk, combi-
nou as duas tendências numa nova tira chamada O
Fantasma. Seu herói era um playboy nova-iorquino
muito entediado que usa uma máscara para comba-
ter o crime (se bem que uma disputa de direitos au-
torais logo o obrigou a uma mudança para as selvas
da índia), e que Falk vestiu com uma malha pareci-
da com a do espadachim Douglas Fairbanks. O Su-
per-Homem continuava um ser fantástico, mas não
parecia mais tão peculiar.
E foi desse modo que Vin escreveu uma carta a
Jerry e Joe, em novembro de 1937, dizendo-lhes
que as amostras do Super-Homem que tinham envi-
ado estavam a caminho e que se eles conseguissem
cortar e colar aquele material para transformá-lo
numa história de 13 páginas ele a compraria. Quan-
233
do a encomenda chegou, os dois chamaram o irmão
de Joe para ajudar e se fecharam no apartamento de
Shuster para trabalhar. Produziram uma página de
introdução: um único quadro mostrando uma crian-
ça dentro de um foguete, fugindo de um planeta em
vias de extinção, em seguida um resumo de seus
poderes e “uma explicação científica da força es-
pantosa de Clark Kent”. Depois se concentraram
em cortar e colar as velhas amostras — embora, por
motivos que já se perderam, os primeiros oito dias
da tira não tenham sido usados. Não havia grupo de
linchamento nem cantora maligna, apenas o Super-
Homem correndo, sem explicação, até a casa do
governador com uma mulher nos braços. Desse
ponto em diante, a ação segue em ritmo vertigino-
so: o Super-Homem salva uma mulher inocente da
execução, enfrenta um marido que espancava a mu-
lher, salva Lois Lane de um bando de gângsteres,
sai atrás de um negociante corrupto de armas e
mergulha, na página 13, num final incerto que dei-
xa todo mundo no maior suspense. No caminho,
tem tempo para se transformar em Clark Kent e ser
humilhado na frente de Lois, numa óbvia paródia
de um anúncio de Charles Atlas.
As 13 páginas foram enviadas de volta a Nova
York e publicadas no primeiro número da Action
Comics. Era um trabalho grosseiro. Com uma nar-
rativa irregular, como se grandes trechos tivessem
sido descartados. Textos reescritos de forma tosca
234
se intrometem na história, como se Joe e Jerry esti-
vessem tentando reconciliar uma versão mais anti-
ga do Super-Homem com um conceito mais moder-
no. No fim, nada disso importou. A história estava
lá.
Na capa o Super-Homem ergue um carro acima
da cabeça e aterroriza os valentões a sua volta. Ime-
diatamente há a destruição de um planeta, a sensa-
ção de apocalipse. Em seguida, desarticulados
como num sonho, vêm aqueles momentos: o Super-
Homem zombando de balas que batem nele e não
penetram, o Super-Homem estraçalhando coisas,
Clark sendo menosprezado na frente de Lois. Bem
no finalzinho, surge um pouco de humor. E uma
velha gag que Jerry guardou de Goober the Mighty,
dos tempos do Torch, da Glenville High. O Super-
Homem corre por um cabo de alta tensão, levando
um vigarista apavorado nos ombros. Não se preo-
cupe, diz ele. “Os passarinhos ficam nos cabos tele-
fônicos e não são eletrocutados — desde que não
toquem num poste telefônico! Opa! Quase bati na-
quele ali!”
Um super-herói fazendo piada era algo novo.
Doc Savage, o Sombra, o Fantasma, Tarzan, Flash
Gordon — nenhum deles teria saído correndo por
um cabo elétrico para aterrorizar um bandido idiota
e se divertido tanto quanto o Super-Homem. O
Hugo Danner de Philip Wylie teria ficado muito
surpreso. Douglas Fairbanks talvez tivesse feito
235
uma cena parecida, mas quem haveria de imaginá-
lo numa aventura tão grosseira, de pulp? Essa tal-
vez tenha sido a dádiva mais importante de Joe e
Jerry, esse momento em que a inquebrantável ju-
ventude de ambos os ergueu acima de todos aque-
les criadores de heróis metidos a besta do mundo
adulto e proporcionaram o puro deleite de ter todo
o poder que um garoto desejaria ter nesta vida.
Jerry e Joe receberam um cheque no valor de
130 dólares. E assinaram um papel cedendo todos
os direitos sobre o Super-Homem para a editora.
Sabiam que era assim que o negócio funcionava —
tinham vendido os direitos sobre todas as suas cria-
ções, de Henri Duval a Slam Bradley. Joe declarou
que estava disposto a abrir mão de todas as outras
séries para se dedicar apenas ao Super-Homem.
Ação desenfreada, afinal de contas, era muito mais
divertida de desenhar do que os quadrinhos de Fe-
deral Men ou Radio Squad. E ambos voltaram a se
concentrar nos prazos de entrega.
Malcolm Wheeler-Nicholson não ganhou muito
mais dinheiro com a Action do que os dois jovens
artistas. No início de 1938, Harry Donenfeld o
mandou junto com sua mulher para um cruzeiro em
Cuba para “trabalhar novas idéias”. Quando eles
voltaram, o major descobriu que a fechadura de seu
escritório havia sido trocada. Harry o processara
por falta de pagamento e levara sua empresa ao tri-
bunal de falências. Lá um juiz chamado Abe Men-
236
nen, um dos antigos amigos de Harry da Tammany,
foi nomeado presidente interino da firma e arranjou
a rápida venda de seus ativos para a Independent
News. Harry deu ao major uma porcentagem da
More Fun Comics como um cala-boca e lhe dese-
jou boa sorte. O major desistiu do mundo do co-
mércio e voltou a escrever histórias de guerra e
críticas às forças armadas americanas.
Vin Sullivan continuou a editar os quadrinhos.
Jack Liebowitz continuou a dirigir a empresa. Ocu-
pado em sua batalha contra a censura, Harry prova-
velmente não deu atenção à Action nem ao Super-
Homem.
Nenhum deles sabia como tudo iria mudar de fi-
gura depois que saísse o primeiro número da Acti-
on Comics. Nenhum deles poderia ter previsto a ex-
tensão da mudança que causariam na cultura popu-
lar da América. Nenhum deles poderia ter imagina-
do quão diferente se tornaria sua própria vida, e o
quão enormes seriam tanto a fortuna como a fama e
a ruína.

7
——————————
RAPAZES AMERICANOS

NO FINAL de sua história iconográfica dos Es-


tados Unidos, chamada The Glory and the Dream,
William Manchester lembra uma foto de pessoas
237
comuns durante o auge da Depressão: “Apesar de
ser verão, os adultos exibem uma aparência formal.
Os homens usam colarinho duro, as mulheres, vas-
tos chapéus e vestidos soltos de algodão. Mas são
as crianças as que mais nos surpreendem. Assim
como os pais, estão vestidas de um jeito antiquado.
Mas há algo mais ali. Levamos alguns instantes
para notar por que aquelas crianças nos parecem
tão peculiares. E então percebemos. Há uma inten-
sidade na expressão de todas. Estão um pouco in-
clinadas para a frente, como se tentassem ver a cara
do futuro. E estão sorrindo.”
Não é fácil para as gerações subsequentes en-
tender aquele sorriso durante a Depressão, mas é
impossível negar que ele está lá. Apesar de todas as
histórias de infâncias passadas em tempos difíceis,
as vozes que as contam soam com um humor e um
otimismo que de algum modo nunca se deixaram
abater. A geração nascida em 1915 — aqueles ga-
rotos que viveram a infância em tempos de grandes
promessas e entraram na força de trabalho logo de-
pois que tudo veio abaixo — enfrentou as durezas e
dificuldades dos anos 1930 com espantosa ausência
de autopiedade e desespero. Na atmosfera da vida
americana após a Primeira Guerra Mundial pode
estar parte da resposta. Esses jovens haviam sido
criados entre revoluções diárias e novidades cons-
tantes, e levados a acreditar que seu próprio futuro
teria de coincidir com o grande Futuro da humani-
238
dade. Aquela foi a primeira geração educada na era
da psicologia popular; a infância era observada e
planejada com o propósito de alcançar a felicidade.
Os jovens foram poupados, como nenhuma geração
anterior, de trabalhos pesados e do mundo dos
adultos; tiveram permissão para continuar brincan-
do muito depois da idade em que seus pais já ti-
nham se submetido ao princípio da realidade. A
eles foram oferecidas as inesgotáveis fantasias da
indústria da cultura juvenil de uma forma que o
mundo ainda não tinha visto. Sejam quais forem os
motivos, quando as coisas pioraram e vieram os
tempos difíceis, eles se mostraram capazes do mais
absoluto e ácido pragmatismo, dos sonhos mais for-
midáveis, da mais exuberante adaptabilidade e das
mais corajosas risadas.
Os sonhos, os risos, as tiradas e os projetos saí-
am de forma mais ruidosa da garganta dos garotos
judeus. Foi um momento fenomenal para os talen-
tos daquelas pessoas. Roosevelt tinha judeus em
seu Brain Trust e em seu gabinete. Todo intelectual
e pseudo-intelectual deste mundo citava Marx,
Freud e Einstein. Os anti-semitas começavam a au-
mentar seu alarido, mas ninguém imaginou que eles
pudessem se opor à onda crescente. Irving Thal-
berg, da MGM, depois de uma visita à Alemanha,
em 1934, disse: “Muitos judeus perderão a vida...
[mas] quando Hitler e o hitlerismo passarem, os ju-
deus continuarão lá”. Havia inclusive algo decidi-
239
damente ridículo na figura do ensandecido Adolf.
Adolescentes judeus o vaiavam nos cinejornais. Os
movimentos antifascistas cresceram rapidamente e
acabaram entrando na moda durante a Guerra Civil
Espanhola. Os nazistas com toda certeza seriam
gloriosamente derrubados antes que chegassem a
causar qualquer dano real.
Em nenhum lugar a influência judaica foi maior
que na cultura popular norte-americana. Os judeus
dirigiam os estúdios de cinema e compunham as
canções — não os filhos mimados das ricas famí-
lias alemãs, mas os filhos de peleteiros imigrantes
— e mascates da Delancey Street. Benny Goodman
era o som do sexo. Havia astros de cinema judeus,
e não eram só os palhaços, como Eddie Cantor; ha-
via também Paul Muni, Sylvia Sydney e até mesmo
Ricardo Cortez. Os pais judeus faziam questão de
explicar aos filhos fascinados pelos gângsteres
quem eram Edward G. Robinson e John Garfield
por trás dos nomes artísticos de gói. “Vocês já le-
ram o Walter Winchell hoje?”, perguntavam. “Ele é
judeu, sabiam?” Aqueles pais haviam crescido ven-
do a cultura americana com o olhar do forasteiro,
mas seus filhos tinham plena consciência de que
aquela era a cultura deles, e que estava ali para ser
feita e refeita conforme seus desejos.
Esses garotos pertenciam, em sua maioria, a
uma geração urbana de classe média. O comércio
de roupas, ainda a maior fonte de renda para a co-
240
munidade judaica, aguentou firme o tranco da De-
pressão, ao passo que coqueluches dos anos 1920,
como a indústria automobilística e da construção,
entraram em colapso. Os imigrantes e suas famí-
lias, enquanto isso, continuaram se mudando do
Lower East Side, de Williamsburg e de Greenpoint
para as novas e confortáveis casas de Bayside, Ben-
sonhurst e Bronx. Os críticos acusavam o Bronx de
ser algo malfeito, construído depressa demais com
planejamento de menos, mas os garotos que viviam
mergulhados em sua vida cultural e intelectual, na-
quela insolência cortante e competitividade emoci-
onante, sabiam que estavam no meio de algo signi-
ficativo. No Queens reinava a calma. O Brooklyn
era o Brooklyn. O Bronx era animação, o trem ele-
vado barulhento, a arrogância dos torcedores dos
Yankees. Era uma comunidade-dormitório, esvazi-
ada de seus homens todas as manhãs e entregue aos
meninos de escola que corriam pelas ruas. Compa-
rado ao Lower East Side, era um lugar espaçoso e
tranquilo. As construções eram novas e regulares,
os parques, grandes, as calçadas, livres de prostitu-
tas e punguistas. Mas era também uma cáustica col-
cha de retalhos étnica feita às pressas. Alex Singer,
um diretor de cinema que cresceu no Bronx durante
a Depressão, disse que, quando não estava devoran-
do pulps violentos, estava “planejando caminhos
para ir à escola e voltar dela por onde houvesse me-
nos chances de levar uma surra”. “Os meninos itali-
241
anos e irlandeses odiavam os meninos judeus”, dis-
se ele. “Nosso único consolo era que o ódio entre
eles mesmos era ainda maior.”
Muitas famílias se mudaram para o Bronx ape-
nas para colocar os filhos na DeWitt Clinton High,
uma escola secundária só para meninos, em sua
maioria judeus, onde as exigências para admissão
eram severas. Era a escola mais competitiva da ci-
dade, e de onde saiu um número extraordinário de
intelectuais e artistas de sucesso: a reputação de
Mortimer Adler, Edward Bernays, Lionel Trilling,
Richard Rodgers e até mesmo de Fats Waller ron-
dava os meninos que galgavam seus amplos de-
graus. Os garotos do Bronx alcançavam a maiorida-
de usando armadura sobre os sentimentos e lâminas
cortantes no cérebro. Tomavam os trens para Ma-
nhattan, ao sul, cheios de expectativas. Quando a
onda dos quadrinhos estourou de repente sobre
Nova York, eles estavam prontos para surfar nela.
Mort Weisinger, Julie Schwartz, Bob Kahn,
Will Eisner e Bill Finger eram apenas cinco entre
as centenas de garotos do Bronx que adoravam
quadrinhos e pulps e que imaginaram seu futuro no
mundo da escrita e da arte. Todos nasceram entre
1914 e o começo de 1917, com cerca de dois anos
de diferença em relação a Jerry Siegel e Joe Shus-
ter. Assim como Jerry e Joe, todos cresceram falan-
do inglês em casa; nenhum deles via muita utilida-
de na religião ou na tradição, e todos se definiam
242
claramente como americanos. “Eu sabia que era ju-
deu da mesma maneira como qualquer americano
sabe que é irlandês-americano ou ítalo-americano”,
disse Eisner. “E isso me influenciou por ter cresci-
do ouvindo as histórias contadas pelas famílias ju-
dias, mas nunca pensei no fato de ser judeu quando
fazia meu trabalho.” Assim como Jerry e Joe, esses
garotos acreditavam em sua capacidade e no direito
de criar o próprio futuro. Alguns deles acabariam
atingindo justamente o futuro que os dois rapazes
de Cleveland vislumbraram mas não conseguiram
manter.
Mort Weisinger era um garoto enorme. As pri-
meiras descrições o classificam como genial, as
mais tardias como dominador. Adorava rir e cum-
primentar ruidosamente os amigos, assim como
adorava controlar as conversas com sua voz trove-
jante, suas mãos enormes em constante movimento
e seu torso sempre um pouco inclinado à frente. Na
maior parte do tempo, usava a risada, as piadas alu-
cinadas e a autoconfiança para dominar uma sala,
mas também guardava muita raiva dentro dele, e
sabia como usá-la. O pai era um fabricante de cal-
çados bem-sucedido que queria ver o filho formado
em Medicina. Mort não queria ser médico. Adorava
revistas. Era mais um daqueles garotos de 12 anos
de idade frustrados e isolados que haviam se apai-
xonado pela Amazing Stories de Gernsback no final
dos anos 1920. Logo estava na linha de frente do
243
fandom nova-iorquino; ofereceu uma sala da enor-
me casa dos pais para abrigar os encontros mensais
do que eles denominaram de Scienceers e lançou a
revista The Time Traveller com seus amigos Julius
Schwartz, Alan Glasser e Forrest Ackerman.
Mort sentia no mundo da ficção científica um
potencial que não conseguia vislumbrar na compe-
tição acadêmica, e muito menos em casa. Ao entrar
na adolescência, teve brigas terríveis com o pai
porque se recusava a jogar fora suas revistinhas ba-
ratas para se concentrar nos exames, enquanto o
pai, teimoso, insistia para que ele fizesse faculdade
de Medicina. No fim, o pai lhe disse que ele nunca
seria nada. Mort passaria o resto da vida lutando
raivosamente para provar que seu pai se enganara.
Chegou inclusive a dar um golpe no seu fã-clube,
que resultou em dois grupos reivindicando para si o
nome de Scienceers. Obter a lealdade de seus pares
importava, e muito, para Mort.
Seu mais fiel seguidor era Julie Schwartz, de
uma feiúra épica, com um narigão pontudo, dentes
saltados, testa altíssima e óculos de armação trans-
parente sem o aro na parte de baixo. Ele e Mort for-
mavam uma espécie de dupla Mutt e Jeff, com
Mort sempre tomando a dianteira em qualquer con-
versa, enquanto o barítono conciliatório de Julie fa-
zia piadas, armava trocadilhos e acalmava os ner-
vos dos que achavam Mort irritante. Costumavam
ir juntos a Manhattan, para as raras palestras que
244
Hugo Gernsback e outros experts concediam a seus
fãs mais leais. E funcionavam como colunistas de
fofocas para a Time Traveller; eram uma espécie de
Walter Winchell e Ed Sullivan do fandom. Forneci-
am fofocas até para a Science Fiction de Jerry Sie-
gel.
Enquanto Julie parecia se contentar em ser ape-
nas um garoto engraçado e se divertir, Mort tinha
gana de subir na vida. E viu na escrita o seu cami-
nho. Escrevia qualquer coisa: charadas para alma-
naques, falsas histórias edificantes, dicas de passa-
tempos, contos policiais, e também participava de
concursos de ensaios organizados pelos jornais.
Sua vida era pautada pelo Writer’s Digest e o Au-
thor and Journalist. Quando apenas escrever já não
era suficiente, encontrou novas maneiras de ali-
mentar sua reputação. Quando via um artigo de re-
vista assinado por um nome meio esquisito, dizia
que o autor era ele usando um pseudônimo. Depois
aproveitava o mesmo artigo para convencer um
editor qualquer a lhe encomendar um outro mais
curtinho, aí copiava alguma coisa de uma revista e
entregava como sendo de sua própria autoria. De-
pois de estabelecer uma reputação, começou a pro-
por aos amigos dividir o dinheiro com eles se o dei-
xassem publicar o que escreviam sob seu próprio
nome. Assim que os artigos ou contos eram publi-
cados, ele passava a dizer para qualquer um, menos
para os autores verdadeiros, que o texto era dele.
245
Seu grande amigo Julie costumava dizer que no tú-
mulo de Mort deveriam gravar a seguinte inscrição:
“Here Lies Mort Weisinger — As Usual” (Em in-
glês, lie pode significar, entre muitas outras coisas,
mentir ou jazer. “Aqui jaz / Aqui mente Mort Wei-
singer — como sempre”).
Quando tinha apenas 18 anos, Mort armou uma
grande jogada. Poucos escritores se davam ao luxo
de ter um agente literário no sofrido mercado da
ficção pulp e, no de ficção científica, nem pensar.
Havia três revistas que publicavam o gênero, todo
mundo conhecia todo mundo e os autores já estabe-
lecidos, na verdade mais fãs do que negociantes,
em sua maioria erguiam as mãos para o céu por es-
tarem indo tão bem quanto estavam. Mort entretan-
to viu nesse nicho uma oportunidade de ganhar di-
nheiro e influência e convenceu Julie a entrar como
parceiro num negócio chamado “Solar Sales Servi-
ce”. Eles já se correspondiam com escritores que
moravam fora de Nova York: Edmond Hamilton
em Ohio, Stanley Weinbaum em Wisconsin, Earl e
Otto Binder em Michigan. Ofereceram seus servi-
ços a eles, prometendo não cobrar comissão até ter
provado sua utilidade. Em seguida Mort procurou
T. O’Connor Sloane, um cientista aposentado já
idoso que fora colocado à frente da Amazing Stori-
es por um editor desavisado, e convenceu o homem
de que representava a nata dos escritores de ficção
científica e que poderia fazer com que eles produ-
246
zissem aquilo que o mercado queria. Em seguida,
foi falar com Charles Hornig, o jovem editor que
Hugo Gernsback acabara de contratar para cuidar
da Wonder Stories, e disse a Charles que pegaria
todos os escritores dele e levaria para a Amazing a
menos que a Wonder comprasse tanto material dele
quanto a outra revista. Depois disso, aproximou-se
de F. Orlin Tremaine, da Astounding, e disse que
estava com as outras duas revistas na mão. Por fim,
voltou a entrar em contato com os escritores, dando
sugestões de pauta e prometendo vendas. Mort e
Julie tinham acabado de se tornar os primeiros
agentes literários num campo em que nem sequer
se sabia da necessidade deles.
No entanto, quando apareceu coisa melhor,
Mort não hesitou em largar a agência e seguir seu
caminho. Tendo escutado rumores de que Gerns-
back estava pensando em vender a Wonder Stories
para a editora de Ned Pines, em virtude de dificul-
dades financeiras, ligou imediatamente para o edi-
tor-chefe de Pines para perguntar quem seria o
novo editor da Wonder. O editor-chefe respondeu
que estava pensando em manter Charles Hornig no
emprego. Mort deu risada. Hornig era apenas um
adolescente, um fanzineiro. Era por isso que a
Wonder Stories estava indo pro buraco. O que
aquele moleque sabia a respeito do mercado atual
de ficção científica? Mort, por sua vez, era um pro-
fissional. Conclusão: Charles Hornig perdeu o em-
247
prego; Mort Weisinger assumiu a editoria. E essa
não seria a última vez que iria provar que não se in-
timidava diante de gente ainda mais bem estabele-
cida, demonstrando ao mesmo tempo que não tinha
o menor escrúpulo em acabar com a carreira dos
outros; Jerry Siegel viria a conhecer essas suas qua-
lidades muito bem. Mort deixou a Solar Sales para
Julie Schwartz. Era, aos 20 anos, editor da revista
mais respeitada do ramo.
Mas a revista já não estava merecendo o mesmo
respeito quando Mort saiu. De início os fãs ficaram
animados ao ver que alguém do meio deles assumi-
ra a tocha que Hugo Gernsback não podia mais car-
regar, mas não demoraria muito para descobrirem
que Mort não tinha mais qualquer interesse em con-
tinuar sendo parte da turma. Ned Pines publicava
Thrilling Mistery, Thrilling Love, Thrilling Adven-
ture e outras vigorosas bobagens do tipo e, desde o
momento em que entrou no escritório, Mort Wei-
singer mostrou a que turma pertencia. Avisou seus
escritores que gostaria de um pouco menos de ciên-
cia, futurismo e idéias e mais criaturas pavorosas,
moças bonitas e armas de raios disparando a torto e
a direito. Não haveria mais capas com aquelas be-
las paisagens futuristas desenhadas por Frank R.
Paul. Mort sabia o que assustava os garotinhos e fa-
zia ferver o sangue de seus irmãos mais velhos; e
deu ao mundo o “monstro de olhos de inseto” e a
mocinha sideral de shortinho e bustiê. O lema da
248
nova Thrilling Wonder Stories era “Mais estranho
que a verdade”, e toda história de capa vinha com
uma frase adicional: “Uma novela de catástrofe en-
sandecida”, “Uma novela de destruição universal”,
“Uma história de forças vitais sufocadas”. Os títu-
los dos contos publicados nas novas edições deixa-
vam poucas dúvidas quanto ao novo tom: “Os la-
drões de cérebro de Marte”, “A vingança do robô”,
e, da pena de Earl e Otto Binder, “A ameaça dos
hormônios”. Mort chegou até mesmo a incluir algu-
mas tiras em quadrinhos na revista.
Os antigos fãs protestaram, mas as vendas au-
mentaram. Em 1938, Mort foi encarregado de lan-
çar uma segunda revista, a Startling Stories. Ele es-
tava chegando ao topo da pirâmide dos pulps quan-
do explodiu a febre dos quadrinhos.
Robert Kahn nascera no Bronx em 1916, um
ano depois de Mort e Julie. Era tido na DeWitt
Clinton como um garoto agarrado à barra da saia da
mãe. Ela aparecia às vezes para acompanhá-lo até a
escola, ou então para pegá-lo na saída. Se por acaso
ele espirrasse, pelo menos era o que diziam seus
colegas de classe, a mãe não o deixava ir à escola.
Corriam boatos de que ele fazia xixi na cama, mas
talvez fosse apenas uma calúnia fácil de lançar con-
tra um garoto magrinho, sensível, de olhos enor-
mes, que preferia a companhia das meninas à dos
meninos. O pai era gráfico do New York Daily
News e incentivava o gosto de Bob pelo desenho.
249
Como artista, era um imitador de talento, melhor na
hora de agradar os adultos do que na de retratar al-
guma realidade interior. Aos 15 anos, ganhou um
prêmio por sua imitação de uma tira de jornal cha-
mada Just Kids, acontecimento tomado por ele
como sinal de seu destino: ser um astro das tiras.
Aos domingos, o pai entrava em casa com o suple-
mento de quadrinhos debaixo do braço, ainda chei-
rando à tinta, e Bob era o primeiro garoto da vizi-
nhança a ter a chance de lê-lo. Sentava e copiava
todos os quadrinhos. “Eu conseguia copiar tudo”,
contou. “Deixava todo mundo impressionado.”
Já mais crescidinho, Bob percebeu que fora
contemplado com outros dons para chamar a aten-
ção. Era bonito. Apesar de ser magro feito um cani-
ço, tinha um nariz reto e fino, um sorriso maroto
com covinha dos lados, sobrancelhas de desenho
perfeito e olhos que faziam preguinhas quando sor-
ria. Costumava se comparar a Robert Young — um
dos xodós da MGM, que sempre interpretava o fi-
lho despreocupado do plutocrata emproado —, e
cultivava esse estilo. Se as meninas davam risinhos
quando ele piscava os olhos, ensaiava algo ainda
melhor na frente do espelho. E logo correram boa-
tos na escola masculina: se quisesse sair com as ga-
rotas, Kahn era o sujeito que se devia conhecer, —
desde que estivesse disposto a aguentar as bazófias,
as vaidades e as óbvias mentiras dele. “Éramos su-
postamente amigos porque éramos ambos artistas”,
250
declarou um de seus colegas de classe, Will Eisner.
“Mas na verdade era só para podermos sair em du-
plas, e ele sempre me arrumava as garotas mais lin-
das. Percebi de repente que não estava indo a lugar
nenhum com aquelas meninas — nem o Bob. Não
dava para ir até o fim com as meninas bonitas. Re-
solvi que dali em diante começaria a sair com as
garotas medianas, que deixavam a gente chegar a
algum lugar.” E assim seria sempre com os dois:
Eisner queria ação, Kahn a aparência de ação.
A família de ambos ajudou a pagar os estudos
em escolas de arte de Manhattan; Bob foi para a
Commercial Art Studio, no edifício Flatiron. Will
foi para a Art Students League, na Times Square.
Assim como o pai de Bob, o pai de Will também
era um artista que se viu obrigado a esquecer suas
aspirações. Pintor vienense, já fora aprendiz de
bons mestres, trabalhara na restauração de igrejas
católicas, emigrara para os Estados Unidos pensan-
do em trabalhar na pintura de cenários, mas fora
forçado pela Depressão a ganhar a vida pintando
móveis. Ele levava o pequeno Willie ao Museu
Metropolitano, incentivava sua paixão por H. Rider
Haggard e O. Henry e jogava fora seus pulps para
impedir que o filho se viciasse naquelas porcarias.
Adorava as experimentações que Willie fazia em
xilogravura e ponta-seca e lhe comprava livros ca-
ríssimos, ilustrados por Rockwell Kent.
A mãe de Willie no entanto era filha de um
251
mascate da Romênia que passou a vida inteira es-
condendo o fato de ser analfabeta. “Tinha a esper-
teza dos camponeses”, disse seu filho, “mas nenhu-
ma sofisticação, nenhuma compreensão do que vi-
nha a ser cultura”. Ela se queixava do marido, dizia
que ele era incapaz de manter um emprego, e em-
purrava Willie para o trabalho. Sessenta anos mais
tarde, num trabalho autobiográfico intitulado No
Coração da Tempestade, Willie diz que a mãe fala-
va o seguinte: “Se seu pai não fosse tão metido à
besta, iria pintar parede, que é o lugar dele.” Como
eles vieram a se casar Will nunca entendeu, mas
carregou consigo o conflito entre arte e dinheiro a
vida toda.
A Art Students League ardia em labaredas ar-
tísticas. A batalha era entre os esquerdistas da insti-
tuição, que queriam contratar o ácido caricaturista
alemão George Grosz, e a velha-guarda, que o con-
siderava perigoso demais. Entre uma ala e outra, os
alunos escolhiam seu lado. Will Eisner porém con-
tinuou interessado apenas em aprender a desenhar
quadrinhos. Isso era em parte paixão das mais ho-
nestas — ele adorava os quadrinhos de aventura de
Hal Foster e Alex Raymond — , mas tinha também
sua carga de pragmatismo dos bons. Garotos judeus
sem muito preparo sabiam que tinham um caminho
bem difícil pela frente se quisessem se tornar ilus-
tradores de “alta classe”, não só devido aos precon-
ceitos dos editores como também por causa dos
252
custos para obter treinamento, para iluminar o estú-
dio e pagar o modelo vivo indispensável para aque-
le perfeito acabamento. “Os quadrinhos continua-
vam sendo considerados lixo”, disse Eisner, “de
modo que era muito mais fácil entrar para o ramo;
do mesmo jeito como antes era mais fácil entrar no
negócio de roupas ou ser camelô.”
Bob Kahn via as coisas de modo parecido. Ado-
rava os cartunistas da Judge e da College Humor,
mas achava que não conseguiría vender seu traba-
lho com um nome tão abertamente judeu, de modo
que assumiu o nome de “Bob Kane” não só na vida
profissional como também na privada. Deu duro
para chegar a uma assinatura que chamasse a aten-
ção, um quadrado grande dentro do qual, gravadas
em negrito, estavam as letras de seu novo nome,
com um “O” voluptuoso bem alto. Às vezes ele e
Will se cruzavam, de portfólio debaixo do braço
para ser apresentado a algum editor ou diretor de
arte, Will abrindo caminho entre hordas de turistas
e desocupados, Bob avançando pela Quinta Aveni-
da, por entre homens de terno, a caminho das casas
editoriais, dos syndicates e das agências de publici-
dade que pululavam no centro de Manhattan. Pas-
savam horas sentados em saletas de espera, aguar-
dando para mostrar o que tinham e olhando discre-
tamente para desenhistas mais velhos que chega-
vam depois e eram atendidos primeiro. Eles deviam
formar uma dupla surpreendente: Will de ombros
253
largos e costas retas, cabelos ondulados e fartos
penteados para trás, nariz aquilino; Bob sorridente,
de covinhas, flertando com a recepcionista. Ne-
nhum dos dois conseguiu muito mais que rejeição
pura e simples.
Bob foi obrigado a pegar um emprego na con-
fecção de roupas do tio. “É difícil expressar com
palavras o desprezo que eu tinha por aquele tipo de
coisa”, disse ele, “porque sabia, lá no fundo do meu
coração, que aquele não era meu destino.” No fim,
acabou arranjando um trabalho no estúdio de ani-
mação de Max Fleischer, auxiliando na arte-final e
fazendo os desenhos de “ligação” (operação cha-
mada “inbetweening”) dos movimentos quadro a
quadro da animação.
Will arrumou emprego para limpar as prensas
de uma gráfica no extremo sul de Manhattan. E pe-
gava qualquer bico de desenhista que surgisse —
ou quase qualquer um. Uma das atividades parale-
las da gráfica para a qual trabalhava era imprimir
revistinhas pornográficas de oito páginas, baratas e,
detalhe, ilegais, protagonizadas à revelia por gente
famosa e personagens de quadrinhos. O mafioso
que distribuía esses gibis ofereceu dinheiro para
que Will desenhasse alguns. “Esse foi um dos pio-
res conflitos morais da minha juventude”, afirmou
ele. Mas acabou recusando.
Então houve o encontro de Will e Bob, ambos
com 19 anos, numa rua do centro de Manhattan.
254
Bob falou que estava organizando um sindicato de
cartunistas e convidou Will para o encontro. Will
riu da idéia de que um bando de cartunistas autôno-
mos conseguissem algum dia se organizar; era bem
óbvio que Bob estava apenas querendo aparecer,
aos olhos dos editores, como um encrenqueiro em
potencial, obrigando-os a aumentar de 5 para 6 dó-
lares o pagamento por tira para mantê-lo calado. E
o que Will queria era trabalho, qualquer trabalho,
de desenhista. Bob então contou que tinha vendido
alguns quadrinhos de “Hiram Hick” para uma re-
vista chamada Wow, What a Magazine! Will foi di-
reto para a Quarta Avenida mostrar seu trabalho.
Nos anos 1930, boa parte do capital empregado
no lançamento de editoras judaicas ainda saía da in-
dústria do vestuário, e o sistema de produção des-
sas servia como modelo para pequenas editoras.
Nada porém misturava tanto os limites entre roupas
e letras quanto a Wow, que era feita numa fábrica
de camisas. Um cartunista fracassado chamado Sa-
muel “Jerry” Iger convencera um camiseiro a ban-
car uma revista voltada para garotos e ceder um es-
paço na frente de sua fábrica para servir como es-
critório da editora. Um dos artistas que trabalharam
para Iger chamou-o de “promotor e operador”. Iger
era mais um daqueles candidatos a donos de syndi-
cates que, como o major Wheeler-Nicholson, acha-
vam que se conseguissem juntar os talentos baratos
certos com os ávidos editores certos podiam ficar
255
ricos. Iger era um sujeito baixote, que fedia a cha-
ruto, já estava na casa dos 30, ainda buscava uma
chance de subir na vida e falava como um figurão e
galã.
Will Eisner não carregava grandes esperanças
ao tomar o elevador para chegar ao escritório da
Wow, mas, como ele mesmo disse, “eu estava fa-
minto. Para falar a verdade, estava realmente fa-
minto.” E lá foi ele, portfólio debaixo do braço, fa-
lar com Iger, que tentou dispensá-lo de imediato.
Disse que precisava ir resolver um problema com
os gráficos. Will não desistiu. Saiu do escritório
junto com Iger e o acompanhou pela Quarta Aveni-
da, dizendo: “Por que não dá só uma olhada nos
meus trabalhos enquanto a gente vai indo?” E aca-
bou fazendo o caminho todo. A gráfica devia ser
das mais chinfrins, daquelas que abrem as portas
num dia e fecham no outro, porque o problema que
estava afetando o trabalho era algo que Will já ti-
nha aprendido a resolver na gráfica onde trabalha-
va. “Será que alguém aqui tem um brunidor?”, per-
guntou o rapaz. E os gráficos fizeram uma rodinha
em volta, pasmados, enquanto o adolescente lustra-
va as chapas que rasgavam o papel e resolvia o pro-
blema. “Quem é o garoto?”, um deles perguntou.
“E o meu novo homem da produção”, respondeu
Iger.
Na verdade, Will conseguiu apenas uns poucos
trabalhos na Wow. Um deles foi para fazer um ca-
256
çador de tesouros, cuja inspiração veio de H. Rider
Haggard, e outro foi aventura de capa-e-espada
com pretensões de se equiparar aos romances de
Rafael Sabatini e ter a mesma grandeza nos traços
de N. C. Wyeth. Tratava-se de um trabalho até que
muito bom para um garoto, e mais maduro no uso
que fazia da página e do formato de páginas múlti-
plas que qualquer outra coisa publicada naquele
tempo pela More Fun ou pela New Adventure do
major Wheeler-Nicholson. Will pensou que estives-
se a caminho de alguma coisa — até que o camisei-
ro resolveu que já tinha perdido dinheiro suficiente
com a Wow e fechou a torneira. Ele e Iger estavam
de novo desempregados.
Foi por volta dessa época que o empreendedor
que havia em Will Eisner despertou. Ele sabia que
o negócio dos quadrinhos estava crescendo, sabia
que as revistas estavam usando cada vez mais as ti-
ras para preencher espaço de forma barata, assim
como sabia que os editores quase nunca tinham
como pagar um funcionário encarregado apenas da
produção ou da descoberta de talentos. Will ligou
para Jerry Iger. “Vamos conversar”, disse ele. “Te-
nho uma idéia.”
Almoçaram na frente do Daily News, onde o pai
de Bob Kane trabalhava. Will propôs o negócio. As
editoras com certeza iriam dar o devido valor a
uma parceria entre o desenhista e o vendedor-edi-
tor, uma parceria capaz de fornecer páginas de his-
257
tórias em quadrinhos de qualidade confiável, pron-
tas para rodar. No fundo era trabalho por empreita-
da, o mesmo sistema que mantinha viva a indústria
do vestuário de Nova York. Iger falou que custaria
dinheiro começar um negócio daqueles, e dinheiro
era o que ele não tinha. “Minha segunda mulher pe-
diu o divórcio e está me arrancando o couro.” E en-
tão Will bancou o figurão. Estava com 15 dólares
no bolso, dinheiro que acabara de ganhar por um
anúncio. Continuava morando na casa dos pais e
não precisava pagar aluguel. Havia muitas salas va-
gas no centro de Manhattan, nos muitos prédios de
escritórios erguidos com base nas expectativas dos
anos 1920 e esvaziado pela realidade dos anos
1930. Will descobriu um desses, na 41st Street com
a Madison Avenue, que tinha saletas para alugar
por 5 dólares ao mês sem maiores perguntas ou exi-
gências, e lá foram eles, se juntar aos bookmakers e
aos vigaristas. Iger começou a oferecer seus servi-
ços a editoras, referindo-se a si mesmo como “S.
M. Iger”, à maneira de W. R. Hearst. Dizia contar
com uma equipe de cinco artistas, mas esses cinco
eram Will sob diversos pseudônimos. Will insistiu
para que chamassem a empresa de “Eisner & Iger”,
porque o nome do dono da grana devia sempre vir
em primeiro lugar, ainda que fossem apenas 15 dó-
lares.
Um dia Iger apareceu com um importante con-
tato no bolso. Através daquela rede invisível de
258
pessoas que trabalhavam com escambo de favores
por toda Nova York naqueles anos, ele havia cruza-
do com um sujeito chamado Joshua Powers, que di-
zia já ter sido agente secreto e começara a ganhar
dinheiro com os contatos feitos no exterior. Powers
havia comprado os direitos autorais para o exterior
de tiras que iam de Mutt and Jeff a Dick Tracy, e
oferecia pacotes com esses quadrinhos para a Grã-
Bretanha, Austrália e América do Sul. No entanto,
naquela quebradeira global, os jornais estrangeiros
não tinham como pagar pelos quadrinhos, de modo
que Powers trocava as tiras por espaço em branco
que ele então revendia para anunciantes norte-ame-
ricanos. Tudo funcionou muito bem até que um dos
sócios de Powers rompeu com ele e foi embora
com os direitos autorais das tiras para a Grã Breta-
nha. Powers foi obrigado a se virar para encontrar
novas tiras originais e baratas — algo para a o qual
empresa de Eisner e Iger veio bem a calhar.
E, com aquele dinheiro entrando, os dois bola-
ram sua própria variante do esquema. Contrataram
dois vendedores — dois “tagarelas divertidos” nas
palavras de Eisner — para percorrer os jornais das
pequenas cidades do Nordeste dos EUA oferecendo
uma página de quadrinhos com um espaço em
branco para anúncios no pé da página; feito isso,
iam pessoalmente falar com os comerciantes locais
até encontrar alguém que comprasse aquele espaço
publicitário pelo preço da página inteira de quadri-
259
nhos. Os jornais conseguiam as tiras de graça, en-
quanto Eisner e Iger ganhavam seu dinheiro, des-
contada a comissão da venda.
Depois disso, colocaram um anúncio no jornal
convocando jovens artistas dispostos a passar o dia
inteiro sentados num estúdio desenhando histórias
em quadrinhos por 15 dólares por semana. Esses 60
dólares por mês era o mínimo para a sobrevivência
de um rapaz, isso se ele ainda morasse na casa dos
pais ou dividisse acomodações com outros jovens;
num bom mês, Jerry Siegel e Joe Shuster ganha-
vam cinco vezes essa quantia. O número de respos-
tas mostrou uma quantidade enorme de jovens ar-
tistas desesperados para encontrar uma porta aberta
e que, inspirados pelas histórias em quadrinhos, al-
mejavam ser o próximo Hal Foster ou Milton Ca-
niff. Eisner pôde pegar os melhores, garotos que ti-
nham cursado o Pratt Institute ou a School of In-
dustrial Art. Quando Siegel e Shuster lhe manda-
ram dois trabalhos chamados Spy e Superman, Will
mandou as duas histórias de volta com um bilhete
que dizia: “Vocês ainda não estão prontos.” (Com o
que Eisner entrou para o clube dos que podiam
olhar para trás, para aquela grande oportunidade
perdida, e rir de sua falta de faro.)
Os nomes dos jovens que ele contratou durante
os dois anos seguintes lembravam a relação de per-
sonagens num daqueles filmes antigos de guerra,
que celebravam o caldeirão de povos e culturas que
260
era a América: Klaus Nordling, Stanley Pulowski,
Chuck Cuidera, Chuck Mazoujian, Reed Crandall,
Nick Viscardi, Bob Fujitani, “Tex” Blaisdell. Não
havia nenhuma mulher entre os artistas. Assim
como no território da ficção científica, o mundo
dos quadrinhos de aventura era o próprio clube do
Bolinha, do qual as mulheres só participavam como
mães e namoradas. Mas ali vigorava um ar mais
operário e socialmente normal: aqueles caras pelo
menos tinham namorada.
Nos primeiros tempos, Eisner desenvolvia as
idéias, criava os personagens, às vezes fazia algu-
mas páginas e depois, passava para o pessoal do es-
túdio. Em geral um artista fazia um esboço a lápis e
depois entregava a outros que o finalizavam, fazi-
am as molduras dos quadrinhos e as letras à mão.
Havendo no que trabalhar, os garotos ficavam o dia
todo, e parte da noite também, lado a lado em cima
das pranchetas, tagarelando, contando piada, tro-
cando pincéis e juntando trocados para comprar
cerveja e cigarros. Aprenderam a desenhar e a tra-
balhar em grupo. Aprenderam que Mort Meskin às
vezes ficava parado diante da prancheta durante ho-
ras, numa ansiedade tremenda, sem saber por onde
começar, até que alguém se aproximava dele e ra-
biscava algumas linhas soltas no papel. Com essas
linhas para juntar, as mãos de Meskin começavam
a se mover e conseguiam esculpir aquelas suas fi-
guras fortes e expressivas. Aprenderam a suportar
261
os queixumes de Stan Pulowski por causa da “ju-
deusada” dizendo que um polaco não podia mesmo
saber coisa nenhuma (e era Pulowski, não Meskin
ou Fine, que assinava “Bob Powell”). Muitas vezes,
se reuniam em volta de Lou Fine só para vê-lo de-
senhar, para ver aquelas linhas magnificamente
fluidas irem surgindo de seu pincel, trazendo à vida
homens de uma graça sinuosa e de uma leveza ágil
que seu corpo afetado pela poliomielite jamais iria
conhecer.
Aos 20 anos, Eisner era mais novo que a metade
dos rapazes contratados, mas era também o protóti-
po do patrão: exigente e decidido, tirava o máximo
de seus funcionários ao mesmo tempo em que ins-
pirava lealdade. Os garotos diziam que faziam “tra-
balho escravo” para o estúdio — e nem sempre es-
tavam brincando. Todos executavam um bom tra-
balho, e em quase todos os gêneros: policiais, espi-
ões, homens do espaço sideral, piratas, mágicos e
uma versão feminina de Tarzan chamada Sheena, a
Rainha da Selva. Eisner estava ganhando dinheiro
com eles. Saíra da casa dos pais e alugara um apar-
tamento no Tudor City, um conjunto de prédios
modernos, de classe média, a poucos metros do es-
túdio.
Por volta do início de 1938, os comic books ain-
da eram um negócio de rendimentos modestos, mas
em óbvia expansão. Harry Donenfeld estava dando
o grande impulso em suas revistas, e as vendas já
262
haviam ultrapassado a casa de 100.000 exemplares
ao mês, ajudadas por alguns pulps de razoável su-
cesso. Os editores das revistas The Comics Magazi-
ne e Detective Picture Stories expandiam sua linha
de publicações. E Jerry Iger tinha acabado de entrar
num acordo com a Fiction House, uma das menores
editoras de pulps do mercado, para produzir a Jum-
bo Comics. No formato tablóide, a revista seria pu-
blicada em preto-e-branco com material já criado
por Eisner em seu estúdio. Sheena e seu maiô de
pele de leopardo ocuparia tanto espaço na capa
quanto Peter Pupp; o pessoal ainda não conhecia o
mercado, mas sabia que ele existia.
O criador de Peter Pupp, e também um fornece-
dor regular de quadrinhos para Eisner, era Bob
Kane. Porém Kane não trabalhava em estúdio junto
com outros artistas. Não era homem de jogar em
equipe, sobretudo se não fosse o capitão. Aquela al-
tura, ele se dizia parecido com Tyrone Power: me-
nos riso e mais ataque. Tinha conseguido fazer su-
cesso suficiente para ver seu nome impresso, mas
ainda não encontrara uma posição estável e andava
querendo ter uma boa tira exclusiva. Começou a
vender tapa-buracos humorísticos de detetives par-
ticulares para Vin Sullivan, que saíam nas revistas
do major Wheeler-Nicholson, mas seu desejo era
desenvolver idéias para quadrinhos que tivessem
mais que uma página ou duas. Mas o ponto fraco
de Bob estava justamente na história. Como Eisner
263
dizia: “Bob não era exatamente um intelectual.”
Um belo dia, ele conheceu Bill Finger. Bob dis-
se que foi num “coquetel”; só nos resta imaginar os
pais de algum garoto indo viajar e a turma apare-
cendo com gim e cerveja. Seja como for, Bill gos-
tava de beber. Era outro ex-aluno da DeWitt Clin-
ton, formado dois anos antes de Bob, inteligente,
articulado, lido e depressivo. Queria ser escritor de
verdade, queria ser conhecido por seus romances e
contos, embora também gostasse do melhor que se
publicava nos pulps e estivesse disposto a escrever
o que rendesse dinheiro, tudo para sobreviver como
escritor. Ele havia se casado cedo e, aos 24 anos de
idade, já tinha um filho para sustentar. Quando co-
nheceu Bob, vendia sapatos. Quando Bob lhe disse
que era um desenhista de sucesso, que precisava de
ajuda com o texto e que pagaria pela ajuda, Finger
agarrou mais que depressa a oportunidade. Bob era
um sujeito agradável, o trabalho parecia divertido e
era dinheiro que ele recebería escrevendo. Bill Fin-
ger aceitou, sugerindo argumentos e redigindo tex-
tos em troca de uma parcela dos ganhos, enquanto
Kane lidava com os editores e ficava com todos os
créditos. Finger era uma pessoa cordata e, pelo res-
to da vida, sofreria por causa disso.
Com Finger na redação dos textos, Kane come-
çou a vender material regularmente para Vin Sulli-
van. Rusty & His Pals e Clip Carson eram pasti-
ches de Terry and the Pirates publicados pela New
264
Adventure e pela Action Comics. Nascia assim uma
parceria — embora toda a produção continuasse
saindo com um crédito só: “Bob Kane”.
Na primavera de 1938, esses cinco garotos do
Bronx tinham entre 21 e 24 anos. Estavam ganhan-
do um dinheiro razoável com gibis e revistas; e for-
mando também uma comunidade em que havia al-
guns mais bonitões que outros, alguns melhores
para negociar que outros, mas todos profundamente
comprometidos com fantasias malucas transpostas
para o papel, todos altivamente desdenhosos de
grande parte do que ocupa a mente da maioria dos
rapazes a partir do colegial. Eles já tinham galgado
um degrau a mais que os pais na escada americana
— se não em termos de dinheiro, pelo menos em
auto-satisfação e glamour.
E então o homem de malha azul colocada ao
corpo chegou e mudou tudo.

POR CAUSA DO SISTEMA de consignação,


as editoras só tinham como saber quantas revistas
haviam sido vendidas meses depois de enviá-las às
bancas. Quando Vin Sullivan colocou o Super-
Homem nas capas do primeiro e do sétimo número
da Action Comics e, nos outros, imagens elegantes
de pára-quedistas, soldados da polícia montada e
exploradores da selva, estava apenas tentando adi-
vinhar o que iria atrair a atenção da garotada. Mas
para isso as editoras contavam apenas com a infor-
265
mação fornecida pelos comerciantes locais. Até o
quarto e o quinto número chegarem aos pontos de
venda, no final do verão de 1938, já havia rumores
de que a Action vendia mais rápido que todos os
outros gibis. Harry Donenfeld mandou sua equipe
fazer uma pesquisa informal entre vendedores e
compradores de quadrinhos, e o pessoal voltou com
a notícia de que os garotos estava pedindo “a que
tinha o Super-Homem”.
Foi mais ou menos por essa época que o Super-
Homem surgiu de fato como personagem nas pági-
nas impressas. A característica do “corta e cola” de
suas aventuras continuou depois da estréia. A Acti-
on número dois trazia uma história bastante pareci-
da com uma que fora usada na Detective Comics do
ano anterior; alguns dos quadrinhos pareciam de-
calcados de outra fonte qualquer, e em alguns era
evidente que a capa nas costas do Super-Homem
fora desenhada para outro personagem. Na revista
do mês seguinte, havia a história de um dono de
mina corrupto em que figurava não o Super-
Homem, mas Clark Kent disfarçado, como se um
punhado de quadrinhos sobre um repórter defensor
da lei tivessem sido juntado às pressas para montar
uma história “do Super-Homem”. A quarta história
já foi um pouco mais elaborada, mas também não
continha muitas imagens do herói a caráter; o ponto
alto era uma partida de futebol americano em que
se podiam perceber ecos de um capítulo do Gladia-
266
tor de Philip Wylie, e que pode ter saído de uma
versão anterior do “Super-Homem”.
E então, de repente, na quinta edição, surge o
Super-Homem. “As linhas do telégrafo transmitem
ao mundo notícias de um tenebroso desastre! A re-
presa de Valleyho está ruindo sob a força de um
forte temporal!” “Kent! Eu preciso do Clark Kent
aqui!” “Ele não está na sala!” “Pois então vá pro-
curá-lo, Lois!” “Mas por que você não dá isso pra
mim?” “Não posso! E importante demais! Não é
trabalho pra uma garota!” “Não é trabalho pra uma
mulher, é? Estou começando a pensar que...”
“Clark Kent! Justamente quem eu procurava!” “Vai
me dizer que você está de fato contente em me
ver?” “E não é que estou? Queria que você fosse
cobrir uma notícia pra mim... Vá até a maternidade
do hospital municipal. Tem uma tal senhora Maho-
ney lá que está esperando sêxtuplos!” “Mas que no-
tícia! Obrigado, Lois! Você é muito gentil por dei-
xar isso pra mim!” “Alguém está querendo lhe pas-
sar a perna, companheiro! Aqui não tem ninguém
com o nome de Mahoney.” “Mas que estranho! Es-
pera um pouco! Será que por acaso a Lois está que-
rendo me enganar?” “Seu burro, idiota! A maior
notícia dos últimos tempos e você perde seu tempo
numa maternidade! Kent! Pode passar no caixa!
Está despedido!” “Mas Kent tem outros planos! Ao
se ver sozinho, tira as roupas exteriores e surge ves-
tido como Super-Homem!” “Agora vamos cobrir
267
aquela notícia!”
Salta para o negrume da noite, atravessa a cida-
de e corre mais rápido que o trem em que Lois via-
ja. “Se Lois está achando que vai conseguir um
furo no meu lugar, está muito enganada!” Mas, ao
perceber o viaduto prestes a ruir, corre para segurá-
lo enquanto o trem passa trepidando lá no alto.
Chegando a Valleyho, Lois pega um táxi abandona-
do e se dirige para a represa avariada, onde o Su-
per-Homem, com muito esforço, mantém o concre-
to no lugar. “De repente, com um rugido imenso, a
vasta represa estoura... Com um salto, o Super-
Homem se põe acima da fúria turbulenta das
águas... mas Lois está bem no caminho da gigantes-
ca onda.” O Super-Homem avança, arranca Lois de
dentro do carro e ergue seu corpo lânguido. Depois
percebe que a grande enchente está a caminho da
cidade, “salta até o alto de um monte... dá um mur-
ro monumental num grande rochedo!... A avalan-
che de pedras preenche a brecha lá embaixo — in-
terrompendo e desviando a enchente para outra di-
reção, longe da cidade de Valleyho!”
“Você conseguiu! Você salvou todas aquelas
pessoas! Ah, eu seria capaz até de te beijar! Pen-
sando bem, eu vou te beijar!” “Senhorita! POR FA-
VOR!” “UAU! Mas que beijo!” “Um super beijo
para um super-homem!” “Agora chega de brinca-
deiras! Preciso levá-la até um lugar seguro — onde
eu também ficarei seguro!” Lois diz que o ama,
268
mas o Super-Homem já foi embora, com um aceno.
Em seguida, ele liga para o chefe e dá a notícia em
primeira mão. “Lois! Não foi muito bonito o que
você aprontou comigo! Mas continuo gostando de
você.” “E eu com isso? (Verme insignificante! Eu
mal posso olhar para ele, depois de ter estado nos
braços de um homem de verdade.)”
O Super-Homem de Shuster de repente explode
no espaço, a capa esvoaçando atrás, enquanto salta
e corre por cidades, mares e pela lua, num céu de-
serto. Suas figuras são simples, mas animadas, com
fisionomias expressivas. A dissimulada Lois, o ta-
garela Clark e o arrogante Super-Homem têm vida.
Os trens, as represas e as pontes de Shuster são ou-
sadas imagens do que havia de mais moderno nos
anos 1930. Ele define grandes espaços com curvas
amplas e campos abertos, depois coloca suas pesso-
inhas minúsculas ali. Seu Super-Homem é emocio-
nante não por ser um herói monumental inspirado
em Flash Gordon ou Tarzan, e sim por ser tão pe-
queno, colorido e bonitinho quanto o desenho de
um garoto, e no entanto, por algum milagre de po-
deres inimagináveis, é capaz de segurar um viaduto
e salvar um trem.
Esse ainda não é o Super-Homem que nós fica-
ríamos conhecendo. Ele não voa, apenas salta, não
tem visão de raio-x e só consegue segurar uma re-
presa “lutando feito um louco”. Mas o drama cata-
clísmico, o entusiasmo e o bom humor do Super-
269
Homem já estão ali. Isso era algo novo em matéria
de entretenimento. Sejam quais forem os antece-
dentes para os poderes, roupas ou origens do Su-
per-Homem que possamos encontrar em Edgar
Rice Burroughs ou em Doc Savage, no Fantasma
ou no Zorro, em Philip Wylie ou em Popeye, até
então nunca existira nada como ele. A mistura ator-
doante de pastelão, caricatura e perigo já é conheci-
da desde os tempos de Wash Tubbs de Roy Crane,
mas Crane nunca mergulhou tanto assim na mais
pura fantasia. Hollywood já produzira momentos
de tirar o fôlego com desastre naturais, e Douglas
Fairbanks nos permitira sentir alegria na liberação
física, mas nenhum deles oferecia algo equiparável
ao prazer imediato daquelas cores chapadas e vivas
e daquelas formas de uma simplicidade feroz. Era a
essência das mais fortes emoções extraída da mais
pura tolice.
Entretanto é surpreendente notar que até mesmo
essa história foi construída com quadrinhos fotoco-
piados de uma versão anterior. As letras e a grossu-
ra das linhas aumentam e diminuem de um quadro
para outro; as frases que as ligam foram escritas
por mãos diferentes; pelo menos a sequência da re-
presa parece ter saído de amostras enviadas para
possível inclusão numa tira dominical, ainda que o
material de Lois e Clark pudesse ser novo. Talvez
estejamos olhando aqui para aquele “personagem
de humor e aventura” mencionado nos rascunhos
270
de Jerry e Joe no auge de suas esperanças, ao final
de 1935. Essa talvez fosse a história em quadrinhos
que, “pelo simples vigor e poder da narrativa”, iria
conquistar o país como eles tanto haviam sonhado.
Com um certo atraso, a coisa parecia estar se con-
cretizando.
A grande peça que sempre falta em qualquer ar-
queologia da cultura juvenil é a opinião da própria
molecada da época. Será que existiram meninos de
10 e 11 anos de idade que, depois de descobrirem a
existência do Super-Homem no verão de 1938 cor-
reram para dizer aos amigos: “vocês têm que ler
isto”? A notícia teria se espalhado durante o recreio
na escola? Ou a descoberta teria sido particular, in-
dividual, na maior parte dos casos? Tudo o que te-
mos agora são os dados das vendas e as decisões
editoriais. Num período de nove meses, a Action
mais que dobrou seu volume de vendas mensais.
Mas outros gibis também começaram a vender
bem. A impressão é que o Super-Homem estava
sendo vendido a garotos que não tinham o hábito
de comprar gibis, e que depois a esses mesmos ga-
rotos começaram a experimentar outras revistas.
Em algum momento durante o ano letivo de 1938-
1939, nasceu a febre dos comic books.
Era um bom momento para o Super-Homem
chegar. Os garotos nascidos no final dos anos 1920
e início dos 1930 não conheciam a emoção de des-
cobrir como sendo seus novos meios de comunica-
271
ção ou novos gêneros: os garotos dez anos mais ve-
lhos tinham sido audiências pioneiras para progra-
mas de rádio, platéias para os primeiros filmes fala-
dos, leitores das primeiras tiras de aventura e apre-
ciadores tanto dos pulps mais barra-pesada como
dos contos de ficção científica. Mas uma economia
em crise não tinha como bancar novidades. No en-
tanto vinha surgindo algo que os adultos e os ir-
mãos mais velhos não conheciam, algo barato, co-
lorido e exótico. Essa era também uma geração
mais cética, criada com menos expectativas e numa
realidade mais dura. Os quadrinhos, os desenhos
animados e os programas de rádio haviam aumen-
tado o apetite dos americanos por heróis fantásti-
cos, mas ao mesmo tempo muitos adolescentes e
garotos precoces achavam Flash Gordon e compa-
nhia um tanto cômicos. O humor e o excesso de
Superman tornaram possível ao leitor dar risada
junto com os criadores e ao mesmo tempo sonhar
com a possibilidade de ter aquele mesmo poder.
Esse sempre foi o grande insight de Jerry e Joe:
você até podia desejar a invulnerabilidade e o po-
der, mas era preciso rir para não deixar que os ou-
tros vissem o quanto você desejava isso. O herói
que se vestia como um halterofilista de Bernarr
MacFadden e em cujo peito as balas não entravam
continha essa risada quase que em sua própria natu-
reza.
Na sexta história publicada de Superman, talvez
272
a primeira concebida para sair num gibi, Jerry e Joe
mostraram que partilhavam com os leitores o con-
flito entre cinismo e sonhos. Eles jogaram o herói
contra um aspirante a empresário que vende o
nome do herói a um fabricante de carros, coloca
uma cantora de cabaré gemendo uma canção de
amor não correspondido para ele e patrocina um
programa de rádio do herói. “Ora, ora, eu até já
providenciei para que ele apareça nos quadrinhos.”
Eles parodiaram o gênero antes de o gênero existir.
Primeiro o super-herói se vende através do humor a
um público desconfiado, depois desafia esse mes-
mo público a acompanhá-lo a sério nas fantasias de
poder. Depois de todas as gags, é um prazer ver o
substituto de Super-Homem que o empresário havia
contratado, quebrar o punho no peito de aço do ver-
dadeiro herói.
Em setembro de 1938, Jerry e Joe pegaram o
trem para Nova York, dessa vez não para mascatear
suas amostras de quadrinhos e sim para comemorar
com Vin Sullivan. Até mesmo Jack Liebowitz e
Harry Donenfeld cumprimentaram “os rapazes”
que vendiam tão bem tantos gibis (embora não te-
nham levado a dupla ao Stork Club). Jerry foi feste-
jar com alguns amigos com os quais se correspon-
dia, todos fãs ardorosos de ficção científica, entre
os quais Mort Weisinger e Julie Schwartz. Final-
mente podia fazer o papel do cara envolvido com
uma história de sucesso.
273
A melhor parte porém veio de Charlie Gaines.
Ele estava empolgado com o sucesso do Super-
Homem. Entre outras coisas, porque recebia uma
porcentagem de tudo que o McClure Syndicate im-
primia, e o McClure, que havia adquirido duas
prensas em quatro cores, provavelmente de algum
cliente que tinha ido à falência, tinha o contrato de
impressão da Action Comics. E também porque ain-
da trabalhava para o McClure Syndicate vendendo
direitos de tiras para os jornais. Ele já tentara ofere-
cer o Super-Homem várias vezes aos periódicos,
sem o menor sucesso, mas agora tinha um trunfo:
os garotos gostavam da história. E prontamente pe-
diu a Jerry e a Joe para prepararem novas amostras,
insistindo para que fossem mais aprimoradas do
que tudo o que tinham feito até então. E de se pre-
sumir também que estivesse planejando um elo en-
tre Super-Homem, Buck Rogers e Flash Gordon,
porque as primeiras duas semanas da versão final-
mente aceita pela McClure foram tomadas por uma
grande aventura espacial em que o planeta Krypton
é destruído, e o Super-Homem, ainda bebê, foge de
lá. Donenfeld reteve os direitos, é claro, mas estava
ansioso para que os quadrinhos dessem certo, de
modo que fez uma oferta generosa para que Jerry e
Joe cuidassem eles mesmos da tira: metade dos ren-
dimentos. Harry não ganhava tanto dinheiro assim,
e de forma tão fácil, desde o acordo de impressão
que fizera com Hearst em 1923. Estava se sentindo
274
expansivo, generoso.
Jerry e Joe voltaram para Cleveland cientes de
que estavam prestes a chegar lá. Uma tira em jornal
era o que sempre tinham desejado. Mas iriam preci-
sar de mais ajuda. Desde junho, contavam com os
serviços de dois jovens artistas que iam de vez em
quando ao apartamento de Joe para ajudar por cau-
sa do volume crescente de trabalho. Mas só isso já
não era mais suficiente. Precisavam montar um es-
túdio. Jerry pelo visto não confiava nas próprias ha-
bilidades como escritor de ficção científica, porque
contratou um amigo do fandom, Harold Gold, para
redigir a sequência inicial e original dos quadri-
nhos. Começou também a pedir a outros amigos
que lhe vendessem idéias para histórias e o ajudas-
sem no roteiro.
A McClure colocou Superman primeiro no The
Houston Chronicle, depois no Milwaukee Journal,
e em seguida no San Antonio Express. A primeira
tira, uma sequência estupenda de um homem cor-
rendo a super velocidade por uma cidade futurística
sob um céu alienígena para ver seu filho recém-
nascido, apareceu em jornais de todo o país em ja-
neiro de 1939. Jerry e Joe comemoraram no quadri-
nho final da Action número 10, evocando os sonhos
tão adiados: “Super-Homem, a tira que fez sensa-
ção em 1939”.
No entanto Jerry já tinha começado a se pergun-
tar se fechara um bom negócio com a sua editora.
275
Olhou para os custos de um estúdio e pensou nos
dez dólares por página que ele e Joe estavam rece-
bendo. Justamente no momento em que via seus so-
nhos prestes a serem realizados, começou a descon-
fiar que eles lhe estavam sendo roubados. Mal tinha
chegado de sua viagem triunfal a Nova York e já
começara a escrever sua primeira carta irada a Jack
Liebowitz.

CHARLIE GAINES FOI o primeiro a pensar


em outras formas de capitalizar o novo sucesso. E
logo se pôs a preparar uma revista em quadrinhos
chamada Superman, o primeiro comic book dedica-
do inteiramente a um personagem surgido em co-
mic books. Fez pressão para que Jerry e Joe apron-
tassem tudo o mais rápido possível, antes da enxur-
rada de publicações que os competidores fatalmen-
te começariam a lançar. Em seguida começou a
montar uma revista chamada New York World’s
Fair Comics, com o Super-Homem na capa, que se-
ria distribuída durante a abertura da tão criticada
feira mundial de Nova York, a “World of Tomor-
row” (Mundo do Amanhã), no verão de 1939. Um
participante no projeto chegou até a dar um novo
apelido ao herói: “O Homem do Amanhã”. En-
quanto esses gibis ainda estavam em fase de produ-
ção, Charlie foi até Harry Donenfeld e lhe pediu
um empréstimo para poder abrir sua própria edito-
ra, a All American Comics.
276
Lá pelo começo de 1939, a novidade já estava
circulando pelas gráficas e distribuidoras de pulps:
revista só de quadrinhos dava dinheiro. Lev Glea-
son, que fora vendedor da Eastern Color Printing
junto com Charlie Gaines, arrumou um investidor
chamado Arthur Bernhardt e lançou o gibi Silver
Streak; o nome vinha do modelo Pontiac de Ber-
nhardt. Lloyd Jacquet, antigo sócio e rival do ma-
jor, fundou a Funnies Incorporated. Everett “Busy”
Arnold, um gráfico que trabalhara com Jacquet,
anunciou que passara a ser a Quality Comics. Jac-
quet, nesse meio-tempo, se juntou com um editor
de pulp e ex-funcionário de Hugo Gernsback cha-
mado Martin Goodman; e porque um dos pulps de
Goodman se chamava Marvel Science Stories, eles
acabariam por adotar, para seu produto, o nome de
Marvel Comics. Louis Silberkleit, outro ex-funcio-
nário de Gernsback, arranjou dois parceiros e criou
a MLJ Comics.
Tinha início uma corrida em busca do ouro, e
como toda corrida do ouro essa também gerou inú-
meras lendas douradas. Uma das histórias que pas-
saram de criador para criador ao longo dos anos, e
que agora costuma ser apresentada como verdadei-
ra em quase todas as histórias da evolução dos qua-
drinhos, diz respeito a um contador da Detective
Comics chamado Victor Fox, que viu os dados das
vendas do primeiro número da Action Comics, fe-
chou seu livro-caixa, disse que estava saindo para
277
almoçar, alugou uma sala no mesmo prédio e na-
quela tarde anunciou que havia se tornado editor de
gibis. A história não é verdadeira. Fox jamais traba-
lhou para a Detective Comics. E provável que nun-
ca tenha sido contador. Era um judeu nascido na In-
glaterra que tinha emigrado para os Estados Unidos
no final da guerra e que, durante 20 anos, pulara de
uma falcatrua a outra, sempre envolvido em fraudes
e negócios escusos. Como ficou sabendo da euforia
dos gibis, não se sabe, mas no final de 1938 apare-
ceu no estúdio de Eisner & Iger e disse: “Quero ou-
tro Super-Homem.” A história do contador foi in-
ventada porque era preciso inventá-la: as coisas
aconteciam tão rápido, havia tantos empreendedo-
res vindos sabe-se lá de onde, que havia a necessi-
dade de uma lenda para simbolizar o absurdo do
que ocorria.
No fim das contas, Victor Fox forneceu um
monte de absurdos. Eisner e Iger reuniram todos os
seus artistas e em menos de uma semana tinham
pronto o primeiro número de Wonder Comics, es-
trelando o Wonder Man, um sujeito musculoso de
cabelos dourados, vestido com uma malha colante
vermelha com um “W” no peito. Ele poderia até ter
usado azul também, se Fox tivesse se disposto a de-
sembolsar dinheiro para uma impressão em quatro
cores, mas gastar muito era tudo o que ele não que-
ria. Assim que a edição veio a público, Harry Do-
nenfeld processou Fox por violação de direitos au-
278
torais, mas a essa altura Fox já estava providenci-
ando a publicação de mais alguns heróis criados às
pressas: Yarko the Magnificent (Yarko, o Magnífi-
co), Flame (Tocha), Blue Beetle (Bezouro Azul), e
Green Mask (Máscara Verde). A capa da Wonder
Comics prometia “1.000 Prêmios de Graça”, mas
ao que consta nunca houve um único premiado.
Mais tarde, Fox promoveu um refrigerante chama-
do Kooba Cola nas páginas de sua revista, e essa
bebida talvez nunca tenha existido; os competido-
res disseram que ele queria ver se chegavam enco-
mendas em número suficiente antes de mandar en-
garrafar. Fox queria a arte mais rápida e barata que
pudesse conseguir. O único dinheiro que ele des-
pendia de fato era para fazer a capa — criaturas es-
palhafatosas e roliças que expunham uma quantida-
de cada vez maior de carne feminina e provavam
que meninos de idade mais avançada que os leito-
res do Super-Homem tinham suas próprias razões
para comprar gibis.
Fox era um sujeitinho careca e miúdo que gos-
tava de fumar charutões e ficar andando entre seus
artistas enquanto eles trabalhavam, resmungando:
“Sou o rei dos gibis! Sou o rei dos gibis!” Os artis-
tas riam dele pelas costas, mas o fato é que Fox es-
tava ficando rico. Por piores que fossem suas revis-
tas, as vendas continuavam aumentando. Não de-
morou para que estivesse publicando 300, 400
páginas por mês. A coqueluche estava se transfor-
279
mando em mania e, em 1939, parecia impossível
produzir material suficiente para manter o mercado
alimentado.

NO FINAL DE 1935 com o sucesso do Super-


Homem garantido, Vin Sullivan começou a pedir a
todos os colaboradores novas idéias para outros he-
róis daquele tipo. Queria sobretudo uma história
para servir de carro-chefe à Detective Comics em
que o herói, além de se enquadrar no tema policial
da revista e solucionar crimes, de alguma forma ti-
vesse o mesmo encanto fantástico do Super-
Homem. Vin conversou com várias pessoas, entre
elas Bob Kane, que lhe vendia duas séries mensais.
Bob continuava atrás de algo que fosse de fato uma
sensação entre os leitores. Sullivan contou-lhe so-
bre a tira de jornal de Superman e disse que Siegel
e Shuster em breve poderiam começar a ganhar mi-
lhares de dólares por mês. Era uma sexta-feira.
Kane disse que voltaria na segunda-feira com um
novo herói.
Kane e Finger contaram versões diferentes do
que aconteceu a seguir. Na verdade Kane contou
inúmeras versões do fato. Nas mais antigas, excluiu
completamente Bill Finger, e nas posteriores, sob
pressão dos fãs que foram achando mais e mais in-
dícios do envolvimento dele, admitiu que um ami-
go havia dado uma pequena contribuição. Kane
chegou a forjar alguns esboços que supostamente
280
teria desenhado em janeiro de 1934, “aos 13 anos
de idade”, mostrando um “homem-morcego”, um
“homem-gavião” e um “homem-águia”, inspirados
nos desenhos de Leonardo da Vinci para uma
máquina voadora; portanto ele tentou provar não só
que Finger não tinha ajudado em nada, como tam-
bém que ele, Bob, não poderia ter ido buscar inspi-
ração nos homens-pássaros de Flash Gordon que
aliás ele mesmo havia citado como influência em
algumas entrevistas. Assim, de uma só vez, Kane
mentiu sobre sua idade, roubou os créditos de Fin-
ger, colocou-se na tradição renascentista e ofuscou
um pouco do brilho dos homens que criaram
Hawkman, o homem-gavião. Mesmo para um mes-
tre do descaramento como Bob Kane, isso é ir lon-
ge demais.
É provável que de início ele tenha trabalhado
sozinho na idéia. A sétima edição da Action, em
que o Super-Homem aparece na capa, mostrava o
herói com um sorrisinho presunçoso na cara, dando
um salto para o ar e arrastando um bandido pelo
tornozelo. Aquele pano esvoaçando por trás do per-
sonagem e a exuberância de um voo iminente tal-
vez tenham ficado gravados no cérebro de Bob
Kane como um estilo a ser imitado. Ele vasculhou
seus recortes de Flash Gordon, onde sabia que po-
dería encontrar outro herói de capa vermelha, e pa-
rou diante dos belos desenhos que Alex Raymond
fizera dos homens-pássaros, os Birdmen. Talvez te-
281
nha se lembrado das asas artificiais de Leonardo da
Vinci, que ele vira na escola de arte, ou das primei-
ras asas-deltas, feitas de lona. Naquela noite, ou no
dia seguinte, Bob Kane procurou o amigo Bill Fin-
ger e lhe mostrou o que talvez tenha sido a última
coisa que criou sozinho: um inimigo do crime ves-
tido de vermelho, com asas mecânicas, chamado
“Homem-Pássaro”.
Finger não achou a idéia muito boa para uma
revista de detetive. Ele sugeriu algo mais na linha
do Sombra: uma criatura noturna, furtiva, envolta
por uma capa preta. Que tal “Homem-Morcego”?
Os morcegos eram uma imagem comum da litera-
tura pulp. Uma das revistas de Harry Donenfeld na
verdade já mostrara um vilão chamado “Batman”, e
também havia heróis de pulps chamados “Bat” e
“Black Bat”. Kane e Finger bolaram então uma fi-
gura fantasmagórica, vestida de cinza e preto, com
uma capa recortada e nervurada, um capuz com
orelhas e olhos que se mostravam como penetrantes
frestas brancas. Assim como Jerry Siegel e Joe
Shuster, ambos haviam adorado quando jovens
Douglas Fairbanks em A Marca do Zorro, e esse
amor transparecia no desenho do capuz. Também
puseram um morcego no peito do herói, imitando o
“S” do Super-Homem, e lhe deram um “cinto de
utilidades” igualzinho ao de Doc Savage. A exem-
plo do Green Hornet (Besouro Verde) e do Sombra,
no rádio, e do Fantasma original, nos jornais, ele
282
era o alter ego secreto de “um jovem entediado da
alta sociedade”. Não possuía origens conhecidas.
Era apenas e tão somente “uma figura misteriosa e
aventureira lutando em prol do bem e prendendo
criminosos”.
Kane levou os esboços para Vin Sullivan na se-
gunda-feira de manhã e Sullivan aprovou a publica-
ção dos quadrinhos mensalmente numa série de
seis páginas. Kane no entanto não concordou em
vender os direitos da história imediatamente, como
Siegel e Shuster e a maioria dos outros jovens qua-
drinistas haviam feito. Seu pai, que ganhava a vida
imprimindo quadrinhos, conhecia um pouco do ne-
gócio editorial, de modo que fez algumas perguntas
e obteve assessoria jurídica de graça para o filho.
Kane nunca quis falar sobre o acordo que assinou,
mas tudo indica que incluía certa segurança e al-
gum controle sobre o material. Para quem não cos-
tumava ouvir comentários favoráveis a seu intelec-
to, Bob Kane mostrou no decorrer dos anos um sur-
preendente tino comercial nas negociações com sua
editora.
Kane levou a boa notícia para Bill Finger, sem
falar nada sobre o acordo de longo prazo que havia
assinado, e este pôs mãos na massa por uma peque-
na fração do preço que seria pago por página. Fin-
ger era um artesão consciencioso e exigente, e isso
aparece na econômica eficiência de sua história,
muito diferente da ação desenfreada dos quadrinhos
283
de Siegel e Shuster. Ele abriu com um clichê envol-
vendo algum mistério, acrescentou um pouco de
ação no topo do telhado, mais para manter Bat-Man
ocupado, e depois introduziu uma armadilha mortal
maravilhosamente absurda: um maligno assistente
de laboratório resolve liquidar um investigador, e
para isso faz baixar do teto uma câmara de vidro
cheia de gás sobre o infeliz. Bat-Man salta para
dentro do laboratório, pela bandeira da porta, pega
uma chave-inglesa, se enfia dentro da câmara que
vem descendo, tapa o jato de gás com um lenço e
sai de lá arrebentando o vidro. Enquanto Bat-Man
explica como se deu o crime, como fazem os deteti-
ves particulares em certos romances policiais, o vi-
lão sai atrás de sua arma. Bat-Man lhe dá um mur-
ro, ele perde o equilíbrio e cai num tanque de ácido
convenientemente colocado abaixo da grade onde
batera. E Bat-Man some de repente, por uma clara-
bóia. Para concluir, o comissário Gordon, da polí-
cia, conta tudo isso para Bruce Wayne, o milionário
entediado, que se limita a murmurar: “Um adorável
conto de fadas, comissário. Realmente.” No último
quadrinho, nosso misterioso herói aparece de novo
e o narrador nos diz: “Se o comissário pudesse ver
seu jovem amigo agora... ficaria espantado de saber
que ele é o ‘Bat-Man’!”
Bat-Man teve uma fórmula perfeita desde o pri-
meiro roteiro escrito por Finger. Verdade que a arte
era monótona, pesada, e que os rostos mudavam de
284
quadrinho para quadrinho, como se Kane estivesse
copiando de diferentes fontes, ou como se houvesse
várias mãos finalizando os desenhos. Mas o mais
importante era justamente o que Bob Kane sabia fa-
zer: ele transformou o Homem-Morcego numa fi-
gura fascinante. Embora não tivesse o menor talen-
to para paisagens urbanas ou ângulos inusitados,
deu um jeito de delinear várias vezes o vulto do he-
rói de encontro a uma lua cheia, mostrou sua silhu-
eta de corpo inteiro nas entradas e saídas dramáti-
cas e tornou realmente assustador o olhar fixo que
ele lança daquelas pequenas fendas do capuz. Tam-
bém burilou as cenas de ação e foi buscar inspira-
ção no que os melhores artistas da pancadaria, Mil-
ton Caniff e equipe, haviam feito nos desenhos de
Terry and the Pirates.
Mas o que faltou nas páginas desenhadas por
Kane, a capa forneceu. De encontro a um céu no-
turno, o Bat-Man, com um malfeitor nas mãos,
avança pelos ares, preso a uma corda. A imagem é
elegante demais para ter sido executada por Kane.
Talvez ele a tenha concebido, talvez não; mas, seja
ele quem for, o autor de fato entendeu o romance
que havia implícito no Homem-Morcego. Heróis
pendurados numa corda eram rotineiros nas aventu-
ras de capa-e-espada. A capa de um pulp já havia
mostrado o Sombra oscilando sobre de Nova York.
Porém dessa vez o herói flutua num céu deserto e a
corda se estende para fora da página, até um ponto
285
imaginário onde não é possível haver prédios. Ele
está voando, simbolicamente, tanto quanto o Super-
Homem voa quando salta por sobre os arranha-
céus, se liberta da jaula da realidade e nos leva com
ele para a fantasia do super-humano. Ainda que na
primeira história não figure corda nenhuma, à me-
dida que lemos os balões a imagem da capa ecoa
em nossa cabeça e vai moldando as cenas que ima-
ginamos entre um quadrinho e outro.
Até hoje ninguém reivindicou os créditos pela
segunda história do Bat-Man, mas uma rápida olha-
da é suficiente para percebermos que quem fez as
primeiras cenas vertiginosas com a corda foi al-
guém que entendia bem mais de perspectiva que
Bob Kane, que quem desenhou aquele Bat-Man es-
guio, tão ágil nas cenas de luta, foi alguém com
muito mais experiência em desenhar a figura huma-
na que ele. Muitos artistas contratavam assistentes
para preencher o cenário de fundo e pintar com
nanquim os desenhos a lápis, mas o que Bob Kane
fez foi pegar alguém de fora para desenhar seu he-
rói nas cenas mais cruciais. Ele sabia que tipo de
arte Bat-Man exigia e conhecia as próprias limita-
ções. Sua vaidade pode tê-lo levado a enganar todo
mundo, mas ele nunca tentou passar a perna em si
mesmo.
No terceiro número, já sabemos quem é o autor
da arte-final: um garoto de 17 anos chamado Jerry
Robinson, que estava começando a faculdade de
286
jornalismo e nem sequer pensava em se tornar um
artista profissional. No início de 1939, ele apareceu
na quadra de tênis de um hotel de New Jersey usan-
do um blusão decorado com os próprios desenhos.
Bob Kane também estava lá e quis saber quem era
o talentoso cartunista; tinha acabado de convencer
Vin Sullivan a aumentar o número de páginas de
Bat-Man e precisava de ajuda. Robinson começou
quase que na mesma hora a finalizar os lápis gros-
seiros de Kane para uma história de dez páginas. E
de repente Bat-Man ficou com cara de Batman: os
traços fortes de tinta transformaram todo e qualquer
interior numa escultura de sombras, Bruce Wayne
sorri com superioridade, nuvens passam velozes di-
ante da lua, raios cor de prata batem enviesados no
chão, os ângulos são inusitados, prédios se arre-
messam para cima do herói que escala uma parede
nua. Kane queria Robinson de bico calado e todos
os créditos para si, mas o garoto era esperto de-
mais, talentoso demais, para aceitar esse jogo.
Como sem dúvida Kane deve ter receado, não de-
morou para que Robinson fosse trabalhar direta-
mente com Vin, criando histórias para a revista
Batman que não rendiam nada para Kane. Dessa
ocasião em diante, Kane passou a contratar dese-
nhistas com menos aptidões e opiniões.
Esse terceiro número também assinalou uma
mudança no roteiro. Bill Finger não conseguiu
cumprir o prazo e Kane disse a Vin Sullivan que
287
precisava de uma história com urgência. Vin enco-
mendou uma de um amigo chamado Gardner Fox.
Já na primeira cena do Dr. Morte com seu assisten-
te Jabah, de turbante na cabeça, sentimos que esta-
mos entrando num reino onde impera uma fantasia
vitoriana, algo muito distante do realismo habitual
dos quadrinhos policiais e dos pulps. Batman (ago-
ra já sem o hífen) faz uma demonstração dos pode-
res de seu milagroso cinto de utilidades. Logo em
seguida, como que para nos tirar rapidamente do
reino dos sonhos, o herói leva um tiro. Ele sangra e
é obrigado a voltar a ser Bruce Wayne e ir ao médi-
co. Esse foi um momento à la Dick Tracy e firmou
imediatamente o herói como o oposto do Super-
Homem, que adora ver as balas ricochetearem em
seu peito. Para completar, Fox encontrou o tom
perfeito de melodrama autogozador e horripilante
quando o laboratório do Dr. Morte é tomado pelas
chamas, no clímax de sua luta contra Batman. “Ha!
Ha! Oh — ha-ha-ha — mas que — mas que
trouxa!”, gargalha o cientista, entre as labaredas.
“O pobre trouxa é você”, diz Batman. “Ele enlou-
queceu. Morte... ao Dr. Morte.”
Finger tratou de incorporar a seus roteiros os to-
ques floreados de Fox; e os tornou ainda melhores.
Jerry Robinson falaria mais tarde sobre a “imagina-
ção visual” de Finger — um alto elogio feito por
um desenhista a um escritor. Finger levava Robin-
son ao Metropolitan Museum e a cinemas de arte
288
para ver filmes do expressionismo alemão. Em
poucos meses, foi ficando claro que Robinson esta-
va colocando mais coisa nas histórias que o que
fora planejado por Kane, e estava claro que tinha
Fritz Lang na cabeça quando desenhava. No dia em
que Batman precisou de um arquivilão para o pri-
meiro número do gibi que levava seu nome, foi Ro-
binson quem o forneceu: o Coringa. Quando Finger
sentiu que Batman precisava de um companheiro
com quem conversar, ele e Robinson criaram Ro-
bin, o Menino Prodígio, depois de dissuadir Kane
da idéia de um garoto chamado Mercúrio, baseado
na mitologia.
Durante muitas décadas, os fãs e até mesmo ou-
tros profissionais acharam que Robinson era o úni-
co desenhista anônimo de Kane — até que Sheldon
Moldoff, Jim Mooney e outros começaram a se
apresentar. Jerry Siegel e Joe Shuster tinham um
estúdio cheio deles, todos trabalhando sem crédito
nenhum, mas a dupla falava abertamente sobre
isso; todos eles utilizavam a mesma sala e saíam
juntos nas horas de folga. Todos os grandes cartu-
nistas faziam isso: All Capp, Ham Fisher e Milton
Caniff ganharam uma fortuna, viajaram pelo país
inteiro debaixo de muito salamaleque da imprensa,
namoraram mulheres lindas e ficaram conhecidos
por passar todo o trabalho chato para assistentes
anônimos. Essa era a vida que Kane desejava, mas
ele jamais admitiria que alguém mais além dele es-
289
tava desenhando seus quadrinhos, mesmo quando
eles estavam sendo desenhados por todo mundo
menos por ele. Kane nunca abriu o jogo, e os artis-
tas anônimos que trabalhavam para ele nada sabiam
a respeito um do outro. Isso mantinha os preços lá
embaixo.
A Detective Comics número 27, em que apare-
cia uma história do Batman, saiu na primavera de
1939. A revista não fez feio quando exposta nas
prateleiras, e os comerciantes disseram que os garo-
tos haviam gostado. Não demorou para que as his-
tórias ganhassem um número maior de páginas; de
repente, a imagem do herói estava em todas as ca-
pas. Kane e Finger começaram a perceber que esta-
vam no caminho certo. Foi nesse momento que al-
guém da DC mostrou levar a sério o futuro do Bat-
man, ao pedir a Kane que fornecesse a história de
suas origens. O Super-Homem já havia demonstra-
do o poder de um episódio dramático — e traumáti-
co — que distingue o herói do resto da humanida-
de. A história das origens do Batman, escrita por
Finger e publicada no sexto número, foi uma varia-
ção da história do Super- Homem — a perda dos
pais e a promessa de lutar contra o mal — , mas foi
também uma reviravolta no desenvolvimento dos
heróis do mercado de massa.
Ao voltar para casa, vindos do cinema, Thomas
Wayne, sua mulher e seu filho são surpreendidos
por um assaltante armado que exige o colar da mãe
290
de Bruce. O pai tenta defendê-la e é morto. Ela gri-
ta, chamando pela polícia, e é baleada também. O
pequeno Bruce Wayne vê pai e mãe morrerem na
sua frente. Dias depois, rezando ao pé da cama, ele
diz: “Juro pela alma de meus pais que vou vingar a
morte deles e passar o resto da vida em guerra con-
tra todos os criminosos.” Durante 15 anos, ele se
exercita para ser um grande cientista e um atleta.
Mas precisa de um disfarce. “Bandidos são covar-
des supersticiosos. Então meu disfarce tem que ser
capaz de infundir terror neles. Preciso ser uma cria-
tura noturna, negra, terrível... um... um...” “Como
uma resposta, um enorme morcego passa voando
diante da janela aberta.” “Um morcego! É isso!
Esse é o sinal. Eu hei de me tornar um MORCE-
GO!
O assassinato do pai e a dor do filho lembram a
história de Jerry Siegel. Mas Jerry nunca falou a
ninguém do meio sobre a morte violenta do pai. Ele
nunca fez a menor referência a isso, mesmo quando
lhe perguntavam como tinha acontecido inúmeras
vezes o que o levara a imaginar um homem invul-
nerável que ria das balas e esmagava as armas nas
mãos dos bandidos. Ele e todos os outros criadores
de super-heróis, desde o advento dos romances ba-
ratos, passando pelos pulps, pelos quadrinhos e
pelo rádio, haviam evitado a psicologia e optado
pela ética e pela alegoria; todos pareciam satisfeitos
com a noção de que um homem poderia dedicar a
291
vida inteira a combater o crime apenas porque o pai
assim lhe dissera para fazer, ou então por ser uma
pessoa intrinsecamente boa. Bill Finger foi o pri-
meiro a levar uma dúvida de romancista para o
mundo do super-herói. Por que um homem haveria
de escolher uma vida dessas? Ele encontrou a res-
posta na dor. Bill Finger, o jovem escritor tacitur-
no, beberrão e sobrecarregado de trabalho percebeu
que a dor da perda poderia endurecer e se transfor-
mar num tipo de raiva capaz de distinguir um ho-
mem de todos os outros. E talvez, por ser pai, Bill
Finger conseguisse enxergar a dor de uma criança
de um jeito que seus colegas do ramo, todos eles
sem filhos, não conseguiam.
E, por ser o único escritor de verdade trabalhan-
do com histórias em quadrinhos, Finger era capaz
de reconhecer o cerne das histórias, e não apenas os
fragmentos dos quais eram feitas. Ao ler O Conde
de Monte Cristo, alguém como Jerry Siegel prova-
velmente enxergaria apenas lutas de espada. Bill
Finger viu a ira desencadeada por um juramento de
vingança. Transferiu isso para o Homem-Morcego
e transformou o que seria apenas mais um desdo-
bramento do Super-Homem num personagem com
alma. E, durante esse processo, lançou uma luz so-
bre um detalhe oculto das origens do próprio Su-
per-Homem. Ele havia descoberto, através da lógi-
ca do contador de histórias, o coração secreto do
super-herói.
292
SE ALGUÉM NO ramo editorial ainda não ti-
nha percebido a força com que os gibis estavam to-
mando conta do mercado, na primeira metade de
1939 deve ter levado um bofetão depois que saiu o
primeiro número de Superman. Em três impres-
sões, a revista vendeu 900 mil exemplares.
Will Eisner de repente estava produzindo gibis
para a Fiction House, para Victor Fox e para
“Busy” Arnold, todos ao mesmo tempo. Teve de
aumentar sua equipe para 15 artistas, era obrigado a
mandar muitos deles para casa com trabalho extra
para concluir à noite e durante os fins de semana e
ainda pagava por páginas feitas por freelances.
Comprava roteiros de qualquer artista ou mulher de
artista que conseguisse escrevê-los. Cada página
adquirida de artistas freelance, ele mandava a equi-
pe cortar e colar em duas ou três novas páginas e
depois encher o espaço aumentando o cenário de
fundo. Dessa forma, uma única página podia ser
vendida como se fossem três. O resultado era uma
composição malfeita e uma confusão de traços que
devia ofender as sensibilidades visuais de Eisner.
Mas isso mantinha a máquina alimentada. E rendia
dinheiro. Jerry Iger e Will Eisner tiveram 100 mil
dólares de lucro no primeiro ano da explosão dos
quadrinhos. Era uma quantia assombrosa para um
“promotor e operador” falido e um desenhista de 22
anos de idade.
293
Enquanto isso, um outro jovem observava os gi-
bis a uma certa distância. Mort Weisinger continua-
va sendo o editor principal da linha de pulps de
Ned Pines. E Pines começara a entrar naquele outro
mercado. Mort não estava envolvido com os qua-
drinhos de Pines, mas conhecia o pessoal que esta-
va: Jack Binder, cujos irmãos Otto e Earl faziam
parte de sua lista de escritores fiéis, era diretor de
arte de um estúdio que produzia material para Pi-
nes. A comunidade ainda era muito pequena. No fi-
nal de 1939, Mort lançou seu próprio herói — o
Captain Future — num pulp. Era um equivalente
da ficção científica de Doc Savage, um primo de
Flash Gordon. Mas tinha também o Super-Homem
no sangue, com seu traje colante vermelho e doura-
do e suas façanhas extraordinárias. Durante os pri-
meiros números, as capas o chamavam de “Mago
da Ciência”, mas depois de alguns meses ele se tor-
nou o “Homem do Amanhã”. Essa alcunha havia
aparecido em Superman alguns meses antes.
O escritor regular de Weisinger para a série
Captain Future era Edmond Hamilton. Isso era
uma boa notícia para o antigo parceiro de Mort, Ju-
lie Schwartz. Ele era agente de Hamilton, e isso
significava receber uma comissão regular sem pre-
cisar vender nenhum material novo. Mas a coisa
não deu certo. O Capitão era um super-herói para
garotos, e os pulps já tinham começado a perder os
leitores mais jovens. Mort, por sua vez, era ele pró-
294
prio um homem do amanhã. Sabia que o dia dos
pulps estavam contados e que os gibis estavam em
alta. Usando Captain Future como cartão de visita,
iria conseguir um emprego na Detective Comics. E
iria levar o Super-Homem e o Batman a novos pín-
caros.
Cinco garotos do Bronx: dois artistas, um escri-
tor, um agente e um editor. Um estava rico, o outro,
prestes a ficar; um estava sendo passado para trás,
outro estava prestes a perder seu ganha-pão; e um
deles queria ser o patrão de todos. Para onde a vida
os levasse dali em diante, o caminho já estava aber-
to, e tudo por causa do estranho homem de malha
colante azul.

