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A FILHA DO ALMIRANTE

The Admiral's Daughter


Sandra Madden

ARE
Clássicos Históricos Especial 211
Estados Unidos, 1853
Mudança de planos?
Ao se alistar na Marinha, Benjamin Swain tem um objetivo bem definido:
tornar-se oficial, casar-se com uma mulher especial e usar seu conhecimento
para projetar navios destinados à armada de guerra. Começando como um
marinheiro de escalão inferior, seu primeiro trabalho é ensinar navegação na
Academia Naval em Annapolis, uma tarefa bastante simples. Até que conhece a
filha do almirante, Sophie Harrington. Impulsiva e rebelde, é também linda, algo
que ele deseja ardentemente ignorar. Nada irá arruinar seus planos. Nem mesmo
a filha única de seu superior. Mas fingir que Sophie não existe é como gritar ao
vento, e logo tudo que Benjamin deseja é tomar aquela mulher nos braços e
ouvi-la dizer "Eu te amo"...
CHE 211 - Sandra Madden - A FILHA DO ALMIRANTE

Marina
Digitalização e Revisão:
Formatação: Morgana

Capítulo I

Abril de 1853
O primeiro dia claro de fins de abril ostentava o cheiro fresco de
primavera e o alegre ar de verão. Uma brisa leve e salgada prometia uma
ocasião perfeita para velejar.
A chalupa de quinze pés de Benjamin Swain, a Dama de Nantucket,
balançava presa à âncora junto aos barcos de pesca e veleiros, na doca da
cidade, em Annapolis. A uma distância acessível a pé da Academia Naval, a
pitoresca marina adentrava o porto de Annapolis, onde o rio Severn
encontrava a baía de Chesapeake.
— Olá!
Ao ouvir o chamado da voz feminina, a curiosidade de Benjamin se
aguçou. Seu olhar desviou-se da âncora em sua mão para o píer.
Protegendo os olhos do brilho do sol na água, tentou descobrir quem o
chamava. "Ah, não! Sophie Harrington."
Um profundo mau presságio o engolfou quando viu Sophie avançar
num andar requebrado. Ela revirava a sombrinha azul de babados tão
descuidada como uma menina de escola, sem saber que provocava um
arrepio nos cabelinhos da nuca de Benjamin.
Ele não se assustava com facilidade. Fora condecorado por bravura
em ação. Mas, ao observar a jovem de vestido azul chegando perto,
experimentou uma incômoda sensação de aturdimento.
Vira Sophie Harrington pela primeira vez apenas na semana anterior,
na parada. E embora não a conhecesse formalmente, ouvira o bastante
para saber que ela deveria ser evitada a qualquer custo. De acordo com as
histórias que circulavam pela Academia Naval e por toda Annapolis, a srta.
Harrington usava calções até os joelhos e fora expulsa não uma, mas duas
vezes de exclusivas escolas femininas.
Havia rumores de que possuía seis gatos e falava sozinha. Embora
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Benjamin não costumasse prestar atenção a mexericos e jamais tivesse


conhecido uma mulher da qual não gostasse, sentia-se mais do que
apenas um pouco apreensivo em ser apresentado àquela jovem em
particular.
— Olá, marujo!
Marujo. Aquele posto inferior jamais deixava de aborrecê-lo. Como
um homem que certa vez comandara seu próprio navio baleeiro, Benjamin
esperava ser promovido rápido ao status de oficial.
Poderia fingir não ter escutado, não tê-la visto? Na eventualidade de
que tal tática pudesse funcionar, preparou-se para zarpar depressa em sua
pequena chalupa. Assim que terminou de amarrar o nó da âncora,
Benjamin lançou um olhar de esguelha para a doca, na esperança de que a
Srta. Harrington tivesse mudado de rumo e continuado avante.
Que nada. Ao que tudo indicava a indiferença não detinha a filha do
almirante. Ela marchava pelo píer com um farfalhar de saias e estava
quase sobre ele.
— Marinheiro Swain!
Era pior do que ele julgara. Ela sabia não apenas seu cargo, mas
também seu nome. O que poderia querer? Benjamin estava sem uniforme
e de folga. E Sophie Harrington, a filha de seu oficial comandante, sem
dúvida se achava fora de lugar.
Embora a garota tivesse conquistado uma reputação de certa forma
nefasta, sua beleza era quase tão lendária como seus ousados malfeitos, e
a salvava de censura cabal. E, não obstante Benjamin ter visto Sophie de
longe inúmeras vezes desde que fora designado para a Academia Naval,
três meses atrás, nunca chegara perto dela o bastante para tirar suas
próprias conclusões.
Sophie parou na doca de madeira maltratada pelo tempo acima dele.
Benjamin não poderia mais fingir estar ocupado. Mais uma vez protegendo
os olhos, ergueu a vista e deparou com um sorriso mais caloroso e
deslumbrante que um sol tropical. Um ser humano poderia derreter sob o
impacto do incrível sorriso de Sophie.
— Bom dia! — ela falou, numa entonação suave e melodiosa.
Benjamin sentiu um estranho formigar na garganta.
— Bom dia, senhorita.
Perdido naquele sorriso, Benjamin classificou-o como aquele que se
dá a um velho amigo a quem não se vê faz tempo. Mas Sophie Harrington
não conhecia Benjamin.
E aquela covinha na face esquerda... Nenhum comentário que ouvira

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sobre a garota a mencionava.


Apanhado de guarda baixa, Benjamin olhou para a depressão como
se em todos os seus vinte e nove anos de idade jamais tivesse visto uma
covinha antes. Achou-a ao mesmo tempo charmosa e alarmante. A
marquinha de Sophie, talvez sua mais cativante característica, parecia um
sinal de alerta para um defeito de fabricação.
Benjamin se arrepiou. Dessa vez, as agulhadas vinham da boca do
estômago.
Esticando-se para baixo, Sophie estendeu a mão enluvada.
— Ainda não fomos apresentados. Sou Sophie Harrington. O barco
balançou quando Benjamin estirou-se para frente e para cima para tomar-
lhe a mão.
— Prazer em conhecê-la, senhorita.
A mão parecia pequena na dele, mas para sua surpresa, o aperto era
firme. Nada de modos flácidos de polidez. O suave perfume de madressilva
o alcançou, e foi o bastante para que compreendesse que ela trouxera um
sortimento completo de armas da feminilidade.
— Está um dia excelente para velejar, não é, Sr. Swain?
— O primeiro dia bom depois de tempos. — A mente de Benjamin se
esforçava, procurando as palavras certas para despachar a jovem sem
ofendê-la.
— Marujo, eu gostaria de aprender a velejar.
Ele a encarou e viu as íris de água-marinha, o matiz luminescente de
verde-azulado dos bancos de areia caribenhos. A contornar os olhos de
Sophie estavam os mais longos cílios escuros e curvados que ele já vira.
Alguma coisa perto de onde ficava o coração de Benjamin parecia tremer.
"Mulheres não velejavam."
— Marujo?
— Tenho certeza de que seu pai poderia arranjar um de seus
ajudantes para levá-la a velejar, senhorita.
— Você não está entendendo. Não é um passeio que eu quero.
Pretendo ser o capitão de meu próprio navio... por assim dizer. Sabe
quantas vezes fiquei observando os outros navegarem? Centenas.
Desdobrar a vela mestra e depois zarpar...
— Há muito mais nesse trabalho que içar as velas — disse Benjamin,
interrompendo o que temia vir a ser uma longa recitação passo a passo.
Foi a vez de Sophie encará-lo.

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— Eu gostaria que você me ensinasse o ofício, Sr. Swain. Pela


primeira vez desde que conhecera o almirante Harrington, Benjamin sentiu
uma pontada de compaixão pelo homem. O pai de Sophie era um oficial da
Marinha, inflexível e regido pelas regras. Ninguém questionava ou
argumentava com o comandante dos aspirantes à carreira naval. Exceto
sua única filha, Benjamin suspeitava. De acordo com as línguas ferinas de
Annapolis, a bela e rebelde filha de Wesley Harrington proporcionava a ele
uma constante torrente de tormentos.
Benjamin correu a mão pelos cabelos. Se pudesse apenas se safar e
dizer "Vá embora"... Mas era impensável. Em vez disso, desculpou-se com
gentileza:
— Sinto muito, senhorita, mas não posso fazer o que quer.
— Por que não? Você instrui os aspirantes. Tenho dezenove anos de
idade. Decerto posso aprender tanto ou mais que um rapaz de dezoito.
— Não duvido que tenha uma grande capacidade de inteligência,
senhorita, mas eu não tenho autorização para ensinar ninguém além de
meus alunos.
As sobrancelhas arqueadas reuniram-se num franzir de cenho quando
Sophie girou a sombrinha rendada sobre a cabeça. Benjamin interpretou o
gesto como uma manifestação de irritação.
Enquanto ela parecia ocupada em pensamentos, Benjamin estudou-
lhe a formosura radiosa. De estatura média, a cabeça de Sophie chegaria à
altura de seus ombros se ficasse ao lado dela. Mas a estatura era a única
característica que a garota Harrington possuía que poderia ser descrita
como média. Sua figura voluptuosa de maçãs do rosto salientes e nariz
estreito e simétrico não poderia ser classificada como mediana.
Com um ligeiro suspiro, ela fitou o céu, como se a buscai inspiração
do alto. Pelo visto, encontrou-a.
— Quando estiver de folga, não vejo razão para que não possa dar
aulas a um aluno particular, senhor.
Talvez ele pudesse. Mas a última pessoa que Benjamin escolheria
como aluno particular seria Sophie Harrington. Não tinha intenção de
sabotar seu próprio futuro mesmo que no momento presente sua carreira
naval parecesse encalhada nas rochas. Sem entender direito como, fora
transferido de seu navio para aquela escola para rapazes inexperientes.
Pior: não via nenhuma possibilidade de receber uma promoção na
condução do dever como instrutor de navegação. O único consolo de
Benjamin era que seus companheiros de pesca de baleia não poderiam vê-
lo naquele momento.
— Receio que eu tenha muito pouco tempo de folga, senhorita.
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— Não exigirei muito. Eu aprendo depressa.


— Talvez ache outro oficial para ensiná-la.
— Mas eu quero você.
Em qualquer outra circunstância, Benjamin teria ficado lisonjeado por
uma bela jovem preferi-lo, fosse qual fosse a finalidade. Ganhara uma
reputação bem fundamentada como bebedor de rum, cantador de toadas
de marujo, filho de baleeiro com um apetite lascivo por damas.
— Ouvi meu pai falar de você, sr. Swain. É considerado o melhor
marinheiro de Annapolis. Antes de receber funções na Academia, você
pertencia à Base Naval de Key West. E enquanto fazia patrulha, salvou a
vida de três oficiais que tentaram abordar um navio de escravos na costa
de Cuba.
Aquela mulher sabia demais.
— O almirante... Chamo meu pai assim, o que você entenderia se
vivesse com ele. Bem, o almirante me disse que vem de uma longa
linhagem de baleeiros de Nantucket, não é isso?
"Será que ela não pára nem para respirar?"
— Papai garantiu que não existem marinheiros mais corajosos do que
os baleeiros.
— A insensatez é muitas vezes confundida com coragem.
— Tenho certeza de que não é nenhum insensato e que posso confiar
minha segurança a você, marujo Swain.
Se o almirante o tinha em tão alta conta, por que Benjamin precisava
ensinar a marinheiros de água doce os rudimentos da navegação? Cada
hora gasta mostrando a um rapaz inexperiente como atar uma amarra ou
uma Unhada era desperdiçar seu conhecimento e sua experiência. Ansiava
por se fazer ao mar, tinha saudade da aventura que conhecera por toda a
vida.
O almirante Perry zarpara para o Japão. Por que Benjamin não estava
na fragata Mississípi ou no Susquehanna, a singrar os sete mares com a
companhia de Perry? Não, em vez de aproveitar a excitação da exploração,
ele estava ali, sentado, em Annapolis, a ensinar rapazes espinhentos. Dar
aulas a uma mulher de como navegar seria a mais absoluta humilhação
para Benjamin.
O ressentimento revolveu-lhe as entranhas ao pensar nisso.
— Gostaria de poder ajudá-la, Srta. Harrington, mas receio que deva
recusar.
Sophie Harrington poderia ser uma aventura em si mesma, mas não

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uma que ele pudesse se dar ao luxo de assumir.


Ela deixou escapar um suspiro quase imperceptível. Porém, no
instante seguinte, um sorriso brincou em seus lábios generosos e rosados.
Seus olhos reluziram como se tivesse guardado um segredo escandaloso.
Aquilo alarmou Benjamin.
— Por favor, me trate por Sophie. E imagine! — Baixando o tom, ela
começou a imitar Benjamin a dar uma ordem: — Srta. Harrington,
guarneça o mastro!
— Eu jamais diria isso.
— Ice a vela mestra, srta. Harrington!
Benjamin julgou a brincadeira divertida e constrangedora.
— Nunca diria isso também.
— Srta. Harrington, meia-volta ao barco!
— Nem isso.
Sophie soltou uma risadinha, enquanto Benjamin se esforçava para
reprimir o riso e ficava a imaginar por que aquela bobagem era tão
engraçada. Sem dúvida, a Srta. Harrington estava além de sua
compreensão.
— O que diria? — ela perguntou, ao se controlar um pouco.
Baixando os olhos diante daquela expressão notável e perturbadora,
Benjamin cocou o queixo. Não se dera ao trabalho de se barbear naquela
manhã. Não esperava encontrar uma dama.
— Há apenas uma coisa que me resta dizer, Srta. Harrington. E é
bom dia. — Fez um gesto de desculpas e um breve aceno para suavizar a
retirada. — Se não zarpar logo, não haverá vento para enfunar minha vela.
Benjamin se demorara com Sophie mais do que devia, aquecera-se
demais sob o calor daquele sorriso, inalara demais daquele perfume de
madressilva. Antes que se desse conta, poderia ficar incapaz de raciocinar.
Os membros da Academia, civis e oficiais, tinham sido avisados sobre
a filha do almirante, e Benjamin não pretendia, de forma alguma, encerrar
sua carreira por uma mulher. Além disso, quando chegasse a hora de se
acomodar, ele haveria de procurar por um tipo de jovem dos velhos
tempos, não daquelas que se aproximavam de estranhos e exigiam que as
ensinasse a velejar.
— É o vento ou sou eu? Meu pai ordenou a todo homem da Academia
Naval que me evitasse?
— Se o almirante Harrington desse uma tal ordem, eu teria de