8
——————————
ÁUREOS TEMPOS

Que sonho mais glorioso e embriagador não


deve ter sido aquele tempo de ascensão do Super-
Homem. O Waldorf, os estúdios, casas em Great
Neck e nos Heights, Fred Allen, Charles Atlas e
Walter Winchell, amantes, clubes de campo e cole-
giais de olhar esfuziante. E tudo por causa de “um
feliz acaso”, nas palavras de Harry Donenfeld.
“Pura sorte”, disse Jack Liebowitz. Nenhum dos
dois jamais fingiu que sabia o que tinha em mãos.
Mas, quando o Super-Homem surgiu, ambos o
295
agarraram na hora.
Já existiam algumas franquias bastante rentá-
veis no setor infanto-juvenil, como Mickey Mouse,
Tarzan e o Lone Ranger (No Brasil, também co-
nhecido como Zorro), mas nenhuma que tivesse
conquistado tão rápido o mercado. No início de
1939, Harry contratou um assessor de imprensa
chamado Allen Ducovny, o “Duke”, que mostrou
imenso talento para fazer com que jornais e revistas
falassem do herói. De repente, fotógrafos e repórte-
res do Saturday Evening Post apareceram no “estú-
dio” de Joe Shuster em Glenville. Em seguida, Du-
covny fez parceria com um dos escritores de alu-
guel favoritos de Harry, Robert Joffe (que escrevia
sob o pseudônimo de “Bob Maxwell”), para criar
alguns pilotos para uma série radiofônica do Super-
Homem. Juntos, datilografaram uma abertura que
captava muito bem toda a exuberância da fantasia
de Siegel e Shuster. “Mais rápido que um avião,
mais poderoso que uma locomotiva, invulnerável
às balas! Olhem! Lá no céu! E um pássaro? E um
avião? Não! E o Super-Homem!” Harry bancou
uma produção de altíssimo nível, em que figuravam
Agnes Moorehead como a mãe kryptoniana do Su-
per-Homem e um dos atores mais requisitados do
rádio, Bud Collyer, no papel do herói. Collyer
achou o Super-Homem um personagem tão ridículo
que de início se recusou a fazê-lo. Maxwell teve de
enganá-lo: pediu-lhe para gravar umas falas “só
296
para ajudar no teste” e durante a edição incluiu a
participação do ator no piloto, arrumou um modes-
to fabricante de aveia em flocos para ser o patroci-
nador e disse a ele: “Você é o Super-Homem.”
Collyer suspirou e topou.
Todas as cadeias de rádio rejeitaram a oferta,
mas o patrocinador, a Hecker Oats, comprou espa-
ço em dez estações independentes e colocou As
Aventuras do Super-Homem no ar em fevereiro de
1940. A audiência disparou e, no fim, a Mutual
Network e a Kellogs’s entraram na brincadeira.
Com o programa de rádio servindo de abre-alas,
por volta de 1941 a tira do Super-Homem já saía
em 300 jornais, e Duke Ducovny dizia que 35 mi-
lhões de pessoas acompanhavam suas aventuras em
pelo menos um veículo de comunicação. A essa al-
tura, Harry negociava com a Republic Pictures um
seriado a ser exibido nas matinês, mas de repente a
Republic foi passada para trás pela Paramount, uma
das duas gigantes do ramo. A Paramount pagou o
estúdio dos irmãos Fleischer para fazer uma série
de desenhos animados de Superman, gastando 50
mil dólares no piloto, quatro vezes mais que o orça-
mento normal para um curta de animação. Até en-
tão, ninguém nunca vira um desenho animado tão
espantosamente cheio de ação.
Com a fama do Super-Homem, vieram centenas
de milhares de dólares em licenciamentos de brin-
quedos, fantasias, quebra-cabeças, livros infanto-
297
juvenis, relógios e cereais matinais. Harry formou
uma empresa separada — a Superman Incorporated
— para cuidar disso tudo, com Duke Ducovny à
frente dos negócios. As vendas para o exterior eram
estupendas, uma vez que a simplicidade do Super-
Homem facilitava muito sua exportação para a Eu-
ropa e América Latina. E os lucros não paravam de
aumentar: a Action Comics vendia quase 1 milhão
de exemplares por edição, e a Superman 1,5 mi-
lhão. A taxa cobrada dos anunciantes também su-
biu. Só o setor de quadrinhos rendeu 2,6 milhões
dólares para Harry no ano de 1941; e ele continua-
va publicando os pulps, imprimindo todas as capas,
além de ter participação em empresas fornecedoras
de papel e de tinta e nas gráficas que imprimiam as
páginas de suas publicações. E, com a ajuda do Su-
per-Homem, estava expandindo rapidamente os ne-
gócios no ramo da distribuição. Não demorou para
que a Independent News passasse a representar vá-
rias editoras de quadrinhos, produzindo milhões de
revistas a mais todos os meses — editoras que, vis-
tas de fora, pareciam concorrentes, mas eram na
verdade mais uma fonte de renda para Harry.
Harry Donenfeld de repente estava rico, e com
um negócio legal em todos os sentidos. Ao encon-
trá-los, os amigos diziam: “Ei, Super-Homem!” E
Harry então respondia: “Subindo, subindo, cada
vez mais alto!” A turma do Stork Club ou do El
Morocco olhava, ria e em seguida a notícia se espa-
298
lhava: “Aquele lá é o cara que publica o Super-
Homem!” O próprio Winchell balançava a cabeça e
dava um meio sorriso: “Salve, Super-Homem”.
Harry passou a usar uma camiseta do herói por bai-
xo da camisa. Ele esperava pelo momento certo —
uma bebida derramada ou uma bela mulher sozinha
no bar — e então abria o paletó do smoking, dava
um puxão na camisa (botões de madrepérola voan-
do) e gritava (com sotaque iídiche: carregando nas
consoantes, esticando as vogais): “Isto parece um
trabalho para o Super-Homem!” Gargalhadas em
volta, mais uísque para todos.
Em 1939, ele e “Gea” comemoraram o aniver-
sário de 20 anos de casamento com uma festa para
centenas de convidados e um bolo de mais de três
metros de altura. Alguns meses depois, Harry levou
a amante para morar numa suíte do Waldorf-Asto-
ria. Aquele palácio e suas duas torres, na Park Ave-
nue, eram o ápice, eram os picos gêmeos da viga-
rista bem-sucedida, eram os grandes peitos da deu-
sa meretriz — a ilha de Manhattan. Tudo em torno
daquele palácio, desde as letras de ouro na fachada
até o amplo vasto saguão, passando pelos nus retra-
tados nos mosaicos do chão e pelas pernas esguias
de seus divãs imperiais, significava Classe com “C”
maiúsculo para quem conseguia sair da sarjeta e
chegar lá. Foi no Waldorf que Johnny Torrio fez a
lendária reunião no fim da Lei Seca que organizou
todas as falcatruas do país no “sindicato do crime”.
299
Era no Waldorf que Lucky Luciano tinha seu ninho
de amor e recebia as prostitutas caras que acabaram
levando-o à cadeia. E era no Waldorf que Frank
Costello reinava nessa época. Mantinha a família
em Central Park West, a amante numa suíte do topo
do hotel, e todas as manhãs ia de um pouso ou de
outro para o espalhafato dourado do barbeiro do
Waldorf, onde fazia a barba, cuidava das mãos e re-
alizava as primeiras reuniões do dia. Se por acaso
aparecesse algum policial mais ranzinza ou algum
repórter fuçador, todos os empregados do hotel —
porteiros, telefonistas, detetives da casa — sabiam
como espalhar a notícia e manter seus hóspedes
mais prezados longe de amolações.
De repente, Harry tinha condições de pôr Sunny
hospedada lá. Podia atravessar o lobby ouvindo os
cumprimentos dos empregados, podia trocar piadas
com os bacanas, passar no barbeiro para dar um alô
a Costello ou então falar de boxe e de turfe com
qualquer empresário ou desocupado que estivesse
por lá à toa. Aquilo era como estar de volta à esqui-
na do bairro, era como fazer parte da turma outra
vez, só que era a esquina das esquinas, a turma das
turmas. Era a turma do Super-Homem.
Harry continuava se reunindo com seus distri-
buidores e compradores regionais, só que agora vi-
ajava de Pullman e pagava para que alguns amigos
fossem junto, de cidade em cidade, de uma costa à
outra, bebendo e jogando gin rummy. Um deles era
300
um advogado expulso da Ordem, um sujeito de
passado nebuloso chamado Ben Sangor; Sangor era
também sogro de Ned Pines, o editor, e entrara para
o ramo dos quadrinhos para fornecer material a Pi-
nes. Depois de beber e jogaram rummy à vontade,
Harry ajudou Sangor a fundar sua própria empresa
editorial, a American Comics Group. Harry gostava
de prestar favores.
E se hospedava nos melhores hotéis de cada ci-
dade. Um dos prediletos era o Ambassador, em Los
Angeles, onde podia ficar bebendo sob falsas pal-
meiras no Cocoanut Grove com um ou dois compa-
nheiros famosos de carteado, quem sabe Eddie
Cantor ou os irmãos Ritz, e esperar até que astros e
diretores de cinema fossem levados até sua mesa
para um aperto de mão rápido, uma foto e algumas
gags do tipo “Olhem! Lá no céu!” Havia também o
Wofford, em Miami, onde Costello e Meyer
Lansky tinham seu cassino de alta classe, protegido
pela polícia. Harry era sempre muito bem-vindo no
Wofford, porque suas apostas subiam à medida que
suas vendas aumentavam e a garrafa de uísque bai-
xava. As vezes Harry levava Frank Moschello, seu
motorista, até Miami para conduzi-lo pela cidade.
Talvez algumas vezes passassem diante do hotel
Deauville, que Bernarr MacFadden tinha construí-
do na época em que era o rei das revistas baratas.
Na época, o hotel já estava nas mãos dos tribunais,
uma vez que a Depressão arruinara com o império
301
de MacFadden e o grande halterofilista fora afasta-
do por sua própria empresa e processado pelos aci-
onistas, acusado de conduta financeira ilegal. Harry
Donenfeld sobrevivera ao rei dos pulps.
Os novos estúdios de animação dos irmãos
Fleischer ficavam em Miami também e, em 1941,
Harry costumava ir até lá para ver o andamento das
coisas. Os Fleischers eram garotos durões de Nova
York e Harry gostava deles, mais do que jamais po-
deria gostar de Walt Disney e da maioria de seus
imitadores de Hollywood. Em agosto daquele ano,
com o primeiro desenho animado de Superman
pronto para ser exibido, Harry soube que seu velho
amigo David Dubinsky, do Sindicato Internacional
dos Trabalhadores da Indústria de Roupas Femini-
nas, estava na cidade para uma conferência traba-
lhista. Harry localizou o companheiro. “Dubinsky”,
disse ele, “você tem que ver isso. E um desenho
animado do meu Super-Homem.” Aqueles eram
tempos áureos também para Dubinsky. Em nove
anos como presidente, havia levado seu sindicato a
uma tremenda expansão, havia se estabelecido
como um anticomunista ferrenho dentro do movi-
mento sindical e adquirido uma força considerável
na Federação Norte-Americana do Trabalho. O pre-
sidente Roosevelt o escutava com atenção. Mas ele
atendeu ao convite de Harry e viu o desenho ani-
mado, aqueles sete minutos de ação ininterrupta, os
planos e contraplanos, as figuras estilizadas passan-
302
do velozes como balas por um mundo cercado de
ameaças.
Quando as luzes acenderam, Harry estava em-
bevecido. “E então, o que você achou, Dubinsky?”
“Ah”, grunhiu Dubinsky, com um aceno da mão
gorducha. “Não tem o menor significado social!”
Dois pequenos lutadores, no alto da pirâmide, de-
sempenhando cada qual o seu papel.
E havia Cuba também. Uma viagem de menos
de 150 quilômetros numa noite quente, bebidas e
jogatina no barco durante toda a viagem, depois o
porto cintilante e o Hotel Nacional, onde Lansky e
Costello haviam construído o cassino mais moder-
no do mundo, e onde Lansky firmou sua aliança
com Fulgencio Batista e fez de Havana uma subsi-
diária da máfia nova-iorquina. Parece que Harry
havia investido alguma coisa nos negócios cubanos
de Costello e se envolvera com algum tipo de pu-
blicação em língua espanhola para as comunidades
do boxe e do turfe. Acompanhado às vezes de um
amigo ou dois, ele ia a Cuba para negociar, jogar e
se divertir com as mais belas prostitutas do mundo.
Vez ou outra levava Sunny junto, e nessas ocasiões
ia com ela dançar rumba à beira-mar nos salões a
céu aberto. Harry nunca foi um bom dançarino,
mas apreciava uma pista de dança e, quando estava
suficientemente embriagado, era divertido vê-lo.
A rapidez absurda com que o dinheiro entrou
devia parecer ainda menos real naquele momento
303
apocalíptico. Enquanto o Super-Homem subia, a
Inglaterra se interpôs no caminho das aspirações
alemãs em relação à Checoslováquia e Hitler res-
pondeu com a gargalhada cruel da Kristallnacht.
Depois Stalin se juntou a ele para retalhar a Polô-
nia, momento em que britânicos e franceses decla-
raram guerra à Alemanha e não tomaram nenhuma
providência durante um longo inverno, observando
os alemães avançarem feito uma hecatombe sobre a
Holanda, a Bélgica e a França. Em um mês, a Euro-
pa Ocidental tinha desaparecido. Em seguida a
guerra chegou aos céus da Inglaterra, e também
chegaram os boletins pelo rádio noite após noite
durante todo o verão, Edward R. Murrow se esgoe-
lando por cima do barulho das bombas em todas as
salas de estar da América. Ainda assim os america-
nos estavam com receio de lutar, ou com receio de
admitir que sabiam que não havia opção. Roosevelt
pôs a política do país em polvorosa quando anunci-
ou que iria concorrer a um terceiro mandato, e to-
dos sabiam que isso era, em parte, para conseguir
que os Estados Unidos entrassem na guerra; mesmo
assim ele teve de fazer campanha como o presiden-
te da paz. A maioria dos judeus estava tomada pela
emoção. Há quem hoje pergunte se Roosevelt fez o
suficiente quando o Holocausto começou, mas nun-
ca um líder mundial tinha declarado guerra por cau-
sa dos judeus, nem mesmo de forma indireta. Até
aquele momento, nenhum governante tinha feito os
304
judeus se sentirem tão pertencentes a uma nação,
tão parte de uma causa global. Não fazia nem 20
anos que os Estados Unidos haviam combatido os
bolcheviques em nome do odiado czar. Talvez o
mais estranho de tudo fosse o fato de os judeus es-
tarem ansiosos para lutar, os judeus, que nunca ti-
nham tido a menor confiança em governos ou nos
militares, e que sempre tentavam manter seus filhos
longe do front, torciam para que Roosevelt os le-
vasse até lá para cuspir na cara de Hitler.
Para Harry, havia os mercados estrangeiros a
perder. Hitler já tinha dito que o Super-Homem era
judeu e proibira sua circulação no país; Mussolini
seguira o exemplo. A Europa inteira estava vindo
abaixo. Se os nazistas continuassem vencendo, a
bolha do Super-Homem poderia estourar. Aquela
talvez fosse a última boa mão no início de uma lon-
ga e desastrosa noite em volta do feltro verde.
Harry bebia mais que nunca. Não apenas cerve-
ja; era cerveja junto com uísque. Talvez tenha sido
a vertigem do momento, ou talvez ele simplesmen-
te soubesse que poderia se safar ileso; pode ser que
tivesse certeza de que dali em diante só precisaria
ser um cara divertido para que os negócios continu-
assem andando e rendendo dinheiro. Às vezes, ele
caía numa melancolia terrível, ficava sentimental;
ao mesmo tempo, aumentavam os boatos sobre
seus surtos violentos: Harry havia espancado al-
guém num bar, uma mulher ameaçava processá-lo
305
por tê-la embriagado para depois abusar dela e por
aí afora. Chegava aos escritórios da Detective Co-
mics embriagado. Passava a mão nos seios das se-
cretárias e saía rindo. Segundo os rumores, Jack Li-
ebowitz preenchia os cheques que compravam o si-
lêncio dos outros, e pagava Frank Moschello para
ficar de olho no patrão e afastá-lo das encrencas.
Irwin Donenfeld completara 13 anos em 1939 e
estava tentando entender que tipo de vida levava o
pai durante todos aqueles dias e noites que passava
fora de casa. O garoto trabalhava depois da escola
na Independent News, escutava os conselhos enfe-
zados de Jack Liebowitz e mantinha os ouvidos
bem abertos. Sabia que o pai queria ficar com
Sunny, e também que a mãe, Gussie, estava resol-
vida a lutar. A Mulher Dragão podia suportar a
existência de uma amante, mas não admitiria ser
abandonada publicamente e ia fazer escândalo;
tampouco abriria mão de sua parte no império de
Harry Donenfeld sem lutar, e muito. Era Jack Lie-
bowitz quem tentava dissuadir Harry da idéia de le-
var a coisa para o rumo mais perigoso. Harry dizia
a Jack que tinha que ficar com Sunny, gritava, pra-
guejava e soluçava, dizendo que Gussie era uma
bruxa e que ele amava Sunny; para Jack porém isso
era impensável. Tratava-se de uma questão empre-
sarial. Ele não queria uma Gussie Weinstein Do-
nenfeld vingativa como acionista. De modo que
deixava Harry gritar à vontade, depois berrava de
306
volta com ele, lhe dizia para parar de ser burro. Que
Harry tomasse conta de Sunny e deixasse Gea com
o título.
Talvez Sunny estivesse fazendo pressão tam-
bém, ou para Harry deixar a mulher ou então para
lhe dar algo com que pudesse contar se as coisas
dessem errado no futuro. Harry começou a sair com
outras mulheres durante esse tempo, não apenas
prostitutas, nem só secretárias que se deixavam ata-
car no escritório, mas também com possíveis candi-
datas a algo mais sério. “Ele tinha mulher e aman-
te”, diria Irwin depois, “e enganava as duas.” Pode
ser que Harry estivesse apenas arrebanhando aquilo
que o dinheiro e a fama haviam tornado possível.
Ou talvez estivesse tentando escapar. Que outras
pressões havia sobre ele? Michael Feldman, que
juntou tantos dados sobre as diversas distribuidoras
de contrabando em que Harry estava envolvido,
pergunta: “O que levou Harry a querer fugir?” Ele
havia se metido com alguns dos mais perigosos
gângsteres do país por um bom tempo. Esses ho-
mens não se contentavam apenas em receber de
volta os empréstimos feitos. Quando alguém do cír-
culo achava um bom filão, exigiam receber a parte
deles. “Harry de repente era o Chefão de um novo
negócio”, disse Feldman. “Junto com os rendimen-
tos legítimos, o simples volume de produção abria
novas oportunidades para muitos benefícios residu-
ais — lavagem de dinheiro, caixa dois, contraban-
307
do. Em sua própria empresa, Harry era o chefe.
Mas vivia cercado por um punhado de novos sócios
silenciosos a quem tinha de dar satisfações.” En-
quanto Harry seguia ao sabor dos ventos, Jack Lie-
bowitz controlava o leme. A jogatina que fazia era
de outro tipo: jogava no mercado de ações, e jogava
com agressividade, diligência e muita pesquisa.
Jack também se tornara editor. Quando Charlie
Gaines foi pedir a Harry um empréstimo para abrir
sua própria editora, Harry concordou com uma con-
dição: a de que ele aceitasse Jack Liebowitz como
sócio. E deu o dinheiro para Jack entrar no negócio.
Não foi um empréstimo; foi um presente. Em parte,
sem dúvida para pagar os serviços heróicos que Li-
ebowitz prestara à empresa durante os anos mais
difíceis, em que só recebia salário. Além disso,
Harry devia saber que Jack se sentiria tentado a
deixá-lo para fundar a própria empresa concorrente
se não houvesse nada para segurá-lo. E pode muito
bem ter sido uma maneira de Harry manter Gaines
sob um certo controle; como Jack continuava rece-
bendo salário e bônus bem razoáveis da Detective
Comics e da Independent News, não deixaria Gai-
nes decolar sozinho ou agir contra os interesses das
outras empresas. De todo modo, no final de 1938,
Charlie Gaines se tornou o sócio principal e Jack
Liebowitz, o sócio minoritário da All American
Comics. Não demorou para que a All American es-
tivesse publicando Flash, Lanterna Verde, Hawk-
308
man (Gavião Negro) e outros super-heróis bastante
lucrativos.
Liebowitz deixava que Gaines e seu jovem edi-
tor, Sheldon Mayer, dirigissem a All American,
mas exercia um firme controle sobre a linha “DC”
da Detective. Novas revistas estavam entrando para
sua cesta de produtos; o número de páginas de Su-
perman, Batman e de uma série de outros heróis
fantasiados foi aumentado. Liebowitz concordava
com Harry que a aquisição do Super-Homem fora
pura questão de sorte, mas não queria sugá-lo até o
osso e descartá-lo. Ele enxergava no personagem
algo a ser trabalhado e mantido, via ali um tipo de
entretenimento que os garotos preferiam em relação
a qualquer pulp, e continuariam gostando do perso-
nagem se tivessem motivos para tanto.
Em 1940, Liebowitz se viu em condições de
formar uma nova equipe: Vin Sullivan fora contra-
tado por uma outra editora, que acreditava serem
seus dons editoriais a chave para o sucesso do Su-
per-Homem. Ninguém ainda sabia, afinal, o que fa-
zia de uma revista em quadrinhos um grande suces-
so; Will Eisner conta que certa vez subiu no eleva-
dor da DC junto com Harry Donenfeld e ouviu
dele, em alto e bom som: “Quando um título não
vende, mando embora o editor e arranjo outro — é
assim que o negócio funciona!” Ao contratar Whit-
ney Ellsworth, um cartunista de jornal de 31 anos
de idade, antigo colaborador do major Malcolm
309
Wheeler-Nicholson, Liebowitz optara pelo refina-
mento, pela experiência e por um estilo mais cava-
lheiresco em oposição à ousadia juvenil de Shelly
Mayer.
Liebowitz e Ellsworth desenvolveram rapida-
mente um código de comportamento aceitável para
os super-heróis, o primeiro do gênero. Não fazia
nem um ano que a censura matara os pulps eróticos
e ferira de morte a série de “Spicies”, e Liebowitz
sabia que, assim que os defensores da decência e da
moral descobrissem que era Harry Donenfeld o res-
ponsável pelo Super-Homem, passariam a exami-
nar a revista com lupa, página por página. Harry
podia achar divertido atazanar os censores, mas
essa atitude não se encaixava nos planos de Lie-
bowitz, cuja intenção era construir um império de
entretenimento infanto-juvenil. Num dos primeiros
episódios, o Super-Homem havia arrancado as asas
do avião de um bandido e deixado que ele caísse
numa bola de fogo. Batman, por sua vez, pulara
para dentro de um avião de combate e, com tiros de
metralhadora, havia abatido um monstro à la King
Kong. Liebowitz decretou que nenhum herói da DC
voltaria a matar alguém deliberadamente.
Liebowitz também manteve o Super-Homem
longe da guerra na Europa. Já no início de 1940, al-
gumas editoras menores começaram a enviar heróis
patrióticos para lutar com símiles de Hitler, e mui-
tos escritores, entre os quais Siegel e Shuster, anda-
310
vam ansiosos para jogar os heróis da DC contra
alemães ensandecidos. Siegel conseguiu seu intento
numa série que escreveu para Shelly Mayer, da All
American, chamada Red, White, and Blue, sobre
um trio de militares americanos que não tinham
nem fantasia nem superpoderes (é fato que, após al-
guns meses, até mesmo a All American ordenou
que as histórias fossem menos políticas). Liebowitz
contudo, não permitiu que o Super-Homem tomas-
se sequer uma posição implícita sobre a guerra e o
fascismo. Os isolacionistas eram muitos, e alguns
poderiam proibir os filhos de comprar os gibis. Ele
acabou ficando na mesma posição delicada dos
magnatas de Hollywood, que haviam ignorado o
apelo de seus escritores e diretores para produzir
filmes antinazistas por medo de perder os mercados
alemão e italiano. Contabilidade gera cumplicida-
de.
Porém, em seu território Liebowitz era feroz.
Com a enxurrada de imitações do super-herói que
começaram a sair do prelo em 1939 e 1940, tornou-
se quase um hábito da empresa entrar com proces-
sos judiciais e enviar ameaçadoras cartas de adver-
tência. Grande parte das disputas era resolvida pa-
cificamente ou ignorada, mas quando a Fawcett Pu-
blishing fez grande sucesso com o lançamento de
seu Capitão Marvel, de capa nas costas, malha co-
lante vermelha e emblema dourado no peito, Lie-
bowitz partiu para o ataque como um buldogue.
311
Não quis aceitar nenhum acordo e, quando a deci-
são judicial foi contrária à DC, exigiu que se en-
trasse com recurso. O advogado da DC era Louis
Nizer, já com fama de ser brilhante em questões de
direitos autorais e excelente orador nos tribunais.
Liebowitz designou um de seus editores, Jack
Schiff, para trabalhar em tempo quase integral exa-
minando página por página os gibis Superman e
Capitão Marvel; a intenção era ajudar Nizer a pre-
parar sua ofensiva.
O sucesso do Capitão Marvel — cujas revistas
logo ultrapassaram o volume de vendas do Super-
Homem — sem dúvida explica a ferocidade com
que Jack partiu para cima da Fawcett. Mas talvez a
natureza da editora também tivesse algo a ver com
sua fúria. Os Fawcett eram protestantes de Minne-
sota e davam preferência a quadrinhos bem-com-
portados, sem grandes paixões, quadrinhos como os
que os alemães do Meio Oeste e as tradicionais fa-
mílias protestantes de Nova York — Otto Binder,
C. C. Beck, Bill Woolfolk, Kurt Schaffenberger —
faziam tão bem. As aventuras da família Marvel,
além disso, tinham um elemento de paródia, um
certo tom melífluo de adultos brincando brincadei-
ras de criança e piscando entre si, por cima da ca-
beça da garotada, como se os leitores não fossem o
pequeno Timmy e a pequena Joan, e sim a tia
Trudy, de Muncie — que compra os quadrinhos
que ela acha que os meninos devem ler. Os outros
312
editores eram velhos de guerra no negócio, tinham
surgido do fedor das gráficas nova-iorquinas. Ti-
nham direitos territoriais ali. Os Fawcett estavam
invadindo território alheio. (Entretanto a DC não
teve escrúpulos na hora de roubar uma idéia da
Fawcett: o Capitão Marvel já voava, enquanto o
Super-Homem continuava pulando feito uma pul-
ga.)
Liebowitz era conhecido no escritório por sua
postura rígida e suas palavras mordazes. Ele não
gritava muito, mas seu tom não admitia discussão.
Tinha apenas 40 anos de idade, mais novo que
Harry Donenfeld e Charlie Gaines, e só oito anos
mais velho que Whitney Ellsworth, mas já domina-
ra o modo de agir de um patriarca quando dava or-
dens pelo interfone ou de trás de sua enorme escri-
vaninha naquele seu gabinete escuro, sem tirar o
olho dos relatórios datilografados que tinha à fren-
te. “Só o ouvi fazer uma única piada durante a vida
inteira”, disse Irwin Donenfeld. “Um dia, olhei para
os pés dele e disse: ‘Tio Jack, você está usando
uma meia preta e outra marrom.’ Ele baixou a vista
muito rapidamente e depois disse: ‘E tenho um ou-
tro par igualzinho a este em casa.”’ Irwin riu ao se
lembrar disso. Um momento ameno de um homem
que não conhecia amenidades merecia uma risada.
Ele sempre foi “tio Jack”, mesmo quando Irwin
já estava com 40 anos de idade e era o número dois
no negócio. Harry sempre fez questão que o filho
313
tivesse um emprego de meio-período na empresa,
tinha certeza de que ele ocuparia ali um posto de
executivo assim que terminasse a faculdade. Fora
isso, nunca o guiou para lado nenhum. Quando
Irwin estava para entrar na Bates, perguntou ao pai:
“Que curso devo fazer?” E Harry falou: “O que
você quiser! Eles não ensinam quadrinhos na facul-
dade!” Era Liebowitz que levava Irwin a seu gabi-
nete e lhe dizia como funcionavam as coisas. Foi
ele também que iniciou Irwin no ritual noturno da
empresa quando já tinha idade para isso. “Ouvi
uma voz enfezada no interfone lá pelas cinco da
tarde”, contou Irwin. “‘Venha até meu escritório!’
Fui, e lá estava tio Jack, junto com Paul Sampliner,
Paul Chamberlin e Jack Adams, todos jogando gin
rummy. Toda noite tinham de jogar gin rummy. E o
jogo era pra valer, sim senhor. Nada de brincadei-
ra.” Todo empresário nova-iorquino jogava gin
rummy naquele tempo, mas o jogo parecia feito
para a cabeça de Jack Liebowitz, com sua comple-
xidade matemática e suas somas rápidas, unindo
sorte e raciocínio.
Fora o trabalho, a bolsa de valores e o gin
rummy, Jack vivia para cuidar da mulher e das fi-
lhas. Assim que pôde, mudou-se com a família para
a margem norte de Long Island, para uma mansão
na aldeia de Kensington, em Great Neck. Era uma
casa de sonhos numa cidade abençoada, segundo as
palavras de um folheto promocional de 1936:
314
campos de golfe, clubes náuticos, quadras de
tênis e campos de pólo praticamente em nossos
quintais... uma comunidade toda feita de peque-
nas aldeias, todas elas governadas sábia e corre-
tamente por proprietários residentes na área, que
cuidam para que nada em desacordo com a ar-
quitetura ou contra as regras impostas seja cons-
truído; uma comunidade mantida, defendida e
protegida por cada morador; uma comunidade
formada por moradores que vieram de todas as
partes do mundo, por gente de sucesso, que ago-
ra pode gozar a vida, e que sabe reconhecer o
que é bom — profissionais liberais, comercian-
tes, industriais, artistas, banqueiros e uma série
de outros, com suas esposas e filhos, todos de
mente aberta e esclarecida — em outras pala-
vras, os melhores vizinhos.

“De mente aberta.” “De todas as partes do mun-


do.” Códigos para indicar aos possíveis comprado-
res que tanto imigrantes como judeus seriam bem-
vindos, desde que tivessem os padrões adequados e
meios suficientes. Great Neck englobava uma am-
pla extensão de florestas que haviam sido loteadas
para a formação de bairros destinados aos novos-
ricos; mas, ao contrário de muitas “comunidades
exclusivas”, era para ser vendida ao dinheiro novo
de Manhattan. É lá que fica West Egg, de O Gran-
de Gatsby, de onde Jay sai para se encontrar com o
315
gângster Meyer Wolfsheim em Manhattan. De re-
pente os jovens malandros, que teriam olhado
Meyer Wolfsheim com respeito, viam-se na meia-
idade e mudando para Great Neck. Patrocinavam a
sinfônica local, o Fundo da Comunidade Judaica e
iam de carro à sinagoga na Old Mill Road.
Kensington recebera esse nome por causa do
jardim londrino. Ostentando na entrada uma réplica
dos vistosos portões vitorianos que seguem o mo-
delo europeu, o local atraíra de imediato a popula-
ção cosmopolita da Broadway. Flo Ziegfeld (Flo-
renz Ziegfeld (1869-1932) foi um importante em-
presário da Broadway no século XX) morava ali, e
sua linda mulher, Billie Burke, era uma anfitriã im-
portante que Rose Liebowitz poderia imitar e con-
quistar. A tímida Rose do Lower East Side era ago-
ra a dona de uma mansão que oferecia almoços e
chás beneficentes em prol da Liga Anti-Difamação
e dos refugiados da Europa. Moe Annenberg e seu
filho Walter, que transformara o dinheiro do jornal
Racing Form num império editorial, também ti-
nham casas ali. Os Liebowitz entraram como sócios
em clubes de campo e compareciam a coquetéis
oferecidos por banqueiros e grandes empresários,
Jack rígido dentro de seu smoking, com seu bigode
à Thomas Dewey, Rose exibindo vestidos floridos,
tão caros e enfeitados quanto os de qualquer qua-
trocentona americana. As filhas do casal, Joan e
Linda, nadavam no clube de campo, andavam de
316
barco e se preparavam para viver a vida de moças
finas.
Jack dava duro para se tornar uma pessoa res-
peitável e fazer da empresa um negócio respeitável
também. Mas todo seu esforço deve ter parecido
inútil quando, em maio de 1940, Sterling North, o
editor literário do Chicago Daily News, escreveu
uma coluna intitulada “Uma Desgraça Nacional”.
“O efeito desses pesadelos impressos em papel va-
gabundo é o de um violento estimulante. Seus pre-
tos e vermelhos grosseiros acabam com o sentido
natural de cores da criança; suas injeções subcutâ-
neas de sexo e assassinato deixam a criança impaci-
ente diante de histórias melhores, embora menos
agitadas. Se não quisermos ver uma próxima gera-
ção ainda mais violenta que a atual, pais e professo-
res de todo o país precisam se unir para acabar com
essas ‘revistinhas’.” Os quadrinhos eram “respon-
sáveis por uma chacina cultural dos inocentes”. A
coluna foi reproduzida por jornais do país inteiro e,
ato contínuo, gerou dezenas de outros artigos de
teor semelhante e matérias ainda mais duras contra
essa nova e preocupante mania dos jovens.
Como quase sempre acontece quando o entrete-
nimento dá origem a temores generalizados, havia
ali uma choque de gerações, de regiões, de grupos
étnicos e de culturas. Sterling North vinha de um
mundo muito distante do mundo de Jerry Siegel e
Joe Shuster, mas não em quilômetros, e sim em
317
cultura. Nascido numa fazenda, entre as florestas
do estado de Wisconsin, seu pai tinha o estudo da
história como passatempo; ele crescera fazendo
pescarias e caminhadas por extensos bosques, cria-
va guaxinins no quintal. Contraiu poliomielite com
12 anos de idade e passou a adolescência lutando
para aprender a andar de novo. Nunca mais poderia
fazer caminhadas pela floresta ou patinar nos lagos
congelados. Mudou-se para Chicago ainda jovem
para se tornar jornalista — a Chicago de Ben Hecht
e da gangue de Al Capone — e se transformou num
intelectual que gostava de beber, de discutir e de
brigar, uma pessoa para quem os movimentos eram
difíceis mas, verbalmente, reta como uma lança. No
entanto guardou na memória uma infância perdida
que, para ele, era todo um país perdido, um país no
qual os garotos andavam na linha, faziam seus pró-
prios brinquedos e resolviam as pendências de ma-
neira honrada, com uma boa luta de boxe debaixo
de alguma árvore. Anos depois, ele iria evocar o úl-
timo ano dessa sua infância num romance delicado
e comovente chamado Rascal: A Memoir of a Bet-
ter Era. Em edições posteriores, a editora tirou o
subtítulo para vendê-lo como um livro infanto-
juvenil sobre um garoto e seu guaxinim mas, para
os moradores do Norte, o livro continuou sendo um
retrato do país ideal, do país que muita gente nasci-
da antes da Primeira Guerra Mundial queria lem-
brar como sendo o seu.
318
Assim, quando Sterling North viu as bancas de
jornal cheias de mulheres em trajes exíguos nas ca-
pas de Lou Fine, quando se deparou com o rosto
sem olhos de Batman e com pedaços de metal vo-
ando de uma locomotiva esmagada pelo Super-
Homem, não reconheceu nada daquele sonho juve-
nil; viu apenas estímulos violentos em cores cruas.
Não enxergou um único elemento estético que a
cultura infanto-juvenil do começo do século XX,
no estado de Wisconsin pudesse ter produzido ou
que um crítico literário pudesse entender. Viu,
como fazem as pessoas convencidas de que o mun-
do está desmoronando, outro sinal de como as cri-
anças estavam sendo levadas direto para a barbárie.
O tempo não daria razão essas suas idéias. A gera-
ção que cresceu lendo os quadrinhos dos super-
heróis foi bem menos violenta que a anterior, e isso
por razões que têm tudo a ver com prosperidade,
união nacional e assimilação étnica, sem qualquer
relação com o teor do que leram. Mas o que ele dis-
se teve um impacto profundo na mentalidade da
época. Confrontados naquele momento apocalípti-
co com uma forma desconhecida de entretenimen-
to, que chegara sabe-se lá de onde para cair aparen-
temente no gosto de todas as crianças da América,
os adultos reagiram com uma exclamação coletiva
de horror. Até mesmo George Orwell, do outro
lado do Atlântico, expressou seu temor. Ele viu o
Super-Homem como um “culto ao valentão”, o
319
equivalente americano do anseio por um homem
forte que levara Hitler e Mussolini ao poder.
A simples quantidade de gibis consumidos pela
garotada era um choque para a maior parte dos
adultos. Quinze milhões de exemplares eram vendi-
dos todo mês, e as pesquisas de mercado indicavam
que cada um deles era lido por quatro ou cinco jo-
vens. Noventa por cento dos alunos da quarta e
quinta séries se classificavam como seus “leitores
regulares”. Revista nenhuma, livro nenhum chegara
a esses números estratosféricos, e era de se duvidar
que o rádio e o cinema pudessem alcançá-los. O
que fora um pequeno nicho no que havia de mais
vagabundo na indústria cultural no verão de 1938,
de muito menor importância que os pulps, os livros
e os almanaques infantis, tinha se tornado em dois
anos o elemento que catalizava a infância america-
na. Numa época em que o mundo inteiro podia vi-
rar de cabeça para baixo em questão de meses, era
fácil imaginar que alguém estava roubando a crian-
çada.
As editoras reagiram à grita geral segundo seus
próprios antecedentes e metas. A Dell tinha dado
início a uma linha de quadrinhos baseados em per-
sonagens de Disney e em personalidades do cine-
ma, e tratou de ficar longe dos super-heróis; a deci-
são do que publicar ficou quase toda a cargo do
braço direito de George Delacorte, uma jovem edi-
tora chamada Helen Meyer, muito mais interessada
320
em livros que em gibis. Fawcett enfatizou ainda
mais o humor inocente de suas revistinhas.
Victor Fox mandou as colunas de jornal para o
inferno, se é que se deu ao trabalho de lê-las, e con-
tinuou soltando comic books no mercado.
Jack Liebowitz porém lançou um contra-ataque
imediatamente. Convocou funcionários e colabora-
dores para ajudá-lo a encontrar especialistas con-
ceituados que pudessem falar bem dos quadrinhos e
contratou-os para formar um “Conselho Editorial
Consultivo”. Imprimia o nome e as credenciais de
todos em suas revistas e citava pareceres dessa tur-
ma em comunicados à imprensa. Um desses conse-
lheiros, uma psiquiatra gestáltica do Bellevue Hos-
pital chamada Lauretta Bender, afirmou que as his-
tórias de super-heróis “pareciam oferecer o mesmo
tipo de catarse que Aristóteles atribuía à tragédia”.
Uma outra, Josette Frank, especialista em livros in-
fantis da Child Study Association, uma associação
progressista dedicada a estudar o comportamento
infantil, comparou o Super-Homem a Paul Bunyan
e John Henry (Personagens de histórias folclóricas
norte-americanas). E o “psicólogo consultor” da re-
vista Family Circle, William Moulton Marston, um
teórico de critérios bem flexíveis e de olho na pu-
blicidade, declarou que os gibis “falam aos ouvidos
mais íntimos dos desejos do ego”, aos “mais pontos
mais internos das aspirações humanas”.
As críticas voltaram-se então contra os gibis
321
mais sensacionalistas e, de modo geral, deixaram
em paz os super-heróis da DC e da All American.
Jack Liebowitz havia transformado um bando de
vigilantes mascarados e de valentões exibicionistas
em sólidos cidadãos e em modelos para a juventu-
de. O tipo de vizinho que você gostaria de ter em
Great Neck.

AQUELES FORAM áureos tempos também


para Jerry Siegel e Joe Shuster, pelo menos em
comparação com os vividos anteriormente. Ambos
haviam assinado um contrato exclusivo de dez anos
para produzir histórias do Super-Homem para as
revistas em quadrinhos; somando a World’s Fair
Comics, a Action e a Superman, era um bocado de
páginas para produzir todo mês — em geral mais
de 50. Não demorou para que começassem a fazer
não apenas uma tira diária como também uma tira
em cores aos domingos. Mesmo depois de aluga-
rem um estúdio de verdade e contratarem quatro
desenhistas em tempo integral para encarar à carga
de trabalho, ainda continuavam ganhando mais di-
nheiro do que qualquer outro jovem de 25 anos que
conheciam, e estavam ansiosos para ganhar muito
mais.
No entanto, desde o início Jerry demonstrou re-
ceio de não conseguir aquilo que pensava merecer.
Poucos meses depois da primeira aparição do Su-
per-Homem, ao voltar da viagem a Nova York em
322
que fora fechado o contrato para a publicação da
tira, Jerry escreveu a Jack Liebowitz exigindo um
aumento de 10 para 15 dólares no preço pago por
página. Não sabemos o que Jerry escreveu, mas sa-
bemos qual foi a reação de Jack:

Francamente, quando terminei de ler [sua


carta], fiquei sem fôlego. [...]
O aumento que você exige não me fere tanto
quanto sua atitude em toda essa questão. [...]
Será possível que por nós o termos tratado como
um ser humano você tenha perdido a cabeça?
[...] Não pense que todo mundo em Nova York é
um vigarista e um patife, e só porque você é tra-
tado como um cavalheiro e um igual, não só por
nós como também pelo sr. Gaines e pelo pessoal
da McClure, que estamos tentando tirar vanta-
gem de você [...] pode ir descendo desse seu pe-
destal.

Mesmo levando em consideração que Jack, para


vencer os oponentes numa negociação, costumava
usar a tática do “vamos ver quem fala mais alto”, é
perceptível nessa carta sua real indignação. O com-
portamento de Jerry desde a morte do pai era não
mostrar infelicidade em público. Porém, quando es-
tava entre seu círculo mais íntimo, não tentava es-
conder o fato de que se sentia traído, com seus di-
reitos violados. Essa não seria a última vez que es-
ses sentimentos explodiriam em sua máquina de es-
323
crever. Jack deu a Jerry o aumento pedido, mas o
relacionamento entre os dois nunca mais foi o mes-
mo.
Joe não participava das disputas sobre dinheiro
e direitos autorais; ele deixava o mundo real a car-
go de Jerry. Infelizmente esse mundo também não
era o mundo de Jerry. Quando a briga esquentou
demais, Vin Sullivan chamou Jerry de lado e lhe
deu o nome de um amigo advogado, sugerindo dis-
cretamente que o procurasse. “Eu não preciso de
advogado”, disse Jerry. Familiares em Cleveland
sugeriram a mesma coisa e obtiveram a mesma res-
posta. Jerry fizera o papel de negociador e empre-
sário desde a escola secundária e não estava dispos-
to a abandoná-lo. O contrato que ele e Joe assina-
ram com a DC prometia aos dois “uma porcenta-
gem dos lucros líquidos resultantes da exploração
do Super-Homem em outros meios além das revis-
tas.” Mas os termos estavam perigosamente mal de-
finidos.
As disputas acalmaram em 1939, à medida que
a estrela do Super-Homem subia e novas oportuni-
dades surgiam a todo momento. Jerry e Joe esta-
vam animados demais para brigar — pelo menos
por uns tempos.
O trabalho deles estava mudando, tanto para
melhor como para pior. As tiras para os jornais
eram o produto mais bem acabado do estúdio; ne-
las, os melhores assistentes faziam seus desenhos
324
mais requintados e a edição de Whitney Ellsworth
era primorosa; porém a imprevisibilidade do Super-
Homem inicial estava sendo reduzida a uma fórmu-
la. As revistas sofriam, visualmente falando — so-
bretudo o Superman trimestral, com suas 64 pági-
nas de histórias inéditas —, uma vez que os assis-
tentes em geral corriam contra o relógio, economi-
zavam no desenho, passavam os quadrinhos de mão
em mão. Ao mesmo tempo, o Super-Homem e seu
mundo cresciam de forma interessante. Jerry e Joe
começaram a incluir nos quadrinhos personagens
criados pelos roteiristas do programa radiofônico
— o turbulento Perry White, o empavonado Jimmy
Olsen — , organizando assim uma simpática com-
panhia de coadjuvantes para dar apoio ao herói.
Lois começou sua busca obsessiva pela verdadeira
identidade do Super-Homem. O herói ganhou visão
de raio X e superaudição, começou a voar e sua
força aumentou tanto que ele mais parecia um pe-
queno deus do que uma caricatura de homem for-
tíssimo. Ao ficar mais poderoso, ganhou também
um arqui-inimigo equivalente aos melhores vilões
dos pulps: Jerry e Joe criaram contra ele um cien-
tista louco chamado Lex Luthor.
É espantoso notar quão pouca fantasia aqueles
dois fãs de ficção científica introduziram nos pri-
meiros dois anos das aventuras do Super-Homem.
Para eles, um personagem super-humano era inte-
ressante na medida em que poderia dar uma chaco-
325
alhada no mundo que conhecíamos. No início de
1940 porém a emoção do sucesso parecia desafiar
os dois a ir mais longe com suas fantasias, a se dis-
tanciar mais e mais da Terra. O Homem do Ama-
nhã continuaria perseguindo bandidos e até espan-
tando arruaceiros, mas passaria a enfrentar também
ameaças siderais à altura de seus poderes. Em vez
de expressar o que um fracote de 60 quilos gostaria
de ser, o super-herói em quadrinhos estava se trans-
formando numa metáfora de libertação, transforma-
ção e revelação. William Slater Brown, um crítico e
intelectual capaz de ler os símbolos da fantasia ao
contrário de muitos que costumavam levá-los ao pé
da letra, escreveu em 1940 que o Super-Homem
“além de propiciar entretenimento para os jovens
românticos, parece também sintoma de algum dese-
jo por uma religião primitiva”.
Jerry e Joe tinham encontrado a fórmula alquí-
mica para sua HQ: Clark Kent fazia a banalidade
quase caricatural, de repente dela se libertava num
esplendor alucinatório e depois, no fim, voltava a
se ocultar com uma piscada cúmplice para o leitor.
Era uma alegoria que encontrava eco na mente de
imigrantes e judeus: o forasteiro que chega e escon-
de sua identidade estrangeira para poder ser aceito
por uma cultura que preza a uniformidade. Mas o
Super-Homem era um símbolo ainda mais essencial
que isso: representava a consciência da singularida-
de que, embora escondida dos outros, mantemos
326
guardada na alma e é nosso verdadeiro poder e nos-
sa glória.
Apesar da velocidade e do volume da produção,
apesar das muitas mãos envolvidas na arte e das
muitas pessoas que Jerry contratou para contribuir
com idéias e ajudar na finalização dos roteiros, o
investimento pessoal que os dois criadores fizeram
no Super-Homem era bem claro nos primeiros
anos. Assim como Jack Liebowitz, eles começaram
a levar o Super-Homem a sério: o super-herói seria
um modelo para as crianças e uma força em prol da
justiça no mundo. Ele já não combatia apenas mul-
tidões violentas dispostas a linchar alguém ou rufi-
ões que espancavam suas mulheres; agora reserva-
va um tempinho para ajudar os fracos a enfrentar os
fortes, tirava os garotos pobres das garras das gan-
gues e os levava de volta para suas mães e também
ensinava algumas lições a moleques atrevidos e de-
pois os despachava, já mais humildes, para ser bons
cidadãos. A mensagem no trabalho de Jerry e Joe
não tinha um corpo político coerente, mas evocava
a prática do governo Roosevelt, era um retrato
hollywoodiano do New Deal, um mundo no qual os
inocentes eram feridos pela ganância e pela insensi-
bilidade e no qual todos podíamos usar uma cons-
ciência de cores primárias para intensificar e mexer
com os nossos sentidos.
Jerry Siegel, nesse momento, estava no auge da
confiança e da energia. Ainda que estivesse cada
327
vez mais sobrecarregado com as histórias do Super-
Homem, não parou de assumir novos projetos. Joe
já não podia se dar esse luxo, uma vez que nunca
teve tempo suficiente nem para desenhar como
queria, tendo sido obrigado a abrir mão de todas as
outras séries. Jerry no entanto era rápido para pro-
duzir roteiros, sobretudo depois de contar com a
ajuda do estúdio, e continuava tentando criar mais
algum personagem sensacional, dessa vez com ou-
tro artista. Ele já havia criado Red, White and Blue
para Shelly Mayer e Charlie Gaines, ainda antes de
os super-heróis dominarem o interesse do mercado.
No final de 1939, criou The Spectre (“O
Espectro”); um ano depois, The Star Spangled Kid,
sua contribuição para a nova onda de super-heróis
patrióticos; e em seguida uma versão cômica das
façanhas heróicas para uma ficção científica cha-
mada Robotman.
The Spectre demonstra, melhor que todas as ou-
tras histórias, a confiança que Jerry sentia naquele
momento. Criou o herói em colaboração com Ber-
nard Baily, um artista ousado, inventor de climas,
que o incentivou a se aventurar por novos territó-
rios. A idéia do personagem era ainda mais inova-
dora, sem precedentes, inclassificável, que a do
próprio Super-Homem: a história de um homem as-
sassinado por gângsteres que é enviado novamente
ao mundo dos vivos por Deus, para combater o cri-
me com poderes mágicos. Talvez tenha sido Baily
328
o responsável pela lógica onírica dos quadrinhos: O
Espectro atravessava paredes, o tempo e universos
paralelos, tornava invisível a cabeça dos outros
para poder “ler os conhecimentos que a pessoa tra-
zia guardados no cérebro”, além de crescer de ta-
manho a ponto de ser capaz de atirar estrelas como
se fossem pedregulhos. Mas a raiva que salta para
fora das páginas nos momentos secundários, uma
raiva sem fórmulas nem palhaçadas, parece vir toda
de Jerry Siegel. O simples olhar do Espectro pode
matar. Na primeira história, ele fita um assassino
com um ódio branco, sem pupilas, e o homem mor-
re de terror. Depois transforma outro delinquente
num esqueleto vivo. “Não me largue assim!”, im-
plora a vítima descarnada. Nosso herói ergue a mão
impiedosa: “Você roubou — você matou — e esta
é sua recompensa!” Sob o novo código para super-
heróis da DC, Jerry foi obrigado a se conter, mas
ainda assim tinha seus momentos de fúria. Em certa
ocasião, o Espectro cresce até ficar colossal e es-
maga com o pé um carro em fuga. Não vemos nin-
guém morrer, mas sabemos que houve mortes. A
tragédia pessoal do Espectro era diferente da de
qualquer outro personagem de Siegel: havia acaba-
do de ficar noivo na noite em que foi assassinado; o
sonho perdido alimentou sua raiva.
Com a fama, o dinheiro e o triunfo obtidos no
campo que escolhera, começou a surgir um novo
Jerry Siegel. Não que o velho Jerry Siegel o hou-
329
vesse abandonado por completo. Nenhum criador
de histórias em quadrinhos que tivesse a mesma en-
vergadura que continuaria recebendo por página
produzida. E óbvio que Jerry devia nutrir esperan-
ças de fazer sucesso com alguma nova criação, mas
por certo não lhe passou pela cabeça que algo ao
mesmo tempo tão fantástico e tão horripilante
quanto o Espectro pudesse ter o apelo universal do
Super-Homem. Nunca tentou usar sua reputação
para conseguir oportunidades melhores, nunca pe-
diu para escrever um roteiro para os programas ra-
diofônicos do Superman, nunca tentou criar uma
guerra entre os concorrentes da DC por seus servi-
ços e esperou anos antes de tentar vender uma nova
tira para os jornais. Não exigiu nem mesmo traba-
lhar com os melhores artistas do ramo; contentou-
se em ficar com quem estivesse disponível. Quando
seu herói levou as revistas em quadrinhos de Do-
nenfeld do anonimato medíocre à fama e ao suces-
so instantâneos, Jerry pediu um aumento de 50%
no preço da página. Havia conseguido atingir sua
tão sonhada meta, escrever uma tira para um jornal
de circulação nacional, e parecia satisfeito em usar
isso apenas para obter algumas novas encomendas
do mesmo patrão de sempre, como se não pudesse
se imaginar fora do velho circuito dos pulps, como
se temesse dar o salto que o tornaria de fato dife-
rente do que fora antes.
Esses medos e essas dúvidas que era possível
330
entrever em suas decisões profissionais aparecem
com muita clareza quando nos voltamos para a
moça da casa em frente. Ele continuou acompa-
nhando seus movimentos da janela do sótão, em
seu quarto na Kimberly Avenue; via quando ela
chegava da escola, às vezes papeando com as ami-
gas, mas em geral sozinha, os livros apertados de
encontro aos seios, os cabelos negros puxados para
trás, e ficava espiando até a menina entrar em casa
e sumir com um rodopio da saia. Bella era miúda,
tímida e bonita de um jeito que só as meninas que
não se acham bonitas podem ser. A família parecia
viver num aperto danado e às vezes, à noite, dava
para ouvir a voz dela discutindo asperamente com a
mãe.
Bella tinha 15 anos quando o desajeitado e atar-
racado rapaz de 22 anos que morava com a mãe na
casa diante da sua convidou-a para sair pela primei-
ra vez. Saíram algumas vezes, mas ele não oferecia
grandes perspectivas. Tinha que catar garrafas nas
latas de lixo para arranjar uma grana que desse para
bancar os encontros. E, quando começou a vender
histórias para gibis, ela não soube o que pensar. Po-
rém, de uma hora para a outra, lá estava ele pergun-
tando: “Olá, será que por acaso sua família assina o
Plain Dealer?” E contando a ela, com um amplo
sorriso no rosto, de sua tira diária no jornal, das
críticas favoráveis da imprensa, do seu contrato de
dez anos, do seu estúdio, de sua próxima visita à
331
Feira Mundial de Nova York como convidado do
editor, dos planos para um programa de rádio base-
ado no seu personagem. Quando ele novamente a
convidou para sair, ela aceitou, e ficou sabendo
qual era a sensação de ir de carro novo até os gran-
des salões de baile à beira do lago em vez de sair
para dar uma volta a pé até a Solomon’s Deli.
A mãe de Jerry começou a perguntar ao filho
por que ele passava tanto tempo com aquela garota.
Jerry disse que ela era uma boa moça e que gostava
dela. Sarah falou que ele poderia conseguir coisa
muito melhor. Ela era nova demais, a casa era um
pardieiro, e todo mundo sabia que a família era pre-
guiçosa. Jerry subia a escada furioso, batendo as
portas. Sarah repetia todos esses argumentos para
as irmãs, inclusive na presença das primas, espe-
rando que concordassem com ela, que Jerry poderia
conseguir coisa muito melhor, sobretudo depois de
ter se tornado um sucesso. Se por acaso Sarah tinha
alguma outra moça em mente para o filho, nunca
abriu a boca a respeito. Aos olhos dos primos, pare-
cia satisfeita em continuar tendo o filho a seu lado;
mas justo no momento em que Sarah podia enfim
se vangloriar do seu menino, quando ele finalmente
tinha condições de comprar coisas bonitas para ela,
Jerry começou a deixá-la sozinha em casa e a gas-
tar seu dinheiro com uma colegial que não havia
lhe dado nada. E Sarah então começou a repetir:
“Vou morrer se ele se casar com aquela moça.” Sa-
332
rah Siegel não dizia coisas desse tipo da boca para
fora.
Jerry começou a ver Bella todas as noites. O
que conversavam, não sabemos. Talvez Jerry lhe
falasse nos muitos anos de recusa e de determina-
ção, talvez falasse de seus planos grandiosos para o
Super-Homem. Quem sabe bancava o maioral na
frente dela, o homem das idéias, o chefe do estúdio,
aquele que dava as cartas para Joe e para os de-
mais. Pode ser que ela apenas o fitasse de olhos
muito abertos, meneando a cabeça, ou tentasse,
com um toque, acalmar aquela energia frenética,
desengonçada. Há uma cena, na primeira história
do Espectro, nada mais que um clichê, mas ainda
assim interessante por ter saído da pena de um ho-
mem que quase nunca escrevia cenas românticas;
foi escrita no verão de 1939, logo depois do início
de seu romance com Bella. “Por que uma dama de
verdade como você se interessaria por um simpló-
rio como eu, não dá pra entender”, diz o herói.
“Mas uma coisa é certa: a nossa família vai ter um
único chefe, e esse chefe serei eu.” Dito isso, a
dama o beija e eles ficam noivos. Há muitas fanta-
sias de poder que um rapaz pode incluir numa his-
tória em quadrinhos.
Na primavera de 1939, o primeiro número de
Superman já estava nas bancas; a tira do herói con-
quistava novos jornais a cada semana, e Charlie
Gaines estava dizendo a Jerry e Joe que, sem som-
333
bra de dúvida, eles tinham um grande sucesso nas
mãos. Uma noite Jerry apareceu na casa de Bella,
discorreu nervosamente sobre seu novo sucesso e
depois remexeu nos bolsos, em busca de uma caixi-
nha. Bella abriu-a e encontrou lá dentro um anel
com o maior brilhante que já tinha visto na vida.
No escândalo que se seguiu a isso, os mais ve-
lhos e todas as mulheres das famílias Siegel e Fine
ficaram do lado de Sarah. Os irmãos e os primos
homens de Jerry disseram que ele poderia se casar
com quem quisesse — depois de uma ou duas pia-
dinhas sobre o milagre que seria alguém querer se
casar com ele. As tias de Jerry o chamaram para
uma conversinha particular, uma por uma, e todas o
avisaram sobre o erro que iria cometer. A menina
era nova demais. Jerry respondeu que ela já com-
pletara 18 anos. Não sabia cozinhar, muito menos
como dirigir uma casa. Jerry não queria uma cozi-
nheira; queria uma companheira. A mãe morreria
de tristeza se ele se casasse com ela. A mãe, disse
Jerry, aprenderia a gostar dela tanto quanto ele gos-
tava.
Eles se casaram em junho, uma semana depois
da formatura de Bella no segundo grau. Sarah cho-
rou e praguejou durante dias a fio.
Jerry havia alugado um apartamento não muito
distante de casa mas depois que Sarah se recusou a
pôr os pés em qualquer casa onde também estivesse
“aquela moça”, ele deu um basta. Anunciou que es-
334
tava se mudando para Nova York, junto com Bella.
Para muitos membros da família, aquela foi a últi-
ma vez que o veriam por muitos e muitos anos.
Mesmo depois que voltou a Cleveland, Jerry man-
teve distância. Sarah ficou mais calada depois dis-
so. Quase não falava do filho caçula e começou a
se queixar com mais frequência de problemas de
saúde.
Jerry e Bella encontraram, numa das ruas mais
arborizadas de Jackson Heights, um bom aparta-
mento num prédio em estilo colonial. Essa parece
ter sido uma época boa na vida de Jerry. Amava
sua jovem esposa, amava o bairro em que vivia
(próspero, animado, judeu, como se fosse um Glen-
ville mais urbano), e adorava tomar o trem para
Manhattan, ser cumprimentado como um astro de
cinema nos escritórios da DC na avenida Lexing-
ton, sair para beber e conversar sobre enredos com
Whitney Ellsworth, visitar os estúdios de gravação
com Duke Ducovny e contar aos redatores e atores
do programa de rádio o que iria acontecer em se-
guida com o Super-Homem. No entanto raramente
saía com Bella. Ela não gostava do círculo de ami-
gos do marido. Não se sentia à vontade no meio das
fanfarronices e da fumaça incessante de cigarro dos
jovens artistas e editores com quem o marido se re-
lacionava. Jerry continuava sendo um homem mui-
to reservado. Sua vida conjugal ficava separada de
todo o resto. Não aparecia em público com a mu-
335
lher e quase não falava nela, a não ser por uma ou
outra piada de marido escravizado.

JOE FICOU encarregado de dirigir praticamen-


te sozinho o estúdio em Cleveland, enquanto Jerry
o mantinha informado, via correio, sobre os desdo-
bramentos editoriais. Joe desenhava personagens,
fazia os esboços a lápis das histórias mais impor-
tantes, desenhava os rostos do Super-Homem e de
Lois e, nos intervalos, dirigia os jovens alegres que
trabalhavam com ele: Paul Cassidy, Leo Nowawk,
John Sikela e Wayne Boring. Dizia sentir falta de
desenhar às vezes, mas na maior parte do tempo es-
tava curtindo sua liberdade e o fato de não ter que
ficar preso ao tedioso trabalho de ilustração. Não
contou a ninguém, nem mesmo a Jerry, que parte
do motivo para gostar disso era sua vista, que sem-
pre fora fraca, e estava piorando. Seus desenhos em
tinta já não tinham mais a mesma elegância de an-
tes, nem mesmo nos traços do rosto familiar do Su-
per-Homem. Ele devia estar se perguntando se teria
condições de desenhar sozinho alguma outra histó-
ria.
No campo pessoal, a confiança aumentou a pon-
to de Joe ousar convidar a algumas moças para sair.
Seu método para isso era ir aos cafés e lanchonetes
e desenhar para atrair a atenção das garotas, depois
presenteá-las com um desenho do Super-Homem e
perguntar se não gostariam de comer alguma coisa
336
ou de visitar o estúdio. O problema era que ele não
conseguia reter o interesse delas depois de estabele-
cido o primeiro contato. Aos 25 anos, saiu com
uma garota de 15, chamada Eileen Freeman. Ele fa-
lou sem parar no Super-Homem e desenhou para
ela um retrato do herói em “papel manilha pardo,
daqueles que a gente costumava usar nas aulas de
arte”. “Ele estava se pavoneando”, diria ela, anos
depois. “O encontro não iria dar em nada, logo vi.
Não lembro aonde fomos. Não lembro o que fize-
mos. Só lembro que nunca mais o vi.”
Às vezes Jerry tomava o trem para Cleveland
para trocar idéias sobre novos enredos e conversar
a respeito da arte que o estúdio estava produzindo.
Outras vezes, era Joe quem ia para Nova York.
Jerry gostava de levar visitantes de Cleveland aos
melhores restaurantes e aos bares mais famosos da
cidade, desembolsando um bom dinheiro, mas sem
nunca se demorar muito tempo nos lugares. E o que
Joe preferia mesmo era ficar pelos estúdios, vendo
o trabalho dos desenhistas, conversando sobre HQ.
Para os editores e roteiristas de histórias em quadri-
nhos, acostumados a lidar com gente que trabalha-
va com a palavra e que arrotava sabedoria, a capa-
cidade dos desenhistas de discorrer durante horas a
fio a respeito de diferentes superfícies de papel e
pontas de pincel ou de se dispor a ficar vendo os
outros desenharem era fonte interminável de as-
sombro e tédio. Joe gostava de sentar ao lado de
337
Jerry Robinson e de Mort Meskin numa sala atulha-
da de papéis e se esquecer do grande mundo que
Jerry Siegel queria tanto conquistar. (E, quando
Robinson achava que Joe precisava se afastar um
pouco da prancheta, marcava um encontro dos dois
com duas garotas.)
O ponto alto de Joe em Nova York, o momento
em que ele percebeu que tinham chegado lá, foi o
Dia do Super-Homem, no segundo verão da Feira
Mundial, em 1940. Duke Ducovny tinha consegui-
do que a Macy’s bancasse um grande espetáculo,
com desfile e presença de pessoas famosas — in-
clusive Charles Atlas em carne e osso. Quando Joe
ainda era garoto, as imagens daqueles halterofilis-
tas de calça de malha que apareciam nas revistas de
MacFadden, sobretudo as de Charles Atlas, haviam
lhe propiciado alguns vislumbres do super-ser he-
róico. Em sua adolescência, os anúncios de Charles
Atlas foram os primeiros a lhe sugerir a possibilida-
de de o homem forte ser inimigo da bandidagem; e,
na primeira história publicada do Super-Homem,
Joe incluíra uma piada visual que remetia àqueles
anúncios. Sob vários aspectos, o Super-Homem era
uma idealização de Charles Atlas e ali estava O
Homem Com O Corpo Mais Perfeito do Mundo em
pessoa, estendendo a mão para Joe.
Um pouco mais tarde, naquele mesmo ano, Joe
anunciou que iria se mudar para Nova York. Os ar-
tistas do estúdio poderiam se mudar para o Leste
338
também, disse ele, ou continuar trabalhando para
ele à distância. Mas sua família iria junto. Tinha
meios para alugar uma casa de dez cômodos no
Queens, e levou todos para lá: o irmão, a irmã e os
pais. Uma vez mais, os Shusters estavam de mu-
dança, mas dessa vez Joe não sofreu com isso; ele
estava no comando.