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obedecer.
— Benjamin optou por sair pela tangente. — Sempre obedeço a
ordens.
Sophie seguia a caminho da chapeleira quando parará para admirar a
paisagem. Seus sentidos zuniam, conferindo-lhe renovado entusiasmo com
a aproximação da primavera. Contemplara o céu anil, a disposição
multicolorida dos barcos na marina e o rude e belo marujo a trabalhar em
sua reluzente chalupa branca.
Ela o reconhecera. Ouvira falar daquele oficial de ombros largos e
sabia seu nome. Sem uma decisão consciente, So-phie viu-se a caminhar
na direção do píer... e de Benjamin Swain.
Com toda probabilidade, ele ouvira falar de pelo menos uma de suas
escapadas. Alguns dos rumores que circulavam a respeito de Sophie eram
verdadeiros, mas não todos. Ela era ousada, mas não tão corajosa a ponto
de tomar parte em algumas das mais audaciosas atividades que lhe
atribuíam.
— Claro que você obedece a ordens. Eu não haveria de esperar que
fizesse menos.
— Se o almirante me ordenar que a ensine a navegar, ficarei
contente em cumprir com meu dever. — Swain lhe sorriu enviesado. Seus
olhos de um azul índigo luziram de arrogância.
Ele sabia que jamais receberia uma ordem assim. E Sophie nunca
fora envolvida pelo desejo de rasgar a camisa de um rapaz antes. Mas era
tudo no que ela conseguia pensar ao conversar com Benjamin Swain. Um
rasgo aqui, outro ali...
— Eu deveria avisá-lo de que meu pai faz tudo o que quero — ela
blefou.
Na verdade, não poderia se recordar da última vez em que o
almirante lhe fizera as vontades.
Ao olhar para Benjamin Swain, Sophie não poderia encontrar nada
suave ou bonito nele. De fato, eram suas formas rudes que o tornavam tão
atraente. Alto, ossatura forte, musculoso, o instrutor de vela era uma
figura que chamava a atenção. Irradiava uma atitude de orgulhosa
prepotência, de "Quem se importa?", que, para ela, tinha o apelo da
franqueza e irreverência.
Abaixo da camisa branca de Benjamin, de mangas enroladas até os
cotovelos, ela podia seguir as trilhas das veias que lhe subiam pela pele
bronzeada dos antebraços. O colarinho aberto revelava de relance um
instigante tufo de pêlos castanhos e crespos.

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— Sabe nadar, srta. Harrington?


— Estive rodeada de água desde que nasci. Nado muito bem.
Isso era fato. Seu pai era um oficial da Marinha, afinal.
O olhar aguçado de Benjamin se estreitou cético, em Sophie. E aquilo
provocou nela uma sensação de formiga-mento. Agulhas e espinhos
pareciam cutucar-lhe a pele em ligeiras espetadas.
Swain tinha a compleição rija de um pirata. O exterior moreno e
excitante de alguém que passara anos no mar e sobrevivera. Em certas
circunstâncias, Sophie achava que poderia provar ser um homem
muitíssimo perigoso.
— Antes de querer aprender a velejar, assegure-se de saber nadar,
senhorita. Os aspirantes que instruo devem passar por um teste de
natação antes de pisarem a bordo de um barco.
— A capacidade de nadar não é restrita aos homens. Tenho certeza
de que posso passar em seu teste.
— Eles são rigorosos.
— Sou uma mulher moderna que não se prende a velhas tradições.
Desafios não me assustam.
As sobrancelhas escuras de Swain juntaram-se no alto do nariz. Seus
lábios se apertaram, ela percebeu. Lábios que despertaram a curiosidade
de Sophie. Será que seriam mais doces se pressionados contra os de uma
mulher? Os dela, por exemplo?
— Aguardarei minhas ordens. — Ele enfrentava o blefe com um jeito
enigmático que provocou fagulhas pela espinha de Sophie.
Bloqueada por um momento, ela observou o carismático marinheiro,
um homem bem diferente daqueles que sempre conhecera. Uma
masculinidade pura, sem inibições, brotava dele em cada poro, e a
alcançava e a atraía.
Sophie não podia garantir se era o luzir daqueles olhos, o sorriso
meio torto ou a maneira enrolada de falar que provocavam aquele
torvelinho dentro dela. Embora Swain não tivesse se movido, nem tocado
nela, podia sentir o calor que dele emanava a penetrá-la sob a pele.
— Terei as autorizações hoje — ela declarou, com profunda
confiança. Respondia ao blefe com outro, mesmo sabendo muito bem que
o almirante jamais concordaria com aquilo.
— Preciso me pôr a caminho.
— Claro.
— Bom dia, srta. Harrington.

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Sophie sentiu-se mais desapontada do que deveria com a teimosa


recusa de Swain.
— Bom dia, marujo.
Ele sorriu largo. Um canto de sua boca ergueu-se numa insinuante
expressão de divertimento. Sophie conteve o fôlego. E de repente sentiu
os pés dormentes, como se anestesiados.
Benjamin Swain era muito másculo, o desejo de toda mulher. Seria o
herói a ganhar o coração da heroína de Sophie, Fifi LaDeux. Poderia existir
alguma dúvida? Ele fora criado para satisfazer as fantasias femininas.
Enfim, ao sentir que seus pés poderiam já obedecê-la, Sophie girou
nos calcanhares e correu pela doca para longe da influência subliminar do
sr. Swain.
Poderia colocá-lo fora da vista, porém não fora da cabeça. As
incursões literárias de Sophie, em si, exigiam que ela soubesse mais sobre
o instrutor de vela.
A Academia Naval fora fundada no local do Forte Severn, uma parcela
de terra de nove acres na fronteira oeste de Annapolis. O antigo forte
obsoleto permanecia na ponta de uma península chamada Windmill Point.
Duas muralhas de tijolos cercavam os lados da praia, e uma cancela numa
muralha de pedras ao final da rua do Governador permitia acesso apenas a
pessoas autorizadas.
Sophie, no entanto, podia entrar e sair à vontade. E deixava a
Academia com freqüência. Entregue de novo a seu passatempo favorito de
fazer compras, a figura de Benjamin Swain retornou a seus devaneios. O
almirante jamais permitira que ela tivesse companhia de alguém de posto
inferior ao de um tenente.
Respirando fundo, obrigou-se a esquecer seu mais novo conhecido.
Jamais tivera problemas em se concentrar em novas compras antes, mas
sua atenção continuava a se distrair por causa daquele marujo.
Era uma pena, mas o instrutor de vela tinha a mesma atitude
retrógrada da maioria de seu sexo. Uma lástima, visto que era mais
arrasador em aparência que a maioria dos seres viventes.
Sophie não conseguia ver nenhuma razão para que não pudesse
velejar. Por inúmeras vezes observara marinheiros iniciantes içarem a vela
e rumarem o barco para o vento. Dominar tais manobras simples requeria
muita força e determinação, e nada disso lhe faltava.
Ela mostraria ao arrogante instrutor de vela que não se vangloriara à
toa. E no processo, quem sabe, desse ao pai um motivo para se orgulhar.
Como tudo o que o almirante quisera para si, além de suas condecorações
da Marinha, era um filho, Sophie lhe prestara o desserviço de nascer
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menina.
Duas horas mais tarde, depois de sair da chapeleira, ela caminhava
pela calçada da rua Pinkney em direção às docas. O Dama de Nantucket
tinha zarpado, mas um jovem aspirante negociava o aluguel de um veleiro
por uma hora.
Sophie fez o que qualquer um em seu lugar faria se desejasse
navegar, e se aproximou do rapaz, hesitante e inexperiente pelo jeito,
assim que ele terminou a transação.
O moço alto e desajeitado franziu o cenho para Sophie, como se
quisesse reconhecê-la, mas não conseguiu se lembrar nem de sua face,
nem de seu nome. Sorriu, nervoso.
Com o fito de deixá-lo à vontade, ela o cumprimentou, alegre:
— Olá. Meu nome é Sophie. Não creio que nos conheçamos.
O jovem ficou rígido e endireitou os ombros. Empinou o queixo.
— Joseph Baker, aluno do quarto ano.
A boa sorte de Sophie continuava a todo vapor. Joseph devia ser
mais inexperiente que seus colegas de turma mais antiga.
— É um prazer conhecê-lo, Joseph. Descansar — continuou, ao vê-lo
parecer quase uma estátua.
— Obrigado... senhorita. — Ele relaxou a postura, mas seu pomo-de-
adão subiu e desceu como se engolisse em seco.
— Sabe velejar?
— Bem... — Ficou vermelho. — Tive meia dúzia de aulas, mas não
estou no ponto ainda. Tenho de praticar. O marinheiro Swain diz que sou
muito lento.
Lenta era a velocidade certa para a primeira lição de Sophie. Quanto
mais demorasse o aspirante para içar uma vela, mais ela sentia que
poderia aprender.
Joseph Baker possuía um charmoso sotaque sulista e inocentes olhos
cor de avelã. Sophie encantou-se de imediato por ele. A insegurança com
relação à perícia do mocinho em navegar não a dissuadiu. Tinha certeza de
que poderiam dar uma volta pela baía.
— Talvez eu possa ajudar. Vai praticar vela hoje?
— Sim, senhorita. Acabei de alugar esse veleiro.
— Gostaria de ir junto... se eu puder. — Ela bateu os cílios, com
fingida inocência.
— Estou aprendendo o ofício também.

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Sophie disse a si mesma que um pequeno exagero não era apenas


necessário porém permitido em nome de seu objetivo. Queria usar a
experiência em suas incursões pela literatura.
O olhar nervoso de Joseph correu pelo píer como se ele procurasse
por alguém que lhe desse uma desculpa para não levá-la. Mas os poucos
marinheiros e aspirantes na doca se concentravam em suas próprias
atividades, mantendo-se alheios ao dilema do rapaz.
— Eu... acho que estaria tudo bem. Aonde quer de ir?
— Poderemos seguir pela baía.
— Sim, senhorita. Com a graça de todo bom cavalheiro sulista,
Joseph ajudou Sophie a entrar na embarcação. O vestido dela mostrou-se
um problema. Sophie tropeçou e teria caído se o jovem não lhe segurasse
a mão até que ela recuperasse o equilíbrio.
Já sentada no banco de popa, Sophie assumiu o comando.
— Içar vela, Joseph.
— Sim, senhorita.
— Enquanto isso poderia me explicar o que está fazendo, tal como
seu instrutor explica a você?
— Não creio, senhorita.
Como era de se esperar, as explicações dele eram hesitantes e
algumas vezes confusas. Não obstante, Sophie aprendeu um pouco das
regras básicas e descobriu que, tal como suspeitava, gostava de velejar.
Entusiasmada com a novidade, perdeu a noção de tempo. De olhos
fechados, expôs a face ao vento. Mais de trinta minutos depois, o aspirante
pigarreou para chamar sua atenção. Preocupado, consultava o céu.
— Precisamos voltar, senhorita. Aquelas nuvens não têm um bom
aspecto.
Sophie seguiu o olhar dele. O amontoado escuro de nuvens parecia
mesmo assustador. Uma espuma branca coroava as águas revoltas. Por
mais que a desgostasse pôr um fim ã aula, a tempestade se aproximava,
lesta.
— Sim, sim, marujo. Meia-volta volver. — Não sabia ilircito o que
significava "meia-volta volver", mas soava adequado.
Naquele momento, Sophie ficou a imaginar se poderia safar-se do
castigo de seu pai se ele descobrisse o que fizera. "Ora, lógico! Já me safei
muitas vezes no passado."
— Senhorita?

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A cor do rapaz assumira um branco de giz. Os golpes da ventania


ficavam mais fortes a cada minuto, balançando o pequeno veleiro como se
fosse uma casca de noz numa bacia.
Sophie esfregou a mão na barriga, onde o estômago revi ia va, e
forçou-se a sorrir.
— Sim, Joseph?
— Não sei virar o barco.
Nem ela. Sophie não tinha idéia de como fazer a embarcação
retornar.

Capítulo II

Os olhos do aspirante Baker estavam tão arregalados que poderiam


saltar para fora.
— Quero dizer... nunca manobrei um barco num tempo como esse.
Sempre prestativa, embora nem sempre com embasamento, Sophie
sugeriu:
— Acho que precisa mudar de bordo.
— Mudar de bordo?
— Não é?
Joseph franziu tanto a testa que suas sobrancelhas se encontraram.
O medo enrolou-se na boca do estômago de Sophie como uma cobra
raivosa. Um relâmpago azulado rasgou o céu. Trovões ribombavam a
distância. Incapaz de controlar o tremor que se apossou dela, torceu-se no
banco e olhou para trás, em direção à velha doca. Para seu imenso alívio,
um barco a remo, largo na proa, cruzava a baía rumo até onde estavam.
— Está chegando ajuda, Joseph!
Resolvida a certificar-se de que seriam vistos, Sophie firmou os pés,
levantou-se e tirou o chapéu. Num equilíbrio precário, agitou o acessório
cheio de fitas, rendas e penas no ar, como se fosse um vendaval.
Joseph parecia uma estátua sentada. Pelo visto paralisado tio medo,
continuava a segurar com um aperto mortal o leme, enquanto o barco
seguia em círculos sobre si mesmo.
Ainda de pé, mas concentrada no bote que se aproximava, Sophie
não viu que Baker saía de seu estado de torpor e se lançava à ação. O
olhar dela estava focalizado no homem que remava. Swain, o marujo.

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Enquanto ela analisava, aflita, ao longe, Baker tentou virar o veleiro.


Sophie sentiu o movimento brusco, mas não pôde impedir a própria queda
quando o barco adernou e se aproximou perigosamente da superfície.
Soltou um grito. Seu chapéu alçou vôo. E seu último pensamento, ao
afundar no abismo gelado, foi que fora longe demais na tentativa de
satisfazer seu desejo.
Uma língua de luz iluminou o firmamento escuro. O ronco do trovão
afogou o som das águas revoltas.
A raiva de Benjamin dissolveu-se em tenebroso horror ao ver a filha
do almirante Harrington cair no mar, e ele desejou de todo coração que a
teimosa soubesse mesmo nadar.
De dentes cerrados, afundou os remos do bote na água, remando
com mais força e mais depressa do que nunca.
Benjamin sabia que poderia manejar um barco a remo com mais
facilidade que um veleiro numa tempestade, e se apropriara daquele,
emprestado de um dos pescadores de ostras. Entretanto, o odor fortíssimo
dos moluscos o punha enjoado.
No início de sua missão de resgate, Benjamin acreditara que apenas
o aspirante Baker estava com problemas. A presença de Sophie fora um
espanto. O ansioso proprietário do veleiro alugado não mencionara uma
mulher em companhia do aluno da Academia Naval.
— Socorro! — Joseph gritou, agitando os braços sobre a cabeça. —
Mulher ao mar!
Sophie emergiu cuspindo água. Subira à superfície apenas a poucos
metros do bote de Benjamin. Com a perícia conquistada durante anos de
serviço, ele levou a embarcação até poucas jardas da assustada jovem.
Jogou o salva-vidas.
— Agarre, srta. Harrington!
— Não posso! Está muito longe!
Aflito, ele viu quando Sophie engoliu água, tossiu e submergiu de
novo. A filha do almirante não nadava melhor do que a âncora de
Benjamin. Teria de mergulhar atrás dela.
A cabeça de Sophie apontou à superfície logo quando Benjamin
baixou a âncora.
— Meus pés estão... estão enrascados... em meu vestido! — ela
gritou, antes de afundar.
Benjamin rodou o salva-vidas pela amarra e jogou-o de novo. Dessa
vez atingiu Sophie, quando ela retornou à tona.

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— Ai!
— Agarre! — ele ordenou, antes de mergulhar.
Quando Benjamin emergiu, Sophie segurava o salva-vidas. O artefato
escapou-lhe das mãos, mas ele estava lá para ampará-la. Com um braço a
envolvê-la pela cintura, Benjamin puxou-a para si.
— Não se mexa, respire apenas — avisou-a, ao dar uma braçada de
lado, em direção ao bote.
Benjamin sentiu o tremor que sacudia Sophie como se Tosse o seu.
Mas continuou nadando. Por fim, após muito esforço, alcançaram o velho
bote. Ele se ergueu até se jogar dentro da embarcação, enquanto Sophie
se agarrava do lado, buscando fôlego.
Buscando até os ossos, Benjamin inclinou-se e a trouxe para a
segurança do bote. Os dentes dela batiam, e Sophie tremia, descontrolada.
Ele agarrou-a pelos antebraços até que se firmasse.
— O... obrigada — Sophie murmurou, com um sorriso envergonhado.
— Você salvou minha vida.
Punhados de cabelos molhados caíam-lhe pelas faces e pelos ombros
numa cortina ensopada. O vestido grudava-se a suas generosas curvas. O
pavor fulgurava em seus olhos. Ela estava diante dele, tão vulnerável
como nunca e mais bela do que uma mulher tinha o direito de ser.
Se Sophie fosse alguém que não a filha do almirante, Benjamin
poderia enlaçá-la para confortá-la, até que seu medo passasse e os dentes
não mais rangessem. Um simples ato humanitário poderia ser mal-
interpretado, entretanto. Por isso ele a soltou e a fez sentar-se na prancha
que servia de banco.

Ajeitou-se ao lado dela e virou-se para encará-la, antes de pegar os


remos. Pensava em como aquecê-la sem nenhum contato, quando Sophie
resolveu seu dilema. Sem fingimento ou orgulho, aconchegou-se a ele.
Descansou a cabeça em seu peito e o circundou com os braços.
— Sinto muito por colocá-lo nessa confusão. Po... por favor, me
desculpe.
Como não perdoá-la? Poderia ser jovem e tola, mas Sophie não era
maldosa. Mesmo assim, o fato de estar um marinheiro abraçado a uma
filha de almirante, por qualquer que fosse a razão, poderia ser suficiente
para restaurar a antiga prática de chibatadas públicas na lista de crimes e
punições da Marinha. A começar com o relho conhecido como rabo-de-
nove-gatos cortando as costas de Benjamin.
Contudo, por ser impossível ignorar a necessidade de proporcionar

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algum conforto a Sophie Harrington, Benjamin abraçou-a com cuidado.


Deu-lhe tapinhas nas costas como se acalma um bebê aflito. Uma curiosa
mescla de madres-silva e sal recendia nos cabelos dela, a mais exótica
fragrância que ele já sentira.
Conforme Sophie, comprimida contra o corpo dele, buscava quentura
e consolo, Benjamin tornou-se consciente da suave pressão dos seios
fartos contra suas costelas. E reagiu como um homem que não se
achegasse assim tão perto de uma mulher em meses poderia reagir. Um
homem sozinho no mar com uma bela jovem. Embora fosse a hora e o
lugar errados, algo abrasador tomou conta dele.
— Socorro! Socorro!
O aspirante Baker. Como pudera Benjamin esquecer-se do rapaz?!
Olhou a distância logo quando Joseph perdia o equilíbrio e caía na água,
batendo a cabeça e virando o veleiro alugado.
— Oh, não! — E então Sophie deu um pulo quando um raio cruzou o
céu negro.
— Misericórdia!
Benjamin empurrou-a para o chão do bote. Joseph batera a cabeça e
precisava de ajuda urgente.
— Está molhado, mas ficará segura aqui, senhorita. Vou buscar
Joseph.
Anuindo, ela endireitou a coluna como se estivesse se preparando
para enfrentar um inimigo.
Mais uma vez, Benjamin mergulhou. O inconsciente Joseph boiava
perto do veleiro virado, sacudido pelas ondas. Não era a primeira vez que
Benjamin lutava contra os elementos, porém a cada vez que se aventurava
na água nunca sabia se poderia vencer. Imaginava sempre que a natureza
detinha a última palavra.
A corrente o esmurrava enquanto nadava para o aspirante. Cada
músculo em seu corpo doía no momento em que alcançou Joseph.
Mantendo o rosto do rapaz na superfície, Benjamin voltou para o bote,
como fizera com Sophie.
Assim que ele conseguiu empurrar o aspirante para dentro do bote,
tratou de acalmar a outra passageira:
— Estaremos em terra antes que a tempestade desabe. Sophie não
pareceu acreditar.
— E Joseph? Como está ele?
— A não ser pelo calombo na testa, ficará bem. Ela ergueu o queixo e
esboçou um sorriso trêmulo. O ribombar de um trovão sacudiu as laterais
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do bote.
A filha do almirante saltou de susto. A cor sumiu de seu rosto até
ficar tão pálida que Benjamin julgou que fosse desmaiar. Mas Sophie era
valente, teve de admitir. Por isso, corajosa, agarrou-se aos lados do bote e
mordeu o lábio.
— Gostaria que você não contasse a minha família sobre esse...
incidente.
— Quem sabe no futuro você não coloque rapazes inocentes em
apuros, não é?
— Joseph garantiu que sabia velejar.
Ainda inconsciente, o moço não pôde se defender.
— Alguns aspirantes acham que sabem mais do que de fato sabem.
— Um traço que partilham com seus instrutores? Embora ela
estivesse ensopada e tremendo, o estoque de
pura audácia não fora afetado.
— Eu a avisei, senhorita, mas você disse que sabia nadar. E também
que ficaria segura velejando.
— Acho que exagerei...
— Não me diga! — resmungou entre os dentes, ao se debruçar sobre
os remos.
Benjamin corria contra o tempo, contra a borrasca iminente.
A chuva desabou quando faltavam ainda quinze metros para
alcançarem a doca.
Sophie se ajoelhou e fitou-o com aqueles incríveis olhos turquesa.
— Eu ficaria em débito eterno com você, se não contasse o que
houve a meu pai.
Com aquele olhar cravado no dele, era difícil para Benjamin conseguir
recusar o pedido.
— Por favor, marinheiro Swain...
Ele experimentou uma penosa sensação. Sabia que deveria relatar o
incidente, mas quando Sophie encolheu-se diante de outro raio que cruzou
o céu, deu-se conta de que não poderia.
— Nunca tive o prazer de conversar com o almirante, Sophie. Não
vejo motivo para isso agora. Prometa-me apenas que ficará longe da doca
e de qualquer barco.
— Prometo... até aprender a nadar.

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A despeito da bravata, ela estremecia, sobressaltada, a cada


estrondo de raios e trovões. Qualquer outra mulher a passar por
semelhante situação poderia não considerar navegar no futuro. Benjamin,
entretanto, logo soube que Sophie não era igual a nenhuma outra que
conhecera um dia. Fiel a sua palavra, ele não tinha intenção de informar o
desastre de Sophie ao pai dela. Mas, ao remar, enfrentando a chuva forte,
a primeira figura que Benjamin avistou entre o pessoal reunido no cais foi
o almirante Harrington, ensopado e vermelho de fúria.
— Mais uma vez você me fez passar por uma terrível humilhação!
O pai de Sophie, furioso, socou o punho na mesa. O tinteiro saltou, e
vários papéis flutuaram sobre a face polida da madeira.
— Sinto muito, muito mesmo, senhor.
O escritório do almirante era um aposento frio e despojado em
comparação ao resto da casa Dulany. A mansão colonial no terreno da
Academia Naval era seu lar desde que a escola tornara-se oficial, três anos
antes. Era a primeira vez que Sophie morava por tanto tempo em algum
lugar.
Uma estante e duas cadeiras de braços eram a única mobília, além
da escrivaninha. Dois retratos se achavam pendurados na parede atrás e
de cada lado da mesa de seu pai, um do presidente Pierce e outro do
secretário da Marinha, George Bancroft. Os olhos de ambos pareciam olhar
para os ocupantes do aposento, seguindo-os não importava para onde se
movessem. Sophie julgava aqueles retratos perturbadores.
Desviou o olhar do rosto lívido do pai para a mais próxima das duas
janelas do teto ao chão que ladeavam a lareira* Observar a chuva
pareceu-lhe a coisa mais segura a fazer.
Duas horas tinham se passado desde que desabara o temporal.
Banhada, enxuta, vestida e de cabeça erguida, ela encarou o almirante e
esperara para saber seu destino.
Não estava sozinha. Benjamin Swain se postava de pé ao lado dela.
Embora mal movesse um músculo, Sophie podia sentir o calor, o cheiro de
sabonete e o aroma cítrico que vinham dele. Respirando fundo, julgou que
o único aspecto agradável daquilo que enfrentavam juntos era aquele
perfume de loção após a barba que Benjamin usava.
O pai dela espumava por trás da mesa. Embora um homem baixo,
que mal chegava a um metro e setenta de altura, tinha uma figura terrível.
Sophie não conhecia bem o próprio pai. Passara anos em internatos,
enquanto ele permanecia às vezes durante meses no mar. Wesley servira
com honras às esquadras no Pacífico e em águas territoriais. Sophie sentia
como se ela e seu pai fossem navios fantasmas na noite, passando,

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sempre passando. Além daquilo que podia captar por intuição ou observar,
Wesley permanecia um estranho para ela. E esse triste fato a magoava.
Sophie fora criada por uma sucessão de babás depois que a mãe
morreu ao dar à luz. Assim que alcançou idade suficiente, seu tirânico pai a
mandou para um internato. Sempre que ela se comportava mal, Wesley
ameaçava mandá-la para Saint Louis para viver com tia Edith, a irmã
solteira dele.
Sophie sentia-se abençoada por possuir uma imaginação fértil. Se
não fossem os personagens que invocava e amigos que fazia, teria uma
vida solitária.
Os óculos do almirante espetavam-se no nariz bulboso enquanto
aquele olhar de um cinza escuro fuzilava pela armação, de um jeito muito
familiar. Sophie já vira aquele olhar antes. Várias e numerosas vezes. De
algum modo, sempre conseguia enfurecer Wesley ao procurar alargar os
próprios horizontes.
— O que tem a dizer por você, mocinha?
Se não fosse pela chuva contra as vidraças, o som do coração
acelerado de Sophie ecoaria pela sala. Já era bem ruim ser objeto da fúria
do pai de novo, mas ter o marujo Swain por testemunha deixava as coisas
piores.
— Peço desculpas, senhor. Não vi mal algum em aprender a velejar.
— Mulheres não velejam! Mulheres não são fortes o bastante para
fazer o que é necessário. E é de conhecimento geral que membros de seu
sexo são incapazes de manter a cabeça no lugar quando ocorrem
problemas. A tempestade que enfrentou é apenas um exemplo.
— Mas eu não...
— Você insiste em ir contra a natureza.
— Estaria bem se não fosse pela tempestade, o que não me fez
perder a cabeça. O marinheiro Swain pode confirmar...
— Não arraste o marujo para esse assunto! — seu pai resmungou.
— Não, senhor...
Em tais situações, a barba escura do almirante e o bigode faziam
Sophie lembrar-se das caricaturas do diabo. Sem os chifres, é claro. Os
pêlos finos, muito bem aparados, pareciam em desacordo com sua
compleição sólida, de barril. Nem o uniforme da Marinha poderia esconder
o fato de que o peito de Wesley Harrington era tão redondo quanto sua
cintura. Mas Sophie guardou tais observações para si mesma.
— Você é uma moça afortunada. Se não fosse pela ação rápida de
Swain, poderia estar morta!
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De soslaio, Sophie viu Benjamin Swain endireitar-se e ficar ainda


mais alto, mais atraente, porém ela não desviou-se da estante por trás do
pai.
— Sim, senhor.
— Se não fosse pela tempestade, talvez eu jamais descobrisse sua
última imprudência.
— Braços rígidos, mãos espalmadas, o almirante se inclinou sobre a
escrivaninha. O dedo mínimo de sua mão esquerda fora perdido num
acidente na guerra contra o México. — É isso o que estava pensando?
— Papai, apenas tentei ganhar seu respeito aprendendo a velejar.
O almirante se endireitou e cerrou a mandíbula antes de falar:
— Você não precisa ganhar meu respeito. É minha filha.
Ah, mas Sophie exigia esse respeito! Cada vez mais necessitava do
amor de seu pai. Contudo, continuar com argumentos não poria um fim
àquele encontro infrutífero. Sufocando a frustração, baixou os cílios.
— Sim, senhor.
— O marinheiro Swain, um dos melhores homens da Marinha,
arriscou a vida para salvá-la. Não tem nada a dizer a ele?
Sophie já se desculpara com Benjamin. Agora, seu pai Insistia para
que se humilhasse.
Quando ela virou a cabeça para seu herói, viu em Benjamin uma
expressão que dizia: "Eu não lhe disse?". Aquilo a enfureceu.
A atitude petulante de Swain, que seu pai não percebia, a provocou.
Um simples marujo não tinha de se comportar como um tenente.
— Estarei sempre em débito para com o senhor, marinheiro Swain.
Tem minha imorredoura gratidão.
— O prazer é meu, senhorita — a resposta de Benjamin ecoou com
frieza.
Por sorte, o almirante continuava alheio a qualquer coisa a não ser o
que tinha a dizer. Continuou com o discurso sem nenhuma indicação de
que tivesse notado a troca de palavras entre Sophie e Benjamin.
— Esta é apenas uma situação a mais numa série infindável de
situações que me força a decisões que, em caso contrário, eu não tomaria.
Sophie não gostou daquilo.
— O que é, papai? Que resolução tomou?
Wesley ficou de pé e afastou-se dois passos. Voltou-se e recuou.
Fundas rugas de frustração vincavam-lhe a face.
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— Se não fosse pelo marinheiro Swain, você poderia ter se afogado