À MEDIDA QUE as aventuras radiofônicas do


herói foram penetrando na consciência americana,
Jerry e Joe também começaram a se tornar símbo-
los heróicos. No final de 1940, Jerry participou do
Town Hall Tonight, com Fred Allen, um dos pro-
gramas mais conhecidos e prestigiados do rádio.
Allen lhe perguntou como havia criado o Super-
Homem, e Jerry então fez o papel do cara normal,
de hábitos normais, que por acaso teve uma boa
idéia e acreditou nela. Foi penoso escutar a entre-
vista — enquanto Jerry luta para vencer a timidez e
acompanhar o roteiro do programa, Allen o encur-
rala com improvisações condescendentes. Mesmo
assim, ali estava Jerry Siegel trocando figurinha
com Fred Allen. Ele mencionou os gibis da DC e
“meu editor, o senhor Ellsworth”, e também fez
questão de mencionar Bella, ainda que apenas
como a esposa que dava bronca nele quando atrasa-
va algum roteiro.
Alguns meses depois, a revista Liberty consoli-
dou a lenda de Siegel que melhor explicava ao
339
americano médio de idade adulta o que vinha a ser
aquela obsessão de certos jovens pelos comic bo-
oks. “Jerry, um menino pequeno, subnutrido, leva-
va muito safanão dos valentões do bairro. Aguenta-
va os olhos roxos e as surras e, enquanto isso, refu-
giava-se num mundo de sonhos só seu, devorando
os feitos de Hércules, Sansão, Tarzan, Doug Fair-
banks e vários outros super-heróis que apareciam
nos romances baratos, sonhando com o dia em que
ele próprio esmurrasse um de seus carrascos.” E foi
assim que ele e Joe criaram “seu Homem do Ama-
nhã, aquele que, segundo palavras de Siegel, iria
‘acabar com a raça dos valentões no mundo todo’.”
Jerry estava se transformando no símbolo da resis-
tência do mais fraco. E esse foi um papel que ele
começaria a levar a sério quando seu relacionamen-
to com a DC começou a mudar.
Porém nesse meio-tempo, Jerry descobriu que
tinha um problema em viver em Nova York: ele
não estava conseguindo cumprir os prazos de pro-
dução, e estar em Nova York significava ser encon-
trado com mais frequência pelos ansiosos editores
da DC. Então resolveu voltar com Bella para Cle-
veland. Comprou uma casa em University Heights,
um imóvel pequeno mas elegante, estilo século
XVIII, num trecho chique da sossegada Glendon
Road. Na época em que Jerry era criança, Glenville
sempre fora um bairro “melhor” que Mount Plea-
sant ou Woodlawn, mas o University Heights era
340
só para os judeus que tinham “chegado lá”. Conti-
nuaria mantendo apartamentos ou quartos de hotel
em Nova York, onde vivia uma parte do ano, po-
rém Cleveland era de novo seu lar. Gostava de ban-
car o dono de casa nos subúrbios elegantes. Ele e
Bella espalharam pela vizinhança o boato que o
“Super-Homem” havia acabado de se mudar para
lá; Jerry gostava de contar aos seus entrevistadores
que meninos e meninas costumavam bater em sua
porta e perguntar “O Super-Homem está?” Ele ti-
nha um uniforme de Super-Homem para mostrar,
depois explicava que o Homem do Amanhã tinha
dado uma saída, mas voltaria antes de sua próxima
aventura.
Jerry mostrou a casa nova para a mãe, mas ela
se queixou tão amargamente a respeito da falta de
organização de Bella que ele resolveu que seria me-
lhor descer a colina e ir visitá-la na velha casa da
Kimberly. O resto da família, ele via muito pouco.
Seu primo Jerry Fine ficou surpreso ao saber, anos
mais tarde, que Jerry e Bella tinham uma casa em
Cleveland. “Pensei que tivesse ficado aquele tempo
todo em Nova York”, disse ele, “só enriquecendo.”
Naquela casa na Glendon Road, em agosto de
1940, Jerry escreveu a história mais estranha de
toda a sua carreira com o Super-Homem. Nela, in-
troduziu o “Metal-K de Krypton”, sua primeira ver-
são da kryptonita; foi também nesse número que
ele brincou pela primeira vez com a possibilidade
341
de o Super-Homem perder temporariamente seus
super-poderes. No caso, o Metal-K era um asterói-
de que passara raspando pela Terra, mas acabara
deixando Clark e Lois presos nas profundezas de
uma mina; naquelas condições, nosso herói só po-
deria salvar seu grande amor da morte se revelasse
sua verdadeira identidade. Jerry e Joe já tinham
posto o Super-Homem nesse mesmo dilema várias
vezes, assim como os roteiristas dos programas de
rádio, por isso os leitores tinham certeza de que ele
acharia um jeito de sair dali sem se revelar. Uma
nuvem de poeira de carvão poderia obstruir o cam-
po de visão de Lois. Ela poderia ficar sabendo a
verdade, mas depois ser atingida na cabeça por uma
pedra e ficar com amnésia. Mas, em vez disso, “sa-
bendo que ela já não pode viver muito mais tempo
se não houver alívio para seus pobres pulmões tor-
turados, e odiando vê-la sofrer, ele toma uma deci-
são importante.” Arranca as roupas externas e se
revela como o Super-Homem. Em seguida, voa
com ela para um lugar seguro, e dessa vez não faz
nenhuma tentativa de enganá-la de novo.
“Mas é ESPANTOSO! É DESCONCERTAN-
TE!”, ela exclama, enquanto eles cruzam o céu.
“Por que você nunca me contou quem era de verda-
de?” “Porque se as pessoas ficarem sabendo quem
na verdade sou”, responde ele, “vão atrapalhar mi-
nha missão de salvar a humanidade. Você tem que
guardar segredo, Lois, segredo absoluto!” “Agora
342
começo a entender”, diz Lois. “Suas atitudes covar-
des como Clark Kent — foram apenas um disfarce
para impedir que o mundo soubesse quem você é
de fato! Mas tem uma coisa que preciso saber:
aquela sua - ahn - afeição por mim na pele de Clark
Kent também era fingimento?” “ISSO”, diz ele, “é
pura verdade, Lois!” E então aparece uma Lois
Lane que nós nunca vimos antes: “Que tolo você
foi de não me contar seu segredo! Devia saber que
podia confiar em mim! Ora — será que não perce-
be que eu poderia até ajudar você?” “Tem razão! Já
houve várias ocasiões em que teria sido muito bom
ter uma aliada. Por que não pensei nisso antes?”
Lois atira os braços em volta do pescoço dele e ex-
clama: “Então estamos combinados! Nós vamos ser
— parceiros!”
O Super-Homem sorri para ela. “Claro — par-
ceiros!” Na cena final, os dois encerram a trama
formando uma dupla.
Com menos de dois anos nas bancas e apenas
seis meses após o início dos programas de rádio,
Jerry Siegel havia mudado um dos pilares centrais
em torno dos quais a história do Superman fora
construída. Por acaso a felicidade conjugal de Jerry
estaria transbordando para as páginas do gibi? Ou
seria a voz de Bella em seu ouvido? Ela não teria
sido a última consorte da indústria a perguntar ao
marido: “Por que ele a trata desse jeito? E por que
ela aguenta isso?” Naquela cena final, quando Lois
343
está trabalhando como parceira do Super-Homem,
ela sussurra: “Acabei de pensar em quanta risada
você já deve ter dado de mim em segredo! Não
gosto que riam de mim, Clark Kent — sim — vou
ajudá-lo... Mas veja: é só pelo bem da humanidade,
claro!” Um dos assistentes do estúdio de Siegel e
Shuster diria mais tarde que Jerry nunca falava
muito sobre a mulher, a não ser para se queixar de
que Bella não gostava do Super-Homem. Talvez as
constantes humilhações a que Clark submetia Lois
fossem uma fantasia típica de garoto da qual Bella
queria se livrar.
Tenha vindo dele mesmo ou de Bella, o fato é
que a mudança marcou uma reviravolta no relacio-
namento de Jerry com seu herói. Os super-poderes
não serviam mais para se vingar de garotas zombe-
teiras. Serviam agora para transformar garotas to-
las, candidatas a megera em parceiras cheias de ad-
miração. A reviravolta no entanto não se concreti-
zaria. E, daquele momento em diante, Jerry Siegel
deixou de ser a principal força motriz no desenvol-
vimento das histórias do Super-Homem.
“O Metal-K de Krypton” nunca foi publicado.
A própria idéia do metal foi vetada, até que os ro-
teiristas do programa de rádio a tiraram da gaveta,
três anos mais tarde, sob o nome de “kryptonita”.
Mesmo assim, ainda que figurasse com destaque
nos episódios radiofônicos, a kryptonita permane-
ceu fora dos quadrinhos até 1949, quando Siegel e
344
Shuster já tinham partido. Os editores da DC não
queriam que o Super-Homem tivesse um calcanhar
de Aquiles e com certeza não queriam um fim para
a charada envolvendo Clark e Lois. Uma nota ma-
nuscrita, feita por um editor de nome desconhecido
à margem do roteiro, dizia apenas: “Não é uma boa
idéia deixar que outros saibam do segredo”. E as-
sim foi.
A DC estava mudando sua filosofia de edição.
No início, nos tempos de Vin Sullivan, um editor
comprava material, montava revistas e dizia aos co-
laboradores o que o público preferia. Os escritores
e artistas decidiam o que seus heróis fariam e envi-
avam as páginas prontas. Mas, com uma proprieda-
de que rendia lucros colossais nas mãos e outras
com enorme potencial, Jack Liebowitz e Whitney
Ellsworth concluíram que precisariam de mais con-
trole editorial. Jerry Siegel podia ter iniciado a in-
dústria do Super-Homem, mas isso não lhe dava o
direito de arruiná-lo agora que havia tanta gente de-
pendendo dele.
No início de 1941, ambos contrataram um se-
gundo editor, alguém para trabalhar sob as ordens
de Ellsworth, que teria responsabilidade especial
pelos argumentos e pela qualidade das histórias do
Super-Homem e do Batman. E escolheram para a
tarefa não um cartunista como Ellsworth, Sullivan
ou Shelly Mayer, que conversavam com os artistas
como alguém do meio, e sim um editor de ficção
345
saído das pulps. Um poderoso e jovem editor co-
nhecido por conceber as próprias idéias, aumentar
as vendas dos produtos dirigidos às crianças e tam-
bém por dizer aos escritores o que e como fazer:
Mort Weisinger, o criador de Captain Future.
Weisinger levou alguns extras consigo. Já tinha
escrito algumas coisas e tinha idéias comerciais; as-
sim que assumiu o cargo, sentou-se e criou dois no-
vos heróis sem-graça mas confiáveis, Aquaman e
Green Arrow (Arqueiro Verde). E tinha como levar
bons escritores junto. Assim que explicou a Ed-
mond Hamilton, Alfred Bester, Henry Kuttner e
outros escritores de ficção científica como era fácil
e lucrativo o trabalho com quadrinhos, eles puse-
ram mãos na massa e começaram a produzir rotei-
ros para a Detective e para a All American. Weisin-
ger gostava dos chefes. Desde o primeiro dia, soube
como adoçar os azedumes de Liebowitz e de Do-
nenfeld e como desempenhar o papel do garoto an-
sioso para aprender o ofício dos mais velhos; que-
brado o gelo, aprendeu a jogar gin rummy, a beber
sem perder a compostura e a contar piadas sujas tão
bem quanto os dois.
Talvez o melhor de tudo nele fosse o fato de
não se deixar intimidar pelo talento. Exceto por um
pequeno grupo que nutria aspirações literárias e
que não aceitava os termos gerais, os contos publi-
cados pelos pulps eram feitos por escritores de alu-
guel e muitas vezes o melhor trabalho ficava anôni-
346
mo. O Sombra foi escrito por vários homens dife-
rentes, sob o pseudônimo da casa, “Maxwell
Grant”, uma forma utilizada pelos romances bara-
tos desde 1870. O importante era o personagem e a
aparência de continuidade, não o escritor ou o artis-
ta. Foi esse o entendimento que Mort levou consigo
para substituir o respeito profundo que os editores
das tiras tinham pelos quadrinistas. Os fãs de Flash
Gordon, pelo menos os mais velhos, sabiam quem
era Alex Raymond, e seu syndicate acreditava no
valor do estilo e da assinatura dele. Mort no entanto
sabia que, quando Gardner Fox entrava para tapar
os buracos deixados por Bill Finger, bêbado demais
ou empacado num texto, os leitores de Batman nem
reparavam na mudança. E também não notariam se
alguém substituísse Jerry Siegel em Superman.
Depois de enterrada a idéia do Metal-K, Jerry
continuou produzindo histórias do Super-Homem
normalmente, no mesmo espírito de sempre. De
início, gostou muito, achou divertido trabalhar de
novo com seu antigo colega Mort Weisinger, que,
nove anos antes, havia colaborado com a precária
Science Fiction, feita ainda em mimeógrafo. Por
essa época, Jerry enviou sua idéia para a criação do
Superboy. A DC registrou o nome, antecipando um
possível lançamento, e Jerry desenvolveu um con-
ceito de como seria a história. E se por acaso o Su-
per-Homem, antes de ter aprendido o significado da
responsabilidade adulta, tivesse usado seus super-
347
poderes para fazer algumas estrepolias? Nesse
caso, Jerry e Joe poderiam dar vazão às palhaçadas
e autozombarias de Goober the Mighty. Weisinger
vetou. As travessuras seriam um mau exemplo para
a juventude americana. E as tolices diminuiríam o
valor do Super-Homem. Jerry continuou produzin-
do, mas estava cada vez mais frustrado. Tinha
achado que o sucesso significaria liberdade e acei-
tação. Na verdade, o sucesso só dera a Mort Wei-
singer e a Whitney Ellsworth ainda mais motivos
para mantê-lo sob controle. Também não ajudava o
fato de The Spectre não estar vendendo tanto quan-
to se esperava, e de a revista The Star Spangled
Kid não estar incendiando as bancas de jornal. Jerry
começava a se dar conta, muito a contragosto, que
a atração não era ele, e sim o Super-Homem, e que
seus editores deviam estar chegando à mesma con-
clusão. O estúdio de Siegel e Shuster também não
ajudava muita coisa, porque eram tão poucas as
histórias do Super-Homem desenhadas por Joe
Shuster — e o fato tão evidente —, que qualquer
editor já devia ter começado a se perguntar para
que precisavam dele. A Jerry e Joe, só restava agra-
decer pela existência de um contrato de dez anos.
A frustração de ambos piorava ainda mais quan-
do viam a quantidade de artigos do Super-Homem
à venda nas seções de brinquedos e de roupas in-
fantis de todas as lojas em que entravam. No come-
ço, ficaram satisfeitos, e compravam eles mesmos
348
todos os lançamentos que a DC não lhes tivesse
mandado de graça. Mas a expectativa foi aumen-
tando, queriam saber quanto iriam ganhar com as
licenças concedidas, com os programas radiofôni-
cos e com a enxurrada de publicações como o ro-
mance Superman, da Random House. Conhecidos e
parentes diziam a todo momento: “Vocês devem
estar ficando ricos com aquele programa no rádio”,
e tudo o que eles podiam fazer era sorrir.
Já no começo de janeiro de 1940, assim que o
programa de rádio conseguira um patrocinador,
Jerry havia escrito a Jack Liebowitz para lembrá-lo
do trato, e Liebowitz respondera com um balde de
água fria: “Dedique-se ao seu trabalho com zelo e a
ambição de melhorar e esqueça essa história de di-
reitos sobre livros, filmes e todos os outros sonhos.
Nós tomaremos conta das coisas da maneira corre-
ta.” Porém 1940 passou, 1941 começou, contratos
foram fechados (a Paramount Pictures garantiu à
empresa 100 mil dólares pelos direitos da animação
e os patrocinadores do programa radiofônico quase
a mesma quantia pelos direitos da primeira tempo-
rada da série), e o dinheiro não apareceu. No encer-
ramento do ano fiscal de 1941, depois de Jerry ter
escrito pedindo a porcentagem deles, nos lucros
líquidos garantidos pelo contrato, Liebowitz decla-
rou que os números “mostram que perdemos di-
nheiro, e que portanto vocês não têm direito aos
royalties. No entanto, de acordo com a nossa atitu-
349
de sempre generosa para com vocês, rapazes, estou
anexando um cheque no valor de 500 dólares, que é
na verdade um sinal de apreço.” As empresas de
Donenfeld haviam tido uma receita de 1,5 milhão
de dólares com o Super-Homem, e no entanto, nas
contas de Jack, tinha havido prejuízo. Os “rapazes”
estavam diante de um contador.
A Jerry, só restava arder de indignação e recla-
mar aos quatro ventos. Toda vez que ia a Nova
York, deixava bem claro que não se sentia contente
e esse boato logo alcançou Harry Donenfeld. Harry
gostava de ver todo mundo feliz. Costumava dizer
a Jerry: “Não fiquem preocupados, rapazes, nós va-
mos tomar conta de vocês; vocês vão receber tudo
a que têm direito!” Harry prometeu que Jerry e Joe
teriam emprego pelo resto da vida — e é muito pro-
vável que falasse com sinceridade, ainda que sob a
implícita cláusula de que ambos ficariam lhe de-
vendo esse favor e que saldariam essa dívida com
eterna lealdade. Esse era o código que Harry apren-
dera nas ruas antes da guerra; esse era o sistema
pelo qual, em seu mundo, os vigaristas e os que fa-
ziam escambo de favores conduziam seus negócios.
Jerry e Joe no entanto não tinham aprendido código
de rua nenhum, nunca tinham fechado um negócio
de verdade, desconheciam o mundo embriagado e
enfumaçado dos negócios. Entendiam de filmes, de
quadrinhos e de ficção científica, em que as pala-
vras eram o que eram, em que os bandidos e os mo-
350
cinhos tinham traços claros. E ficaram com medo
de pedir ajuda para não expor sua juventude e ino-
cência.
Jerry tomou as palavras de Harry ao pé da letra
e arquivou as promessas feitas junto com o trato
que acreditava ter fechado. Sabia que Harry era o
chefe de Jack, pelo menos teoricamente, e começou
a insistir no cumprimento do prometido. Jack no
entanto era um contador que tinha aprendido seu
ofício lidando com sindicatos, vigaristas e pornó-
grafos. Mantivera suas empresas no azul numa épo-
ca que havia arrasado com a maior parte da concor-
rência. Travava uma batalha trimestral contra os
impostos cada vez mais altos do New Deal. Já tinha
precisado que pagar muita gente e muitas vezes
para livrar Donenfeld das próprias burradas e havia
chegado enfim ao sucesso de verdade nos negócios.
Não iria se deixar derrubar por uma dupla de visio-
nários ingênuos que não sabiam nem mesmo o que
significava “lucro líquido”.
Jerry continuou escrevendo. Suas histórias con-
tinuaram vigorosas e animadas. Mas, por dentro,
foi acumulando uma justificada raiva. Alguns dos
momentos mais fortes de seus roteiros foram dra-
matizações dessa raiva. O olhar mortal do Espectro.
O Super-Homem rasgando a camisa com aquela
carranca raivosa e dizendo: “Agora vamos fazer
uma visitinha pessoal a Luthor!” Mas Jerry estava
prestes a aprender que o mundo não é uma história
351
de super-heróis, e que a vitória não é dos mais feri-
dos nem dos mais raivosos.

9
——————————
O TURBILHÃO

DE REPENTE, HAVIA uma dúzia de editoras


de gibis na área central de Manhattan. Em seu ata-
que aos gibis, Sterling North classificou como
“proliferação anormal” o aumento no número de
editoras. A descrição se adapta melhor a outros ti-
pos de empreendimentos que realmente geraram a
coisa toda — fábricas de papel, gráficas, editoras
de partituras, pequenas distribuidoras, fabricantes
de brinquedos e salas repletas de ex-estudantes de
arte debruçados sobre pranchetas. As revistas Su-
perman e Action ficaram no topo da lista por uns
tempos, mas logo a Captain Marvel e sua compa-
nheira, a Whiz, passaram à frente, seguidas de perto
na segunda colocação por títulos como Batman e
Detective. Novos gibis — com nomes como Flash,
Hit, Crack, Pep, Zip, Speed — apareciam do nada e
faziam sucesso imediato. Várias revistas em qua-
drinhos tiveram tiragens de mais de 1 milhão de
exemplares, em 1941. Títulos que vendiam entre
100 a 200 mil exemplares eram considerados irrele-
vantes pela gente do ramo.
A produção era limitada não pelo mercado, mas
352
pelo cronograma das gráficas e pela disponibilidade
de papel. As vezes o que levava um gibi do nada às
bancas era uma súbita entrada de papel ou de capi-
tal. Um belo dia, no início de 1941, Lev Gleason,
ex-representante comercial de uma gráfica decidido
a tentar a sorte como editor, viu-se diante da opor-
tunidade de reservar alguns milhões de folhas para
impressão — sob duas condições, porém. Teria de
fazer o pedido imediatamente e também imediata-
mente transformar todas aquelas resmas em algo
vendável, caso contrário o distribuidor não lhe adi-
antaria o dinheiro para pagar a conta. Gleason com-
prou o papel e prometeu que até a segunda-feira se-
guinte estaria com as páginas de sua revista na
gráfica. Só que era uma sexta-feira e ele não tinha
nada para imprimir.
Chamou então seu colaborador e cartunista pre-
dileto, Charlie Biro, e disse: “Me arrume 64 pági-
nas até segunda de manhã.” Gleason só pediu para
que seu super-herói, chamado Daredevil (Demoli-
dor), fosse o destaque de capa. No mais, o pessoal
que se virasse para preencher o resto das páginas.
Charlie Biro dividia com seu melhor amigo, Bob
Wood, e com o principal artista de Batman, Jerry
Robinson, um estúdio modesto na rua 52, cercado
de clubes de jazz e de inferninhos. Wood levou
seus irmãos, Dick e Dave, para ajudar. Robinson
chamou os dois caras com quem dividia apartamen-
to, Bernie Klein e Mort Meskin, e um artista que
353
fazia trabalhos anônimos para Bob Kane, chamado
George Roussos. Tinham todos entre 19 e 20 anos
e já publicavam quadrinhos havia pelo menos um
ano.
Havia duas pranchetas nesse estúdio, uma delas
grande o bastante para acomodar dois artistas bem
espremidos. Quem não estivesse na prancheta tinha
de trabalhar no chão ou apoiar uma tábua nos joe-
lhos. Em meio a muitas piadas e insultos, os rapa-
zes meteram as mãos na massa e passaram a noite
de sexta-feira inventando histórias, criando perso-
nagens e fazendo os esboços a lápis, movidos a ci-
garro e café. Robinson criou “London”, um jorna-
lista encarregado de cobrir a blitz de Londres que
resolve pôr uma máscara para combater os nazistas.
Robinson não sabia, mas essa era a primeira HQ a
lidar com os acontecimentos reais da guerra. Rous-
sos gostou tanto da idéia que acabou inventando
“Blackout”, um cientista húngaro que tem seu labo-
ratório bombardeado pelos nazistas e acaba coberto
de pêlos negros. Durante o sábado, continuaram a
trabalhar com afinco, ainda apelando uns aos outros
quando surgia algum problema, mas, de resto, cala-
dos. À noite ainda estavam lá, fazendo balões quan-
do se cansavam de desenhar, abandonando legen-
das inteiras e encurtando as frases quando não
aguentavam mais escrevê-las.
E então veio a neve. A maior nevasca que Ma-
nhattan via em muitos anos. No domingo de ma-
354
nhã, os desenhistas encontraram a entrada do pré-
dio com um metro e meio de neve na frente. Tira-
ram a sorte para ver quem seria o pobre infeliz que
teria de sair para comprar comida: Klein perdeu. Os
demais abriram uma passagem com pás, Bernie es-
calou os barrancos gelados e conseguiu chegar ao
leito da rua 52, onde a camada de neve era mais
fina; e lá foi ele, em busca de algum comércio ou
restaurante aberto domingo de manhã, em pleno
centro da cidade, depois de uma nevasca sem pre-
cedentes.
Durante várias horas, nem sinal dele. Os outros
continuaram a desenhar, cada vez mais famintos,
com mais raiva e mais certeza de que Klein ou os
abandonara ou morrera. Até Bernie Klein finalmen-
te aparecer, gelado até os ossos. Tivera de andar
toda a Sexta Avenida até a rua 34 para achar uma
loja aberta, e lá estava o tesouro que conseguira:
duas garrafas de leite e uma dúzia de ovos. “Tenha
santa paciência!”, gritou Biro. “Você pode me dizer
o que é que vamos fazer com ovos crus?” O estúdio
não tinha cozinha. Mas tinha papel suficiente para
fazer fogo, e uma banheira onde acendê-lo; só não
havia onde cozinhar os ovos. Até que alguém apon-
tou para as paredes. Usaram estiletes para arrancar
alguns ladrilhos, esquentaram-nos ao fogo e cozi-
nharam um ovo em cada ladrilho. Era comida sufi-
ciente para conseguirem atravessar a tarde e a longa
noite de domingo. Quando finalmente veio a segun-
355
da- feira, já tinham entrado no processo de eliminar
as mancadas mais óbvias e deixar as outras como
estavam. A revista Daredevil estava pronta.
Foi um fim de semana representativo do espírito
de uma era. Vinte anos depois, Robinson contou
essa história a Jules Feiffer, que a usou como episó-
dio central em The Great Comic Book Heroes. Mi-
chael Chabon transcreveu o episódio em seu ro-
mance As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay.
Nunca antes comércio, sorte e juventude se uniram
de forma tão perfeita para representar um momento
tão fugazmente americano. E que rendeu bons re-
sultados também. É verdade que o gibi que eles fi-
zeram naquele fim de semana era uma gororoba.
Mas gritava, era colorido e cheio de heróis valen-
tes. E, muito de vez em quando, despontando por
entre a pressa e a esculhambação, surgiam aqueles
momentos de inesperada beleza — um traço perfei-
to, uma figura com vida, uma composição de uma
graça quase acidental — que são tão comoventes e
libertadores nesse tipo de cultura. Gleason enco-
mendou mais números da Daredevil. Biro, Wood,
Robinson, Meskin, Klein e Roussos continuaram
tendo trabalho.
Todo mundo, os bons artistas e até mesmo os
apenas razoáveis, estava sobrecarregado. “O traba-
lho era ininterrupto”, conta Feiffer. “Alguns artistas
trabalhavam em estúdio durante o dia; e à noite fa-
ziam bicos — não era nada fácil sair do emprego às
356
cinco e meia, ir para casa, continuar trabalhando até
quatro da madrugada, pular da cama às oito, ir para
o estúdio de novo... Dezoito horas de trabalho por
dia. Sanduíches no café-da-manhã, almoço e jantar.
Uma cerveja de vez em quando, mas não com mui-
ta frequência. E nada mais forte que isso. Ninguém
ousava diminuir o ritmo.” Mas mesmo os piores ar-
tistas, os mais jovens, os mais crus, estavam ga-
nhando dinheiro para desenhar. Alguns só conse-
guiam concluir uma página copiando outros artis-
tas, de tal forma, como disse Feiffer: “você encon-
trava nove páginas surrupiadas de Milton Caniff ao
lado de nove páginas surrupiadas de Alex Ray-
mond”. Mas havia editoras dispostas a comprar
qualquer coisa. “Essas espeluncas eram as escolas
de arte da indústria dos quadrinhos. Trabalhando às
cegas, mas com gana, trabalhando com material
alheio, trabalhando sob as ordens de gente que de-
senhava melhor porque entrara duas semanas antes
no estúdio, você de repente aprendia a desenhar.”
Eli Katz tinha 16 anos quando arrumou seu pri-
meiro emprego com um editor-assistente da Pep
chamado Sidney Feldman. A vida na Pep não era
mole para os novatos. “Eles pegavam cola de bor-
racha,” lembra-se Katz, “e enquanto o cara estava
trabalhando eles o circundavam espalhando a cola
pelo chão e jogavam um fósforo aceso. A porra da
cola pegava fogo, o cara levava um puta susto,
dava um pulo de dois metros, apavorado com aque-
357
la merda toda e caía em cima do trabalho, estragan-
do o que tinha acabado de fazer.” Katz não gostou
e o pessoal depois disse “que ele tinha feito um es-
carcéu danado”, por isso foi despedido. Logo em
seguida, estava trabalhando com Jack Binder, onde
cerca de 50 ou 60 artistas se amontoavam sobre
pranchetas num sótão da Quinta Avenida. “Parecia
um campo de prisioneiros de guerra”, disse Katz,
que ficou animado quando Feldman o chamou de
volta para a Pep. (Os garotos que conseguiam so-
breviver aprendiam: Eli Katz se tornaria um dos ar-
tistas mais conhecidos da HQ, sob o pseudônimo
de “Gil Kane”; Sidney Feldman adotaria o nome
“Scott Meredith” e viria a ser um dos maiores
agentes literários da indústria da ficção barata.)
Os gibis eram feitos por empreitada, assim
como acontecia na indústria do vestuário. Quem
criou aquele super-herói? Pergunte quem criou
aquele paletó, quem fez o acabamento das mangas,
quem pôs o forro. Mas mesmo no meio daquela
grande bagunça, com toda a pressa, toda a liberda-
de, e a ausência quase total de supervisão editorial,
surgiam momentos da mais pura e livre fantasia,
com expressões personalíssimas de talento.
Um dos jovens que trabalhavam nessa época no
estúdio de Will Eisner era Jack Cole. Era nascido
em 1914, mesmo ano em que Siegel, Shuster e Bill
Finger nasceram, mas na cidade mineira de New
Castle, na Pensilvânia. O pai, um comerciante de
358
grãos, era também músico e, aos domingos, profes-
sor numa escola dominical metodista. Segundo seu
biógrafo, o jovem Jack tinha uma natureza “intros-
pectiva, criativa, otimista e dotada de um fino senso
de humor”. Mas também sofria de depressão, vivia
falando em suicídio, raramente se mostrava conten-
te em eventos sociais e parecia só ficar à vontade
desenhando. Além disso, era muito impulsivo. Aos
17 anos, cruzou os Estados Unidos de bicicleta para
assistir aos Jogos Olímpicos de Los Angeles, e só
depois que chegou lá é que descobriu que precisaria
de dinheiro para ver as competições. Fugiu com a
namoradinha da escola, para se casar, mas conti-
nuou morando em casa para os pais não descobri-
rem. Depois se mudou para o Greenwich Village
com a mulher para se tornar um artista. Não tinha
nada nas mãos além de um diploma do curso por
correspondência.
Jack Cole começou fazendo humor ingênuo,
mas, com a explosão dos super-heróis, dedicou-se
com estranha loucura à produção de heróis, vilões e
violência. Ele criou Claw, um dos mais malignos
pesadelos orientais arquitetados pela ficção barata
da época. Com presas no lugar dos dentes, orelhas
de diabo, olhos imensos, unhas mais afiadas que
uma agulha, “um deus do ódio”, atira relâmpagos,
cospe fogo e cresce até se tornar um gigante. Claw
invade os Estados Unidos e transforma Manhattan
num cemitério de destroços e vigas derretidas até
359
topar com Daredevil — aquele mesmo Daredevil
do fim de semana perdido. Claw tenta lançá-lo para
o espaço, mas Daredevil se entorta como um bume-
rangue e ataca. Claw tenta engoli-lo vivo, mas Da-
redevil ainda tem tempo de pegar algumas bananas
de dinamite e jogá-las na garganta do vilão. “Se a
dinamite na goela dele não der certo”, exclama o
herói, “vou virar carne moída!” Mas a dinamite ex-
plode, Daredevil é cuspido fora e escapa em meio a
uma nuvem de fumaça.
Não demorou para Cole começar a trabalhar
com Will Eisner e, depois, para ser contratado por
um dos editores de Eisner, “Busy” Arnold, para
imitar Will Eisner. No início de 1941, Arnold pre-
cisava de material para uma nova revista de HQ
chamada Police Comics e pediu a Cole que criasse
um super-herói. Foi então que a mente dele viajou
até aonde ninguém, por mais sedento de fama que
estivesse, por mais melodramático que fosse, por
mais disposto que estivesse a imitar Siegel e Shus-
ter, tinha chegado até então. Em vez de criar um
herói mais resistente, mais forte e mais veloz que
qualquer homem comum, Cole inventou um ser
mais livre e mais absurdo. O “India Rubber Man”
podia se dobrar, saltar, se achatar feito um carpete
ou se transformar num divã amarelo e vermelho. O
que o Super-Homem era para os halterofilistas, o
novo herói era para os contorcionistas. O editor
gostou, mas seus instintos promocionais eram mais
360
afiados que os de Cole. “Faça algo mais futurista”,
disse Busy, “dê-lhe um nome mais moderno, assim
os leitores vão achar que estão vivendo liberdades
ainda por chegar. Chame-o de “Plastic Man” (Ho-
mem-Borracha).
Ao libertar seu herói das limitações da física,
Cole libertou os próprios pincéis e lápis para criar a
mais espantosa arte em quadrinhos. “O mundo de
Cole fervilha de invenções inusitadas e de gags,
com um número incrível de personagens hiperati-
vos enfurnados em todos os cantos dos quadri-
nhos”, disse Spiegelman. “O Homem-Borracha
nunca se dobra duas vezes do mesmo jeito. [...] O
que continua sendo notável é a habilidade [de Cole]
de se fazer presente em todos os momentos no seu
trabalho, de acompanhar a própria linha de raciocí-
nio com curiosidade semelhante à do leitor — e de
ficar tão espantado quanto eles ao ver para onde ela
o está levando.” Cole também livrou o gênero de
quadrinhos de super-herói da expectativa de sempre
ter que satisfazer o desejo de seus leitores de serem
Charles Atlas sem esforço físico. Tirar a garotada
da realidade já era suficiente.
Jack Cole era amigo, vizinho e colega de traba-
lho de Charlie Biro, mas os dois vinham de mundos
muito diferentes. Cole era um metodista de cidade
de interior, magrinho, abstêmio na juventude, dedi-
cado à mulher. Biro era um húngaro alto e corpu-
lento do Brooklyn, beberrão e briguento. “Tinha
361
uma vitalidade impressionante; dominava qualquer
reunião”, disse Gil Kane. Biro morava no Greenwi-
ch Village com o amigo e colaborador Bob Wood,
ainda mais beberrão, e lá escreviam, desenhavam e
caçavam mulheres dia e noite. Viviam se vanglori-
ando do número de mulheres que iam posar nuas
para eles e que, depois da sessão de pintura, fica-
vam por lá mesmo, bebendo e transando com eles.
Biro tinha atitudes anti-sociais de adolescente —
espiava por baixo dos provadores femininos e pas-
sava a mão nos seios das ascensoristas nos elevado-
res da Pep. Wood, quando bebia, batia em mulher.
Certa vez, Jack Cole brigou com a mulher e foi
dormir no apartamento de Wood; à noite, ouviu o
amigo estapeando a namorada. Em outra ocasião,
Cole e a mulher pegaram um táxi junto com Wood
e outra de suas namoradas. Os Cole saltaram pri-
meiro. Quando Jack virou a cabeça para o táxi para
dar um adeus, viu Wood agredindo a moça.
Charlie Biro no entanto era também um dese-
nhista com consciência social e um cidadão preocu-
pado com os jovens. Quando saía com amigos, pa-
rava para falar com os garotos que jogavam nas
quadras de esporte ou estavam sentados nos de-
graus de alguma casa. Ficava tomado da fúria de
um militante de esquerda diante da selvageria da
infância operária numa sociedade capitalista. Quan-
do assumiu o personagem Daredevil, criou para ele
o acompanhamento de um bando de garotos, cha-
362
mados de Little Wise Guys, e aos poucos foi fazen-
do deles os grandes astros das histórias. Costumava
pontilhar as travessuras dos meninos com tiradas
políticas típicas do filme Beco sem saída, punha-os
diante de certos dilemas éticos semelhantes aos que
a juventude pobre das grandes cidades tinha de en-
frentar.
Quando Lev Gleason pediu a Biro e Wood uma
capa para vender a Daredevil em grandes quantida-
des, responderam com um dos principais ícones vi-
suais da esquerda norte-americana. Daredevil e
com um trio de heróis lançam bumerangues, mís-
seis, lâminas e murros contra um Adolf Hitler gi-
gantesco. Não é um desenho de Hitler e sim uma
fotografia colorida colada num corpo desenhado
com os olhos retocados para parecerem assustados.
O título berra lá do alto: Daredevil combate Hitler.
Num dos cantos inferiores, o maligno Claw, de
Jack Cole, chama nossa atenção para a promessa:
“DAREDEVIL dá o ÁS MORTAL ao INSANO
MERCADOR DO ÓDIO!” A revista chegou às
bancas na primavera de 1941, quando os Estados
Unidos continuavam oficialmente em paz e o Su-
per-Homem ainda driblava a guerra.
Biro se dava bem com Gleason, um simpatizan-
te do comunismo que também publicava uma revis-
ta noticiosa progressista chamada Friday. Harry
Donenfeld, por exemplo, gostava de esbanjar di-
nheiro na mesa de jogo ao lado de gente como Moe
363
Annenberg, e Jack Liebowitz de almoçar em seu
clube de campo; mas Gleason preferia sair para be-
ber com seus artistas e escritores. Chegou até a lhes
dar uma porcentagem dos lucros sobre as criações
mais bem-sucedidas, e costumava pôr o nome de
Charlie Biro e de Bob Wood na capa das revistas
que eles editavam. No finalzinho de 1941, Gleason
pediu a Biro e Wood que criassem novas idéias de
revistas em quadrinhos, ocasião em que eles volta-
ram com a Crime Does Not Pay. As histórias seri-
am todas verdadeiras, saídas diretamente da Police
Gazette de Donenfeld, e trariam os homicídios mais
tenebrosos e as torturas mais horrendas que encon-
trassem — tudo levado ao máximo exagero, no es-
tilo dos quadrinhos. A primeira capa que fizeram
trazia duas mãos em primeiro plano, uma delas en-
terrando a lâmina de uma faca na outra até perfurar
a mesa em que a mão se apoia. Em segundo plano,
um homem usa uma mulher voluptuosa como escu-
do enquanto dispara a metralhadora contra um sa-
lão de bar. As histórias principais eram quase todas
sobre gângsteres: Lepke Buchalter, Lucky Luciano
e outros conhecidos de Harry Donenfeld. Apesar de
todo o sensacionalismo perverso, a Crime Does
Not Pay tinha também um claro viés político. Mui-
tas das histórias se aprofundavam um pouco no am-
biente violento que produzira os bandidos. A polí-
cia raramente aparecia de maneira positiva, fato
que colocaria Gleason em apuros nos anos vindou-
364
ros.
A revista em quadrinhos de Biro e Wood foi um
sucesso, o primeiro gibi não humorístico que rivali-
zava com os gibis de super-heróis em termos de
venda; o primeiro a abrir o mercado para um vasto
número de jovens já no final da adolescência, en-
trando na vida adulta, que achavam os heróis vesti-
dos a caráter uma grande bobagem. Da raiva, da
brutalidade e da bebida tinham feito algo podero-
síssimo, que arrombou as portas da cultura de mas-
sa americana.
Nessa mesma época, Will Eisner também pro-
duziu algo poderoso, fruto da mais pura frustração.
Eisner queria ser desenhista e escritor, mas já fazia
um ano que estava encalacrado na direção de uma
verdadeira fábrica. No final de 1939 porém, Busy
Arnold, da Quality Comics, aceitou a incumbência
de imprimir um suplemento em quadrinhos para o
Register and Tribune Syndicate, de Des Moines, e
ofereceu o trabalho de produção do material para
Eisner. Este queria mais do que apenas acrescentar
aquele suplemento ao cronograma de seu estúdio;
queria escrever e desenhar sua própria história. Pe-
diu então a Iger que comprasse a sua metade e o
deixasse ficar com dois bons artistas e a encomenda
daquele suplemento. Iger o considerou um louco
por querer largar o certo pelo duvidoso, sobretudo
porque um significava rendimento garantido e o
outro ninguém sabia no que iria dar. Eisner entre-
365
tanto viu ali a oportunidade de fazer o que gostava,
de realizar algo que iria lhe render uma boa reputa-
ção e que, para repetir suas próprias palavras, atin-
giria um círculo de leitores mais amplo que o de
“moleques cretinos de 10 anos de idade”, público
alvo dos gibis. Avisou a distribuidora, a Register,
que deteria os direitos autorais sobre personagens e
histórias. Pouquíssimos quadrinistas retinham a
propriedade de suas tiras — o único grande nome
nessa situação era Harold Foster, com Príncipe Va-
lente — mas mesmo aos 22 anos de idade, Eisner já
sabia que o segredo do dinheiro e do controle a lon-
go prazo estava nos direitos autorais.
Os suplementos semanais estrearam em junho
de 1940. O personagem principal era um sujeito
chamado Spirit, que combatia os criminosos usan-
do máscara, terno e chapéu de feltro. O Spirit era o
primeiro super-herói dos quadrinhos destinado tan-
to ao público adulto como à garotada. Os enredos
tinham uma alta dose de suspense e finais ao estilo
de O. Henry e Saki. O trabalho de arte dava o cli-
ma, era generoso, e a narrativa, cinematográfica. A
abertura num cemitério desolado, açoitado pela
ventania, nos permite seguir os passos dos persona-
gens por entre árvores ameaçadoras e tumbas ater-
rorizantes durante quatro quadrinhos antes de mer-
gulharmos na ação. O Spirit é um sujeito meio des-
mazelado, charmoso, irritadiço, às vezes desajeita-
do e sempre único. À medida que a série crescia de
366
estatura, sem apelar para o simplismo de traços ou
para as fórmulas padronizadas, e tornava-se mais
complexa, Eisner foi se revelando um dos muitos
desenhistas da época apaixonados por Cidadão
Kane. Ele foi ver o filme assim que estreou, em
maio de 1941 — Jerry Robinson foi outro —, e
imediatamente passou a imitar o uso do enquadra-
mento, da profundidade de campo, das justaposi-
ções e da agudeza visual para intensificar a história.
Riria mais tarde ao ser chamado “o Orson Welles
dos quadrinhos”.
Eisner estabeleceu a ponte entre os jornais e os
gibis, porque, além de figurar no suplemento, The
Spirit aparecia também na Police Comics da Qua-
lity, bem ao lado do Plastic Man de Jack Cole. Jun-
tos, Cole e Eisner apontavam para o grande poten-
cial do meio de comunicação que eram os gibis.
Jake Kurtzberg foi um tipo diferente de pionei-
ro. Ele não tentou aproximar os super-heróis da re-
alidade; o que fez foi chegar mais profundamente a
sua essência, depurando-os ao máximo de todo o
resto. Passou pelo estúdio de Eisner na mesma épo-
ca em que Jack Cole andava por lá; assim como
Cole, era um artista com pouquíssimo treinamento
formal, mas com uma imaginação portentosa e pai-
xões pessoais profundas. Também como Cole, dava
a impressão de viver imerso num mundo só seu e
de se sentir mais feliz na frente da prancheta. Mas,
em termos de raiva e agressividade, era mais pare-
367
cido com Charlie Biro. “Creio que a raiva nos salva
a vida”, disse Jake certa vez. “Acredito que a raiva
nos dá um impulso que nos salva a vida, que nos
muda de alguma maneira.” A raiva de Jake desem-
bocou num lugar muito diferente do realismo bruto
de Charlie Biro. Desembocou num romance de vio-
lência transformadora que levou à invenção de Sie-
gel e Shuster à sua conclusão natural — de fato
completando o que os dois haviam começado.
Jake nasceu em 18 de agosto de 1917, poucos
meses depois de Will Eisner. Seu pai, assim como
o de Eisner, era um judeu austríaco que emigrara
para os Estados Unidos, mas, ao contrário do pai de
Eisner, não era artista. Trabalhava na indústria do
vestuário e esse caminho levou a família a um
mundo bem diferente do Bronx onde Eisner mora-
va. Nem todos os judeus do Lower East Side ti-
nham sido arrancados de lá pela prosperidade das
duas primeiras décadas do século XX. Muitos con-
tinuaram onde estavam, uma ilhota cada vez mais
encolhida de judeus rodeada por um número cres-
cente de sicilianos sem posses, formando uma co-
munidade tão pobre quanto a da geração anterior,
mas com menos vitalidade e menos otimismo. A
Suffolk Street era um lugar violento. “Cada rua ti-
nha sua própria gangue de garotos, e nós brigáva-
mos o tempo todo”, contou Jake. “íamos pelos te-
lhados e bombardeávamos os garotos da Norfolk
com garrafas e pedras.” Botar os pés na rua signifi-
368
cava se meter em encrenca. “Sempre aparecia um
cara do outro quarteirão e saía briga. Se o adversá-
rio fosse nocauteado, você e o resto da turma leva-
vam o cara carregado até a porta da casa da mãe
dele. E vice-versa.” Depois de um tempo, contou
Jake, “brigar virava parte da gente. Comecei a gos-
tar.”
Seu desejo mais ardente era sair daquele lugar.
Sua primeira ambição foi ser “um político corrup-
to”. Jake porém não era do tipo certo para a políti-
ca. Era miúdo, sempre na defensiva, socialmente
inseguro, e, o mais complicado de tudo, com uma
forte tendência a se perder nos próprios devaneios.
O gueto, disse ele, “me deixou com tanto medo[...]
que fantasiei, de forma um tanto imatura, um mun-
do dos sonhos mais realista do que aquele que exis-
tia ao meu redor”. Ele gostava de desenhar e saía
atrás de lugares onde pudesse aprender um pouco
mais a respeito de arte. Primeiro tentou a Educatio-
nal Alliance, uma augusta entidade beneficente
fundada por judeus alemães liberais que tinha por
objetivo ajudar a irmandade do Leste europeu a se
integrar na vida americana. “Eles me puseram na
rua”, disse Jake, “por desenhar rápido demais com
carvão.”
No fim encontrou abrigo na Boys Brotherhood
Republic, na East 3rd Street. Era uma “cidade em
miniatura”, onde os garotos de rua tinham um go-
verno próprio, cuidavam das próprias instalações e
369
publicavam seu próprio jornal. Jake jogava basque-
te e lutava boxe, mas, acima de tudo, adorava dese-
nhar para o jornalzinho da entidade. E acabou sen-
do escolhido pelo pessoal do jornal, aos 14 anos de
idade, para ocupar o cargo de editor. Era a primeira
vez que o viam como alguém capaz de fazer algu-
ma coisa; até então os adultos o consideravam ape-
nas um menino difícil, e os colegas, um sujeito go-
zado que gostava de desenhar. “No meu bairro, eles
não sabiam nem o que significava a palavra artis-
ta”, disse Jake. “Para ser alguém, você tinha que ser
mecânico, e por isso, quando virei artista, ninguém
conseguiu entender; achavam que eu tinha me me-
tido com alguma coisa ilegal.”
Mas Ben Kurtzberg compreendia o que a arte
significava para o filho, assim como sabia que essa
seria sua melhor chance de escapar da Suffolk
Street. Separava parte de seu pagamento de operá-
rio para custear os estudos de Jake no Pratt Institu-
te. Então, no auge da Depressão, Ben perdeu o em-
prego. O dinheiro da mensalidade da escola foi usa-
do para ajudar a família a sobreviver. Jake vendia
jornais e fazia bico como entregador. Tarde da noi-
te, exercitava-se no desenho, decidido a ganhar di-
nheiro com aquilo. Já aprendera que tudo na vida,
até mesmo vender quadrinhos, era uma luta.
Aos 18 anos, conseguiu emprego como auxiliar
nos estúdios de desenho animado dos Fleischers.
Bob Kahn, que estava prestes a se transformar no
370
Bob Kane do Batman, também estava lá nessa épo-
ca, embora não se lembrem um do outro. Em segui-
da, Jake conseguiu o que lhe parecia o emprego
ideal — desenhista de tiras de quadrinhos para um
pequeno syndicate, o Lincoln News, recém-inaugu-
rado. Ele era tão rápido e produtivo que acabou fa-
zendo a maior parte das tiras que o Lincoln distri-
buía aos jornais, trabalhando sob uma variedade de
pseudônimos para simular que eram muitos os cria-
dores. Entre esses pseudônimos, havia um — uma
simplificação de seu nome com ar irlandês — de
que ele gostava muito; fazia-o pensar em James
Cagney, um de seus heróis no cinema: “Jack
Kirby”. Quando trabalhava como Kirby, quase se
sentia parecido com Cagney, balançava para lá e
para cá sobre os pés, mantinha os braços prepara-
dos e flexíveis, como se fosse ao mesmo tempo um
dançarino e um peso-galo. No decorrer dos anos, o
nome pegou. Kirby era ele. Até mesmo sua mulher
o chamava carinhosamente de “Kirby”. Quando
oficializou a mudança de nome, os amigos o amo-
laram, dizendo-lhe que “até já parecia mais irlan-
dês”. Kirby enrubesceu, sacudiu os punhos e falou:
“Não tenho vergonha de ser judeu. O caso é que
gosto do nome.”
O Lincoln News infelizmente foi mais uma víti-
ma da recessão de 1937 e 1938. E Jack Kirby teve
de circular por mais alguns empregos, inclusive no
estúdio Eisner & Iger. Eisner entendeu muito de-
371
pressa o mundo fantasioso em que o artista vivia. O
serviço de toalhas do prédio aumentara demais os
preços de seus produtos e um dia Eisner pediu para
falar com o representante da firma. Um capanga de
nariz quebrado, camisa preta e gravata branca en-
trou na sala dele e disse que não podiam baixar os
preços. Eisner ameaçou procurar outro toalheiro, e
o cara respondeu: “A gente é a única empresa que
atende este prédio aqui.” Era um arranjo da máfia.
Bem nessa hora, o tampinha Jack Kirby entra no
escritório. “Esse cara está criando caso com você,
Will?” “Não, está tudo bem, Jack, volte pro seu tra-
balho.” “Quer que eu dê uma surra nele?” O mafio-
so se virou. “Quem é esse cara?” Eisner respondeu
que era seu melhor artista e que não queria vê-lo
machucado, porque, caso contrário, não teria como
pagar pelas toalhas. O sujeito então disse: “Não
queremos encrenca, não; só queremos fazer as coi-
sas do jeito certo”. Os preços pararam de subir por
uns tempos. “Me avisa se ele voltar, Will”, disse
Kirby. “E me diz se você quer que eu dê uma surra
nele.”
Kirby prestava serviços para outros estúdios e
editoras, inclusive para o “rei dos quadrinhos”,
Victor Fox. Foi quando chamou a atenção de Joe
Simon, outro desenhista decidido a se tornar o
próximo grande fornecedor. Simon tinha só dois
anos a mais que Kirby, mas era alto, de classe mé-
dia, tinha sido uma pequena celebridade na impren-
372
sa de Syracuse, onde nascera, e possuía uma confi-
ança em si mesmo que faltava a Kirby. Depois de
criar uma dupla de super-heróis para a Funnies In-
corporated, rompera com eles e estava começando
a negociar direto com as editoras o fornecimento do
material. Simon gostou da versatilidade de Kirby e
o convidou para almoçar. Kirby vivia quase exclu-
sivamente só dos sanduíches que a mãe preparava
para ele; quase nunca comia em restaurante. Almo-
çando às custas de Simon, pediu uma sobremesa
chamada Brown Betty sem saber o que era, achan-
do que, ao agir assim, demonstraria saber o que es-
tava fazendo. Quando a sobremesa chegou, ele viu
uvas-passas escorrendo das entranhas de uma maçã
e recusou o prato, horrorizado. “Não consigo comer
esse troço!”, berrou ele. “Qual o problema?”, per-
guntou Simon. “Parecem baratas”, disse Kirby.
“Parece que as baratas entraram aí dentro.” Simon
não conseguiu segurar o riso. Syracuse ficava a
uma grande distância da Suffolk Street.
No início de 1940, Simon negociou com Martin
Goodman, editor da Marvel Comics, a criação de
novas histórias. Goodman dirigia uma empresa cu-
riosa, numa sala do Empire State Building, que não
era nem uma espelunca nem um estabelecimento de
classe. Primeiro porque nem tinha nome. Querendo
driblar a legislação fiscal, Goodman usou pelo me-
nos umas 80 empresas diferentes ao longo da car-
reira para publicar seu material. As vezes usava o
373
nome de várias editoras ao mesmo tempo. Os mais
próximos costumavam chamar sua linha de “Ti-
mely”, nome de uma de suas revistas, que não so-
breviveu muito tempo. “Marvel” acabaria se tor-
nando o nome mais identificado com ele, mas Go-
odman só viria a adotá-lo uns 20 anos depois. Ele
era mais jovem que todos aqueles donos de editora
da geração de Donenfeld; tinha apenas 32 anos,
quando fechou negócio com Simon, então com vin-
te e cinco. Fora fã da Weird Tales na adolescência e
aprendera muito com a Amazing Stories de Hugo
Gernsback quando tinha seus 20 anos. Isso fazia
dele, portanto, o primeiro editor de pulps que de
fato crescera lendo aquela literatura.
Nos quadrinhos da Marvel, Goodman mostrava
uma predileção pelo espalhafato, gostava de pare-
cer avançado e tinha fama de impor pouquíssimo
controle editorial. As páginas que ele comprava da
Funnies Incorporated para a revista Marvel Comics
estavam cheias das variantes mais estapafúrdias e
menos heróicas existentes entre a incontável exube-
rânciado novo mundo dos super-heróis. O Tocha
Humana era um andróide que explodira em cha-
mas, fugira de seu criador e vivia espalhando terror
pela Terra. À medida que as histórias foram avan-
çando, acabou combatendo o crime, mas permane-
ceu volátil e não-humano, mais uma curiosidade da
ficção científica do que algo que apelasse obvia-
mente para supostos desejos coletivos inconscien-
374
tes. Black Widow (Viúva Negra), era uma mulher
tenebrosa, dotada de poderes mágicos, que matava
os criminosos, mas apenas para entregar suas almas
mais depressa a seu mestre, Satã. The Sub-Mariner
(Namor, o Príncipe Submarino), criação de um
quadrinista irlandês beberrão de Massachusetts
chamado Bill Everett, era o birrento governante de
um mundo aquático; odiava os habitantes da super-
fície por causa da exploração que faziam do mar.
Radicalmente neutro na guerra mundial, desprezava
toda e qualquer nação que usasse submarinos, bom-
bas de profundidade e minas flutuantes e invadiu
Nova York só para obrigar os americanos a deixá-
lo em paz. Era uma história de violência sobre-
humana, sem mocinhos nem esperança de final fe-
liz, a realização em forma de quadrinhos da supre-
ma fantasia irlandesa de boteco.
A Marvel Comics estava indo bem nas bancas,
mas não era um estouro, e as tentativas de Good-
man de lançar coisas novas haviam falhado. Ele
queria ter mais produtos à venda, mas para isso pre-
cisava de um super-herói. No início, ninguém en-
tendia direito de onde vinha o sucesso do Super-
Homem; e era razoável achar que histórias fantásti-
cas e façanhas sobre-humanas fossem suficientes.
Entretanto, com a chegada do Batman e do novo
Capitão Marvel e o sucesso de vendas das duas re-
vistas, ficou claro que personagens vestidos a cará-
ter não eram apenas filhotes da escola fundada por
375
pulps como Weird, Thrilling, Amazing e Wonder,
para as crianças. Esses personagens constituíam um
tipo especial de herói, para o qual era obrigatório o
uniforme fantasioso, a identidade secreta, uma apa-
rência normal em público e um compromisso ina-
balável de derrotar os bandidos. Informado de quão
briguento Jack Liebowitz podia ser, Goodman in-
sistiu para que sua publicação ficasse distante do
Super-Homem e do Batman; mas havia outros mo-
delos para ser imitados.
O antigo patrão de Goodman, Louis Silberkleit,
estava obtendo um sucesso significativo de vendas
com um herói patriótico chamado Shield (Escudo),
vestido com as cores da bandeira americana (ver-
melho, azul e branco). No outono de 1940, enquan-
to Londres sofria com bombardeios aéreos e Roo-
sevelt se encaminhava para o terceiro mandato, Joe
Simon se pôs a trabalhar. Melhorou o desenho do
Shield e ainda teve a ousadia de deixar explícito o
roubo colocando um escudo (shield) com as cores
da bandeira norte-americano no braço do novo he-
rói. O nome é óbvio, tanto que já havia o Capitão
César (Captain Easy) das tiras em quadrinhos, Ca-
pitão Midnight dos programas de rádio e Capitão
Futuro dos pulps. Assim surgiu o Capitão América.
Goodman gostou do que viu. Simon pensou
“vamos com calma”. Ele e Kirby estavam prepa-
rando uma amostra da história e uma capa, e Simon
percebeu que haviam criado algo espetacular. Em-
376
bora tivessem colaborado no argumento e na arte-
final, os diálogos e os balões ficaram mais a cargo
de Simon, ao passo que a diagramação e as figuras
foram obra quase somente de Kirby. E era ali que
residia o poder daquelas páginas. Simon sabia da
força que Jack Kirby imprimia a suas figuras em
movimento, desenhadas com traços dramáticos e
musculatura proeminente, desferindo murros certei-
ros. Mas até Jack despejar toda sua raiva e sua
exultação nessa corporificação da América, dando-
lhe punhos de granito, fazendo o herói saltar as mu-
ralhas de Berchtesgaden para liquidar legiões de fa-
cínoras nazistas e dar um soco no queixo do pró-
prio Hitler, Simon ainda não tinha visto do que
aquele garoto era capaz. E ele sabia que havia com-
pradores maiores que Martin Goodman no merca-
do. A DC e a Fawcett poderíam facilmente oferecer
mais que Goodman e obter contratos mais polpudos
de licenciamento da marca.
E assim foi que Goodman acabou fechando um
negócio sem precedentes. Para a estréia do Capitão
América, ele aparecería numa revista só dele, e não
enterrado em alguma antologia. Simon e Kirby fi-
cariam com 15% dos rendimentos e teriam também
cargos assalariados na qualidade de editor e diretor
de arte de Goodman. Só esse contrato foi suficiente
para fazer deles uma dupla de bacanas da indústria.
Depois que a primeira Captain America chegou às
bancas, em fevereiro, e se esgotou em poucos dias,
377
depois que a edição seguinte teve uma tiragem de 1
milhão de exemplares, os dois viraram astros.
O que Kirby levou para a página do gibi foi
uma ópera de traços e volumes. As histórias perde-
ram importância, tamanho foi o drama que sua rai-
va impôs às figuras que explodiam para fora dos
quadrinhos, aos corpos que se arremessavam no es-
paço perseguidos por botas e punhos, às fisionomi-
as contorcidas de paixão e aos sucessivos e rápidos
planos e contraplanos, aos quadrinhos repuxados e
retorcidos segundo as necessidades da ação. A ana-
tomia do herói de Kirby não fazia o menor sentido.
Kirby nunca tivera dinheiro para aulas de desenho;
só inventava. Mas o Capitão América tinha tama-
nha vida, se mexia com tal força através de um
tempo e espaço que existiam apenas porque Kirby
assim o desejara, que ele acabou sendo mais real
que todos os heróis desenhados com esmero por de-
senhistas formados em escolas de arte. Kirby cele-
brou o corpo, o corpo masculino, o suor e os mús-
culos do homem, não com o fetichismo das acade-
mias de halterofilismo, mas com um júbilo selva-
gem. E uma infinidade de garotos no limiar da pu-
berdade o amaram por isso. Depois de dois núme-
ros, Captain America já estava vendendo 1 milhão
de exemplares ao mês. De repente, todo jovem ar-
tista passou a desenhar ação à maneira de Jack
Kirby.
O que Simon e Kirby levaram ao super-herói foi
378
a paixão do imigrante, a paixão do judeu. Histórias
de identidade secreta sempre obviamente encontra-
ram eco entre os filhos de judeus imigrantes em
virtude da necessidade das máscaras; máscaras que
permitiam à pessoa tornar-se um americano, mo-
derno, consumidor das coisas do mundo.
Mas ao mesmo tempo permitem fazer parte de
uma sociedade antiquíssima, ser um elo de uma ve-
lha cadeia sempre que ela estivesse no seio seguro
daqueles que conheciam seu segredo. Um Clark
Kent nas ruas e um Super-Homem em casa, Moses
Mendelsohn poderia ter dito. Os super-heróis acres-
centavam àquelas histórias um elemento que o Zor-
ro e o Pimpinela Escarlate nunca tiveram, e isso
porque a verdadeira identidade deles, dos homens
de malha colorida, era tão elementar, tão universal,
transcendia de tal forma os mundos que os obriga-
vam a usar máscara que eles carregavam em si uma
dose sem precedentes de otimismo a respeito quan-
to ao valor da própria realidade. Todos nós sabía-
mos que Clark Kent era apenas uma brincadeira bo-
lada pelo Super-Homem e que o único cara que in-
teressava de fato ali era um alienígena que aparece-
ra um belo dia em Metrópolis sem história nem fa-
mília.
O Capitão América avançou ainda mais na me-
táfora do mascarado. Steve Rogers se arrasta por
um laboratório secreto, todo magrelo e curvado, até
receber uma injeção contendo o soro do super-sol-
379
dado, que faz dele um Adonis. Mas ele continua se
fazendo de bobo, e só revela seus poderes e sua
imensa coragem quando enverga o uniforme do
exército e se torna, na pele do Capitão América, a
corporificação dos próprios Estados Unidos. Ele é o
garoto subnutrido do gueto que adquire uma força
desmedida ao agarrar as oportunidades americanas;
o ressabiado sobrevivente do velho país que renas-
ce como o judeu combativo graças à mistura ameri-
cana de violência e liberdade. E, através dessa pai-
xão imigrante, Simon e Kirby capturaram todo um
despertar patriótico: os Estados Unidos provincia-
nos a caminho de se tornar uma potência mundial.
O Capitão América, assim como o Super-Homem,
tornou-se um símbolo de uma fantasia juvenil uni-
versal. Fantasia que no fundo era também dos adul-
tos.
Mas é aí que as raízes sujas da indústria dos
quadrinhos aparecem. Goodman usava uma gra-
vata-borboleta típica de uma das melhores faculda-
des americanas, jogava golfe e falava em se tornar
um verdadeiro editor de livros, mas passou a vida
inteira lidando com revistas baratas; aprendera a
gerir seu negócio com pequenos comerciantes que
haviam sobrevivido à Depressão fazendo malaba-
rismos para sobreviver a um passo da bancarrota.
Goodman passou a perna em Simon e Kirby. Não
lhes pagou aqueles 15% prometidos e, quando Si-
mon exigiu prestação de contas, mentiu sobre quan-
380
to havia ganhado. Pelo menos foi isso que Simon
disse. Goodman o acusou de criar o conflito para
conseguir um negócio melhor com Jack Liebowitz.
Ninguém jamais saberia a verdade — , a indústria
dos quadrinhos era assim.
Liebowitz disse a Simon e Kirby que lhes paga-
ria o dobro, que cumpriria todos os tratos, que os
promoveria em anúncios da casa (“Esses rapazes
são bons mesmo!”), e que os deixaria criar a série
que quisessem. Goodman teve de se virar não só
para continuar com a publicação da Captain Ame-
rica com artistas menores como também para con-
tratar um editor e um escritor. Deu esses últimos
cargos à única pessoa que havia sobrado no escritó-
rio, um office boy de 19 anos chamado Stan Lieber.
Stan não lia quadrinhos. Na verdade, sentia-se
constrangido com os gibis; queria ser jornalista ou
romancista. Aceitara o emprego apenas porque a
mãe era prima de Martin Goodman e parecia um
dinheiro fácil. Mas subiu a bordo e deixou que o
barco o levasse, usando o pseudônimo de “Stan
Lee”. A empresa de Goodman seria de segunda
classe, só quantidade e imitação, pelos 20 anos se-
guintes. Por enquanto DC era indiscutivelmente o
alvo do desejo; era a Tiffany do trash.

NEM TODO MUNDO que passou a ganhar a


vida com essa rápida expansão da indústria tinha
crescido sonhando com pulps e comic books. A ca-
381
rência de material era tanta que às vezes o simples
fato de a pessoa parar na porta certa bastava para
dar início a uma carreira, e o simples cumprimento
dos prazos de entrega era o bastante para mantê-la.
Stan Lee, novo editor de Martin Goodman, foi pro-
va disso, mas houve muitos outros casos assim. O
negócio não era uma meritocracia. Digamos que
fosse uma “oportunocracia”, uma “acasocracia”,
uma “pura sortecracia”. O mais americano dos em-
preendimentos.
Gardner Fox era um advogado que não conse-
guia encontrar trabalho na recessão de 1937 e 1938.
Um antigo colega de escola, Vin Sullivan, editava a
Detective Comics e precisava de escritores para
ajudar seus artistas a completar as páginas desenha-
das. Sullivan perguntou a Gardner se não gostaria
de tentar. O jovem advogado nunca tinha pensado
em escrever de maneira profissional, mas conse-
guiu, para os padrões dos quadrinhos, um bom re-
sultado. Quando Shelly Mayer, editor da All Ame-
rican Comics, precisou de alguém para criar alguns
super-heróis às pressas, Vin lhe indicou seu velho
amigo. Gardner descobriu que heróis cheios de ha-
bilidades e recursos em ação desenfreada fluíam
dele feito água. Um montão de palavras, pouco en-
redo, e sempre algo acontecendo. Para Vin Sullivan
e Shelly Mayer, numa editora ou noutra, criou os
personagens Flash, Hawkman, Skyman, Sandman,
Starman e o Dr. Fate (Dr. Destino). E escreveu cen-
382
tenas de histórias para personagens que não eram
criação sua.
Alvin Schwartz era poeta e editor de uma revis-
ta literária chamada Mosaic, que publicava autores
como William Carlos Williams e Ezra Pound. Seu
agente, Curtis Brown, de Londres, tentara durante
meses vender seu primeiro romance, mas o merca-
do de livros andava em baixa. Alvin Schwartz esta-
va com o aluguel de seu apartamento no Greenwich
Village dois meses atrasado naquele dia de 1940,
quando cruzou com um amigo artista e lhe pediu
um dinheiro emprestado. O artista lhe sugeriu que
tentasse escrever para aqueles novos “gibis” que a
Street and Smith estava publicando. Alvin vendeu
alguns roteiros para a Fairy Tale Parade, mas o de-
sespero de Whitney Ellsworth, da DC, para encon-
trar escritores razoáveis e capazes de cumprir prazo
era tamanho, que perguntou a Alvin Schwartz se
não gostaria de fazer uma tentativa com Batman.
Um ano depois, ele era colaborador regular não só
da DC como também de Sheldon Mayer e de Char-
lie Gaines na All American.
Gaines e Mayer faziam uma dupla editorial
como nenhuma outra. Em termos de diretrizes, se-
guiam as normas da DC: não trabalhavam com es-
túdios, lidavam diretamente com os colaboradores
e o trabalho de todo mundo passava por edição.
Mas os dois sofriam bem menos que seus colegas
da DC com os super-heróis, parte porque não ti-
383
nham um produto como o Super-Homem para pro-
teger e parte porque simplesmente não conseguiam
levar aquilo a sério.
Mayer tinha 22 anos em 1939, e era um geek
que sem sombra de dúvida entendia de super-heróis
— foi ele que conseguiu vender o Super-Homem
— mas, como cartunista de humor, não podia evitar
de achá-los todos ridículos. Mesmo enquanto exer-
cia o cargo de editor, manteve a produção de uma
série chamada Scribbly, sobre um garoto obcecado
por quadrinhos cuja mãe, uma senhora obesa, veste
roupas de baixo vermelhas e enfia uma panela na
cabeça para se tornar uma justiceira, a Red Tornado
(Tufão Vermelho). Como editor, Mayer comprava
a idéia mais idiota do primeiro artista que apareces-
se, desde que tivesse um super-herói. E funcionava.
Um desenhista que trabalhava com publicidade
chamado Marty Nodell, que nem sabia da existên-
cia de gibis até precisar de um emprego, levou
amostras de seu trabalho para Mayer, que lhe disse
“me traga um super-herói”. Marty entrou no metrô,
tentando pensar em alguma coisa, e viu um operá-
rio segurando uma lanterna verde. E então bolou
um herói vestido de verde, vermelho, amarelo e
preto — com uma vasta capa roxa — que encontra
uma lanterna ferroviária que, depois de entrar em
contato com um meteorito da antiga China, adquire
o poder de gerar um anel mágico. Não fazia o me-
nor sentido, mas Mayer comprou a idéia. Depois
384
foi a vez da garotada. E o Lanterna Verde virou ou-
tro grande sucesso.
Gaines era o contrário do parceiro: ex-profes-
sor, beirando os 50 anos, queria fazer algo melhor e
mais desafiador com os gibis. Sonhava com um
projeto chamado Picture Stories from the Bible
(“Histórias da Bíblia Ilustradas”), que ele imagina-
va como base de uma linha de quadrinhos dedicada
apenas à educação. De início, rejeitou a insistência
de Shelly Mayer para a necessidade de novos su-
per-heróis, e talvez só tenha cedido depois de aca-
loradas discussões com seu sócio minoritário, Jack
Liebowitz. Gaines não tinha a devoção fria de Lie-
bowitz pelo relatório financeiro, nem a alegria de
Harry Donenfeld por qualquer coisa que pintasse.
Trabalhava muito, manquitolando pelo escritório
com sua perna ruim, berrando com todo mundo. Os
funcionários diziam que as acaloradas discussões
entre os dois sócios, que aumentavam de volume à
medida que diminuíam de sentido, terminavam
sempre com uma batida de porta e o ritmo irregular
das furiosas pisadas de Charlie no corredor. (Jack
sempre aguardava que os outros fossem até seu es-
critório — nunca procurava ninguém.) No papel,
Gaines era o sócio majoritário, mas Liebowitz era
homem de confiança de Harry Donenfeld, e Harry
era o poder verdadeiro ali.
Charlie então gritava com Shelly Mayer, que
respondia no mesmo tom. Ou então gritava com o
385
filho, Bill, que trabalhou na editora até ir para a fa-
culdade, aos 18 anos. Bill era inteligente mas frágil
um garoto obeso, uma decepção para um pai que
apreciava agressividade intelectual. Charlie chama-
va o filho de gordo, burro e incompetente. Bill co-
rava, tremia e tentava desajeitadamente fazer seu
trabalho sem olhar o pai nos olhos. Depois que o
pai ia embora, apelava para Shelly Mayer em busca
de refúgio e apoio. Shelly era só cinco anos mais
velho que ele, mas Bill o tratava como o pai que
gostaria de ter tido. Mais tarde, a filha de Mayer se
lembraria de Bill indo visitá-los quando já tinha uns
25 anos, e Mayer uns 30, para lhe apresentar a na-
morada e perguntar se ele aprovava. O consolo, e
isso Bill repetia para si mesmo o tempo inteiro, era
que trabalharia ali apenas até concluir a faculdade,
quando então se tornaria professor de ciências. De-
pois disso, a indústria dos gibis nunca mais ouviria
falar em William M. Gaines de novo.
Talvez fosse esse, em parte, o motivo do ressen-
timento de Charlie Gaines — o fato de sua dura ba-
talha com a cultura trash acabar permitindo que o
filho seguisse a carreira de professor que ele não
pudera manter. Talvez também por isso tenha fica-
do tão intrigado quando um psicólogo da revista
Family Circle queixou-se da violência explícita de
tantos gibis, mas afirmou que talvez os quadrinhos
tocassem no “ponto nevrálgico dos desejos e aspi-
rações universais da humanidade”. Gaines resolveu
386
convidar esse psicólogo, William Moulton Mars-
ton, para fazer parte do novo “Conselho Editorial
Consultivo” da DC/All American e, ato contínuo,
se viu envolvido com uma das mais esdrúxulas per-
sonalidades surgidas no mercado dos comic books.
Marston foi mais um tradicional branco protes-
tante de classe média — como tantos outros do
mundo das revistas eróticas de Frank Armer e da
cruzada de auto-aperfeiçoamento de Bernarr Mac-
Fadden — , a desenvolver idéias pouco convencio-
nais sobre sexo e gênero depois da maioridade, por
volta da Primeira Guerra Mundial, e que, depois de
ter vivido intensamente o grande experimento soci-
al da década de 1920, sentiu-se um tanto abandona-
do, até mesmo antiquado, durante a Depressão.
Marston era um homem alto, que se tornou obeso
na meia-idade, dado a gargalhadas sonoras e mani-
festações efusivas de afeto. Formado em Direito e
Psicologia por Harvard, casara-se com uma mulher
teimosa e brilhante chamada Elizabeth, formada
nos mesmos cursos pelas faculdades de Boston e
Radcliffe. Enquanto ainda era estudante, Marston
explorou a relação entre o aumento da pressão san-
guínea e o desconforto emocional, o que fez dele
uma figura-chave no desenvolvimento do detetor
de mentiras moderno. Com sua reputação brilhante,
logo depois de obter o doutorado, em 1921, arru-
mou colocação na Universidade de Tufts. Infeliz-
mente foi com a mesma presteza que começou a
387
dar vazão a três grandes paixões que acabariam
com sua carreira: remédios miraculosos, publicida-
de e dominação de uma boa mulher.
Seu permanente interesse na emoção humana,
na persuasão e no poder o levaram a observar uma
“baby party”, um estranhíssimo rito de iniciação
numa escola só para mulheres, em que as calouras
eram vestidas como bebês, depois amarradas, cutu-
cadas com paus e subjugadas pelas alunas mais an-
tigas. Sua assistente nessa pesquisa era uma estu-
dante chamada Olive Byrne, com quem Marston ti-
nha um caso. Pouco depois desse episódio, ele con-
tou à mulher, Elizabeth, sua infidelidade, mas essa
confissão, em vez de acabar com o relacionamento
clandestino ou com o casamento, apenas os ligou
ainda mais. Olive mudou-se para a casa dos Mars-
tons, dando início a um ménage à trois. No fim,
cada uma teve dois filhos dele e as quatro crianças
foram criadas sobretudo por Olive, já que Elizabeth
sustentava a família com uma série de empregos
acadêmicos.
Em 1928, Marston citou a “baby party” e outras
aventuras em seu livro mais conhecido, The Emoti-
ons of Ordinary People, no qual defendia a tese que
todos podemos ser compreendidos em termos de
quatro “unidades elementares de comportamento”:
domínio, influência, constância e submissão (Em
inglês: dominance, influence, steadiness e compli-
ance). Era uma visão facilmente aplicável aos jogos
388
de poder do cotidiano social, e se resta alguma
dúvida que era intenção de Marston com essa sua
teoria tornar-se um conselheiro popular, mais que
um pesquisador respeitado, basta dizer que deu a
seu sistema um acrônimo: DISC. Tudo isso era per-
feito nos anos 1920, mas não tão perfeito assim
para o ambiente acadêmico, e esse foi o fim de sua
carreira universitária.
Durante a década seguinte, viajou de costa a
costa divulgando suas teorias sobre o sistema DISC
e o detetor de mentira. Trabalhou como relações
públicas do Universal Studios durante um ano e
apareceu em anúncios de revista das lâminas Gillet-
te (um teste com o detetor de mentiras mostrou que
os homens de fato acham que as lâminas Gillette
barbeiam mais rente). Na maior parte do tempo po-
rém não conseguia achar trabalho nenhum. Num
determinado ano, a família toda — Marston, os
quatro filhos e a amante — se mudou para a casa
dos pais de Elizabeth, em Massachusetts, enquanto
ela continuava em Nova York trabalhando para a
Metropolitan Life e mandando os cheques para o
marido. Até que no final da década ele se acertou
com a Family Circle. Os psicólogos ainda não eram
um componente padrão das revistas voltadas para a
família; sua fama, ainda que modesta, se sobrepôs à
reputação acadêmica abalada. Muito esperto, Mars-
ton ampliou seu aparente valor com um estratage-
ma: em vez de mandar artigos de próprio punho,
389
dava suas opiniões através de entrevistas fornecidas
a um jornalista e admirador chamado “Olive Ri-
chard” — que era, claro, Olive Byrne.
E foi nessa revista que Charlie Gaines o encon-
trou, em 1940. Os dois se deram bem na hora —
um ex-professor frustrado vendendo lixo e um inte-
lectual em desgraça tentando sobreviver da sua ca-
pacidade de persuasão. Ambos também perceberam
o valor um do outro, como em geral acontece com
credenciais acadêmicas e dinheiro. Gaines precisa-
va de munição nas batalhas pelo poder que travava
com Liebowitz, algo que o colocasse na posição de
um homem de idéias, a quem se deveria escutar.
Marston, por sua vez, precisava de renda. De modo
que Gaines prestou atenção quando Marston disse
que “o maior crime dos gibis é sua masculinidade
desbragada”. Havia um punhado de heroínas meno-
res espalhadas pelas páginas das revistas em qua-
drinhos, mas nenhuma que tivesse a mínima chance
de competir com os super-homens que estavam
dando à indústria reputação tão ruim. Marston se
ofereceu para criar, com sua perícia psicológica,
uma super-heroína que atrairia as crianças e sosse-
garia os pais. Ele acreditava que as mulheres eram
mais fortes que os homens porque controlavam a
força do amor; para ele, ao buscar com tanta vio-
lência obter um poder ilusório sobre as mulheres,
os homens produziam a guerra e o mal; no entender
de Marston, no íntimo, homens e meninos estavam
390
“procurando uma garota bonita e empolgante [que
fosse] mais forte que eles”.
Era um assunto meio esquisito para os comic
books, mas Marston era famoso pela capacidade de
persuasão. Ele tirava seus argumentos de teorias
malucas: “O corpo da mulher contém o dobro de
órgãos geradores de amor e de mecanismos en-
dócrinos. O que falta à mulher é o domínio ou a
auto-afirmação para expor e fazer valer seus dese-
jos amorosos.” E ele sabia como pontuar seu dis-
curso com risadinhas condescendentes e frases do
tipo: “O leigo pode pensar que sim, mas eu, como
psicólogo...” No fim, Gaines ofereceu a Marston
uma chance para criar sua própria super-heroína.
Marston aceitou, sob a condição de deter os direitos
sobre seu personagem e receber royalties perpétuos
sobre as vendas. Conseguiu até mesmo que Gaines
incluísse uma cláusula no contrato estipulando que
os direitos voltariam para suas mãos ou as de seus
herdeiros se algum dia a editora deixasse por algum
momento de publicar a série. As primeiras editoras
de gibis eram capazes de ceder um bocado quando
pressionadas.
E assim foi que o psicólogo dissidente William
Moulton Marston se uniu, aos 48 anos de idade, às
fileiras da HQ. Para tanto, passou a usar o pseu-
dônimo “Charles Moulton” (uma homenagem a
Charlie Gaines), embora nunca hesitasse em anun-
ciar ao mundo quem era; usava as histórias em qua-
391
drinhos para atrair a atenção sobre seus outros es-
critos. A heroína que ele criou era uma amazona da
Ilha Paraíso que veio para o mundo dos homens
para pôr um fim à guerra e à exploração. Ele a cha-
mou de “Suprema, the Wonder Woman” (Mulher-
Maravilha). Sheldon Mayer vetou o “suprema”.
Também tentou vetar o artista escolhido por Mars-
ton para desenhar a série, um velho desenhista cha-
mado Harry G. Peter, cujo estilo ingênuo e antiqua-
do parecia encantador ao acadêmico, mas chato
para o jovem editor. Marston no entanto gostou do
jeito como Peter deu à sua heroína inocência e alti-
vez de princesa, e não cedeu.
Saber da história que há por trás da concepção
da Mulher-Maravilha não teria incendiado a imagi-
nação de nenhum leitor. As palavras dos defensores
das possibilidades educacionais do entretenimento
barato são sempre pálidas quando comparadas à vi-
rulência dos críticos e à confusa realidade do pró-
prio material. Mas algo aconteceu quando Marston
se viu às voltas com sua heroína imaginária. Ele
aprendeu — assim como Gaines aprendera um tan-
to a contragosto — que os super-heróis adquirem
vida quando o criador dá a eles seus próprios dra-
mas, expressos por trajes, lutas, vitórias e derrotas.
Dramas que levam um homem a mergulhar nas tre-
vas, no que apavora, no que emociona.
“A Mulher-Maravilha”, disse Marston, “é pro-
paganda psicológica para o novo tipo de mulher
392
que deveria, na minha opinião, comandar o mun-
do.” Ele acreditava fundamentalmente que o ódio e
a violência só seriam eliminados quando o homem
entregasse o poder à mulher; o poder masculino era
sua explicação para os males do mundo (e talvez o
segredo de sua feliz poligamia). Marston deu à Mu-
lher-Maravilha duas armas básicas. Primeiro, um
par de braceletes defletores de balas (baseados nos
“braceletes árabes para proteção” que Olive Byrne
usava). Mas havia mais nesses braceletes do que
simples defesa preventiva — eram também alge-
mas, usadas pelas amazonas “para lembrá-las do
que acontece quando uma moça se deixa conquistar
por um homem. Uma vez as amazonas sucumbiram
aos encantos de alguns lindos gregos que as coloca-
ram sob grilhões do tipo usado por Hitler, surra-
ram-nas e fizeram-nas trabalhar feito cavalos no
campo.” A segunda arma era um laço mágico que
obrigava todos que se vissem presos por ele a se
submeter à vontade da Mulher-Maravilha. Marston
pretendia que isso fosse um símbolo do poder real
das mulheres, do que ele chamava de “Sedução do
Amor”. “Os homens normais conservam um desejo
infantil de ter uma mulher que sirva de mãe para
eles”, disse o psicólogo. “Durante a adolescência,
surge um novo desejo. Querem uma garota que os
seduza. Quando juntamos as duas coisas, temos o
típico anseio masculino que a Mulher-Maravilha
satisfaz... o desejo subconsciente e elaboradamente
393
disfarçado dos homens de ser dominados por uma
mulher que os ame.”
Todas as histórias da Wonder Woman conti-
nham ao menos uma cena importante — em geral
várias — de alguém amarrado. Uma das histórias
começa com uma escrava acorrentada sendo re-
preendida pelo deus Marte, depois passa para o Dr.
Psico amarrando um homem para torturá-lo até a
morte. Em seguida, Psico suspende a noiva Marva
pelos pulsos para hipnotizá-la e forçá-la a se casar
com ele, depois a amarra numa cadeira, venda seus
olhos e “usa Marva para suas experiências secre-
tas”. Por fim, coloca-a numa caixa de vidro, ainda
de olhos tapados; a Mulher-Maravilha chega, mas é
levada, através das artimanhas do cientista, a amar-
rar a moça de novo na cadeira (“Ai! Por favor, não
tão apertado!” “Ora, você ainda não viu o que é
apertado!”). Duas páginas adiante, é induzida a
amarrá-la de novo (“Oh, detesto ser amarrada —
será que não dá para me deixar solta?” “Mas é claro
que não, minha cara! Solta, mulher nenhuma mere-
ce confiança!”) Um pouco depois, a amazona, na
pele de Diana Prince, sua identidade secreta, ajuda
a algemar três funcionárias de um escritório e
despi-las até que fiquem apenas de combinação,
calcinha e cinta-liga. Ela descobre então que seu
querido Steve Trevor está trancado numa jaula mas,
ao tentar salvá-lo, é eletrocutada e presa a uma pa-
rede — com algemas nos tornozelos, pulsos, braços
394
e na garganta. Ela escapa, liberta Steve e avança
para uma câmara subterrânea, onde encontra a po-
bre Marva de olhos vendados e acorrentada a uma
cama. No fim, moças integrantes de um grêmio
universitário recordam a “baby party” do início da
carreira do Dr. Marston ao perseguir o Dr. Psico
para lhe “dar uma boa lição!” “Palmadas nele,
companheiras! Vamos fazer serviço completo!”
Essa história chamou-se “The Battle for Woma-
nhood”. E, espremido no quadrinho final, temos a
moral da história, através do lamento de Marva e da
exortação da Mulher-Maravilha: “Submissão ao
domínio de um marido cruel arruinou minha vida!
Mas o que mais uma garota frágil pode fazer?” “Fi-
car forte! Ganhar a própria vida... lutar pelo seu
país! Lembre-se, quanto melhor você souber lutar,
menos terá de lutar! ” Mas o que fica conosco de-
pois de ler os quadrinhos não é a mensagem pela
independência econômica das mulheres e sim ima-
gens de corpos amarrados e indefesos.
Josette Frank, colega de Marston no Conselho
Editorial Consultivo da DC, advertiu Gaines de que
Wonder Woman poderia “deixá-lo vulnerável a um
bom volume de críticas... em parte por causa dos
trajes da mulher (ou falta deles), e, em parte, devi-
do aos trechos de inspiração sádica, com mulheres
amarradas, torturadas etc.” Marston já tinha uma
resposta na ponta da língua e disse que “vendar e
acorrentar são as únicas formas inofensivas e indo-
395
lores de subjugar a heroína e criar uma situação
dramática”. Mas em seguida, na mesma carta, en-
trou mais a fundo em questões que os editores com
certeza gostariam que ele tivesse deixado quietas.
“As mulheres são excitantes justamente por essa ra-
zão — esse é o segredo da sedução feminina — a
mulher gosta de se submeter, de ser amarrada. Tra-
go isso à tona nas sequências da Ilha Paraíso, em
que as garotas imploram por correntes e gostam de
usá-las.” Essa era, segundo Marston, “a única ver-
dadeira contribuição dos meus quadrinhos à educa-
ção moral dos jovens. A única esperança de paz é
ensinar àqueles que estão cheios de energia e de
força a gostar de amarras. [...] Em se tratando de re-
lacionamentos humanos, só teremos uma sociedade
mais pacífica e estável quando o controle do eu,
exercido de fora, for mais agradável que a afirma-
ção irrestrita do eu sem amarras.”
Em seguida Marston pôs a descoberto o que
ninguém naquele momento poderia ou teria ousado
pôr: “Ceder ao outro, ser controlado, submeter-se a
uma outra pessoa não pode em hipótese nenhuma
ser agradável sem que haja um forte elemento eróti-
co”. O erotismo dos super-heróis não era algo que
um jovem se permitia normalmente enxergar. Mas
o erotismo estava ali, não só no fetichismo da Mu-
lher-Maravilha como também nos punhos de aço e
nos tendões sinuosos de Jack Kirby, nas máscaras
noturnas de Bob Kane e Jerry Robinson, na presun-
396
ção juvenil do grande halterofilista de Joe Shuster e
nos anúncios de Charles Atlas, na página ao lado.
Os quadrinhos de super-heróis tinham tudo a ver
com o corpo, o corpo ameaçado e o corpo em ale-
gre submissão, o corpo despido e puro, o corpo
descoberto e glorificado, e também o corpo impul-
sionado a um lugar irreal e inofensivo. No fundo,
não foi um passo assim tão grande da Artists and
Models e da Pep Stories para os gibis.
Como se viu, Marston sabia o que estava fazen-
do. Apesar de a protagonista ser mulher, apesar das
histórias confusas e da arte esquisita, Wonder Wo-
man fez um enorme e imediato sucesso. Não demo-
rou para que aquela utopia cheia de polêmica e ero-
tismo começasse a figurar em três revistas diferen-
tes, muitas vezes ultrapassando Batman nas vendas
e, de vez quando, o próprio Superman. E as histó-
rias da Mulher-Maravilha vendiam sobretudo para
garotos da pré-adolescência em diante. Uma pes-
quisa de mercado mostrou que 90% dos leitores
eram homens; as meninas liam mais as histórias do
Super-Homem do que as da Mulher-Maravilha. E
os anunciantes sabiam disso, tanto é que os anún-
cios que apareciam junto com a Mulher-Maravilha
eram quase todos do gênero “Ei, rapazes, por que
vocês não pedem uma espingarda BB de presente?”
“Diz-me que quadrinhos lês e te direi quem és”, di-
zia Marston, rindo. “Digam-me quais são as prefe-
rências de uma pessoa em termos de quadrinhos
397
que serei capaz de dizer quais são os desejos sub-
conscientes dela.” A Mulher-Maravilha, muito
mais que um modelo para as meninas, como se pre-
tendia que ela fosse, era uma forma de os meninos
se aproximarem dos mistérios mais assustadores.
Depois de todos aqueles anos zanzando de um
lado a outro tentando se promover sem conseguir
captar a imaginação de seus conterrâneos, Marston
descobrira os temas que melhor dominava e quais
paixões partilhava com outros milhões de homens.
E, nos gibis de super-heróis, encontrou um terreno
jovem o suficiente, ingênuo o suficiente, e pouco
vigiado o suficiente para levar essas paixões às
massas.

TUDO TINHA acontecido muito rápido. O Su-


per-Homem surgira num canto obscuro das bancas
na primavera de 1938 e, pouco depois disso, come-
çava a chamar a atenção do público. Em janeiro de
1939, já havia uma tira do Super-Homem nos jor-
nais. Seis meses mais, e começaram a pipocar no-
vas editoras e novos super-heróis. Em fevereiro do
ano seguinte, o Super-Homem foi levado ao rádio;
nos quadrinhos seus rivais já eram muitos. Lá pela
metade de 1940, havia toda uma indústria produ-
zindo a pleno vapor; garotos de 20 anos tinham
seus próprios estúdios de arte e estavam ficando ri-
cos; editores sem tradição no mercado estavam fi-
cando mais ricos ainda. Colunistas de jornal e cléri-
398
gos começaram a protestar. No ano seguinte, o Ho-
mem-Borracha, o Capitão América e a Mulher-
Maravilha rescreveram o gênero que acabava de
nascer, enquanto os quadrinhos do Super-Homem
garantiam que o gênero era por excelência a con-
cretização da moderna fantasia de poder. “Subindo,
subindo, cada vez mais alto” e “Olhem! Lá no
céu!” viraram bordões. Joe DiMaggio era chamado
de “Super-Homem”. Em apenas três anos, Jerry Si-
egel e Joe Shuster tinham passado de dois zeros à
esquerda a heróis, e dali para a categoria de inte-
grantes da velha-guarda que teria de ser desafiada,
deposta e superada.
Fãs e colecionadores viriam a chamar essa épo-
ca de “A Era de Ouro”, dos gibis. Aos poucos, os
responsáveis por ela acabariam adotando a mesma
expressão. Durante 40 anos, Jerry Robinson mal re-
conheceu seu trabalho em Batman e Daredevil; de-
pois que parou com eles, preferia falar do tempo
em que fazia tiras para jornal e de quando fora pre-
sidente da Sociedade Nacional de Cartunistas. Mas,
já com seus 80 anos, ao preparar uma exposição
com quadrinistas judeus, de repente lá estava ele,
falando casualmente da “Era de Ouro”.
E ela teria um brilho dourado ainda mais especi-
al por entre as nuvens que baixaram em seguida.
Porque, de repente, lá estavam os aviões japoneses
bombardeando o Havaí, a tão aguardada guerra, o
alistamento militar, os campos de prisioneiros, as
399
saudades, a padronização da cultura popular e o fim
dos sonhos.

10
——————————
GUERRAS

A GUERRA FOI boa para os quadrinhos.