hoje.
— Papai, eu não...
— Não se atreva a discutir! Comportou-se como uma tola ao velejar
pela baía quando não sabe nadar e não tinha um acompanhante
apropriado e experiente.
— Sim, senhor.
O zangado oficial pareceu controlar-se ao voltar o olhar sombrio para
o subordinado.
— Vou lhe dar uma menção de mérito por ter salvado minha filha,
marinheiro. Ganhou minha estima e minha mais profunda gratidão.
— Fiz o que qualquer homem faria, senhor. Wesley deixou-se cair em
sua cadeira.
A chuva não mais batia contra as vidraças. O escritório espartano
caiu em silêncio, como se antecipasse as próximas palavras do almirante.
— Decidi algo muito importante, Sophie.
— Sim, senhor.
— Você desposará o capitão Ferguson antes do verão...
— Casar?!
— Sim.
— Antes do verão?! — Tudo o que Sophie conseguiu fazer foi repetir
fragmentos do decreto de seu pai. Uma mistura tremenda de ultraje e
incredulidade a deixou aturdida.
— Não é tão em breve, em minha opinião. Precisa de uma mão firme
e da direção paciente de um bom homem, filha. O casamento fará
maravilhas a você.
— Mas eu não...
— Seis semanas lhe darão tempo suficiente para planejar uma
cerimônia simples.
— Sou jovem demais para me casar! Não quero, papai!
— Andrew é uma boa pessoa. Vem de uma ótima família. Será capaz
de mantê-la com estilo, comprar-lhe tantos chapéus e sapatos quantos seu
coração deseja.
— Andrew Ferguson é muito velho para mim. Tem quarenta anos.
— A idade traz sabedoria. É um homem experiente, e é disso que
você precisa. Andrew saberá como mantê-la na linha.

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— Não preciso ser mantida na linha.


A expressão do almirante tornou-se ainda mais severa. "Respirou
fundo, e o tórax imenso inchou-se a ponto de quase III rebentar os botões.
— Discutiremos isso mais tarde, quando estivermos a sós. Não que
exista algo que você possa dizer para que eu mude de idéia.
— Casamentos arranjados não estão mais em voga, papai.
— Vai me agradecer por isso algum dia, minha filha.
— Nunca me casarei. Nunca!
— Está dispensada. Pode sair, Sophie.
Lágrimas que ela teria preferido não derramar na frente do pai e de
Benjamin ameaçaram lhe escapar.
— Talvez eu possa convencê-lo a chegar a um acordo durante o
jantar.
— Jantarei com o almirante Porter esta noite.
— Quando o senhor voltar...
— Sophie, recuso-me a continuar a discutir. O marinheiro Swain tem
demonstrado toda a paciência. Deixe-nos com nossos assuntos. Falarei
com você amanhã.
De novo o aposento caiu em silêncio. Uma tensão muda perpassou a
atmosfera. Sophie mordiscou o lábio e, girando nos calcanhares, correu
para fora. Embora não a batesse, o escritório vibrou com o som de uma
porta fechada com força excessiva.
O almirante virou-se para Benjamin.
— Perdoe minha filha. Sophie é voluntariosa ao extremo. É a falta
que faz uma mãe.
— Sim, senhor.
— Se Sophie tivesse nascido menino, eu saberia que atitude tomar.
Poderia criar um garoto de forma adequada. Diante disso, receio que o
estouvamento e as maneiras independentes dela sejam quase masculinas
e pouco atrativas numa mulher. Eu tinha esperanças de que as escolas de
formação dessem um jeito nela, mas essa menina tem passado muito
tempo na companhia de marinheiros.
Benjamin conteve a língua. Concordar com o almirante poderia enviá-
lo a território perigoso. Por mais independente e voluntariosa que fosse,
Sophie era afortunada por ter sobrevivido até então. Que ela vivesse para
chegar à idade de se casar, já era uma vantagem.
Embora Benjamin tivesse pouco respeito por Andrew Ferguson,

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sentiu uma pontada de simpatia pelo capitão. Qualquer um que se


tornasse o marido de Sophie enfrentaria desafios inimagináveis.
— Estou correto ao dizer que você responde agora ao Departamento
de Marinheiros, Swain?
— Sim, senhor. Dou aulas de navegação básica. — Benjamin hesitou
apenas uma fração de segundo. — Embora ache que minha perícia e meus
conhecimentos pudessem ser mais bem utilizados em outra função.
— Concordo. Mas também temos de formar oficiais navais bem-
educados. A Academia existe faz três anos. Há muito a ser feito. Estamos
alicerçando aqui a fundação para o futuro da Marinha.
Com as mãos enrascadas atrás das costas, o almirante caminhou até
a lareira, a grade coberta de cinzas frias.
— Chegamos a um ponto em que devemos prosseguir com cuidado
se quisermos ser bem-sucedidos. E importante ler nossos melhores oficiais
e marinheiros aquartelados aqui como se em bases ativas. Robert E. Lee, o
superintendente do West Point, observa-nos de perto e tomará nota de
nossas inovações.
— Sim, senhor. E, senhor, eu gostaria de aproveitar esta
oportunidade para dizer que o aspirante Baker não se deu conta de que a
sita.
Harrington era sua filha quando concordou em levá-la a velejar
consigo. Repreendi o rapaz, mas não creio que deveria receber demérito
nesse caso.
— Concordo. Sophie tem entre seus piores predicados um pendor
para seduzir vítimas inocentes. Espero que o rapaz possa ser convencido a
ser um marinheiro melhor do que se mostrou.
Benjamin sentia-se um tanto responsável pela atitude arrogante de
Baker. Instrutores da Academia tinham uma missão de dois vértices:
instilar confiança inabalável nos aspirantes e motivar cada um a conquistas
cada vez mais altas.
O almirante voltou para a escrivaninha.
— O aspirante Baker é um de meus alunos, senhor, e não tem se
saído tão bem como poderia. Para se aprimorar, alugou um veleiro para
praticar à própria custa.
O almirante postou-se atrás da cadeira, as mãos agarrando o
encosto.
— O rapaz pagou por seu erro. Estou satisfeito com a maneira com
que você tratou todo o incidente, Swain.
— Espero ser considerado para o dever em futuro próximo.
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Benjamin não pertencia à Academia, mas sim ao mar. A saudade da


aventura que desfrutara desde os dias de pesca à baleia nunca cessara.
Tinha a alma de um andarilho e não pedia desculpas.
— Você será, marinheiro. Não tenho dúvidas. Mas não subestime seu
trabalho aqui.
— Não, senhor.
— Quando chegar o momento de ir em frente, eu lhe darei as
melhores recomendações.
— Obrigado, senhor. — Uma promoção seria apreciada também, mas
isso já era esperar demais.
Durante uma refrega com um navio de escravos no Caribe, Benjamin
resgatara um tenente e um capitão, um de se afogar, outro do fio da
espada. Mas a Marinha era pequena, e promoções, difíceis. Por mais que
quisesse alcançar um posto comissionado de tenente, Benjamin conhecia
homens que morreram de idade avançada à espera de algo semelhante.
No entanto, existia mais de uma maneira de chegar aonde Benjamin
queria.
— Também trabalhei num projeto para um navio a vapor que creio
que serviria à Marinha muito bem em batalha.
— Interessante. Você é um bom homem. — O almirante Harrington
esboçou um sorriso de lábios apertados. — Creio que encontrei em sua
pessoa o camarada certo para ficar de olho em Sophie até que ela esteja
casada e segura.
— Como, senhor? — Benjamin saltou como se atingido por um soco
inesperado.
— Quero que providencie que minha menina se mantenha longe de
problemas, e de todas as maneiras longe do perigo.
— Sim, senhor...
— Só posso confiar o bem-estar dela a alguém em quem confio e
respeito.
A garganta de Benjamin fechou-se como se ele engolisse uma bebida
que queimasse.
— Senhor, estou lisonjeadíssimo, mas devo confessar que lenho
pouca experiência com mulheres. Outro oficial poderia ser...
— Pelas próximas mil e seiscentas horas, você será designado a
proteger minha filha... de si mesma.
Aquele, sim, foi um soco verdadeiro. Será que teria de dizer alguma
coisa? A única coisa que ocorreu a Benjamin foi: "Não! Não! De jeito

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nenhum!".
— O quarto no sótão está vazio e pronto para ocupação imediata. —
O almirante correu a mão pelos cabelos. — Ou, se preferir, pode ficar com
o cômodo vago fora da cozinha, quando a camareira de Sophie vai
embora. Abigail planeja sair numa questão de dias.
Benjamin permaneceu ouvindo, mas incapaz de compreender as
palavras.
— Eu o aguardo para se instalar na casa Dulany, Swain.
— Está me dizendo para que me mude para cá, senhor?
— Sim. Além disso, ordeno que se certifique de que Sophie não faça
nada para pôr em perigo o casamento que trabalhei tanto para arranjar.
Como complemento, você deve assegurar-se de que nenhum mal lhe
aconteça antes que ela esteja casada.
— Mas, senhor, e meus alunos, minhas aulas de navegação? —
Benjamin objetou com tanta veemência quanto se atreveu.
Como chegara a isso, ter de atuar como babá de uma moça? No
mínimo, deveria estar se preparando para velejar com os aspirantes no
cruzeiro de verão a bordo do USS Preble.
— Continuará a ministrá-las, marinheiro Swain. Suas aulas são de
manhã, não são?
— Sim, senhor.
— Minha filha nunca se levanta antes do meio-dia. Benjamin agarrou-
se a uma última tentativa:
— Creio que a Srta. Harrington poderia se ressentir comigo se eu agir
com ela como um cão de guarda.
— Sophie não precisa saber. Direi a minha filha que você está me
assessorando num projeto importante. Aquele navio a vapor que
mencionou. Para ela, você estará a meu dispor.
— A senhorita vai acreditar?
— Claro. Não percebeu? Minha menina presta pouca atenção a
qualquer coisa que eu diga. Sophie pensará que o recompensei com uma
honrosa atividade por tê-la salvado.
— Sim, senhor... — Benjamin estava atordoado.
— Não me esquecerei desse serviço a mim, e a Sophie, quando
chegar a hora de você receber novas ordens.
Um misto de emoções mescladas ribombou no íntimo de Benjamin,
inclusive raiva, desapontamento e orgulho ferido. Se seu futuro

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dependesse de manter Sophie longe de encrencas e apta para o


casamento, ele estava condenado.

Capítulo III

Com os últimos raios de luz do dia, Benjamin sentou-se à mesa de


pedra no jardim dos Harrington, a pensar em sua má sorte.
Rodeado de botões de rosa e de brotos que reconheceu como de
narcisos e íris, acendeu um charuto cubano. Franzindo os lábios, soltou
uma série de baforadas que flutuaram no ar em anéis perfeitos. Enquanto
contemplava os círculos etéreos a se dissiparem, sua mente mergulhava
em outras coisas.
A primeira vez que Benjamin deparou com a beleza estonteante que
conhecia pelo nome de Sophie, soube que a jovem significava confusão. E
antes que ela chegasse à doca cie deveria ter içado a vela e se feito ao
mar.
Sombrio, ponderou sobre seu fado, resolvido a elaborar um plano
para escapar da atual incumbência. O rápido engajamento em um navio
pareceu a melhor atitude. Haveria horas de ociosidade a bordo em que
poderia continuar trabalhando no projeto para o navio de batalha a vapor.
Mais importante, seria possível colocar uma distância segura entre Sophie
Harrington e ele com suficiente rapidez.
Depois dos invernos glaciais em Nantucket, Benjamin preferia ficar
aquartelado no Sul. Baseado em Key West, poderia navegar numa fragata
pelo Caribe, dando caça aos navios de escravos. Sentia uma genuína
satisfação em tirar os negreiros do negócio e livrar os cativos. No
momento, daria qualquer coisa para retornar à ativa. Porém, como solicitar
tal ordem?
Os sombrios devaneios de Benjamin foram interrompidos pelo ruído
de uma porta estalando. O barulho vinha do fundo da casa, não longe de
onde estava. A porta se abriu e depois se fechou.
Em total alerta, amassou o charuto no cascalho sob os pés. Talvez
fosse o cozinheiro ou um dos outros criados de saída. Mas Benjamin não
poderia se arriscar. Assim, preparou-se para deter quem quer que viesse
pela alameda sob o caramanchão. Se Sophie Harrington tentasse se
esgueirar para fora, Benjamin a levaria de volta ao quarto antes que ela
pudesse piscar.
O almirante considerava sua filha sob "prisão domiciliar". A tarefa de
Benjamin era fazer com que Sophie ficasse em seu lar.