Aquelas revistinhas gordas e coloridas, de leitura
fácil, eram perfeitas para o pracinha matar o tempo,
na base ou no navio. Até o final de 1942, de todo o
material impresso enviado aos acampamentos mili-
tares, mais de trinta por cento foram gibis. As ven-
das, já bastante altas, subiram a novos patamares. A
Superman vendia mais de um milhão de exempla-
res por edição, a Captain Marvel às vezes batia na
casa dos dois milhões. E a Comics and Stories, de
Walt Disney, vendia mais que as duas primeiras
juntas.
A explosão foi mais lucrativa para as editoras
maiores, graças às concessões generosas de papel
autorizadas pelo órgão competente, o War Materi-
als Board. Para as editoras menores o racionamento
de papel significou impossibilidade de expansão e
elas acabaram empurradas para fora do mercado.
Até o final da guerra, os comic books já tinham dei-
xado de ser território ainda por desbravar e haviam
se transformado numa indústria bem estabelecida e
controlada por uns poucos. Estúdios como os de
400
Jerry Iger e Jack Binder também começaram a su-
mir do mapa, à medida que seus artistas iam se alis-
tando no exército e as editoras se descobriam capa-
zes de substituí-los com pessoal próprio. A qualida-
de dos quadrinhos caiu a níveis ainda mais baixos
que durante a superprodução do pré-guerra, mas o
veículo cativara de tal forma os garotos e os solda-
dos que isso não parecia importar.
Os quadrinhos, contudo, ainda não eram mere-
cedores de respeito. O comic book tornara-se, na
verdade, a mais completa expressão da estupidez
cultural — nem os romances baratos, os contos dos
pulps, as tirinhas cômicas, a música caipira,
Mickey Mouse ou mesmo os filmes de bangue-ban-
gue jamais conseguiram tal façanha. Quando a im-
prensa quis retratar o perigoso gângster Dukey
Maffetore como um sujeito mentalmente abaixo do
normal, bastou dizer que ele era leitor do Super-
Homem. De qualquer forma, a grita inicial em tor-
no dos efeitos que os gibis teriam sobre os jovens já
se acalmara, sobretudo porque muitos super-heróis
estavam empenhadíssimos no esforço de guerra.
Além disso, todos eles também estavam se tornan-
do mais conhecidos do público, graças à presença
dos desenhos animados do Super-Homem, das pa-
ródias do Mighty Mouse (Super-Mouse), dos seria-
dos do Capitão Marvel e Capitão América e das ti-
ras do Batman e do Super-Homem, que eram publi-
cadas lado a lado nos jornais. Saber que sua saúde
401
econômica dependia da aprovação dos censores mi-
litares e donos de lojas em bases do exército forçou
as editoras a respeitarem a moral e os bons costu-
mes.
A guerra foi, de maneira geral, bastante boa
com o pessoal que fazia quadrinhos. Escritores e
artistas costumavam ser designados para tarefas
educativas ou de propaganda e, com isso, ficavam
longe da linha de frente. Houve apenas umas pou-
cas exceções: Jack Kirby era durão demais para pe-
dir favores e, em suas próprias palavras, recebeu
“uma barra de chocolate, um rifle M-1 e ordens
para ir lá matar Hitler”. No entanto a maioria con-
seguiu passar a guerra inteira pintando cartazes ou
escrevendo folhetos sobre manutenção de jipes.
Stan Lee deixou sua marca com o clássico pôster
que dizia “DST? Comigo não!”. Na verdade, Stan
era um grande mestre em levar a vida na maciota.
O comandante abominava aquele seu sorriso pre-
sunçoso, sua inabalável autoconfiança e o imenso
Buick Phaeton conversível que usava para sair do
quartel nos dias de folga. Certa vez, Stan resolveu
arrombar o posto de correio do quartel, à noite,
para apanhar o resumo de um enredo que Martin
Goodman lhe enviara. Pego em flagrante, foi avisa-
do pelo comandante que iria à corte marcial. Stan
porém ligou para Goodman, que por sua vez ligou
para alguém influente dizendo que o escritor de Ca-
pitão América fora ameaçado de corte marcial. No
402
dia seguinte Stan já estava fora dó xadrez. O ódio
do comandante só fez aumentar mas, daquele dia
em diante, foi um ódio silencioso.
Para o mais conhecido de todos os escritores de
gibis, porém, os anos de guerra não foram tão fá-
ceis.
Jerry Siegel perdera a mãe. A poderosa Sarah
Fine Siegel fora aos poucos se fechando em mutis-
mo e caindo em prostração. Depois do dia em que o
filho se casou com a vizinha da frente, quase não
saiu mais de casa. Irmãs, sobrinhos e filhos se reve-
zavam para cuidar dela, na avenida Kimberly. E
Sarah sempre conduzia a conversa para aquela
moça com quem o filho se casara. Jerry tentou fa-
zer com que a mãe desse uma chance a Bella. Pro-
meteu-lhe um neto. Mas o desânimo de Sarah não
parecia ter cura. “Não foi só o fato de Jerry ter se
casado com Bella”, disse um dos seus sobrinhos,
Irv Fine. “Ela adoeceu por tudo que lhe aconteceu
de ruim. Mas jogou a culpa no casamento de Jerry,
e foi seguida nisso por toda a família.”
Quando Sarah morreu, em agosto de 1941, as
matriarcas da família decidiram que a causa tinha
sido o casamento de Jerry. “Está contente, agora?”,
perguntou-lhe uma das tias. Jerry foi ao enterro,
mas Bella não. Depois disso, ele se afastou de vez
da família, inclusive daqueles que não o culpavam
por nada. Seu primo Jerry Fine só tornaria a vê-lo
quarenta anos depois.
403
Porém tudo indica que o casamento que a famí-
lia tanto odiava não estava dando certo. Jerry nunca
falou de sua vida pessoal, e nenhum dos dois ja-
mais fez qualquer comentário a respeito da vida em
comum, mesmo depois de muitas décadas. Mas o
fato é que ele começou a passar mais tempo em
Nova York do que em University Heights. Os dese-
nhistas de seu estúdio tinham a impressão de que
Jerry queria ficar longe da própria casa. A hostili-
dade da família não deve ter contribuído para apa-
ziguar os conflitos, quaisquer que fossem eles. As-
sim como também não ajudaram as discussões
constantes que estava tendo com Harry Donenfeld
e Jack Liebowitz, por causa do dinheiro que achava
que os dois lhe deviam pelas licenças concedidas
da marca Superman. Donenfeld e Liebowitz já ti-
nha começado o envio de cheques a título de rendi-
mento complementar, mas Jerry sempre achava que
eram menores do que deveriam ser. Os desenhistas
que o ouviram falar da indiferença de Bella para
com o Super-Homem chegaram à conclusão de que
ela tolerava o Homem de Amanhã apenas porque
era uma fonte de renda. Por mais que Jerry estives-
se ganhando com os gibis e as tiras de jornal, irri-
tava-o pensar no dinheiro que estava deixando de
ganhar. Bella também devia se irritar, pensando no
assunto; e, em consequência, o casamento saía per-
dendo.
O filho de Harry, Irwin, tem uma estranha lem-
404
brança dos tempos de adolescente, que ele jura ser
verdadeira. Harry tinha levado Gea e os filhos para
morar num casarão imenso em Woodmere, num
trecho então muito chique da margem sul de Long
Island. Um sábado de manhã, Irwin estava em casa
com a mãe quando, olhando pela janela, viu Jerry e
Bella Siegel marchando de um lado para o outro,
diante da casa. E carregando cartazes com os dize-
res: “Donenfeld é desleal com Jerry Siegel”. Irwin
perguntou à mãe o que estava acontecendo. Gea se
limitou a abanar a cabeça e continuou com seus
afazeres. Irwin ficou ali na janela, espiando os Sie-
gels marcharem para cima e para baixo, para cima e
para baixo, numa calçada praticamente deserta de
um bairro distante, recém-construído. No fim, se
cansou do espetáculo e, quando olhou de novo pela
janela, os Siegels haviam sumido.
Será que isso ocorreu de fato? A história tem
mais jeito de ser uma das muitas lendas familiares
dos Donenfeld. Por outro lado, pelo menos em ter-
mos caricatos, ela também possui uma grande dose
de Jerry Siegel. Jerry sempre teve mania de expres-
sar sua ira através de maneiras fantasiosas, um tan-
to absurdas, difíceis ou mesmo impossíveis de levar
a sério. Na escola, expressava as frustrações, a ar-
rogância defensiva e a sensação de não fazer parte
de seu meio através de um humor muito próprio,
humor de geek. Sua arma social mais potente sem-
pre foi a piada. Seu arraigado ódio aos bandidos se
405
solidificou numa figura caricata, vestida com uma
malha justa, que muitas vezes usava seu imenso po-
der para bancar o palhaço. Na hora de exigir sua
parte no dinheiro das licenças, escrevia cartas inefi-
cazes ou discutia com Donenfeld nos corredores da
DC sem muita confiança em si mesmo; e, todas as
vezes, diante da promessa mais vaga, baixava a ca-
beça, concordava e engolia a raiva. E verdade que
suas opções eram limitadas, uma vez que havia
vendido todos os direitos; mas, mesmo assim, na-
queles primeiros anos de frustração, parece que
Jerry nunca pediu uma auditoria, nunca insistiu
para renegociar o acerto, nunca ameaçou levar seu
talento para uma outra editora. Ele avançava, e,
quase na mesma hora, recuava, ou porque não sou-
besse quanto poder tinha ou porque receasse
exercê-lo, mas sempre na esperança de que, ao se
apresentar como a parte ofendida, seria feita justi-
ça.
Talvez seja verdade, como sugeriu Irwin Do-
nenfeld, que Bella é que o estava forçando a come-
çar uma briga para a qual não se sentia apto.
Jerry era um garoto órfão dos arredores de Cle-
veland, um forasteiro em Nova York e no mundo
dos negócios, sem mapas ou modelos para guiá-lo.
No entanto Bella, com apenas vinte anos de idade e
longe de qualquer traquejo social, quando a guerra
começou, queria sem dúvida que o marido fosse de
fato o sucesso que havia, no começo, anunciado.
406
Como ia admitir que não sabia o que fazer, que não
se achava capaz?
O primeiro ano da guerra passou, os primeiros
meses do segundo se escoaram, e Jerry ainda não
havia sido convocado para servir o exército. Joe
Shuster fora dispensado por causa da vista, mas
Jerry não tinha nenhum problema físico. Para a fa-
mília, ele disse: “O governo não quer que eu vá
para a guerra porque Hitler prometeu me matar se
eu for”. Seus primos menores, mais românticos, es-
cutavam de olhos esbugalhados. Sabiam que o pri-
mo biruta criara algo ao mesmo tempo tolo e lucra-
tivo, mas jamais haviam imaginado a ameaça que o
Super-Homem judeu representava para os nazistas!
Os primos mais velhos e mais experientes acredita-
vam que Hitler devia ter outras questões mais pre-
mentes para resolver e se perguntavam por que ho-
mens bem mais famosos que Jerry Siegel estavam
sendo mandados para a guerra antes dele.
Havia um rumor insistente, entre o pessoal do
ramo, de que Harry Donenfeld estava mexendo os
pauzinhos para manter Siegel longe da farda; isso é
algo que Harry poderia fazer, e que teria feito se
quisesse. Por seu lado, Jerry também tinha um mo-
tivo para não querer ser convocado — insegurança
profissional. Acreditava que a DC estava tentando
cortá-lo da revista Superman.
“Joe e eu assinamos um contrato que nos dava
exclusividade na produção dos quadrinhos”, disse
407
Siegel, “mas eu tinha medo de que, assim que me
convocassem, a DC iria tirar partido da situação e
dar as histórias para o pessoal deles. E mesmo que
Joe continuasse à frente do estúdio, eu tinha medo
de que eles passassem por cima de Joe também.”
Seus temores não eram infundados. Do momento
em que assumiu como editor, no início de 1941,
Mort Weisinger passou a insistir para que Jerry
concordasse em deixá-lo contratar escritores e artis-
tas para ajudar a fazer a Superman. Weisinger dizia
que o estúdio de Shuster estava sobrecarregado,
que não tinha desenhistas suficientemente bons e
que Jerry estava ocupado demais para fazer as me-
lhores histórias possíveis. Para seus superiores,
Mort Weisinger dizia que Siegel não sabia explorar
suas criações tão bem quanto seus editores. Lie-
bowitz já tinha Siegel na conta de pessoa imatura e
fantasista, ao passo que Weisinger, para ele, era um
mestre comprovado dos pulps voltados ao público
juvenil. As idéias rejeitadas de Jerry, para o “Me-
tal-K” e o “Superboy”, apenas sustentavam os ar-
gumentos de Weisinger. Chamado a servir no final
de 1941, Weisinger conseguiu que a DC contratas-
se Jack Schiff, um amigo e colega dos tempos dos
pulps, que segurou o emprego para ele até sua vol-
ta; em seguida, por telefone, telegrama e carta, fi-
cou em cima de Schiff, mantendo-se firme no leme
do Super-Homem, de sua base em Fort Dix.
Os desentendimentos a respeito dos rumos do
408
personagem começaram a surgir em 1942. O traba-
lho de Siegel e Shuster estava ficando cada vez
mais exuberante e absurdo. Acabaram, por fim, le-
vando o Super-Homem para a guerra, mas, por um
acordo com os editores, não como combatente. A
dupla criara um ser tão superdotado que os exérci-
tos do Eixo não teriam como enfrentá-lo de forma
plausível, nem mesmo pelo tempo de duração de
uma história. De modo que o Homem de Amanhã
resolveu que a guerra deveria ser vencida pelo
“maior de todos os heróis, o soldado americano”, e
se contentou com espetáculos para levantar o moral
dos pracinhas e escapulidas ocasionais para lutar
com supercientistas na frente alemã. Acima de
tudo, Siegel e Shuster fizeram do Super-Homem
uma escapatória para o conflito da vida real, e con-
duziram suas aventuras cada vez mais para o terre-
no do humor. Tendo perdido a batalha pelo Super-
boy e suas travessuras juvenis, os dois encheram os
quadrinhos com malfeitores absurdos: o senhor
Mxyztplk, Topsy e Turvy, o Prankster e Funny
Face, que mora dentro das tiras de jornal. Além dis-
so, faziam cada vez mais autocitações. Numa das
histórias, Clark leva Lois ao cinema e há um dese-
nho animado do Super-Homem passando na tela.
(“Conforme publicado nas revistas Action e Super-
man Comics”, dizem os créditos. “Acho que não
conheço essas revistas”, diz Lois.) A história toda
gira em torno dos malabarismos para evitar que
409
Lois veja a cena onde Clark Kent se transforma em
Super-Homem.
Weisinger e Schiff também adoravam reviravol-
tas, truques e humor, mas preferiam tudo isso no
meio de tramas complicadas e perigos verossímeis.
Entre os escritores prediletos dos dois estavam Bill
Finger, que conferira ao Batman seu peso emocio-
nal, além de Alvin Schwartz e Don Cameron, am-
bos inicialmente romancistas, que se debruçaram
sobre seus pequenos dramas super-heróicos com
uma seriedade incomum. Siegel e Shuster se atira-
vam nas fantasias infantis com uma verve auto-
zombeteira. Weisinger e Schiff queriam que o Su-
per-Homem fizesse o que já haviam feito pulps
como a “Thrilling”: mexer diretamente com os ape-
tites dos jovens leitores. Alguém da DC fez inclusi-
ve uma mudança sutil mas reveladora no apelido do
personagem. Seus rivais da Pep Comics tinham um
herói de segunda classe chamado Steel Sterling, “o
Homem de Aço”. Quando as aventuras dele foram
suspensas, a DC abocanhou mais que depressa a al-
cunha. O “Homem do Amanhã”, com suas evoca-
ções otimistas de feiras mundiais do pré-guerra, foi
substituído por uma descrição mais inflexível, mais
física, mais militar.
Siegel lutou contra todas as tentativas dos edito-
res de aprovar uma história escrita por terceiros
sem sua anuência. Bob Kane era muito mais corda-
to nessa questão e deixava que a DC terceirizasse
410
as histórias do Batman; para ele, manter a qualida-
de de seu estúdio e as boas relações com a editora
era o que importava. Kane tinha a vantagem de ter
um pai que trabalhava em gráfica e convivia diaria-
mente com as editoras; além disso, tinha o dom de
se fazer querido, dom que faltava a Siegel. Nos me-
ses que antecederam a declaração de guerra, Jerry
Siegel dá a impressão de um homem combatendo
um desastre que receia não poder evitar. Um suces-
so tão repentino e improvável, chegando tão cedo e
com tão pouca preparação, às vezes deixa o chão
em que se pisa tremendamente inseguro. Antigas
perdas e antigas inadequações podem voltar à tona.
A grandiosidade se transforma em suspeita. Para
ele, a perspectiva de passar dois anos numa base
militar seria a chance ideal para que a DC lhe tiras-
se tudo o que lhe fora prometido.
Seja lá o que foi que manteve Jerry Siegel longe
da convocação por todos aqueles meses, a festa
acabou no verão de 1943. Mas, mesmo nessa hora,
a mão de Duke Ducovny e da máquina de relações
públicas da DC pôde ser sentida. Jerry foi homena-
geado como “alistado célebre” durante as comemo-
rações gigantescas do Quatro de Julho em Cleve-
land. Walter Winchell deu o furo e a notícia pegou
bem na imprensa da cidade. Jerry subiu num palan-
que, balançou a cabeça, pegou seus papéis e foi
para o treinamento.
A essa altura, Bella Siegel estava grávida de
411
quase quatro meses. O neto fora finalmente enco-
mendado, mas um pouco tarde para ser saudado
pela família. Na verdade, a família de Siegel nunca
soube muita coisa sobre o bebê que nasceu em ja-
neiro de 1944. Nascimento que mereceu uma noti-
nha no Plain Dealer: “Escritor do Super-Homem
ganha um filho”. A notícia dizia que Jerry tinha
deixado as manobras na Virgínia para assistir ao
parto. Mas, de novo, as cortinas se fecham em tor-
no da vida de Jerry Siegel. No ano seguinte, Bella
deu à luz o segundo filho, mas este morreu ainda
bebê. Jerry começou a se distanciar ainda mais de
Bella. As Forças Armadas o enviaram ao Havaí,
para trabalhar na Stars and Stripes. Bella recebeu
poucas cartas dele, mas pior que isso: chegaram à
casa dela alguns recibos por jóias que aparentemen-
te Jerry comprara para outras mulheres. Prostitutas,
imaginou Bella.
Em todas as entrevistas que concedeu e em to-
das as conversas que manteve com fãs, durante os
50 anos seguintes, não mencionou o filho, Michael,
uma única vez. Nunca mencionou a primeira mu-
lher, Bella. Anos depois, fãs e repórteres descobri-
ram o paradeiro de Bella, mas tudo o que souberam
é que ela não queria falar a respeito de Jerry Siegel.
Também souberam que Bella contratara um advo-
gado para manter os repórteres à distância, e depois
que o filho, aos 60 anos de idade, ainda morava na
casa que fora dos pais. Michael Siegel trabalhou de
412
vez em quando, pelo menos até os 40 anos, em fer-
ros-velhos e oficinas mecânicas. Nunca falava no
pai, a não ser para dizer quanto o odiava por ter
abandonado sua mãe e ele.
“Tem alguma coisa errada, aqui”, disse um re-
pórter de Cleveland, que não quis o nome divulga-
do. “Alguma vergonha ou alguma dor. Meu palpite
é que o rapaz tinha problemas mentais ou emocio-
nais. Mas ninguém da família, fora Jerry e Bella Si-
egel, sabia o que era; e eles nunca falaram a respei-
to desse assunto.”
O exército talvez tenha sido um refúgio tranqui-
lo para Jerry, mas muito solitário também. Os ho-
mens que serviram a seu lado se lembram dele
como um sujeito afável porém distante, sempre in-
clinado a lembrar aos outros quem ele era. Uma pi-
ada que circulou na época dizia que no crachá, o
nome dele era “C. Siegel” porque o exército não ti-
nha espaço para mais coisas, mas que o nome com-
pleto dele era “Cabo Siegel, o Criador do Super-
Homem”. Ele sairia do exército com apenas um
amigo: um advogado chamado Albert Zugsmith.

A GUERRA FOI uma época e tanto para Harry


Donenfeld. Fosse por causa de seus contatos, fosse
pelo valor de suas publicações para levantar o mo-
ral, o fato é que Harry não teve dificuldades em
conseguir papel e tinta durante o pior do raciona-
mento — mais que qualquer outra editora ou distri-
413
buidora, tirou partido máximo da crescente popula-
ridade dos gibis. Além de estar ficando ainda mais
rico, era chamado a participar de campanhas patri-
óticas para vender os bônus de guerra. Quando o
governo queria fazer com que as pessoas recolhes-
sem sucata ou economizassem borracha, recorria a
Harry. Quando queria que um herói de quadrinhos
vendesse um tipo a mais de bônus, recorria a Harry.
Apenas quatro anos antes, ele corria o risco de ser
levado à ruína por publicar La Paree e Spicy Stori-
es. Então, um belo dia, Harry Donenfeld entrou
num foguete, subiu ao céu e, ao desembarcar, se
viu fazendo parte do Sistema.
Com Jerry Siegel servindo o exército, Harry se
tornou o porta-voz natural do Super-Homem em re-
vistas, jornais e no rádio. Foi parar até no Baby
Snooks Show, num papo com a grande Fanny Bri-
ce. “O Homem por trás do Super-Homem” era o
nome do quadro de Harry e ele explorou a história
da descoberta do super-herói com muita graça e ao
máximo. A química entre a apresentadora e o con-
vidado foi instantânea; ela também era do Lower
East Side, poucos anos mais velha que ele, e ambos
haviam conquistado o mundo com brincadeiras in-
fantis e individualismo agressivo. Fazia parte do es-
quete o companheiro radiofônico de Fanny, Frank
Morgan, dar a entender que era ele o Super-
Homem verdadeiro, mas Harry partiu para cima do
co-apresentador com uma indignação quase verídi-
414
ca. Comparando-se essa sua atuação com o diálogo
gaguejado que Jerry Siegel mantivera com Fred Al-
len, a diferença de personalidade é marcante; Harry
emanava poder. Esse episódio de Baby Snooks foi
distribuído a todas as bases militares pelo Serviço
de Rádio das Forças Armadas. E provável que Jerry
Siegel tenha ouvido o programa, e é provável que
isso tenha aumentado ainda mais seu ressentimen-
to.
Harry não hesitava em alardear o sucesso que o
Super-Homem lhe trouxera. Tinha mandado insta-
lar uma imensa imagem do herói no saguão da De-
tective Comics, e uma enorme foto de si mesmo na
sala da diretoria. Seu aniversário de cinquenta anos
foi motivo para uma festa colossal no Waldorf.
Para todos os efeitos, os anfitriões da festa foram
Jack e Rose Liebowitz, mas tudo levou a marca do
humor ruidoso de Harry. Jack mandara imprimir
um falso jornal com uma manchete em letras garra-
fais: “DONENFELD SEM FALA”. Qualquer um
que já tivesse tido a oportunidade de ser o interlo-
cutor de Harry deve ter achado muita graça. Havia
trechos de telegramas enviados por empresários de
todo o país e citações cômicas dos amigos. Uma
charge mostrava Adolf Hitler se queixando a um
Harry todo sorridente: “Tenho me sentido um hor-
ror, desde que fiz cinquenta anos!” E numa curiosa
tirinha, Harry aparecia dominando o Super-Homem
e lhe dando uns tapas na bunda. A festa foi longa,
415
barulhenta, triunfante e regada a muito álcool. Mais
tarde, Harry disse que a única coisa que o deixara
triste era o fato de sua esposa poder estar lá, mas
não Sunny, a mulher que ele amava.
Tudo era espetáculo, para Harry. Seu filho
Irwin se alistou na aeronáutica assim que comple-
tou 18 anos. Mas não chegou a participar dos com-
bates; permaneceu na Base Aérea de Keesler para
lutar o que ele chamou de “a batalha do Mississip-
pi”. Como boxeador peso-pena, logo se transfor-
mou numa celebridade; um dia, ligou para o pai di-
zendo que iria participar do campeonato. Harry res-
pondeu que iria até lá para assistir a luta, depois
acrescentou: “Diga pra pessoa encarregada, seja
quem for, pra acertar um jantar meu com os ofici-
ais.” “Pai, não posso fazer isso”, respondeu Irwin,
atônito. “Sou apenas mais um soldado, aqui.” Harry
deu uma risadinha zombeteira e desligou. Algum
tempo depois, com o dia da luta já bem próximo,
Irwin viu um tenente andando em sua direção. “Do-
nenfeld, se apresente ao coronel”, disse o oficial.
Irwin foi, “morto de medo”, perguntando-se o que
teria feito de errado. Disseram-lhe para aguardar na
ante-sala. De repente a porta se abre e lá está Harry
Donenfeld. “Eis aqui meu filho, o boxeador!”,
exulta ele. Sabe-se lá como, Harry conseguira não
só permissão para entrar na base como também um
jantar com o coronel, além de uma limusine para
pegá-lo na estação ferroviária de Biloxi. O coronel
416
saiu de seu gabinete para cumprimentar o grande
Donenfeld. Em poucos minutos, conta Irwin, seu
pai havia descoberto que a mulher do oficial e Gus-
sie Donenfeld pertenciam ao mesmo clube, e lá se
foram os dois, o coronel e seu pai, rindo muito, de
braços dados. O espanto ainda brilhava nos olhos
de Irwin, quase sessenta anos depois. “Ele fazia
todo mundo gostar dele!”
Harry dava emprego para os amigos e para os
parentes dos amigos, bancava a abertura de novas
empresas, distribuía empréstimos. Deu a um rapaz
chamado Fred Iger, que trabalhava na série radio-
fônica do Superman o cargo de gerente de negó-
cios. Iger casou-se com a filha de Harry, Peachy,
que tinha apenas 18 anos na época. Harry ofereceu
um festão para os noivos. O casamento naufragou
rápido, não durou nem um ano, mas Harry conti-
nuou gostando de Iger, deixou que se safasse da-
quela união e o manteve no emprego.
Durante os anos de guerra, consta que Harry
abandonou todos os seus negócios ilegais, a exem-
plo de muitos outros homens que haviam feito for-
tuna durante o período da Lei Seca e sobrevivido à
Depressão. Continuou leal aos antigos amigos, ain-
da envolvidos em empreendimentos construídos
com dinheiro sujo, mas seus próprios fundos esta-
vam já aplicados no ramo editorial e de distribui-
ção. Isso talvez se deva, em grande parte, aos esfor-
ços de Jack Liebowitz, que, com muita teimosia,
417
foi transformando as atividades escusas e nebulosas
de Harry numa empresa limpa, moderna e de boa
aparência, enquanto, ao mesmo tempo, ia se tornan-
do uma parte cada vez mais poderosa nela.
A All American Comics fora um tremendo su-
cesso para Jack Liebowitz e seu sócio, Charlie Gai-
nes. Mas Gaines não estava contente. Ele e Lie-
bowitz discutiam o tempo todo e, em geral, Harry
entrava na briga e tomava o partido de Jack. Gaines
percebeu que a moda do super-herói estava chegan-
do ao fim; queria diversificar, editar coisas mais
duráveis, como livros e revistas para crianças. E
continuava sinceramente interessado em realizar
algo íntegro e valioso; ainda que os super-heróis da
All American e da DC estivessem entre os mais
respeitáveis do ramo, ele não era muito chegado
nos personagens. Em 1944, resolveu dar um basta.
Deixou que Jack Liebowitz comprasse a sua parte,
com um empréstimo de Harry, e manteve apenas o
seu Picture Stories from the Bible como alicerce
para sua nova empresa, a Educational Comics.
Mais que depressa, Liebowitz organizou a fusão
da All American Comics com a Detective Comics
para formar a National Comics, da qual ele era só-
cio minoritário, vice-presidente e editor. Em segui-
da, encarregou-se de organizar a National Comics,
a Independent News e empresas afiliadas numa
única entidade empresarial, a National Periodical
Publications. Das pequenas empresas formadas às
418
pressas e batizadas com nomes curiosos, nascia um
contendor legítimo no ramo da distribuição, edito-
ração e licenciamento. E o principal arquiteto disso
foi Liebowitz.
Sempre olhando a longo prazo, Liebowitz per-
cebeu que flexibilidade e coordenação seriam fun-
damentais durante as mudanças que fatalmente
ocorreriam no mercado editorial. O mercado dos
pulps, por exemplo, estava morrendo. Dependia de
uma gama muito variada de leitores: por um lado,
garotos e gente semi-alfabetizada em busca de
aventuras sensacionalistas e ilustrações; de outro,
adultos atrás de ficção do tipo que jamais seria pu-
blicada no Post ou na Collier’s. Os gibis vinham
roubando a primeira parte desse mercado, e um ou-
tro formato, popularíssimo, os livros de bolso, esta-
vam roubando a segunda. As edições de bolso ti-
nham começado nas casas mais conceituadas, mas,
com a guerra, algumas editoras de revistinhas bara-
tas, que haviam prosperado com os comic books,
começaram a embarcar no negócio e a obter suces-
so — entre elas a editora do antigo sócio de Charlie
Gaines, George Delacorte, e a do companheiro de
Harry Donenfeld, Ned Pines, a Popular Library.
Para esses homens, fronteiras como essa teriam pa-
recido inatingíveis alguns anos antes, numa época
em que os teatros de revista ainda eram seus princi-
pais pontos de venda. Mas de uma hora para outra,
estavam ali, ao alcance de muitos. E Jack Lie-
419
bowitz queria estar pronto para cruzá-las.
A curto prazo, a agonia dos pulps beneficiou os
gibis. Cada vez mais gente seguia o exemplo de
Mort Weisinger e largava seus antigos cargos para
se empregar em editoras que faziam HQ. Um velho
amigo de Mort, e assim como ele fã incondicional
da ficção científica, chamado Julius Schwartz, em
1944 se viu forçado a abandonar a carreira de agen-
te literário, já que o mercado para a produção de
seus clientes havia secado. Seu nome foi recomen-
dado a Sheldon Mayer, da All American, por um de
seus clientes, Henry Kuttner (que por sua vez entra-
ra para o ramo por intermédio de Mort Weisinger).
Julie tornou-se editor, sob o comando de Mayer;
depois, com a fusão das empresas, acabou traba-
lhando ao lado de Mort, na National Comics.
No entanto o mercado dos gibis também come-
çou a mudar. Já em 1942 começava a ficar evidente
que a febre dos super-heróis estava se esgotando.
Os heróis, então bem estabelecidos, continuavam
vendendo uma quantidade fenomenal de revisti-
nhas, mas não surgira mais nenhum personagem a
caráter capaz de cativar a fantasia das crianças;
Wonder Woman fora o último grande sucesso do
gênero. Ao mesmo tempo em que aparecia nas ban-
cas a amazona de William Marston, um outro per-
sonagem, muito diferente mas igualmente significa-
tivo, saía na Pep Comics da MLJ Publishing. A
Pep vendia muito bem graças, sobretudo, às histó-
420
rias do Shield, o primeiro super-herói patriótico a
chegar às bancas, e do Hangman (O Vingador),
uma imitação do Batman. Mas, no final de 1941,
enfiado entre as histórias de menor peso, saiu o pri-
meiro episódio a respeito de um adolescente tolo
chamado Archie Andrews. A criançada gostou de
Archie e da maneira como ele refletia a cultura em
que estava crescendo e ao mesmo tempo zombava
dela, a tal ponto que, no começo de 1943, Archie já
figurava nas capas. Ao final de 1944, a Pep tinha se
livrado de todos os seus super-heróis. No começo
do ano seguinte, a MLJ mudou seu nome para Ar-
chie Comics.
Todas as editoras de repente estavam publican-
do quadrinhos de humor adolescente. Descobrir
que as meninas compravam os quadrinhos de Ar-
chie provocou uma enxurrada de novos gibis sobre
garotas: Katty Keene, Nellie the Nurse, Millie the
Model, Miss America. Os meninos preferiam qua-
drinhos sobre soldados e aviadores: Blackhawk,
Airboy, Boy Commandos. Os pais empurravam os
filhos na direção de Classic Comics e de True Co-
mics, e as crianças cooperaram a ponto de elevar as
vendas para centenas de milhares de exemplares.
George Delacorte vendia mais que todos eles com
seu Pato Donald e Mickey Mouse. Em pouco tem-
po, já licenciava a imagem de personagens como
Pernalonga, Pica-Pau, Tarzan, Roy Rogers e uma
enfiada de outros esteios dessa vertente da cultura
421
popular, transformando a Dell na maior editora de
gibis do país.
Esse era o mundo que Jerry Siegel observava
nervosamente lá em Honolulu. Liebowitz já adqui-
rira sociedade plena na empresa e Harry Donenfeld,
com suas promessas risonhas, não batia mais o
martelo final. Os editores da casa estavam se vol-
tando contra o estilo de Siegel e Shuster. E o pró-
prio Super-Homem se tornava menos central para a
prosperidade da National Comics. E então, no fi-
nalzinho de 1944, Superboy foi lançado naquele
mundo.
O sucesso obtido por Mary Marvel e Marvel Jú-
nior, criados por Fawcett, mostrou que a garotada
aceitava bem as cópias infanto-juvenis dos super-
heróis. Whitney Ellsworth e Jack Schiff resolveram
então dar um bom polimento na idéia do Superboy,
apresentada por Siegel três anos antes — não como
um subproduto do Super-Homem, mas como o pró-
prio quando criança. Eles, porém, fizeram uma mu-
dança essencial. O Garoto de Aço não seria mais o
autor de supertraquinagens; seria um rapazinho ín-
tegro e inimigo do crime. Viveria com seus pais
adotivos, Mamãe e Papai Kent, numa cidadezinha
saída diretamente do Saturday Evening Post; no fi-
nal a cidade seria denominada “Smallville” (Peque-
nópolis). As aventuras girariam em torno de trapa-
lhadas a respeito da identidade secreta do persona-
gem no colégio e revelações mimosas sobre como
422
“Clark Kent conhecera Lois Lane”. Os editores sa-
biam que a idéia seria um sucesso para a faixa dos
8 anos de idade, não mais que isso, e fizeram a
série dirigida a essas crianças. Logo o Superboy te-
ria até mesmo um supercão, chamado Krypto.
Para as primeiras cinco páginas da história, os
editores apelaram para o estúdio de Siegel e Shus-
ter. Anos depois, Jerry Siegel daria a impressão de
ter ficado surpreso ao topar com o “Superboy” na
More Fun Comics, no final de 1944. Mas não resta
a menor dúvida de que aquela primeira história foi
desenhada por Joe Shuster e seus assistentes; e fãs,
pesquisando os arquivos da National, décadas mais
tarde, descobriram que de fato Jerry Siegel consta-
va como o autor da história. E possível que tenha
sido produzida no estúdio da dupla, mas escrita por
alguém que Joe contratou sem o conhecimento de
Jerry. Mas este manteve contato com o estúdio du-
rante todo o período em que serviu o exército. E
muito provável que tenha ficado sabendo. E muito
possível que tenha feito aquele primeiro roteiro
sem pensar nas implicações — só depois de o tra-
balho ter sido entregue a Don Cameron é que ele se
deu conta de que a National acabara de criar um
novo personagem baseado na sua idéia sem recom-
pensá-lo por isso.
Talvez houvesse um elemento de orgulho, tam-
bém, envolvido naquela afirmação. As histórias es-
tavam saindo como sendo de autoria “de Jerome Si-
423
egel e Joe Shuster”, não importava quem as tivesse
escrito. Ninguém iria adivinhar que a National eli-
minara a idéia original de Jerry e, em seu lugar, pu-
sera algo calculadamente infantil. Jerry estava com
trinta anos. Ele queria que a afirmação “sou Jerry
Siegel, criador do Super-Homem” o fizesse mais
importante, não mais ridículo.
Jerry reclamou. Liebowitz não tomou conheci-
mento. A DC continuava contratando o estúdio dele
para desenhar as histórias, certo? De modo que
Jerry estava ganhando dinheiro sem trabalhar, cer-
to? Jerry já tinha passado por tudo aquilo antes. Ar-
rependimento pela própria pressa, ver o que era seu
escorregando pelos vãos dos dedos, ser tratado
como uma criança ingrata pelo editor que ficou rico
com suas idéias — eram histórias antigas. O drama
de raiva impotente que desempenhara durante seis
anos, a partir da venda do Super-Homem, estava
entrando em cartaz de novo.
Dessa vez, porém, ele tinha um advogado com
quem conversar. Jerry sempre resistira à idéia de
contratar um advogado, mas as coisas haviam mu-
dado. Ele servia o exército ao lado de Albert Zugs-
mith, papeava com ele à noite; o advogado ouvia
suas queixas e as entendia. Ao olhar para “Zuggy”,
Jerry podia enxergar o mesmo tipo de esperteza que
em vão desejara para si mesmo. O advogado era
quatro anos mais velho que Jerry, mas lidava com o
mundo com uma insolência que o fazia parecer
424
mais maduro ainda. Era um homem alto, corpulen-
to, quadrado, sempre mascando um charuto; pode-
ria facilmente passar por alguém com uns seis anos
a mais que os seus trinta e quatro. Crescera em
Atlantic City, o paraíso dos ambulantes, e sabia
como se vender. Havia se formado em direito por-
que isso lhe parecera uma medida prática, mas, des-
cobrindo que os jornais eram mais emocionantes,
trabalhara como repórter em diversos diários e
como assessor de imprensa para alguns promotores.
Começara a publicar folhetos publicitários e revis-
tas promocionais e, então, pouco antes de ser con-
vocado, começara a produzir programas de rádio
em New Jersey. Tinha chegado à conclusão de que
gostava da indústria do entretenimento acima de to-
das as outras. Alguns poderiam ter olhado para ele
e visto ali apenas um advogado inexperiente, mas
Jerry Siegel enxergou um sujeito confiante, que co-
nhecia o mundo dos espetáculos, o ramo editorial e
as leis. Zugsmith, por sua vez, viu um homenzinho
inseguro com uma reivindicação sobre uma das
propriedades intelectuais mais lucrativas do ramo.
Jerry lhe perguntou se poderia mover um pro-
cesso pedindo indenização, no caso do Superboy.
Zuggy disse que poderia fazer melhor que isso. Po-
deria tentar o grande lance. Recuperar os direitos
sobre o Super-Homem.

NO INÍCIO DE 1945, a Segunda Guerra Mun-


425
dial chegava ao fim e os americanos começavam a
querer olhar mais adiante, para saber como seria o
mundo do pós-guerra. Que maravilhas tecnológicas
traria ele, que mudanças sociais e econômicas ocor-
reriam com a volta de milhões de soldados? Jerry
Siegel e Joe Shuster tinham diante de si mais três
anos de contrato para produzir as páginas da Super-
man e não viam motivo para temer o futuro. Mort
Weisinger olhava para o cargo editorial que o espe-
rava na próspera National Comics e via oportunida-
des.
Mort foi outro grande mestre da autopromoção.
Vangloriava-se de ter editado um pulp resenhado
na New Yorker, fazendo não notar o fato de a rese-
nha, escrita por S. J. Perelman, estar cheia de sar-
casmo contra a revista. Quando começou a vender
artiguetes para a Reader’s Digest, Weisinger pas-
sou a se apresentar como uma autoridade em mer-
cado de “revistas legítimas” e empenhou-se numa
escalada agressiva pela pirâmide da Magazine Wri-
ters of America, uma associação que reunia colabo-
radores de revista do país todo. Talvez Jack Schiff
e Whit Ellsworth fossem mais sofisticados que ele,
talvez tivessem mais instrução, mas também eram
bem mais modestos. Foi Mort Weisinger quem se
vendeu a Liebowitz como grande figura, como o
cara que iria muito além dos quadrinhos, se a Nati-
onal não o segurasse.
Conseguir obter controle total da franquia do
426
Super-Homem seria a melhor maneira de se tornar
valioso para a National, e Mort sabia disso. Sabia
também que o maior obstáculo a esse objetivo era o
estúdio de Siegel e Shuster. Ele havia começado
sua carreira editorial usurpando o cargo de Charles
Hornig, um de seus companheiros nas primeiras
jornadas dos fãs de ficção científica. Portanto, para
ele, arrancar o Super-Homem das mãos de seus cri-
adores representaria apenas mais um passo em sua
carreira — mesmo que esses criadores fossem seus
amigos desde os tempos em que eram todos fãs in-
condicionais de Gernsback. Quando Mort Weisin-
ger e Jerry Siegel deram baixa, em 1945, ambos
também tinham como principal objetivo o controle
do Super-Homem. Mas todas as vantagens estavam
com Mort.
Jerry começou a se queixar mais abertamente,
dizendo que Jack Liebowitz e Harry Donenfeld não
haviam cumprido os termos do acordo. Liebowitz e
Donenfeld reagiram com irritação, repudiando as
acusações. Eles se achavam justos, até generosos,
com seus criadores e colaboradores. Mas guarda-
vam distância — escritores e desenhistas não eram
seus pares. Não se misturavam com eles, social-
mente, nem os convidavam para suas festanças de
aniversário. Jerry Robinson contou que, certa vez,
ao encontrar Jack Liebowitz num coquetel, este lhe
perguntou, com um certo ar de nojo: “O que você
está fazendo aqui?” Para eles, escritores e desenhis-
427
tas eram apenas empregados, do mesmo jeito que
os operários das fábricas de roupas. Por outro lado,
Donenfeld e Liebowitz pagavam mais por página
produzida que a maioria das editoras de quadri-
nhos; convidavam seus colaboradores para as festi-
nhas da firma; encorajavam os editores a levá-los
para almoçar; deixavam que seus melhores escrito-
res e desenhistas figurassem nos créditos impres-
sos; e ofereciam a eles “sinais de apreço” que, na
opinião de ambos, eram suficientes para comprar a
lealdade de todos.
Entre as muitas histórias dos Donenfelds, há
uma bastante improvável, mas na qual obviamente
a família acredita, e que vem a ser muito importan-
te para as batalhas que se seguiram. “Meu pai pa-
gou a cirurgia no olho de Joe Shuster”, Irwin disse.
A vista de Joe tinha piorado muito devido ao esfor-
ço despendido para produzir ainda mais páginas;
essa fora em parte a razão de ter precisado de um
estúdio mesmo antes que a publicação do Super-
man aumentasse ainda mais seu volume de traba-
lho. Segundo a história contada por Harry Donen-
feld, um médico havia lhe dito que a cirurgia pode-
ria ajudar. Joe pelo visto nunca mencionou nada a
Jerry Siegel — mas isso não seria improvável, já
que Joe sempre escondeu dele a seriedade de seu
problema na vista, mesmo depois de impedido
completamente de desenhar. A notícia chegou até
Harry Donenfeld, que se ofereceu na hora para pa-
428
gar pela operação. Não surpreende que tivesse tido
esse gesto. Por outro lado, também não seria de
surpreender que tivesse inventado essa história.
Verdadeiro ou não, o episódio serviu para esco-
rar a certeza que Harry tinha, de ter sido generoso
com “os rapazes”, mais generoso que qualquer ou-
tro editor, na mesma posição, teria sido. E, de fato,
havia empresas mais sacanas em campo. Louis Sil-
berkleit, John Goldwater e Maurice Coyne, da Pep,
ofereceram ainda menos para Vic Bloom e Bob
Montana por sua criação, Archie Andrews.
Goldwater chegou inclusive a dizer, na imprensa,
que o criador de Archie era ele próprio, inviabili-
zando as queixas de Bloom e Montana de antemão.
Siegel e Shuster tinham certeza de que estavam
sendo enganados por Donenfeld e Liebowitz; am-
bos achavam que os balancetes estavam sendo ma-
nipulados e suas criações exploradas por outros
quadrinistas. Harry e Jack, no entanto, tinham cer-
teza de que estavam sendo injustiçados quando
Jerry e Joe se queixavam.
Há um momento muito revelador, guardado
num esquete satírico que Harry gravou para uma
conferência de distribuidores da Independent News,
no final da década de 1940. Enquanto Bud Collyer,
na pele do Super-Homem, faz um discurso aos dis-
tribuidores, Harry de repente se entra no meio: “Es-
pere um pouco, espere um pouco, também tenho al-
gumas coisinhas pra dizer, aqui!” “Quem é você?”,
429
pergunta o Super-Homem. “Quem sou eu?” excla-
ma Harry. “Está me perguntando quem sou eu?
Ora, sou Harry Donenfeld! Seu patrão!” “Nunca
ouvi falar em você.” “Ora, seu!... Escute aqui, fui
eu que tirei você de uma prancheta e o transformei
num homem! Fui eu que divulguei seu nome de
uma ponta a outra do país! E você vem dizer que
nunca ouviu falar em mim? Sai pra lá, Super-
Homem.” O esquete continua até que Harry recebe
o que merece das mãos do Super-Homem. Mas não
há como duvidar da sinceridade das afirmações
dele. No mundo de Harry, o vendedor pegava a gai-
ta e o comprador era o dono. Se você fosse até um
alfaiate, comprasse um terno para usar numa entre-
vista e conseguisse o emprego, o alfaiate não pode-
ria ir atrás de você dizendo: “Você me deve parte
desse emprego. Eu fiz o terno!” “Claro que Siegel e
Shuster o criaram”, disse Irwin Donenfeld, irritado,
“mas quem publicou foi meu pai. Ele gastou di-
nheiro no herói. Assumiu o risco. O Super-Homem
foi um grande sucesso, e Siegel e Shuster também
ganharam dinheiro com ele. Mas se tivesse dado er-
rado, quem teria perdido dinheiro? O Siegel e o
Shuster é que não. Só o meu pai.” Escritores e artis-
tas acreditam numa propriedade que transcende di-
nheiro e contratos, mas os vendedores e os conta-
dores, não. Donenfeld e Liebowitz não desenha-
vam, não escreviam, não criavam nada a partir de
suas mágoas e sonhos. Só compravam e vendiam.
430
Também manipulavam os livros-caixas, igualzi-
nho a modernos vendedores de entretenimento e de
outras mercadorias difíceis de rastrear; faziam com
que os lucros de um produto sumissem em meio às
perdas de outro. Esperavam até alguém exigir uma
auditoria para admitir todos os ganhos. Era assim
que trabalhavam. Quando olhavam para Siegel e
Shuster, viam apenas dois garotos meio estranhos
que jamais teriam tido sucesso ou fama se não fos-
se pelo investimento e pelos riscos assumidos por
eles, Harry e Jack. Acreditavam, sinceramente, que
os rapazes deviam se sentir gratos pelo que tinham
recebido. Já os “rapazes” acreditavam, sinceramen-
te, que estavam sendo roubados.
Weisinger começou então a dizer a Liebowitz
que Siegel e Shuster eram dois encrenqueiros e que
não valia a pena investir tanto neles. Qualquer es-
critor da National era melhor que Siegel, dizia Wei-
singer, e ele poderia chamar escritores de verdade,
de pulps, como por exemplo Edmond Hamilton.
Wayne Boring e John Sikela, os dois melhores de-
senhistas anônimos da equipe de Shuster, já traba-
lhavam diretamente para a National. Deixar que
Jerry se enfezasse de vez e saísse batendo portas
poderia resolver uma série de problemas. Ao re-
gressar à vida civil, Jerry queria de volta sua antiga
posição como principal redator das histórias para a
revista Superman. Weisinger encomendou alguns
roteiros dele, mas encomendou muito mais de Don
431
Cameron e Alvin Schwartz. Como ele previra,
Jerry ficou mais irritado ainda. Weisinger alegou
que Siegel havia ameaçado ele em seu escritório, e
deu ordem para os seguranças revistarem o escritor
sempre que ele entrasse na sede da empresa. Tam-
bém disse que Siegel o estava seguindo, que o tinha
visto perto de casa observando-o. Quanto mais
Jerry ficava zangado, mais seu velho amigo Wei-
singer usava isso contra ele.
Jerry sentiu que estava na hora de ele e Joe cria-
rem um novo produto, assim não teriam que depen-
der do Super-Homem; e ainda poderiam pressionar
Liebowitz e Donenfeld. Mudou-se quase que em
tempo integral para Nova York, onde estaria perto
do centro de poder e também perto de seu novo
amigo, Albert Zugsmith, que trabalhava no rádio e
já começava a explorar oportunidades na televisão.
Em Nova York, Jerry distanciou-se ainda mais da
mulher e do filho. Também parou de falar na famí-
lia. Seja lá o que tenha acontecido por trás das cor-
tinas de sua privacidade, o casamento de Jerry e
Bella pelo visto terminara. E ele passaria a se dedi-
car em tempo integral à própria derrocada.

11
——————————
CRIME VERDADEIRO

NENHUMA OUTRA ONDA no campo do en-


432
tretenimento estabeleceu um paralelo tão grande
com a vida real quanto os super-heróis e a Segunda
Guerra. O Super-Homem chamou a atenção do pú-
blico pela primeira vez no verão de 1938, durante a
crise na Checoslováquia, quando aumentava o re-
ceio de que a guerra seria inevitável; e foi depois
que ela começou, no fim do verão seguinte, que o
super-herói decolou de fato. Até 1941, com os Es-
tados Unidos marchando inexoravelmente na dire-
ção do conflito, os heróis já haviam se multiplicado
em número, popularidade, variedade e agressivida-
de; entre os mais conhecidos, havia até os que já
enfrentavam nazistas. O último novo super-herói a
encontrar um grande público, a Mulher-Maravilha,
estourou no final daquele ano, quando enfim a
guerra atravessava o Atlântico. Durante os três anos
seguintes, as vendas não pararam de crescer. O Su-
per-Homem e seus imitadores tinham aproveitado a
onda emocional que varrera o país, transformando-
a numa fantasia escapista partilhada por todos. O
mercado alvo eram as crianças, claro, mas o volu-
me de vendas durante a guerra indicava outra coisa:
os gibis estavam sendo lidos por adultos que com
certeza fingiam estar apenas dando vazão à “crian-
ça que existe em todos nós”.
Os super-heróis possuíam a capacidade de
transformar a ansiedade em júbilo. Enquanto o
mundo mergulhava em conflitos e desastres talvez
profundos demais para a compreensão humana, os
433
gibis tomavam os medos mais obscuros de seus lei-
tores e alçavam voo com eles. Eles faziam a violên-
cia e a destruição parecerem emocionantes, e ao
mesmo tempo pequenas e domináveis. Tão rasos,
icônicos, infantis, irreais e absurdos eram aqueles
pequenos deuses vestidos com malhas colantes que
não havia a menor necessidade de leitor pensar que
estava às voltas com suas próprias e violentas fan-
tasias. Mais que um ser fantasioso, o Super-
Homem era um deus ex machina — uma súbita e
colorida solução para conflitos difíceis demais de
se encarar. Os super-heróis eram comediantes de
pastelão no vaudeville do holocausto. Mesmo nos
ataques mais irados do Capitão América contra os
nazistas e nos melodramas mais sombrios do Su-
per-Homem no laboratório de Luthor, qualquer lei-
tor acima dos 8 anos de idade era obrigado a rir. Os
super-heróis faziam comédias-pastelão, só que em
escala global: construíam, a partir dos medos e das
frustrações, um mundo fantasioso mas sob controle,
e depois, de supetão, livravam-no das emoções ne-
gativas.
Os super-heróis permitiam que adolescentes e
adultos retomassem a confiança e a invulnerabilida-
de daquele último instante da infância, antes das
angústias da puberdade. Foram duas décadas difí-
ceis e desgastantes — Lei Seca, revolução sexual,
transformação econômica, urbanização, Depressão,
rumores de uma guerra iminente — durante as
434
quais uma nação ingênua teve de se fingir de adulta
e sofisticada. Não que nas décadas de 1920 e 1930
não tenha havido um tipo de entretenimento dirigi-
do às crianças que também cativou os adultos, mas
as diversões daquela época sustentavam-se quase
sempre de um humor cruel (como a série Our
Gang, de comédias curtas feitas para o cinema), ou
então misturadas com forte melodrama (King
Kong), ou cheias de melancólico sentimentalismo
(Shirley Temple). Mas, no final dos anos 1930, jun-
to com O Mágico de Oz, a imaginação americana
recuou de volta para o riso e para a folia arrogante
dos 10 anos de idade. O Super-Homem era a corpo-
rificação daquela fantasia de integridade, daquela
assombrosa sensação que explode na adolescência
e que nos leva a pensar que sabemos quem somos,
e que somos capazes de tudo.
Os super-heróis eram um sonho do período de
latência; eles corporificavam o sexo, mas eram in-
vulneráveis a ele. Refinavam aquele momento de
transformação, aquele orgulho de garoto crescido
diante dos novos poderes e da agilidade do corpo,
aquele último instante antes que o físico comece a
fazer suas próprias exigências assustadoras e o
mundo se volte contra ele com seus mecanismos de
vergonha. O Super-Homem, mais que os outros, re-
tratou a crueldade do sexo — o herói engana Lois
com uma satisfação sádica mas, na pele de Clark,
se prostra de forma masoquista diante dos saltos al-
435
tos da repórter — ainda que sempre, é claro, com
uma piscada ao leitor para lhe dizer que aquilo tudo
não passa de um jogo. No papel “Homem do Ama-
nhã”, era de supor que já tivesse ultrapassado a fase
dos envolvimentos sexuais, mas no fundo o Super-
Homem era o homem de anteontem, olhando para
as agonias da adolescência com aquele zombeteiro
sorriso de superioridade que um irmão mais novo
lança para a irmã. Depois do frenético questiona-
mento sexual da década de 1920, do cinismo sexual
e econômico do início da Depressão e diante da
ameaça de mais um novo deslocamento colossal
com a convocação para a guerra, o super-herói re-
presentava um agradável enclave da pré-puberdade.
Era também índice da crescente excitação ame-
ricana. Toda a angústia da Depressão estava prestes
a explodir num enorme e terrível conflito e, por
mais que as pessoas sacudissem a cabeça diante do
horror da guerra, também havia uma espécie de
fome por ela. Em vez de indigno compromisso para
poder sobreviver, a guerra significava triunfo abso-
luto, ou desastre absoluto. Significava união de
propósitos também, e os super-heróis personifica-
vam isso em sua simplicidade policromática: Su-
per-Homem, Capitão América e Mulher-Maravilha
eram as mais inconfundíveis criaturas que se podia
imaginar, mas ao mesmo tempo cada um deles era
todos nós. A fome de guerra, raramente admitida,
era mais pronunciada entre os filhos de imigrantes
436
e nas crianças das cidades poliglotas. Uma nação
dominada por uma geração de isolacionistas, abstê-
mios proibicionistas e protestantes dos vilarejos do
interior estava prestes a ingressar no mundo, lidera-
da por seus mais destemidos e sofisticados progres-
sistas. A América vencera a última guerra. Desde
então, só fizera crescer em tamanho, influência e
capacidade industrial. O país havia mantido distân-
cia dos eventos mundiais durante a propagação do
fascismo, mas os eleitores de Roosevelt sabiam
quão poderosos eram os Estados Unidos. A Améri-
ca estava dando uma de Clark Kent. E era hora de
arrancar o terno, abrir a camisa.
O toque de gênio de Jerry Siegel e de Joe Shus-
ter foi combinar pastelão com aventura barata,
zombar das próprias fantasias e ao mesmo tempo se
entregar a elas, refugiando-se na infância enquanto
se obrigavam a agir como adultos e rindo de um
mundo que os via como covardes por conterem sua
raiva — da mesma forma como os Estados Unidos
se digladiavam entre uma auto-imagem que se que-
ria inocente e suas mais terríveis necessidades. Foi
então que a cultura geek descobriu seu primeiro
momento de relevância universal — quando todos
aqueles jovens, com seus sorrisos adquiridos na
Depressão, se viram arrancados de casa e manda-
dos para a guerra.
E a guerra desperdiçou toda essa energia exube-
rante. A longa e exaustiva realidade do combate, a
437
abnegação e os esforços exigidos de todos termina-
ram no alívio colossal da vitória; mas terminaram
também em horror. As bombas que puseram um
fim tão repentino à guerra trouxeram consigo um
novo tipo de náusea. As pessoas começaram a pen-
sar no que a próxima guerra traria, e sabiam que os
Estados Unidos não conseguiríam manter o segredo
da bomba por muito mais tempo. Além disso, já ha-
via um inimigo. Não teríamos mais outros 15 anos
de paz aparente depois dessa guerra, como aconte-
cera com a anterior. Os tanques americanos e rus-
sos já estavam se posicionando uns contra os outros
antes mesmo que os nazistas se rendessem. Os con-
fetes ainda nem haviam sido varridos depois das
paradas da vitória e os conservadores no Congresso
começaram a dizer que o nosso verdadeiro inimigo
fora o tempo todo Stalin. Roosevelt estava morto e
Truman, de início, não inspirava confiança em nin-
guém. E havia ainda as imagens que começavam a
vazar dos campos de concentração, as baixas que
iam se somando, os 9 milhões de mortos nos cam-
pos, os 50 milhões de mortos durante a guerra. A
capacidade monstruosa da humanidade invadiu a
visão do povo norte-americano no exato momento
em que todos tentavam comemorar o início de uma
era de democracia e decência.
A partir do início de 1945, com o fim da guerra
à vista, as vendas de gibis de super-heróis começa-
ram a cair. Até o final de 1946, tinham caído em
438
mais de 30%. Em 1947, as editoras começaram a
sair em busca dos novos campeões de vendas: jor-
raram histórias em quadrinhos com temas cômicos,
de faroeste, românticos, de crime ou de horror. Ao
final de 1948, a maior parte dos super-heróis tinha
desaparecido; as revistas apelaram para outros gê-
neros. Sobraram só os mais famosos, e estes se vol-
taram de forma mais consciente para o público ju-
venil.
A história que os americanos contavam a si
mesmos durante a guerra era a seguinte: graças ao
mais puro e humilde esforço, graças a sua persis-
tência, o pracinha norte-americano triunfaria sobre
o mal, voltaria para casa, retomaria seu antigo em-
prego, sua mulher voltaria para a cozinha e, juntos,
criariam os filhos e fariam da nação uma utopia ro-
deada por uma cerquinha branca. A maior parte dos
norte-americanos lutara para tornar verdadeira essa
história. Mas havia muita coisa que não poderia ser
mencionada para manter intacta aquela imagem
idílica. O que os homens tinham sido obrigados a
fazer na guerra e o que eles tinham escolhido fazer
nas folgas. O que as mulheres tinham feito na au-
sência dos homens e como fora emocionante aquela
liberdade, aquele viver para si mesmo. O que os ve-
lhos e os considerados inaptos haviam feito para
engordar suas economias enquanto a grande maio-
ria lutava na guerra. Os americanos puseram uma
tampa de tensa harmonia sobre si mesmos, mas
439
logo abaixo fervilhava um caldo de medo e repug-
nância.
A direita, afastada do poder havia um bom tem-
po, subiu no túmulo de Roosevelt para anunciar
que daria força àquela falsa harmonia a fim de sal-
var o país do comunismo. Fazia seis meses que a
guerra tinha acabado quando a indústria dos comic
books sentiu a frieza do olhar conservador. No iní-
cio de 1946, Lev Gleason, que publicava as revistas
Crime Does Not Pay e Daredevil, foi um dos 16
homens acusados pela HUAC, a House Un-Ameri-
can Activities Committee (Comissão Parlamentar
de Inquérito para Investigar Atividades Antiameri-
canas), de distribuir propaganda pró-soviética du-
rante a guerra. Quando ele e colegas se recusaram a
entregar os documentos requisitados, foram detidos
por tentativa de obstrução da justiça. Mas não fo-
ram os quadrinhos a causa do problema, e sim os li-
vros e revistas de teor político que Gleason distri-
buía; no fim, o caso acabou sendo arquivado. Mas
o recado foi ouvido com muita clareza pelos que
publicavam as revistas, em sua maioria imigrantes,
em sua maioria marginalizados, muitas vezes com
experiência de confrontos com a lei e às vezes,
como no caso de Jack Liebowitz, com ligações com
o socialismo no passado.
Para os judeus americanos, o fim da guerra
trouxe grandes medos e algumas esperanças. Hitler
estava morto, o racismo, controlado, a compaixão
440
mundial se estendia às vítimas do Holocausto, e a
retomada de Sião estava prestes a se tornar verda-
de. Mas a um alto custo. Na Europa, o mundo ju-
deu fora arrasado — aquele mundo do shtetl e do
gueto que fora o solo e era a memória do imigrante,
o mundo que dera história, definição, sons e cheiros
ao judaísmo moderno. O velho mundo que transfor-
mara as feridas em uivos e em humor amargo para
alimentar a alma judaica não estava mais ferido.
Desaparecera. O iídiche fora varrido da face da
Terra.
Nos Estados Unidos, as quotas de habitação,
educação e emprego estavam sendo abandonadas,
já que os judeus passaram a ser aceitos dentro do
sistema como nunca antes tinha acontecido. Mas ao
mesmo tempo muito daquilo que definia a condição
judaica americana — tendências esquerdistas e au-
topromoção ruidosa — começava a ser desencora-
jado. A HUAC não estava querendo pegar apenas
editores e cineastas de esquerda, dos quais pelo me-
nos a metade era de judeus; também propôs a certa
altura que o correio negasse o direito a postagem
mais barata a qualquer jornal em língua estrangeira
que não providenciasse uma tradução integral para
o inglês. Era um gesto mesquinho porém significa-
tivo, um evidente tapa na cara da imprensa em iídi-
che, que desempenhara um papel vital na dissemi-
nação das idéias da esquerda no começo do século.
Afinal de contas, a força motriz daquela comissão,
441
o ilustre John Rankin, do Mississippi, havia decla-
rado que a Segunda Guerra Mundial fora um “com-
plô internacional dos judeus” e que Walter Win-
chell era um “judeuzinho caluniador”.
Ser um judeu americano bem-estabelecido a
partir de então significava ter uma identificação ab-
soluta com os sobreviventes e com os israelenses
mas ao mesmo tempo abraçar uma definição ainda
mais estreita de americanidade; ser tanto um obser-
vador na defensiva como um conformista vigilante.
Para os donos da indústria dos gibis, que queriam
aceitação social, isso se traduzia numa caça agressi-
va à respeitabilidade.
Com o ocaso dos super-heróis e o retorno dos
soldados, editores e criadores de quadrinhos saíram
em busca de formas de conservar seus leitores adul-
tos. Os entretenimentos de massa dos anos do pós-
guerra assinalaram o fosso entre a auto-imagem
que se queria inocente e suas seduções mórbidas
em néon. Nos cinemas, o dinheiro grosso e os prê-
mios iam para filmes pesadões, carregados de men-
sagens, mas por baixo a verdadeira energia criativa
era canalizada para melodramas tórridos, romances
tortuosos e crimes sórdidos. A música popular ou
era vigorosamente insossa, ou estridentemente ico-
noclasta. As prateleiras de livros em brochuras tra-
ziam para as massas Shakespeare misturado a bo-
bagens violentíssimas. A indústria dos quadrinhos
tinha sua própria superposição de Superman, Ar-
442
chie, Duck Donald Classics Illustrated e Picture
Stories from the Bible; e havia um mercado em
franca expansão para caubóis bem-comportados —
Roy Rogers e Gene Autry sorrindo das bancas de
jornal para nos tranquilizar e dizer que no fundo os
Estados Unidos não haviam mudado nem um pou-
co. Mas era em outros gêneros, que surgiram e se
multiplicaram entre 1947 e 1948 — romances tórri-
dos, crimes realistas e horror sangrento — , que se
podia encontrar o melhor trabalho, a maior criativi-
dade e o entusiasmo apaixonado do público.
Joe Simon e Jack Kirby, tendo com a criação do
Capitão América redefinido o caráter dos super-
heróis e se tornado quadrinistas de sólido sucesso
da DC, em 1947 arriscaram em algo chamado
Young Romance, que vendeu milhões. As adoles-
centes e as jovens estavam carentes de histórias que
mergulhassem de forma implacável e consistente
nas contradições entre desejo, dever, liberdade e
solidão que o amor do pós-guerra e o casamento
acarretavam. Não demorou para que surgissem de-
zenas de quadrinhos românticos. No terror, o pio-
neiro foi um escritor sardônico chamado Leo Ro-
senbaum, que escrevia sob o pseudônimo de “Ri-
chard Hughes” e trabalhava para a American Co-
mics Group, empresa de Harry Donenfeld e de seu
companheiro de carteado Ben Sangor. O tema de
maior sucesso de Hughes era o monstro, fantasma
ou demônio que existe escondido por trás da calma
443
fachada dos lares americanos, sempre pronto a ludi-
briar e induzir o incauto a fazer uma barganha faus-
tiana.
O sucesso mais rápido e óbvio no entanto per-
tencia a Crime Does Not Pay, de Lev Gleason,
Charlie Biro e Bob Wood. A revista tivera vendas
razoáveis durante todo o período de guerra, não su-
ficientes para inspirar imitações. Mas em 1947,
quando o fascínio dos Estados Unidos pelo crime e
pela corrupção se intensificou, as vendas dispara-
ram. Ao final do ano, a revista vendia mais até que
Captain Marvel e Superman. Tinha-se a impressão,
na verdade, de que ela roubara boa parte do público
dos super-heróis. Os meninos e os rapazes que ha-
viam curtido durante toda a guerra as peripécias de
mocinhos lutando contra bandidos, de repente esta-
vam querendo histórias mais ambíguas, mais pro-
vocantes, de bandidos que viviam bem às custas
dos mocinhos, até terem um final sangrento no últi-
mo quadrinho. Depois de passar anos sozinha nas
bancas, lá pelo final de 1948 a Crime Does Not
Pay era apenas uma entre outros 40 gibis com his-
tórias de crime e de gângsteres, em exibição nas
prateleiras.
Impulsionados pelos novos gêneros, um número
ainda maior de americanos passou a ler gibis. Ao
final da década, havia cerca de 40 editoras venden-
do 300 títulos — 50 milhões de revistas ao mês.
Uma pesquisa mostrou que mais da metade dos lei-
444
tores tinha mais de 20 anos, que o leitor adulto con-
sumia uma média de 11 gibis por mês, que quase
metade dos leitores era mulher e que o pessoal de
escritório, de terno e gravata, constituía o grande
público consumidor. Pelo visto, os gibis estavam
prestes a se tornar respeitável veículo de comunica-
ção e se integrar ao mainstream.
Os quadrinhos de gângsteres leram os mais ade-
quados àquele momento. Havia pungência e vigor
narrativo nas melhores histórias, mas havia também
um mal-estar espiritual. Havia neles uma liberdade
para explorar banhos de sangue e crueldades que os
veículos vigiados mais de perto, como o cinema, o
rádio e as revistas “chiques” não possuíam, de
modo que despertaram apetites ignorados pelas ou-
tras mídias. O sucesso do material incomodava até
mesmo quem fazia e vendia as revistas — aquele
dinheiro todo em troca de histórias tão vergonho-
sas, com mensagens tão ofensivas, de mau gosto e
cínicas sobre a loucura do crime. Havia uma per-
versidade naquelas revistas que pressupunha, um
certo sadismo da parte do leitor, e que, em sua agu-
da intensidade, revelava o mesmo sadismo da parte
do artista. Até Jack Cole, criador do jovial Homem-
Borracha, que continuava em circulação, se atirou
no fosso com True Crime, (Crime Verdadeiro). Sua
história “Assassinato, morfina e eu” ressurgiria
anos mais tarde para assombrá-lo — sobretudo a
imagem do olho esbugalhado de uma jovem aterro-
445
rizada no qual o bandido está prestes a enfiar uma
agulha de injeção enquanto, com a mão esquerda,
mantém a pálpebra aberta à força.
Os protestos foram inevitáveis. As editoras po-
diam argumentar que estavam produzindo aqueles
gibis para adultos, e isso era verdade, mas era tam-
bém verdade que a garotada comprava aquilo aos
milhões. Meninos às portas da adolescência adoram
ver quanta maldade e vilania são capazes de aguen-
tar de forma vicária e, quanto mais as revistas des-
ciam a extremos, mais eles os devoravam. Buracos
de balas feitos por uma metralhadora, formando,
com muito sangue, a palavra “RATO” no corpo de
um mafioso que cambaleia e se contorce com os es-
tertores da morte, tudo desenhado com o vigor vi-
sual de que Jack Cole era capaz? Muito bom. Uma
mulher estrangulada em primeiro plano enquanto o
assassino se gaba: “Sempre quis matar alguém des-
te jeito! Apertar... até sentir os ossos do pescoço es-
talando sob os meus dedos!”? Melhor ainda. A voz
de professores, clérigos e pais começou a se fazer
ouvir no país inteiro.
A voz mais alta e convincente tinha sotaque ale-
mão. A edição de março de 1948 da Collier’s trazia
uma entrevista intitulada “Horror no Berçário” com
um psiquiatra chamado Fredric Wertham. Ele tinha
credenciais excelentes, tanto como pesquisador
como clínico, e na época estava terminando seu ter-
ceiro livro, The Show of Violence, sobre os fatores
446
ambientais que levavam as crianças ao crime vio-
lento. Na entrevista, Wertham declarou que os gibis
eram a maior e mais perniciosa influência sobre os
jovens americanos. O argumento não era novo, mas
Wertham possuía o que faltava aos outros críticos
indignados: dados e teoria. Ele tinha uma clínica
psiquiátrica no Harlem e declarou que via uma cor-
relação assustadora entre aquela leitura e a delin-
quência juvenil. Podia citar casos específicos de
crimes por imitação, nos quais crianças e adoles-
centes haviam cometido roubos, assaltos e até mes-
mo assassinatos exatamente da forma como haviam
sido vistos em gibis populares. E, na qualidade de
autor do livro The Brain as an Organ, podia falar
com autoridade sobre as maneiras como os gibis
“desencadeiam um fluxo de pensamentos indesejá-
veis e prejudiciais”, “fornecem a racionalização
para um ato imaginado”, e “agem como elemento
precipitador da delinquência ou da desordem emo-
cional”. Wertham levou as preocupações com os
gibis para além do bom gosto e da moral e colocou-
os, ao menos à primeira vista, no terreno da ciência
comportamental e no das políticas públicas.
Naquele mesmo mês, Wertham organizou um
simpósio bastante divulgado que recebeu o nome
de “A Psicopatologia dos Comic Books”. Dois me-
ses depois, publicou um artigo no The Saturday
Review, no qual reproduzia aquele horrendo dese-
nho de Jack Cole em que a mulher vai levar uma
447
injeção no olho. Alguns meses mais tarde, o psiqui-
atra declarou à Associação de Presídios America-
nos que os gibis eram “um curso de crime por cor-
respondência”. E a rede lançada por Wertham não
apanhou só as histórias sangrentas. O Super-
Homem, segundo ele, era uma ameaça tão perigosa
quanto as outras, porque suas histórias ensinavam
às crianças que a força física é a solução dos pro-
blemas. “Se me pedissem para expressar numa úni-
ca frase o que ocorreu mentalmente a muitas crian-
ças americanas”, disse ele, “eu diria que elas foram
conquistadas pelo Super-Homem.” Quando o re-
pórter da Collier’s perguntou a ele como os pais
poderíam distinguir os bons dos maus gibis, ele res-
pondeu: “Os gibis ‘bons’ são tão poucos que não
vale a pena discuti-los, mas o grande número que
se disfarça de ‘bom’ com certeza merece um exame
rigoroso.” Wertham não estava apenas advertindo
os pais a respeito das revistinhas perigosas. Ele dis-
se: “chegou a hora de aprovarmos leis proibindo a
venda dessas revistas nas bancas de jornal e nas
mercearias”.
A resposta do público surpreendeu o próprio
Wertham. Jornais e revistas passaram a explorar os
perigos dos gibis com um alarmismo que suplanta-
va de longe a onda de indignação provocada por
Sterling North oito anos antes. “Serão os quadri-
nhos um perigo nacional?”, perguntava a
Newsweek. A Time revelou que o comissário de po-
448
lícia de Detroit havia encontrado revistas “carrega-
das de ensinamentos comunistas, sexo e discrimi-
nação racial”. Wertham havia ligado os comic bo-
oks a sexo e violência, mas eles já estavam sendo
associadas à doutrinação política ofensiva, tanto
para a direita quanto para a esquerda. Até mesmo
pessoas tidas como pornógrafas estavam se pronun-
ciando contra os gibis: Gershon Legman — psicó-
logo amador, antigo assistente de Alfred Kinsey,
colecionador de piadas sujas e editor da revista
freudiana e erótica chamada Neurótica — escreveu
um livro, Love and Death, no qual dizia que a vio-
lência nos gibis era um resultado perverso da re-
pressão de nossa sexualidade e que eram eles a úni-
ca pornografia de verdade nas bancas. No caminho,
expôs Harry Donenfeld como um ex-pornógrafo e
afirmou que a maior parte dos funcionários de Mar-
tin Goodman na Marvel Comics era homossexual
(comentário que Stan Lee, que se orgulhava de seu
sucesso com as mulheres, tomou como ofensa pes-
soal).
Os quadrinhos de crime e terror eram medo-
nhos, e de fato continham imagens que nenhum pai
ou mãe em sã consciência gostaria que um filho pe-
queno visse. Mas acabaram se tornando dubles para
medos mais amplos. Quaisquer que fossem as in-
quietudes sentidas a respeito do mundo — delin-
quência juvenil, guerra atômica, promiscuidade se-
xual, repressão sexual, comunismo, Ku Klux Klan
449
— , elas encontrariam seu equivalente no mundo
dos gibis. Numa sociedade aterrorizada com as for-
ças que fugiam ao controle, a simples informação
irresponsável, sem controle e sem fiscalização que
aparecia nos gibis era, em si, motivo de alarme.
As igrejas organizaram boicotes aos estabeleci-
mentos que vendiam comic books. Grupos de defe-
sa do cidadão pediam ação da polícia e dos legisla-
dores. O Congresso Nacional de Pais e Professores
declarou que a “liberdade da imprensa [...] nunca
teve a finalidade de proteger a indecência ou de
perverter a mente infantil”. Mais de 50 cidades
aprovaram leis para reduzir a venda de gibis. De-
troit e Indianapolis proibiram três dúzias de títulos
para leitores de qualquer idade dentro dos limites
municipais. Mais da metade das câmaras estaduais
do país discutiu a aprovação de leis para reduzir a
venda de gibis. Uma dessas leis foi aprovada nas
duas casas da legislatura de Nova York antes de ser
vetada pelo velho inimigo da bandidagem, o gover-
nador Thomas Dewey.
Depois vieram as fogueiras. Uma cruzada es-
pontânea realizada em Binghamton, Nova York,
enviou voluntários de porta em porta perguntando:
“Existe algum gibi nesta casa?” Depois que os do-
nos da casa se convenciam de que médicos, polici-
ais e pastores tinham razão sobre os perigos dos
quadrinhos, os voluntários pegavam todas as publi-
cações ofensivas daquele domicílio e levavam para
450
o pátio da igreja local, onde eram empilhadas, em-
bebidas com gasolina e queimadas. A Time publi-
cou fotos daquelas fogueiras enquanto crianças ob-
servam a uma certa distância e com expressão inde-
finida. Outras cidades não demoraram a seguir o
exemplo de Binghamton. Em Chicago, as fogueiras
foram organizadas por uma diocese católica.
As editoras sabiam que era preciso esfriar aque-
la onda. As maiores começaram de imediato a dis-
tribuir informes à imprensa, alardeando seus códi-
gos internos de decência; os que não possuíam tal
código, como Lev Gleason e Martin Goodman, tra-
taram de redigir um bem depressa. Um grupo de
empresários formou sem demora uma Associação
de Editoras de Revistas em Quadrinhos (ACMP,
Association of Comic Magazine Publishers), inspi-
rada na Associação de Produtoras Cinematográfi-
cas, e elaborou um código de autocensura corres-
pondente ao do cinema. O código aprovado baseou-
se no regimento interno que a Fawcett vinha usan-
do desde 1941, por sua vez inspirado no regimento
que Jack Liebowitz instituíra na DC em 1940. As
casas editoriais mais respeitáveis porém abandona-
ram correndo a ACMP porque não queriam ver
seus nomes ligados a editoras suspeitas que tam-
bém integravam a associação. Não demorou para
que o sócio mais conhecido fosse Gleason, pai dos
gibis de crimes e alvo de investigações da HUAC.
O esforço para reagir às críticas e estabelecer
451
um sistema de autocensura parece ter de fato acal-
mado a tormenta. Mas, para as editoras que acha-
ram que o problema estava resolvido, o desaponta-
mento seria grande. Ganharam apenas um pouco de
tempo, mas a maioria usou esse tempo para cavar
ainda mais fundo a própria cova.
Jack Liebowitz foi um dos que se retiraram da
ACMP, insistindo que o código editorial da própria
empresa era a melhor garantia para o leitor sobre a
qualidade do material publicado. A respeitabilida-
de, mais do que nunca, era importante para Lie-
bowitz. Ele acreditava em investimento a longo
prazo. As outras editoras que saíssem atrás de toda
e qualquer nova guinada no mercado e estivessem
sempre prontas a saltar fora do barco quando o fun-
do rachava; Liebowitz olhava para o dinheiro que
investira como um compromisso de longo prazo
com suas propriedades intelectuais; e usaria seus
personagens mais conhecidos e estabelecidos para
expandir a empresa.
O Super-Homem ainda era bastante popular no
rádio, mas Liebowitz já estava de olho no novo veí-
culo: a televisão. Os canais iriam ter fome de pro-
gramas e não seria difícil vender um personagem
conhecido do rádio e do cinema. Mas o rádio e a
TV significavam a necessidade de patrocinadores e
licenças da Comissão Federal de Comunicações, e
tanto um como outro, por sua vez, exigiam reputa-
ção segura e respeitável. Jack aprendera que a lon-
452
go prazo a respeitabilidade paga dividendos muito
melhores que a picaretagem. Em 1946, o programa
de rádio Superman levou uma história, desenvolvi-
da em conjunto com a Liga Anti-difamação, em
que o Super-Homem luta com um grupo à la Ku
Klux Klan para proteger o rabino e o padre que di-
rigem um local chamado “Casa da União”, para
pessoas de diferentes crenças. Segundo a revista
Newsweek, esse foi “o primeiro programa infantil a
desenvolver uma consciência social nos jovens”.
Superman ganhou elogios de instituições que iam
da Conferência Nacional de Cristãos e Judeus até a
Associação da Imprensa Negra — e atraiu atenção
suficiente para se tornar o programa infantil mais
ouvido no rádio. Esse era o tipo de publicidade e
boa-vontade comunitária sobre as quais uma em-
presa poderia se alicerçar.
A respeitabilidade também era muito importan-
te na vida privada de Liebowitz. Ele contribuía com
gordas somas para entidades beneficentes e organi-
zações comunitárias. Por suas doações, tornou-se
um dos sócios fundadores e curador do Hospital Ju-
deu de Long Island, um moderno centro médico
equipado com tecnologia de ponta situado em Gre-
at Neck. Os dias em que cuidava da contabilidade
de um pornógrafo tinham ficado envoltos nas bru-
mas do passado, e ele não voltaria para lá. Portanto
em termos de crime, sua empresa não foi além de
uma adaptação para o rádio de Mr. District Attor-
453
ney. Expandiu o Conselho Editorial Consultivo —
conseguiu até mesmo que Pearl S. Buck, a matriar-
ca dos romances sociais respeitáveis, emprestasse
seu nome ao conselho — , e publicava páginas edu-
cativas em todas as suas revistas, sempre em coor-
denação com a Assembléia Nacional do Bem-Estar.
Queria que a National Comics fizesse parte dos en-
tretenimentos infantis aceitos pelo sistema.
O Super-Homem era parte essencial desse pla-
no. Mesmo que as fantasias dos pracinhas tivesse
mudado de rumo, Liebowitz sabia que garotos de 8
a 10 anos ainda podiam comprar super-heróis, e sa-
bia também que tinha gente na editoria, sobretudo
Mort Weisinger, capaz de continuar satisfazendo os
leitores. Em 1947 e 1948, viu-se às voltas com
mais um desafio a seus desígnios. No fim, não res-
tou mais a menor dúvida de quem era a pessoa que
mais entendia do negócio de quadrinhos, o negócio
dos Estados Unidos, o melhor de todos.

QUANDO A GUERRA acabou, estavam quase


no fim os dez anos do contrato feito por Jerry Sie-
gel e Joe Shuster para produzir material da Super-
man para a National Comics. Estavam inseguros,
sem saber se em 1948 a National iria contratá-los
de novo, e em quais condições. A vista de Joe esta-
va ruim e ele precisava do estúdio para sobreviver.
Alguns dos melhores artistas que desenhavam em
seu nome tinham sido contratados diretamente pela
454
National e estava ficando difícil manter a qualida-
de. Jerry sabia que os editores da National, Weisin-
ger e Schiff, preferiam os próprios escritores, em
quem podiam mandar. Então Jerry resolveu que de-
veriam criar algo novo, uma série que tivesse toda a
força e o potencial comercial do Super-Homem,
mas que seria propriedade só deles. Só então deixa-
riam de ficar na dependência de Jack Liebowitz e
seriam tratados com justiça.
Isso se tornou padrão entre os grandes quadri-
nistas de jornal. Hal Foster tinha ficado famoso
com Tarzan e depois criado uma tira cuja proprie-
dade era dele, Príncipe Valente. O herói de Joe
Shuster, Roy Crane, tinha largado Wash Tubbs para
criar e ser dono de Buz Sawyer. Em 1946, Milton
Caniff largou Terry and the Pirates e ficou com
Steve Canyon e Alex Raymond trocou Flash Gor-
don por Rip Kirby. Deixar o Superman e criar algo
novo era, para os dois, o óbvio próximo passo. Mas
como iriam transportar a reputação e os leitores de
Superman para um novo produto? Crane e Caniff
continuaram com o mesmo gênero e o mesmo pú-
blico. Até Foster, que havia saltado do homem-
macaco para as lendas arturianas, e Raymond, que
trocara o espaço sideral por espiões, mantinham
uma certa consistência no tom e o mesmo grafismo.
Esses cartunistas também eram donos de estilos
pessoais inconfundíveis; eram mestres do desenho,
cada um em sua respectiva escola. O Super-
455
Homem era um super-herói de gibis, já então iden-
tificado com uma centena de outros, e todo mundo
sabia que a moda do super-herói estava passando.
Os próprios Jerry e Joe devem ter tido algumas
dúvidas sobre se seu nome e sua arte ainda seriam
capazes de atrair os leitores para outro super-herói.
Precisavam de algo diferente, mas que fosse reco-
nhecível como trabalho de ambos e que estivesse
em sintonia com os conflitos e a irreverência do
mundo pós-guerra.
Jerry retornou a um de seus temas prediletos:
logros e diabruras. Ele adorava o Mr. Mxyztplk e
outros vilões endiabrados que atazanavam o Super-
Homem; e os leitores também. Continuava acredi-
tando que seu Superboy maroto teria sido muito
melhor que o produzido pela National. E estava de-
cidido a criar um herói apoiado nessa idéia. Poderia
ser um palhaço, de sapatos enormes e calça largo-
na, a combater o crime das formas mais loucas pos-
síveis. Luvas de boxe saltam de suas vestes. Faz
malabarismo com bastões enquanto anda num mo-
nociclo. Sua flor de plástico, em vez de água, solta
gás paralisante. E solta piadas o tempo todo, ri sem
parar. “Yak! Yak!” Jerry já o podia ver tomando de
assalto o país. Ele tinha de vê-lo tomando de assal-
to o país.
O editor-chefe da National, Whitney Ellsworth,
ficou interessado na idéia, mas não conseguiu dar a
Siegel e Shuster o que eles queriam: propriedade
456
total sobre o personagem, inclusive o direito de
vendê-lo por conta própria a jornais e licenciados.
A National concordaria com participação nos lu-
cros, mas tinha de reter o controle editorial sobre o
conteúdo e os direitos subsidiários. As negociações
foram suspensas. Nesse exato momento, surge um
rosto do passado: Vin Sullivan, o primeiro editor da
Detective e da Action Comics, o homem que com-
prara o Super-Homem para Harry Donenfeld, tinha
conseguido financiadores para a abertura de uma
nova editora, a Magazine Enterprises, fazia pouco
tempo. Ao saber da crescente insatisfação de Siegel
e Shuster com a National, disse que ficaria encanta-
do de trabalhar com os dois em qualquer novo pro-
jeto que estivessem preparando. Estava disposto até
a lhes dar direito de propriedade sobre o persona-
gem, conforme o desejado, se isso significasse a
possibilidade de publicar a nova Superman. Era
uma situação delicada. Siegel sabia que seus edito-
res na National não ficariam satisfeitos de vê-lo le-
var seu trabalho para outra editora. Mas ele estava
bravo o suficiente para arriscar. Junto com Joe, co-
meçou a conversar com Vin Sullivan a respeito de
Funnyman.
A irritação de Jerry vinha se acumulando desde
os tempos da guerra, e aquela última decepção com
a National só acirrou seu estado de espírito. Sempre
que Jerry ficava contrariado, cozinhava a sua ira
durante um bom tempo, e depois explodia. Fantasi-
457
ava e exagerava. E tinha Albert Zugsmith, o advo-
gado que conhecera no exército, ao seu lado, para
incentivá-lo. “Zuggy” era um executivo de rádio
nessa época — combinara seus antecedentes como
advogado, produtor e promotor para fazer carreira
em radiodifusão — mas não se recusou a represen-
tar os criadores do Super-Homem na batalha pelo
império multimilionário. Disse a Jerry que a Natio-
nal Comics não tinha nenhum direito sobre seus
personagens e que, mesmo que tivesse algum, a
empresa o perdera ao não lhe pagar o que devia e
ao criar o Superboy sem sua permissão. Zugsmith
disse que Jerry e Joe deveríam entrar com uma
ação.
A realidade das finanças, subjacente à disputa,
continua nebulosa. Perfis de Siegel e Shuster feitos
por jornais e revistas na década de 1940, dão conta
de que eles ganhavam mais de 100 mil dólares por
ano, número presumivelmente fornecido pelos pró-
prios quadrinistas. No decorrer do processo, Jerry
Siegel declarou que ele e Joe nunca tinham fatura-
do mais que 30 mil dólares por ano. Talvez a dispa-
ridade esteja entre o rendimento bruto do estúdio e
o salário que os dois sócios levavam de fato para
casa, ou talvez Jerry Siegel tenha baixado a quantia
para promover sua causa. Fosse como fosse, não
eram pobres. Jerry manteve a mulher e o filho na
casa de University Heights, ao passo que ele pró-
prio vivia a maior parte do tempo num apartamento
458
em Nova York. Joe sustentava os irmãos e os pais.
É óbvio que a National estava pagando a eles uma
parte do que lhes devia pelos direitos de licença —
embora seja muito provável que não fosse tanto
quanto poderia ter sido antes das mágicas dos con-
tadores.
E então, no final de 1946, veio o momento em
que expectativas e suspeitas anteriores sufocaram a
realidade. Durante aquele ano, os cheques enviados
a Siegel e Shuster foram ficando menores. Jerry se
queixou. Liebowitz disse que o Super-Homem esta-
va gerando menos dinheiro que antes. Jerry não
acreditou nele. Mas o fato é que as vendas da Su-
perman e da Action Comics caíram mais de 20%,
de 1944 a 1946. Os jornais estavam abrindo mão do
Super-Homem e de outras tiras juvenis de aventura
em favor da nova onda de tirinhas de humor e me-
lodrama do pós-guerra. As licenças para o uso da
marca despencaram, já que a garotada preferia ter
Roy Rogers estampado no pijama. O declínio da
renda de Siegel e Shuster foi um reflexo inevitável
da queda nas vendas — mas Jerry vivia esperando
pela próxima violência a ser cometida contra ele; e
disse a Joe e a Zugsmith que chegara a hora de agir.
Primeiro saíram em busca de aliados. Sabiam
que não eram os únicos que achavam Donenfeld e
Liebowitz dois malandros. Logo obtiveram o apoio
de Charlie Gaines. Ele rompera com Donenfeld e
Liebowitz em termos pouco amistosos e estava an-
459
sioso para acreditar no pior a respeito da dupla.
Além disso, sua editora, a Educational Comics, ti-
nha uma dívida de 100 mil dólares, ao passo que a
parte que seria sua na National Comics continuava
se valorizando. Ele ofereceu a Jerry e Joe apoio
moral e logístico, dizendo-se disposto a testemu-
nhar em favor dos dois sobre a venda do Super-
Homem para Donenfeld. Mas, quando ambos expu-
seram o caso, Gaines recuou. “Da forma como eu
vejo a coisa”, seu filho Bill diria mais tarde, “uma
dupla de advogados muito espertos pegou aqueles
dois rapazes de jeito e os deixou mais insatisfeitos
ainda. [...] Eles foram procurar meu pai com uma
história muito triste.” Charlie no entanto viu algu-
mas discrepâncias e certo exagero na história deles.
“E por isso desistiu de ser testemunha”, contou
Bill.
Jerry e Joe também tentaram formar uma frente
com Bob Kane. Presumiam que ele tivesse um
acerto de dez anos, a terminar em 1949, e sabiam
que teriam mais poder de barganha se os criadores
dos dois maiores super-heróis da editora reivindi-
cassem seus direitos de propriedade juntos. Não fi-
cou nenhum registro da comunicação entre eles,
mas o resultado foi que Kane procurou Jack Lie-
bowitz e contou a ele que Siegel e Shuster planeja-
vam entrar na justiça e que seria melhor para todos
os envolvidos se ele se dispusesse a renegociar o
trato original com ele. Liebowitz pelo visto respon-
460
deu que não estava nem um pouco preocupado, já
que a National tinha direito indiscutível tanto sobre
o Super-Homem como sobre o Homem-Morcego.
E então Kane fez talvez a mais engenhosa de suas
jogadas, numa carreira cheia delas. Por acaso Lie-
bowitz sabia, perguntou ele, que o rendimento que
a National obtivera com o Batman durante os sete
anos anteriores estava baseado num contrato inváli-
do? Liebowitz perguntou como o contrato poderia
ser inválido se fora assinado pelo próprio Kane.
“Claro”, concordou ele, “mas eu era menor, na épo-
ca.”
Todas as evidências indicam que Kane nasceu
em outubro de 1916. Houve até quem dissesse que
ele nasceu em 1915 e que mentia a respeito da data
para esconder o fato de ter repetido de ano na esco-
la. Ele se formou no segundo grau no mesmo ano
que Will Eisner, nascido no início de 1917. Kane
devia estar com 22, se não 23 anos, quando assinou
o contrato do Batman. Mas não havia provas. Não
havia nenhum registro. Na tradição dos imigrantes
judeus, seu pai tinha providenciado que sua certi-
dão de nascimento desaparecesse logo no começo
da vida. Quem poderia provar que ele não havia
nascido em 1919, como ele estava dizendo, e que
fora um menino precoce na escola? Kane garantiu a
Liebowitz que seus pais não hesitariam em teste-
munhar a favor do filho.
Com tamanha confusão pela frente, Liebowitz
461
achou mais fácil ceder. Cedeu parte da propriedade
legal sobre o Batman a Kane, inclusive os direitos
de reversão e permissão para vetar sua venda a
qualquer outra empresa, depois garantiu-lhe um
certo número de páginas por mês por um preço
exorbitante e uma porcentagem sobre os direitos
subsidiários. A única condição era que Kane não
poderia mencionar a ninguém esse acerto. Era uma
preocupação desnecessária. Kane nunca falava so-
bre seus acertos, ou sobre os artistas e escritores
“fantasmas” que trabalhavam para ele sem receber
nenhum crédito por isso. Limitou-se a informar
Jerry Siegel que não participaria do processo.
Siegel e Shuster estavam portanto sozinhos,
mas Zugsmith garantiu-lhes que tinham fundamen-
tos para ganhar. Conseguiríam seu personagem de
volta, junto com todo o dinheiro que a National
lhes devia. Em abril de 1947, Albert Zugsmith en-
trou com uma ação em nome de Jerry Siegel e Joe
Shuster contra a National Comics Publication, pe-
dindo 5 milhões de dólares e a devolução de todos
os direitos sobre o Super-Homem.
Harry Donenfeld e Jack Liebowitz ficaram in-
dignados. Liebowitz ligou para Siegel e lhe disse
para deixar de ser ridículo. Havia assinado um con-
trato vendendo seus direitos; não tinha direito ne-
nhum; seria melhor retirar a ação antes que ela des-
truísse sua carreira. Mas Jerry não iria se deixar en-
ganar por Jack Liebowitz de novo.
462
A medida que a ação progredia, o ânimo de
Jerry melhorava. Funnyman estava ficando pronto
e a primeira edição chegaria às bancas no final de
1947. Dizia a si mesmo que os quadrinhos eram
bons, que aquele tipo de humor de pastelão era o
que ele sempre fizera de melhor, e que o humor era
a nova moda dos quadrinhos. Já fora sondado por
alguns distribuidores de tiras para jornal, apenas
com base no fato de se tratar de mais uma criação
de Siegel e Shuster, e tinha certeza de que logo
mais estariam saindo em alguns jornais. Siegel não
viu motivos para se preocupar nem mesmo quando
Liebowitz decretou o fim imediato da colaboração
deles com a National. Depois de todos aqueles anos
com a sensação de que o Super-Homem estava lhe
escapando por entre os dedos, o futuro de repente
parecia auspicioso: Superman e Funnyman nas re-
vistas em quadrinhos e nos jornais, pelo menos um
no rádio, ambos totalmente nas mãos dele e de Joe,
mais os milhões que viriam com a ação. Não demo-
raria para que fossem tão importantes quanto Do-
nenfeld e Liebowitz. Zugsmith cuidava de tranqui-
lizá-lo a respeito do julgamento, Vin Sullivan a res-
peito de Funnyman e ele tranquilizava Joe a respei-
to de tudo; não lhe foi difícil acreditar que as coisas
dariam certo.
Foi então que aconteceu o milagre que parecia
encerrar a questão e que o levou direto de volta aos
sonhos desmedidos de 1936, quando o mundo dos
463
quadrinhos lhe abriu pela primeira vez os braços e,
pela primeira vez, achou que iriam conseguir colo-
car o Super-Homem num jornal. Ele e Joe planeja-
vam ir a um baile a fantasia da Sociedade Nacional
de Cartunistas, no Hotel Plaza, em Nova York, e
Joe tinha acabado de saber que Joanne Carter, com
quem trocara inúmeras cartas, a garota que servira
de modelo para Lois Lane quase 12 anos antes, es-
tava na cidade. Joe a convidou para ir ao baile. Jo-
anne ficou encantada com o convite. Queria ir fan-
tasiada de Lois Lane, mas soubera que Joe e Jerry
tinham entrado em litígio com a editora, de modo
que optou por ir de Dixie Dugan, uma atriz muito
paqueradora de uma tira cômica, conhecida pela
lingerie ousada que costumava usar. Joanne nunca
foi uma beleza clássica, mas com vinte e tantos
anos, já então modelo experiente, trabalhando para
artistas, devia ser um espetáculo comparada à garo-
ta magricela que costumava ir visitar Joe em Glen-
ville. No momento em que Joe apareceu com ela no
baile, Jerry Siegel se apaixonou.
Joanne enfatizou em suas memórias que ela se
deu muito bem tanto com Joe como com Jerry ao
vê-los de novo pela primeira vez depois de uma dé-
cada tão catastrófica. Mas foi Jerry que, com sua
energia frenética, superou a timidez, foi Jerry quem
a levou pelo salão, apresentando-a a todos os gran-
des desenhistas, foi Jerry quem lhe disse que estava
morando em Nova York e que adoraria vê-la de
464
novo.
Joe cedeu terreno. Não sabemos o que ele achou
do romance que nascia entre Jerry e Joanne, embo-
ra o estúdio deles não tenha ficado abalado. Jerry e
Joanne continuaram em Nova York, passando qua-
se todos os dias juntos. Para Joanne, aquilo devia
parecer um sonho — ao fim de um mau casamento,
lutando para ser ao mesmo tempo modelo e balco-
nista, enfrentando a chegada dos 30 anos sem muita
perspectiva — ver-se de repente de volta àquele
momento de esperanças adolescentes, de repente a
poucos passos da fama e da fortuna. E deve ter pa-
recido um sonho também para Jerry encontrar
aquela jovem bonita de seu passado, a encarnação
das garotas glamourosas dos quadrinhos, alguém
que até então ele só pudera conceber imaginaria-
mente, e fazê-la sua num momento em que enfim a
vida profissional também seria dele. Jerry pergun-
tou a Joanne se casaria com ele depois que ele se
divorciasse de Bella. Ela disse que sim.
E chegou por fim o dia de ir ao tribunal. A Nati-
onal Comics contratara um dos especialistas em
copyright mais respeitados do país, Horace Man-
ges, e ele armou uma batalha exaustiva. Siegel e
Shuster tinham pouca coisa a seu favor, fora os pró-
prios testemunhos, ao passo que a National tinha
todos os documentos. Foi uma ação desagradabi-
líssima, com depoimentos e provas. Zugsmith con-
tinuava repetindo que estava dando tudo certo. Nes-
465
se meio-tempo, o caso havia se tornado crucial para
Jerry e Joe. As primeiras reações ao lançamento de
Funnyman haviam sido desanimadoras. A primeira
edição tivera um grande número de devoluções, e a
segunda parecia estar indo pelo mesmo caminho.
Os donos das bancas de jornal não tinham uma opi-
nião muito boa. Na maior parte, diziam que aquilo
não era o Super-Homem. E Jerry e Joe precisavam
de uma vitória.
A decisão saiu em maio de 1948. O tribunal
concluiu que Siegel e Shuster tinham vendido todos
os seus direitos para a Detective Comics Incorpora-
ted, e que o Super-Homem já não lhes pertencia. O
tribunal não encontrou nenhuma prova dos 5 mi-
lhões de dólares de prejuízo. Mas concordou que a
criação dos dois havia sido injustamente explorada
no caso de Superboy, e pediu às partes que chegas-
sem a um acordo. Zugsmith prontamente apareceu
com uma oferta para Jerry e Joe: se eles abdicas-
sem de todos os direitos sobre Superman e Super-
boy, receberíam 100 mil dólares da National.
Jerry estava agoniado. O acordo, 50 vezes me-
nos do que haviam pedido, seria consumido quase
todo em honorários para o advogado. O dinheiro
que sobraria para ele e Joe não chegava a ser nem o
equivalente a um ano de trabalho para a National
— trabalho que eles haviam perdido para sempre
com o processo. Tinham de apelar. Tinham de con-
tinuar lutando. Zugsmith porém disse a eles que
466
não adiantaria. Seria melhor que ele e Joe aceitas-
sem o acordo em vez de jogar dinheiro pelo ralo
para no fim sair talvez com menos ainda. Joe, pelo
que consta, não queria seguir com o processo. Jerry
acabou concordando. E abriu mão da apelação.
Desse ponto em diante, as coisas caminharam
rapidamente. Jerry foi falar com Bella e pediu o di-
vórcio imediato. Ele se prontificou a dar a ela tudo
que quisessem desde que o liberasse rápido. Ela en-
trou com o pedido de divórcio no dia 14 de julho de
1948, alegando que durante os dois últimos anos
ele fora tremendamente negligente nos seus deveres
como marido e como pai, que desaparecia por lon-
gos períodos sem explicação nenhuma e que se
comportava de forma hostil e belicosa quando esta-
va em casa.
Jerry não contestou. O divórcio foi concedido
menos de três meses depois, no início de outubro.
Houve um pequeno escândalo na ocasião: o juiz en-
carregado do caso, Samuel Silbert, se dizia um
grande adversário dos divórcios rápidos e promete-
ra que em seu tribunal a sentença jamais sairia an-
tes de seis meses. Acontece que o “juiz Sam” tam-
bém era um distinto membro da comunidade judai-
ca de Cleveland e do Partido Democrata local. Sua
explicação oficial sustentava que a sentença de di-
vórcio havia sido proferida por um juiz assistente,
que não o pusera a par do ocorrido. Mas será que
suas opiniões a respeito de divórcios rápidos não
467
eram conhecidas em seu próprio tribunal? Talvez
Jerry Siegel ainda tivesse um pouco de influência
como um dos filhos famosos de Glenville, e usou-a
para se livrar mais depressa de Bella.
Exatamente uma semana depois do divórcio ter
sido decretado, Jerry se casou com Joanne Carter,
nascida Jolan Kovacs, no civil. Jerry pediu ao pes-
soal do cartório para manter segredo, assim Walter
Winchell podería dar o furo. Noivo e noiva esta-
vam morando num hotel: Jerry não tinha família
com quem se hospedar.
Cinco meses depois do fim do processo de inde-
nização, Jerry havia se divorciado de uma mulher e
se casado com outra. Estaria com medo de que
tudo, inclusive Joanne, se evaporasse? Na primave-
ra daquele mesmo ano, saíram as últimas edições
da Action e da Superman com os nomes de Siegel e
Shuster na capa. Depois veio o seriado do Super-
Homem, feito pela Columbia Pictures, algo que te-
ria rendido dinheiro a eles não fosse o processo.
Em setembro, o Superman radiofônico iniciou uma
nova temporada, sem menção a seus criadores. O
verão encerrara a publicação da revista Funnyman;
o fiasco fora tamanho que ela só durou seis meses.
Em outubro, no mesmo mês em que Jerry obteve o
divórcio e se casou de novo, Funnyman começou a
ser oferecido aos jornais pelo Bell Syndicate. Pou-
cos periódicos publicaram a tira.
Na verdade, Funnyman era uma tira pavorosa,
468
com um humor forçado e histórias pesadas. O pró-
prio “homem engraçado” do título, em vez de di-
vertido, era um personagem iradamente ofensivo.
Assim como algumas criações de Jerry Siegel no
colegial, ele gostava de fazer troça de pessoas com
“QI zero”. A vista de Joe estava tão fraca que ele
desenhava apenas os traços mais gerais, deixando
todas as sutilezas e caracterizações para os novatos,
cujo trabalho era duro demais, acadêmico demais,
para ser engraçado. Não havia graça nem humor
em Funnyman capazes de provocar uma reação di-
vertida; apenas frustração e desespero.
No início de 1949, a agência distribuidora suge-
riu que a trama e o desenho tinham potencial, mas
que o personagem principal era antipático demais.
Jerry e Joe fizeram a transição introduzindo um
novo personagem de apoio, cuja participação foi
crescendo. Voltaram a um personagem dos tempos
em que ainda batalhavam para conseguir uma bre-
cha no mundo das tiras de jornal, no começo dos
anos 1930, antes que o major Malcolm Wheeler-
Nicholson os convertesse aos gibis e aos desenhos
de ação: apelaram para Reggie van Twerp, um bocó
da comédia musical com um mordomo onisciente.
Era uma decisão estranha, a menos que estivessem
esgotados, incapacitados para apresentar um mate-
rial novo ou descrentes de que poderíam fazê-lo
funcionar. Reggie van Twerp era melhor que
Funnyman, mas não tinha lugar em 1949. O syndi-
469
cate cancelou a tira.
Dez anos depois de o Super-Homem ter invadi-
do as bancas de jornal e as prateleiras das lojas do
país inteiro, Jerry Siegel e Joe Shuster estavam de-
sempregados. Estavam com 35 anos de idade, sem
idéias novas para o mercado e sem perspectivas.
Sem escolha, tiveram que desativar o estúdio. Jerry
e Joanne saíram do apartamento de University Cir-
cle, onde, na avaliação posterior de Joanne, eles fo-
ram mais felizes, e voltaram para Nova York. Jerry
achou que poderia arrumar emprego escrevendo
para comic books. O que ele não sabia era se conse-
guiria vender alguma coisa trabalhando com um
desenhista que mal enxergava e cujo estilo parecia
ultrapassado. Mas disse a Joe para procurar algo
que pudessem fazer juntos. Se Joe procurou, não
encontrou. Desde o Torch, jornal que faziam na es-
cola, passando pela Science Fiction e por Jerry the
Journalist até Slam Bradley e Superman, sempre
houvera a dupla Siegel e Shuster. No fim de 1949,
ela deixaria de existir.

UM ANO DEPOIS, Whitney Ellsworth e Mort


Weisinger estavam em Hollywood, preparando
uma série do Super-Homem para a televisão. Tal-
vez o caminho dos dois tenha se cruzado com o de
um homem chamado Albert Zugsmith. Em 1951,
Zugsmith produzia um filme chamado Invasão dos
EUA para Howard Hughes. Em seguida houve mais
470
alguns filmes baratos, depois um contrato com a
Universal, que o levaria a produzir dezenas de fil-
mes, inclusive alguns lembrados até hoje: A Marca
da Maldade, Palavras ao Vento, O Incrível Ho-
mem que Encolheu. Durante uma entrevista que tra-
tou de sua curiosa carreira inicial como advogado,
repórter e pequeno produtor de rádio, Zugsmith
afirmou que fez tudo o que foi preciso fazer até “ter
dinheiro para fazer o que queria”. Como foi que ele
ganhou dinheiro suficiente para se tornar um pro-
dutor de cinema?
Quarenta anos depois, e em off, Joe Shuster
ventilaria a suspeita que o atormentava desde 1948:
a de que Albert Zugsmith tinha procurado Jack Lie-
bowitz e dito: “O que você me dá se eu terminar
agora com esse aborrecimento todo?”

12
——————————
ROTA DE COLISÃO

CHARLIE GAINES NUNCA FORA muito fã


de atividades ao ar livre. Singrar as águas do lago
Placid numa lancha Chris-Craft em alta velocidade
não era bem a coisa para a qual se preparara em sua
infância passada no Brooklyn. Mas era o tipo de
coisa que um empresário de sucesso faria logo após
a guerra. Estava todo mundo acampando, pescando
e até comprando casas de veraneio se o orçamento
471
permitisse. Na verdade, os negócios de Charlie não
estavam indo tão bem quanto pareciam. A série de
quadrinhos com histórias da Bíblia, a Picture Stori-
es from the Bible, acabou não sendo a pedra angu-
lar de um grande sucesso editorial como Charlie es-
perava, e uma das providências renovadoras que to-
mou foi mudar o nome da empresa de “Educational
Comics” para “Entertaining Comics”, na esperança
de que a criançada passasse a comprar o humor
bem-comportado de revistas como Tiny Tots, Fats
& Slats ou Animal Fables, em que estrelavam
Freddy Firefly e Konky Kangaroo. A estratégia não
funcionou e Charlie já estava pedindo empréstimos
para cobrir as despesas da editora. Mas nenhum
empresário gosta de demonstrar que se encontra em
apuros, de modo que conservou sua casinha de
campo e sua lancha Chris-Craft. Quando os amigos
apareciam para visitá-lo, como fizeram naquela tar-
de de agosto de 1947, Charlie gostava de levá-los
para dar uma volta no lago.
Pelo visto, não viu a aproximação do outro bar-
co, que bateu no flanco de sua lancha, logo atrás da
proa, e partiu o casco ao meio. O filho de seu ami-
go sobreviveu — a família Gaines concluiu que
Charlie deve tê-lo empurrado para longe no mo-
mento do impacto — mas tanto Charlie como o pai
do garoto morreram instantaneamente. Charlie Gai-
nes foi o primeiro dos fundadores da indústria dos
gibis a morrer.
472
Seu filho Bill deixou Nova York e foi ajudar a
mãe viúva. Tinha 25 anos e estava prestes a come-
çar o último ano da faculdade, depois de interrom-
per os estudos por causa da guerra. O casamento
apressado pela guerra aos 22 anos estava passando
por problemas. Bill não via a hora de dar o passado
por encerrado e começar carreira como professor
de química de segundo grau. Porém também era
um bom filho. Por isso tomou as providências para
o enterro, suportou as condolências vazias de gente
como Harry Donenfeld e Jack Liebowitz, ajudou a
pôr a papelada do pai em ordem e começou a fazer
as malas para regressar à Universidade de Nova
York.
Mas e os negócios do pai, como iriam ficar?,
perguntou a mãe. Para Bill, nada mais óbvio: ven-
deríam tudo. Ele não sabia coisa nenhuma a respei-
to do negócio, e tampouco queria aprender. Odiava
as lembranças dos tempos em que trabalhara com o
pai, os gritos, as humilhações. “Como é que eu pos-
so dirigir a empresa se não consegui nem ser auxili-
ar de almoxarifado do velho?”, perguntou ele a um
amigo.
Mas, insistiu a mãe, a empresa era tudo que res-
tara do pai. E era tudo que ela tinha para garanti-la
na velhice. Bill concordou em falar com Sol Cohen,
o gerente de circulação da EC. Talvez conseguis-
sem chegar a um acordo: Bill daria uma supervisio-
nada de vez em quando, e Sol ficaria no comando
473
de fato. Depois que a linha de gibis estivesse mais
bem estabelecida, ele se afastaria de vez. A mãe
continuaria recebendo seus rendimentos e ele pode-
ria enfim se dedicar à carreira de professor.
E então Cohen lhe deu um panorama completo
da encrenca em que a firma estava metida. Dívidas
no valor de 100 mil dólares. Poucas vendas. Produ-
tos sem o menor valor. Charlie havia tentado imitar
a Mulher-Maravilha e acabara com uma revistinha
tola chamada Moon Girl & the Prince. Tinha pre-
tendido fazer um “gibi de famosos”, mas a pessoa
mais famosa que conseguiu contratar foi um Hou-
dini de segunda classe chamado Blackstone, o
Mágico. Charlie tinha ideais nobres, queria dar às
crianças revistas decentes, bem feitas, mas não sa-
bia do que elas gostavam nem o que vendia. Bill
era jovem — sabia o que a garotada queria; deveria
ficar até que conseguissem erguer a Entertaining
Comics de novo. Cohen conhecia um desenhista de
apenas 22 anos de idade, de custo ainda baixo, que
estava fazendo bons quadrinhos para Victor Fox,
histórias voltadas ao mercado adolescente. Manda-
ria chamá-lo para conversarem sobre a possibilida-
de de levar a EC ao mercado daqueles leitores.
E assim foi que Al Feldstein apareceu, um garo-
to cheio de vida, com um senso de humor estranho,
que escrevia e desenhava com um entusiasmo cati-
vante, ainda que sem grande fluidez. A exemplo de
Bill, queria ser professor e desenhava quadrinhos
474
só porque se casara durante a guerra e tinha que
sustentar a mulher. Ele e Bill simpatizaram um com
o outro na hora; Al começou a fazer Going Steady
with Peggy. Outro com quem Bill Gaines também
logo se entendeu foi Johnny Craig, que dirigia o de-
partamento de arte — ele era o departamento de
arte da empresa. Artista autodidata, Johnny tivera
como mentor antes da guerra um amigo de Bill,
Shelly Mayer; com apenas 21 anos de idade, já es-
tava casado — mais um dos muitos jovens convo-
cados para a guerra que haviam abraçado o sonho
da vida doméstica a fim de aliviar a dor do serviço
militar para somente mais tarde perceber o quanto
eles tinham abreviado a juventude.
Johnny Craig era também algo novo na indús-
tria: um artista que crescera lendo gibis, que se ali-
mentara de revistas como Superman e Batman. Em
1939, aos 13 anos, Craig passava boa parte do tem-
po no armazém da esquina folheando as revistinhas
que não podia comprar, desejando desenhar daque-
la forma. Acontece que o filho do dono da venda
era um estudante de arte que conhecia um quadri-
nista que precisava de um assistente — e foi assim
que Johnny Craig entrou para o ramo. A geração
dos fãs havia chegado, e era só uma década mais
jovem que a de Siegel, Shuster e companhia. Porém
era uma turma fundamentalmente diferente, na me-
dida em que aceitava o gibi como uma forma esta-
belecida, mas desejava sacudi-lo, refiná-lo e am-
475
pliá-lo para que nele coubessem suas necessidades
criativas.
Bill, Al e Johnny formaram uma pequena gan-
gue; eles faziam troça uns dos outros e das boba-
gens em que estavam trabalhando, riam de suas
exigentes mulheres e dos velhos tolos que dirigiam
a indústria dos quadrinhos. Bill detestava trabalho
estruturado e atividade física — vangloriava-se de
ter dançado e jogado bola uma única vez na vida —
, mas descobriu que adorava comer e beber cercado
por caras mais jovens que admiravam sua bufona-
ria. Um dia, Al e Johnny fizeram com Bill aquela
brincadeira com cola de borracha e fogo que Gil
Kane recebera na Pep. Em todas as outras editoras,
os artistas faziam essas coisas com seus jovens as-
sistentes. Na EC, faziam com o patrão.
A grande novidade no campo das revistas em
quadrinhos, no ano de 1947, era a recente populari-
dade da Crime Does Not Pay, de modo que Bill e
sua gangue começaram a brincar dizendo que se
quisessem vender a Moon Girl, teriam de trans-
formá-la numa revista de crime. Depois a brinca-
deira virou vontade. Se quisesse salvar aquela ridí-
cula empresa paterna, Bill sabia que teria que trans-
formá-la justamente no que o pai nunca quisera que
fosse. E isso não seria fantástico depois de todos os
desaforos que tivera de engolir do velho? “Eu tenho
a impressão de que o Bill entrou no negócio mais
por brincadeira”, disse Shelly Mayer, “só para ver
476
se ele conseguiría ferrar com tudo, mudar tudo só
de farra e ainda assim ganhar dinheiro.”
Então a Moon Girl acabou de fato se transfor-
mando em Moon Girl Fights Crime, e a Blackstone
virou Blackstone the Magician Detective Fights
Crime. Os outros títulos foram eliminados e substi-
tuídos por Saddle Justice, War against Crime, Mo-
dern Love. As vendas aumentaram. A EC começou
a atrair outros talentosos e cínicos jovens que havia
saído direto do colégio para o exército ou, muitas
vezes, para o casamento e para a responsabilidade
precoce: Johnny Severin, Wally Wood e o fasci-
nante e engraçadíssimo Will Elder.
Bill Gaines estava começando a achar aquilo
tudo divertido. Terminou sua licenciatura, mas nun-
ca assumiu nenhum cargo de professor. Tornou-se
um editor de quadrinhos em tempo integral, um fe-
delho cáustico metido no círculo de velhos compa-
nheiros de carteado de Charlie Gaines. E, quanto
mais fundo ele ia, maior era a vontade de dar um
belo chute no saco daqueles caras.
No começo de 1950, decidiu botar para quebrar.
E lançou a “Nova Tendência da EC” (EC New
Trend), um grupo de novos títulos dirigido a ado-
lescentes e adultos. As revistas de terror estavam
chegando — a Marvel Tales de Martin Goodman e
Stan Lee acabara de desbancar os super-heróis em
favor de necrófagos e zumbis — de modo que Bill
soltou Haunt of Fear, Vault of Horror, Tales from
477
the Crypt, Weird Science, Weird Fantasy e um gibi
de crime com um viés fantasmagórico chamado
Crime SuspenStories. Bill Gaines e Al Feldstein
imitavam o suspense dos programas de rádio dos
quais gostavam; faziam histórias de terror com tra-
mas densas, excesso de narrativa, descrições maca-
bras e finais em que não faltavam lances cruelmen-
te cômicos. A vontade para expor as vilezas da vida
moderna com uma liberdade que o rádio não permi-
tia, dedicaram-se, com um riso maldoso, a virar do
avesso a sentimentalidade americana. Mostraram
pais de família respeitáveis torturando seus filhos,
meninos de tenra idade tramando a morte dos pais,
jovens casais destilando veneno homicida, e acima
de tudo, mulheres sensuais acabando com a raça de
jovens idiotas fascinados com seus encantos. Sol
Cohen, o velho conselheiro do pai de Bill, ficou
horrorizado e pediu as contas. Mas as vendas conti-
nuaram crescendo. Fãs adolescentes e adultos co-
meçaram a enviar cartas apaixonadas.
Encorajado, Bill e sua gangue ousaram pisar no
terreno político. Ele e Feldstein contaram histórias
sobre linchamentos, racismo e policiais de cidades
pequenas que enquadravam gente inocente. Foi um
outro quadrinista da EC, porém, o ferozmente en-
graçado Harvey Kurtzman, quem de fato quis con-
tar a verdade sobre o mundo de mentiras que via a
sua volta. “Na época, estava na moda fazer quadri-
nhos de guerra com muita fantasia e glamour, o que
478
para mim era uma tremenda imoralidade. Eles fazi-
am da guerra um acontecimento feliz, em que su-
per-homens americanos saíam pelo mundo esmur-
rando amarelos dentuços. [...] E a guerra, na verda-
de, é aquela coisa de você morrer de repente, por
motivo nenhum.” Kurtzman editava, escrevia e es-
boçava os quadrinhos de duas revistas, a Two-Fis-
ted Tales e a Frontline Combat. As Forças Arma-
das dos Estados Unidos declararam que as publica-
ções eram “subversivas por serem propensas a de-
sacreditar o exército e solapar o moral dos solda-
dos”. O FBI abriu uma ficha para anotar as ativida-
des de Gaines e sua empresa. E esse, é claro, era
justamente o tipo de atenção que a gangue da EC
adorava.
No entanto como todo garoto acaba aprendendo
a atenção irada de gente grande traz consigo alguns
riscos. Numa época em que a conformidade pública
e o decoro forçado têm grande significado, a busca
do mau gosto se torna um caminho deveras eficaz e
satisfatório para a notoriedade. Desde o princípio,
os gibis de crime e de terror tentaram chocar os lei-
tores com uma alta dose de violência e crueldade.
A investida contra os quadrinhos iniciada por Fre-
dric Wertham, em 1948 e 1949, dera um susto rápi-
do na indústria, mas a tempestade acalmara e as
editoras começaram a pôr as mangas de fora de
novo. As menores e mais novas tentavam sobres-
sair com capas absolutamente grotescas, como se
479
quisessem que suas edições saltassem das pratelei-
ras: um close de um homem agonizante, enterrado
num formigueiro, o rosto ensanguentado de um ho-
mem sendo furado por duendes armados de alfine-
tes, objetos cortantes avançando para o glóbulo de
um olho.
Impelido pela imprudência e pela confiança,
Bill Gaines entrou na brincadeira. Johnny Craig
mostrou ter um dom todo especial para o momento
simples e brutal: a cabeça de uma mulher mantida
debaixo da água soltando o que lhe resta de ar nos
pulmões, um close de um enforcado com os olhos
revirados e a língua de fora, e aquele que levaria
seu trabalho para a televisão em rede nacional, um
homem segurando um machado ensanguentado e a
cabeça decepada de uma mulher, os olhos revirados
nas órbitas, saliva escorrendo da boca aberta — e o
corpo a poucos metros de distância, com o vestido
bem levantado nas coxas. Para Gaines e sua gan-
gue, era tanto uma questão de competitividade
como de vendas, mas isso acabou por colocá-lo na
linha de frente do ataque ao gosto americano; e
numa rota de colisão com forças culturais que ele
não foi capaz de antever.

ENQUANTO BILL GAINES, O professor se-


cundário, se tornava o principal fornecedor de san-
greiras sádicas, a empresa de Harry Donenfeld,
nascida de revistas de mulher pelada e contrabando
480
de uísque, era a próspera proprietária dos heróis
mais íntegros de todo o país.
O poder estava todo nas mãos de Jack Lie-
bowitz a essa altura. Os anos 1950 foram os seus
melhores tempos, tempo de fusões, consolidações e
planos de longo prazo. Sua obra-prima econômica
foi o seriado para televisão chamado The Adventu-
res of Superman. Todo mundo sabia que com a TV
diminuiriam as vendas das revistas em quadrinhos,
e por volta de 1951 a retração do mercado já se fa-
zia sentir, mas nenhum editor, exceto Liebowitz, se
esforçou de fato para fazer o novo veículo trabalhar
a seu favor. Os dois seriados para cinema feitos
pela Columbia Pictures tinham obtido enorme su-
cesso, mas Jack não iria permitir que a Columbia
ficasse com o dinheiro quando chegasse a hora da
televisão. Assim como também não iria vender os
direitos do programa para uma rede ou um patroci-
nador — a única empresa com direito a distribuição
e revenda era a National Comics. “Sempre quis fa-
zer eu mesmo os filmes”, contou Jack. “Nunca tive
vontade de passá-los para terceiros.” Em 1951,
mandou Bob Maxwell, o produtor do programa de
rádio, a Los Angeles para descobrir talentos e for-
mar uma produtora. Depois colocou Whitney
Ellsworth, seu diretor editorial, como o encarrega-
do da trama. O piloto, com uma hora de duração,
foi lançado nos cinemas para assim recuperar os
custos e avaliar o tamanho do mercado. Já com a
481
distribuição acertada, puderam então realizar uma
primeira temporada. Maxwell e sua produtora pre-
pararam 24 episódios em dez semanas.
Mas, por mais econômico e rápido que fosse,
ele estourou o orçamento. Para a segunda tempora-
da, Liebowitz dispensou Maxwell e mandou gente
sua, Whitney Ellsworth e Mort Weisinger, para
controlar o programa. Ellsworth não tinha expe-
riência nenhuma em produção, mas havia aprendi-
do gerenciamento de custos com Jack Liebowitz.
Ele e Weisinger se fecharam durante semanas a fio,
armando cada episódio, sempre de olho no orça-
mento, e só depois passaram o material aos escrito-
res para que preenchessem as lacunas. Depois de
terem em mãos os 26 episódios da série, alugaram
os estúdios — e então filmaram todas as cenas de
um determinado local para a temporada inteira: to-
das as cenas passadas no jornal Planeta Diário dos
vinte e seis episódios, todas as cenas do apartamen-
to de Clark Kent para os 26 episódios, depois todos
os armazéns e celeiros abandonados. Os atores se
queixavam de que, daquela forma, não conseguiam
transmitir nenhuma emoção a seus papéis, mas esse
era o preço que Jack Liebowitz estava disposto a
pagar para manter os custos baixos. Porém, assim
que percebeu o futuro da série, pôs a mão no bolso.
Na terceira temporada, em 1954, o programa pas-
sou a ser colorido, embora a TV em cores ainda
fosse demorar alguns anos para chegar. Os episó-
482
dios foram transmitidos em preto-e-branco durante
quase uma década, mas dez anos depois, como Jack
previra, tornaram-se muito mais vendáveis como
reprises.
Superman era um programa barato, mas não
sensacionalista. George Reeves, protagonista e
porta-voz da série, declarou: “Nós estamos todos
interessados em dar à garotada o tipo certo de pro-
grama. Não apelamos para violência excessiva. [...]
Nossos escritores e nossos patrocinadores têm fi-
lhos e tomam todo cuidado para não fazer coisas
que possam ter efeito prejudicial sobre jovens. Nós
até tentamos em nossos roteiros transmitir, com su-
tileza, mensagens de tolerância e ressaltar que de-
vemos todos respeitar as diferenças de cor, raça e
crença religiosa.”
Superman foi um sucesso. O programa não con-
tava praticamente com nenhum rival, o elenco era
divertido, os roteiros respeitavam as sensibilidades
das crianças, os pais aprovavam e as histórias eram
uma mistura de comédia, gozação e salvamentos de
último minuto, do tipo desenvolvido à perfeição
por Siegel e Shuster. A série conseguiu até mesmo
devolver o Super-Homem à condição de espécie de
piada nacional e de criatura amada em todo o país;
não como nos idos de 1940, mas o suficiente para
que um dos programas de maior audiência na épo-
ca, I Love Lucy, montasse um episódio em torno
dele. Foram produzidas quatro séries e nenhuma
483
teve problemas de distribuição. Mesmo depois que
George Reeves foi encontrado morto com uma bala
no corpo, momento em que circularam boatos terrí-
veis — que ele ficara estigmatizado como Super-
Homem e que se desesperava com a idéia de nunca
mais conseguir outro papel, que ele fora assassina-
do por causa de seus deslizes sexuais — Superman
continuou sendo exibido em todo o país.
E continuou vendendo quadrinhos, também.
Com a mudança permanente de Whitney Ellsworth
para Hollywood, o controle editorial foi nominal-
mente entregue ao filho de Harry Donenfeld, Irwin
— que não entendia patavina do assunto e que de
muito bom grado cedeu o controle aos editores sob
seu comando. Mas era Weisinger, bem mais que
Jack Schiff, Julie Schwartz e outros, quem Jack Li-
ebowitz escutava. Liebowitz o chamava de “grande
mente criativa”. Os escritores que trabalhavam com
Weisinger não teriam concordado, mas não resta
dúvida de que ele possuía uma poderosa mente po-
lítica e mercadológica. Weisinger se ocupou pesso-
almente da linha do Super-Homem, fazendo pres-
são sobre seus colegas editores. Schiff, em especial,
foi bastante perseguido por ele. Ele era um liberal
sem papas na língua e Weisinger o complicava com
o patrão, chamando-o de “o vermelho da casa” e “o
comuna louco”. Liebowitz não gostava de menções
ao socialismo nos corredores de sua empresa.
Schiff recebeu o recado de que era melhor abaixar
484
a cabeça e manter Mort Weisinger a seu lado, e foi
assim que Mort obteve o controle também sobre o
Batman, que pertencia a Schiff.
A National se tornou famosa por seus editores
de espírito prático, que pagavam bem pelo trabalho
dos artistas e escritores escolhidos, mas que não se
interessavam tanto por visões individuais e preferi-
am um “estilo da casa” bem cuidado e de fácil
acesso. Começando por Superman e passando por
Young Romance, Pow Wow Smith e Indian Law-
man, todas as revistinhas da DC se pareciam; e to-
das eram de fácil leitura. Com seus quadrinhos de
tamanho uniforme, alternâncias constantes de pla-
nos com um e dois personagens, enredos desprovi-
dos de constrangimentos e de drama, ilustrações
bem cuidadas mas desapaixonadas e uma inocuida-
de cautelosa, serviam na medida para a televisão
dos anos 1950.
Entretanto o golpe mais importante de Lie-
bowitz se baseou num super-herói bem menos ínte-
gro que o Super-Homem. Antes da guerra, no estú-
dio da Funnies Inc., onde Namor, o Príncipe Sub-
marino e o Tocha Humana estavam sendo produzi-
dos para a Marvel Comics de Martin Goodman, la-
butava um candidato a escritor de ficção barata
chamado Michael “Mickey” Spillane. Entre os in-
tervalos das histórias de Namor que escrevia para
Bill Everett e seus desenhistas anônimos, Spillane
desenvolveu uma idéia para uma tira, com um dete-
485
tive particular violento chamado Mike Danger. Era
brutal demais para os gibis do pré-guerra, e na épo-
ca ele só conseguiu vender uma versão mais aguada
do personagem, Mike Lancer. Mas ao voltar da
guerra, e precisando de mil dólares para construir
uma casa para a mulher, Spillane abriu um estúdio
para tentar vender Mike Danger junto com alguns
outros veteranos da Funnies Inc.. Os comic books
com histórias de crimes estavam começando a pe-
gar, mas o estúdio não tinha capital e não conseguia
um contrato de distribuição. Então Spillane mudou
o nome do seu herói para Mike Hammer e escreveu
a história como se fosse um romance. Levou nove
dias para transformar a trama projetada para os
quadrinhos em prosa frenética, suarenta, grosseira e
hostil.
“Levantei o braço e dei uma bofetada na cara
dela com toda a força que eu tinha”, diz Mike
Hammer. “A cabeça balançou, mas ela continuou
ali, firme, com um olhar mais duro ainda. Ainda vai
querer que eu coma você?’ ‘Vou’, disse ela.” Os
parceiros de Spillane no estúdio disseram que o li-
vro não iria vender. Era muito baixo, muito grossei-
ro. Spillane porém tinha um amigo que tinha um
amigo numa editora, E. P. Dutton, e graças a uma
troca de favores conseguiu publicar seu livro. O ro-
mance saiu no verão de 1947. Não chegou a vender
nem 4 mil exemplares. Dutton passou os direitos à
edição em brochura para a Signet, uma das editoras
486
da New American Library.
O negócio das brochuras estava crescendo na
época, mas esse tipo de edição ainda não havia es-
tabelecido sua própria personalidade, distinta da
dos livros encadernados em capa dura. As capas
eram mais coloridas e às vezes mais espalhafatosas,
mas os livros que vendiam bem nessas edições
mais baratas eram em geral os mesmos que tinham
feito sucesso nas edições mais caras. O romance I,
the Jury, de Spillane, desancado pelos críticos e ig-
norado pelos clientes das livrarias, mexeu direta-
mente com as fantasias de ex-pracinhas desencanta-
dos, membros irritados das camadas mais pobres
que jamais teriam tirado 2 dólares e 50 centavos do
bolso para comprar um romance de capa dura, aliás
nem sequer teriam entrado na livraria, mas nota-
ram, ao lado de quadrinhos de crimes, pulps e re-
vistas de mulher pelada, aquela brochura escanda-
losa nas prateleiras de bancas e tabacarias. A capa
do livro mostrava uma loira abrindo a blusa en-
quanto um cara durão aponta uma arma para ela. A
garota não usava sutiã. E o texto não decepcionava.
A loira é uma assassina traiçoeira. Faz um strip-tea-
se para Mike porque sabe que ele vai querer transar
com ela, não matá-la. No entanto depois que ela
tira a roupa toda, ele abre um buraco no estômago
da moça. “‘Como você p-pôde?’, perguntou ela,
com voz arfante. Só restava um instante antes que
ela virasse cadáver, mas consegui responder. ‘Foi
487
fácil’.”
I, the Jury era a alma vil dos mais infames qua-
drinhos transposta para a prosa, porém para o jo-
vem adulto tinha uma força muito maior que qual-
quer gibi. O livro vendeu 2 milhões de exemplares,
em edição brochura, transformando a Signet numa
peça importante do mercado editorial e enviando
um recado a todos: os homens que liam quadrinhos
sórdidos e revistas masculinas poderíam ser alcan-
çados através do romance.
Os livros da New American Library (NAL)
eram distribuídos pela Fawcett Magazines, que pu-
blicava as aventuras do Capitão Marvel e que havia
passado 8 anos refutando a acusação de plágio do
Super-Homem, feita pela National. Os irmãos Faw-
cett, na grande tradição das revistas baratas, perce-
beram na hora que havia muito mais dinheiro a ga-
nhar publicando as próprias brochuras do que ape-
nas distribuindo as de terceiros. O acordo que fe-
charam com a NAL os impedia de ter a própria
gráfica para reimpressão, mas encontraram uma
brecha nas cláusulas: o contrato não os proibia de
publicar livros inéditos em brochura. Poucos meses
depois do lançamento de I, the Jury, Fawcett criou
a Gold Medal e inventou o “lançamento em bro-
chura”. Jovens escritores, sem chance de publica-
ção por editoras “sérias”, em pouco tempo estavam
vendendo milhões pela Gold Medal. Porém Kurt
Enoch, o dono da NAL, não estava contente com os
488
Fawcetts. Ao encontrar aquela brecha, no entender
de Enoch, os dois haviam violado o espírito do
acordo. Assim que o prazo se esgotou, ele saiu em
busca de um novo distribuidor.
Em 1953, o processo movido pela National Co-
mics contra a Fawcett foi finalmente decidido por
um tribunal de instância superior. O juiz Learned
Hand decidiu que o Capitão Marvel infringia os di-
reitos autorais do Super-Homem. A Fawcett fez um
acordo extrajudicial por algumas centenas de mi-
lhares de dólares e prometeu cancelar a publicação
dos comic books da Família Marvel. Com os livros
da Gold Medal vendendo milhões todo mês, os ir-
mãos resolveram que chegara a hora de encerrar as
operações com os quadrinhos. Como haviam se ins-
pirado na linha da National, foi esta que ficou com
o grosso do público da Fawcett; a companhia irmã,
a Independent News, abocanhou grande parte do
espaço aberto nas bancas, bem como a lista de re-
vendedores.
Jack Liebowitz soube que a NAL estava procu-
rando novos distribuidores para substituir a Faw-
cett. A Independent News não tinha experiência ne-
nhuma com grandes editoras de revistas e livros
mas, graças à revista Superman, conseguia pôr seus
produtos em todos os lugares. Liebowitz passou à
frente de distribuidores maiores e convenceu Kurt
Enoch de que a Independent poderia vender livros.
Vinte anos antes, Harry Donenfeld visitava os tea-
489
tros de revista, molhando a mão dos donos, para
conseguir um ponto de venda para sua La Paree. E
lá estava a Independent, distribuindo os livros da
Signet, inclusive o de Mickey Spillane, de costa a
costa. O material podia não ser muito mais nobre
que o anterior mas, aos olhos do mundo empresari-
al, era uma escalada triunfante. A mescla de opor-
tunismo e consistência conseguida por Jack Lie-
bowitz era algo inédito no campo das revistas bara-
tas, e estava pagando dividendos colossais.
No entanto havia uma sombra pairando sobre as
vitórias de Liebowitz. Ele vivia um drama pessoal
que talvez tenha alimentado parte da ferocidade
com que construiu e adquiriu direitos de distribui-
ção. Sua mulher estava morrendo de câncer. Rose
estava na casa dos 50, ainda bem longe de aprovei-
tar aquela aposentadoria sobre a qual os dois tanto
conversavam. Liebowitz pouco falava sobre o as-
sunto fora do círculo familiar enquanto a vida de
Rose ia se apagando aos poucos no Hospital Judeu
de Long Island, que ela e Jack haviam ajudado a er-
guer. As filhas do casal, Joan e Linda, cuidavam da
mãe enquanto Jack se entregava ainda mais ao tra-
balho e nele investia mais incansável que nunca.
Quando Rose morreu, Jack lhe deu um enterro
convencional, aceitou com dignidade as condolên-
cias da família e associados, fez novas doações ao
hospital em nome da mulher e voltou ao trabalho.
As filhas tomavam conta dele quando ia para a
490
mansão de Great Neck, mas Jack passava cada vez
mais tempo no apartamento que havia comprado no
Upper East Side, onde ficava bem mais perto do es-
critório. O trabalho e as fusões foram em frente.

AO OUVIR TODAS essas histórias sobre as


manobras, conquistas e reconstrução empresarial
realizadas por Jack Liebowitz, surge a pergunta:
que fim levou o fundador da empresa? Onde estava
Harry Donenfeld?
Durante a guerra, Harry fora a parte mais visí-
vel do mundo do Super-Homem. Porém, nos anos
do pós-guerra, ele começou a sumir dos clubes no-
turnos e das conferências de distribuidores. Quando
Jack Liebowitz se tornou sócio e principal força
motriz dos negócios, fez pressão para que Harry se
afastasse. A nova National Comics e suas afiliadas
precisavam, como figura de proa, de uma imagem
mais profissional. A National se tornara uma em-
presa, já não convinha estar identificada com um
único homem, sobretudo um mascate nanico e be-
berrão. A gritaria contra os quadrinhos de 1948 au-
mentara os riscos. Liebowitz queria que as antigas
ligações com a Spicy Detective e a French Models
continuassem enterradas.
Ao deixar a ribalta, algo mudou em Harry.
Quando seu filho Irwin terminou a Faculdade Ba-
tes, em 1948, e se apresentou para ocupar um cargo
nos negócios da família, Liebowitz o encarregou de
491
assumir as tarefas de distribuição, que eram de seu
pai. Harry havia desistido das viagens, alegando
cansaço. Na época, tinha já cinquenta e tantos anos
e vinha bebendo muito havia décadas. As atenções,
o redemoinho social e o espírito de apostador dos
primeiros tempos o mantiveram na ativa mas diante
das novas realidades, ele foi se fechando num cír-
culo social cada vez menor.
“Mas não foi só a bebida”, disse Irwin. “Depois
de um tempo, ele simplesmente não fazia nada. Eu
tentava forçá-lo a sair, fazer alguma coisa, nem que
fosse só jantar fora se não estivesse se sentindo dis-
posto a nada melhor, mas ele me dizia só querer fi-
car no quarto do hotel.” Foi doloroso para Irwin se
tornar finalmente um adulto e um empresário em
Manhattan, um homem apto a entrar no mundo que
fora o mundo de seu pai e vê-lo se retirar dele aos
poucos. Irwin aproximou-se ainda mais de Jack Li-
ebowitz. E Liebowitz não fez o menor esforço para
tirar o sócio daquele marasmo. Um Harry Donen-
feld vendo televisão e jogando cartas com a amante
era a melhor alternativa possível.
Com Irwin e Peachy fora de casa, Harry não ti-
nha mais nenhum motivo para fingir que era mari-
do de Gussie nem para permanecer morando na
mansão de Woodmere. Vivia com Sunny no Wal-
dorf, em plácido conforto conjugal, vendo um cír-
culo cada vez menor de amigos mais próximos, em
sua maioria veteranos da distribuição de revistas
492
baratas acompanhados das respectivas amantes.
Mas a harmonia matrimonial talvez fosse mais apa-
rente que verdadeira. Sunny estava com mais de 40
anos e não tinha direito nenhum à fortuna dos Do-
nenfeld. Gussie era cabeça-dura, combativa e con-
tava com o apoio não só da lei como de Jack Lie-
bowitz para continuar sendo a sra. Donenfeld. Mas
Sunny já tinha mostrado que também sabia ser du-
rona. Quando Harry perdeu a energia para partici-
par dos jogos financeiros e românticos, viu-se cer-
cado por ressentimentos e exigências.
Outras forças também podem ter contribuído
para impelir Harry cada vez mais para os bastido-
res. Os velhos bandidos estavam tentando enterrar
o passado e entrar para o florescente mundo empre-
sarial dos Estados Unidos. Meyer Lansky tomara a
dianteira ao introduzir a máfia judaica nos cassinos
legais de Nevada e de Cuba, bem como em outros
ramos em que existia uma cultura empresarial mais
maleável e um fluxo clandestino de capital. As ati-
vidades mais pesadas — tráfico de heroína, extor-
são, bordéis, jogos ilegais — ficaram a cargo das
gangues sicilianas. Uma rede de negócios interliga-
dos, numa ampla gama de terrenos, vinha sendo
construída em surdina com o dinheiro da bandida-
gem judaica. Dois desses negócios iriam figurar
com proeminência no futuro da National Comics: a
Seven Arts, uma empresa de cinema fundada por
dois testas-de-ferro de Lansky, “Uncle Lou” Ches-
493
ler e Elliot Hyman e a Kinney Parking System, de
Emmanuel Kimmel, integrante da gangue do jogo
controlada pelo homem mais leal a Lansky, Abner
“Longy” Zwillman. Embora não seja possível esta-
belecer nenhum elo direto entre a Seven Arts, a
Kinney e a National Periodicals, nos primeiros tem-
pos é razoável presumir que elas se juntaram graças
a ligações existentes desde os tempos da malandra-
gem.
Outros no entanto enxergaram oportunidades no
desmascaramento dessas ligações antigas. Estes
Kefauver era um político brilhante em busca de pu-
blicidade que em 1948 conseguira o milagre de
vencer a eleição para o Senado do país, pelo Ten-
nessee, como um liberal pró-direitos civis. Relega-
do ao ostracismo pelo bloco de segregacionistas do
Sul, assim que assumiu o mandato usou de uma
tática fascinante para atrair a atenção do eleitorado
nacional ao propor a criação de uma comissão para
investigar o crime organizado. Estourar gangues
sempre fora uma causa dos republicanos, e os de-
mocratas haviam conseguido mantê-la fora da po-
lítica federal durante a longa hegemonia dos gover-
nos de Roosevelt e Truman. Eram muitas as máqui-
nas partidárias urbanas maculadas por laços com a
bandidagem para que os democratas aprovassem as
investigações. Mas, quando um senador democrata
que manipulava a imprensa de forma tão engenhosa
quanto Kefauver liderou a investida, os dribles e
494
subterfúgios se tornaram constrangedores demais.
Em junho de 1950, como presidente da Comis-
são Parlamentar Especial para Investigar o Crime
Organizado e o Comércio Interestadual, o senador
Estes Kefauver se tornou um astro televisivo. Pri-
meiro político a compreender que a televisão seria
o novo poder nos Estados Unidos, providenciou
para que os interrogatórios fossem transmitidos ao
vivo. E lá estavam, diante do país, bandidos conhe-
cidíssimos, políticos corruptos e dedos-duros. Du-
rante os primeiros nove meses de interrogatórios
intermitentes, ele e sua comissão pintaram o retrato
de uma vasta conspiração de judeus e italianos, do-
nos de grandes indústrias, que controlavam estados
inteiros e se julgavam acima da lei. As acusações
deixaram os americanos eletrizados, já que traduzi-
am o medo nacional de uma invasão estrangeira;
sem contar o mórbido fascínio pela corrupção que
há por trás dos muros da respeitabilidade. Quando
as audiências itinerantes fizeram sua última parada
programada, em março de 1951, na cidade de Nova
York, centro de tudo o que havia de mais glorioso e
mais maligno no país, mais de 10 milhões de teles-
pectadores assistiram aos trabalhos. A imprensa
apelidara a comissão de “Kefauver Show” e dava
notas a seus protagonistas — Longy Zwillman, por
exemplo, foi considerado um “sucesso telegênico”
e Lou Rothkopf, um “bocó da telinha”. Gângsteres
das comunidades judaica e italiana do país inteiro
495
se reuniam em bares para torcer por seus bandidos
prediletos, como se fosse um jogo de beisebol.
Até então, nenhum gângster tinha feito mais do
que driblar, negar e se esconder sob a Quinta
Emenda, que determina que ninguém será obrigado
a testemunhar contra si mesmo. Mas o velho herói
de Harry, Frank Costello, era orgulhoso demais
para entrar nesse jogo. Frank era um sujeito que ja-
mais aparecia em público até estar perfeitamente
barbeado, penteado e de unhas feitas. Certa vez, re-
jeitara a sugestão insistente de seu advogado para
que usasse um terno cinza mal-cortado e mal-feito
no tribunal em vez do seu impecável e costumeiro
terno azul. “Prefiro perder a causa”, disse Costello.
E naquele momento ele havia decidido olhar Ke-
fauver no olho, responder a todas as perguntas e de-
safiá-lo a fazer qualquer acusação. Sua única exi-
gência foi para que as câmaras de televisão não
mostrassem seu rosto. Não iria se transformar em
show barato para as massas. As redes encontraram
uma saída. As câmaras focalizaram as mãos de
Costello, gesticulando, tamborilando sobre a mesa,
torcendo lenços, se fechando e abrindo, lutando
para ficar calmas quando a raiva aumentava. “O
balé das mãos de Costello”, disseram os repórteres.
E, junto com a voz enfezada com que tentava se sa-
far dos ataques da comissão, elas forneceram um
dos espetáculos mais fascinantes jamais vistos na
televisão. A audiência atingiu novos picos durante
496
a semana em que Costello participou dos trabalhos,
atingindo a casa dos 30 milhões quando, encurrala-
do pelas perguntas a respeito de sua declaração de
renda, viu-se obrigado a apelar para a Quinta
Emenda. Houve um número recorde de espectado-
res e um final eletrizante para o programa. Kefau-
ver derrubara Costello.
Harry Donenfeld com certeza deve ter assistido
ao depoimento do amigo. E suas reações, tendo em
vista as reações de outros amigos e admiradores,
deve ter passado do orgulho (pela forma como o
“primeiro-ministro” da máfia estava se comportan-
do) aos risos (quando as perguntas ficaram mais di-
fíceis, Costello alegou que estava com laringite e
precisava deixar a sala), e da risada ao espanto (à
medida que Costello começou a se contradizer,
suas ligações com a Tammany Hall vieram à tona e
o deixaram bem mais evasivo). Ao ser preso por
desacato ao Senado, sob promessas do governo de
que sua situação fiscal seria investigada, perdeu a
condição super-heróica. O drama levaria ainda al-
guns anos para ser concluído, mas o poder de Frank
Costello já havia de fato acabado.
Podemos imaginar Harry cumprimentando Cos-
tello no Waldorf depois que tudo terminou, di-
zendo-lhe que havia se saído muito bem, mas por
dentro achando que talvez não fosse mais conveni-
ente ser visto falando com Frank. Harry deve ter
sentido alívio por ter entrado na legalidade no mo-
497
mento em que o fez e de ter ligações modestas de-
mais com o crime para que alguém quisesse inves-
tigar. O que ele não sabia, o que ninguém no ramo
dos comic books sabia, é que Estes Kefauver havia
contratado um psiquiatra para servir como consul-
tor da comissão, um psiquiatra que sabia como usar
a publicidade quase tão bem quanto o próprio Ke-
fauver e que desejava atrair atenção para as pró-
prias idéias, entre as quais a de que crime e violên-
cia, além de serem produtos de um punhado de ho-
mens maus, eram também produtos de uma cultura
que lhes conferia legitimidade e glamour. Para
combater o crime com eficácia, insistia Fredric
Wertham, o Senado teria que ir atrás não só das in-
dústrias que lucravam com o crime diretamente,
mas também das que o faziam indiretamente, ao se-
duzir as crianças americanas.

O CRESCIMENTO DO mercado para gibis, no


final dos anos 1940, animou muita gente. Jerry Sie-
gel deixou Cleveland, Joe Shuster e os sonhos de
ter um personagem só seu, e fechou um acordo que
lhe deu mais uma chance de ter uma carreira de
verdade. E foi nesse momento que colidiu com suas
próprias limitações.
Tinha sido uma volta curiosa às origens. A
Amazing Stories original, a mesma revista que
transformara Jerry e tantos outros em fãs incondici-
onais de ficção científica, havia sido comprada por
498
um editor de pulps chamado Ziff-Davis. Em 1946,
o editor da Amazing publicou uma carta de um lei-
tor paranóico que afirmava ter sido abduzido por
discos-voadores da civilização subterrânea de Le-
muria, o que acabou ocasionando uma mania nacio-
nal por discos-voadores e revelando um território
até então inexplorado da cultura geek — os milha-
res de pessoas que queriam acreditar de verdade na-
quilo que até então era apenas ficção barata. Por
volta de 1950, Ziff-Davis tinha dinheiro para gastar
e queria faturar com aquele boom na área dos gibis.
E contratou Jerry Siegel para dirigir sua linha de
HQs.
Siegel lançou mais de 40 novos gibis, entre
1950 e o começo de 1952. Atacou com todos os gê-
neros possíveis e imagináveis: Romantic Marriage,
Football Thrills, Kid Cowboy, G. I. Joe, Kiddie
Karnival, Weird Thrillers, Space Busters, Wild Boy
of the Congo, Famous Stars, Hot Rod King. Só os
super-heróis ficaram de fora. Houve, é verdade, a
revista He-Man, com uma capa muito semelhante
ao primeiro esboço que Joe Shuster havia feito para
o Super-Homem quase 20 anos antes, um marman-
jo musculoso, sorridente, erguendo um bandido no
alto da cabeça. Mas a He-Man só apresentava “ho-
mens de aço em combates mortais”, sem traje a ca-
ráter nem poderes especiais. Siegel não voltaria
mais àquele terreno.
Apesar de ter gastado um bocado do dinheiro de
499
Ziff-Davis, não obteve bons retornos. Contratou
Norman Saunders, um veterano das pulps, para de-
senhar suas capas. Comprou os direitos autorais so-
bre Ellery Queen e pagou a Bob Feller e a Red
Grange para que emprestassem o nome a gibis de
esportes. Também gastou dinheiro com escritores e
artistas mais que qualquer outro editor, pelo menos
é o que consta naquele meio. Mas nunca contratou
Joe Shuster. Queria que aquela fosse uma linha
contemporânea de quadrinhos e pelo visto não
acreditava que Joe pudesse ajudar.
O que só tornou os resultados finais ainda mais
estranhos e melancólicos. As revistas feitas por ele
eram canhestras, pesadonas, pareciam quase paró-
dias, e ao mesmo tempo davam a impressão de se
levar a sério demais. O que dizer sobre Lars of
Mars? Ou então de Little Al of the FBI, a respeito
de um agente federal baixinho? Ou de Crime Cli-
nic, “estrelando o dr. Tom Rogers, Psicólogo do
Presídio”? Ou do sorriso cretino pregado na cara do
herói em todas as G. I. Joe? Seria excesso de traba-
lho, pânico ou amargura o que tornava aqueles qua-
drinhos tão ruins? Siegel não teria sido o primeiro
escritor inseguro a fazer um mau trabalho precisa-
mente porque a pressão era muito intensa; tampou-
co teria sido o primeiro a dizer consigo mesmo que
só lixo é que vende bem, de modo que era melhor
dar-lhes o que desejavam. No fim, conseguiu tornar
realidade seus piores receios. Em 1953, Ziff-Davis
500
encerrou sua linha de revistas em quadrinhos.
Jerry então foi obrigado a se virar da melhor
maneira possível. Ele e Joanne já tinham uma filha,
Laura, e durante a temporada com Ziff-Davis o ca-
sal se acostumara a levar uma vida confortável em
Nova York. Com seus contatos, Jerry arrumou al-
guns trabalhos como roteirista, mas nada duradou-
ro. Ele se queixava, dizendo que Jack Liebowitz e
Harry Donenfeld o haviam posto na lista negra da
indústria dos quadrinhos. Isso poderia ser verdade
nas empresas cujas revistas eles distribuíam, mas
não se aplicaria a toda a indústria. Naquele terreno
hostil e circunscrito, havia um bocado de gente dis-
posta a contratar um inimigo de Jack Liebowitz.
Era Jerry Siegel que eles não queriam.
Em 1955 Jerry acabou na Charlton, uma empre-
sa gráfica de Connecticut que produzia e distribuía
partituras, revistas eróticas e quadrinhos, e que pa-
gava metade do que pagavam as empresas de Ma-
nhattan. Contrataram Jerry para criar um novo gru-
po de super-heróis. E Jerry lhes deu Nature Boy,
Nature Man e Nature Girl; e também Mr. Muscles,
um lutador profissional que combatia o crime ao
lado da Miss Muscles e do Kid Muscles. “Demons-
trações de primeira, eletrizantes, de força física e
poder” eram a promessa da revista. Assim como a
He-Man, parecia mais um daqueles retornos à idéia
do Super-Homem, um colosso carnavalesco que
atira gente de um lado para o outro. Não funcionou.
501
As novas séries foram canceladas e Jerry Siegel
teve de procurar outra coisa.

QUANDO SEGUIMOS a história de Joe Shus-


ter durante a década de 1950, ele parece se contrair
como aquele ponto branco numa tela de televisão.
Durante um ano ou dois, tudo indica que não fez
nenhuma história em quadrinhos. Em algum mo-
mento por volta de 1951 ou 1952 parece ter conse-
guido alguma coisa na Charlton — não na linha de
gibis, mas na de revistas eróticas. Existem algumas
tiras cômicas do gênero em revistas baratas feitas
pela Charlton e outras editoras durante o início da
década de 1950, na maior parte pretextos para gra-
cejos eróticos que de fato parecem uma versão des-
leixada da arte de Joe Shuster. Dá para ver alguns
poucos vestígios de sua anatomia exuberante. Po-
rém Joe nunca admitiu ter feito esse trabalho e nin-
guém sabe ao certo se é mesmo dele ou não. Em
1954, Joe Shuster fez seu último trabalho de verda-
de em quadrinhos — alguns números de um gibi de
crime. Depois disso, seu nome desaparece dos
créditos para sempre. Existem boatos de tiras eróti-
cas para as revistas masculinas publicadas por Mar-
tin Goodman e de trabalhos para uma revista de
quinta categoria chamada Night of Horrors. Depois
até mesmo os boatos desaparecem.
Os pais de Joe morreram. A irmã se casou e foi
morar no Novo México. Joe e o irmão se mudaram
502
para uma casa menor, em Forest Hills. Frank arran-
jou trabalho como desenhista num escritório de ar-
quitetura e sustentava os dois. Joe guardou um livro
de recortes dos seus tempos de Super-Homem e
passava o tempo escutando discos no quarto. Suas
músicas preferidas eram aberturas de óperas, cur-
tas, apaixonadas e trágicas.

EM 1952, ESTES KEFAUVER concorreu à in-


dicação para candidato à presidência pelo Partido
Democrata. Ganhou em 12 primárias, o suficiente
para torná-lo um sério concorrente numa próxima
ocasião. Precisava de uma nova plataforma para
manter a atenção do público, e optou pela delin-
quência juvenil, um tema que preocupava o país
quase tanto quanto o crime organizado. Kefauver já
havia explorado a questão em 1950, e até mesmo
havia discutido o assunto com o psiquiatra que se
tornara uma figura nacional ao ligar o crime juvenil
aos quadrinhos, Fredric Wertham.
Decepcionado porque nenhum estado aprovara
leis destinadas a manter os perniciosos comic bo-
oks longe das crianças, sobretudo por causa do veto
de Thomas Dewey à lei aprovada pelo legislativo
de Nova York, Wertham tinham começado a escre-
ver um livro chamado Seduction of the Innocent, no
qual expunha todos os seus argumentos contra os
quadrinhos, ilustrados pelas imagens mais horren-
das que conseguira encontrar. De estilo fluente e
503
conteúdo alarmista, muitas vezes melífluo, consta
que o livro foi na verdade escrito por Gershon Leg-
man, que chamara Harry Donenfeld de pornógrafo
em seu próprio livro, Love and Death. Os capítulos
tinham títulos como “Eu Quero Ser um Maníaco
Sexual”, “Os Aliados do Demônio”, e “Homicídio
em Casa”. Seduction of the Innocent é cheio de
exageros e causalidades forçadas — o livro cita o
caso de uma menina de 10 anos de idade que roda-
va pelo cais à noite vendendo sexo, e diz que os
culpados eram os quadrinhos de crime —, mas o
que faltava em termos de ciência e raciocínio era
mais que compensado pela simples feiura dos
exemplos escolhidos. Quando o livro saiu, em
1954, pouco tempo antes da subcomissão de Kefau-
ver começar sua investigação dos quadrinhos, seu
conteúdo chocou os pais e aterrorizou as editoras.
A tragédia do conflito entre Wertham e os gibis
é que ele estava genuinamente preocupado com os
garotos pobres dos grandes centros urbanos, garo-
tos que haviam nascido no mesmo mundo dos edi-
tores e criadores dos quadrinhos. Era um judeu de
esquerda cujas opiniões políticas e sociais coincidi-
am com muitas das opiniões dos homens cujo tra-
balho atacava. Mas Wertham tinha antecedentes tão
diferentes, vinha de uma classe tão diferente, que
não conseguia ver as revistas em quadrinhos da ma-
neira como seus criadores e leitores as viam. Nasci-
do Friedrich Wertheimer, na Alemanha, em 1895,
504
era um ano e meio mais velho que Harry Donen-
feld, mas estava a um mundo de distância. A famí-
lia, muito bem de vida, era instruída e não seguia
nenhuma religião. Passando os verões em Londres,
se enfronhara nas idéias socialistas do fabianismo e
acabara indo estudar medicina no King’s College.
A Primeira Guerra Mundial o separou da família e
estilhaçou a Europa que ele conhecia, levando-o a
se preocupar com a natureza e as causas da violên-
cia. “As pessoas gostam de ser pacíficas”, disse
inúmeras vezes durante a vida. “Não há motivo
para supor que a violência é característica do com-
portamento humano.”
Wertheimer se especializou no estudo do cére-
bro e nas bases fisiológicas do comportamento, e
trabalhou na clínica de Emil Kraepelin, a mesma
que levou à compreensão da psicose e de suas cau-
sas orgânicas. As complexidades da arte, da cultura
e da experiência individual nunca seriam o forte de
Wertheimer. No entanto ele se interessava por uma
idéia secundária de Kraepelin, uma “psiquiatria
comparativa”, que levava em conta as inflexões ét-
nicas da loucura e procurava as forças sociais e cul-
turais que a afetavam. Essa idéia, sobretudo porque
poderia estar relacionada à violência, acompanhou-
o quando deixou a Alemanha, na década de 1920,
para assumir seu posto naquela imensa e louca e vi-
olenta experiência social do outro lado do Atlântico
chamada Estados Unidos da América.
505
Tendo sido avisado de que os americanos não
gostavam de nomes alemães, mudou o seu para
Fredric Wertham. Em termos de cultura entretanto
permaneceu bastante germânico: nunca perdeu o
forte sotaque e nunca desenvolveu o menor gosto
pela cultura de massa dos Estados Unidos. A visão
que tinha da sociedade americana foi certamente
influenciada por seu trabalho. Durante a década de
1930, firmou-se como um dos principais psiquia-
tras forenses de Nova York, dava pareceres nos ca-
sos mais sensacionalistas de assassinato e criou a
primeira clínica de exame psiquiátrico para réus em
território americano. Envolveu-se com a comunida-
de, cada vez maior, de intelectuais alemães de es-
querda fugidos do nazismo e conheceu suas idéias
sobre a cultura e a selvageria modernas. Quem
mais o impressionou foi Theodor Adorno, um jo-
vem musicólogo e filósofo de Frankfurt.
Adorno era outro judeu culto e não-praticante.
O pai era um comerciante de vinhos chamado Wie-
sengrund; Theodor usava o sobrenome da mãe,
uma cantora de ópera italiana. Na Europa, havia
sido parte de florescente reunião de artistas de van-
guarda e filósofos sociais de ascendência judaica,
companheiro de Arnold Schoenberg, Alban Berg,
Walter Benjamin e Herbert Marcuse. Todos eles
haviam sido expulsos de sua terra natal, e todos
eles tentavam descobrir que forças eram essas, ca-
pazes de levar uma nação civilizada à loucura.
506
Quando Fredric Wertham o conheceu, Theodor
Adorno tinha acabado de lançar sua crítica à “in-
dústria cultural”. A arte e o drama produzidos em
massa, dizia Adorno, têm por objetivo despertar
paixões e depois fornecer uma resolução falsa e re-
confortante que deixa o consumidor com uma sen-
sação de bem-estar incompatível com as realidades
da vida. Isso afasta as pessoas da arte verdadeira e
individualizada, que provoca desconforto e faz pen-
sar. Embora o lucro talvez seja o único objetivo
claro da indústria, seu efeito era o do engodo em
massa, que induzia as pessoas à indiferença política
e as tornava vítimas perfeitas do capitalismo e do
fascismo.
As idéias de Adorno conduziram os pensamen-
tos de Wertham para uma direção diferente, e que
não era a melhor para um pensador com seus ante-
cedentes e suas inclinações. Começou a ver os pro-
dutos da “indústria cultural” como elemento inte-
grante da vida dos criminosos violentos que estuda-
va; porém sua compreensão de filmes, revistas ba-
ratas e quadrinhos era limitada pelos preconceitos
da elite cultural européia de onde viera e por um
entendimento demasiado literal do saber científico
em que se destacava. Uma vez que considerava os
entretenimentos de massa não como produtos racio-
nais mas como produções mecânicas, acreditava
que seus efeitos tinham de ser mecanicistas: a vio-
lência dos quadrinhos obrigatoriamente desencade-
507
ariam violência no leitor. E, assim como Adorno,
acreditava que as massas eram muito mais vulnerá-
veis a essa impostura irracional que as classes ins-
truídas. Essa foi a contribuição generosa e infeliz
dessa intelectualidade de esquerda: mesmo um
marxista como Adorno e um médico compassivo
como Wertham acreditavam que as multidões pre-
cisavam de uma elite instruída para libertá-las das
armadilhas da cultura de massa. Essa crença os le-
vou à certeza de ser sua interpretação do entreteni-
mento de massa mais válida que as interpretações
dadas por aqueles que faziam e consumiam tal en-
tretenimento. Foi essa crença que distorceu a leitura
que Wertham fez dos quadrinhos, assim como vem
até hoje distorcendo o resultado das pesquisas aca-
dêmicas sobre os efeitos dos veículos de comunica-
ção.
A Primeira Guerra Mundial levara Wertham a
se preocupar com a violência. A Segunda o trans-
formou num ativista. Começou a trabalhar com cri-
anças em ambientes violentos, sobretudo com as
mais brutalmente exploradas pela sociedade. Estu-
dou a saúde mental de alunos de escolas racialmen-
te segregadas; os dados que forneceu a Thurgood
Marshall e seus colegas tiveram um papel nos pro-
cessos judiciais que acabaram com a educação “se-
parada mas igual” no país. Com o apoio dos ativis-
tas de direitos humanos mais importantes de Nova
York, organizou uma clínica psiquiátrica gratuita
508
no Harlem que se tornou um modelo em serviços
psiquiátricos para pessoas pobres. Foi nessa clínica
que os quadrinhos se tornaram para ele uma causa
pessoal.
“Comecei a notar”, disse Wertham, “que toda
criança delinquente que eu tratava lia esses chama-
dos ‘gibis’.” Como já ressaltaram os críticos do psi-
quiatra, uma vez que 90% das crianças americanas
nos anos 1940 se diziam leitoras regulares dos gi-
bis, e uma vez que era mais provável pertencer a la-
res de maior instrução as que não consumiam esse
tipo de literatura, ao contrário dos pacientes psiqui-
átricos de uma clínica gratuita, era inevitável en-
contrar entre os casos de comportamento delin-
quente maioria absoluta de leitores de quadrinhos.
Wertham porém viu aquilo que esperava ver. Quan-
do encontrava uma cena horrenda de um suicídio
por enforcamento num gibi, na mesma hora traçava
um paralelo com suicídios semelhantes cometidos
por jovens que conhecia. Quando via Batman mo-
rando com seu jovem protegido Robin, enxergava
nisso um incentivo à homossexualidade. E, quando
via um herói usando força física, para ele, era fas-
cismo.
“O Super-Homem (com um grande S no unifor-
me — e devemos, acho, agradecer o fato de ele não
exibir um S.S.) necessita de um fluxo interminável
de novos sub-homens, criminosos e gente de ‘as-
pecto estrangeiro’ não só para justificar sua exis-
509
tência como também para torná-la possível”, disse
ele. “Há muito que o Super-Homem é reconhecido
como um símbolo de violenta superioridade de
raça. O Super-Homem da televisão, que parece um
misto de tenor de ópera sem a armadura e atleta
amador saído de anúncio de revista de saúde, não
tem só ‘poderes sobre-humanos’; ele pertence, de
forma explícita, a uma ‘super-raça’.”
Não é de admirar que ninguém no ramo da HQ
tenha sido capaz de falar de Wertham com algo
além de raiva e incredulidade, ou que tenha feito ao
menos um esforço simbólico para admitir as boas
intenções dele. Wertham os chamara de nazistas: a
Jerry Siegel, Joe Shuster, Harry Donenfeld, Mort
Weisinger, Jack Schiff, Alvin Schwartz, Jack Lie-
bowitz, que usou o dinheiro que o Super-Homem
lhe rendera para construir um hospital judeu e doar
milhares de dólares a Israel e a B’nai Brith — aos
criadores do Super-Homem ou aos que trabalhavam
com o herói todos os dias. E às centenas de outros
no ramo que haviam criado o mesmo tipo de fanta-
sia. Jack Kirby, que fora para a França lutar em vez
de ficar desenhando cartazes de propaganda. Bernie
Klein, o melhor amigo de Jerry Robinson, que mor-
rera combatendo os nazistas em Anzio. E lá estava
“Fredric Wertham”, que não contava a quase nin-
guém que era judeu, dizendo que o Super-Homem
devia trazer um “S.S.” estampado no peito. Wer-
tham teria dito que os judeus que faziam quadri-
510
nhos estavam brincando de fascistas apenas pelos
lucros, mas não: as fantasias desses homens eram
as fantasias dos verdadeiros judeus, eram os deva-
neios de garotos que tinham tido de aguentar, por
serem judeus, os pogroms russos e os socos irlan-
deses.
Em 1953, Wertham foi nomeado conselheiro
psiquiátrico da Subcomissão Judiciária da Comis-
são Parlamentar sobre Delinquência Juvenil. A sub-
comissão prestou muito mais atenção na questão de
drogas, ações sociais, estilos de educação familiar e
procedimentos policiais do que na influência dos
veículos de comunicação, e se concentrou muito
mais na televisão do que nas revistas em quadri-
nhos. Porém para a indústria editorial, e para os fãs
que até hoje não conseguem dizer os nomes “Ke-
fauver” e “Wertham” sem veneno na voz, a investi-
gação toda se resumiu aos três dias de maio de
1954 em que a subcomissão foi a Nova York exa-
minar os quadrinhos. Nenhum editor ou criador da-
quelas revistinhas suspeitas foi chamado a compa-
recer. Wertham iria falar na tarde do primeiro dia,
para resumir o que tinha acabado de escrever em
seu livro. O pesquisador da subcomissão iria dar
seu parecer sobre a indústria e seus leitores. Teste-
munhos favoráveis do mundo das tiras de jornal e
do círculo de gibis decentes publicadas pela Dell
iriam abrir uma grande distância entre si e aquelas
tenebrosas editoras de quadrinhos de crime e de
511
horror. E poderia ter sido apenas uma parada rápida
da subcomissão, com resultados que mal teriam
chegado às páginas internas dos jornais, não fosse
por Bill Gaines.
Todo mundo do ramo sabia que era melhor não
depor. Eram de uma geração que preferia ficar lon-
ge dos holofotes. Haviam visto o que Kefauver fi-
zera com Frank Costello. Sabiam que o melhor
mesmo era continuar fazendo o que faziam e torcer
para que a tempestade amainasse logo. Mas Bill
Gaines pediu para depor.
Em 1954, Bill estava em fase de maré cheia.
Além de seus quadrinhos de terror serem os melho-
res e os mais falados do gênero, tinha acabado de
marcar um tremendo tento comercial com uma re-
vista chamada Mad. Essa revista era fruto da imagi-
nação de Harvey Kurtzman, o grande satirista da
gangue de Gaines, cujos gibis de guerra lhe vale-
ram a censura do exército. Vendo que os quadri-
nhos de terror ganhavam um número crescente de
fãs apaixonados, graças em grande parte ao humor
de mau gosto de suas páginas editoriais e de seus
narradores fictícios (os sarcásticos Crypt Keeper,
Vault Keeper e Old Witch), Kurtzman sugeriu uma
revista cômica, em quadrinhos, cheia de paródias
de outros gibis, tiras e filmes. A Mad foi a primeira
flor plenamente desabrochada dos geeks, uma re-
vista que se vangloriava de não ter o menor valor,
produzida pela “turma de idiotas de sempre”, com
512
as distorções e exageros habituais, chafurdando em
todos os excessos tanto dos quadrinhos como do
mundo falso e exaltado dos adolescentes que possi-
bilitava a existência desses mesmos quadrinhos. A
Mad era uma revista engraçada, de uma intensidade
chocante, criada por jovens que enxergavam o lixo
que era, mas que mesmo assim a amavam, jovens
que estavam inventando algo inimaginável e pro-
fundamente inaceitável para a geração de seus pais.
Não eram “humoristas”, mas palhaços de uma
agressividade selvagem, caótica; eram Will Elder,
Wally Wood, Jack Davis e Kurtzman.
A Mad começou devagar, mas no quarto núme-
ro trouxe uma paródia que mexeu com toda uma
geração de leitores: uma condenação ampla, cruel e
sexualmente explícita do Super-Homem. Uma vez
mais, e por acaso total, Jerry Siegel e Joe Shuster
tinham mudado a paisagem cultural. A Mad vendeu
mais de 1 milhão de exemplares e foi adotada ins-
tantaneamente por uma geração que até então não
sabia o quanto andava louca para rir daquele jeito.
Todo um estilo de rebeldia cômica, debochada,
pornográfica e espicaçante surgiu dela. Entre aque-
les que se disseram influenciados pela Mad estão
Lenny Bruce, Hugh Hefner e Robert Crumb.
E foi assim que Bill Gaines se tornou um herói
para milhares de garotos espertos, inteligentes e re-
primidos das grandes cidades, das pequenas cida-
des e dos subúrbios do país, que sabiam que esta-
513
vam sendo ludibriados mas não entendiam bem
como, até que a resposta saltou das prateleiras das
bancas. “Hu-há!”, diziam eles, imitando a língua
estropiada que Harvey Kurtzman usava, misturando
iídiche e inglês. “Basta, agora! Xiu!” “Fãs-Vicia-
dos”, assim se autodenominavam. Foram eles que
formaram os primeiros fã-clubes, que organizaram
as primeiras convenções e que abriram os primeiros
negócios de envio postal de números atrasados. Fo-
ram eles que formaram uma frente ruidosa para de-
nunciar os pudicos e mentirosos que atacavam seus
quadrinhos.
Gaines achou que podia ganhar a briga com os
censores. Primeiro procurou outras editoras e pro-
pôs a formação de uma frente. Poderiam depor na
subcomissão, poderiam levar especialistas para de-
fender os quadrinhos ou enfraquecer os argumentos
de Wertham. Todas as editoras lhe disseram para
esquecer o assunto. Então Gaines assumiu tudo so-
zinho. Declarou à subcomissão que desejava falar.
Mais tarde recordaria: “Achei de fato que iria aca-
bar com a vida daqueles miseráveis.”
Wertham estava presente no dia em que Gaines
foi depor. Boa parte do que disse foi tirada do seu
livro, mas uma parte do pronunciamento parecia ter
Gaines como alvo direto. A Crime SuspenStories
havia publicado uma história chamada “O Açoita-
mento”, sobre um racista que reúne os amigos para
matar o garoto mexicano com quem a filha está na-
514
morando; no fim, o sujeito acaba matando a menina
em vez do mexicano. Obviamente a intenção era
ser uma história anti-racista, ou pelo menos uma
história com um final sensacionalista dentro do fi-
lão anti-racista. Wertham porém enfatizou alguns
trechos, fora de contexto, e martelou na questão do
uso que a história fazia da palavra “spick”, termo
pejorativo para designar porto-riquenhos e mexica-
nos. “Hitler era um principiante comparado à in-
dústria dos quadrinhos”, declarou ele. “Ela ensina
aos jovens o ódio racial já desde os 4 anos de idade,
antes que tenham aprendido a ler.”
Gaines ouvia, fumegando. E também desmaian-
do. Estava tomando Benzedrine, em grandes quan-
tidades para perder peso, mas com toda certeza
também para aumentar sua capacidade de produ-
ção. Esse remédio era uma panacéia no início da
década de 1950, receitado para um número enorme
de homens da classe média que se queixavam de
cansaço ou excesso de trabalho. Gaines havia toma-
do seu comprido pela manhã, quando deveria de-
por, mas os primeiros depoimentos ultrapassaram o
tempo previsto e ele foi transferido para o período
da tarde. Fez seu pronunciamento muito bem, com
uma defesa beligerante da inteligência do público
jovem. E então vieram as perguntas.
Um dos integrantes da subcomissão perguntou
se haveria limites para o que Gaines estava disposto
a publicar. Gaines respondeu: “Meus únicos limites
515
são os do bom gosto.” Ao que Kefauver em pessoa
ergueu uma cópia do tamanho de um pôster da capa
de Johnny Craig — a que mostrava a cabeça dece-
pada de uma mulher, com saliva escorrendo da
boca. “O senhor acha que isso é de bom gosto?”,
perguntou ele. Gaines disse: “Acho, sim senhor,
para a capa de um gibi de terror.” E foi mais além:
“Uma capa de mau gosto, por exemplo, seria aque-
la em que a cabeça estivesse um pouco mais alta,
de tal forma que daria para ver o sangue escorrendo
dela, e a posição do corpo um pouco mudada, de
forma a deixar visível o pescoço sangrento.”
Dali em diante, as coisas foram de mal a pior.
Houve perguntas a respeito de uma piada em forma
de anúncio que ele publicara em seus gibis, dizendo
que os adversários dos quadrinhos eram comunis-
tas. Gaines estava desabando. “Senti que ia desmai-
ar a qualquer momento”, disse. “Estavam me cri-
vando de perguntas e eu não conseguia encontrar as
respostas.” Saiu da sala de audiência, onde achava
que “iria acabar com a vida daqueles miseráveis”,
zonzo.
No dia seguinte, seu depoimento estava na pri-
meira página do New York Times. Sua idéia de
“bom gosto” ganhou os telejornais da noite, junto
com a cabeça decepada de Craig, e foram ambas
expostas na telinha para todos verem. Gaines ficou
de cama dois dias, com dor de estômago. Sabia que
dera grande contribuição à causa de Fredric Wer-
516
tham.
EM 1954, com as violentas investidas da TV e
do livro em brochura, as vendas das revistas em
quadrinhos começaram a cair. Também contribuí-
ram para prejudicar os negócios o advento dos su-
permercados e o concomitante desaparecimento de
muitos pequenos armazéns e bancas de rua, uma
vez que os grandes supermercados davam pouca
atenção a mercadorias daquela espécie. A esperan-
ça da indústria de prosperar e de se tornar um im-
portante veículo de comunicação no país dependia
tanto da capacidade de oferecer o que a televisão
não podia como do poder de continuar a atrair o pú-
blico adulto. Também era necessário fazer dos co-
mic books um item essencial, e não apenas uma
compra do impulso.
O livro Seduction of the Innocent e a comissão
parlamentar acabaram com essa esperança. Mais do
que nunca, os quadrinhos ficaram malvistos. Sem-
pre tinham sido considerados uma leitura vagabun-
da. Agora eram uma leitura vagabunda e deprava-
da. Cidades e estados de todo o país introduziram
uma nova leva de leis para controlar o conteúdo
dos quadrinhos, grupos de cidadãos pressionaram
os revendedores para devolver os pacotes de gibis
sem abri-los e os atacadistas suspenderam os pedi-
dos. Para se salvar, as editoras sabiam que teriam
de instituir e impor um severo código de autocensu-
ra, capaz de recuperar a aprovação dos grupos cívi-
517
cos. O que significava em primeiro lugar que os
quadrinhos iriam poder mostrar ainda menos que a
televisão e, em segundo, que todas os comic books
teriam de ser feitos para o público infantil.
A Associação Nacional de Revistas em Quadri-
nhos (Comics Magazine Association of America),
formada com o objetivo de criar o novo código de
autocensura da indústria, Comics Code Authority,
escolheu John Goldwater, da Archie Comics, para
ser o presidente e Jack Liebowitz como vice-presi-
dente. Nem a Archie nem a National tiveram de
mudar muita coisa, uma vez que o código aprovado
tinha como base as diretrizes internas que as duas
editoras já vinham seguindo. Outras não tiveram
tanta sorte. As restrições sobre a forma de retratar o
crime iriam sufocar quase todas as histórias do gê-
nero publicadas por Lev Gleason — sem falar no
fato de que a palavra “crime” não poderia mais
aparecer com destaque na capa, liquidando assim,
com a Crime Does Not Pay. A empresa de Gleason
fechou as portas. Uma interpretação ampla da regra
de que “temas românticos não deverão ser tratados
de forma a estimular as emoções mais baixas e in-
fames” eliminou grande parte do público feminino.
A Harvey Comics, que havia sido pioneira nos qua-
drinhos românticos e que pegara carona na onda
dos gibis de crime e de terror, reduziu sua produção
à linha de histórias com Gasparzinho, o fantasma
camarada, e seus amiguinhos. Martin Goodman
518
cortou o orçamento dedicado aos quadrinhos e des-
viou os recursos para suas revistas masculinas, a
Stag e a Swank. Editoras menores, mais frágeis,
simplesmente sumiram do mapa.
A diretriz sobre a palavra “crime” se encarregou
de acabar também com a Crime SuspenStories de
Bill Gaines, e proibições de termos como “horror”,
“terror” e quase tudo o mais que dava sentido àque-
la espécie de quadrinhos (“pavor... crimes horren-
dos... ilustrações macabras, repelentes, medonhas...
zumbis, torturas, vampiros e vampirismo, necrófa-
gos, lobisomens, canibalismo”) se encarregaram do
resto. Gaines lutou contra os aspectos mais restriti-
vos do código com unhas e dentes, mas todos os
colegas de seu pai o viam como o fedelho ingrato
que havia ferrado a todos. “Jack Liebowitz me
odeia porque acha que fui eu quem arruinou o ne-
gócio”, queixou-se Gaines. Após uma breve e de-
sastrosa experiência com quadrinhos que seguiam o
código à risca, como Psychoanalysis, Gaines jogou
a toalha. Ele transformou a Mad numa revista de
formato grande, em preto-e-branco, vendável nas
prateleiras ao lado das demais revistas para adultos,
e encerrou toda a produção de quadrinhos. A Mad
começou a vender mais ainda no novo formato, e
Gaines não precisou mais brigar com a velha-guar-
da.
Em 1956, a venda de comic books já havia en-
colhido para a metade do que fora cinco anos antes.
519
Escritores e artistas estavam seguindo outros ru-
mos. No início do ano seguinte, veio o golpe de mi-
sericórdia. Na conclusão de um processo movido
pelo Departamento de Justiça, a American News
Company, que já detivera o monopólio sobre a dis-
tribuição de revistas e que continuava sendo a mai-
or distribuidora do ramo, foi considerada culpada
de impedir a livre concorrência e recebeu ordens
para se desfazer das bancas que possuía. Seu prin-
cipal cliente, George Delacorte, anunciou que iria
procurar uma nova distribuidora para a produção da
Dell Comics e para as brochuras. Os donos da
American calcularam o efeito que isso teria em
seus rendimentos. Depois examinaram o valor das
propriedades imobiliárias em New Jersey onde ti-
nham sua sede. Liquidaram a empresa e venderam
o terreno. A empresa que crescera com a explosão
das revistas baratas, no início do século XX, desa-
parecia sem deixar rastro em meio ao crescimento
suburbano da década de 1950.
De uma só tacada, metade das editoras que res-
tavam perdeu sua distribuidora. A maioria fechou
as portas. Martin Goodman estava prestes a encer-
rar suas atividades quando Jack Liebowitz o procu-
rou, dizendo que a Independent estava disposta a
distribuir seus produtos. Goodman tinha adquirido
fama por soltar um gibi atrás do outro quando o
mercado estava aquecido, até expandir demais e ser
obrigado a fechar algumas de suas várias empresas.
520
Liebowitz o pôs numa dieta severa, de apenas oito
revistas por mês mais as revistas masculinas. Ele
queria previsibilidade industrial e controle. O qua-
dro de funcionários de Goodman foi reduzido e res-
taram apenas Stan Lee, seu irmão Larry e um pu-
nhado de artistas freelance.
Liebowitz tinha mais dois negócios para con-
cluir no caos daquele momento. Um deles era a
Mad. Gaines gostaria de ver a distribuição de sua
revista nas mãos de qualquer um, menos de Jack
Liebowitz, mas a alternativa era fechar o negócio
de vez. Ele esperava uma certa zanga da parte de
Liebowitz, mas Jack era um empresário. “Eles me
ofereceram um excelente contrato, o melhor que se
poderia esperar, e nem uma palavra sobre o passa-
do”, disse Gaines. A Mad prosperou e a Indepen-
dent News acrescentou revistas de formato grande
a sua lista de distribuições.
Liebowitz também fechou negócio com uma re-
vista masculina chamada Playboy. Ela estava indo
bem, muito melhor que as demais revistas eróticas,
embora ainda confinada a um mercado limitado.
Jack no entanto viu algo mais na determinação de
Hugh Hefner de continuar tentando fazer a revista
crescer, ser mais “séria”, mais elegante. Hefner
reinvestia parte dos próprios rendimentos na Play-
boy, uma prática inédita entre os editores de revista
de mulher pelada. Ele acreditava na Playboy da
mesma forma como Henry Luce acreditara na
521
Time, ou tanto quanto Siegel e Shuster haviam
acreditado nos quadrinhos, e Liebowitz sabia que
era desse tipo de devoção que vinha o crescimento
a longo prazo. Espichou o orçamento para comprar
os direitos de distribuição da Playboy.
A Independent News estava de novo no ramo da
pornografia, mas de uma maneira tão diferente e
num mundo tão diverso que o fato servia apenas
para lançar mais luz na vasta distância existente en-
tre os Estados Unidos de 1936 e os Estados Unidos
de 1956. Jack Liebowitz havia aprendido a sobrevi-
ver em meio aos mascates da Depressão. E se tor-
nara um dos grandes mestres da eficiente indústria
cultural da nação mais rica do mundo.