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Não foi surpresa ver a filha de seu oficial comandante surgir pela
alameda. No intuito de andar mais depressa, Sophie segurava as saias
acima dos tornozelos torneados e atraentes.
Alheia ao fato de ser observada, Sophie correu para o portão dos
fundos.
—Vai aonde?—Benjamin perguntou, ao sair das sombras. Sophie
estacou. Depois de uma pausa, voltou-se para confrontá-lo. Ao se dar
conta de que apenas sua estatura poderia ser fator de intimidação, ele
empertigou-se, endireitou os ombros, jogou o quadril para frente, cruzou
os braços, arqueou uma sobrancelha e endereçou-lhe um olhar firme.
— Marujo... marinheiro Swain... — Os olhos dela pareceram dobrar
de tamanho. Ficou ainda mais adorável.
— Boa noite, Srta. Harrington. Adorável e inocente demais.
— Vai a algum lugar, senhorita?
Sem luvas ou bolsa, Sophie não parecia vestida para sair. Mas
rumara para o portão dos fundos, que se abria para uma estreita viela que
conduzia à via pública.
Desafiadora, ela afirmou petulante:
—Para ser franca, estou de saída para ver Flora Muldoony.
— Flora?
Espantado, Benjamin descruzou os braços e plantou os punhos nos
quadris, a encarar Sophie com olhos estreitados. Ela não poderia estar se
referindo à mesma Flora que Benjamin conhecia.
— Aquela que trabalha na Taverna Reynolds?
— Você a conhece, Sr. Swain?
— Sim.
Flora fora a primeira mulher que Benjamin conhecera em sua
chegada a Annapolis. A corajosa garçonete era uma mulher do mundo, um
mundo muito diferente daquele habitado pela filha do almirante.
— Flora é... minha amiga — Sophie sussurrou.
— Flora, a criada da taverna, é sua amiga?!
— É difícil encontrar amigas. Nos internatos em que vivi, cresci entre
homens a maior parte do tempo. Com exceção de umas poucas ex-colegas
e esposas de oficiais da Marinha que estão espalhadas pelo país, da
Virgínia até a costa do Pacífico, não tenho intimidade com muitas
mulheres.
Benjamin não poderia negar que a vida na Marinha era dura para o

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chamado sexo frágil. Porém, sabia que o almirante Harrington o lançaria a


ferros se descobrisse que permitira que a filha se associasse a uma criada
de taverna.
— Acha que seu pai aprovaria sua amizade com uma jovem como
Flora?
— Ele detesta a maioria das coisas que eu faço. Nunca aprova.
— Tenho certeza de que está exagerando.
Ao se sentar no banco, Sophie inclinou-se para um pálido botão de
rosa amarela e aspirou-lhe o perfume.
— Importa-se se eu indagar o que está fazendo em nosso jardim, sr.
Swain?
— Esperando para me encontrar com seu pai. O almirante me deu a
oportunidade de trabalhar com ele em um projeto confidencial.
— Não diga.
— Sim, e me ordenou que me mudasse para a casa Dulany durante a
duração do processo.
— Curioso... — Deixou escapar um suspiro fundo. — Papai o
recompensou e me puniu.
— A senhorita assumiu o comando de um veleiro e de um inocente
aspirante. Não esperava ser censurada?
— Sim. Mas punida com o casamento... não!
— A questão é, quem está sendo punido? Ferguson ou a senhorita? —
Não resistiu a provocá-la.
Sophie empalideceu e endireitou-se no assento, como se sua coluna
tivesse sido perpassada por aço.
— Papai lhe deu licença para me insultar?
— Minhas desculpas. — Benjamin baixou a cabeça. Sentia-se imundo
como um trapo.
No instante em que viu a expressão magoada na bela face de Sophie,
desejou morder ii língua ferina.
— Desculpas aceitas. A despeito de tudo, adorei velejar. A sensação
do vento em meu rosto, o cheiro de maresia, o bater da vela, e até a
tempestade... o silêncio. Quero fazer isso de novo.
— Não sob as minhas vistas.
— O quê?
— Sugiro que aprenda a nadar primeiro.

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— Quando o clima estiver mais quente, é o que farei. — Sophie


analisou Benjamin como se fosse uma artista pronta a retratá-lo.
Ele se remexeu com aquele escrutínio, com uma expressão cautelosa,
enquanto o olhar dela o percorria do nariz aos lábios.
— Alguma coisa me diz que eu poderia aprender muito com um
homem como você.
Do que ela estava falando? Estaria pretendendo seduzi-lo?
— Se estiver interessada em baleias ou navios, eu poderia ser de
alguma ajuda, senhorita.
— Não quero saber de baleias. Pensava se você poderia me ensinar a
nadar.
— Não. Não. Não, não posso. — Se não tomasse cuidado, iria
enfrentar a corte marcial por causa de Sophie Harrington.
— Sim, poderia! — Esboçou um sorriso doce. — Uma mulher deve ser
capaz de tomar conta de si mesma.
— Talvez, mas nadar é algo que qualquer um seria capaz de lhe
ensinar. Uma outra mulher, por exemplo.
— Mas eu não conheço uma que saiba nadar, e quero ser
independente de todas as maneiras.
Ali estava. Benjamin sabia que ouviria isso mais cedo ou mais tarde.
Conversa radical. Independência. Sophie se achava sob o fascínio daquelas
que lutavam por igualdade de direitos. Ficou a imaginar se deveria
informar aquela conversa subversiva ao almirante.
— Por que quer independência? — Assim que as palavras saíram,
Benjamin se arrependeu de tê-las dito.
Não entendia o motivo, mas a conversa com Sophie Harrington o
punha tão nervoso como um peixinho cercado por tubarões.
Sophie fitou o vazio como se tivesse caído em transe.
— Por muitas razões. A maioria de nós não julga que pode ter seu
próprio lar a menos que um marido lhe providencie um. Não é uma
lástima?
Benjamin já pisara em areia movediça antes. Conhecia a sensação e
sabia que se achava em terreno perigoso mesmo que seus pés estivessem
plantados com firmeza.
— A senhorita pensa de forma diferente?
— Logo estarei me sustentando. E irei morar no velho chalé dos
Bailey, na rua Príncipe George. Está à venda, você sabe.

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— Não, não sabia.


— Já ouviu falar em Elizabeth Wetherell, Sr. Swain?
— Não.
— É uma autora famosa que escreveu um livro notável.
Devia lê-lo. Vou lhe emprestar meu exemplar de The Wide, mãe
World.
— Estou ansioso para lê-lo. "De jeito nenhum!"
— Quero imitar a Srta. Wetherell e conquistar meu próprio caminho.
Irei viver num chalé na rua Príncipe George c escrever romances populares
pelo resto de meus dias.
— Achou uma residência onde quer viver para sempre?
— Eu mudei tantas vezes, a seguir meu pai de quartel em quartel,
que nunca fiquei num só lugar por tempo suficiente para que me sentisse
em casa. Recuso-me a me mudar de novo. Meu lar será aqui, em
Annapolis.
Benjamin adorava aquilo que Sophie parecia detestar. Achava
excitante viajar para outros países, conhecer pessoas de outras culturas. E
a resolução dela em permanecer na cidade pequena à beira da baía
pareceu-lhe estranha.
— Quer escrever romances?
Ela o segurou pela mão e puxou-a até que Benjamin se sentasse a
seu lado. E ele se viu de imediato consumido por uma nuvem doce e
calmante de madressilvas. Os olhos de Sophie reluziam ao encontrar os
dele.
— Mais e mais mulheres estão se tornando escritoras. Harriet
Beecher Stowe ganhou fama pelo livro publicado no ano passado. Talvez
tenha ouvido falar na Cabana do Pai Tomás.
Embora Benjamin não discordasse da Sra. Stowe, notoriedade era o
que ela havia conquistado. Mas Benjamin guardou sua opinião para si
mesmo e se permitiu apenas um resmungo de anuência.
Sophie pousou a mãozinha quente sobre o joelho dele.
— Precisa me prometer que meu desejo de escrever romances ficará
como nosso segredo.
O joelho saltou por conta própria conforme Benjamin fazia que sim.
— Estou prestes a terminar de escrever meu primeiro livro. Chama-
se As Românticas Aventuras de Fifi LaDeux, uma Mulher Solteira.
— Românticas aventuras... — ele repetiu, espantado demais até

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mesmo para resmungar.


— E uma narrativa maravilhosa sobre uma inocente francesa que
chega aos Estados Unidos, vinda de Paris.
Benjamin enterrou a cabeça entre as mãos.
— Algumas de minhas personagens... bem... são mal comportadas.
Ele não queria saber. Estremeceu ao imaginar o que seria
malcomportado na imaginação de Sophie.
— Eu lhe darei um exemplar algum dia. Benjamin se levantou, com
um suspiro fundo.
— Estou ansioso para lê-lo.
— Agora, contudo, tenho de ir até a taverna. Flora me fornece um
excelente material para o romance.
— Flora?
— Sim. E o resto vem de minha própria experiência. Aquilo não fez
Benjamin se sentir melhor.
— Vai à taverna agora?
— Não se aflija. Guardo um véu pesado e luvas na cabana de
jardinagem. É meu disfarce para quando me aventuro até a Taverna
Reynolds. Não fui reconhecida ainda.
Benjamin duvidava muito.
Depois de abrir um sorriso luminoso, Sophie deu-lhe as costas e pôs-
se a andar.
Benjamin seguiu-a, procurando uma maneira de impedi-la sem uso
da força.
—Quando costuma escrever? Sophie lhe endereçou um olhar
misterioso por sobre o ombro.
—Meu pai crê que durmo até meio-dia, mas na realidade escreveu
durante a manhã. As aventuras de Fifi são baseadas no que acontece com
Flora e também comigo. É como fazer um bolo com a mistura de
ingredientes.
Benjamin podia imaginar os resultados de uma colaboração tão
inacreditável. Estremeceu.
O problema é que se eu quiser evitar o casamento com Andrew
Ferguson terei de terminar meu livro depressa. Hoje poderá ser meu
último encontro com Flora. Em geral, dou um jeito de vê-la à tarde, mas,
já que tempo é a essência de nulo, não tenho escolha a não ser ir agora.
— Sophie...
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A mente de Benjamin corria desabalada. O que poderia lazer ou dizer


para fazê-la ficar? Não iria deixá-la ir até a taverna. Era responsável por
ela e seria cobrado por isso. A menos que fosse junto. Mas isso...
— Boa noite, Sr. Swain.
Benjamin estendeu a mão e puxou Sophie para trás, para dentro de
seus braços.
O jardim ressoava com o cricrilar dos grilos num coro barulhento, e
uma coruja ao longe piou para a lua, que apontava.
Os sons da vida noturna assinalavam a mudança. O dia se entregava
à noite. Sutis alterações mudavam o ar: a frieza da brisa ao se pôr o sol, o
cheiro de lenha queimada e a fumaça a subir das chaminés. O céu
acinzentado escurecia, tornando-se tão negro como o fundo do mar,
ocultando amantes e tudo o mais.
Quando a boca de Benjamin desceu sobre a dela, Sophie Harrington
provou seu primeiro beijo. A surpresa inicial deu lugar a uma excitação
ofegante. Uma quentura prazerosa espalhou-se por seu corpo como um rio
fervente de mel. Ela teve medo de que seu coração pudesse explodir no
peito, tão forte ele batia.
Sophie abandonou-se ao mais emocionante acontecimento de sua
existência até então. O beijo do marujo. Envolvida por aqueles músculos
firmes, sentiu uma estranha e nova ansiedade. E engolfada pela
masculinidade de Benjamin, vibrou com novo ânimo, consciente de cada
aroma e sensação.
Ele cheirava a sabonete e a um perfume cítrico, com um leve toque
de tabaco. Os joelhos dela ficaram tão moles como uma alga marinha.
Os lábios que se apossavam dos dela com rude intensidade
tornaram-se suaves, insinuantes.
"Céus, preciso ter mais! Nem que seja só pela pesquisa literária..."
Entreabrindo a boca com ávida curiosidade, Sophie correspondeu a
Benjamin da melhor forma que conseguiu. Um gemido lhe brotou da
garganta, inesperado.
Tinha tanto a aprender. Sophie sabia que devia convencer aquele
ardente instrutor de navegação a ensiná-la tudo o que soubesse sobre a
arte de fazer amor.
Beijar comprovava-se bem superior ao que ouvira das lembranças de
Flora de um beijo de um barqueiro em particular, ou do abraço do ferreiro.
Sophie compreendia agora o muito que perdera ao transcrever
informações de segunda-mão sobre o amor. E sua heroína merecia
narrativas verdadeiras.

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Cedo demais, Benjamin interrompeu a carícia. E Sophie pôde ver o


espanto registrado nos olhos dele, como se não soubesse como aquilo
havia acontecido.
As sobrancelhas escuras reuniram-se numa ruga profunda de
preocupação.
— Perdoe-me. Eu...
— Não, eu gostei tanto! Não há nada a perdoar — Sophie assegurou,
quase sem fôlego. Não conseguia ainda respirar direito.
Benjamin cocou a testa. Uma série de cicatrizes marcava as costas de
sua mão larga. Os traços pálidos, visíveis lembranças de dor esquecida,
realçavam-se contra a pele queimada de sol. Sophie baixou os olhos. A
mão direita, apoiada no quadril, também tinha marcas.
Como teria acontecido? Fora ferido em batalha contra homens ou
com os mais perigosos mamíferos do oceano? Ela se atreveria a perguntar?
De todo modo, a oportunidade passou.
— Seu pai depositou confiança em mim...
— O almirante jamais saberá. Tenho escondido segredos dele.
— Como eu testemunhei hoje. Existem regras...
— ...feitas para serem quebradas. Benjamin arqueou uma
sobrancelha, espantado.
— Embora eu não tenha por hábito beijar homens que mal conheço
em meu jardim — ela emendou, com uma piscadela marota —, gostei da
exceção.
Queria que aquele rapaz magnífico, que provocara uma estranha
dança de borbulhas em seu ventre, acreditasse que ela não era uma
completa inexperiente.
— Srta. Harrington, esqueceu-se de que é uma moça comprometida?
— Não sou. Papai assumiu o compromisso. Não é coisa minha, nem é
de meu gosto!
Benjamin não pareceu ouvir. Com um menear de cabeça, correu a
mão pelos cabelos.
— De qualquer forma, foi errado tirar vantagem de você. Sophie ficou
constrangida. Ele parecia lamentar o ocorrido.
— Não me sinto como se você tivesse tirado vantagem, sr. Swain.
Porém, se insiste...
Ele franziu a testa outra vez.
— Não vamos ficar remoendo o que houve. — Ela gostara do beijo e

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pretendia desfrutá-lo até que findasse aquela sensação de calor.


Recusava-se a permitir que o remorso de Benjamin Swain lhe
arruinasse a lembrança. No futuro, haveria homens que gostariam de seu
beijo, Sophie garantiu a si mesma. E eles implorariam por mais, em vez de
se aborrecerem e se arrependerem.
— Tem razão. Não deveríamos falar mais nisso. Na verdade, seria
melhor que esquecêssemos que esse... momento aconteceu.
— Claro!
"Nunca!" Sophie iria reviver, sentir, saborear o beijo de Benjamin
Swain para sempre. Uma mulher nunca se esquece do primeiro. Jamais
haveria outro como aquele. E se Benjamin lamentava, Sophie não. Embora
seus lábios ainda requeimassem e seu coração ainda batesse acelerado,
tinha de transcrever os sentimentos para o papel. Mesmo que ainda
frescos na memória, ela queria descrevê-lo em detalhes de disparar a
pulsação. Usaria o instante inesquecível como o clímax emocionante de seu
romance.
Benjamin a encarou. Os olhos azuis se estreitaram com
desconfortável intensidade.
— Está com frio, Sophie?
— Não.
— Vejo-a tremer.
Fora apenas um calafrio, uma reação involuntária quando se fitaram.
— Estou bem — ela assegurou.
Será que pareceria presunçosa? Não queria isso. Estava apenas
aturdida com os efeitos duradouros do que tivera com Benjamin. Agora
compreendia como homens escravizavam mulheres. Um beijo ardente e
um abraço caloroso poderiam corromper até mesmo a vontade da mais
extremada das virgens.
— Talvez devesse voltar para dentro, onde é mais quente, senhorita.
Ansiosa para retornar ao quarto e escrever, Sophie concordou:
— Sim, receio que agora seja tarde para visitar Flora. É melhor não
arriscar que papai chegue e não me encontre.
— Eu a acompanharei até a porta.
Benjamin parecia perdido em conjecturas ao conduzi-la. Sophie pôs-
se a imaginar que a estaria comparando a outras de quem roubara beijos.
E tinha certeza de que tinham sido muitos. Benjamin Swain era mais
perigoso do que a princípio supusera.