13
——————————
SÓCIOS SILENCIOSOS

QUANDO A INDÚSTRIA DOS GIBIS entrou


em colapso, os quadrinistas que estavam no ramo
desde o começo já estavam na casa dos 40. Todos
tinham mulher e filhos para sustentar e prestações
da casa própria para pagar. A maior parte, inclusive
muitos dos melhores, saiu em busca de novas opor-
tunidades. Muitos foram trabalhar em publicidade,
onde o grau de liberdade e controle sobre o próprio
trabalho era bem menor; mas o mundo tinha mais
respeito pelos homens que desenhavam anúncios de
522
carro do que pelos que criavam super-heróis. Jerry
Robinson deu aulas de desenho, ilustrou livros e se
dedicou a fazer charges políticas. Will Eisner pro-
duzia manuais técnicos para o exército americano.
Jack Cole vendia cartuns para a Playboy e, por um
curto período, antes que a depressão o dominasse e
ele pusesse fim à própria vida, aproveitou as benes-
ses oferecidas a quem trabalhava numa revista de
verdade. Quando lhe perguntavam o que fazia an-
tes, Cole costumava dizer que tinha passado “11
anos fazendo quadrinhos”, sem nunca mencionar
que fora ele o criador do Homem-Borracha. Com a
morte dos quadrinhos de gângster, Charlie Biro foi
trabalhar com storyboards para comerciais de tele-
visão. Certa vez Stan Lee ligou para ele, perguntan-
do o que era preciso para os gibis voltarem a ser o
que eram, e ele disse: “Eles precisam de Charlie
Biro, só que não vou voltar”.
Já o velho amigo e parceiro de Biro, Bob Wood,
não aceitou tão bem o colapso da indústria. Wood
sempre fora um bêbado com tendências violentas,
mas depois que perdeu o emprego regular a situa-
ção piorou sensivelmente e ele mergulhou na farra.
Até o dia em que a polícia o encontrou num quarto
de hotel, junto com o cadáver de uma mulher. De-
pois de passar 11 dias bebendo com ela, uma dis-
cussão da qual nem tinha mais lembrança o levara a
espancar a companheira até a morte. Ninguém do
ramo foi visitá-lo na prisão. Era uma época, um
523
mundo, que eles queriam esquecer.
Jack Kirby ainda aguentou por mais uns tem-
pos, mas o negócio rendia tão pouco que ele e Joe
Simon resolveram dissolver uma parceria de 17
anos e seguir caminhos independentes. Kirby criou
uma tira de jornal junto com Jack Schiff, seu editor
na National — até editores de carreira queriam pu-
lar do barco antes que afundasse — , mas o projeto
acabou numa briga pelos direitos autorais e Kirby
saiu achando que a National não o contrataria mais.
Por volta de 1959, seu único trabalho regular vinha
de Stan Lee, que continuava presidindo o que so-
brara da linha Marvel. Os salários haviam caído
bastante e, para poder sustentar a mulher e os dois
filhos, Kirby tinha que produzir um número cada
vez maior de páginas, o que significava passar de
12 a 14 horas por dia sentado numa cadeira, dese-
nhando sem parar, oito, nove, até dez páginas por
dia.
O próprio Stan Lee dedicava a maior parte do
tempo a escrever artigos para revistas masculinas,
livros de piadas de golfe e, muito de vez em quan-
do, uma tira cômica para jornal. Stan valorizava so-
bretudo a capacidade que tinha Kirby de inventar
histórias num piscar de olhos. O tempo era tão cur-
to que Stan entregava apenas uma esquematização
do enredo aos artistas, e depois incumbia o irmão
caçula, Larry, de improvisar diálogos que combi-
nassem com os desenhos entregues. O resultado
524
eram faroestes e mistérios insípidos, repetitivos e
sem graça, com monstros de nomes como Romm-
bu, Bombu e Gomdulla. Porém esses quadrinhos
pagavam as contas; Stan Lee e Jack Kirby aguenta-
ram firmes enquanto esperavam uma brecha para se
afastar do ramo.

JERRY SIEGEL TAMBÉM tentou fazer a pas-


sagem para a publicidade. “Caro Sr. Frolick”, dizia
uma carta para um executivo da propaganda. “Des-
de que criei o Super-Homem para revistas em qua-
drinhos e tiras de jornal que acredito no potencial
dos personagens de cartum para anunciar produtos.
Agora, com o sucesso dos encantadores persona-
gens Piel, acredito que está justificada minha cren-
ça. Se houver algo com que eu possa contribuir
para a sua agência, por favor, entre em contato.” A
carta fora datilografada às pressas, numa máquina
em que a fita já estava bem gasta, com letras rebati-
das e correções feitas à mão. A impressão é que
Jerry não conseguira pôr muito empenho naquilo.
O tal senhor Frolick guardou a carta como lembran-
ça para os filhos, mas não se deu ao trabalho de res-
ponder.
Jerry vendia algumas piadas para as revistas
Panic e Cracked, imitações da Mad, mas o que ga-
nhava não era suficiente para sustentar a mulher e a
filha pequena em Nova York e enviar a pensão da
ex-mulher e do filho, que continuavam em Cleve-
525
land. Joanne o incentivava a batalhar para voltar
aos quadrinhos, mesmo que isso significasse um re-
torno à National. Jerry dizia que seria inútil. Mas
Joanne jamais permitiria que ele se entregasse ao
desespero. Não era o tipo que alimentava dores e
ressentimentos, como Bella ou a mãe de Jerry. A
antiga Jolan Kovacs guardara em si uma lealdade
húngara rancorosa, era capaz de se fixar num inimi-
go e sobre ele descarregar o chicote. Joanne já vi-
nha atazanando o pessoal da National intermitente-
mente havia anos. Quando a crise financeira aperta-
va — sem dinheiro para as fraldas e com o aluguel
do apartamento de um quarto atrasado — procura-
va a editora de Superman e exigia ajuda. Chegou
mesmo a dizer que Jerry andava preparando cartas
aos jornais, contando o seu lado da história. E o di-
nheiro vinha, 100 daqui, 200 de lá. Porém a situa-
ção piorou e houve um momento em que 100 ou
200 dólares não adiantavam mais. “Isso é tudo cul-
pa de Jack Liebowitz”, ela insistia. “Ele lhe deve
algo.” Quando Jerry se recusou a ir procurar Jack
Liebowitz, Joanne resolveu ir ela mesma.
Jack concordou em vê-la, mas não concordou
em dar trabalho a Jerry. Já fizera por Jerry tudo o
que a lei o obrigava a fazer e mais um pouco, disse
ele, e Jerry retribuíra com um caro e embaraçoso
processo. No entender de Jack Liebowitz, Jerry não
fazia mais parte da família.
“Escute aqui”, disse Joanne. “Será que você
526
quer mesmo ver uma manchete de jornal dizendo
‘O Criador do Super-Homem Passa Fome’?”
Liebowitz sabia que podia ser um blefe, mas
não quis arriscar. Prometeu conversar com Mort
Weisinger e dar a Jerry uma história do Super-
Homem para escrever; depois veriam o que podia
ser feito.
Joanne havia encontrado uma nova arma. Jerry
sempre insistira em sair das situações como o cara
bonzinho ou como o sabe-tudo. Mas o que funcio-
nou no fim das contas foi bancar a vítima irada, foi
fazer o jogo da vergonha. Liebowitz entretanto im-
pôs uma condição: que Jerry nunca declarasse pu-
blicamente ser um dos criadores do Super-Homem.
Joanne concordou. Depois de 12 anos, Jerry Siegel
estava de volta.

QUANTO A JOE Shuster, desapareceu das his-


tórias da indústria de quadrinhos, deixando apenas
duas anedotas que foram passando de boca em boca
entre o pessoal do ramo. Numa delas, um artista vê
Joe num banco do Central Park. Ele está tão mal
que o artista lhe compra um sanduíche e Joe então
conta que arruinara a vida com o processo movido
contra a National. O artista pergunta se pode fazer
algo por ele, mas Joe diz que não, agradece pelo
sanduíche e vai embora, trôpego, usando a bengala
como um cego.
Na outra história, Joe está trabalhando como en-
527
tregador em Manhattan. Um dia leva um pacote aos
escritórios da National Periodical. Dois dos edito-
res o reconhecem e começam a bater papo. Nesse
momento Jack Liebowitz aparece no saguão e man-
da todo mundo voltar ao trabalho. Depois que Joe
parte, Liebowitz liga para o serviço de entrega e diz
que não quer que aquele homem volte à sua empre-
sa.
Seriam verdadeiras, essas histórias? Joe nunca
gostou de reviver os maus tempos, mesmo durante
as disputas posteriores com a National, e sempre
evitou falar sobre quaisquer humilhações que por-
ventura tivesse sofrido. Por outro lado, fazia bicos
para aliviar um pouco o irmão e passava a maior
parte do tempo inteiramente sozinho. Verdadeiras
ou não, as histórias têm impacto significativo. Não
poderia haver símbolo mais nítido da superficiali-
dade insensível de tal indústria que o criador do Su-
per-Homem mergulhado na pobreza e no anonima-
to. Contar histórias sobre Joe Shuster vinha a ser
uma forma de dizer como eram terríveis tanto o ne-
gócio como seus donos. E também uma forma de
dizer a si mesmo: “Pelo menos não caí tanto as-
sim.”

AS HISTÓRIAS DE JERRY SIEGEL começa-


ram a aparecer na Superman e na Action Comics no
final de 1959. O trabalho fraco da década anterior
não preparara ninguém para o que viria a seguir. E
528
vieram histórias de uma criatividade e de uma emo-
ção comparáveis apenas às primeiras aventuras do
Super-Homem, dos tempos em que Jerry e Joe tra-
balhavam juntos. E completamente diferentes de
tudo o que Jerry já fizera.
Dois anos antes, quando o seriado Superman
para a televisão acabou, Mort Weisinger tinha im-
posto a si mesmo a tarefa de remodelar os gibis. Os
editores da National começaram de novo a dar des-
taque aos super-heróis, na busca por algo que atin-
gisse o mercado infanto-juvenil masculino e que
estivesse de acordo com os novos limites editoriais.
Mesmo que o código ainda permitisse a existência
de uma certa dose de violência, Liebowitz queria
evitá-la — ele não queria nem mesmo brigas de
soco em suas revistinhas. Os super-heróis viviam
envolvidos em disputas e confusões, mas editores e
escritores tinham por incumbência inventar tramas
que pusessem os personagens para saltar, voar e
alardear seus superpoderes, enfrentando dilemas de
vida ou morte, sem jamais bater em ninguém. Julie
Schwartz, velho amigo de Mort dos tempos da fic-
ção científica, encomendava histórias bem desenha-
das, cheias de truques e com laivos de era espacial
para reanimar Flash Gordon e Lanterna Verde; his-
tórias que caíam no gosto de leitores de 10 ou 11
anos de idade, apaixonados pelo espaço sideral e
por foguetes interplanetários.
Weisinger adotou uma abordagem diferente
529
para o Super-Homem. Deu a seu herói uma história
pregressa e uma família, fornecendo à garotada um
mundo ficcional a ser penetrado e descoberto. Nes-
se processo, ele e Jerry Siegel descobriram o que
estivera óbvio durante 20 anos mas que nunca fora
explorado: a dor que existe no coração do órfão
exilado de um outro mundo.
O enorme volume de histórias do Super-
Homem era o maior obstáculo para mantê-las di-
vertidas. Lá pelo final da década de 1950, o Super-
Homem e o Superboy figuravam como personagens
principais de sete revistas, cada uma delas com três
histórias no mínimo; Weisinger tinha de produzir
mais de 100 histórias por ano sobre um mesmo he-
rói. Não ajudou o fato de, nos anos 1940, os escri-
tores terem aumentado os poderes do Super-
Homem toda vez que queriam surpreender os leito-
res. O herói, que no começo só era capaz de saltar
por cima de prédios altos e vergar barras de aço
com as mãos, agora podia ultrapassar a barreira do
tempo e fazer malabarismos com planetas. Krypto-
nita, mágica e mistérios insondáveis eram pratica-
mente as únicas formas de desafiá-lo, e os escrito-
res de Weisinger já tinham tirado partido máximo
desses temas.
O Super-Homem deixara de ser uma metáfora
da liberdade e do impossível. Na verdade, ele se
tornara seu próprio oposto e passara a encarnar a
fantasia da restauração da ordem através da supera-
530
ção das forças do caos. Por que Jimmy Olsen ga-
nhou superpoderes e partiu para a violência? O Su-
per-Homem deduz que ele foi afetado pela krypto-
nita, atira a pedra no espaço e depois disso o mun-
do se acomoda de volta numa calmaria enfadonha.
O Super-Homem se convertera numa demonstração
do que acontece quando os sonhos mais delirantes
da juventude se tornam fardos diários de cidadãos
de 40 anos. Ele se convertera numa monografia so-
bre o retraimento da imaginação americana ocorri-
do dos anos 30 aos anos 50 do século XX. O Su-
per-Homem havia se transformado na projeção
mental de um editor ansioso com sobrecarga de tra-
balho. Mas até mesmo Mort Weisinger via que seu
herói precisava de um novo sopro de vida.
Weisinger era um analista editorial arguto e
transformava suas desvantagens em pontos positi-
vos. Diante de um personagem já conhecido, com
mais de 20 anos de idade, um número excessivo de
histórias e pouco espaço para ação, resolveu fazer
uma reformulação, passando a explorar o passado e
o universo do Super-Homem. Siegel e Shuster nun-
ca usaram as origens kryptonianas do herói, a não
ser como explicação para seus superpoderes, mas
Weisinger já percebera que era justamente isso que
fazia do Super-Homem um ser único.
Em 1958 e 1959, numa explosão de idéias, Wei-
singer e seus escritores — principalmente o criativo
Otto Binder, que já fora o principal escritor das his-
531
tórias do Capitão Marvel — transformaram o mun-
dinho previsível do Super-Homem num circo de
surpresas. Criaram para ele uma prima adolescente
chamada Supergirl (Supermoça), uma sereia, habi-
tante de uma cidade submersa, para competir com
Lois Lane, e um adversário monstruoso, chamado
Bizarro, com poderes idênticos aos do Super-
Homem, mas de uma feiúra e estupidez únicas. In-
ventaram uma nova forma de kryptonita, o K Ver-
melho, que transforma o herói de maneiras impre-
visíveis — pode encolhê-lo, tirar seus poderes,
torná-lo velho. Deram ao Superboy um grupo de
amigos do futuro longínquo, a Legião de Super-
Heróis. Das histórias de Doc Savage, um dos pri-
meiros modelos para o Super-Homem, pinçaram a
idéia de uma Fortaleza da Solidão no Ártico, onde
o herói se refugia para escapar das ansiedades tolas
de sua vida como Clark Kent, estudar a vida em ou-
tros mundos e explorar os registros de seu passado
kryptoniano.
Se o Super-Homem não podia mais concretizar
fantasias de poder e violência, podia ao menos en-
carnar a fantasia de ser absolutamente único, com
amigos nunca vistos, num esconderijo magnífico e
com um segredo espantoso. E, nesse processo, ele
se tornou mais judeu, já que Weisinger e Binder
aliviaram a solidão do Super-Homem no Ártico
com uma relíquia viva do mundo onde nascera:
Kandor, uma cidade encolhida dentro de uma gar-
532
rafa, onde os kryptonianos levam suas vidas, ansi-
ando pelo dia em que o Homem de Aço será capaz
de devolvê-los ao tamanho normal. Para os que fi-
caram presos no gueto de Kandor, o Super-Homem
se tornou o Messias.
Quando Jack Liebowitz pediu a Mort Weisinger
que arrumasse trabalho para Jerry Siegel, Mort o
encarregou principalmente de preencher os vazios
narrativos a respeito do passado do Super-Homem:
como Clark fora contratado pelo Planeta Diário,
como era a vida do bebê Kal-El em Krypton antes
de ser enviado para o planeta Terra num foguete.
Siegel entretanto começou a dar uma intensidade
dramática à morte do planeta Krypton e à dissolu-
ção da família do Super-Homem que escritor ne-
nhum até então havia tentado conferir aos quadri-
nhos. O momento da destruição de Krypton sempre
fora retratado, mesmo pelo jovem Jerry Siegel, com
pinceladas de puro melodrama. Porém de repente
Jerry estava nos mostrando Kal-El banhado em
lágrimas ao ver seu cachorrinho — o futuro Kryp-
to, o supercão — ser lançado ao espaço num fogue-
te de teste. A reação era de criança pequena: “Que-
ro meu au-au! Buáá!” Mas era reação de criança
pequena de verdade, eram momentos de impotên-
cia diante da tirania adulta e da perda incompreen-
sível. Quando escreveu “O Fantasma de Jor-El”, na
qual o Superboy é ludibriado e levado a pensar que
encontrou o espírito do pai, Jerry se afasta das com-
533
plicações da trama apenas o suficiente para que
possamos perceber a necessidade desesperada do
Superboy de acreditar que aquilo é verdade, e tam-
bém sua enorme decepção ao entender que o pai
continua inatingível.
Weisinger percebeu o poder desses momentos e
começou a encomendar a Siegel histórias mais
emocionantes. Siegel se tornou o principal escritor
da Supergirl. Deu a ela um bichinho de estimação
(Streaky, o Supergato), inventou sua primeira aven-
tura romântica, fez com que fosse adotada, num
processo muito difícil, por uma família terráquea, e
em seguida enviou-a ao futuro para se juntar aos
amigos do Superboy, os integrantes da Legião de
Super-Heróis; lá no entanto foi submetida a uma re-
jeição dolorosa. Nove meses depois, contudo, a Su-
pergirl é aceita e descobre que um dos legionários
está apaixonado por ela. Esse tipo de drama íntimo
era novo para os super-heróis. A atenção de Jerry
para os sentimentos em ebulição e para as fantasias
da menina sugerem uma boa sintonia com a filha
Laura. Seus melhores roteiros porém se basearam
em mais do que simples observação. Através das
tramas corriqueiras e dos diálogos juvenis, cintilam
momentos surpreendentes de paixão.
Siegel concretizou seu segundo Super-Homem,
o Super-Homem trágico implícito no primeiro,
quando escreveu “O Retorno do Super-Homem a
Krypton”, em 1960. A história tinha três vezes o ta-
534
manho normal, ocupou a revista toda e cobriu me-
ses da vida do herói, revelando suas maiores espe-
ranças e suas decepções mais profundas. Numa ten-
tativa desesperada de salvar Krypton, ele viaja no
tempo e se torna assistente do pai no laboratório.
Ocultando sua verdadeira identidade, observa a fe-
licidade conjugal dos pais e os vê cuidando com
ternura de si próprio ainda bebê; a “identidade se-
creta” dele nunca foi tão penosa. No fim, se apaixo-
na por uma linda atriz kryptoniana e planeja o futu-
ro com ela, sabendo que não haverá futuro para a
moça nem para os dois se não conseguir descobrir
uma maneira de evitar o cataclismo sísmico que se
aproxima. Durante todo o processo, sabe que, se
salvar seu mundo natal, não haverá um Super-
Homem na Terra, e que todo o bem que já fez nun-
ca será realizado; mas tamanha é a dor que sente
pela vida que lhe foi tirada que não consegue parar
de pensar nisso. Quando se dá conta de que Kryp-
ton não pode ser salvo, decide ficar lá para morrer
com a amada e os pais.
E então chega a hora: o chão treme, as torres de
Krypton começam a cair, o solo racha. No entanto,
por um “estranho golpe de sorte”, ele se vê preso
dentro de um segundo foguete experimental que é
lançado no espaço, enquanto assiste sem poder fa-
zer nada à destruição de Krypton e de seus entes
queridos. No fim, retoma sua vida como Super-
Homem, o alienígena solitário que consegue salvar
535
a Terra um sem-número de vezes, mas nunca sua
própria terra natal.
Jerry Siegel encontrara em si a dor que o ma-
chucava desde que o pai fora morto a tiros. Trans-
formara essa dor numa história em quadrinhos, mas
sem banalizá-la. Nunca houvera um comic book
como aquele, abrangente e simples, quase primitivo
na narrativa, mas perfeitamente fiel ao amor e à dor
ali expressados. Não havia vilões, nenhum truque
sensacional e nenhuma moral simplista. Era uma
história insolúvel de dor que toda criança seria ca-
paz de entender. Esse Super-Homem era tudo o que
a versão original de Jerry e Joe não fora. O primei-
ro Super-Homem não dava a mínima importância
para o fato de ter sido separado de seu mundo natal
e de sua família. Seu encanto era sua invulnerabili-
dade sorridente. O novo Super-Homem de Jerry era
um super-herói por causa de sua tragédia. Seu po-
der era sua dor super-humana.
Weisinger soube lhe dar o devido valor. Nos
anos seguintes, ao apontar Siegel como o “mais
competente” dos escritores da revista Superman,
ele mencionaria “o clássico ‘Retorno do Super-
Homem a Krypton’”. Durante a década seguinte, os
conflitos emocionais constituíram os alicerces das
revistas em quadrinhos editadas por Weisinger. Os
enredos ainda giravam quase todos em torno de to-
lices ou dos planos malignos de Luthor e Brainiac,
mas geralmente vinham salpicados de voltas tris-
536
tíssimas a Krypton, de “histórias imaginárias” nas
quais os entes queridos do Super-Homem morriam,
e de melodramas comoventes envolvendo traições e
perdas. Siegel escreveu as melhores. Descobriu to-
das as formas possíveis de o Super-Homem se ca-
sar ou perder Lois, todas as formas possíveis de o
Superboy encontrar seus pais verdadeiros ou perder
os adotivos. Todos os temas implícitos mas não
examinados das origens do Super-Homem — or-
fandade, imigração, infância solitária na América, a
travessia de Moisés — foram desnudados nas pági-
nas de Superman.
Jerry mergulhara mais fundo que nunca dentro
de si mesmo, e Mort Weisinger fora o responsável
por isso, com sua insistência em fazer algo novo,
sua convicção de que sabia o que as crianças mais
desejavam e sua exigência de que todos os escrito-
res se curvassem ao gosto delas. A estratégia funci-
onou: Superman vendeu mais que todos os outros
gibis da época, à exceção dos quadrinhos da Disney
publicados pela Dell, e ajudou a levar os super-
heróis de volta à categoria dos mais vendidos do
ramo. Jerry tinha seu primeiro trabalho estável de-
pois de muitos anos e estava provando que era um
escritor aos olhos da editora que melhor remunera-
va seus colaboradores. O arranjo tinha tudo para ser
perfeito — se trabalhar para Mort Weisinger não
fosse um verdadeiro inferno.
Era notório o jeito como Weisinger lidava com
537
os colaboradores. Ficava atrás da escrivaninha,
sempre muito enfezado — Roy Thomas, seu assis-
tente editorial durante duas semanas, disse certa
vez que ele “parecia um sapo malévolo” — , ber-
rando, xingando e rindo de seus escritores e artis-
tas. Alvin Schwartz, o poeta que se tornara o autor
regular das tiras de jornal do Super-Homem, aban-
donou por completo os quadrinhos por causa de
Weisinger. Don Cameron, seu outro escritor predi-
leto, também o deixou, não sem antes agarrá-lo
pelo colarinho (pelo menos foi o que circulou) e
ameaçar jogá-lo pela janela. “Ele cutucava você até
achar o ponto fraco”, disse Curt Swan, o principal
artista de Weisinger na década de 1960. “E então
ele caía matando.” Swan, tão famoso por sua afabi-
lidade e doçura, sofria de dores de estômago terrí-
veis sempre que tinha que lidar com seu editor. Só
encontrou algum alívio depois que aprendeu a ber-
rar de volta.
Jerry Siegel não podia gritar de volta, ou pelo
menos achava que não podia. Com Weisinger pela
frente e o abismo por trás, aceitava o que o amigo
de outrora lhe despejasse em cima sem pestanejar.
Swan sabia que Weisinger elogiava o trabalho de
Siegel em público, “mas toda vez que eu entrava na
sala e Jerry estava lá, ouvia Mort fazendo alguma
crítica”. Uma vez, depois de ler algumas páginas de
uma das histórias de Siegel, Weisinger se levantou
com o manuscrito na mão. “Preciso usar o banhei-
538
ro”, disse a Jerry. “Se importa se eu usar seu roteiro
para limpar a bunda?”
Weisinger também era mentiroso. E usava um
truque para se manter no controle. Quando Jerry Si-
egel entrava na sala tentando propor, por exemplo,
que Lois Lane, depois de desenvolver superpode-
res, acabaria percebendo que não precisava mais do
Super-Homem, Weisinger dizia: “Besteira. Tenho
uma idéia melhor.” E despachava Siegel com a in-
cumbência de escrever uma história sobre o Super-
Homem entrando para a Legião de Super-Heróis do
futuro. Aí, quando Otto Binder entrava e propunha
uma outra história, Weisinger dizia: “Besteira. Te-
nho uma idéia melhor.” E despachava o escritor
com a incumbência de escrever uma história usan-
do uma idéia muito boa dele, Weisinger, em que
Lois Lane desenvolve superpoderes e percebe que
não precisa mais do Super-Homem. Mais tarde, ló-
gico, jogando gin rummy com Jack Liebowitz, di-
ria: “Pois é, o Siegel e o Binder estão me trazendo
roteiros até que bem razoáveis, mas tenho que ficar
o tempo todo alimentando os dois com histórias.”
Nos seus últimos anos de atividade, Weisinger
se disse um homem torturado. Estava obcecado
pelo Super-Homem, segundo suas próprias declara-
ções. Tinha pesadelos com o personagem. Por vá-
rias vezes tentou sair da editora, mas Liebowitz
sempre aumentava seu salário. Uma “gaiola de
ouro”, era assim que Weisinger classificava o em-
539
prego. No fim, Liebowitz insistiu para que fosse
ver um psiquiatra, e se ofereceu para pagar as con-
sultas, consideradas despesas de trabalho. Segundo
Weisinger, o psiquiatra disse que ele estava se
identificando com o Homem de Aço. Se o herói
deixava a desejar em termos de vendas, Weisinger
sentia a própria invulnerabilidade ameaçada. O Su-
per-Homem tinha de ser o líder de vendas da em-
presa sempre, a correspondência dos fãs tinha de
ser a mais volumosa sempre, e o personagem tinha
de ser dele para sempre. Quando Julie Schwartz fez
sucesso com um novo gibi chamado Justice Lea-
gue of America, que reunia todos os heróis da Nati-
onal em uma associação para defender a justiça na
América, Mort xingou, esperneou, reclamou e foi
dizer a Irwin Donenfeld que deixasse o Super-
Homem de fora. “Vai expor demais o
personagem!”, berrava ele. No fim, Liebowitz teve
de intervir pessoalmente para acalmá-lo.
Por mais sucesso que Weisinger obtivesse, esta-
va sempre furioso. Publicara livros de não-ficção
(provavelmente redigidos por escritores “fantas-
mas”), aparecera na Reader’s Digest, manobrara
até chegar à presidência da Magazine Writers of
America, uma associação que reunia colaboradores
de revistas de todo o país, dirigia a Superman e ti-
nha um palacete em Great Neck. Em suma, era in-
discutivelmente um sucesso para alguém que come-
çara nos pulps, e ele sempre se vangloriava disso,
540
mas esses momentos sempre deixavam claro uma
raiva desafiadora, como se tivesse certeza de que
estava sendo menosprezado pelas costas. Mort se
via como uma criatura super-humana naquilo que
conseguira, mas totalmente sozinho, tragicamente
incompreendido, atormentado por inimigos sempre
munidos de kryptonitas emocionais. Talvez hou-
vesse, de fato, uma identificação entre ele e seu he-
rói. Mas, enquanto o Homem de Aço mantinha
tudo nos eixos graças à força física e à bondade
condescendente, Mort se mantinha no poder com
muita crueldade.
Essa fome de controle lhe dera um bom faro
para as peculiaridades emocionais das pessoas.
Quem mais senão Jerry Siegel veria o Super-
Homem como a personificação da perda e do cará-
ter fútil de tudo? Weisinger não sabia que Jerry ha-
via perdido o pai, mas sabia que havia perdido o
Super-Homem numa batalha inglória. Jerry não era
homem de abrir com muita facilidade a porta que
levava a suas agonias mais íntimas. Weisinger ar-
rancou essas agonias de dentro dele, mas ao fazê-lo
forçou-o a viver uma agonia diária.
Talvez Jerry pudesse ter suportado até mesmo
isso se tivesse sido capaz de manter as contas em
dia e de cuidar da mulher e da filha da forma como
queria. Porém, do ponto de vista de um colaborador
a grande crueldade de Weisinger era exigir uma
quantidade absurda de versões de uma mesma his-
541
tória até sair a contento. Jerry não conseguia produ-
zir roteiros em número suficiente para cobrir as
despesas do mês; havia finalmente obtido seu herói
de volta, ou pelo menos um pedaço dele, mas de
novo a tentativa de segurá-lo o estava destruindo.

LÁ PELO FINAL dos anos 1950, Jack Lie-


bowitz voltava suas energias para o maior passo de
sua carreira: abrir o capital da empresa. A National
Periodical Publications era uma candidata perfeita
para o mercado de ações. Agora incluía não apenas
a National Comics e a Independent News Distribu-
tion como também uma entidade nova, a Licensing
Corporation of America (LCA), que Jack havia or-
ganizado com um sobrinho chamado Jay Emmett.
A LCA era filhote da Superman Inc., que sob a
gestão de Emmett, familiarizado com o funciona-
mento da indústria do entretenimento e na condição
de divulgador do seriado Superman para a televi-
são, estava se tornando agente de licenças de co-
mercialização para um número crescente de propri-
edades culturais de massa. A National Periodical
era uma firma já estabelecida, em processo de ex-
pansão e diversificação, com poucas dívidas e fluxo
de caixa bem tranquilo, dona (com o Super-Homem
e companhia) de propriedades intelectuais únicas e
exploráveis em múltiplos mercados. Mas havia um
problema. Um de seus três proprietários estava me-
tido com as quadrilhas de Costello e Lansky. Seria
542
difícil encorajar a confiança do investidor diante de
possíveis ameaças do Ministério da Justiça ou da
Comissão de Valores. Liebowitz queria que o di-
nheiro de Harry Donenfeld fosse transferido para
um fundo e que ele saísse da diretoria da empresa.
Harry lutou para ficar. Jack frisou que ele ga-
nharia mais dinheiro saindo da firma e aumentando
o valor das próprias ações, mas isso não foi sufici-
ente para convencê-lo. Nos áureos tempos, o que
Harry mais apreciava era ser conhecido como o
dono do Super-Homem. “Meu pai queria o retrato
dele na parede da sala da diretoria”, contou Irwin
Donenfeld. “Tio Jack não ligava a mínima para re-
tratos, desde que estivesse ganhando dinheiro.”
Mesmo após anos de lento afastamento, Harry não
suportava a idéia de ver seu retrato sendo tirado da
parede e seu nome retirado do papel timbrado. A
luta foi feia.
De repente a história deu uma guinada. Gussie
adoeceu. Embora não saibamos o que se passou en-
tre ela e Harry, perto do fim, Irwin deu a entender
que ela pediu ao marido para ser prático, pelo bem
dos filhos, e concordar com a estratégia de Lie-
bowitz. Harry acabou cedendo — em parte para fa-
zer a vontade da mulher que agonizava, mas em
parte talvez também por ver uma nova vida se
abrindo a sua frente. Durante os 20 anos anteriores,
quis poder casar com Sunny, o amor de sua vida.
Agora esse desejo poderia ser realizado.
543
Gussie Donenfeld morreu em 1961. Meses de-
pois, a National abriu seu capital, com J. S. Lie-
bowitz e Paul Sampliner na diretoria e Harry Do-
nenfeld como sócio silencioso. No fim, foi um bom
negócio e os filhos de Harry se saíram muito bem.
Após um período adequado de luto, Harry anunciou
que ele e Sunny iriam se casar.
Os meses seguintes da vida de Harry — os últi-
mos meses de vida plena e consciente dele — nun-
ca seriam mencionados pela família. Parceiros de
negócios disseram que ele parecia bem feliz e emo-
cionado enquanto preparava o casamento e a lua-
de-mel, que seria um cruzeiro pela Europa. Mas
também circularam vários rumores de altercações
com Liebowitz e com antigos parceiros de falcatru-
as. Nenhum desses rumores se baseou em informa-
ções sólidas; talvez haja um fundo de verdade ne-
les, ou talvez tenham sido apenas uma tentativa de
conferir coerência narrativa ao que aconteceu na-
quela noite de 1962. Harry era afinal um grande re-
positório de histórias. E merecia coisa melhor para
deixar este mundo que a história contada pela famí-
lia.
Aconteceu uma semana antes do casamento.
Harry, segundo a versão da família, resolveu tomar
um porre sozinho em sua suíte. Desmaiou e bateu a
cabeça na quina do aparelho de televisão — ou, em
algumas versões, na mesinha de centro ou na mesa
de jantar. Ferido como estava, conseguiu se arrastar
544
até a cama. No dia seguinte, Irwin o encontrou ali.
Viu que o pai respirava, mas não conseguiu acordá-
lo. Chamou uma ambulância. Quando Harry acor-
dou, não reconheceu mais nada. Não sabia quem
era o filho. Não falava.
Era algo inconcebível essa história para os dis-
tribuidores e editores que o conheciam: Harry Do-
nenfeld sem palavras, sem histórias, sem lembrar
do rosto das pessoas? As perguntas começaram a
surgir. Estaria de fato sozinho naquela noite? Onde
estava Sunny? Por que Irwin fora procurá-lo? Por
que os detalhes mudavam a todo momento? A
quem interessaria o silêncio dele? Existem boatos
respondendo a todas as perguntas, é claro. Homens
de idade caem. Filhos se preocupam. Mas Harry ti-
nha sido tão espalhafatoso por tanto tempo que era
difícil deixá-lo partir em silêncio.
Harry viveu mais três anos. Irwin e Peachy co-
locaram o pai numa boa instituição e iam visitá-lo
com frequência. Com o tempo ele melhorou um
pouco, chegou mesmo a falar algumas palavras,
mas nunca recobrou a memória. Certa vez, Irwin o
levou até sua casa; quando chegaram, o filho de
Irwin e um amigo brincavam na varanda. Harry
olhou para os dois meninos, depois caminhou dire-
to para o neto e lhe deu um beijo na cabeça. Irwin
levou o pai para dentro e perguntou: “Você sabia
que aquele era o seu neto, não sabia, pai?” Harry
olhou para o filho. E esse momento perseguiría
545
Irwin até o fim da vida. Ele queria acreditar que o
amor de Harry pelo neto fora mais forte que seu cé-
rebro danificado durante aquela última e rápida vi-
sita à família; mas jamais teria certeza disso.
Harry Donenfeld morreu em silêncio em feve-
reiro de 1965. Não houve menção a sua vida nem a
sua morte na DC Comics.

14
——————————
NOVOS DONOS

ENQUANTO A NATIONAL PERIODICALS


oferecia suas primeiras ações ao público, acontecia
algo curioso alguns quarteirões mais ao norte, no
pequeno escritório da empresa de Martin Good-
man, onde Stan Lee tentava salvar os gibis de se-
gunda que um dia haviam constituído a linha Mar-
vel. A National obtivera sucesso com a revista Jus-
tice League of America e, ato contínuo, Goodman
mandou que Stan lançasse um time semelhante de
super-heróis. Stan recorreu então a Jack Kirby e,
em um processo agora envolto pelo véu das versões
contraditórias — ambos afirmam a autoria da idéia
básica — , os dois produziram a revista Fantastic
Four.
Esse Quarteto Fantástico porém não se compu-
nha de super-heróis típicos. A razão supostamente
era o fato de o distribuidor de Goodman ser Jack
546
Liebowitz. Ele desencorajava competições muito
diretas com a National. O quarteto não usava uni-
forme nem se escondia sob identidades secretas. O
que Kirby e Lee fizeram foi juntar quatro persona-
gens dotados de poderes estranhos por efeito da ra-
diação: um adolescente antipático chamado Tocha
Humana, uma tímida Mulher Invisível, um sujeito
raivoso e musculoso chamado Coisa, e o Sr. Fan-
tástico, um cientista que espichava feito o Homem-
Borracha e que levava o grupo a viver aventuras bi-
zarras. Como o ganha-pão da Marvel na época
eram histórias de monstros de ficção científica, os
personagens pareciam não um quarteto de heróis, e
sim quatro aberrações, sempre às voltas com histó-
rias sinistras e pesadas. Com uma boa dose de raiva
dentro de si, e produzindo páginas de quadrinhos
numa pressa furiosa, Jack Kirby criou um grupo
turbulento, envolvido em brigas ferozes. Mas Kirby
era aquele mesmo que trouxera a violência poética
para os gibis através do Capitão América, então a
nova série foi o que houve de mais livre e intenso
no mundo dos gibis desde a entrada em vigor do
Comics Code, seis anos antes.
Os meninos menores não pareciam muito inte-
ressados no Quarteto Fantástico, mas os de 12, 13 e
14 anos ficaram curiosos. Os adolescentes que que-
riam um pouco de infortúnio, de drama e de raiva
tinham quase todos abandonado as revistas em qua-
drinhos nos anos anteriores; mas aqueles que ainda
547
as liam começaram a comprar Fantastic Four.
Logo em seguida, Kirby e Lee lançaram um outro
monstro que era também uma espécie de herói, o
incrível Hulk, depois o deus Thor, de origem escan-
dinava, e também um cientista que encolhe até ficar
do tamanho de um inseto para se tornar o Homem-
Formiga. Tudo leva a crer que Goodman acabou
convencendo Liebowitz a afrouxar as restrições aos
super-heróis, e não demorou para que Stan Lee co-
meçasse a trabalhar com outro artista — um jovem
solitário muito estranho chamado Steve Ditko —
num personagem chamado Homem-Aranha.
Ditko não era bem o quadrinista ideal para uma
série de super-heróis. Jerry Robinson, seu professor
de desenho na School of Visual Arts disse certa
vez: “Desde o começo, ficou claro que Steve era di-
ferente de todo mundo”. Ditko entrou para o ramo
durante a onda de horror do começo da década de
1950 e, com suas figuras retorcidas de raiva e de
angústia, com aquele ar agourento que ele dava às
suas imagens mais simples e seu domínio sobre as
nuances psicológicas, logo chamou a atenção. Era
um artista idiossincrático demais para a National e
outras grandes editoras, mas Lee o considerou per-
feito para suas sofisticadas histórias de suspense.
Altamente emotivo, não gostava de expor seus sen-
timentos, fosse no trabalho ou na vida particular;
preservava sua privacidade, obedecia a um rígido
racionalismo e reagia ao relativismo ético dos anos
548
1960 dedicando-se ao “objetivismo” de Ayn Rand.
Quando assumiu o Homem-Aranha, incutiu tensão
e dor até mesmo nas mais extravagantes lutas do
super-herói.
Stan Lee era o oposto dele em termos de tempe-
ramento. Seu maior talento, tanto na carreira como
na vida, era o de se fazer amado por todos. Venera-
do pela mãe, fora criado para ser uma pessoa adorá-
vel. “Quando eu chegava da escola”, contou Stan,
“ela me agarrava, me fazia muita festa e dizia:
‘Você já está em casa? Eu tinha certeza de que era
hoje que ia aparecer um caçador de talentos de
Hollywood pra tirar você de mim!’” Ela dizia a
Stan que ele era o menino mais bonito, mais talen-
toso e mais extraordinário que jamais existira na
face da Terra. “E eu acreditava nela!”, disse Stan.
“Por pura falta de informação!” O fato é que ele
partiu para enfrentar a vida com um sorriso no ros-
to e muito poder de persuasão. Ninguém no ramo
da HQ jamais desejou tanto quanto ele ser amado e
fazer tudo bem feito. Stan dava adiantamentos,
prorrogava prazos e pagava hora extra sem fazer
cara feia. Mesmo gente que não o levava a sério
como editor ou escritor era obrigada a reconhecer
que Stan sempre fora de fato um cara muito sim-
pático.
No entanto essa facilidade para ser amado teve
um preço. O pai de Stan trabalhava na indústria do
vestuário e muitas vezes gastava o que não podia;
549
incapaz de manter os empregos que arrumava, foi
se anulando em crises de depressão. Stan cresceu
ouvindo discussões amargas entre seus pais — e
críticas da mãe ao irmão caçula, proporcionais aos
elogios que ele recebia. “Meu irmão Larry cresceu
escutando: ‘Por que você não se parece um pouco
mais com Stan?’ Sempre me senti mal vendo o que
ele sofreu por minha causa.” Stan nunca deixou que
o irmão Larry ficasse sem trabalho, fosse como es-
critor ou como desenhista, mas jamais se livrou do
sentimento de culpa. Todo o amor materno que fi-
zera dele um homem tão bem-sucedido fora rouba-
do do pai e do irmão.
Quando Ditko e Stan Lee se dedicaram à cria-
ção de um super-herói diferente, as paixões e con-
tradições de ambos se uniram de forma quase
elétrica. O Homem-Aranha é um herói cujos super-
poderes causam danos a seus entes queridos, cuja
raiva e impulsividade o levam a cometer erros terrí-
veis; é um herói admirado pelos adolescentes mas
odiado pelos adultos. Assim como Clark Kent,
quando usa sua identidade humana é vítima de
zombarias dos mesmos que o idolatram na condi-
ção de herói; mas, quando está nessa pele, sente
mais aversão a si próprio do que na condição de
magricela desprezado por todos. Ditko e Lee leva-
ram a idéia do super-herói trágico um passo além
do Super-Homem de Jerry Siegel. Recorreram à
psicologia, lançando mão de um herói que não se
550
limita a ficar lamentando sua incapacidade de mu-
dar o destino e que se pergunta todos os dias se está
fazendo a coisa certa sendo um herói. O Homem-
Aranha logo mexeu com uma geração que já nasce-
ra em uma época de estabilidade e riqueza, cercada
do amor dos pais, mas que se sentia, também, cri-
vada de culpa — a geração do chamado “baby
boom”.
E foi então que um novo Stan Lee entrou em
foco. Até então, suas histórias tinham sido pura fór-
mula, sempre uma versão apressada do que houves-
se de mais recente no mercado. Seu melhor traba-
lho estava nos quadrinhos de humor para adoles-
centes, nos quais brincava e flertava com seus leito-
res quase como fazia na vida real. Mas dali em di-
ante, produzindo rapidamente super-heróis esquisi-
tos, com pouquíssima esperança de que chegassem
a algum lugar, Stan assumiu uma voz irreverente,
descuidada, petulante, que podia partir de repente
para o melodrama adolescente e exagerado. Os fãs
reagiram a ele, como personalidade, de um jeito
que ainda não tinham reagido diante de nenhum
criador de HQ desde o auge de Bill Gaines e sua
gangue. Stan aproveitou o momento e encheu suas
revistas de piadinhas que só quem era do meio con-
seguia entender, autogozações e apelidos para os
heróis e seus criadores. “Stan, the Man” uniu o po-
der raivoso de Jack Kirby e a intensidade psicológi-
ca de Steve Ditko num autoproclamado “Jeito Mar-
551
vel”. Não demorou para que “Marvel-maníacos”
começassem a difundir seu evangelho pelas escolas
do país inteiro.
Durante esse mesmo período, as revistas em
quadrinhos também estavam sendo redescobertas
por gente já bem distante dos bancos escolares.
Uma nova intelligentsia americana, moldada pela
cultura de consumo impulsionada pela publicidade
e contrária à carolice da Guerra Fria, começou a fa-
zer da cultura comercial barata um tema de explo-
ração irônica. Susan Sontag escreveu seu famoso
ensaio epigramático sobre o “camp” (De mau gos-
to, extremamente artificial, exagerado, cafona, efe-
minado, homossexual), transformando um estilo de
zombaria teatral e efeminada num emblema de sa-
gacidade cultural. Era um alívio, após a década de
1950, poder dar risada das mensagens sinceras e
dos heroísmos ingênuos do passado. A Pop Art
trouxe um espírito semelhante à criação de símbo-
los. Latas de sopa e colagens de anúncios de revista
eram apresentadas como objetos de arte e contem-
plação, de modo ao mesmo tempo fetichista e zom-
beteiro, expressando a ambivalência de uma gera-
ção ante a sedutora mas vazia indústria cultural.
Enquanto os quadrinhos iam se firmando como
manchas brilhantes na paisagem da cultura popular,
um pintor chamado Roy Lichtenstein os transfor-
mava em ícones. Suas telas pontilhistas grandes e
coloridas, retratos de personagens de quadrinhos
552
em momentos de paixão, eram o gracejo intelectual
perfeito para os apreciadores sofisticados e com re-
morsos em 1963 e 1964.
As telas de Lichtenstein também mexeram com
os artistas que trabalhavam com quadrinhos. O pes-
soal que criara os originais tinha vendido suas ima-
gens por 10 ou 20 dólares, e de repente aparecia um
“artista plástico” vendendo as cópias por milhares
de dólares. Um dos que Lichtenstein copiava com
frequência era Irv Novick, criador do Shield, o pri-
meiro super-herói patriótico. Novick se tornara um
dos melhores quadrinistas de guerra da National. E
reconheceu o nome de Lichtenstein: os dois tinham
servido na mesma unidade do exército durante a
Segunda Guerra Mundial. Ambos queriam ser pin-
tores quando jovens, só que Lichtenstein vinha de
uma família do Upper East Side, que tinha condi-
ções de bancar uma faculdade para o filho. Novick
fora obrigado a trabalhar desde pequeno. Lichtens-
tein acabara se tornando um dos favoritos do mun-
do das artes plásticas, enquanto Novick continuou
trabalhando duro com o lápis, sem reconhecimento,
para pagar as contas.
Um veterano dos quadrinhos que não se limitou
a protestos furiosos contra a Pop Art e o camp foi
Stan Lee, que sempre desejou ser mais que um
bamba dos pulps. Falava em escrever o Grande Ro-
mance Americano quando jovem, mas gostava de-
mais de dinheiro; nunca conseguiría largar o negó-
553
cio por tempo suficiente para escrever a tal grande
obra. Sua mulher era uma linda modelo inglesa, sua
casa, uma antiga mansão em Long Island. Lee que-
ria a atenção do grande mundo. Por uns tempos,
chamou seus gibis de “Marvel Pop-Art Producti-
ons”. Incentivou a ousadia nos artistas que traba-
lhavam para ele, queria histórias mais malucas. Ste-
ve Ditko colocou o Homem-Aranha em pretensio-
sas angústias sociais. Jack Kirby jogou o Quarteto
Fantástico contra um deus devorador de planetas e
um “arauto cósmico” que passeia pelo espaço mon-
tado numa prancha de surfe. As vendas subiram. As
cartas choveram — quase todas de adultos e ado-
lescentes. Por volta de 1965, as revistas Marvel se
tornavam moda entre os estudantes universitários.
Na National, Julie Schwartz já tinha conquista-
do os jovens fãs de ficção científica com Flash,
Green Lantern e Justice League. Em 1964, foi de-
signado para reformular a Batman e, como não
simpatizava muito com o personagem, deu-lhe um
tom autozombeteiro, quase intencionalmente camp.
Um dos números chamou a atenção de um produtor
de TV chamado Bill Dozier, que procurava na épo-
ca uma forma de embalar todo esse estilo pop-
camp-cafona-descolado-legal para a telinha. Os gi-
bis estavam prestes a renascer num novo papel, e
na linha de frente da cultura popular.

O PRIMEIRO FANDOM organizado dos qua-


554
drinhos formou-se em torno das revistas da EC, de
Bill Gaines, no começo da década de 1950. Quando
Gaines largou todas, exceto a Mad, a maior parte
dos “fãs-viciados” seguiu seu rumo, mas alguns
continuaram se correspondendo, escrevendo bole-
tins informativos e até mesmo produzindo as pró-
prias imitações amadoras daquilo que a EC não pu-
blicava mais. As melhores entre essa produção
amadora eram as revistas satíricas inspiradas na
Mad e nas novas Humbug e Trump, criadas pelo
fundador da Mad, Harvey Kurtzman. Foo, dos ir-
mãos Robert e Charles Crumb, é engraçada até
hoje.
Em 1960, Kurtzman foi procurado por um jo-
vem dono de editora chamado James Warren. War-
ren queria que Kurtzman criasse uma nova revista
para ele, que se chamaria Help. Warren fora influ-
enciado por Hugh Hefner, outro fã da Mad. O pri-
meiro sucesso de sua editora foi a Famous Mons-
ters of Filmland, criada e editada por Forrest
Ackerman, um dos pioneiros do fandom de ficção
científica, ao lado de Jerry Siegel e Mort Weisin-
ger. Kurtzman concordou e começou a trabalhar
com uma brilhante e encantadora jovem assistente
chamada Gloria Steinem, que não demoraria a ma-
nifestar idéias próprias e resolutas sobre o que Help
deveria conter. Desenvolvia-se na época uma nova
contracultura do entretenimento, da ficção científi-
ca, dos quadrinhos, da política e do sexo. E, assim
555
como ocorreu com a cultura alternativa da década
de 1920, as revistas baratas desempenharam papel
fundamental. A Independent News, descendente da
Eastern News, também teve sua função nessa con-
tracultura, embora não no topo da pirâmide, junto
com a Playboy e a Mad. A Independent foi a pri-
meira escolha de Warren para distribuição, mas
Jack Liebowitz cortou suas asas ao dizer: “Volte
quando estiver mais crescido”.
A Help atraiu os humoristas mais conhecidos da
época: Mort Sahl, Ernie Kovacs e Woody Allen.
Também atraiu jovens cartunistas que haviam cres-
cido adorando o trabalho de Kurtzman na Mad. En-
tre os que mandaram desenhos estavam Robert
Crumb e Art Spiegelman. Spiegelman se destacou
como um dos jovens desenhistas mais ambiciosos
em termos de qualidade artística — ficara fascina-
do pelo potencial da arte dos quadrinhos ao desco-
brir, entre outros gibis, The Spirit, de Will Eisner.
Em 1965, a Help parou de ser publicada. Kurtz-
man foi trabalhar com Hugh Hefner na Playboy.
Warren reuniu um grupo de ex-artistas da EC e de
jovens fãs para criar três revistas mais que inspira-
das nos velhos gibis de terror e de guerra de Gai-
nes, Feldstein e Kurtzman: Creepy, Eeerie e Bla-
zing Combat (Creepy e Eeerie tiveram sua edição
brasileira nos anos 1980, pela Rio Gráfica Editora
(da Globo), com os nomes Kripta e Shock). Assim
como a Mad, essas revistas foram para as pratelei-
556
ras ignorando o Comics Code, e ajudaram a levar
tanto os antigos fãs da EC como outros adultos para
o fandom que se formava em torno da produção da
Marvel Comics.
Jovens cartunistas satíricos, como Robert
Crumb e Art Spiegelman, começaram na época a
procurar novos espaços para seu trabalho. Alguns
colaboraram com periódicos modestos, produzidos
pela esquerda radical pacifista, como The Realist,
criado por um ex-office boy da EC, Paul Krassner.
Outros publicavam em “jornais de vanguarda” que
começaram a surgir em torno da cultura hippie:
The East Village Other, Yarrowstalks e The Berke-
ley Barb. Depois parte deles começou a perceber
que poderia criar suas próprias revistas em quadri-
nhos, versões mais bem-feitas dos fanzines da ju-
ventude, e distribuí-las pelos mesmos canais usados
pela imprensa de esquerda e de vanguarda: estabe-
lecimentos que surgiam em torno das faculdades de
todo o país, como livrarias alternativas, bares hippi-
es e lojinhas com toda a parafernália para consumo
de maconha. As próprias ruas se tornaram local de
distribuição: Robert Crumb vendia a Zap Comics
na Haight Street, em San Francisco, com a ajuda de
um carrinho de bebê.
No final da década de 1960, os novos quadri-
nhos de vanguarda, chamados nos Estados Unidos
de “underground comix” (a grafia comix servia
para diferenciá-los dos comics tradicionais), eram
557
parte integrante de todos os dormitórios e repúbli-
cas de estudantes no país. As revistas underground
reuniam sátira política, drogas, pornografia, materi-
al psicodélico, experimentações gráficas e visões
peculiares de vida numa forma de arte que penetra-
va direto na imaginação de milhões de jovens ame-
ricanos. Embora estranho e perturbador aos olhos
da geração que havia criado os primeiros comic bo-
oks, esse novo estilo possuía as mesmas qualidades
que haviam feito com que primeiros gibis fossem
algo tão vivo: eram revistas rápidas de fazer, bara-
tas, não ligavam para respeitabilidade ou aprovação
social e permitiam ao quadrinista transmitir suas
idéias aos leitores com um mínimo de interferência
externa. Os quadrinistas underground também co-
nheciam sua linhagem. Uma das histórias mais po-
pulares das primeiras edições de Zap era o Wonder
Wart Hog de Gilbert Shelton, uma paródia porno-
gráfica do Super-Homem. Para fazer seu persona-
gem, Shelton se inspirou bastante no Superduper-
man, um “supertrouxa” criado por Harvey Kurtz-
man e Wally Wood para a quarta edição da Mad,
embora revele também leituras do próprio gibi do
Super- Homem. As fantasias de poder e de cruelda-
de sexual imaginadas por Jerry e Joe continuavam
ecoando, até mesmo na mente da geração que zom-
bava delas.
Entre os exemplares à venda de Zap e The Fa-
bulous Furry Freak Brothers havia comic books do
558
Homem-Aranha e do Quarteto Fantástico. Stan
Lee, Jack Kirby e Steve Ditko haviam feito dos su-
per-heróis algo relevante para um momento cultural
muito diferente daquele em que tinham vindo à luz,
30 anos antes. Os super-heróis da Marvel eram
emocionalmente instáveis, cheios de conflitos a
respeito de quem gostariam de ser e extravagantes
no uso de seus poderes e na expressão de suas per-
sonalidades diversas. Eles apreciavam a violência
de suas batalhas contra supervilões, ainda que ri-
lhassem os dentes pela dor que suas vidas secretas
e perigosas causavam aos entes queridos. Sofriam
porque a vida bizarra que levavam os separava da
mulher amada, ainda que os trajes colados no corpo
e a musculatura perfeita anunciassem sua potência
sexual.
Lee, Kirby e Ditko dramatizaram o que já esta-
va implícito nos super-heróis: a glória e a miséria
de ser uma criatura única, as divisões da identidade
moderna, a ambiguidade em torno do corpo, surgi-
da numa economia que desvaloriza o trabalho físi-
co e valoriza a consciência do corpo, a tensão cons-
tante numa cultura de consumo entre mimar a si
próprio e se auto-controlar. “Olhem pra frente, os
que de fato têm fé!”, gritava Stan nas páginas edito-
riais. Sabia que a Marvel tinha acertado na mosca.
“E basta.”
Leitores de origens diversas se sobrepunham e
se uniam: fãs de super-heróis, entusiastas da Pop
559
Art, hippies e antigos fãs-viciados da EC. A verda-
de é que o fandom dos quadrinhos crescia e ia en-
contrando sua própria identidade complexa. Os fan-
zines proliferaram e alguns se desenvolveram a
ponto de virar revistas comerciais sobre quadri-
nhos. Vendedores de números antigos organizavam
convenções em que os colecionadores podiam com-
prar velhos gibis e em que artistas, escritores e edi-
tores podiam se encontrar com seus fãs. Os fãs
mais dedicados começaram a rastrear o paradeiro
dos criadores dos quadrinhos e a tentar juntar as pe-
ças da nunca registrada história desse ramo do en-
tretenimento. Os mais talentosos começaram a ator-
mentar editores por uma chance de escrever e dese-
nhar seus quadrinhos prediletos. Alguns, como Roy
Thomas, eram havia muito apaixonados pelos su-
per-heróis e queriam aprimorar a vida e o ambiente
deles com detalhes novelescos. Outros, como o jo-
vem jornalista Denny O’Neil, queriam usar os su-
per-heróis para defender questões sociais e políti-
cas. Os geeks estavam começando a se levar a sé-
rio.

DURANTE A DÉCADA DE 1960, a empresa


de Jack Liebowitz continuou crescendo. No início
de 1964, Irwin Donenfeld fechou negócio para dis-
tribuir o material de uma editora nascida da noite
para o dia; e essa editora havia adquirido os direitos
de um fanzine dedicado a uma nova banda chama-
560
da The Beatles. Pouco antes de a revista chegar às
bancas, os Beatles apareceram no programa The Ed
Sullivan Show e se tornaram o maior fenômeno da
cultura de massa daquele momento. A Independent
News ganhou uma fortuna e Irwin fez questão de ir
dizer a Jack Liebowitz que o responsável pelo acor-
do fora ele, Irwin. Liebowitz fez-lhe uma carranca.
“Você nos teria feito ganhar muito mais dinheiro se
tivesse comprado a empresa do cara também”, dis-
se.
Mas até mesmo Jack deve ter ficado agradavel-
mente surpreso com o sucesso da National durante
os três anos seguintes. Bill Dozier convenceu a
ABC que um programa com um super-herói cômi-
co, teatral e meio efeminado conquistaria ao mes-
mo tempo o público infantil, que dominava o horá-
rio de fim de tarde, e a tão desejada audiência dos
jovens antenados. Com um orçamento gordo, a em-
presa de Dozier moldou o Batman para a televisão
em cima da pieguice engomada do estúdio de Bob
Kane e da tolice matreira de Julie Schwartz; o re-
sultado foi um programa tão animado, tão absurdo
e tão melífluo ao zombar do velho estilo heróico
que o sucesso foi instantâneo. A National Periodi-
cal lucrou em todos os níveis. Não foi só Batman, a
venda de comic books aumentou de forma geral. A
Marvel Comics, sendo por natureza a mais descola-
da de todas as editoras, ainda se beneficiou mais
que a DC, o que significou, ao fim e ao cabo, mais
561
dinheiro para a Independent News. A Licensing
Corporation of America vendia imagens do Ho-
mem-Morcego por toda parte.
E Batman era apenas parte da história. A Inde-
pendent News acabou mostrando que estava perfei-
tamente aparelhada para aquela década superaque-
cida. A Mad se tornou mais conhecida do que nun-
ca e as brochuras Mad eram campeãs de venda da
Signet. A Playboy surfava na crista da onda da re-
volução sexual. A Signet também possuía uma li-
nha de romances ingleses de espionagem que tive-
ram uma saída razoável durante alguns anos, até
que de repente, em meados da década de 1960, as-
sim como as revistas Mad, Playboy e Batman, Ja-
mes Bond estourou e a Independent se viu com
mais uma galinha dos ovos de ouro nas mãos. Os
direitos sobre a imagem de Bond eram da Licen-
sing Corporation of America. Isso não parecia mui-
ta coisa aos olhos da maioria das pessoas do ramo,
mas Jay Emmett, da LCA, era mais do que apenas
o sobrinho de Jack Liebowitz. Era um empreende-
dor nato, jovem e carismático, com um bom olho
para as tendências da cultura de massa. Emmett
deixou o mercado atordoado ao promover um ne-
gócio que movimentou milhões de dólares em rou-
pas e brinquedos infantis inspirados numa série de
espionagem que tinha como alvo os leitores adultos
da Playboy. Ele e a LCA estavam se tornando os
grandes astros do ramo de licenças no momento em
562
que este entrava em seu período mais próspero.
Jack Liebowitz continuava vivendo segundo seu
próprio e rigoroso código. Cabelos compridos esta-
vam se tornando moda entre os empresários e Jack
desistiu dos cortes de cabelo semanais; porém in-
sistiu em continuar pagando o barbeiro toda sema-
na, para que o rendimento do homem não fosse afe-
tado por sua vaidade. Em outras áreas porém esse
código podia ser muito duro. Quando os colabora-
dores regulares da National entraram na casa dos
50, começaram a se preocupar. Alguns tentaram
formar um sindicato, mas não conseguiram. No en-
tanto, por volta de 1966, vários deles — Gardner
Fox, Bill Finger, Otto Binder, Bob Haney, Arnold
Drake e outros, quase todos colaboradores autôno-
mos da DC havia mais de 20 anos — apresentaram
uma série de demandas a Jack Liebowitz. Pediram
compensações — direitos autorais sobre as vendas,
remuneração para as reimpressões, planos de saúde
e de aposentadoria — que os tornassem menos de-
pendentes do pagamento por página produzida. Li-
ebowitz não quis ouvi-los. Os escritores lembraram
a fortuna que a National tirava de criações que
eram deles. Vilões e truques de enredo estavam
sendo chupados direto dos roteiros que Bill Finger
fazia para o Batman; porém, enquanto Bill Dozier,
Adam West (Ator que fazia o Batman na série de
TV) e Jack Liebowitz enriqueciam a cada dia que
passava, Finger não recebia nada a não ser a paga
563
pelo roteiro da semana anterior.
“Sei como vocês se sentem”, disse Liebowitz.
“Também já fui socialista quando era jovem.”
“O problema”, alfinetou Arnold Drake mais tar-
de, “é que Jack Liebowitz teve uma juventude que
durou dez minutos.” Foi bem mais longa que isso, é
claro. Foi um longo trajeto até o pleno domínio das
leis da selva com que fora obrigado a pelejar. Mas
agora ele se tornara a antítese absoluta de tudo
aquilo que fora criado para ser, a ponto de seus es-
critores não enxergarem mais nada do outro lado da
escrivaninha a não ser a imagem perfeita de um Pa-
trão. Jack Liebowitz havia enterrado bem mais que
a mulher e o antigo sócio. Havia enterrado todo um
país. Aplacou a ira dos colaboradores com peque-
nos aumentos salariais e despachou a todos.
Nos meses seguintes, a maior parte daqueles es-
critores viu encolher seu volume de trabalho. Al-
guns deles chegaram à conclusão de que se tratava
de castigo por suas demandas, mas a mudança não
foi assim tão rápida e definitiva. Era mais provável
que fosse efeito da chegada de um novo contingen-
te de jovens talentos, mais baratos e mais famintos.
Os fãs que haviam crescido com os super-heróis de
Julie Schwartz e Stan Lee estavam loucos para as-
sumir a batuta. Os editores sabiam que aqueles ga-
rotos escorrendo aventuras super-heróicas estavam
mais bem preparados para cativar o mercado ado-
lescente que a velha-guarda cheia de amargura, e
564
também que o faria a preços melhores. Além da im-
piedosa lógica orçamentária, havia também uma
impiedosa lógica cultural: tinha cabimento aqueles
cinquentões escrevendo fantasias adolescentes em
1967? E foi assim que as pessoas que sobreviveram
à derrocada dos quadrinhos aos 40 foram postas no
olho da rua dez anos depois.
Para Jack Liebowitz, era assim que se faziam as
coisas. As pessoas recebiam pelo que haviam traba-
lhado. Se você queria um emprego com plano de
saúde incluso, procurava um emprego com plano
de saúde incluso. Se queria viver como autônomo,
ia morrer como autônomo.

BOB KANE GANHOU muito dinheiro com o


Batman feito para a TV, e não foi só com a parte
que lhe cabia da concessão do uso da imagem. O
acordo que havia fechado com Liebowitz em 1946
permitia que se declarasse criador do Homem-Mor-
cego, e ele imediatamente se pôs a alardear o fato.
De repente apareceu na revista Life e foi convidado
a participar de vários programas de entrevistas. Ru-
mou para Los Angeles, conseguiu remuneração
como consultor do programa e começou a se pro-
mover para os produtores de TV. Deu início então,
com o King Features Syndicate e a NBC, o Cool
McCool, desenho animado de um superespião cal-
cado na fama de James Bond. Era animação de se-
gunda, mas durou dois anos e fez de Kane um cria-
565
dor de seriados. Por baixo do pano, corria o rumor
de que ele contratara pessoas para redigir e dese-
nhar a produção.
Em Los Angeles, Kane deu de usar paletó es-
porte de iatista, camisa de gola rulê, sapato de lona,
echarpe no pescoço e, de vez em quando, até um
quepe de capitão na cabeça. Mantinha sempre um
cachimbo entre os dentes e convidava aspirantes a
estrela e modelos para andar no seu conversível.
Mas era tamanha sua fome de reconhecimento que
costumava parar para conversar com adolescentes
que estivessem folheando gibis nos supermercados.
“Gosta de história em quadrinhos? Sabe quem eu
sou? Bob Kane, criador do Batman.” Um dos garo-
tos com quem ele conversou era membro de um fã-
clube de quadrinhos e Kane acabou convidando a
turma toda para ir ver a arte original de seu super-
herói. Pegou papel de desenho e rabiscou imagens
do Batman para cada um dos meninos, enquanto se
vangloriava dos tempos em que desenhava os qua-
drinhos. Então um dos garotos, Mark Evanier, per-
guntou se era verdade que ele havia usado escrito-
res e desenhistas anônimos para fazer seu trabalho.
A risadinha de “tio” morreu na garganta de Kane e
seus olhos se estreitaram. Logo depois sorriu de um
jeito diferente, com a afetação de um jogador apa-
nhado blefando, e disse: “Deixe-me explicar a vo-
cês certas coisinhas a respeito dos quadrinhos.” E
contou a eles histórias reais das vigarices e menti-
566
ras sobre as quais se erguia o império das HQ.
Sua própria vigarice rendeu muito mais dividen-
dos do que poderia esperar. O fato de a renovação
daquele seu fantástico acordo, assinado em 1946,
ter coincidido com o auge do sucesso meteórico do
Batman para a televisão permitiu que aumentasse
sua porcentagem nos lucros, ao mesmo tempo em
que liberava a National da obrigação de comprar
páginas suas. Kane se livrara da dor de cabeça de
manter em segredo os artistas que trabalhavam em
seu nome sem ter que se preocupar com os rendi-
mentos. Além disso, em 1967 houve uma mudança
significativa na National: como Kane tinha parte
dos direitos sobre o Batman, pôde negociar sua
venda. Saiu com 1 milhão de dólares no bolso e
uma fatia ainda maior de rendas subsidiárias.
Depois que o Batman arrefeceu e Cool McCool
foi cancelado, Kane continuou em Los Angeles, fa-
zendo reuniões, falando sobre os acordos que esta-
va prestes a fechar e fazendo desenhos para tudo
quanto era garoto promissor no cinema que se de-
clarasse fã dos quadrinhos. Investiu num colchão
de água, comprou um ofurô e vivia alardeando suas
filosofias de amor e sexo livre para recepcionistas e
estagiárias. A certa altura, declarou que havia se
convertido às belas-artes. Fez uma exposição numa
galeria de Hollywood em que mostrou suas pintu-
ras de palhaços. Palhaços melancólicos e comoven-
tes, na tradição artística de Red Skelton (Palhaço
567
que era astro de um muito popular e muito piegas
show de TV nos EUA dos anos 1960).
Alguns anos mais tarde, correu um boato entre
os veteranos do meio que havia uma artista proces-
sando Kane por calote. Kane não lhe havia pagado
o prometido pelas telas que encomendara. Arnold
Drake, o escritor veterano da DC, logo percebeu
que telas seriam essas. “Os palhaços”, disse. “Ele
tinha uma artista fantasma até para a porra dos pa-
lhaços!”

O SERIADO BATMAN não rendeu nada além


de dissabores para Bill Finger. Durante quase 30
anos recebera por página escrita, a grande maioria
sem crédito nenhum, e continuou curiosamente ca-
lado a respeito de sua parte na criação do Homem-
Morcego. Fora um bom roteirista em dezenas de
séries, mas sua especialidade eram as acrobacias in-
críveis e as armadilhas fatais. Os fãs mais fanáticos
reconheciam um roteiro de Finger pelas convicções
estranhas e pelo uso inteligente de cenários e tra-
mas. Boa parte daquilo que fez do Batman para a
TV um imenso sucesso, desde as fervorosas hipér-
boles às gigantescas e mortais máquinas de fazer
gelo, foi obra de Finger. Procurado pelos fãs, co-
meçou a contar sua história. No entanto Kane o de-
sancou através da imprensa por suas “alucinações
de grandeza”. “Ao vitorioso pertencem os despo-
jos”, escreveu Kane num fanzine. “Estou seguro de
568
que no folclore da épica história dos quadrinhos de
nossos tempos, Bob Kane, e mais ninguém, será
lembrado como o criador do ‘Batman’.”
Finger não falou muito mais sobre o assunto de-
pois disso. A primeira geração de quadrinistas sen-
tia muita vergonha pelo modo como ganhava a
vida, sobretudo depois dos ataques sofridos pelos
quadrinhos nos anos 1950, e especialmente depois
que todos entraram na meia-idade e travaram con-
tato com os vizinhos e com os pais dos amigos dos
filhos. Joe Simon, que fora co-autor do Capitão
América e levara o romance aos quadrinhos, expli-
cava o horário de trabalho pouco usual e o fato de
nunca pegar o trem para o centro no mesmo horário
dos outros espalhando o boato de que era book-
maker. O filho já era um adolescente quando des-
cobriu o que o pai fazia da vida. Para Bill Finger,
cujo desejo era ser romancista, a vergonha de dedi-
car toda uma carreira à Dupla Dinâmica era inten-
sa. Vergonha que só pode ter ficado ainda mais
profunda quando se deu conta de que poderia ter
reivindicado parte daquela mina de ouro e nunca o
fizera.
As décadas de consumo de álcool estavam co-
brando seu preço. Finger conseguia cumprir o pra-
zo de entrega das histórias com cada vez menos
frequência, o bom-humor havia sumido de seus ro-
teiros, a família se desfazia. A recusa de Liebowitz
em dar a seus colaboradores um plano de saúde e
569
de aposentadoria o deixou desesperado. Quando
surgiu a nova geração de quadrinistas, composta de
fãs, Bill Finger foi um dos primeiros da velha-guar-
da a parar de receber encomendas. Nunca mais fa-
lou com os fãs. Bob Kane contou ter conversado
com ele depois que sua carreira terminou. “Era um
homem acossado”, disse Kane. Como escritor, Fin-
ger tinha acabado aos cinquenta e poucos anos e,
aos 60, estava morto. E só depois de Bill Finger
morrer foi que Kane passou a admitir a contribui-
ção do amigo.

PARA JERRY SIEGEL, O início do seriado


Batman na televisão não foi de maneira nenhuma o
acontecimento mais importante de 1966. Aquele
ano marcou o 28º aniversário da venda do Super-
Homem a Harry Donenfeld — e o término do acor-
do sobre os direitos autorais. A National Periodical
teria de renovar o contrato e isso significava que o
pedido poderia ser impugnado. Seria a última chan-
ce para Jerry e Joe reivindicarem os direitos sobre
sua criação.
Em 1963, Jerry já tinha entrado em contato com
um advogado e iniciado o processo. Ele sabia que
Liebowitz o demitiria no momento em que entrasse
de novo em juízo, mas nem mesmo Joanne foi ca-
paz de dissuadi-lo da idéia. Além do mais, era insu-
portável ter de trabalhar com Mort Weisinger, e
isso começava a se refletir em seu trabalho. Jerry se
570
perguntava quanto tempo mais conseguiría se man-
ter na National. Convidou Joe para participar da
ação judicial, mas seu velho parceiro não tinha
mais condições. Não podia pagar os honorários do
advogado e também não tinha mais coragem de lu-
tar. Jerry foi em frente sozinho.
Ofereceu seus serviços a outras editoras, de
modo a ter um lugar onde trabalhar quando Lie-
bowitz o pusesse na rua. Stan Lee foi o primeiro a
aceitar. Jerry adorava trabalhar para Stan, sempre
muito animado e gentil. Stan achava Jerry “o cara
mais legal do mundo” e entregou a ele o Tocha Hu-
mana, um herói adolescente com potencial, a seu
ver, para ser um outro Homem-Aranha. Jerry traba-
lhava anonimamente, a fim de adiar o confronto
com a National; suas histórias saíam com o nome
de “Joe Carter”, homenagem ao seu parceiro de ou-
trora e ao nome usado por sua mulher nos tempos
de modelo. Jerry deu o nome de Glenville à agradá-
vel cidade de alamedas arborizadas por onde o jo-
vem Tocha caminhava até o colégio. Por alguns
momentos, as esperanças de 30 anos renasciam e lá
estava ele, de volta ao Torch da Glenville High,
junto com seu amigo desenhista e a futura modelo
que os incentivava.
Os leitores da Marvel infelizmente acharam o
estilo de Jerry muito batido, seus supervilões muito
falastrões e cheios de truques. Queriam as tramas
surpreendentes e a ação espalhafatosa de Lee e
571
Kirby. Stan saiu em busca de outros escritores ca-
pazes de manter o Tocha mais próximo da essência
do Quarteto Fantástico. No fim, não conseguiu
achar ninguém que lhe desse o que queria até se
voltar para os jovens fãs que pediam uma oportuni-
dade de escrever. Stan havia levado a roteirização
das histórias de super-heróis aonde ninguém mais
de sua geração conseguiría chegar.
Porém em 1964 Jerry encontrou uma editora
que prosperava com o surrado e o batido: a Archie
Comics. Trabalhou numa versão atualizada do
Sombra, da Street e Smith, o personagem dos pulps
que pela primeira vez o fizera pensar em super-
heróis, e em duas imitações da Marvel chamadas
Fly Man e Mighty Crusaders. Havia descoberto a
Archie na hora H, porque no começo de 1965 sua
impugnação chegou ao tribunal e, mais uma vez,
ele foi despedido — dessa vez com menos drama e
mais resignação de todas as partes. De início, os su-
per-heróis da Archie venderam razoavelmente bem,
e Jerry pôde continuar pagando suas despesas ju-
rídicas durante a primeira fase dos recursos. Um
novo e doloroso lembrete de sua situação chegou
na primavera de 1966: um musical da Broadway
chamado “E um pássaro, é um avião, é o Super-
Homem”. A peça não se aguentou por muito tem-
po, mas serviu de incentivo para que ele continuas-
se lutando.
Por volta dessa época, a febre de Batman come-
572
çou a baixar. O ramo das HQ sofreu uma boa con-
tração. Os gibis de super-heróis que atraíam os fãs
mais ligados ainda vendiam bem, mas os mais bati-
dos e anacrônicos afundaram. A Archie acabou
com sua linha de super-heróis, e Jerry não conse-
guiu convencer os editores a lhe dar trabalho na li-
nha dos quadrinhos que representavam o ganha-pão
da empresa. Recorreu de novo a Stan Lee. Tudo o
que Stan pôde lhe oferecer foi um emprego de co-
pidesque. Jerry aceitou.
Tentou vender artigos e contos para revistas,
mas nunca fora escritor de prosa. Sentia vergonha
de dizer isso às pessoas, mas circulavam boatos de
que estava desempregado. Alguém contou a Jim
Warren, que editava a Help e a Creepy, que o cria-
dor do Super-Homem precisava de ajuda. Warren
ligou na hora para ele. “Disse-lhe quem eu era”,
contou, “e que estava mandando um carro para apa-
nhá-lo em casa e levá-lo direto para o nosso escri-
tório — para podermos despejar em cima dele um
monte de trabalho.” Jerry chegou com quatro ou
cinco roteiros na mão. “Estava na casa dos 50, com
um aspecto horrendo, usando uma capa de chuva
vagabunda no auge do inverno”, contou Warren.
“Senti um baque no coração.” Warren leu os rotei-
ros. “Não dava para publicar.” Mandou Jerry para
casa com uma pilha de revistas e lhe pediu para es-
crever algo compatível com a linha Warren.
Jerry apareceu de volta uma semana depois, le-
573
vando duas histórias. O editor de Warren, Archie
Goodwin, esperava ansioso por ele dessa vez, e os
dois se revezaram então na leitura dos roteiros.
“Eram ambos um pavor”, contou Warren. “Dei
uma olhada para Archie, que tentava esconder a de-
cepção. Um de nós teria de dizer a Jerry que o tra-
balho era inaceitável. Archie não conseguiu. Nem
eu. No fim eu falei: Jerry, os roteiros estão bons!
Nós vamos usá-los. Vamos comprá-los.’” Archie
Goodwin rescreveu os dois do começo ao fim.
“Não sei se Jerry notou a diferença”, disse Warren.
“Ele estava um trapo.”
A impugnação de Jerry aos direitos da National
sobre o Super-Homem foi negada. Ele recorreu da
decisão graças à assistência jurídica gratuita que
conseguiu. O processo se arrastaria por anos ainda,
mas suas esperanças estavam no fim. Em 1968, co-
meçou a se despedir dos amigos em Nova York. A
alguns, disse que o médico havia recomendado uma
mudança para a Costa Oeste, que seria melhor para
sua saúde, a outros, que ele e Joanne queriam se es-
tabelecer na Califórnia para que a filha estudasse na
UCLA, e para outros ainda que tinha uma chance
de trabalhar como escritor por lá. No fim, deve ter
ido embora apenas porque não aguentava mais.
Não aguentava mais o ramo dos quadrinhos, não
aguentava mais a cidade de Jack Liebowitz.
Ao se despedir de Joe Shuster, deixou o amigo
sem mais ninguém na vida a não ser o irmão, que o
574
sustentava. De vez em quando Joe ainda recebia
notícias de seu velho amigo Jerry Robinson, mas os
rumos diferentes que suas vidas tomaram afastou-
os para sempre. Robinson se tornara um chargista
político de sucesso. Enquanto Joe vendia sua cole-
ção de discos para ajudar o irmão a pagar o aluguel,
Robinson e a mulher passavam uma temporada
com Lyndon Johnson em seu rancho no Texas. Em
1967, Robinson fora eleito presidente da Sociedade
Nacional de Cartunistas e ajudou Joe a obter ajuda
financeira do fundo beneficente da sociedade. Mas,
demonstrada sua gratidão, Joe não tinha muito mais
o que dizer.

HOUVE UMA ÉPOCA em que o jovem escri-


tor em ascensão e o nem tão maduro administrador,
lutando para manter em pé uma pequena editora,
não estavam assim tão distantes em posses ou posi-
ção. Mas no momento em que Jerry Siegel saía de
Nova York, se afastando do mundo editorial, Jack
Liebowitz se preparava para chegar ao topo da
montanha. O capital americano se achava em fran-
ca ascensão. A década de 1960 foi a era de ouro das
fusões e aquisições. As antigas empresas de entre-
tenimento e editoras estavam se subdividindo; tudo
se achava disponível para quem pudesse pagar o
preço pedido. E a National Periodicals se encaixava
como uma luva nos planos do homem que logo
mais se tornaria reconhecidamente o grande mestre
575
do moderno conglomerado de veículos de comuni-
cação.
O dinheiro foi uma questão inevitável durante a
infância de Steve Ross. O pai, Max Rechnitz, tinha
feito fortuna no ramo da construção civil durante a
década de 1920 e perdera tudo na Depressão. Max
mudou o nome da família para “Ross”, na esperan-
ça de que isso o ajudasse profissionalmente, mas
não adiantou. O pequeno Steve fazia tudo para ga-
nhar o máximo de dinheiro que pudesse. Aos 11
anos, vendia revistas nas ruas do Brooklyn; os pri-
meiros números da Action Comics podem ter passa-
do por suas mãos. Jerry Siegel e Joe Shuster, 13
anos mais velhos que ele, teriam lhe parecido dois
figurões muito distantes na época.
Max Ross arrumou um emprego de fornecedor
no ramo de dutos e tubulações durante a Segunda
Guerra Mundial, e com isso a família pôde passar à
classe média de Manhattan. Steve obteve uma bolsa
para cursar uma escola particular e começou a se
misturar com o dinheiro do Upper East Side.
Aprendeu a esquiar, a se vestir bem, a conversar
com os ricos e a se comportar com classe. Em
1950, quando fez 23 anos, tornou-se um vendedor
bem-sucedido da indústria do vestuário. Tinha um
dom para a matemática, era mestre no jogo e adora-
va gin rummy. Também adorava ganhar, e quase
sempre ganhava. Aos 27 anos de idade, ganhou
uma noiva de 19, chamada Carol Rosenthal, cuja
576
família era dona de uma cadeia de agências funerá-
rias. Não demorou para se tornar famoso como um
incansável e conhecido diretor de enterros.
Os Rosenthal não possuíam apenas agências fu-
nerárias. Eram donos de cavalos de corrida tam-
bém, e tinham sociedade com Caesar Kimmel, filho
de um sujeito de New Jersey que fazia parte do
bando de Longy Zwillman. Kimmel era o dono dos
estacionamentos da Kinney System. Edward Ro-
senthal incluiu seu genro predileto nas reuniões que
fazia com a Kinney para um investimento conjunto
numa empresa de aluguel de veículos. Em 1960,
Steve Ross já tinha pronto um plano para unir as
duas empresas, abrir o capital e entrar na bolsa. O
pessoal das agências funerárias dominaria o conse-
lho diretor e os interesses financeiros das famílias
Kimmel e Zwillman se fundiriam. Ross negociou o
acordo e foi nomeado presidente da Kinney Service
Inc. quando ela se mudou para a nova sede, no pré-
dio do Rockefeller Center.
Ross logo mostrou que não era apenas um ás do
jogo e da arte da persuasão, provou que também
entendia, e muito, da mecânica dos negócios.
Aprendeu na prática legislação empresarial e conta-
bilidade. Também aprendeu a lidar com negócios
escusos. As divisões de estacionamento e aluguel
de carros da empresa mantinham um caixa dois no
valor de 1 milhão de dólares, dinheiro não contabi-
lizado: pagamentos a diretores de sindicatos, inspe-
577
tores municipais, policiais. O biógrafo de Ross,
Connie Bruck, cita um executivo da Kinney que te-
ria dito: “Uma vez eu vi 100 mil dólares dentro de
um saco de papel pardo ser deixado sobre a mesa
de alguém para resolver um problema.”
E, naquela época de grandes fusões, Ross des-
cobriu que sua grande paixão eram as aquisições.
Nos primeiros cinco anos como presidente, engoliu
empresas de leasing, agências funerárias e compa-
nhias de limpeza, pintura, eletrônica e tubulação.
Em 1967, voltou sua atenção para a National Perio-
dical Publications. Circularam muitos boatos sobre
como os negócios escusos levaram Kinney até a
National: Donenfeld, Costello, Zwillman, Kimmel.
Mas rumores assim sempre surgem quando há o en-
contro de empresas que têm esse tipo de negócio
em seu currículo. Ross podia muito bem estar atrás
de empresas com boas perspectivas de crescimento
e de repente ter deparado com Mad, Playboy, Ja-
mes Bond e Batman.
Ross adquiriu a National por 60 milhões de dó-
lares. As famílias Donenfeld e Sampliner se satisfi-
zeram em recolher os ganhos e seguir em frente.
Irwin Donenfeld quis manter o posto editorial, mas
o pessoal de Ross não aceitou. Irwin comprou um
ancoradouro e uma loja de artigos marítimos em
Westport, Connecticut, lançou uma revista de bar-
cos e foi viver a vida de cidade pequena com a mu-
lher e os filhos. Apenas a família Liebowitz conti-
578
nuou envolvida na empresa. Jack reinvestiu seus
ganhos no conglomerado e assumiu um lugar no
conselho diretor da Kinney. Seu sobrinho Jay Em-
mett continuou a gerir a Licensing Corporation of
America, onde sua energia ilimitada e seu pendor
aventureiro brilhavam mais do que nunca — não
tardou a chamar a atenção de Steve Ross em pes-
soa.
Esse foi o fim da velha DC Comics. A nova
gestão deu o controle para antigos e leais funcioná-
rios que não custariam os olhos da cara. Sol Harri-
son, que trabalhou por muito tempo na produção,
foi para a editoração, e um desenhista chamado
Carmine Infantino, para a direção editorial. Mort
Weisinger foi dispensado com uma indenização
polpuda e, ato contínuo, anunciou que tinha vendi-
do um romance, The Contest, em que desmascarava
todas as intrigas de sexo e corrupção nos bastidores
do concurso para Miss América. Esse livro iria co-
roar a carreira de Weisinger como escritor. Mais
tarde porém revelou-se que tinha sido escrito por
um alcoólatra redator de revistas em quadrinhos
chamado Dave Vern. O antigo companheiro de
Mort Weisinger, Julie Schwartz, foi nomeado edi-
tor da Superman. E imediatamente varreu da revista
toda aquela confusa sandice e angústia pré-pubes-
centes dos tempos de Mort, reformulando tudo e
transformando a publicação em outra revista fácil e
sem complicações.
579
Steve Ross logo adquiriu uma agência de talen-
tos, a Ashley Famous, e em seguida foi atrás do
grande prêmio: a Warner Brothers-Seven Arts. Elli-
ot Hyman, dono da Seven Arts e parceiro de Meyer
Lansky, que comprara a parte de Jack Warner do
estúdio cinematográfico e da empresa fonográfica,
pusera tudo à venda, iniciando uma guerra de lan-
ces. Ross não tinha condições de superar a oferta da
concorrência, o que significava que teria de ganhar
no charme e na habilidade. Os donos do dinheiro
grosso da Seven Arts tinham saído da máfia de
Lansky. Eram vigaristas inveterados, construtores
de cassinos, malandros das corridas de cavalo da
época do vale-tudo. Ross sabia como falar com
esse pessoal. Queriam fechar o negócio, mas havia
um obstáculo. Um dos proprietários da Warner-
Reprise Records tinha poder de veto sobre a venda
da empresa e precisava ser convencido separada-
mente. Só que aquele proprietário era Frank Sina-
tra, e Ross também sabia como falar com ele. Assi-
naram o negócio durante um jantar na casa da mãe
de Sinatra, em New Jersey. Era um negócio à moda
antiga, negócio de gangues vizinhas, e Ross traba-
lhara nele à perfeição para criar a Warner Commu-
nications.
O que restou da National Periodicals integrou-
se ao conglomerado. A Independent New forneceu
os alicerces para a Warner Books e a Warner Pu-
blisher Services. As vendas de revistas em quadri-
580
nhos estavam despencando, mas a Licensing Cor-
poration of America continuava vendendo as pro-
priedades da DC, levando a Mulher-Maravilha ao
horário nobre e Super-Homem e Batman para os
desenhos animados. Jay Emmett tornou-se vice-
presidente da Warner.
Liebowitz, como já dissemos, assumiu uma ca-
deira no conselho diretor da Warner. Por meio de
aquisições agressivas de ações da empresa, aumen-
tou sua participação até se tornar um dos maiores
acionistas individuais da Warner Communications.
Casou-se de novo, com uma bonita socialite cha-
mada Phyllis, muitos anos mais nova que ele. Não
era muito apreciada pelas filhas de Jack, nem pelo
resto dos clãs Liebowitz e Donenfeld, mas era lou-
ca pelo marido e ele foi leal a ela. Jack e Phyllis
moravam a maior parte do tempo em Manhattan,
no Upper East Side. Jack mantinha um escritório
no alto do prédio-sede da Warner, o Rockefeller
Center, e aparecia regularmente para trabalhar. Ste-
ve Ross aprendeu a respeitá-lo como um velho e
digno representante da América corporativa.

OS SIEGEL CONSEGUIRAM um pequeno


apartamento em Westwood, perto da UCLA. For-
mavam uma família muito unida, Jerry, Joanne e a
filha Laura. Laura desabrochou em Los Angeles.
Ela queria fazer carreira no cinema ou na TV, e foi
bastante incentivada por professores e colegas tanto
581
para atuar como para escrever.
Jerry começou a escrever para a Western Prin-
ting & Litography, que publicava Disney e outras
revistas ligadas a desenhos animados sob o selo
Gold Key. A Western havia decidido tentar a sorte
com super-heróis, mas Owl Man e Tiger Girl mor-
reram rápido. Só que na ocasião havia alguém dis-
posto a acolchoar a queda de Jerry, que foi então
transferido para a linha européia da empresa. Os
homens que controlavam as HQ nos Estados Uni-
dos podiam não ter muitos sentimentos e ainda me-
nos consideração pela História, mas os editores de
Topolino, nome italiano de Mickey Mouse, ficaram
muito satisfeitos de ter o criador do Super-Homem
trabalhando com eles. E assim foi que Jerry Siegel
escreveu roteiros para o Pato Donald e o Tio Pati-
nhas que eram traduzidos para o italiano. E encon-
trou novos fãs também à medida que enchia suas
histórias com muita ação e comédia rasgada, uma
mudança mais que bem-vinda na moderação costu-
meira da Disney.
Entretanto continuava na condição de autôno-
mo, sem plano de saúde nem fundo de pensão. E o
trabalho que lhe davam não era suficiente para ga-
rantir a segurança necessária. Estava com quase 60
anos e precisava de um emprego de verdade. Então,
resignado, seguiu a trilha que tantos primos já havi-
am tomado, que tantos homens com quem rompera
relações haviam seguido: a trilha do serviço públi-
582
co. A Comissão de Utilidades Públicas da Califór-
nia precisava de funcionários para datilografar e fa-
zer a triagem da correspondência. O emprego paga-
va 7 mil dólares por ano e tinha benefícios razoá-
veis. Justamente o emprego para um homem que
envelhecia sem nenhuma outra perspectiva.
Em 1972, um repórter do Cleveland Plain Dea-
ler chamado Tom Brazaitis topou com um relato da
criação do Super-Homem baseado nas lembranças
equivocadas de Jerry, em que o surgimento do su-
per-herói era situado numa noite de verão do ano
de 1932. E quis escrever um artigo para comemorar
o quadragésimo aniversário do cidadão fictício
mais famoso de Cleveland. Para isso, tentou entrar
em contato com os criadores, e deu de cara com
dois becos sem saída. Joe Shuster, escreveu ele,
“não pôde ser localizado em Nova York onde, se-
gundo uma fonte, vivia recluso. Consta que está fi-
cando cego”. Jerry Siegel “foi localizado em Los
Angeles, onde trabalha para a Comissão de Utilida-
des Públicas. Ele se recusou a dar entrevista.”
Por mais três anos, o mundo não ouviria uma
palavra de Jerry ou de Joe.

15
——————————
CONTINUAÇÃO

MARIO PUZO ERA um escritor para homens.


583
Proveniente de uma região nova-iorquina barra-
pesada, conhecida como Hell’s Kitchen (Cozinha
do Inferno), onde vivera durante a Depressão, já
havia escrito dois romances com ambições literá-
rias quando, em 1965, resolveu dar uma boa exami-
nada na vida: “Tinha 45 anos de idade, e estava
cansado de ser artista. Além disso, devia 20 mil dó-
lares a parentes, financeiras, bancos, uma variedade
de bookmakers e aos agiotas.” Foi por volta dessa
época que resolveu escrever um romance sobre a
Máfia para ganhar dinheiro. Para pagar as contas,
durante a execução do livro, escrevia três histórias
por mês para as tórridas revistas masculinas de
Martin Goodman. Enquanto Stan Lee criava rotei-
ros para as revistas da Marvel Comics, na sala ao
lado seus colegas faziam a diagramação dos contos
de Mario Puzo sobre homens durões. Em seguida
O Poderoso Chefão fez dele um homem rico e fa-
moso. Seu nome, quando relacionado a um filme,
chamava a atenção das pessoas. Funcionou no caso
de Terremoto. E Alexander Salkind contava com
ele para funcionar também no caso de Superman.
Salkind não queria que seu Superman fosse uma
bobagem inconsequente como o Batman para a te-
levisão. Na qualidade de produtor, acabara de ter
sucesso com Os Três Mosqueteiros e A Vingança
de Milady, e via no Homem de Aço os alicerces
para uma lucrativa série de aventuras. Salkind que-
ria que seu filme tivesse o brilho, os efeitos especi-
584
ais e as grandes estrelas de produções como Infer-
no na Torre e Aeroporto 1975. Queria que fosse
muito comentado também, e por isso gastou 250
mil dólares contratando Puzo para escrever os dois
primeiros rascunhos. Não dava para filmar o roteiro
que Puzo apresentou, mas seu nome deu credibili-
dade instantânea a Superman no circuito do cinema
comercial. De repente rumores de que Francis Ford
Coppola fora convidado para dirigir o filme — será
que não tinha sido William Friedkin, Arthur Hiller,
Norman Jewison? — adquiriram peso. Os pais que
haviam feito troça dos filhos por ainda gostarem de
HQ estavam tentando imaginar Al Pacino ou Paul
Newman no papel do Homem de Aço.
Talvez Jerry Siegel tenha até alimentado o so-
nho de ser esse escritor, mas a realidade não lhe
sorriu tanto assim. Não sabia como vencer o siste-
ma, não sabia como ganhar dinheiro e tampouco
sabia como trazer credibilidade a si próprio, que
dirá para um filme. Enquanto Puzo se ocupava de
escrever O Poderoso Chefão, Jerry se empenhava
em conseguir de volta os direitos sobre o Super-
Homem. Os anos de glória de Puzo foram os anos
de desespero de Jerry, que foi caindo no esqueci-
mento. Um tribunal federal negou o recurso inter-
posto. Sua última esperança, muito débil aliás, era
recorrer à Suprema Corte dos Estados Unidos. Nes-
se ínterim, sofreu um ataque cardíaco. O médico
lhe disse que não deveria viajar nem se exaltar.
585
Jerry não sabia se conseguiría continuar lutando.
Porém, em abril de 1975, recebeu um chamado
de seu advogado. Jay Emmett, da Warner Commu-
nications, estava tentando limpar o terreno para o
filme Superman e queria tirar do caminho o proces-
so de dez anos de duração movido por Jerry Siegel.
A Warner, disse ele, estaria disposta a oferecer a
Jerry e a Joe algum tipo de estipêndio anual se
Jerry concordasse em cancelar a ação judicial. Jerry
não via motivos para confiar em Emmett — o ho-
mem era sobrinho de Jack Liebowitz afinal de con-
tas — , mas não via nenhuma outra saída. Concor-
dou então em fechar a última porta jurídica.
Esperava que o pessoal da Warner fizesse jus à
palavra dada. Mas a Warner não mexeu uma palha.
Jerry escreveu uma, duas, várias vezes para lá. Nin-
guém respondeu. Por volta de julho, agosto, come-
çou a desconfiar de que não teria nada para deixar a
Joanne e a Laura. Uma dupla de fanzineiros chama-
dos Alan Light e Murray Bishoff topou com a men-
ção em um jornal a respeito da decisão da corte
contra Jerry Siegel, e passou a escrever em defesa
dele. Intrigado por esse novo fã-clube, Jerry enco-
mendou uma cópia do livro favorito dos fãs de qua-
drinhos naquele momento: The Steranko History of
Comics. A encomenda acabou sendo entregue por
engano num outro apartamento do prédio onde
Jerry morava, para um colecionador de quadrinhos
chamado Chuck McCleary. Ele levou a encomenda
586
para Jerry e perguntou se ele era o próprio Jerry Si-
egel. Então convidou-o a falar em uma convenção
de fãs de quadrinhos que iria acontecer em San Di-
ego. Jerry foi e falou de seu drama para uma peque-
na platéia de fãs adultos. Eles ficaram chocados.
Disseram que Jerry deveria tornar pública a histó-
ria, e ofereceram ajuda. Jerry voltou para casa em
brasa graças ao sol do sul da Califórnia.
Nesse mesmo período, Mario Puzo entregou seu
épico calhamaço, um roteiro de 300 páginas sobre
o herói que Jerry Siegel havia criado. E a Variety
publicou um artigo falando a respeito dos 3 milhões
de dólares que haviam sido transferidos dos estú-
dios Warner para a National Periodicals pelos direi-
tos sobre os sonhos de Jerry.
Em setembro de 1975, Jerry escreveu seu comu-
nicado à imprensa. Em dez páginas datilografadas
em espaço simples, contou como ele e Joe tinham
ficado sem nada enquanto outros homens enrique-
ciam sem parar. Contou sobre as promessas e men-
tiras de Jack Liebowitz, da cegueira de Joe, de sua
própria saúde precária, dos anos de batalha judicial.
As palavras dele eram frenéticas e repetitivas. Ele
torturou a lógica para explicar o fato de ter real-
mente vendido todos os direitos sobre o persona-
gem. Porém sua voz soa límpida na hora de fazer o
apelo: “Não sou capaz de flexionar músculos su-
per-humanos e arrebentar os prédios colossais em
que essa gente gananciosa conta os lucros imensos
587
que obtém às custas dos danos que causaram a Joe,
a mim e a nossas famílias. Eu bem gostaria, mas
não posso fazer isso. No entanto posso escrever
esta carta e pedir aos meus compatriotas que nos
ajudem, recusando-se a comprar revistas em qua-
drinhos, recusando-se a ir assistir ao novo filme do
Super-Homem, ou a assistir ao Super-Homem na
TV, até que seja remediada essa grande injustiça
cometida contra Joe e contra mim por homens ines-
crupulosos que embolsaram todos os lucros advin-
dos de NOSSA criação.”
Jerry fez mil cópias da carta. Enviou uma cópia
para todos os programas de notícias do país, para
todos os grandes jornais nacionais, para todos os
veículos de comunicação da região de Los Angeles,
desde a revista Time até folhetos distribuídos gra-
tuitamente. Depois sentou e ficou à espera da liga-
ção dos repórteres.
As ligações não vieram. Passaram-se semanas e
aos poucos ele foi compreendendo. Mesmo depois
de se expor tão penosamente diante do olhar públi-
co, não tinha conseguido que o levassem a sério.
Jerry já havia quase desistido quando veio a pri-
meira reação. Phil Yeh, de 20 anos, fazia um jornal
de arte distribuído gratuitamente chamado Cob-
blestone, e era criador de uma tira para o jornalzi-
nho da escola estadual de Long Beach. Fazia parte
da comunidade underground de quadrinistas — um
bando de cabeludos talentosos, puxadores de fumo,
588
que desenhavam histórias engraçadas sobre sexo,
política e tédio californiano — e que não estavam
nem aí para os super-heróis. Mas, ao encontrar a
carta de Jerry numa pilha de correspondência por
abrir, Phil Yeh entendeu que ali havia uma história
que precisava ser contada. Ligou para Jerry torcen-
do para que este pudesse lhe conceder uns minuti-
nhos em algum intervalo entre muitas entrevistas
que com certeza estava dando a grandes veículos de
comunicação. Jerry ficou encantado de receber
aquela única ligação. Phil foi até seu apartamento,
na zona Oeste de Los Angeles, e eles sentaram
frente a frente — o atormentado escritor judeu de
Cleveland e o artista filipino cabeludo de olhos
chamejantes do sul da Califórnia. De pronto senti-
ram que havia entre ambos uma afinidade que
transpunha o imenso abismo entre eles. Eram am-
bos filhos de imigrantes crescidos à margem da
prosperidade americana, e ambos tinham encontra-
do sentido em produtos descartáveis mas curiosa-
mente inspirados da cultura de massa: ficção cien-
tífica, Douglas Fairbanks, os Freak Brothers. Am-
bos quiseram forjar uma versão própria daquela
cultura, ambos quiseram encontrar uma forma de
viver em seu mundo de sonhos, “de evitar”, como
Yeh declarou, “sair em busca de um emprego”.
Eram ambos geeks.
Com Joanne sentada do lado, e dando voz à ira
que guardara tanto tempo dentro de si, Jerry contou
589
toda a sua história, pela primeira vez, para alguém
fora do círculo familiar e de advogados. Phil trans-
formou-a num relato apaixonado na Cobblestone.
Jerry descobriu que para a nova geração ele não era
um fracassado, e sim um herói.
Por fim, em meados de outubro, chegou a tão
esperada oportunidade. As informações que ele en-
viara ao Washington Star acabaram chegando às
mãos de John Sherwood, autor de grandes reporta-
gens. Sherwood ligou para Jerry para checar a his-
tória, depois ligou para a National Periodicals, onde
ninguém quis comentar o assunto. Los Angeles fi-
cava longe demais para o Star bancar as despesas
de viagem da reportagem, mas até Nova York deu
para Sherwood ir, e lá Joe Shuster concedeu sua
primeira entrevista à imprensa desde os tempos de
glória do Super-Homem. A matéria saiu na primei-
ra página do Star e mexeu num ponto nevrálgico do
país, isso num momento de desencanto popular
com o sistema corporativo. A história foi parar nas
agências noticiosas e outros jornais começaram a
ligar.
Mesmo assim, ninguém na National Periodicals
ou na Warner Communications quis fazer nenhum
comentário. Pelo visto, a estratégia da empresa era
aguardar até passar a onda de notícias e as pessoas
se esquecerem do assunto, como de hábito. Poderia
ter funcionado, não fosse o fato de os produtores de
um programa de entrevistas transmitido tarde da
590
noite chamado The Tomorrow Show, com o apre-
sentador Tom Snyder, terem achado que aquela his-
tória daria uma pauta interessante. Jerry estava
prestes a contar sua história numa rede nacional de
televisão.

JERRY ROBINSON SEMPRE trabalhava com


a TV ligada. O burburinho de fundo fazia com que
relaxasse e entrasse com mais facilidade naquela
operação semiconsciente de pincel sobre papel; às
vezes aproveitava alguma coisa do noticiário para
fazer sua charge política. Como de hábito, trabalha-
va em seu apartamento, na Riverside Drive, com a
TV ligada. O noticiário da noite acabara fazia mui-
to tempo, assim como o programa de Johnny Car-
son, e estavam já na intimidade da sala enfumaçada
de Tom Snyder. De repente Robinson escutou o
nome “Jerry Siegel” e largou o pincel.
Robinson ficou chocado ao ouvir a história de
Jerry. Alguns anos antes, ouvira dizer que ele esta-
va processando a National, mas depois disso Jerry e
Joe tinham sumido do mapa. “Fiquei com a impres-
são de que tinham chegado a algum tipo de acordo
com os novos donos”, Robinson declarou. “Não fa-
zia idéia de que continuaram lutando e sofrendo to-
dos aqueles anos.” Na mesma hora saiu atrás do te-
lefone de Jerry e ligou, perguntando se poderia fa-
zer alguma coisa.
Jerry não tinha a menor idéia do que poderia ser
591
feito, mas disse que ficaria agradecido se Robinson
tivesse alguma idéia. Talvez fosse uma boa idéia se
Robinson pudesse conversar com outro quadrinista
nova-iorquino, chamado Neal Adams, que já estava
envolvido na causa de Siegel. Robinson conhecia
Adams e ligou para ele no dia seguinte. Os dois
combinaram de lançar uma campanha para pressio-
nar a Warner Communications a fazer a coisa certa.
A reunião anual da diretoria da sociedade nacio-
nal de cartunistas, a National Cartoonists Society,
calhava de ser na semana seguinte e Robinson le-
vou a causa até eles. Saiu de lá com uma declara-
ção unânime de apoio a Siegel e Shuster. Com isso
em mãos, garantiu o apoio de mais duas corpora-
ções, a dos cartunistas de televisão e a dos escrito-
res, Screen Cartoonists Guild e Writers Guild of
America. Robinson sabia que para a Warner Com-
munications os quadrinistas não importavam gran-
de coisa, mas as comunidades televisiva e cinema-
tográfica sim. Tinha uma casa de veraneio em Cape
Cod e ligou para dois vizinhos seus, Norman Mai-
ler e Kurt Vonnegut, perguntando se não queriam
juntar seus nomes à campanha. Os dois não só per-
mitiram que Robinson usasse seus nomes como
também começaram a angariar apoio das comuni-
dades literária e jornalística. Isso chamou a atenção
dos meios de comunicação. O CBS Evening News
cobriu a disputa e Jerry foi levado a Nova York
para aparecer ao lado de Joe no programa The To-
592
day Show.
Enquanto isso, Neal Adams tratava de inflamar
os ânimos da comunidade de quadrinistas. Ele tinha
um cacife considerável na National Periodicals.
Continuava sendo o artista predileto dos fãs de su-
per-heróis, que o amavam desde que seu estilo ex-
pressivo e naturalista de representar aparecera na
DC Comics, no final da década de 1960. O diretor
editorial da National, Carmine Infantino, admirava
pessoalmente o trabalho da Adams. Naquela época,
vinha desenhando bem menos, já que lucrava muito
mais com publicidade, mas nas raras vezes em que
desenhava um Batman era um grande acontecimen-
to. Quando Adams incitou fãs e colegas a pressio-
nar a National para fazer o que era justo, os execu-
tivos sentiram o golpe, que aliás não veio só de fora
— cada vez mais, os postos editoriais estavam sen-
do ocupados por jovens que tinham saído direto do
mundo dos fanzines. O jovem editor mais respeita-
do da National era um amigo e frequente colabora-
dor de Adams, Denny O’Neil.
O aperto funcionou. No início de dezembro, a
Warner Communications declarou que estava pron-
ta para entrar num acordo: a empresa se prontifica-
va a pagar um estipêndio vitalício de 10 mil dólares
anuais tanto a Jerry como a Joe. Jerry Robinson
aconselhou-os a não aceitar e fez uma contra-oferta
em nome dos dois. Na terça-feira, dia 9 de dezem-
bro, a Warner aumentou sua oferta para 15 mil dó-
593
lares e deu a Jerry e a Joe dois dias para aceitá-la.
Robinson ganhou tempo, propondo uma aceitação
provisória, mas exigiu que a Warner cobrisse as
custas legais de Siegel e Shuster e pagasse um pla-
no de saúde integral para os dois. Jerry tomou um
avião em Los Angeles e, na segunda-feira, dia 15,
todas as partes interessadas se reuniram nos escritó-
rios da Warner, no Rockefeller Center, para uma
negociação final.
Na segunda pela manhã, o New York Times no-
ticiava que Siegel e Shuster “deveríam aceitar uma
oferta de 15 mil dólares anuais pelo resto da vida”.
Robinson achava muito pouco, mas Jerry e Joe
queriam fechar o acordo antes que desmoronasse.
O fim da longa batalha estava à vista — salvo por
uma questão em relação à qual nenhum dos lados
cedia um milímetro. Todos os produtos relaciona-
dos ao Super-Homem, Robinson insistia, tinham de
estampar os dizeres: “Super-Homem criado por
Jerry Siegel e Joe Shuster”. A Warner disse não.
Robinson entendia o quanto significava para
Jerry e Joe o mundo saber quem eram os inventores
do Homem de Aço. Também tinha consciência de
que lutava por princípios muito maiores que os sen-
timentos dos dois. “Na Europa”, disse Robinson,
“um dos direitos fundamentais no mundo das artes
e do entretenimento é o direito do criador de rece-
ber crédito por seu trabalho. Em alguns países, isso
é lei. Essa era uma área na qual tanto a legislação
594
como a prática norte-americanas precisavam de
mudanças urgentes.” Para os advogados da Warner,
contudo, conceder o crédito significava abrir uma
porta para novos processos. Se alguém mais fora da
empresa pudesse reivindicar a propriedade intelec-
tual de alguma criação, sua autoria e posse poderí-
am ser questionadas. E, se Siegel e Shuster recebes-
sem crédito como os criadores do Super-Homem,
quem seria o próximo a fazer tal exigência? Que
outras propriedades intelectuais entrariam em dis-
puta?
As negociações empacaram na segunda-feira e
continuaram na terça. Jay Emmett assumiu pessoal-
mente o controle das forças da Warner. Emmett se
tornara figura importante no conglomerado, um dos
quatro homens mais próximos de Steve Ross e do
poder. Era também o melhor amigo de Ross — al-
guns diziam “irmão de alma” ou “consorte” — e
certa vez foi chamado de “a cola que mantém tudo
unido sob a direção de Steve”. Em termos de tem-
peramento, não podia ser mais diferente de seu tio
Jack Liebowitz: animado, engraçado, tremenda-
mente simpático e acostumado a ganhar todas as
pendengas só com seu charme. Robinson fez ques-
tão de resistir ao charme de Emmett, mas reparou
numa outra característica dele: “Era o negociador
mais sensato ali.”
Na quarta-feira, as negociações pareciam pres-
tes a ser suspensas. Emmett aumentara a oferta para
595
20 mil dólares anuais, com aumentos automáticos
para cobrir a inflação e provisões para garantir o
futuro dos herdeiros, mas não podia concordar com
os créditos. Robinson insistiu que o crédito era o
xis da questão. Na quinta-feira, o grupo Warner deu
a entender que poderia retirar a oferta da mesa se
não houvesse um acordo rapidamente.
Na saída do prédio, naquela tarde, Jerry Siegel
disse a Robinson que não aguentava mais. Estava
fisicamente doente e preocupado com o coração.
Podia viver sem o crédito; só precisava ver aquilo
tudo terminado. Robinson disse que acreditava que
poderia ganhar a parada. “Dou mais um dia só”,
disse Jerry. “Seja o que for que os advogados pro-
ponham, é com isso que vou viver amanhã. Sinto
muito.”
Emmett tinha dado o número do telefone de sua
casa para Robinson no decurso das negociações.
Naquela noite, Robinson ligou para ele. “Jay”, dis-
se ele, “nós temos que encerrar isso de algum jeito.
Você quer um fim da publicidade adversa. Dê a
eles o ‘criado por’ e a Warner sai com fama de boa-
zinha.” Emmett disse que ligaria para os advogados
e voltaria a falar com ele. Cerca de uma hora de-
pois, ligou de volta dizendo que eles poderíam co-
locar o crédito nas revistas em quadrinhos, mas não
nos brinquedos nem no filme — era muito difícil
pôr texto em brinquedos de plástico, e os créditos
do filme já estavam prontos. Robinson deu risada.
596
“Concordo com os brinquedos”, disse ele, “mas te-
nho experiência suficiente em cinema para saber
que os créditos são a última coisa que se faz.” Em-
mett teve de rir também. “Ligo daqui a pouco pra
você”, disse ele. Pouco depois da meia-noite, o te-
lefone de Robinson tocou outra vez. “Certo”, disse
Emmett. “Crédito em todo o material impresso, na
televisão e nos filmes. Mas não nos brinquedos.”
Estava feito.
No dia seguinte, 19 de dezembro, uma sexta-
feira, as partes deram os últimos retoques no acor-
do. A assinatura dos contratos foi programada para
a quarta-feira seguinte. Robinson prometeu uma
entrevista exclusiva para o CBS News. Joanne e
Laura Siegel acompanharam Jerry e Joe na cerimô-
nia de assinatura no Rockefeller Center. Depois
disso, Robinson acenou para um táxi na rua gelada
e levou Jerry e Joe até seu apartamento, no Upper
West Side. Ele e a mulher tinham preparado uma
festinha em homenagem aos dois que começaria
cedo o bastante para que todos vissem o anúncio do
acordo no noticiário da noite. O apartamento se en-
cheu de pessoas que haviam ajudado na campanha.
Neal Adams era um deles, além de Jules Feiffer,
Norman Mailer e Kurt Vonnegut. Os vizinhos de
Robinson, Anne Jackson e Eli Wallach, deram uma
passada também. Jerry e Joe ocuparam os lugares
de honra diante da TV na hora do noticiário. As no-
tícias foram passando, uma atrás da outra, e nada
597
sobre o acordo de Jerry e de Joe com a Warner. Ou-
tras notícias pelo visto tinham desbancado a dos
dois.
E então, nos momentos finais do telejornal,
Walter Cronkite começou a falar dos rapazes de
Cleveland que haviam criado e perdido um herói.
Contou da pobreza em que haviam vivido e da luta
para obter reconhecimento da editora. Enquanto
anunciava a assinatura do acordo, apareceu uma
imagem do Super-Homem voando na tela. “Mas,
até que enfim, hoje”, disse Cronkite, “foi a vez da
verdade, da justiça e do jeito americano triunfa-
rem.”
Jerry e Joe não conseguiram escutar mais nada
entre os aplausos e ovações que encheram a sala,
mas durante mais alguns segundos mantiveram os
olhos na tela, como se ainda não estivessem acredi-
tando no que acabara de ser dito. E viram os lábios
de Cronkite formulando a frase final: “E as coisas
ficam assim; 24 de dezembro de 1975.”

O ACORDO COM Siegel e Shuster foi apenas


uma parte de mudanças de imagem mais radicais
que a Warner Communications imprimiu à subsi-
diária encarregada dos quadrinhos. Poucas semanas
depois do acordo, Carmine Infantino, o diretor edi-
torial da National Periodicals — com sua voz rouca
e o eterno charuto na boca — foi dispensado. Seu
substituto foi uma executiva diferente de tudo o que
598
já se vira na indústria: Jenette Kahn, até então en-
volvida na publicação de revistas infantis, trinta e
poucos anos de idade, filha de um rabino reformista
do Upper East Side, uma completa estranha na rede
até então exclusivamente masculina das revistas em
quadrinhos. Sob a gestão de Kahn, a empresa se
desvencilharia até mesmo do nome que Jack Lie-
bowitz lhe dera, passando a ser DC Comics Incor-
porated. Naquele mesmo ano, um jovem editor,
Paul Levitz, foi promovido a coordenador editorial.
Paul era um fã alucinado dos quadrinhos que aos
14 anos arrumara um emprego na National e nunca
mais largara. Sua grande paixão era a Legion of Su-
per Heroes, uma série iniciada por Jerry Siegel no
começo da década de 1960, e mesmo enquanto gal-
gava os postos da empresa sempre aproveitava toda
e qualquer oportunidade para escrever histórias
para ela. Com a ascensão de Paul, não restava mais
dúvida nenhuma de que os fãs estavam tomando
conta da indústria.
Em fevereiro de 1976, a DC apresentou seu
lado agradável ao mundo, patrocinando uma con-
venção de quadrinhos em Nova York. Paul Levitz,
que cuidou da programação, levou não apenas os
favoritos do momento como também algumas das
figuras mais importantes do passado da DC: Bob
Kane, Sheldon Mayer, Jack Schiff e os criadores do
Super-Homem. Jerry e Joe se encontraram com fãs
que nem sabiam ter e reataram contato com gente
599
com quem não falavam havia décadas.
Um antigo colega preferiu não participar da
convenção, por causa de sua saúde, mas fez questão
de ir até a cidade para ver Jerry. Mort Weisinger
continuava sendo o mesmo sujeito enfezado e
amargo de sempre, mas estava mais obeso do que
nunca e lutava para controlar a pressão arterial.
Quando viu Jerry porém, agiu como se ambos nun-
ca tivessem sido menos que grandes amigos. Lem-
brou dos velhos tempos, em que eram ambos fãs in-
condicionais de ficção científica, e das maluquices
dos primeiros tempos da indústria dos gibis. Suge-
riu que Jerry propusesse algumas idéias para o ve-
lho companheiro deles, Julie Schwartz, que ainda
editava a Superman. Jerry não conseguiu ter raiva
de Mort. Por mais ressentido que estivesse, Jerry
nunca conseguia levar sua mágoa adiante quando
era recebido com simpatia; queria muito que gos-
tassem dele. Quando Mort morreu, dois anos de-
pois, foi uma das poucas pessoas do ramo que falou
coisas boas dele.
Mas também houve quem se mostrasse menos
disposto a contemporizar. Um belo dia Jerry Robin-
son viu Jack Liebowitz almoçando sozinho num
restaurante. Querendo ser educado, parou para
cumprimentá-lo. Levava consigo um exemplar de
seu último livro, The Comics, e resolveu mostrá-lo.
Liebowitz folheou superficialmente o volume, até
topar com um trecho a respeito do Super-Homem.
600
Ergueu então os olhos para Robinson e rosnou:
“Por que você tinha que sair em defesa do Siegel e
do Shuster?” Robinson retrucou na hora: “E por
que você tinha que ferrar com a vida deles?” Pegou
o livro de volta e foi embora.
Um novo mundo se abriu para Jerry e Joe em
1976. Com seus 20 mil dólares por ano, Joe podia
finalmente fugir do frio de Nova York e do quarto
acanhado no apartamento do irmão. Mudou-se para
o sul da Califórnia para ficar mais perto de Jerry e
Joanne. Nem bem tinha chegado quando foram am-
bos chamados para figurar como convidados de
honra da San Diego Comics Convention. Depois de
tantos anos de invisibilidade, mal puderam acredi-
tar na receptividade do público, no prêmio “Inkpot”
por uma vida de contribuição aos quadrinhos, na
ovação em pé depois do pequeno pronunciamento
que fizeram, nos jovens que apertavam a mão deles
e agradeciam a ambos por terem tornado possíveis
os comic books e os super-heróis. O fandom ainda
era pequeno — a convenção de San Diego contou
com a presença de algumas centenas de negocian-
tes e colecionadores no salão de baile do hotel El
Cortez —, mas eram pessoas leais e apaixonadas.
Jerry, mais do que Joe, apreciou bastante a atenção
dos fãs. Eles lhe pareciam um tanto diferentes dos
fãs com quem crescera, com suas camisetas surra-
das, cabelos compridos, barbas e costeletas, mas
Jerry logo se sentiu à vontade — o zelo míope que
601
tinham pelos objetos de sua devoção, o conheci-
mento obsessivo que demonstravam, a inépcia na
vida em sociedade e o entusiasmo ilimitado, tudo
aquilo lhe era muito familiar. A cultura geek da
qual Jerry fora um dos pioneiros, na década de
1920, se aguentara firme, prosperara e agora o ho-
menageava.
Jerry e Joe circularam pelo circuito de conven-
ções durante os dois anos seguintes, dando autógra-
fos e revendo revistas em quadrinhos levadas por
fãs, revistas que eles haviam produzido às pressas
na juventude, agora guardadas com todo o cuidado
e vendidas por centenas de dólares. Para ambos po-
rém o verdadeiro triunfo ocorreu em dezembro de
1978, quando foram levados de limusine à estréia
de Superman — O Filme. Foram apresentados aos
astros e conversaram com os repórteres. Escutaram
a platéia aplaudir quando o nome “Super-Homem”
apareceu na tela. Depois viram os próprios créditos
surgirem: “Baseado no comic book criado por Jerry
Siegel e Joe Shuster”. Quando o filme rodou, Jerry
e Joe viram Marlon Brando no papel de Jor-El, pai
do Super-Homem, o personagem que eles haviam
batizado e desenhado havia tanto tempo.
O Super-Homem da tela grande era uma síntese
de várias versões, mas condizia acima de tudo com
o personagem buliçoso, bem-disposto e contente
que eles haviam criado na década de 1940. E se
mostrava tão cheio de brilho e frescor no final da
602
década de 1970 quanto havia sido para os leitores
da depauperada época do final da Depressão, havia
exatos 40 anos. “Você vai acreditar que ele voa”,
prometiam os anúncios, e o filme cumpriu a pro-
messa, não só graças aos modernos efeitos especi-
ais como também ao entusiasmo ingênuo que vinha
de uma outra era do cinema. Muita coisa no roteiro
e a própria filmagem levavam o espectador de volta
à década de 1940 — o Super-Homem era apresen-
tado como uma figura originada na inquebrantável
confiança juvenil para conferir energia ao cansado
público de meia-idade. O Homem do Amanhã vol-
tara à vida como Homem de Ontem, e como tal se
tornou o grande evento da cultura de massa do final
da década de 1970. Jerry e Joe eram de novo rele-
vantes.
Ambos se queixaram da falta de participação fi-
nanceira nos lucros: “Acho ótimo que Marlon
Brando receba 3 milhões de dólares por 12 dias de
trabalho”, disse Jerry, “e que Mario Puzo receba
250 mil só para ser um dos roteiristas. Mas seria
muito bom se Joe e eu não tivéssemos ficado de
fora.” Mas ambos também agradeceram a Warner
Communications e elogiaram o filme.
“Cheguei até mesmo a conhecer o produtor Ale-
xander Salkind”, comentou Jerry todo orgulhoso
em conversa com um repórter. “E lhe disse que
gostaria de ser contratado como consultor nos
próximos filmes que forem feitos. Se ele tivesse me
603
contratado para este, eu poderia ter apontado os er-
ros que cometeram e ter dado sugestões que torna-
riam o filme ainda mais bem-sucedido.”
Continuava sendo o mesmo cara insistente dos
primeiros tempos. Continuava sendo um geek.

SUPERMAN — O FILME foi um precursor de


mudanças que ocorreríam na cultura de entreteni-
mento de massa na década de 1980. O que antes
não passava de diversão para a garotada e para os
nerds começou a interessar ao grande público.
Guerra nas Estrelas foi o primeiro a chegar, e aju-
dou a criar mercado para Superman. Durante os
anos que se seguiram, Jornada nas Estrelas, Alien,
O Oitavo Passageiro, Os Caçadores da Arca Per-
dida, Conan, O Bárbaro, E. T. — O Extraterrestre
e suas muitas sequências e imitações firmaram o
“filme gibi” — veloz, repleto de piadas cifradas
para os fãs de super-heróis e monstros — como o
gênero de maior bilheteria do cinema. Décadas de-
pois, continua sendo assim.
Outros veículos de comunicação descobriram
transformações semelhantes naquilo que seu públi-
co queria. Numa determinada época, romances fan-
tasiosos e de ficção científica eram consumidos
apenas por um pequeno número de leitores — ado-
lescentes amalucados e fãs já adultos que se identi-
ficavam pelo amor ao gênero e que fugiam do que
estivesse muito na moda e fosse popular no com o
604
público em geral. Mas de repente o cyberpunk — a
ficção científica com estilo e atitudes punks — era
movimento literário de sucesso e o gibi de terror de
Stephen King vendia muito. A indústria da anima-
ção voltou à vida quando os estúdios de cinema e
de televisão, percebendo que o pessoal de vinte e
poucos anos fazia parte integrante do público tanto
quanto a garotada, passaram a promover desenhos
graficamente surpreendentes, escritos com inteli-
gência, cheios de humor e de autocitações. Come-
çando em 1987, Jornada nas Estrelas — aquele
santo graal de tediosos fãs assexuados e gorduchos
— se infiltrou na televisão e, com sua Nova Gera-
ção, se tornou um dos programas favoritos das mu-
lheres de 25 a 50 anos.
Assim que a fantasia passou a fazer parte do
mainstream, durante a década de 1980, apareceram
novos e antigos veículos de comunicação para par-
ticipar da indústria de entretenimento para adultos.
O video-game estourou no mercado com o jogo
Space Invaders da Atari — uma subsidiária da
Warner Communications. Brinquedos de plástico
inspirados em personagens de cinema já eram co-
muns havia décadas entre a garotada, e um pequeno
número de fãs adultos até guardava seus favoritos
para a posteridade. Mas com Guerra nas Estrelas
esses brinquedos se tornaram itens “colecionáveis”.
De uma hora para outra, milhões de consumidores,
entre adolescentes e adultos, passaram a vasculhar
605
as lojas atrás de personagens que faltavam para
suas coleções.
Na era do computador, da aldeia global, do con-
sumo em ascensão, das cidades-dormitórios, da ce-
lebração da diversidade e também do relativismo
cultural, moral e filosófico, os interesses dos geeks
se tornaram os interesses do mundo cultural. Os
geeks foram os primeiros a conhecer o prazer e a
poderosa sensação de organizar informações inú-
teis. Foram os primeiros a conhecer a alegria de se
unir em torno de totens industrializados, assim
como entenderam primeiro a inconveniência das
velhas classificações sexuais, o desejo de glorificar
e caricaturar o corpo e a necessidade de sufocar a
agressão e dissipá-la em fantasias quadrinísticas. A
década de 1980 marcou o triunfo dos geeks.
Nesse mesmo período, a indústria das revistas
em quadrinhos entrou em ascensão. As “lojas espe-
cializadas em quadrinhos”, que atendiam o número
crescente de fãs dos anos 1970, alcançaram tama-
nho sucesso no fim da década que lhes permitiu
exigir mudanças na maneira de negociar com as
editoras. No lugar do velho sistema de consigna-
ção, no qual os revendedores não corriam nenhum
risco financeiro e quase metade do material impres-
so era devolvido em troca de crédito, as lojas espe-
cializadas instituíram um sistema direto de com-
pras, em que as revistas eram adquiridas das pró-
prias editoras, sem reembolso previsto no caso de
606
mercadoria encalhada. Isso transferiu o risco das
editoras e distribuidoras para os revendedores, mas
em troca os revendedores passaram a receber as re-
vistas um mês antes das bancas de jornal e em con-
dições físicas muito melhores (uma questão não de
todo insignificante quando os colecionadores se
tornaram uma fatia considerável do mercado). Com
a mudança, os gibis puderam sobreviver com tira-
gens menores, o que possibilitou a produção de um
material mais esotérico e focado nos fãs; os custos
por edição puderam aumentar, o que permitiu a im-
pressão de produtos mais bem-acabados e colecio-
náveis; e as editoras tiveram espaço para assumir
alguns riscos a mais, inclusive o de fugir um pouco
do código que regulamentava o conteúdo dos qua-
drinhos para ver o que os velhos fãs se dispunham a
patrocinar.
No início da década de 1980, estava em anda-
mento uma revolução na área. A Marvel e a DC ex-
pandiram suas linhas e, das lojas de varejo e das
empresas de distribuição mais recentes, surgiram
novas editoras para lidar com o “mercado direto de
vendas”. Nova York continuava sendo o centro dos
negócios, mas apareceram editoras em Chicago,
Los Angeles, San Diego e na sonolenta Forestville,
na Califórnia. Com as novas editoras oferecendo ao
autor direitos e participação nos lucros, tanto a
Marvel como a DC foram obrigadas a oferecer di-
reitos autorais e incentivos para não perder seus ta-
607
lentos. Escritores e artistas já bem estabelecidos, há
muito frustrados com as restrições do antigo merca-
do, começaram a contar histórias de uma amplitude
e complexidade inéditas. Uma nova geração de fãs
entrou para a produção de quadrinhos com suas
próprias fantasias de como deveria ser o veículo.
Adolescentes criados com uma alta dose de su-
per-heróis se viram dentro dos mesmos locais e da
mesma subcultura dos velhos hippies, responsáveis
pelos “underground comix”. E bolaram quadrinhos
do tipo Love and Rockets, dos irmãos Hernandez,
em que mecânicos méxico-americanos e guitarris-
tas punks se encontram com amazonas dotadas de
superpoderes e monstros à la Jack Kirby. Esses
mesmos jovens receberam bem coisas como Maus,
em que Art Spiegelman lança mão do recurso do
“bichinho engraçado” para contar a dolorosa histó-
ria do Holocausto. Spiegelman seguira uma trilha
muito própria desde os tempos em que admirava
Spirit de Will Eisner e desenhava quadrinhos para a
Help de Harvey Kurtzman, bem como para outras
publicações de vanguarda, até conseguir, na década
de 1980, publicar sua própria revista de arte gráfi-
ca, chamada Raw. Em Maus, ele entrelaçou fios da
cultura de massa, da sátira, das belas artes e da his-
tória judaica para criar a primeira HQ americana
sobre a qual fãs e críticos literários chegaram a uma
mesma conclusão: tratava-se de obra de arte signi-
ficativa.
608
As novas revistas em quadrinhos encontraram
um mercado bem maior do que o anterior. Havia
revistas para punks, para estudantes de arte, para
meninas de colégio, para jovens republicanos e
para pálidos homens de meia-idade que gastavam
as noites organizando e reorganizando suas imensas
coleções de velhos super-heróis. Os quadrinhos ga-
nharam classe, mas continuaram também sendo
coisa de geek, numa confluência do elevado com o
tolo que não poderia ter ocorrido antes da década
de 1980.
Esse novo fandom também tinha um senso his-
tórico. Jack Kirby, tendo deixado a Marvel Comics
por não conseguir ser dono ou controlar os persona-
gens por ele criado, produzira na década de 1970
uma nova linha de revistas para a National que, em
sua grande maioria, foram canceladas. No entanto,
10 anos depois, as editoras independentes resolve-
ram trazer essas revistas de volta. Quando Kirby se
viu numa acirrada disputa com a Marvel Comics,
que se recusou a devolver a arte dos originais e lhe
dar o devido crédito por suas co-autorias — Hulk,
X-Men, o Quarteto Fantástico e boa parte do resto
da linha de super- heróis — os fãs se uniram para
apoiá-lo. Houve coleta de fundos, foram assinadas
petições, a grande imprensa foi avisada e os execu-
tivos da Marvel foram pressionados, até que Kirby
conseguisse de volta uma parte de seu trabalho
gráfico original e obteve reconhecimento como fi-
609
gura seminal da arte popular americana. Tornou-se
de tal modo símbolo do brilho, da ira e do sofri-
mento dos artistas de HQ que, mais do que qual-
quer outro, foi quem inspirou Michael Chabon a es-
crever As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay.
Quando a indústria da HQ instituiu a primeira
grande premiação do gênero, em 1985, os prêmios
foram chamados de Kirby Awards. Quando o grupo
que distribuía os prêmios se dividiu, alguns anos
mais tarde, uma facção instituiu os Harvey, assim
chamados em homenagem a Harvey Kurtzman, da
Mad e dos quadrinhos de guerra da EC; o outro
grupo instituiu os Eisner. Sim, porque Will Eisner
também estava de volta.
Em 1975, depois de décadas produzindo quadri-
nhos para o exército dos Estados Unidos contendo
instruções às tropas, ele havia feito um trato com o
editor Jim Warren para reimprimir suas antigas his-
tórias do Spirit. Os novos fãs acolheram em êxtase
a notícia. Dois anos depois, quando Eisner estava
prestes a completar 60 anos, decidiu que chegara a
hora de concretizar um antigo sonho e criar uma
“graphic novel”, um dos primeiros livros do gêne-
ro, um trabalho de ficção realista em quadrinhos.
Contrato com Deus (A Contract, with God) é com-
posto por quatro histórias que narram a vida dos
moradores judeus de um conjunto habitacional do
Lower East Side no começo do século XX e marca
o primeiro mergulho literário de Eisner na essência
610
da cultura judaica de onde ele e tantos de seus pares
haviam saído. Nas livrarias, o livro não vendeu
muito bem, mas os fãs mais sofisticados receberam
a obra como sendo a corporificação do que aquele
amado ramo dos quadrinhos podia e deveria ser.
Os fãs forneceram o grosso do público que
apoiaria os livros de Eisner em anos futuros. Um
veterano dos quadrinhos de vanguarda, os “under-
ground comix”, chamado Denis Kitchen, lançou o
Will Eisner Quarterly, a primeira revista americana
dedicada a um só quadrinista a sair periodicamente.
Até o final da década de 1980, Eisner já era reco-
nhecido pelos fãs em geral como o estadista da HQ.
Participava todos os anos da entrega dos Prêmios
Eisner na San Diego Comics Convention — sem-
pre muito alinhado, de terno e gravata, bem distante
do antigo patrão a disparar ordens para a produção
em massa de quadrinhos, mas ainda com as rédeas
nas mãos. Aquela altura, a convenção já ultrapassa-
ra em muito os limites de um salão de baile de ho-
tel e tomara conta do San Diego Convention Cen-
ter, atraindo 30 mil participantes por ano. O auditó-
rio para entrega dos Eisner Awards era tão grande
quanto os salões que comportavam convenções in-
teiras uma década antes.
Embora os novos quadrinhos trouxessem histó-
rias de todos os gêneros e estilos possíveis, o cerne
comercial do negócio e o grande fascínio da maio-
ria dos geeks continuavam sendo os super-heróis. A
611
onda na década de 1980 foi remodelar os velhos
heróis e lhes dar um estilo mais ácido e autocrítico,
que seduzisse os velhos fãs, já distanciados das pe-
ripécias da infância. Um jovem quadrinista chama-
do Frank Miller transformou Daredevil (Demoli-
dor) numa violenta série de suspense inspirada em
grande parte nos velhos filmes noir. Em 1986, Mil-
ler lançou Batman: The Dark Knight Returns, uma
edição cara, em quatro volumes, impressa em papel
cuchê, em que ele imagina o Cruzado Encapuzado
como um amargo vigilante enfronhado num duelo
quixotesco pelo regresso da velha ordem, lutando
contra um Super-Homem fascista numa Gotham
City de pernas para o ar. A ousadia, a crueldade e o
pesado grafismo expressionista dos quadrinhos
causaram sensação entre os fãs; a publicação foi
um sucesso de vendas nas livrarias e um teste deci-
sivo para mostrar os caminhos do “cult popular an-
tenado” entre a turma de vinte e poucos anos. O fa-
buloso sucesso comercial do livro e a cobertura re-
cebida dos meios de comunicação ajudou a incenti-
var a Warner Brothers a fazer do filme Batman
uma realidade.
Ato contínuo, a DC destacou outro quadrinista,
John Byrne, para remodelar o Super-Homem. Byr-
ne retomou a história desde o início, descartando o
Superboy, a Supergirl, Krypto, o supercão, a cidade
de Kandor dentro da garrafa e quase todos os ou-
tros acréscimos das quatro décadas anteriores. Re-
612
duziu os poderes do herói aos níveis em que Jerry e
Joe os haviam deixado na década de 1940 e restau-
rou a alegria, o humor e os grafismos amplos dos
primeiros tempos. Entretanto também desfez o
principal nó emocional da criação de Jerry e Joe: o
Clark Kent de Byrne era um rapagão cheio de con-
fiança e, na luta pelo afeto de Lois Lane, um rival
de peso para seu próprio alter ego. Era um novo
tipo de identidade secreta para uma nova garotada.
O próprio Byrne era um astro confiante, até mesmo
arrogante, de uma indústria em ascensão — amado,
odiado e invejado por dezenas de milhares de fãs.
Com o novo Clark Kent, mostrou ao mundo a ima-
gem que os geeks começavam a fazer de si mes-
mos.
Em 1989, quando o filme Batman quebrou to-
dos os recordes de bilheteria, o super-herói passou
a ser cultuado como elemento essencial da imagi-
nação do mercado de massa. Ao contrário do Su-
perman de 11 anos antes, o Batman de Tim Burton
não se voltou para os sonhos perdidos de infância
ou para as décadas anteriores; o filme colocou o
vingativo inimigo do crime solidamente na cons-
ciência do jovem, do antenado, do cínico e do pira-
do. Bill Finger e Bob Kane haviam criado um per-
sonagem tão elementar e tão verdadeiro que nada
era mais fácil do que transformá-lo, aos olhos de
uma geração separada da deles por cinco décadas,
na corporificação da dúvida, da raiva, e do anseio
613
por uma liberdade explosiva.
Um novo boom de super-heróis ocorreu logo
depois do filme Batman. Assim como o boom às
vésperas da Segunda Guerra Mundial, proporcio-
nou pequenas fortunas àqueles que souberam se
mexer rápido para aproveitar o momento. O dinhei-
ro era grosso o suficiente para levar oportunistas de
Wall Street, como Ron Perelman e Carl Icahn, a
iniciar uma guerra pelo controle da Marvel Comics
que quase arruinou a empresa. Só que nesse último
boom escritores e desenhistas estiveram entre os
que ganharam fortunas. Os mais populares dese-
nhistas da Marvel daquele momento formaram uma
empresa própria, a Image Comics, que vendeu mi-
lhões de exemplares de seus primeiros lançamen-
tos. O pessoal da velha-guarda também se benefici-
ou. Bob Kane obteve uma porcentagem de todo o
Bat-marketing e vendeu retratos de Michael Keaton
e Jack Nicholson (pintados por um artista “fantas-
ma”) por milhares de dólares. Stan Lee saiu da
Marvel, fundou a Stan Lee Media e passou a produ-
zir super-heróis para a internet. Infelizmente os só-
cios deram um calote nos investidores e acabaram
na cadeia, deixando a Stan a tarefa de consertar os
estragos — o ramo dos gibis não tinha mudado tan-
to assim, no fim das contas.
O ano de Batman também marcou a apoteose da
empresa que o tinha em seu elenco. Steve Ross or-
questrou uma fusão da Warner Communications
614
com a Time-Life Company, criando uma das maio-
res companhias editorias e de entretenimento do
mundo. No entanto, a partir desse momento, a roda
da fortuna girou contra Steve Ross. O governo co-
meçou a investigar suas atividades, em virtude de
antigas ligações com a máfia, caixa dois e opera-
ções de lavagem de dinheiro. Seu amigo Jay Em-
mett assumiria parte da culpa e o manteria fora da
cadeia; mas a essa altura o câncer já estava corro-
endo o corpo de Ross. Ele morreu em 1993, e o
conglomerado que forjou continuou crescendo. E
lucrando com os super-heróis.

LOGO NO COMEÇO da nova fase de grande


sucesso dos quadrinhos, Jerry Siegel tentou pela úl-
tima vez ressuscitar sua carreira de escritor. Enviou
propostas de séries para quase todas as pequenas
editoras que surgiram no mercado. A Eclipse Co-
mics publicou um punhado dessas suas histórias,
mas as demais infelizmente o dispensaram. Ele en-
trou em negociações com a DC para escrever algu-
mas edições especiais de Superman, mas os contra-
tos nunca eram considerados satisfatórios por ele;
Jerry passara a ser muito cuidadoso com o que assi-
nava.
Em 1986, Tom Hall, da Elite Comics, tomou
conhecimento da história de Siegel de uma forma
desagradavelmente intensa. “Eu não conseguia
acreditar que estava diante de uma proposta feita
615
pelo criador do Super-Homem”, disse. “Rasguei o
envelope às pressas e tirei os roteiros de lá de den-
tro. O primeiro tratava de um personagem chamado
‘Policial do Futuro’, no outro havia um Slam Brad-
ley requentado, e ambos tinham duas versões, uma
‘livre’ e outra ‘só para maiores de idade’. Mas não
deu para chegar até o fim. Logo depois que come-
cei a ler, senti umas coceiras. Depois reparei que
havia pulgas saltando das páginas do roteiro. Le-
vantei mais que depressa e levei aqueles papéis
para fora da minha sala, para não infestar tudo.
Tive de me livrar dos roteiros e do envelope, por-
que estavam cheios de pulgas também. E tudo em
que eu conseguia pensar naquela hora era que ali
estava o trabalho de alguém a quem todos nós deví-
amos tanto e que morava num apartamentozinho de
Los Angeles cheio de pulgas.”
Mas, com o Super-Homem rendendo cada vez
mais dinheiro, Jerry pôde enfim parar de procurar
trabalho, depois de 35 anos de luta. Após Super-
man — O Filme, vieram Supergirl, depois uma
série de desenhos animados transmitida aos sába-
dos pela manhã e então em 1988, Superboy, um se-
riado para a televisão que se manteve por quatro
anos. O público voltou a se interessar pelo Super-
Homem depois da reformulação de 1986, e não de-
morou para que os quatro títulos do Homem de
Aço passassem a responder por vendas que atingi-
ram quase 1 milhão de exemplares por mês. A ima-
616
gem do Super-Homem foi licenciada para uma
imensa gama de produtos, não só para artigos in-
fantis; havia cartões e até roupas para modernosos
embebidos na cultura de massa. A cadeia de par-
ques temáticos Six Flags assinou um acordo com a
Warner que transformou Super-Homem, Batman e
a turma do Looney Toons em mascotes seus. Gente
de dentro da Time-Warner, inclusive Paul Levitz,
da DC Comics, pressionou a empresa a dividir uma
pequena parte dessa bonança com Siegel e Shuster.
Embora os números nunca tenham sido divulgados,
consta que as pensões anuais de Jerry e Joe já ti-
nham ultrapassado os 100 mil dólares no fim da
vida dos dois, e que os herdeiros continuaram rece-
bendo o mesmo.
Era uma quantia irrisória perto do que a Time-
Warner ganhou com o Super-Homem, mas permi-
tiu aos dois levar uma vida confortável. Jerry, Joan-
ne e Joe acabaram adquirindo confiança em Levitz,
que passou a cuidar dos interesses deles da melhor
forma possível, sempre dentro dos limites impostos
pela Time-Warner. “Nós agora temos um relacio-
namento excelente com a DC Comics”, Jerry diria
na década de 1980. “Eles têm sido de fato muito
bons conosco”, confirmaria Joe.
Joe Shuster vivia sossegado no conforto de seu
apartamento de um quarto e gastava seu dinheiro
em equipamento de som. Trocava de aparelho até
duas vezes por ano e doava o antigo aos cegos. Em-
617
bora continuasse visitando Jerry e Joanne, não teve
mais contato com fãs nem com publicidade. Até
que, em abril de 1992, concordou em dar uma últi-
ma entrevista ao jornal que havia vendido na rua
quando tinha 9 anos, o Toronto Star. A foto que
acompanhou a entrevista mostrava um velho quase
incapaz de segurar os gibis entregues pelo fotógra-
fo, mas o texto mostrava outra coisa — todas as
suas lembranças de vida, desde a infância em To-
ronto até aquele instante eram nítidas e, em sua
maioria, agradáveis. Joe parecia estar em paz com o
rumo de sua vida. “Nem todo mundo pode dizer
que vai deixar um legado tão importante quanto o
Super-Homem”, disse. “Mas Jerry e eu podemos, e
essa é uma sensação muito boa.” Três meses de-
pois, no dia 30 de julho de 1992, o coração de Joe
Shuster falhou e ele morreu, aos 78 anos de idade.
Jerry e Joanne Siegel puderam escapar das pul-
gas e do barulho do trânsito do seu apartamentinho
em Los Angeles e comprar uma casa num condo-
mínio de Marina Del Rey, de frente para o oceano
Pacífico. Jerry parou de tentar vender roteiros para
histórias em quadrinhos e, aos 70 anos, acomodou-
se por fim na vida de aposentado. A filha Laura fa-
zia carreira na televisão, escrevendo e produzindo;
casara-se e dera a ele dois netos. Quando Jerry
Fine, o primo de Cleveland que apresentara Jerry
Siegel a Joe Shuster, foi visitá-lo, encontrou Siegel
animado, ansioso para lhe mostrar a cidade. E na
618
ocasião disse que, muito mais que o dinheiro que
estava finalmente recebendo, sua maior satisfação
era saber que toda revista, todo filme e todo episó-
dio na televisão em que o Super-Homem apareces-
se levava seu nome.
Jerry viveu ainda tempo suficiente para ver seu
herói atingir mais um pico de atenção nacional. Em
1991, a DC tinha publicado uma história em que o
Super-Homem revelava sua identidade secreta a
Lois Lane e a pedia em casamento. Cinquenta anos
antes, Siegel havia proposto a mesma idéia a seus
editores, sem nenhum resultado. Porém, nos anos
1990 o editor Mike Carlin achou que seria uma boa
maneira de manter a atenção do público leitor con-
centrada no envelhecido herói. Ao saber da novida-
de, a imprensa deu cobertura, o que ajudou a im-
pulsionar as vendas, mas a sequência nunca foi pu-
blicada. E isso porque, assim que o casamento foi
anunciado, a diretora da DC, Jenette Kahn, fechou
negócio com a ABC e com a Lorimar Productions
para o lançamento de um seriado feito para a televi-
são chamado Lois e Clark: As Novas Aventuras do
Superman. Só isso já era um sinal de quão fundo o
Super-Homem havia penetrado na psique popular.
O programa tinha o público feminino adulto como
alvo; o herói e sua identidade secreta eram objeto
de fantasias românticas e concretizavam as comple-
xidades do sexo e da sexualidade no mundo moder-
no. O Super-Homem dera um salto muito maior,
619
para além das nostalgias e fantasias juvenis de po-
der, e se tornara o próprio sonho nacional, um pon-
to universal de referência.
O primeiro impacto de Lois e Clark, contudo,
foi adiar indefinidamente o casamento dos dois, já
que o seriado iria se concentrar na acirrada tensão
erótica existente entre o casal. Mike Carlin viu-se,
de uma hora para outra, necessitado de um “evento
editorial” diferente. E recorreu a um dos truques
prediletos da moderna revista em quadrinhos, a su-
posta morte do herói. Claro que os fãs sabiam que a
“morte” dele seria seguida por um retorno milagro-
so, mas a capacidade ilimitada do público de man-
ter o pacto ficcional, ou seja, suspender a descren-
ça, com certeza transformaria o episódio num me-
lodrama de sucesso. Carlin conversou com Jerry Si-
egel para ver se ele tinha alguma objeção à morte
temporária do Super-Homem. Jerry se sentiu lison-
jeado por ter sido consultado e disse que, por ele,
tudo bem, que era “uma boa maneira de sacudir um
pouco as coisas”. Todos os escritores e artistas en-
volvidos se sentiram mais à vontade com o enredo,
contou Carlin, “sabendo que o ‘papai’ do herói ha-
via aprovado.” Então foram em frente com a trama,
que deveria culminar nos números de novembro de
1992, e começaram a fornecer pistas aos fanzines
sobre o que estava por vir.
E então aconteceu algo estranho. Os boatos che-
garam à grande imprensa, e lá as pessoas tomaram
620
a notícia ao pé da letra. Começaram a surgir artigos
dizendo que, depois de 54 anos como o herói mais
conhecido do mundo, o Super-Homem estava pres-
tes a morrer. O Newsday publicou a notícia em pri-
meira página: “A Morte do Super-Homem”. Edito-
rialistas lamentaram e discorreram sobre o que isso
significava para o país, seus heróis e sua alma.
Ninguém no universo dos quadrinhos, conse-
guiu entender essa reação. E verdade que a maior
parte das pessoas fora do ramo ignorava a enormi-
dade dos lucros gerados por aquele nome; poucos
sabiam que o herói não corria o menor perigo de
ser cancelado, mas mesmo assim — como é que
tantos jornalistas inteligentes puderam imaginar
que uma grande empresa iria enterrar de vez uma
de suas marcas mais conhecidas? Talvez fosse por
causa do final melancólico que teve o filme Super-
man. Talvez o fim da Cortina de Ferro tenha contri-
buído para o estado geral das coisas; ou as preocu-
pações com os videogames e com a internet; ou en-
tão o aturdimento diante de eventos como hip-hop e
Quentin Tarantino; quem sabe até mesmo os pri-
meiros indícios de uma resignação de fim de sécu-
lo. Qualquer que tenha sido o motivo, os america-
nos se mostraram dispostos a acreditar que o Ho-
mem do Amanhã estava prestes a morrer, e eles não
o deixariam partir assim tão fácil.
As encomendas para o número em que se daria
sua morte atingiram a casa dos 5 milhões antes que
621
a revista chegasse às lojas. Quando ela finalmente
saiu, as pessoas fizeram fila para comprá-la. Lojas
que tinham adquirido centenas de exemplares im-
puseram limite de uma revista por comprador para
evitar distúrbios. Milhões de pessoas queriam ter o
último número de Superman, ou porque viam no
personagem um significado particular ou porque
acreditavam que significaria ainda mais para futu-
ras gerações. “A Morte do Super-Homem” foi uma
das histórias em quadrinhos mais famosas e mais
lucrativas de todos os tempos.
O Super-Homem retornou após alguns meses, é
claro, como todo o pessoal do ramo sabia que iria
acontecer. Sua ressurreição rendeu mais um pouco
de cobertura dos meios de comunicação e mais um
bom volume de vendas. Jerry Siegel aproveitou
tudo isso. Sabia que a artificialidade da morte não
eliminava aquilo que a reação do público provara:
que, com o Super-Homem, ele e Joe haviam criado
mais do que apenas um personagem efêmero em
quatro cores ou um ente de fantasia para garotos e
geeks. Em Glenville, durante a Depressão, no de-
sespero de dar certo na vida, na casa escura de Sa-
rah Siegel e no apartamento acanhado dos Shusters,
eles haviam criado um símbolo nacional.
Jerry Siegel morreu tranquilamente em sua
casa, na manhã do dia 28 de janeiro de 1996, uma
segunda-feira. Estava com 81 anos de idade. A DC
publicou um excelente obituário, no qual agradecia
622
a Jerry por tê-los ajudado a criar a indústria dos
quadrinhos. Entre os vários depoimentos de quadri-
nistas veteranos que falaram durante a cerimônia
fúnebre, o de Jerry Robinson será o mais lembrado,
quando disse a seguinte frase: “Durante muitos
anos Jerry ficou perdido nos ermos. Mas acabou
voltando para casa”.
No ano seguinte, Joanne Siegel tomou uma pro-
vidência que Jerry relutara em tomar, com medo de
estragar seu bom relacionamento com a Time-War-
ner. De acordo com as novas leis de direitos auto-
rais, ela tinha o direito de encerrar a concessão ori-
ginal que Jerry dera à DC e reivindicar a metade
dos direitos de propriedade sobre o título e os per-
sonagens. E fez isso mesmo. Dessa vez, não have-
ria ressentimento por parte dos executivos da edito-
ra. Paul Levitz e seus colegas da Time-Warner sa-
biam que Joanne estava fazendo apenas o que a lei
lhe permitia fazer e deixaram que a ação seguisse
seu curso. Em 1999, ela ganhou a primeira etapa.
Um tribunal declarou que a família Siegel era dona
de metade dos direitos autorais sobre a primeira
aparição do Super-Homem na revista Action Co-
mics. Cinco anos depois, no momento em que este
livro foi concluído, o caso continuava sendo discu-
tido e negociado, numa batalha interminável em
busca da verdade, da justiça e de uma solução para
a insolúvel questão de saber quem é o dono do faz-
de-conta.
623
AOS POUCOS, ela estava indo embora, a gera-
ção que havia criado os quadrinhos. Sheldon Ma-
yer, o editor que primeiro defendeu o Super-
Homem, morreu em 1991. Seu velho amigo Bill
Gaines se foi no ano seguinte. Jack Kirby morreu
em 1994, Bob Kane em 1998. Vin Sullivan, o pri-
meiro editor tanto do Super-Homem como do Bat-
man, morreu em 1999. Will Eisner, Jerry Robinson,
Stan Lee e alguns outros poucos veriam o surgi-
mento do novo século ainda na ativa. “Se você tiver
perguntas a fazer aos caras que começaram tudo
isso”, disse Stan a um entrevistador, “acho melhor
perguntar logo!”
A geração anterior, a que fora dona das primei-
ras editoras de quadrinhos, já tinha ido embora ha-
via tempo. O último a partir foi Jack Liebowitz.
Quando a Timer-Warner foi formada, Liebowitz
assumiu uma cadeira no novo conselho diretor e
continuou a aumentar sua participação na empresa.
Nos tempos de Spicy Adventure, Time e Life eram
publicações que existiam num espaço refinado mui-
to acima de suas possibilidades. E lá estava ele, to-
mando decisões na empresa que produzia não ape-
nas aquelas revistas como também a People e a En-
tertainment Weekly — e o ramo de revistas era uma
de suas atividades mais modestas. Jack continuou
mantendo um escritório no prédio da Time- Warner
e compareceu às reuniões da diretoria até os noven-
624
ta e poucos anos. Viu sua empresa lançar uma rede
própria de televisão em 1995 e, no ano seguinte, se
tornar um gigante da TV a cabo ao adquirir a Tur-
ner Broadcasting.
Quando Jack Liebowitz resolveu finalmente se
afastar dos píncaros empresariais, fez algo que nin-
guém poderia ter previsto: concedeu uma entrevista
a um fã de quadrinhos. Mike Catron era editor de
um fanzine, historiador amador e grande defensor
dos direitos de Siegel e Shuster, alguém que não es-
perava obter resposta quando pediu àquele senhor
velhíssimo e riquíssimo chamado Jack Liebowitz
uma entrevista. Mas Liebowitz permitiu que Catron
fosse a seu escritório e gravasse em vídeo respostas
a perguntas sobre sua vida, carreira e a compra do
Super-Homem. As respostas foram comedidas e
políticas, resumo de um respeitável empresário de
uma respeitável carreira. Mas o simples fato de ele
querer que seu lado da história fosse ouvido por um
mundinho tão pequeno e estranho como o dos fãs
de gibis já dizia muita coisa. De alguma forma,
apesar de tudo que Jack Liebowitz havia consegui-
do, o Super-Homem e os fatos confusos em torno
dele foram mais fundamentais para a visão que ti-
nha da própria vida do que poderíamos ter imagina-
do.
Em janeiro de 2000, a Time-Warner se fundiu
com a AOL no maior negócio empresarial da histó-
ria. Com a fusão, criou-se a quarta maior empresa
625
dos Estados Unidos, no valor de um terço de um
trilhão de dólares, empregando 80 mil pessoas. A
fusão transformou a indústria da mídia de massa e
consolidou a internet no mundo dos conglomerados
globais. Uma série de derrames, a essa altura, já ti-
nha prejudicado o cérebro e a fala de Jack, mas
Irwin Donenfeld, que de vez em quando ainda visi-
tava seu tio Jack, disse que ele parecia compreen-
der o que estava ocorrendo. Ao menos compreendia
que sua empresa alcançara uma riqueza e um poder
que jamais poderia ter imaginado nos tempos em
que vendia jornais e sonhava com a utopia socialis-
ta por vir entre os paralelepípedos da rua Allen,
num mundo que se fora havia muito tempo.
Jack morreu no dia 14 de dezembro de 2000.
Tinha 100 anos de idade. Havia atravessado o sécu-
lo cuja essência dominara tão bem. Deixou uma
fortuna calculada em centenas de milhões de dóla-
res. Deixou também Super-Homem, Batman e seus
pares como itens famosos e imensamente lucrativos
de um império de comunicações. Ninguém era mais
perito em equilibrar a contabilidade que Jack Lie-
bowitz.