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— Boa noite, Srta. Harrington.


— Boa noite, mestre Swain.
Sem mais palavras, Sophie virou-se e subiu correndo as escadas.
Em seus aposentos, escreveu páginas e mais páginas dedicadas ao
momento, descrevendo em termos francos e honestos como se sentira.
Narrou o formigamento, a dor curiosa, a sensação de combustão latente
sob a pele. Não queria exagerar e deu ao episódio o grau necessário de
exatidão.
Descreveu o ex-baleeiro alto e forte como o herói que viera salvar
sua heroína, Fifi LaDeux. Benjamin servia como um excelente modelo. Era
um rapaz cujo magnetismo poderia se fazer sentir através do continente,
um homem cujo beijo poderia roubar uma mulher de qualquer outro.
Sophie impregnara Fifi com seus próprios sentimentos. E enquanto
revivia as emoções experimentadas quando Benjamin a tomou nos braços,
as palavras jorravam de dentro dela mais depressa do que podia escrever.
Não quis descartar Benjamin chamando-o por outro nome. Iria mudá-
lo mais tarde. Tudo o que importava no presente momento era descrever
como o beijo dele e o fato de se sentir comprimida contra aquele corpo
tinham provocado reações físicas dentro dela que desencadeavam... o
quê? Desejo?
Era isso! Sophie por fim descobriu o significado de desejo.
Quando terminou de escrever, seus dedos doíam e o tinteiro estava
seco. Cansada, porém satisfeita, fechou o caderno de capa de couro preta
que usava para escrever seu romance e o devolveu ao esconderijo.
Ao enfiá-lo atrás das botas prediletas dentro do armário, nas
esperanças de conquistar a independência alçaram vôo ainda mais alto.
Seria uma romancista!
Muito tempo atrás, Sophie aprendera que o mundo que criara aliviava
a solidão daquele que habitava.
Cinco dos amigos de Benjamin estavam reunidos na sala da primeira
das quatro casas de tijolos que serviam como alojamento de oficiais e do
corpo docente. Embora superiores as acomodações a bordo de um navio,
os quartos não eram mais confortáveis que os alojamentos dos aspirantes,
porém com o melhor em aquecimento e luz a óleo combustível.
A mobília consistia de duas cadeiras, cama, escrivaninha, cômoda.
Havia ainda uma pia e uma luneta. Quando mais de uma pessoa o visitava,
Benjamin sentava-se no chão.
Os prédios situavam-se entre a elegante residência do
superintendente Stribbling e a casa Dulany do comandante dos aspirantes,

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o almirante Harrington. Benjamin não fora longe depois de deixar Sophie


naquela noite.
O gosto dela ainda se demorava em seus lábios, o aroma de
madressilva ainda persistia, como se tivesse se impregnado nas fibras de
sua roupa, quando ele chegou em casa. E começou a beber para banir a
filha do almirante da cabeça. Recusava-se a tentar desistir.
— Este vai para Mary Belle! — gritou, erguendo a caneca de cerveja
num brinde.
— Isso mesmo! Sim! — Seus colegas, um tanto embriagados,
acompanharam o brinde.
Benjamin sorveu uma boa porção de cerveja.
— E este é pela doce Jane! — Ele sorriu e ergueu a caneca ainda mais
alto.
— Sim!
— E vamos fazer um brinde à cubana de olhos negros, senorita
Maria.
— Vamos!
Benjamin brindou outra vez, mas não conseguiu brindar a Sophie. Se
um de seus companheiros se atrevesse a caçoar dele, seria forçado a
defender a honra da filha do almirante. Por mais que ela o irritasse, não
suportaria expor a tolinha ao ridículo. E estava muito cansado para
defendê-la. Uma empreitada dessas poderia levar a noite toda.
Começou a cantar uma das canções favoritas dos marujos, seguido
de imediato pelos amigos, num coro desafinado. Depois de cantar os
versos, os homens caíram na gargalhada. Deram tapas nas costas de
Benjamin numa demonstração de afeição e de apoio que ele apreciava,
mas teria ficado mais feliz se as notícias de suas novas atribuições não
tivessem sido descobertas tão depressa.
Depois de tornar a encher a caneca, mergulhou na travessa de ostras
frescas trazida pelos amigos para a celebração. Com pouco a fazer em
Annapolis, qualquer ocasião era motivo de festa.
— Como irá servir ao almirante? — Danny 0'Toole quis saber.
— É um projeto secreto. — Benjamin sentia-se constrangido de
admitir a verdade.
— Confidencial.
Danny assentiu.
— Ora, boa sorte por viver sob o mesmo teto que a garota
Harrington. Ela pratica bruxarias, você sabe.

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Era o primeiro comentário que Benjamin ouvia sobre Sophie que fazia
sentido. Desde que a beijara, via-se sob algum tipo de sortilégio.
Compreendeu seu erro assim que seus lábios tocaram os dela. Se fosse de
fato um homem de fibra, teria impedido Sophie de deixar a residência do
jeito ortodoxo: na ponta da espada.
— Mas ela parece muito elegante — emendou Zachariah. — Gasta
todo o dinheiro do almirante em compras.
Benjamin tomou uma atitude capaz de encerrar a conversa, que se
tornava cada vez mais perturbadora para ele:
— Mais uma rodada e mais uma modinha, e poderemos dizer que foi
uma noite e tanto. Teremos aulas de manhã e eu preciso me mudar.
Contudo, a cantoria terminou de repente. Um tiroteio abafou o
vozerio.

Capítulo IV

A salva matutina de tiros fora disparada à meia-noite. Oficiais e


professores correram para fora, Benjamin e seus amigos entre eles,
apenas para descobrir que tinham sido vítimas de um trote de estudante.
Benjamin não viu o aspirante Baker na multidão de alunos inocentes.
Acordados do sono e meio vestidos, os garotos do turno da manhã tinham
atendido ao chamado sob a luz da lua cheia. Não estavam nada contentes.
Intrigado e curioso, Benjamin pôs-se a caminhar, seguindo o rumo
que tomaria se fosse o culpado. Virou a esquina a tempo de ver um vulto
escuro saltar a cerca e enfiar-se nos arbustos do jardim da casa do
almirante Harrington.
Se não estivesse equivocado, a julgar pelo tamanho e estatura do
intruso, Benjamin localizara Joseph Baker. O rapaz mostrara bom senso.
Com uma risadinha, Benjamin retrocedeu. Quando não houvesse muitas
testemunhas, passaria uma reprimenda no aspirante.
Uma luz se acendeu numa janela do segundo andar da residência.
Benjamin ergueu os olhos esperando ver o almirante. Em vez disso, foi
Sophie quem olhou para baixo e sorriu. Vestia um traje de decote alto, os
cabelos a lhe emoldurar as faces e a cair em longas ondas sedosas além
dos ombros. Sob os raios do luar, a massa reluzente de fios castanho-
claros reluzia como ouro. Ela parecia um anjo.
Benjamin, no entanto, a conhecia muito bem agora para confundir
aquela bela com um anjo. Julgava-a mais como uma flor silvestre. Um
botão-de-ouro.

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Alegre e com uma sensação incomum de congraçamento, na certa o


resultado de cerveja em demasia, Benjamin cumprimentou Sophie com
uma saudação de troça e sorrindo daquele modo que se provara no
passado capaz de encantar as damas. Ela correspondeu com um daqueles
plenos e brilhantes sorrisos que ofuscavam a própria lua.
Como planejado, aquele beijo, impulsivo e desastroso, servira para
distraí-la. Benjamin, contudo, fora distraído também pelo toque daqueles
lábios inocentes, macios e suplicantes, quentes e ansiosos.
Beijar Sophie fora como descobrir uma nova delicadeza, que poderia
nunca mais saborear de novo. Aquele gosto picante de menta fora o
bastante para provocar um anseio fundo, que ficaria insatisfeito para
sempre.
Sophie Harrington dera um novo significado ao termo "fruto
proibido". Era a filha do almirante, uma jovem prometida a outro e uma
reconhecida fomentadora de confusão.
De tarde, sóbrio como um capelão de navio, porém sofrendo de uma
dor de cabeça e não no melhor de sua forma, Benjamin mudou-se para a
casa Dulany com seus poucos pertences. Relegado ao sótão como um
enjeitado, na verdade se sentia como uma baleia fora d'água.
Sempre que batia a cabeça nas traves baixas do teto, praguejava
contra Sophie Harrington. O ressentimento o engolfara, e ele o respirava a
cada hausto. Sophie era a responsável por aquela tarefa ultrajante. Se não
fosse por ela, Benjamin estaria muito confortável nos alojamentos do corpo
docente, lugar ao qual pertencia.
Horas depois de desfazer as malas, foram lhe dizer que Sophie
estava indisposta. Feliz por se ver livre dela por algum tempo, Benjamin
não perguntou a razão que a deixara de cama. Não era de sua conta,
afinal. Quanto menos se visse envolvido com a megera de covinhas,
melhor.
Sua atenção seria mais bem empregada em colocar na linha o
aspirante Joseph Baker do que em Sophie Harrington. Ele o repreenderia
pela brincadeira de mau gosto e o advertiria que iria receber uma moção
de demérito se voltasse a se envolver em alguma trapalhada posterior. Os
ousados aspirantes que se metiam em trotes bem-sucedidos e inofensivos
eram encarados como possuidores de potencial acima da média. Uma
refrega segundo as regras poderia bem ser uma batalha perdida se o
oficial no comando não usasse a cabeça e pensasse por si mesmo.
O superintendente Stribbling, diante do crescimento da Academia
Naval, logo adquiriu lotes de terra e iniciou um programa de construção
em larga escala. Todo dia, exceto no sábado, uma horda de carpinteiros,
artesãos e aprendizes exercia seu comércio nos campos da escola. Pelo

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menos cinqüenta civis misturavam-se ao cenário acadêmico, quase


despercebidos do corpo docente e da equipe de ensino. Contudo, para
Benjamin, a residência do almirante Harrington parecia mais barulhenta e
confusa que todo o terreno da Academia.
Uma limpeza rigorosa da primavera causava comoção dentro daquele
lar. A cada vez, Benjamin encontrava a casa do almirante em torvelinho. A
ajuda extra, contratada na cidade, parecia um enxame a lavar janelas e a
bater tapetes.
Quase um exército tirava a poeira de pesadas cortinas e tapetes,
removia teias de aranha de fendas e vãos e polia os utensílios de prata e
as baixelas do serviço de mesa.
Não importava onde Benjamin parasse, sentia-se como se estivesse
no meio do caminho de alguém, e em geral estava.
No terceiro dia, ao passar pela cozinha para chegar aos aposentos no
sótão, a governanta o abordou, empurrando-lhe uma bandeja contra o
peito.
— Pode levar isto para a senhorita? — Mulher magra e enrugada,
Mildred Howser distribuía ordens com a mesma autoridade do almirante.
Se a Marinha permitisse o ingresso de mulheres, Mildred teria
envergado o uniforme.
— Ela não pode tomar o desjejum na sala de jantar? — ele perguntou
com secura, na tentativa de ocultar o orgulho ferido.
Harriet não se acovardou.
— Está de cama, com gripe.
— Que pena.
Pelo menos a senhorita encrenqueira ficaria num só lugar por alguns
dias, pensou.
— Em decorrência do mergulho que deu no porto!
— E Mildred o encarou, furiosa, como se a culpá-lo pela doença de
Sophie.
Benjamin não era responsável e não poderia se apiedar de Sophie.
Mesmo assim suspeitava que a garganta doída e rascante pudesse ser o
sintoma de uma enfermidade compartilhada. Contudo, não era um lírio
cultivado em estufa para desabar de febre. Além disso, era por sua própria
culpa. Se não tivesse beijado Sophie, não pegaria a gripe dela. Será que
sempre encontraria novas razões para lamentar o dia em que perdera a
cabeça e dera um beijo em Sophie Harrington?
— Vamos, você pode fazer isso. — Mildred empurrou de novo a

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travessa contra o tórax dele. Finas mechas de cabelos brancos escapavam


da touca, na nuca, e gotas de suor lhe escorriam pela testa.
Benjamin resistiu. Quanto menos visse Sophie, melhor.
— Não há mais ninguém?
— Estou mais ocupada que uma abelha numa nova colméia. Com a
saída de Abigail, preciso de auxílio. Olho vivo nesse pessoal da cidade ou
roubarão a prata debaixo de nossos narizes.
Embora Benjamin duvidasse que a prataria estivesse em iminente
perigo diante do bom povo de Annapolis, segurou a travessa da insistente
governanta.
Um momento depois, batia na porta do quarto de Sophie.
Uma voz débil respondeu:
— Entre.
Benjamin, um homem que se orgulhava de encarar qualquer perigo
sem vacilar, respirou fundo antes de entrar, hesitante, em terreno não
masculino. E se viu num ambiente decorado em deliciosas sombras de
lavanda e creme, repleto de metros e metros de babados e rendas. Não
havia erro: era um quarto de mulher.
Sentiu-se como se caminhasse num jardim. O sol se infiltrava pelas
janelas e o doce perfume de flores recendia na atmosfera. Rosas
enfeitavam os vasos de cristal e pequenas salvas de prata com pout pourri
floral espalhavam-se pelo aposento espaçoso. Na rápida inspeção de
Benjamin, percebeu que mesmo os travesseiros eram adornados com
buquês bordados de um roxo profundo e pálidas margaridas cor-de-rosa.
E quando seus olhos pousaram em Sophie, seu corpo saltou de
espanto. No meio da cama de madeira polida, de dossel, ela parecia tão
frágil! Por um instante, ele achou que a jovem que jazia ali fosse uma
impostora. Alguém seqüestrara Sophie Harrington!
Recostada contra pelo menos meia dúzia de travesseiros rendados,
ela quase se mesclava às cobertas imaculadas do leito. Numa
transformação espantosa, os olhos antes lindos pareciam fundos,
contornados por círculos arroxeados. Tinha um lenço na ponta do nariz
antes delicado e agora de um vermelho acintoso. Os cabelos espalhavam-
se sobre as fronhas.
Benjamin sofreu como se tivesse sido chicoteado preso a um mastro.
— Eu lhe trouxe comida. — Ele ergueu a bandeja.
A mocinha desajuizada que ansiava por liberdade e independência
sorriu. Com um fungado, puxou o acolchoado sobre o peito, até o pescoço.

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Tarde demais. Eleja tivera um relance perturbador de um ombro de


cetim. A manga direita da camisola de rendas escorregara num ângulo
sedutor. Ele sorriu, em apreciação. E ela deixou escapar um resmungo de
enfado.
— Eu... não acho que possa comer — disse numa voz rouca e
anasalada, ao fitar o desjejum.
— Tome um pouco de chá pelo menos. — Ele colocou a bandeja na
mesa-de-cabeceira.
Não esperava que Sophie parecesse digna de dó. Isso era
desconcertante. Só porque tinha um gênio insubordinado e aquela
conversa tola de independência, não merecia morrer.
— Não sei... Saia, sr. Swain. E melhor que ninguém me veja... assim.
— Você está ótima — mentiu. O mundo lhe ensinara que havia
momentos em que nunca se deveria dizer a verdade a uma mulher. Aquele
era um deles.
— Não vai embora, vai?
Como poderia, quando Sophie precisava dele? Ou de alguém. Ela,
sem dúvida, necessitava de alguém que cuidasse de seu bem-estar.
— Não estou certo de que devemos ficar a sós. — Por outro lado,
Benjamin não tinha certeza de como poderia ajudá-la. Não tinha nenhum
jeito para lidar com doentes. *
Ela espirrou. Com uma sensação desconfortável de impotência,
Benjamin viu quando as -lágrimas escorreram de seus olhos inchados e
deslizaram pelas faces pálidas.
— Olhe, há mel aqui. Vou lhe servir uma xícara de chá com mel antes
de sair.
— Como queira. — Ela fungou outra vez. Ele olhou ao redor.
— Onde estão os gatos?
— Gatos?
— Achei que tivesse vários gatos de estimação.
— Não. Nenhum.
Um boato falso. Os outros que ouvira sobre Sophie sem dúvida eram
inverídicos também.
Ela assoou o nariz, e não de um jeito elegante.
— Não se pode crer em tudo o que se escuta. — Benjamin rumou
para a porta.
— Aonde vai?
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— Você me pediu para sair.


— Mudei de idéia. Faz dois longos dias desde que conversei com
alguém. Por favor, fique. Converse comigo.
Benjamin se voltou. Acima das faces descoradas, os olhos vermelhos
imploravam, mudos. Ele observou também aqueles lábios, machucados e
ásperos. Eram os mesmos que ansiava por beijar outra vez? Sim, eram os
mesmos que haviam provocado uma lenta combustão em regiões que
Benjamin não queria ver em fogo.
— Por favor, Benjamin...
Não poderia deixar Sophie, sobretudo porque nunca vira um olhar
humano mais patético. Ela estava doente. E precisava dele.
— Bem, talvez por uns poucos minutos.
Sentou-se, constrangido, na beira da cadeira enfeitada com babados,
receando que cedesse com seu peso. A peça feminina do mobiliário,
posicionada em frente à lareira, não distante do leito, não fora projetada
para uso por homens de seu tamanho. Os joelhos dele chegaram ao peito.
Ela esboçou, então, um doce e suave sorriso.
— Obrigada.
— Não sei se você deveria se aborrecer com conversas.
— O tédio é bem pior. E não tenho conseguido escrever uma palavra
faz dias.
Benjamin julgou que Sophie estivesse se referindo ao romance de Fifi
LaDeux ou algo assim.
— Não se aflija, o mundo pode esperar por seu livro.
— Mas tempo é essencial.
— Uns poucos dias não mudarão nada.
— Porém, isso pode acontecer. Benjamin quero seu conselho.
Em conseqüência da gripe, a voz de Sophie assumira uma qualidade
rouca que em qualquer outra circunstância Benjamin julgaria provocante.
— Sobre o quê? — ele perguntou cauteloso, alteando uma
sobrancelha.
— Como escapar da punição de meu pai.
— Como assim?
— Não posso me casar com Andrew, você sabe.
Benjamin conseguia compreender aquela relutância. Rígido em suas
crenças, o pomposo capitão Ferguson possuía as mínimas habilidades

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navais. A despeito da falta de credenciais, fora promovido durante a guerra


contra o México apenas com base nas conexões políticas de sua família*
Por todo o conflito, Andrew permanecera atrás de uma escrivaninha em
Washington.
— Não sei se você tem escolha, Sophie.
— Acha que quando eu disser a Andrew que assumi um voto de
castidade, ele mudará de idéia?
Benjamin espantou-se. Sua garganta fechou-se, cortando-lhe a
respiração. Castidade!
— Está se sentindo bem?
"Não!" Mas ele forçou-se a responder:
— Sim...
— A abstinência é o único jeito de uma mulher... Benjamin saltou da
cadeira.
— Não diga mais uma palavra, por favor.
Em nome de toda a decência, será que ela não tinha modéstia?
Nenhum senso de propriedade?!
Em vez de baixar os cílios e pedir desculpas pela ousadia, Sophie
fungou alto e lhe endereçou um sorriso fulgurante.
— Uma mulher deve se proteger das conseqüências da gravidez,
marujo Swain. A abstinência é...
Benjamin rumou para a saída.
— Tem mesmo de continuar a usar essa palavra?
— Esse é o único método certo para evitar um estado delicado.
Minha mãe morreu ao dar à luz. Minha tia e uma prima também morreram
na gravidez. Em minha família ficar grávida é... como receber uma
sentença de morte.
— Essa não é uma conversa que poderíamos ter. — Benjamin correu
um dedo pelo colarinho, soltando o tecido que parecia sufocá-lo.
— Mas estamos em 1853, pelo amor de Deus!
— Não importa o quão progressista acredita que é, Srta. Harrington,
existem assuntos que jamais deveriam ser discutidos entre um homem e
uma mulher!
— Mas...
— Deve estar com febre. Não diga mais uma palavra.
— Você tem algum irmão ou irmã? Assunto mais seguro. Sua família.

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— Sim, somos cinco. As mulheres de Nantucket orgulham-se de ter


vários filhos. São... são... — Procurou por um termo inofensivo. —
...frutíferas.
— Pobres almas — ela caçoou. — Posso lhe garantir, Benjamin, que
eu não tenho vontade alguma de povoar a nação.
— Não estava sugerindo...
— Com toda a probabilidade, Andrew Ferguson vai querer ter uma
grande prole. Os homens nascem querendo filhos varões a quem possam
passar seus nomes e legados. Não acha que é fato? Não quer filhos,
Benjamin?
Por que ela não se calara ainda? Por que continuava a falar? Sophie
gostava de desafiar o improvável.
— Sim. Mas só porque sou o último Swain.
Pelo menos ele julgava ser. Benjamin não soube mais nada de seu
irmão caçula desde que Matt saíra de casa para a corrida do ouro na
Califórnia.
— Então, sendo o último, você terá de ter pelo menos uma dúzia de
meninos. Vai encontrar uma doce esposa que lhe dará com alegria um
monte de crianças. — Ela suspirou. — Uma moça apaixonada algum dia
cuidará de você e de todos os seus filhos numa grande mansão de oficial
protegida por uma cerca branca.
O cenário que Sophie criara tinha apelo para Benjamin. Ele não
duvidava de que gostaria de voltar de suas aventuras no mar para um lar
caloroso e para uma mulher ardente que o esperasse. Se não fosse por seu
baixo salário de marujo, já teria se casado. Com a perda da fortuna dos
Swain, no entanto, precisaria esperar até receber uma promoção a
tenente.
Com um gesto de anuência para provocar Sophie, ele segurou a
maçaneta.
— É isso o que procuro, uma jovem doce e apaixonada. Agora é hora
de você descansar.
Castidade. Abstinência. Que bela conversa! Benjamin suspeitava que
Sophie fosse muito influenciada pelo movimento radical dos direitos das
mulheres tanto quanto pelo histórico familiar. Em qualquer circunstância,
seria óbvio constatar que estava doente demais para se esgueirar pela
porta dos fundos, e não corria risco de morte. Portanto, Benjamin estava
livre. Sophie não poderia causar problemas por vários dias.
— Em breve voltarei a vê-la. — Ele parou, espantado com a
expressão abatida de Sophie.

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— Descanse bastante... Botão-de-ouro.


Botão-de-ouro. Sophie gostou do apelido, que soava afetuoso,
embora ela duvidasse que Benjamin pudesse ter tido essa intenção.
Resolvida a se recuperar depressa, estava bem o bastante no final da
semana para comparecer ao baile de sábado no salão de recitais. Com
exceção dos Mascarados, o grupo estudantil de teatro, essa era a única
recreação oferecida aos jovens. E a Sophie.
Ela achava difícil, se não impossível, ter a permissão do pai para ir
aos muitos eventos sociais em Annapolis. Contudo, nunca perdia uma
dança no salão. E um entusiasmo desabrido, junto com a necessidade de
sair, tomou conta de Sophie.
O almirante acompanhou-a ao evento e, por incrível que parecesse,
entregou-a a Benjamin Swain, que parecia estar à espera de alguém, de
pé ao lado da fileira de aspirantes sentados nas cadeiras junto da parede.
Depois da troca de cumprimentos, o almirante pediu licença com a
desculpa de que tinha de trocar umas palavras com o chefe do
departamento de matemática.
Sophie sorriu.
O marujo Swain pigarreou e passou o dedo pelo colarinho, como se
sufocasse.
— Vai me convidar para dançar, marinheiro Swain?
— Creio que a primeira dança é destinada ao noivo. Gentil, ele não a
recordou que uma mulher não deveria
convidar um homem para dançar.
— Andrew está em Washington. E não é meu noivo. E o de meu pai.
— Sophie não conseguiu reprimir uma risada com a própria piada.
Benjamin franziu a testa. E se esquivou:
— Lamento, mas eu não danço. Porém, Sophie não se deu por
vencida:
— Acho difícil de acreditar. Suspeito que você é um homem que faz
tudo muito bem.
— A última dama com quem dancei ainda manca. Reprimindo uma
outra risada, ela o colocou em xeque.
— Acompanhe-me, então. Vamos nos sentar com as pobres esposas
negligenciadas da Marinha.
O olhar de Benjamin seguiu o dela para o grupo de matronas
acomodadas ao lado da mesa de bebidas. Vestidas a maioria em modestos

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trajes pretos, as senhoras pareciam um bando de abutres à espera da


presa.
— Bem, acho que posso tentar o impossível.
— Obrigada. Veja meu pai com os outros. Juntaram-se para reviver a
guerra mexicana. Logo irão sair para fumar seus charutos. — Sophie
meneou a cabeça, resignada. — É sempre assim. Nunca se divertem.
Uma evidente expressão saudosa perpassou pelo rosto de Benjamin.
E Sophie entendeu que ele daria qualquer coisa para estar entre eles.
Preferindo a pista de dança à companhia das matronas, Benjamin
segurou Sophie como se receasse encostar-se nela, como se ela pudesse
lhe passar escorbuto ou queimá-lo como uma água-viva.
Com a mão pousada no ombro largo de Benjamin, Sophie ficou a
imaginar se teria coragem de lhe perguntar sobre a cicatriz em crescente
que lhe cortava a sobrancelha direita. Não pudera deixar de notá-la.
Embora Benjamin se movesse com o corpo rígido, mais como um
homem caminhando numa prancha do que dançando uma valsa, Sophie
gostou da sensação de se aconchegar nos braços dele. A sólida
compleição, até mesmo as mãos calejadas, faziam-na sentir-se protegida e
de certa forma lhe transmitiam energia. Seu coração começou a acelerar, e
o rosto enrubesceu. Sensações estranhas, porém fascinantes e prazerosas.
— Por que desistiu da pesca à baleia para se juntar à Marinha, sr.
Swain?
— Depois da guerra contra o México, a Marinha necessitava de
homens.
— Li Moby Dick enquanto estive acamada.
— Leu?
Publicada no ano anterior, a história de Herman Melville dificilmente
seria considerada leitura feminina. Sophie descobrira um exemplar no
escritório do pai.
— Queria saber mais sobre a pesca de baleias. Benjamin murmurou
algo e desviou o olhar para longe, para a mesa de bebidas. Sophie
suspeitou que ele poderia estar em busca de um oficial para dançar o
restante da valsa com ela. Ninguém, porém, fitava aquele lado.
— Pescar baleia é muito perigoso, Benjamin.
Um único músculo contraiu-se no queixo dele, mas Benjamin
continuou com um semblante inexpressivo e jeito distante.
— Matou meu pai e meus irmãos.
— Sinto muito.

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— Tempos atrás, as baleias estavam ao largo de Nantucket. Não


precisávamos ir longe para encontrá-las. Mas, conforme a demanda pelo
óleo e os ossos de baleia aumentou, a população logo desapareceu.
Fomos forçados a avançar pelo Atlântico para encontrar os grandes
espécimes. A caçada mudou. A pesca assumiu novos e diferentes riscos.
Pior para as mulheres, pois os homens se ausentavam por períodos longos,
seis meses ou mais.
— Sente saudade dessa vida? — Sophie pensava em deixar de usar
as barbatanas de baleia nos espartilhos, como forma de protesto.
— Algumas vezes.
Sophie fechou os olhos e fingiu ser sua heroína, Fifi. A senhorita
francesa de ficção não tinha medo de aonde a intimidade entre um homem
e uma mulher poderia levá-la. Era francesa, ora essa. Fifi dançaria a noite
inteira com Benjamin Swain, se fosse possível.
Assim que a noitada acabasse, Sophie colocaria tudo aquilo no livro.
Descreveria em detalhes como se sentira nos braços dele, dentro do
caloroso poder do abraço de Benjamin. Emprestaria as conclusões e
emoções a Fifi LaDeux.
O pequeno grupo de aspirantes que tocava não era de músicos de
formação. Um pianista, dois violinistas e um jovem na concertina perdiam
notas com freqüência irritante.
Benjamin se mantinha longe o bastante de Sophie, de maneira que
seus corpos não se tocassem, mesmo por acidente. Embora não pudesse
compreender a sensação alvoroçada dos nervos pela proximidade dela, ele
não queria se arriscar. Afinal, dançava com a mais bela moça do salão.
Se um homem não soubesse que a alma de um diabrete vivia dentro
de Sophie, poderia ficar cativado por seu encanto. Os olhos dela
faiscavam, e um rubor rosado tingia-lhe as faces.
O vestido amarelo-limão de seda ostentava uma saia volumosa de
três camadas debruadas com fitas de veludo. O decote longe do pescoço
revelava ombros macios que pareciam enfeitiçá-lo.
Benjamin sentia-se tão sedento como alguém que não tivesse uma
gota d'água para beber durante dias e deparasse com um copo de
limonada... a meio metro de distância.
Tentou concentrar-se nos pés. E quando se atreveu a fitar Sophie, as
íris turquesa tão luminosas e hipnóticas como os mares tropicais cravaram-
se nele. Por um momento, Benjamin se esqueceu de respirar.
Antes de conhecer a filha do almirante, Benjamin acreditava que
pescar baleia era a coisa mais perigosa que um ser humano poderia fazer.