OS HOMENS SE FORAM, mas a forma artísti-


ca e os personagens que eles criaram estão mais vi-
vos que nunca. A indústria dos quadrinhos sofreu
mais um violento revés depois do boom do começo
da década de 1990. De novo, revendedores e edito-
626
ras faliram e quadrinistas encontraram outras for-
mas de ganhar a vida. Mas, de novo, o fulcro da in-
dústria foi capaz de sobreviver, as vendas voltaram
a crescer e então surgiu uma outra geração de escri-
tores e artistas. Ninguém mais fala do fim iminente
das revistas em quadrinhos.
Novos títulos continuam sendo criados e encon-
trando admiradores; as revistas Superman, Batman,
Wonder Woman e Captain America continuam sen-
do reformuladas para atender às fantasias e aos so-
nhos da nova geração. Aquilo que havia sido outro-
ra a porta de entrada e o último recurso para ho-
mens que desejavam poder fazer algo melhor na
vida — os gibis de super-heróis — hoje em dia tem
uma mística toda própria. Kevin Smith, depois de
ficar famoso como cineasta com O Balconista e
Procura-se Amy, afastou-se do cinema para escre-
ver os roteiros de Daredevil para a Marvel. Quando
Joss Whedon se afastou da produção de Buffy, a
Caça-Vampiros, começou a escrever X-Men.
Personagem nenhum sobreviveu tão bem às
areias movediças da cultura de massa como os su-
per-heróis. Mickey Mouse e o Pato Donald perma-
necem como mascotes empresariais. Pernalonga e
Patolino ainda fazem um retorno ocasional, mas
nunca foram reinventados com sucesso para o mo-
mento atual. Blondie Bumstead ainda sai nos jor-
nais por hábito e nostalgia. Os heróis dos pulps, O
Sombra e Doc Savage, simplesmente sumiram.
627
Mas depois de quase 70 anos os super-heróis dos
quadrinhos continuam voando pelas telas dos cine-
mas, pelos televisores, em consoles de videogames
e em lojas de brinquedo do mundo inteiro. Talvez
eles até sejam mais conhecidos e mais relevantes,
culturalmente falando, do que eram quando novos.
Os quadrinhos se tornaram ponto de referência
tanto na mais esotérica arte e ficção como na mais
popular. Todo mundo entende uma alusão ao Su-
per-Homem ou uma piada com o Batman. Intelec-
tuais que cultuam o popular cercam o nome de
“Jack Kirby” com uma miríade de associações.
Aqueles que preferem os subterrâneos encardidos
da cultura americana gostam de Bill Gaines e Har-
vey Kurtzman, e os que mergulham ainda mais fun-
do não esqueceram de Charlie Biro. No livro Jack
Cole and Plastic Man: Forms Stretched to Their
Limits, Art Spiegelman e o designer gráfico Chip
Kidd exigiram que os quadrinhos dos super-heróis
fossem vistos como arte. Qualquer um que se inco-
mode com a exploração dos artistas populares sente
o coração acelerado só de ouvir menção aos nomes
de Jerry Siegel e Joe Shuster.
Os críticos, professores, filantropos e líderes re-
ligiosos que antes denunciavam aqueles gibis como
uma desgraça nacional passaram a adotá-los. Em
2003, o periódico Reform Judaism publicou um ar-
tigo de Arie Kaplan intitulado “Como os Judeus
Criaram a Indústria dos Quadrinhos”, reivindicando
628
parte da herança étnica que qualquer judeu respei-
tável das décadas de 1940 e 1950 teria negado com
veemência. No ano seguinte, Jerry Robinson mon-
tou uma exposição com os quadrinhos de super-
heróis para o museu judaico William Breman, em
Atlanta. Em 2001, o romance de Michael Chabon
sobre a “era de ouro” dos super-heróis, pontilhado
de referências a Will Eisner, Jack Kirby, Jerry Sie-
gel e Joe Shuster, ganhou o Prêmio Pulitzer. Al-
guns anos mais tarde, ele transformou a criação de
Kavalier e de Clay, O Escapista, num comic book.
E dessa forma os super-heróis passaram da literatu-
ra barata para a literatura propriamente dita, e de lá
de volta à primeira. Nada testou, pôs à prova ou
forçou a fluidez das artes contemporâneas tanto
quanto os super-heróis dos quadrinhos.
Nenhum mafioso ou geek, nem Harry Donen-
feld ou Jerry Siegel, poderia ter imaginado o que
seria feito de sua obra e de seus devaneios. Harry e
seus pares queriam apenas ganhar algum dinheiro,
se divertir e imprimir algumas fotos de mocinhas
peladas. Mas acabaram montando uma máquina —
feita de papel barato, distribuição irregular e da
fome de jovens capazes de expressar seus sonhos
— com a qual ninguém jamais sonhara até então.
Jerry e seus amigos geeks só queriam ver suas fan-
tasias circulando no mundo real e ganhar a vida
sem ter que procurar um emprego de verdade. Mas
destilaram as paixões de crianças e de desajustados
629
em símbolos tão puros e reluzentes que puderam
ser passados de geração em geração sem perder a
luz. Constantemente refeitos e remodelados, sem-
pre encontram o caminho de volta aos anseios ocul-
tos.
Esses homens, arrancados na infância de um
mundo antiquíssimo, mergulharam na corrente vital
de um país que vivia seus momentos mais jubilo-
sos, brutais, corruptos e ilimitados. Reagiram com
os desejos mais malucos, com as fantasias mais im-
prováveis, e durante a vida inteira trabalharam para
vender essas fantasias a uma nação que existia me-
tade em fatos aprendidos a duras penas e metade
em suas próprias imaginações. No choque entre de-
sejo e possibilidade, construíram uma nova realida-
de. Na estranha alquimia entre seus longos passa-
dos e o presente indefinível de uma nação híbrida,
vislumbraram e criaram o futuro.

630
Harry Donenfeld com sua jovem esposa Gussie em
1918, provavelmente em Coney Island. Harry parece agita-
do, absorto, alguém que não vê a hora de pôr fim àquela toli-
ce de lua-de-mel e voltar aos negócios — e à verdadeira far-
ra.

631
Jack e Rose Liebowitz por volta de 1940, com os negó-
cios indo de vento em popa. A fase do Lower East Side já ti-
nha ficado para trás e eles haviam se tornado um casal per-
feito para Great Neck (as fotos são cortesia de Irwin Donen-
feld).

632
Jerry Siegel e Joe Shuster, ambos sem óculos, numa foto
para publicidade do Super-Homem, provavelmente de 1940.
O momento era de grande confiança — haviam deixado para
trás uma dura escalada; pela frente, teriam uma descida pa-
vorosa.

633
A capa de revista que transformou legiões de jovens
americanos em fãs incondicionais da ficção científica —
Jerry Siegel entre eles. A arte é de Frank R. Paul, o ilustrador
suíço que definiu o futurismo utópico da década de 1920.

634
Outras capas de revista tinham efeitos diversos sobre os
jovens. No início, Enoch Bolles era um dos capistas predile-
tos de Harry Donenfeld e Frank Armer, pela genialidade com
que descobrira o ponto exato onde se entrelaçam sem esforço
o malicioso e o perverso. 1930 (Cortesia de Douglas Ellis.)

635
Eis aqui uma outra maneira de provocar os jovens. Pode-
se dizer que O Sombra foi o primeiro “super-herói”. Não era
sobre-humano, mas uma nova mistura de romance, violência
e marcas visuais registradas. Capa de George Rozen, 1936
(TM The Condé Nast Publications, Inc.)

636
Joe Shuster faz uma mescla das capas de pulps e das ti-
ras cômicas com a estética das revistas de halterofilismo para
dar ao Super-Homem sua primeira expressão visual. A cami-
sa justinha lembrava acrobatas e levantadores de peso de
1933.
637
Idealização da Mulher que iria complementar a idealiza-
ção do Homem. Joe Shuster disse que estava olhando para
uma adolescente chamada Jolan Kovacs quando desenhou
esse esboço de Lois Lane, em 1936; mas não resta dúvida de
que a inspiração vinha de sua própria mente, das lembranças
de filmes e de sonhos solitários. (Superman and Lois Lane™
DC Comics, Inc.)

638
Jake Kurtzberg, antes de se tornar Jack Kirby (no alto, à
direita), com colegas de jornalismo na Boys Brotherhood
Republic: procurando um jeito de sair do Lower East Side,
1935. (Cortesia da Blue Rose Press.)

639
Harry Donenfeld conversando com os distribuidores Al-
len e Ivan Ludington, por volta de 1940. Reparem no sorriso
aflorando no rosto dos dois: ninguém conseguia resistir ao
charme de Harry por muito tempo, nem mesmo uma dupla
de protestantes de Michigan.

640
As revistas eróticas de Harry estavam na mira direta dos
censores quando ele lançou sua linha de ficção “séria” nos
pulps. Essa imagem é menos ofensiva aos membros do Citi-
zens for Decency do que as mocinhas que apareciam nas re-
vistas de “mulher pelada” — pelo menos ela está de calça
enquanto olha apavorada para a cabeça decepada do noivo.
Capa de H. J. Ward, 1934. (Cortesia de Douglas Ellis.)

641
Joe Shuster e Jerry Siegel levaram sua própria balbúrdia
racial às revistas de Harry. Esse foi o auge de Joe como de-
senhista e contador de histórias; o excesso de trabalho e a
vista fraca logo mais destruiriam uma arte que acabara de se
tornar famosa. Detective Comics nº 1 © 1937 DC Comics.
(Todos os direitos reservados. Reproduzido com permissão.)

642
No início, o Super-Homem deixava-se algumas vezes
dominar pela fúria; o Super-Homem simpático aparecería só
depois do mundo tê-lo consagrado como seu favorito. Esses
quadrinhos serviram de amostra para tiras de jornal; foram
deixados de fora do nº 1 da Action Comics, mas aproveita-
dos no primeiro número da revista Superman © DC Comics.
(Todos os direitos reservados. Reproduzido com permissão.)

643
Ao levantar vôo, o próprio Super-Homem tornou-se sím-
bolo tanto da exuberância de Siegel e Shuster como dos qua-
drinhos, todos em fase de decolagem. Um quadrinho de Joe
Shuster que não chegou a ser publicado, de 1939 talvez,
mostrando o encanto que podia conferir a suas figuras quan-
do o volume de trabalho permitia. (Coleção de Bruce Bergs-
trom. Superman and Lois LaneTM DC Comics.)

644
Jerry Robinson ainda era um adolescente quando, dese-
nhando anônimo para Bob Kane, introduziu nova beleza e
dramaticidade aos quadrinhos do super-herói. Nunca estudou
arte, mas a indústria aproveitou os talentos naturais de muita
gente para o desenho. Roteiro de Bill Finger. Batman nº 4 ©
1941 DC Comics. (Todos os direitos reservados. Reproduzi-
do com permissão.)

645
Enquanto Jerry Robinson e outros garotos talentosos de-
senhavam o que Bob Kane assinava, ele mesmo passava seu
tempo em Miami, correndo atrás das garotas. E provável que
tenha de fato desenhado essa tela em algum momento na dé-
cada de 1940. (Batman and RobinTM DC Comics.)

646
A criançada não saca, mas os
editores entendem. Essa tira, en-
comendada para o cartão de ani-
versário dos 50 anos de Harry
Donenfeld, mostra que ninguém,
nem Harry nem seus colegas, ig-
norava a complexa mistura de
idealizações que faziam dos su-
per-heróis personagens tão atra-
entes. Artista desconhecido.
1943. (Cortesia de Irwin Donen-
feld. Superman™ DC Comics.)

647
“A raiva nos salva a vida”, dizia Jack Kirby e nas pági-
nas dos quadrinhos ele deixava que essa raiva libertasse o
corpo masculino dos limites do realismo, da física e dos li-
mites dos quadros. Joe Simon colaborou com ele nesta pági-
na, mas a violenta poesia visual é toda de Jack. Captain
America nº 7. (Captain America © and TM Marvel Comics
Group.)

648
O leitor não deve se surpreender ao detectar um subtexto
erótico aqui. O dr. William Moulton Marston, psicólogo e
defensor de estilos de vida alternativos, sabia muito bem o
que estava fazendo. Arte de Harry G. Peter. Wonder Woman
nº 5 © 1943 DC Comics. (Todos os direitos reservados. Re-
produzido com permissão.)

649
A figura do rapagão de peito musculoso está presente em
toda a busca da imagem de super-homem. A edição de 1930
de Gladiator contribuiu para que Jerry Siegel e Joe Shuster
criassem o Super-Homem.
Em 1949, o nome do Super-Homem contribuiu para a
venda de Gladiator, com o surgimento do novo mercado de
livros baratos de bolso. Capa de artista desconhecido.

650
Enquanto Lev Gleason, fornecedor de quadrinhos vio-
lentos, membro do Partido Comunista e vítima da HUAC, a
comissão parlamentar encarregada de investigar atividades
“antiamericanas”, lançava seus super-heróis contra super-
vilões de verdade, o Super-Homem continuava ainda restrito
a guerrear com cientistas loucos. A arte é de Bob Wood e
Charlie Biro (Claw, a criatura demoníaca no canto é cortesia
de Jack Cole). 1941.

651
A máfia lucrava com as revistas, mas também dava sua
contribuição. Aqui temos uma participação especial de
Lucky Luciano, conhecido de Harry Donenfeld, para ajudar
a vender a mercadoria. Nada melhor para criar uma bela mis-
tura de raiva, sensacionalismo e consciência social que a re-
vista Crime Does Not Pay. Capa de Charlie Biro, 1943.

652
Dinheiro, autodesprezo e raiva dos censores se juntaram
para tornar o tema do crime nas revistas em quadrinhos um
assunto irresistível até mesmo para Jack Cole, cujo Homem-
Borracha era tão brilhante e cheio de alegria. Esta cena se
tornou o exemplo favorito de Fredric Wertham para explicar
por que tais revistas deviam ser “retiradas das bancas”. 1947

653
Entra em cena a nova geração, formada e bem-informa-
da. Bill Gaines e Al Feldstein com alguns dos gibis da “Nova
Tendência” que iria levá-los a águas turbulentas, 1950.

654
A capa que foi erguida diante das câmeras de televisão
pelo senador Estes Kefauver, futuro candidato à vice-presi-
dência dos Estados Unidos. Para o artista, Johnny Craig, a
capa fora apenas outra piada de humor negro.
Para a indústria dos quadrinhos, tornou-se símbolo de li-
berdade e de autodestruição. 1953.
Crime SuspenStories nº 22 © 1954 EC Comics, Inc. (To-
dos os direitos reservados.)

655
Harvey Kurtzman e Wally Wood desmascaram os ele-
mentos de sexo e raiva existentes no relacionamento entre
Clark “Bent” e Lois “Pain” (Trocadilho com os sobrenomes
Kent e Lane. Entre outras coisas, bent significa vergado, tor-
to e também corrupto. Já pain, dor, é uma referência à ex-
pressão “pain in the ass”, traduzível por “pé no saco”), sem-
pre mantidos meio fora de foco. Mad nº 4 © EC Publicati-
ons, Inc. (Todos os direitos reservados. Reproduzido com
permissão.)

656
Zuggy, o Cara Super-Sensacional, guiou Jerry Siegel e
Joe Shuster durante o processo que eles moveram contra a
DC em 1947 e 1948. O entusiasmo já não seria mais tão
grande alguns anos depois, quando Albert Zugsmith se tor-
nou um importante produtor de cinema enquanto Jerry e Joe
lutavam para sobreviver. (Cortesia de Richard Halegua. Su-
perman™ DC Comics.)

657
O coração do herói, no fim das contas, estava cheio de
dor e de perda. Jerry Siegel e o veterano do estúdio de Shus-
ter Wayne Boring fizeram algo simples e bonito ao tratar da
angústia do super-herói. “A Volta do Super-Homem a Kryp-
ton”, Superman nº 141 DC Comics. (Todos os direitos reser-
vados. Reproduzido com permissão.)

658
(‘SUPER-HOMEM’ DA TV SE MATA)

O mundo real forneceu suas próprias e tristes reviravol-


tas à história do Super-Homem.
O Homem de Aço ainda era um importante símbolo cul-
tural em 1959; representava tudo o que o jornalismo dos ta-
blóides e a morte de um ator não eram.

659
Jerry Robinson, 1974; o cartunista, escritor e organiza-
dor cujo olhar certeiro penetrou no âmago de um dilema vi-
vido durante décadas por Siegel e Shuster e que forçou a
Warner Communications a finalmente tomar uma atitude.

660
Jerry Siegel nos anos 1980: um bronzeado da Califórnia,
um sorriso, um pouco de segurança e enfim o reconhecimen-
to.

661
Joe Shuster em 1991. No último ano de sua vida, pratica-
mente cego, doente depois de todos aqueles “anos na selva”,
a lembrança de que mais se orgulhava ainda era a do herói a
quem dera forma. (© 1991 Toronto Star)

662
——————————
NOTAS SOBRE AS FONTES
PRÓLOGO

O relato dos eventos que acabaram levando Jerry Siegel a seu


comunicado à imprensa nasceu de uma miscelânea de detalhes co-
lhidos de pessoas que o conheceram na época e em anos posterio-
res, entre os quais Jerry Robinson, Mike Catron, Tom Andrae e
Mark Evanier. Devido a litígios e negociações ainda em curso pe-
los direitos autorais sobre o Super-Homem, muitos dos amigos e
parentes de Siegel não se sentiram à vontade para falar aberta-
mente neste livro, porém alguns forneceram informações em off
que ajudaram a reconstituir o que houve. As citações do comuni-
cado à imprensa foram fornecidas por Mike Catron.

CAPÍTULO 1

Boa parte do material sobre a família e os primeiros anos da


infância de Harry Donenfeld vem de entrevistas realizadas com
seu filho, Irwin, e outros parentes, em 2003 e 2004. Algumas das
bazófias de Harry foram contadas por ele a seus familiares, mas a
maioria ele contou a companheiros do ramo editorial e de distri-
buição; entre aqueles para quem Harry contou as histórias envol-
vendo Roosevelt, por exemplo, estava Jack Adams, que já tinha
pertencido à Independent News e que as transmitiu todas a Micha-
el Feldman. Algumas histórias se tornaram lendas, da indústria
dos quadrinhos, e chegaram até este livro por intermédio de Jack
Schiff, Murray Boltinoff e outros. “Costumava dizer que tinha nas-
cido! [...]” No censo de 1930, Harry aparece como tendo nascido
em 1892. Mas ele sempre celebrava as datas redondas de seus
aniversários como alguém nascido em 1893.
O material sobre os judeus romenos foi tirado em sua maior
parte do livro World of Our Fathers, de Irving Howe (Nova York:
Harcourt Brace Jovanovich, 1976), e do livro Jews in Romania,
1866-1919: From Exclusion to Emancipation, de Carol Iancu
(Nova York: Columbia University Press, 1996). A descrição da re-

663
gião do Lower East Side veio de diversas fontes, entre elas World
of Our Fathers, de Howe; The Promised City: New York’s Jews,
1870-1914, de Moses Rischen (Cambridge, MA: Harvard Univer-
sity Press, 1962); e daqueles dois influentes (ainda que muitas ve-
zes presunçosos) trabalhos de defesa social, The Battle with the
Slum, de Jacob Riis (Nova York: MacMillan, 1912), e The Autobi-
ography of Lincoln Steffens, de Lincoln Steffens (Nova York: Har-
court Brace & Co., 1931). Entre os livros indispensáveis para
qualquer estudo da região do East Side nova-iorquino estão dois
romances de arguto poder de observação, Jews without Money, de
Michael Gold (Nova York: Liveright, 1938), e The Rise of David
Levinsky, de Abraham Cahan (Nova York: Harper & Bros., 1917).
Este último faz um retrato muito vivido do funcionamento da in-
dústria do vestuário, na época. “Alter, Alter...” é do livro The
Golden Egg, de Arthur Goldhaft, citado em World of Our Fathers,
de Howe; “abismo entre as gerações” foi tirado de The Autobio-
graphy, de Steffens.
As gangues juvenis do Lower East Side são examinadas em
The Rise and Fall of the Jewish Gangster in America, de Albert
Fried (Nova York: Columbia University Press, 1993), e em Our
Gang: Jewish Crime and the New York Jewish Community, 1900-
1940, de Jenna Weismann Joselit (Bloomington: Indiana Univer-
sity Press, 1983). “Judeus... por que vocês ficam lá parados [...]”
foi tirado da entrevista de Uri Dan com Meyer Lansky, citado no
livro de Rich Cohen Tough Jews: Fathers, Sons, and Gangster
Dreams (Nova York: Simon & Shuster, 1993). As opiniões sobre a
“delinquência” judaica vêm do livro de Howe, World of Our Fa-
thers. “Alguns de meus amigos viraram...” Frase de Kurtzberg, ci-
tada numa entrevista com Jack Kirby (Jake Kurtzberg) em Comics
Journal, nº 134 (fev. de 1990). As histórias de Harry sobre Eddie
Cantor receberam a contribuição dos relatos de Herbert G. Gold-
man em seu Banjo Eyes: Eddie Cantor and the Birth of Modem
Stardom (Nova York: Oxford University Press, 1997).
Durante toda a preparação deste livro, para dar detalhes dos
antecedentes familiares e da vida pessoal de Jack Liebowitz, o au-
tor contou com o auxílio de informações de membros das famílias
Stillman, Levy e Donenfeld. Muitas datas e outros fatos específicos

664
foram fornecidos pelo obituário que Mike Catron escreveu para
Liebowitz, publicado no Comics Journal nº 230 (dezembro de
2000).
Sobre socialismo e pogroms, ver The Tsars and the Jews: Re-
form, Reaction and Anti-Semitism in Imperial Rússia, 1772-1917,
de Hans-Dietrich Lowe (Reading, GB: Harwood, 1992). Sobre
cultura e políticas trabalhistas no Lower East Side, ver Ladies of
Labor, Girls of Adventure: Working Women, Popular Culture, and
Labor Politics at the Turn of the Century, de Nan Enstad (Nova
York: Columbia University Press, 1999), e também Common Sense
and a Little Fire: Women and Working Class Politics in the United
States, 1900-1965, de Annelise Orleck (Chapel Hill: University of
North Carolina Press, 1995). Os detalhes sobre o envolvimento
das gangues no movimento e na política trabalhistas foram tirados
de Rise and Fali, de Fried. As guerras de circulação dos jornais e
o envolvimento de Moe Annenberg são explorados em Legacy: A
Biography of Moses and Walter Annenberg, de Christopher Ogden
(Nova York: Little, Brown, 1999). “saíam tropeçando [...] corre-
dor de pernas [...]” Gold, Jews without Money. Quanto ao com-
portamento sexual dos jovens do East Side, ver também Ladies of
Labor, de Enstad, e The Jewish Woman in America, de Charlotte
Baum, Paula Hyman e Sonya Michel (Nova York: Dial Press,
1976).
Consta, no recenseamento de 1930, que a idade de Harry,
“no primeiro casamento”, era de 23, e a de Gussie, 20; mas a di-
ferença de idade entre os dois era de cinco anos, donde se conclui
que houve um casamento anterior, ou a pessoa que forneceu as in-
formações ao censo não foi precisa. Discrepâncias como essa dão
uma idéia da dificuldade de reconstituir histórias tão antigas.

CAPÍTULO 2

Por todo este livro, as informações sobre a família e sobre a


vida privada de Jerry Siegel foram tiradas principalmente de en-
trevistas com Irv Fine e Jerry Fine em outubro de 2003, de corres-
pondência posterior e de conversas com alguns outros membros
da família que pediram para permanecer no anonimato. As exce-

665
ções serão assinaladas.
Para a história de Cleveland, ver Cleveland: Making of a
City, de William Ganson Rose (Kent, OH: Kent State University
Press, 1990), e Cleveland: A Concise History, 1796-1996, de Ca-
rol Poh Miller e Robert A. Wheeler (Bloomington: Indiana Uni-
versity Press, 1997). O retrato da comunidade judaica de Cleve-
land foi reconstituído sobretudo a partir do livro de Lloyd P. Gart-
ner, History of the Jews of Cleveland (Cleveland: Western Reserve
Historical Society, 1978); do livro de Sidney Z. Vincent e Judah
Rubenstein, Merging Traditions: Jewish Life in Cleveland (Cleve-
land: Western Reserve Historical Society, 1978); e do livro patro-
cinado pelo Comitê do Centenário Judaico em Cleveland, o
Jewish Community of Cleveland Historical Digest, 1837-1937
(Cleveland: Cleveland Jewish Centennial Committee, 1937). Al-
guns detalhes sobre os arredores da 105th Street foram tirados de
números antigos do Torch da Glenville High School. “Quase to-
dos os quarteirões...” De Merging Traditions, de Vincent e Ru-
benstein. “As ruas compridas estavam sempre...” Violet Spevack,
citada em Merging Traditions, de Vincent e Rubenstein. “O juda-
ísmo é muito mais uma educação...” Herbert Adolphus Miller,
School and the Immigrant, citado no Jewish Community of Cleve-
land Historical Digest, 1837-1937, do comitê do centenário. As
peripécias de Benny Friedman e dos Morenos Sanguinários foram
relatadas em vários números do Torch da Glenville High, em 1921
e 1922.
As experiências de infância de Jerry Siegel com cinema e ou-
tras formas de entretenimento foram discutidas em diversos arti-
gos publicados pelos fanzines. O mais longo é uma fabulosa entre-
vista intitulada “De Super-homens e Garotos Sonhadores”, dada
por Jerry Siegel, Joe Shuster e Joanne Siegel, a Tom Andrae, Ge-
offrey Blum e Gary Coddington para a Nano: The Classic Comics
Library, nº 2 (agosto de 1983). Parte do material publicado ali,
sobretudo as lembranças do primeiro contato de Siegel com Dou-
glas Fairbanks e com a Amazing Stories foram tiradas das conver-
sas que o autor deste livro manteve com Siegel na década de 1980.
“[...] a idade dos heróis...” Richard A. Martinson, citado em
Wordslingers: How the Pulp Western Was Won and Lost, de Will

666
Murray (ainda não publicado). A menos que se informe o contrá-
rio, todas as citações e histórias a respeito de Will Eisner foram ti-
radas de uma entrevista que o autor fez com Eisner em outubro de
2003. A carreira de Hugo Gernsback e os primórdios da ficção ci-
entífica estão muito bem explicados no livro The Gernsback Days,
de Mike Ashley e Robert A. W. Lowndes (Holicong, PA: Wildside
Press, 2004). Os primórdios do fandom foram cobertos com deta-
lhes de sobra no livro de Harry Warner Jr., All Our Yesterdays
(Chicago: Advent, 1969), e no dramático mas parcial trabalho de
Sam Moskowitz The Immortal Storm (Westport, CT: Hyperion
Press, reedição de 1974). “Refleti sobre minha vida naquele mo-
mento ...” Francis T. Laney, citado em All Our Yesterdays, de
Warner. “Ele me enviou um manuscrito...” Entrevista do autor
com Jack Williamson, outubro de 2003.
A data da morte de Mitchell Siegel é controversa, segundo vá-
rias fontes orais, e até hoje não se descobriu nenhum documento
que esclareça a questão; alguns dizem que ele morreu no início da
adolescência de Jerry, ou até mesmo antes. A cronologia oferecida
aqui parece ser a mais razoável, baseada em histórias da família
Fine. Se as datas escolares de Jerry parecerem um tanto estra-
nhas, lembre-se de que o primeiro grau, no sistema escolar de
Cleveland, se estendia até a nona série.

CAPÍTULO 3

O impacto da Lei Seca sobre a comunidade judaica de Nova


York e o subsequente surgimento das gangues de contrabandistas
são investigados em Rise and Fali, de Fried, e em Our Gang, de
Joselit. “[...] agora nós temos armazéns...”, testemunho de Fiorel-
lo H. LaGuardia perante comissão parlamentar do senado norte-
americano, 69º Congresso, arquivado na Schaffer Library of Drug
Policy, http://www.druglibrary.org/shaffer/alcohol/languardi.htm.
Não havendo menção contrária, todas as histórias sobre a
vida familiar de Harry Donenfeld constantes neste livro foram ti-
radas de entrevistas do autor com Irwin Donenfeld e demais mem-
bros da família. As histórias da Donny Press e da Eastern News
são hoje bastante conhecidas graças à extensa e cuidadosa pes-

667
quisa realizada por Michael Feldman, e foram passadas ao autor
em entrevistas e correspondências que se estenderam de dezembro
de 2003 a junho de 2004. Informações adicionais foram forneci-
das por Will Murray no seu artigo “Raízes emaranhadas da DC”,
Comic Book Marketplace, nº 53 (novembro de 1997), e em entre-
vistas com este autor em 2003.
“Digamos que Frank Costello...” Anedota contada por Bob
Beerbohm. O retrato de Costello e de seus companheiros se inspi-
ra sobretudo em Tough Jews, de Cohen, e no livro de George Wolf
e Joseph DiMona, Frank Costello: Prime Minister of the Un-
derwold (Nova York: William Morrow, 1974). “Eu via o
Mirror...” Citado no livro de Martin A. Gosch e Richard Hammer
The Last Testament of Lucky Luciano (Boston: Little Brown,
1975). “[...] gângsteres que sequer terminaram...”, citado em
Tough Jews, de Cohen. A história do “Brain Trust de FDR” suge-
rida aqui foi tirada de Michael Feldman.
A greve de 1926 do SITIRF e o envolvimento das gangues são
discutidos por Fried em Rise and Fali, e por David Dubinsky e A.
H. Raskin em A Life with Labor (Nova York: Simon & Shuster,
1977). “Um judeu poderia fazer muito dinheiro...” Citado por
Neal Gabler em An Empire of Their Own: How the Jews Invented
Hollywood (Nova York: Random House, 1988). Sobre a presença
judaica na cultura popular americana da década de 1920, ver
Paul Buhle, From the Lower East Side to Hollywood: Jews in
American Popular Culture (Nova York: W. W. Norton, 2004). So-
bre o crescimento das revistas durante a década de 1920, veja o li-
vro de John Tebbel e Mary Ellen Zuckerman The Magazine in
America, 1741-1990 (Nova York: Oxford University Press, 1991).
As informações sobre Bernarr MacFadden foram tiradas sobretu-
do do livro de Robert Ernst, Weakness Is a Crime: The Life of Ber-
narr MacFadden (Syracuse: Syracuse University Press, 1999). So-
bre Hugo Gernsback, ver Gernsback Days, de Ahsley e Lowndes.
O envolvimento de Margaret Sanger com Harold Hersey veio
a público no livro de Hersey (não-publicado, 1938; na coleção da
New York Public Library). A posição dela no contexto maior da
política e da cultura popular americanas foi analisado de forma
interessante por Geoffrey Perrett, em America in the Twenties

668
(Nova York: Simon & Shuster, 1982). Hersey relata a própria car-
reira em Hollywood Editor (Silver Spring, MD: Adventure House,
reimpressão de 2003). Michael Feldman coligiu o material para a
“consulta” não oficial sobre Hersey.
A história sobre Frank Armer e as “smooshes” foi tirada do
livro de Douglas Ellis Uncovered: The Hidden Art of the Girlie
Pulp (Silver Spring, MD: Adventure House, 2003). Outras infor-
mações, sobretudo as referentes ao envolvimento de Harry, foram
fornecidas por Michael Feldman e Will Murray. “A arte de Alfred
Barnard” é de Artists & Models, na 6 (setembro de 1925). “Minai
L’Enclos...” Citado em Uncovered, de Ellis. “Tudo bem, vocês
venceram...” John dos Passos, O Grande Capital.

CAPÍTULO 4

As descrições da Glenville High School e da equipe que tra-


balhava no Torch foram tiradas dos álbuns de formatura e de nú-
meros antigos do jornal, cuidadosamente preservados por Carolyn
Johnson na biblioteca da Glenville High. Algum material também
foi tirado do livro de Dennis Dooley e Gary Engle, Superman at
Fifty: The Persistence of a Legend (Cleveland: Octavia Press,
1987). “Eu era um pouco inibido...” e outras falas de Siegel foram
tiradas da entrevista que ele deu a Nemo, nº 2.
Os relatos sobre a família e a infância de Joe Shuster foram
tirados da entrevista com Jerry Fine e integrantes da família Shus-
ter realizada em 2003; da Nemo, nº 2; e de Dooley e Engle, Super-
man at Fifty. A história dos quadrinhos, nas décadas de 1920 e
1930, foi contada de maneira esplêndida por Jerry Robinson em
The Comics: An Illustrated History of Comic Strip Art (Nova York:
G. P. Putnan’s Sons, 1974), e por Bill Blackbeard e Martin Willi-
ams em The Smithsonian Collection of Newspaper Comics
(Washington, DC: Smithsonian Institution, e Nova York: Harry N.
Abrams, 1977). Sobre Tarzan e Buck Rogers, ver a introdução de
Bill Blackbeard para Tarzan in Color, de Hal Foster, (Nova York:
NBM, 1993), e The Collected Works of Buck Rogers in the 25,h
Century, de Robert C. Dille (Nova York: Bonanza Books, 1969).
“Eu tentava arrastar...” Citado pelo Toronto Star em 26 de abril

669
de 1992. O material sobre Bernarr MacFadden e fisicultura foi ti-
rado sobretudo de Weakness is a Crime, de Ernst.
A história do Sombra foi fornecida por Anthony Tollin. Para
as inferências sobre a origem do “super-herói” nos pulps e nas ti-
rinhas, contribuíram entrevistas com Tollin, James Van Hise e
Will Murray feitas em 2003. “Estava vestido num manto preto...”
Walter B. Gibson, escrevendo como “Maxwell Grant”, “O Som-
bra vivo”, Shadow Magazine, nº 1 (março de 1931). Sobre The
Time Traveller, ver Immortal Storm, de Moskowitz, e Man of Two
Worlds: My Life in Science Fiction and Comics, de Julius
Schwartz (Nova York: Harper Collins, 2000). A Science Fiction de
Jerry Siegel é discutida no Torch da Glenville High; em Superman
at Fifty, de Dooley e Engle; e na Nemo, nº 2.
“Grandes feitos estavam sempre prestes a...” Esta e citações
seguintes foram tiradas de Gladiator, de Philip Wylie (Nova York:
Alfred A. Knopf, 1930). Para saber o lugar ocupado por Wylie no
panorama literário da década de 1920, ver Roger Matuz (ed.),
Contemporary Literary Criticism, vol. 43 (Detroit: Gale Research
Corp., 1987). A anedota sobre Joseph Piricin foi cortesia de Denis
Kitchen. “The Reign of Superman” foi reeditado na Nemo, nº 2.
Para o material sobre Doc Savage, contribuíram as entrevistas
feitas com Anthony Tollin e James Van Hise. Sobre Detective Dan
e Humor Publishing, ver a biografia que Bob Hughes fez de Joe
Shuster no maravilhoso site “Superman Artists”, http://www.su-
permanartists.comics.org/superart.
Em Gladiator, encontramos uma pista para boa parte do mis-
tério que cerca as versões divergentes sobre a criação do Super-
Homem. Siegel negou de forma peremptória que o romance de
Wylie o houvesse influenciado; mas a proximidade temporal e as
espantosas semelhanças não parecem deixar muitas dúvidas sobre
o papel de Gladiator. A negativa saiu em 1940, mesma época em
que Wylie ameaçou mover uma ação judicial por plágio contra
Jerry — ao que consta, Jerry chegou até mesmo a assinar uma de-
claração oficial — e tudo indica que tenha sido um ato de autode-
fesa. Suas histórias de que o Super-Homem foi criado já em 1932
fazem muito mais sentido quando examinadas à luz dos muitos
processos por plágio e das contestações de autoria que poderiam

670
ter surgido; Jerry tinha de situar sua criação num momento ante-
rior ao aparecimento dos outros super-heróis vestidos à caráter
que proliferaram na década de 1930. Isso também ajuda a expli-
car a estranha afirmação de Siegel de ter rejeitado a proposta
mencionada pelo major Wheeler-Nicholson em 1935 feita por uma
distribuidora (capítulo 6). Em sua ação judicial de 1947 contra a
National Comics, Siegel declarou que havia vendido o Super-
Homem para a National só por causa das garantias oferecidas por
Jack Liebowitz de que ele e Joe Shuster estavam fechando um
grande negócio. Para apoiar seu argumento, declarou que havia
recusado uma outra proposta para o Super-Homem — a do major
— porque as condições do acordo não eram boas o bastante.
Quando consideramos a complexidade de estabelecer um equilí-
brio entre lembranças genuínas e estratégia jurídica durante o de-
correr de muitas décadas, as inconsistências dos relatos de Siegel
ficam mais compreensíveis.

CAPÍTULO 5

A história de Harry Donenfeld no ramo da editoração durante


a década de 1930, é contada por Ellis em Uncovered e por Mur-
ray em “Raízes Emaranhadas”. Muitos detalhes foram fornecidos
por Irwin Donenfeld. “O fato de Armer e Donenfeld [...] pode não
ter sido uma coincidência...” Entrevista com Michael Feldman,
feita pelo autor, em fevereiro de 2004. Feldman forneceu grande
parte das informações a respeito do sistema inicial de distribuição
e do crescimento da Independent News. “[...] um rapaz encontra
uma garota...” Para maiores informações sobre a incomparável
sabedoria de Jack Woodford em relação ao ofício da escrita, ver
Trial and Error (Seattle: Woodford Memorial Editions, 1980).
“[...] a seda fina do vestido...” Citado por Ellis em Uncovered. O
livro de Ellis detalha as disputas entre Harry e os censores. “Va-
mos dar aos...”, citado no Los Angeles Times de 20 de julho de
1933. O clima social, a política e as atividades ilegais durante o
período da Revogação foram examinados por Cohen em Tough
Jews; por Fried em Rise and Fali; e por Robert A. Rockaway em
But He Was Good to His Mother: The Lives and Crimes of Jewish

671
Gangsters (Jerusalém: Gefen, 1993). A história de Herbie Siegel
já foi contada por dezenas de pessoas que trabalharam na indús-
tria dos quadrinhos entre as décadas de 1930 e 1950. A versão
deste capítulo baseou-se nas conversas do autor com Julius
Schwartz e Murray Boltinoff na década de 1980.
“Meti o cano na queixola dele...” Aqui o autor falseia um
pouco a verdade. Esta não é, até onde se possa verificar, uma fra-
se de autoria de Bellem, e sim um pastiche de frases reunidas por
um fã; parecia a forma mais rápida de sugerir o estilo e o vocabu-
lário de Bellem. Para as frases criadas de fato por Bellem (“Foi
como se o berro tivesse feito ‘atchim’...”), ver Dan Turner,
Hollywood Detective, de Robert Leslie Bellem (Madison: Univer-
sity of Wisconsin Press, 1981). A frase de Perelman é de The New
Yorker, 15 de outubro de 1938.
A reconstrução do papel da Eastern Color Printing, de Char-
lie Gaines e de George Delacorte no surgimento da revista de his-
tória em quadrinhos foi feita com a ajuda de várias fontes, inclusi-
ve do livro de Mike Benton The Comic Book in America: An Illus-
trated History (Dallas: Taylor Publishing, 1989); do site “Collec-
tor Times” de Jamie Coville, http://www.collectortimes.com/~co-
michistory/index.html; e da completa porém ainda não publicada
história da distribuição e revenda das revistas em quadrinhos es-
crita por Robert Beerbohm Comic Book Store Wars. Trechos do li-
vro podem ser lidos no site http://members.aol.com/comicbknet/re-
ality.htm. Outras informações a respeito de Charlie Gaines foram
tiradas do livro de Frank Jacobs The Mad World of William M.
Gaines (Secaucus, NJ: Lyle Stuart, 1972), e do de Maria Reidelba-
ch, Completely Mad: A History of the Comic Book and Magazine
(Nova York: Little, Brown, 1991). Will Murray foi a principal fon-
te do autor sobre o major Malcolm Wheeler-Nicholson. “Entendo
essas revistas...” Carta a Jerry Siegel, citada por Les Daniels em
Superman: The Complete History (San Francisco: Chronicle Bo-
oks, 1998).
O pouco que se sabe sobre Sunny Paley veio através de Mi-
chael Feldman, que ouviu histórias de Jack Adams e de outros an-
tigos companheiros de Harry Donenfeld que pediram para ficar
no anonimato. E claro que ainda há muito a descobrir. Feldman

672
também reconstruiu as atividades empresariais de Harry no Sul.
“Admiro de verdade o sr. Donenfeld...” Tirado de um falso jornal
preparado por Jack Liebowitz e colegas, em outubro de 1943, por
ocasião do 50º aniversário de Harry; cortesia de Irwin Donenfeld.
O papel da indústria de papel e de William Randolph Hearst
na proibição da maconha é tema entrelaçado à questão do cânha-
mo e há muito exagero em torno dela; sem dúvida que a versão
apresentada é simples demais. Contudo, no entender do autor, os
sinais continuam sendo convincentes e razoáveis, mesmo depois
que nós os liberamos da lengalenga política. E são um bom exem-
plo de como Hearst, assim como tantos outros editores de jornais
e revistas de seu tempo, usou a posição alcançada para promover
a corrupção. Vee Drug Crazy, de Mike Gray (Nova York: Random
House, 2001).

CAPÍTULO 6

A história que antecedeu a publicação do Super-Homem, in-


clusive a parceria de Siegel com outros artistas além de Shuster,
talvez seja o assunto mais exaustivamente estudado entre os pes-
quisadores das origens dos quadrinhos, e a lista de pessoas, sites
na internet, artigos de revistas e livros consultados para reconsti-
tuí-la seria tremendamente longa. Boa parte do material contido
no capítulo vem de entrevistas realizadas pelo autor com Will
Murray, Tom Andrae, Mike Catron, Michael Feldman e Denis Kit-
chen.
“Então pulei da cama...” Essa primeira versão das origens do
Super-Homem está no livro de James Steranko, The Steranko His-
tory of Comics (Reading, PA: Supergraphics, 1972). “Sou um per-
feccionista...” essa e outras citações e detalhes posteriores, sobre
a origem do Super-Homem, estão na entrevista que Siegel e Shus-
ter deram à Nemo, nº 2, e em Superman; esta última contém as
primeiras contribuições de Siegel e Shuster para a New Fun, a
carta do major sobre o pedido “iminente” de uma distribuidora e
os esboços da “sensação de 1936”. As citações tiradas da Popu-
lar Comics e a respeito dela, vêm de Siegel and Shuster: Dateline
1930s (Forestville, CA: Eclipse Comics, 1984). “Meu pai estava

673
desempregado...” Tirado da Nemo, nº 2. O envolvimento de Char-
lie Gaines na história do Super-Homem durante 1936 e 1937, foi
reconstituído por Will Murray, Tom Andrae e outros; a história de
Worth Carnahan nos chega através de Michael Feldman. “Seus
punhos trovejantes...” Detective Comics, nº 1 (março de 1937).
A venda do Super-Homem para Vin Sullivan é outra das len-
das mais comentadas e discutidas da subcultura dos gibis. Esse
relato se baseia sobretudo na entrevista que David Siegel deu a
Vin Sullivan, durante a San Diego Comic Con de agosto de 1998,
e na conversa subsequente do autor com Sullivan, conferida à luz
das opiniões abalizadas de Mike Catron, Tom Andrae e Will Mur-
ray. Os antecedentes de Sheldon Mayer foram tirados, em parte,
da “comiclopedia” (http://www.lambiek.net/artists/index.html) de
Lambiek. Durante a preparação deste livro, esse site foi uma fonte
valiosa de biografias concisas dos quadrinistas do passado. A pri-
meira história do Super-Homem saiu em duas partes, na Action
Comics, nº 1 (em junho de 1938), e na Superman, nº 1 (verão de
1939).

CAPÍTULO 7

“Apesar de ser verão...” William Manchester, The Glory and


the Dream: A Narrative History of America, 1932-1972 (Boston:
Little, Brown, 1974). “Muitos judeus perderão...” Citado em Ga-
bler, Empire of Their Own. A vida dos judeus nova-iorquinos du-
rante a década de 1930 é examinada no livro de Beth S. Wenger,
New York Jews and the Great Depression: Uncertain Promise
(New Haven: Yale University Press, 1996). Sobre o papel do en-
tretenimento popular e das comunicações de massa na cultura da-
quele momento, ver também o livro de Alice Goldfarb Marquis
Hopes and Ashes: The Birth of Modem Times, 1929-1939 (Nova
York: Free Press, 1986), e o de Michael Denning The Cultural
Front (Nova York: Verso, 1997). “[...] planejando caminhos...”
Entrevista do autor com Alex Singer em maio de 2003. As infor-
mações sobre Mort Weisinger e Julius Schwartz foram obtidas so-
bretudo durante as entrevistas do autor com Schwartz e Jack
Schiff em 1984 e 1985. Também há dados tirados do livro de Sam

674
Moskowitz Seekers of Tomorrow: Makers of Modem Science Ficti-
on (Cleveland: World, 1966); de All Our Yesterdays, de Warner; e
de Man of Two Worlds, de Schwartz.
Foi fascinante tentar reconstruir a história de Bob Kane, de-
vido a seu velho hábito de tornar a própria vida uma ficção. Sua
autobiografia (com Tom Andrae), Batman and Me (Forestville,
CA: Eclipse Book, 1989), fornece uma espécie de esboço do mapa
do tesouro para se descobrir a verdade; e descobrir a verdade exi-
ge reunir anedotas daqueles que o conheciam, peneirar os fatos,
separar aqueles que são plausíveis e verificar os elementos de li-
gação. Felizmente o número de pessoas que trabalharam com
Kane e que se mostram dispostas a falar é enorme. O autor tirou
as informações sobretudo de entrevistas com Will Eisner, Jerry
Robinson, Sheldon Moldoff, Jack Schiff, Julius Schwartz, Michael
Uslan, Tom Andrae e Mark Evanier.
“Se seu pai não fosse tão...” Will Eisner, To the Heart of the
Storm (Princeton, WI: Kitchen Sink Press, 1991). “E difícil ex-
pressar com palavras...” Kane, Batman and Me. A história sobre
as revistinhas baratas e Will Eisner foi tirada da introdução escri-
ta por Art Spiegelman ao livro de Bob Adelman Tijuana Bibles:
Art and Wit in America’s Forbidden Funnies, 1930s-1950s (Nova
York: Simon & Shuster, 1997). Jerry Iger foi retratado como um
“promotor e operador” por Pierce Rice, numa entrevista para o
Comics Journal, nº 249 (março de 2000). “[...]eu tinha gana...”
Boa parte das citações de Eisner saiu da entrevista que ele deu ao
autor, mas esse caso foi mencionado numa entrevista publicada no
Comics Journal, nº 249 (setembro de 2001). As descrições dos mé-
todos de trabalho do estúdio de Eisner & Iger foram tiradas quase
todas de artigos e entrevistas publicadas na Will Eisner Quarterly
(1984-1985). A história de Bill Finger foi reconstruída a partir de
informações contidas em Batman and Me, de Kane, e em entrevis-
tas com Jerry Robinson e Jack Schiff.
O diálogo do Super-Homem é da Action Comics, nº 5 (outu-
bro de 1938). Detalhes da tira do Super-Homem publicada em jor-
nal e da coqueluche inicial foram tirados de Superman, de Dani-
els, e de Superman: The Dailies, Jerry Siegel e Joe Shuster (Nor-
thampton, MA: Kitchen Sink Press, 1999). Victor Fox é retratado

675
de forma divertida por Joe Simon em The Comic Book Makers
(Nova York: Crestwood, 1990); porém a verdade por trás da his-
tória de que era contador foi descoberta por Michael Feldman. A
origem do Batman é discutida de formas diversas por Les Daniels
em Batman: The Complete History (San Francisco: Chronicle Bo-
oks, 2000), e por Kane, em Batman and Me. O relato da contribui-
ção original de Bill Finger se deve sobretudo, a Jerry Bails, cujo
artigo mais importante, entre os muitos que escreveu sobre o as-
sunto é “Se a verdade viesse à tona; ou um Finger (dedo, em in-
glês) em cada trama”, publicado no seminal fanzine Capa-Alpha,
nº 12 (setembro de 1965). A entrevista do autor com Michael Us-
lan, em setembro de 2003, contribuiu bastante para a síntese que
se tentou fazer neste livro. Parte da análise sobre o desenvolvi-
mento posterior do Batman vem da entrevista do autor com Jerry
Robinson, em abril de 2004. Frases e acontecimentos das histórias
são das Detective Comics nº 27 (maio de 1939) e nº 29 (julho de
1939).
A história da origem do Batman na Detective Comics nº 33
(novembro de 1939) é mais um mistério intrigante dos quadrinhos.
A origem do personagem aparece numa aventura atribuída em ge-
ral a Gardner Fox. Décadas depois, Fox declarou ter sido o autor
da história da origem do Batman, mas a maioria dos fãs historia-
dores continuou a considerar Finger como o autor de sua concep-
ção, ainda que não necessariamente sua execução. (Ver Batman,
de Daniels). Como o estilo e o conteúdo emocional de sua origem
estão mais de acordo com o trabalho de Bill Finger que de Gard-
ner Fox, ao menos na opinião do autor, este livro atribui a Finger
a autoria da história.
O surgimento do personagem Captain Future e o conhecimen-
to que tinha Mort Weisinger da existência do Super-Homem ba-
seiam-se na entrevista do autor com Jack Schiff e em Seekers of
Tomorrow, de Moskowitz.

CAPÍTULO 8

A história do Super-Homem radiofônico é contada por An-


thony Tollin no folheto Superman on Radio, que redigiu para o

676
Smithsonian Historical Performances. O artigo de Tollin foi ar-
quivado em dois templos altamente informativos e divertidos da
Internet dedicados ao Homem de Aço, “Superman Homepage”,
http://supermanhomepage.com e no “Superman through the
Ages”, http://theAges.superman.ws/welcome.php.
Sobre o Waldorf-Astoria e a máfia, ver Wolf e DiMona em
Frank Costello. O material sobre Ben Sangor foi tirado da entre-
vista do autor com Michael Feldman e do livro de Michael Vance
Forbidden Adventures: The History of the American Comics
Group (Westport, CT: Greenwood Press, 1996). A história sobre
Dubinsky foi contada por Irwin Donenfeld. Jack Schiff e Vin Sulli-
van ajudaram o autor a entender o desenvolvimento empresarial
da All American e da Detective Comics, a reação de Liebowitz à
guerra, e a ação judicial contra o Capitão Marvel. “[...] campos
de golfe, clubes náuticos...” A descrição de Great Neck foi tirada
de A Look Ahead, de Arthur F. Rausch, cortesia de Steven Morgan
Friedman. Obrigado também à Sociedade Histórica de Great
Neck.
“Uma Desgraça Nacional”, de Sterling North, Chicago Daily
News, 8 de maio de 1940. Obrigado também à Sociedade Sterling
North de Edgerton, Wisconsin. Sobre a reação do público às ad-
vertências contra os quadrinhos e sobre a resposta das editoras,
ver o livro de Amy Kiste Nyberg Seal of Approval: The History of
the Comics Code (Jackson: University Press of Mississippi, 1998).
Comentário de George Orwell tirado de “Boys’ Weeklies”, reim-
presso em d Collection of Essays (Nova York: Doubleday, 1953).
“[...| pareciam oferecer o mesmo tipo...” Lauretta Bender é citada
por Nyberg em Seal of Approval. Josette Frank parafraseou sua
introdução ao livro de George Lowther The Adventures of Super-
man (Nova York: Random House, 1942). “[...] falam aos ouvi-
dos...” Citado em Les Daniels, Wonder Woman: The Complete
History (San Francisco: Chronicle Books, 2000).
“Francamente, quando terminei de ler...” Frase de Liebowitz
citada por Jerry Siegel em seu comunicado à imprensa de 1975. A
relutância de Siegel em contratar um advogado foi esmiuçada por
Vin Sullivan e Jerry Fine. “[...] além de propiciar entretenimen-
to...” Slater Brown, “O advento do Super-Homem”, New Repu-

677
blic, 2 de setembro de 1940, cortesia de Will Murray. O Espectro
apareceu pela primeira vez na More Fun Comics, nº 52 (fevereiro
de 1940). Ver também o prestimoso “Toonopedia”, http://www.to-
onopedia.com. Obrigado a Mike Sangiacomo pelas informações
sobre a vida de Joe Shuster em Cleveland e a Jerry Robinson e
Mike Catron por informações sobre sua mudança para Nova York.
“[...] papel manilha pardo...” Eileen Freeman citado pelo Cleve-
land Plain Dealer de 12 de dezembro de 2000.
A participação de Siegel no programa de rádio de Fred Allen
pode ser carregada do site “Superman through the Ages”; o mes-
mo arquivo MP3 inclui o quadro cômico de Harry Donenfeld com
Bud Collyer descrito no capítulo 10, e é recomendado a todos os
leitores interessados, uma vez que a voz dos próprios envolvidos é
muito mais eficaz que os talentos do autor para salientar o con-
traste de estilos e a diferença nos níveis de confiança dos dois ho-
mens. “Jerry, um menino pequeno...” Liberty, julho de 1941. A
história do “metal-K” e boa parte do contexto são cortesia de
Mark Waid. O período de permanência de Mort Weisinger na DC
foi reconstituído com a ajuda das entrevistas com Jack Schiff e Ju-
lius Schwartz.
Segundo descobertas recentes do historiador de HQ Roy Tho-
mas, o Superboy foi planejado juntamente com a idéia de uma Su-
perwoman, que incluía uma Lois Lane super-poderosa. As duas
idéias foram engavetadas quando Fawcett lançou, primeiro, Cap-
tain Marvel Jr. e, depois, Mary Marvel. Com o sucesso dos dois tí-
tulos, Superboy foi ressuscitado.
“Dedique-se ao seu trabalho...” e “mostram que nós perde-
mos dinheiro...” Da correspondência tantas vezes citada por Sie-
gel, inclusive, e em parte, no comunicado à imprensa de 1975.

CAPÍTULO 9

Para a história editorial das HQ e dados de vendas, neste e


em capítulos subsequentes, ver Comic Book in America, de Bento,
e um outro livro bastante completo do mesmo autor, Superhero
Comics of the Golden Age: The Illustrated History (Dallas: Taylor
Publishing, 1992).

678
A história do fim de semana da Daredevil foi tirada sobretudo
da entrevista do autor com Jerry Robinson. Robinson não lembra-
va direito se o sorteado fora de fato Bernie Klein, mas uma versão
um pouco diferente, relatada por George Roussos, dá a entender
que foi de fato Bernie.
“O trabalho era ininterrupto...” Jules Feiffer, The Great Co-
mic Book Heroes (Nova York: Dial Press, 1965). “Eles pegavam
cola de borracha e benzina...” Entrevista com Gil Kane feita por
Gary Groth, Comics Journal, nº 186 (abril de 1996). “[...] intros-
pectiva, criativa...” e “O mundo de Cole fervilha...” Art Spiegel-
man e Chip Kidd, Jack Cole and Plastic Man: Forms Stretched to
Their Limits (San Francisco: Chronicle Books, 2001). “Tinha uma
vitalidade...” Gil Kane, Comics Journal, nº 186. Outros dados so-
bre Biro e Bob Wood saíram do artigo de Nicky Wright, “Seduto-
res de Inocentes”, Comic Book Marketplace, nº 65 (novembro de
1998); do site de Lev Gleason, http://www.angelfire.com/mn/blak-
lion; e do livro de Mike Benton Crime Comics: The Illustrated
History (Dallas: Taylor Publishing, 1993).
“Eu acredito que a raiva...” Citado numa entrevista na Will
Eisner’s Spirit Magazine, nº 39 (fevereiro de 1982). “Cada rua ti-
nha sua própria...” Jon B. Cooke, “As violentas ruas de Kirby: O
Lower East Side de Jacob Kurtzberg”, The Jack Kirby Collector,
nº 16 (junho de 1997). “[...] me deixou com tanto medo...” e “Eles
me puseram na rua...” são citados na Will Eisner’s Spirit Magazi-
ne, nº 39. “No meu bairro...”, citado no livro de Ray Wyman Jr.
The Art of Jack Kirby (Orange, CA: Blue Rose Press, 1992). A
anedota das toalhas foi tirada de uma entrevista que o autor fez
com Mark Evanier, que no momento escreve aquela que sem dúvi-
da será a biografia definitiva de Kirby. A história de Martin Go-
odman se baseia nas cuidadosas pesquisas de “Doc V”, dr. Mi-
chael J. Vassallo.
A biografia de Gardner Fox foi dada por Vin Sullivan. O re-
trato de Alvin Schwartz foi tirado de suas próprias memórias; ver
“Alvin’s Round Table”, http://www.comics-community.com.
As descrições da All American Comics e de Charlie Gaines e
Sheldon Mayer devem muito a uma entrevista de Mayer Harris na
Comic Book Artist, nº 11 (janeiro de 2001), e a Mad World, de Ja-

679
cobs. A história de William Moulton Marston foi reconstituída
quase toda por Geoffrey C. Bunn, cujo artigo sobre Marston em
History of the Human Sciences 10, nº 1 (1997), contém boa parte
das citações usadas aqui. Uma parte do material foi tirado de
Wonder Woman, de Daniels, e da reimpressão do livro de Mars-
ton, The Emotions of Normal People (Minneapolis: Persona Press,
1979), inclusive da introdução de John G. Geier. A história conta-
da saiu na Wonder Woman nº 5 (junho-julho de 1943).
As circunstâncias que cercam o encontro de Gaines e Mars-
ton são outra área que pede mais investigação. Histórias que cir-
culam entre os fãs dos quadrinhos, ao que consta veiculadas por
Gil Kane ou Robert Kanigher, sustentam que Marston estava com
algum esquema de autopromoção na Feira Mundial de 1939-
1940; então ele e Gaines se encontraram e começaram a trocar
idéias sobre alguns quadrinhos. Como salientou Michael Feld-
man, no artigo que escreveu para a Family Circle em outubro de
1940, Marston com certeza já parece estar promovendo alguma
idéia de revista em quadrinhos a ser lançada junto com Gaines. O
artigo destaca Gaines como o mais esclarecido dos editores, ainda
que Gaines só tivesse umas poucas publicações, na época.

CAPÍTULO 10

A preferência de Dukey Maffetore pelas revistas em quadri-


nhos está em Cohen, Tough Jews. “[...] uma barra de
chocolate...” Da New Gods, nº 1 (março de 1971). A história so-
bre Stan Lee vem de uma entrevista do autor com Lee, em outubro
de 2003. “Joe e eu assinamos...” Nemo, nº 2. Boa parte da visão
que damos da política interna da DC foi fornecida por Jack Schiff
e Alvin Schwartz. O alistamento de Siegel é contado em “Metade
do Super-Homem convocado”, Cleveland Plain Dealer, 30 de ju-
nho de 1943. “Nasce filho do escritor do Super-Homem”, Cleve-
land Plain Dealer, 14 de janeiro de 1944. Parte do material sobre
a vida posterior de Michael Siegel vem de Mark Waid.
A história de Siegel e do Superboy, incluindo a rejeição, a re-
visão e o conflito, foi tirada de várias fontes. Mark Waid, Michael
Uslan e o falecido Rich Morrissey contribuíram muito na monta-

680
gem do quebra-cabeças. Alguns pesquisadores, entre os quais Les
Daniels (Superman), atribuem o primeiro roteiro de “Superboy” a
Don Cameron; mas ninguém põe em dúvida que foi o estúdio de
Joe Shuster quem fez os desenhos. A vida de Zugsmith é esboçada
por Jerry Kuttner em “Os Sonhos de Albert Zugsmith”, Bright
Lights Film Journal, nº 20 (novembro de 1997); demais informa-
ções são cortesia do Departamento de Coleções Especiais da Uni-
versidade de Iowa. A participação de Harry no programa de
Fanny Brice foi uma cortesia da coleção de J. David Goldin. A
fonte do esquete de Harry está nas notas sobre o capítulo 8.

CAPÍTULO 11

O livro de Bradford W. Wright Comic Book: The Transforma-


tion of Youth Culture in America (Baltimore: John Hopkins Uni-
versity Press, 2001) inclui uma excelente discussão sobre o lugar
dos quadrinhos na política e na cultura nacionais do pós-guerra.
Ver também William W. Savage, Cowboys, Commies, and Jungle
Queens: Comic Books and America, 1945- 1954 (Middletown, CT:
Wesleyan University Press, 1998). Lev Gleason e as investigações
da Comissão Parlamentar foram discutidas por Paul Buhle e Mi-
chael Feldman.
Sobre o gênero de terror, ver Mike Benton, Horror Comics:
The Illustrated History (Dallas: Taylor Publications, 1991). Sobre
Leo Rosenbaum, ver Vance, Forbidden Adventures. Sobre o gêne-
ro de crime, ver Benton, Crime Comics. Fredric Wertham e a cam-
panha antiquadrinhos foram abordados no livro de Nyberg, Seal
of Approval, e no de Wright, Comic Book Nation. A campanha é
colocada num contexto cultural bem mais amplo por B. Gilbert,
Cycle of Outrage: America’s Reaction to the Juvenile Delinquent
in the 1950s (Oxford: Oxford University Press, 1988). O livro de
Martin Barker, Comics: Ideology, Power, and the Critics (Ba-
singstoke, GB: Palgrave MacMillan, 1989) se concentra sobretudo
no alarme britânico diante dos possíveis efeitos dos quadrinhos,
mas oferece uma visão valiosa do significado cultural do debate
tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos. “[...] desencadei-
am um fluxo...” Citado por Judith Crist, “Horror no Berçário”,

681
Collie’s, 27 de março de 1948. Newsweek e Time citadas por Ny-
berg em Seal of Approval. Gershon Legman, Love and Death: A
Study in Censorhip (Nova York: Breaking Point, 1949). “[...] li-
berdade da imprensa...” Citado por Nyberg em Seal of Approval.
Sobre a história da “Casa da União”, veja “Superman on Ra-
dio”, de Anthony Tollin, arquivado em “Superman Homepage”. O
relato da ação judicial movida por Siegel e Shuster se baseia em
informações tiradas de várias entrevistas, sobretudo da que foi pu-
blicada pela Nemo, nº 2; de dados tirados do comunicado à im-
prensa de 1975; de documentos judiciais; de Superman de Dani-
els; de conversas do autor com Siegel e Shuster na década de
1980; e de entrevistas feitas pelo autor com Michael Uslan, Mike
Catron e Jerry Robinson. “Da forma como eu vejo...” Citado por
Daniels em Superman. Detalhes relativos a Bob Kane foram quase
todos fornecidos por Michael Uslan e Mark Evanier. A história do
“Funnyman” foi fornecida por Vin Sullivan. A história do retorno
de Joanne Carter à vida de Jerry foi tirada da Nemo nº 2. Alguns
detalhes sobre o divórcio e segundo casamento de Jerry, e o pe-
queno escândalo em torno do juiz Silbert, foram tirados de artigos
do Cleveland Plain Dealer de julho a novembro de 1948. “... ter
dinheiro para fazer...” Citado por C. Jerry Kuttner em “Os So-
nhos de Albert Zugsmith”.

CAPÍTULO 12

“Como é que eu posso...” e “Eu tenho a impressão de que


Bill...” Citados por Jacobs em Mad World, que relata o desapare-
cimento de Charlie Gaines e o surgimento de Bill Gaines à testa
da EC. Mas a abordagem mais completa sobre os começos da EC
está no livro de Grant Geissman e Fred von Bernewitz Tales of
Terror: The EC Companion (Seattle: Fantagraphics Books, 2002).
“... na época, estava na moda...” Kurtzman foi citado por Mike
Benton em Masters of Imagination: The Comic Book Artists Hall
of Fame (Dallas: Taylor Publications, 1994). “[...] subversivas
porque propensas...” As pastas que o FBI e o exército abriram so-
bre a EC estão arquivadas no site “Mad Magazine Collector Re-
source Center”, http://www.collect-mad.com/fbi/fbi-mad-bufiles.h-

682
tm.
“Eu sempre quis fazer eu mesmo...” e “Nós estamos todos in-
teressados...” Citados por Daniels em Superman, que contém um
bom panorama geral do seriado Superman para a televisão. Mais
material pode ser encontrado na internet, em http://www.super-
mantv.net. A história interna da National Periodicals foi tirada de
entrevistas com Jack Schiff, Julius Schwartz e Murray Boltinoff,
realizadas em 1984 e 1985, e com Irwin Donenfeld, 20 anos de-
pois. Obrigado também a Mark Evanier e a Mark Waid. Sobre
Mickey Spillane, ver o livro de Max Allan Collins e James L. Tray-
lor One Lonely Knight: Mickey Spillane}s Mike Hammer (Bowling
Green, OH: Bowling Green Popular Press, 1984). “Levantei o
braço e dei...” Mickey Spillane, I, the Jury (Nova York: Signet,
1948). Sobre a história das edições em brochura, inclusive de
Fawcett e da NAL, ver o livro de Kenneth C. Davis Two-Bit Cultu-
re: The Paperbacking of America (Boston: Houghton Mifflin,
1984), e os trabalhos de “editor por editor” compilados por Rus-
sell Barns no site http://www.paperbarn.www150megs.com.
A passagem dos escroques judeus para a legitimidade é anali-
sada por Fried em Rise and Fali, e por Rockaway em But He Was
Good to His Mother. Sobre Estes Kefauver e as investigações do
crime organizado, ver o livro de Joseph Bruce Gorman Kefauver:
A Political Biography (Nova York: Oxford University Press,
1971), e o de William Howard Moore, The Kefauver Committee
and the Politics of Crime, 1950-1952 (Columbia: University of
Missouri Press, 1974). “[...] sucesso telegênico” e “bocó da teli-
nha”, citados por Allan May em “Negando-se a negar: O testemu-
nho Kleinman/Rothkopf”, uma de suas colunas para “American
Mafia”, http://www.americanmafia.com. Sobre o depoimento de
Frank Costello, ver Wolf e DiMona em Frank Costello. A curiosa
história da Ziff-Davis e dos discos voadores foi contada por Ron
Goulart em Cheap Thrills: An Informal History of the Pulp Indus-
try (Nova York: Arlington House, 1972). A passagem de Jerry Sie-
gel pelos pulps foi refeita com a ajuda de Michael Feldman. Jun-
tamente com Tom Andrae e Jerry Robinson, Feldman também aju-
dou a reconstituir os últimos anos de Joe Shuster como desenhista.
A biografia e a educação de Fredric Wertham constam dos

683
ensaios de Peter Nisbet e James E. Reibman em The Fredric Wer-
tham Collection (Cambridge, MA: Harvard University Press,
1990) e foram examinadas no contexto das revistas em quadrinhos
por Nyberg em Seal of Approval. Sua dívida ideológica para com
Adorno é discutida por Gilbert em Cycle of Outrage. As idéias
deste último sobre a indústria cultural como mecanismo de engo-
do em massa foram desenvolvidas no livro Dialética do Esclareci-
mento, de Theodor Adorno e Max Florkheimer. Alguns críticos pu-
seram em dúvida a alegada familiaridade de Wertham com Ador-
no; embora Wertham dissesse que conhecia Adorno, este pelo vis-
to nunca fez menção a Wertham, fito que pode refletir tanto a hie-
rarquia intelectual da alta cultura como o relacionamento dos
dois.
“Comecei a notar...” Citado por Nyberg. “O Super-Homem
(com um grande S...)”. Fredric Wertham, Seduction of the Inno-
cent (Nova York: Rinehart, 1954). Sobre a presença de Gaines pe-
rante a subcomissão, ver Jacobs, Mad World, e Geissman e von
Bernewitz, Tales of Terror. “Eu achei de fato...” e “Senti que ia
desmaiar...” Os comentários pessoais de Gaines foram citados
por Jacobs. O depoimento e as perguntas foram transcritas por
Geissman e von Bernewitz. O autor teve oportunidade de assistir a
filmes dos trabalhos da subcomissão com as participações de
Wertham e Gaines graças à gentileza de Mark Evanier, fato que
contribuiu para a adição de alguns detalhes à narrativa.
Sobre a história e os efeitos da Comics Code Authority, ver
Seal of Approval, de Nyberg, e Comic Book Nation, de Wright. So-
bre o fechamento da American News Company, ver Two-Bit Cultu-
re, de David, e The Magazine in America, de Tebbel e Zuckerman.
“Eles me ofereceram um excelente...” Citado por Jacobs, Mad
World. Michael Feldman forneceu ajuda para reconstituir a ex-
pansão da Independent News.

CAPÍTULO 13

“[...] 11 anos fazendo...” De Donald Swan, “Jack Cole: Uma


Vida em Quatro Cores”, Once upon a Dime (inverno de 1991).
“Os quadrinhos precisam...” Entrevista feita pelo autor com Stan

684
Lee. A história de Bob Wood é contada por Simon em Comic Book
Makers. As experiências de Jack Kirby e Stan Lee foram tiradas
de uma entrevista com Mark Evanier e do livro de Stan Lee e Ge-
orge Mair Excelsior! The Amazing Life of Stan Lee (Nova York:
Fireside, 2002).
A carta ao “sr. Frolick” foi cortesia de Billy Frolick. A briga
de Joanne Siegel com Jack Liebowitz foi recriada a partir de vá-
rias fontes, inclusive a Nemo, nº 2, Mike Catron, Tom Andrae e
Mark Evanier. Material sobre Mort Weisinger e a maneira como
editava foi tirado de entrevistas feitas pelo autor com E. Nelson
Bridwell e Jack Schiff, das muitas entrevistas e conversas com
Mark Evanier no decorrer dos anos, das reflexões de Alvin
Schwartz na internet, e da entrevista feita por Guy H. Lillian III
com o próprio Weisinger na Amazing World of DC Comics nº 7
(agosto de 1975). As histórias em quadrinhos mencionadas são
“Vida em Krypton”, Superboy nº 79 (março de 1960); “O fantas-
ma de Jor-El ”, Superboy nº 78 (janeiro de 1960); a série da Su-
pergirl na Action Comics nº 261-291 (fevereiro de 1960 a agosto
de 1962); e “A volta do Super-Homem a Krypton”, Superman nº
141 (novembro de 1960). Meu obrigado a Grand Comics Databa-
se, http://www.comics.org, pela ajuda na verificação dos créditos
de autoria.
Histórias de como Mort Weisinger tratava os colaboradores
autônomos são tão comuns entre os veteranos da National Perio-
dical que uma lista de fontes seria praticamente idêntica a uma
lista de créditos para a revista Superman. Mark Evanier colecio-
nou as melhores de todas. Alguns exemplos de Weisinger no que
ele tinha de pior — nem sempre comprovados — constam do livro
de Steve Duin e Mike Richardson Comics: Between the Paneis
(Milwaukie, OR: Dark Horse, 1998). A história sobre Don Came-
ron foi contada por Alvin Schwartz; outras versões da história
atribuem a autoria da quase defenestração a diferentes freelances,
mas, de todos, Schwartz parece o mais confiável e também o mais
próximo de Weisinger. Por outro lado, um outro Schwartz, Julius,
declarou certa vez que essa história não poderia ser verdadeira
porque as janelas dos escritórios da National naquela época não
abriam. Mas a história é verídica, ao menos no íntimo daqueles

685
que algum dia trabalharam com ele.
“[...] parecia um sapo...” Citado por Bill Schelly em The Gol-
den Age of Comic Fandom (Seattle: Hamster Press, 1995). Para
mais informações sobre Swan, ver Eddy Zeno, Curt Swan: A Life
in Comics (Nova York: Watson-Guptill, 2002). A afirmação de
Weisinger de que era um homem torturado foi tirada da entrevista
feita por Lillian para a Amazing World of DC.
As circunstâncias que cercaram a morte de Harry Donenfeld
só agora começam a ser investigadas pelos historiadores dos qua-
drinhos e ainda há muita coisa bastante nebulosa. Na tentativa de
contar a história, o autor colocou detalhes obtidos com Irwin Do-
nenfeld junto a boatos passados de Murray Boltinoff e Jack Adams
para Michael Feldman. Feldman afirma que alguns dos antigos
parceiros de Harry têm certeza de que ele foi morto por um assas-
sino de aluguel. Mas até que surjam mais evidências, essa afirma-
ção deve ser classificada como mais uma daquelas especulações
que brotam de forma espontânea em torno de homens com cone-
xões mafiosas.

CAPÍTULO 14

A gênese dos super-heróis da Marvel, no início da década de


1960, é outro assunto tão minuciosamente examinado pelos histo-
riadores dos quadrinhos, e foi tema de tanto destaque nos tempos
em que o autor trabalhou no ramo que é quase impossível falar em
fontes; essas histórias faziam de tal forma parte das conversas ge-
rais de toda uma comunidade que o autor lança mão delas como
se fossem memórias pessoais. “Desde o começo...” Entrevista fei-
ta pelo autor com Jerry Robinson. “Quando eu chegava da esco-
la...” Entrevista com Stan Lee. Veja também Lee e Mair, Excelsi-
or, e o livro de Jordan Raphael e Tom Spurgeon Stan Lee and the
Rise and Fall of the American Comic Book (Chicago: Chicago Re-
view Press, 2003).
O leitor interessado em Pop Art, camp e quadrinhos é aconse-
lhado a ler o espantoso relatório de Peter Benchley “The Story of
Pop! What It Is and How It Came to Be”, Newsweek, 26 de abril
de 1966, que está arquivado no site da Roy Lichtenstein Foundati-

686
on, http://lichtensteinfoundation.org/newsweekapr66.htm. Em ape-
nas 3.700 palavras, Benchley junta Roy Lichtenstein, Andy War-
hol, Marshall MacLuhan, Marcel Duchamp, Batman, Susan Son-
tag, Rudi Gernreich, Humphrey Bogart, Edie Sedgwick, o progra-
ma espacial Gemini, Jay Emmett, um comerciante de quadrinhos
usados chamado Burt Blum e, claro, Jack Liebowitz num único e
barulhento ensaio panorâmico sobre a união entre comércio, iro-
nia, alegria e desespero que se deu em meados da década de 1960
nos Estados Unidos. Logo depois, Benchley iria escrever os dis-
cursos de Lyndon Johnson, depois se transformaria numa espécie
de ícone pop de si mesmo com Jaws, o romance que ajudou o ad-
vento do filme Tubarão, no final da década de 1970.
O material a respeito de Irv Novick foi fornecido, em parte,
pelo filho, Kim Novick. Sobre Kurtzman, Help e os “underground
comix”, ver o livro de Mark James Estren, A History of Under-
ground Comics (Berkeley: Ronin, 1989). Meu obrigado a Art Spie-
gelman pelas correções de alguns detalhes. O crescimento do nú-
mero de fãs do super-herói é abordado de forma magnífica por
Schelly em Golden Age. Sobre o Batman para televisão e fenôme-
nos relacionais, ver Daniels, Batman. Sobre Jay Emmett e a LCA,
ver Look Magazine, maio de 1965. A anedota sobre o corte de ca-
belo foi cortesia de Charlie Goldberg. A história do confronto dos
escritores com Liebowitz foi tirada de Mike Barr, “A madame e as
meninas”, WaP! (1988), e das conversas posteriores do autor com
Barr. O material sobre Bob Kane e Bill Finger foi fornecido por
Mark Evanier e Michael Uslan; meu obrigado também a Jerry
Bails. “Ao vitorioso pertencem...” Tirado da carta de Kane ao
fanzine Batmania, 14 de setembro de 1965, reproduzido em Alter
Ego 2, nº 3 (inverno de 1999). O estilo bizarro da frase é típico do
que saía publicado quando o que Kane escrevia não era revisado.
O detalhe sobre Joe Simon foi tirado da introdução de Jim Simon
ao livro de Joe Simon, Comic Book Makers. “Era um homem
acossado...” Kane, Batman and Me.
Jerry Siegel recebeu crédito (como “Joe Carter”) apenas por
dois dos roteiros que escreveu para o Tocha Humana, que apare-
ceram um ano depois do início da série, mas tanto os fatos como
as evidências internas sugerem que ele trabalhou nela desde o iní-

687
cio. (O Tocha, por exemplo, mora em Glenville desde o primeiro
episódio.) A cronologia da impugnação aos direitos autorais de
Superman foi cortesia de Mike Catron. “Eu disse a ele quem eu
era...” De uma entrevista com James Warren feita por Jon B. Co-
oke para a Comic Book Artist, nº 4 (primavera de 1999). As razões
da mudança de Siegel para a Califórnia foram esmiuçadas por
Mike Catron, Tom Andrae, Stan Lee e Jerry Robinson, com expli-
cações diversas.
Boa parte do trecho relativo a Steve Ross foi tirado do livro
de Connie Bruck Master of the Game: Steve Ross and the Creation
of Time-Warner (Nova York: Simon & Shuster, 1994). Parte do
material sobre a compra da National Periodicals vem da entrevis-
ta que Carmine Infantino concedeu à Comic Book Artist, nº 1 (pri-
mavera de 1998). Outras informações foram fornecidas por Irwin
Donenfeld, Michael Feldman e Paul Levitz.

CAPÍTULO 15

“Eu estava com 45 anos...” Mario Puzo, The Godfather Pa-


pers and Other Confessions (Nova York: G. P. Putnam’s Sons,
1972). Ver também a introdução de Bruce Jay Friedman ao livro
de Adam Parfrey It’s a Man’s World: Men’s Adventure Magazi-
nes, the Postwar Pulps (Los Angeles: Feral House, 2003). Fried-
man passou mais de uma década trabalhando para Martin Good-
man, como editor de revistas eróticas e pulps violentos, e, por uns
tempos, contratou Mario Puzo para ser seu assistente enquanto
escrevia maldosos e engraçadíssimos romances a respeito da su-
burbanização dos judeus de Nova York. Mais tarde, Friedman se
tornou um próspero roteirista de cinema, enquanto os filhos, Drew
e Josh Alan Friedman despontaram respectivamente como artista
e escritor de peso no cenário dos quadrinhos alternativos da déca-
da de 1980. Os gibis, a pornografia, entretenimentos masculinos,
filmes, cultura de vanguarda e assimilação de imigrantes revelam
novas conexões sempre que examinamos a questão.
A produção do filme Superman pode ser acompanhada no
site. As circunstâncias do comunicado à imprensa distribuído por
Siegel e as primeiras respostas foram fornecidas por Mike Catron

688
e Phil Yeh. O relato sobre a campanha em defesa de Siegel e Shus-
ter baseou-se sobretudo em informações fornecidas por Jerry Ro-
binson, com a ajuda de Mike Catron, Paul Levitz e Mark Evanier.
“Eu acho ótimo...” Citações do Cleveland Plain Dealer de 7 de
janeiro de 1979.
Depois que entramos na década de 1980, a descrição da in-
dústria dos quadrinhos e do círculo de fãs é tirada em grande par-
te das experiências do autor. Há detalhes tirados de entrevistas ou
de correspondência do autor com Art Spiegelman, Michael Cha-
bon, Will Eisner, Michael Uslan e Paul Levitz. A história de Tom
Floyd (“Rasguei o envelope às pressas...”) chegou às mãos do au-
tor por intermédio de Carla Seal-Wanner. “Nós agora temos...”
Entrevista dada a Nenio, nº 2. “Nem todo mundo pode dizer...”
Citado pelo Toronto Star, 26 de abril de 1992.
Os obituários de Mike Catron para Joe Shuster e Jerry Siegel
no Comics Journal, nº 153 (outubro de 1992) e nº 184 (fevereiro
de 1996), respectivamente, fornecem muitos dados sobre os últi-
mos anos de vida de ambos. Os comentários de Mike Carlin sobre
a reação de Jerry Siegel à “morte” do Super-Homem foram cita-
dos no obituário de Jerry feito pela Reuters, 31 de janeiro de
1996. Meu obrigado a Mike Catron pela informação sobre a en-
trevista final, gravada em vídeo, que Jack Liebowitz concedeu, e a
Irwin Donenfeld pelos comentários a respeito dos últimos anos de
seu “tio Jack”.

***

Pode existir alguma ligação entre o famoso gân-


gster Frank Costello e o surgimento do Super-
Homem? Será que é possível contar a história do
império das comunicações Time-Warner a partir da
trajetória de um pornógrafo falastrão?
Em Homens do Amanhã, Gerard Jones prova
que, em se tratando de super-heróis, de fato tudo é
possível. Em um relato surpreendente, o autor narra
689
o surgimento de uma indústria poderosa a partir do
submundo. Negócios fechados em mesas de jogo,
trapaças, negociatas e também todos os sucessos de
toda uma geração de desajustados — de mafiosos e
malandros de rua a geeks solitários.
Entre jovens artistas miseravelmente explorados
— muitos deles membros da primeira comunidade
organizada de fãs de pulps e ficção científica — ,
vão sendo criadas figuras como Batman, Lanterna
Verde, Capitão Marvel e Mulher-Maravilha. A par-
tir de editoras de revistas pornográficas e ficção ba-
rata, vão aparecendo marcas poderosas, como Mar-
vel e DC Comics.
O surgimento dos super-heróis, a chamada Era
de Ouro, as inúmeras crises do gênero, os proble-
mas com a censura, as revoluções nos quadrinhos.
De Will Eisner a Robert Crumb, de Bob Kane a
Frank Miller, passando por Harvey Kurtzman, Stan
Lee e Jack Kirby. Um panorama completo de como
visionários de todos os tipos, a partir de um presen-
te de miséria, vislumbraram um futuro glorioso.
Ex-roteirista de quadrinhos, Gerard Jones já
ajudou a criar histórias para personagens como Su-
per-Homem, Batman e Homem-Aranha. Hoje pes-
quisador da cultura pop, atua como colaborador de
várias publicações, entre elas a Harper’s e o New
York Times. Além disso, faz parte do Programa de
Estudos Comparativos de Mídia do MIT (Massa-
chusetts Institute of Technology) e realiza palestras
690
em diversas universidades americanas. Homens do
Amanhã lhe valeu um Eisner Award de Melhor Li-
vro sobre Quadrinhos de 2005.
De sua autoria, a Conrad publicou Brincando
de Matar Monstros — Por que as Crianças Preci-
sam de Fantasia, Videogames e Violência de Faz-
de-Conta em 2004.

Numa noite de setembro de 1975, Jerry Siegel,


um dos criadores do Super-Homem, decide escre-
ver um comunicado à imprensa para revelar como
tinha perdido seu personagem para um monstro que
ele próprio havia ajudado a criar — a indústria dos
quadrinhos americana. É a partir desse episódio que
Gerard Jones começa a narrar a trajetória de um
dos ramos de entretenimento mais poderosos do
planeta, surgido da improvável união entre mafio-
sos poderosos, malandros de rua e nerds anti-soci-
ais. Um relato surpreendente, prova de que a maior
das histórias dos super-heróis é sua própria origem,
repleta de trapaceiros, vilões e até alguns heróis.

“A incrível e tocante história dos trambiquei-


ros, trouxas e tapados que deram origem ao herói
de quadrinhos.”
ART SPIEGELMAN

“A história do super-herói [...] é também a his-


tória da América moderna, e Gerard Jones a reve-
691
la aqui em toda sua loucura, maldade e tragédia
inatas. Uma obra magnífica.”
ALAN MOORE

“Jones mergulhou fundo nas lendas e nos do-


cumentos há muito esquecidos da indústria e de-
senterrou histórias incrivelmente saborosas sobre
os criadores do Super-Homem, Batman, Capitão
América e da Mulher-Maravilha, bem como sobre
os primeiros homens a publicar gibis.”
LOS ANGELES TIMES

*
* *

ÐØØM SCANS
https://doom-scans.blogspot.com.br

692
693
694

Você também pode gostar