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Agora sabia que não. Encarar


Sophie Harrington, segurá-la junto a si e dançar com ela era
infinitamente mais arriscado.
Quando a música terminou, Benjamin via-se à beira do precipício.
Fitou a mesa de bebidas, mas os homens tinham saído ao jardim para
fumar. Ele precisava de um charuto. Merecia um. Passara os mais longos
quatro minutos de sua existência muito próximo de Sophie, mantendo a
tentação sob controle.
— Benjamin, você se importaria em pegar um pouco de ponche para
mim? — pediu Sophie, com um sorriso deslumbrante.
Quem resistiria àquilo?
— Claro que não.
— Ótimo. Vou me sentar aqui enquanto você vai. Disposto a nadar
em águas infestadas por tubarões por
Sophie, se fosse necessáno, Benjamin virou-se para a mesa de
bebidas e estacou.
— Sophie, veja quem está ao lado da poncheira. Andrew Ferguson.

Capítulo V

Andrew fazia Sophie lembrar-se de uma truta barbuda. A barba


cheia, de um marrom cor de lama, o bigode e as costeletas não escondiam
seus lábios enormes. Embora agradável, o rosto oval não poderia ser
descrito como bonito. Embora fosse um homem alto, não era da estatura
de Benjamin Swain.
Além disso, o capitão Ferguson tinha uma compleição disforme, de
ombros caídos. Aquele era o marido que seu pai escolhera para ela.
Ferguson rumou na direção dos dois, sorridente, parecendo franco,
amistoso. Sophie desejou não ser o motivo disso.
A seu lado, podia sentir a tensão esvair-se de Benjamin. O alívio dele
por não ter mais de dançar com ela era quase tangível. E perturbador.
Andrew tomou-lhe a mão e levou-a aos lábios.
— Sophie, caríssima...
Sophie forçou-se a sorrir. Ele não era um homem cruel, afinal,
apenas velho demais para ela, mesmo que estivesse à procura de um
marido. E seu hálito ruim em nada ajudava.

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— Capitão Ferguson, que prazer em vê-lo... Não esperava que


voltasse a tempo para o baile dessa noite.
— Sabendo que você estaria aqui, fiz um esforço especial. — Andrew
olhou para Benjamin, cumprimentando-o com um gesto de cabeça.
— Marinheiro Swain, eu presumo. Benjamin estendeu-lhe a mão.
— Sim, senhor. Não fomos formalmente apresentados.
— Um espanto quando se pensa que a Academia conta com tão
poucos membros. Mas o senhor não faz parte do corpo docente há anos.
— Não, senhor.
Andrew encarou Benjamin com fria intensidade.
— E embora ministre aulas no novo departamento de engenharia a
vapor, também ensina noções básicas de navegação aos rapazes. Os
rudimentos da marinharia, creio.
— Sim, senhor.
— Também freqüentamos círculos sociais diferentes.
— É verdade. — Benjamin não se desviava do escrutínio do capitão.
Impaciente, Sophie começou a bater a ponta do sapato, enquanto
Andrew prosseguia com seu inquérito. Ela daria seu melhor chapéu para
saber o que Benjamin estava pensando.
— Soube que é o homem que bate qualquer um nos dardos na
Taverna Reynolds — Andrew prosseguia.
Incapaz de suportar a impertinência do capitão por mais tempo,
Sophie meteu-se na conversa:
— O marinheiro Swain salvou minha vida enquanto o senhor estava
fora.
— É mesmo?
— A Srta. Harrington exagera. Aconteceu de eu estar no lugar certo,
na hora certa.
— Correu perigo, Sophie?
— Sim. Saí para velejar na baía quando do nada surgiu uma
tempestade.
As sobrancelhas de Andrew se cerraram num claro semblante de
desaprovação.
— Estava velejando?
— Com um amigo. Era uma passageira.
— Por falar em amigos — disse Benjamin —, vi alguém com quem
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devo falar antes que se vá. Podem me dar licença?


Benjamin não era homem de pedir permissão. Fazia o que queria
dentro das regras a que se julgava atado. Sophie suspeitou que ele poderia
quebrar algumas quando se encontrava constrangido. E detestaria vê-lo se
afastar. Preferia ficar sozinha com uma barracuda do que com Andrew
Ferguson.
— À vontade — afirmou Andrew. — E meus agradecimentos por fazer
companhia a minha Sophie, marinheiro.
— Um prazer, capitão.
Após endereçar um sorriso enigmático a Sophie, Benjamin rumou
para a porta como se não agüentasse mais esperar para escapar. Uma
figura impressionante de uniforme, ele fez girar cabeças ao atravessar o
salão. Mulheres jovens e de idade admiravam o belo rapaz, e olhares
ansiosos seguiram o herói que caminhava entre simples mortais.
— Sophie querida?
Mas seu herói a abandonara para o tedioso Andrew.
— Sophie, você não deveria velejar.
— Todos me dizem isso. Só que não compreendo por que apenas os
homens deveriam desfrutar da delícia da navegação.
Benjamin parou para conversar com Joseph Baker, e Sophie ficou a
imaginar que mantinham relações amistosas depois do... incidente na baía.
— Nós, homens, temos a força para velejar, e as mulheres, não. E
basta. Gostaria de um pouco de ponche, querida?
— Eu... acho que não.
— Quer dançar?
— Estou um pouco fatigada.
A profusão de rugas na testa do capitão se aprofundou.
— O almirante me falou que você esteve doente. Espero que sua
saúde não retarde nosso casamento.
— Ainda estou bastante fraca. — Era apenas um pequeno exagero.
De qualquer modo, Andrew se mostrava mais interessado em falar o
que tinha em mente do que ouvir o que Sophie dizia.
— O almirante me deu as boas novas sobre nossa união esta tarde,
após meu retorno.
— Suspirou, presenteando-a com uma lufada do hálito azedo. —
Sophie, não posso lhe dizer como me sinto encantado que tenha
consentido em ser minha esposa.
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— Eu não pensava em me casar tão cedo.


— Não é cedo para mim, querida. E tenha certeza de que me
esforçarei para fazê-la feliz de todas as maneiras.
Sophie não julgou que gostaria de beijar um homem com mau hálito.
Deu um passo para trás.
— Seus negócios correram bem em Washington? — perguntou
ansiosa para pôr um fim àquele tema.
E, de soslaio, vasculhou o salão à procura de Benjamin. Ele
desaparecera, sem dúvida. Sophie sentiu uma vaga sensação de perda, de
desapontamento.
— Não quero que canse sua cabecinha com assuntos da Marinha,
nem agora nem nunca.
— Andrew, sou bastante capaz de compreender o que quer que seja.
— Lógico que sim, meu bem, e fico contente que demonstre
interesse por meu trabalho. Contudo, no momento, estou ansioso para
saber com que presteza você pode fazer os arranjos para o matrimônio.
— Não sei.
— Anunciaremos nosso noivado na igreja, amanhã.
— Misericórdia! — Dissera aquilo em voz alta? Apressou-se a
emendar numa entonação mais baixa e mais branda: — Não poderíamos
esperar até que eu estivesse melhor? Talvez na próxima semana?
As sobrancelhas hirsutas de Andrew se juntaram de novo, mas,
depois de um instante de ponderação, ele deixou escapar um suspiro de
mártir.
— Claro. Que insensatez a minha. E se houver algo em que eu possa
ajudar, diga-me. Permita-me auxiliá-la sempre, querida.
"Graças a Deus! Ganhei uma semana pelo menos." E resolveu
explorar a boa sorte.
— Existe uma coisinha em que pode me ajudar, capitão.
— Você tem apenas de dizer.
— Este é meu primeiro compromisso social depois da gripe e estou
de fato exausta. O senhor me acompanha até onde está meu pai?
— Farei melhor do que isso. Eu a levarei para casa.
— Quanta gentileza! Mas não é necessário.
— Querida, caminhar com você até sua porta seria uma alegria.
— Tudo bem, então.

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A despeito da brisa fria que soprava da baía de Chesapeake, e da


ligeira maresia no ar, a noite era um lençol negro salpicado de estrelas
cintilantes, e um estreito crescente da lua brilhava no firmamento.
Contudo, as calçadas eram claras, iluminadas pelos novos lampiões a gás.
Quando chegaram à porta da residência, Andrew Ferguson tentou
beijar Sophie com aqueles lábios de truta. Interpondo o dedo entre sua
boca e a dele, ela o avisou que poderia contrair o que restasse da gripe.
Desapontado, o capitão beijou-lhe os dedos.
— Boa noite, minha querida. Espero que se sinta melhor pela manhã.
— Também espero.
— Eu lhe farei uma visita.
— Gentileza sua.
Sophie esperou o capitão afastar-se para entrar. Depois de se
certificar de que o pai ainda não chegara, fez questão de dizer aos criados
que estava cansadíssima.
Assim que se viu na privacidade de seu quarto, trocou o vestido por
uma camisola de linho enfeitada de rendas e fitas. Desde que Abigail se
fora, não tinha camareira. Trocava-se sozinha, uma tarefa que não lhe
importava; mas o almirante receava que o povo pensasse que ele não
podia pagar uma nova criada para a filha.
Sophie ajoelhou-se diante do armário. Sabia muito bem o local do
esconderijo de seu caderno preto. Guardava-o atrás das botas de
montaria. Levou a mão para pegá-lo.
Não estava lá.
Remexeu ansiosa, mãos espalmadas, sentindo, tocando o que não
podia enxergar.
O pânico instalado, Sophie atirou os calçados longe. Tudo voou pelo
ares, até um velho par de sapatilhas que ela julgara perdido.
O piso do guarda-roupa ficou vazio. E em volta, pilhas de couro de
todos os tipos e cores a rodeavam.
Seu romance tinha de estar lá! Não mexera no diário desde que
escrevera sobre Benjamin, pouco antes de cair de cama.
Por fim, tirou tudo do armário até que estivesse vazio. Nada.
Com os olhos marejados de lágrimas, revirou por todo o aposento.
Procurou debaixo da cama, do colchão, da poltrona. Quase à uma da
manhã, desistiu. As Românticas Aventuras de Fifi LaDeux sumira.

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Capítulo VI

Que tristeza de péssimas conseqüências! As palavras dançavam na


mente de Sophie.
Sentada no chão do quarto, incrédula, não conseguia nem mesmo
chorar. Não importava que o livro tivesse sido jogado fora sem querer ou
roubado; era um choque devastador.
Com Andrew Ferguson a lhe fungar no pescoço, a chave para a
liberdade e a independência se perdera. Será que o diário que ela usava
para escrever As Românticas Aventuras de Fifi LaDeux fora descartado
como inútil durante a faxina de primavera? Ou fora surrupiado por alguém
com propósito desconhecido e perverso?
Precisava de um conselho, e tinha de ser já. Acreditando que poderia
haver uma solução para tudo aquilo, recusava-se a desistir. Por que perder
tempo especulando quando uma amiga poderia auxiliá-la a conseguir a
resposta para tamanha catástrofe em particular?
Disposta a agir, ergueu-se de um salto, pôs um vestido preto simples
e sapatos reforçados. Como fizera muitas vezes antes, encheu a cama de
travesseiros para fazer parecer que dormia. E quando saiu, pé ante pé,
pelas escadas dos fundos, pegou uma lanterna e esgueirou-se pela porta.
Da casa do jardineiro, recuperou o pesado chapéu de véus e as luvas
pretas. A sita. Godey jamais aprovaria os trajes de Sophie, que jamais
seriam qualificados como elegantes. Tomada por uma incrível urgência,
moda era a última coisa que a preocupava, no entanto.
Não poderia esperar até o dia seguinte para falar com Flora. Sua
amiga tinha um vasto arsenal de experiências interessantes no passado e
poderia fazer a ligação com uma circunstância semelhante. Sophie não
conseguia pensar no que fazer, tão confusa se encontrava.
Após passar pela guarda no portão da Academia, percorreu depressa
as ruas iluminadas pelos lampiões de gás. Não estava sozinha. Namorados
ocupavam os bancos nas docas, e vários oficiais caminhavam pela via
principal como Sophie, cabisbaixa, rumo à colina onde ficava a Taverna
Reynolds.
Mesmo antes de abrir a porta, podia ouvir o barulho do popular ponto
de reunião. Lá dentro, percebeu que o assoalho e as paredes revestidas de
mogno da taverna vibravam. A música alta e as risadas explosivas faziam
tremer a estrutura.
Nunca estivera na Reynolds num sábado à noite, e a multidão e a
fumaça quase sufocante a puseram tonta. Seus pés pareciam presos numa

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bota de mergulhador, enquanto ela procurava pela criada.


Avistou Hora atrás do balcão polido, flertando com o presidente da
Câmara Municipal. Num olhar rápido e furtivo, Sophie esquadrinhou o resto
do estabelecimento, na esperança de não encontrar um rosto familiar.
Embora reconhecesse dois outros instrutores da Academia a jogar
dardos, homens que julgava serem amigos de Benjamin Swain, não o viu
por ali. Aquela era uma oportunidade em que não queria sentir sua
presença "protetora".
Abrindo caminho com os cotovelos entre as pessoas alegres e
inebriadas, entre elas várias damas que Sophie suspeitava fossem
meretrizes, chegou até o bar. O balcão entalhado a mão com seu reluzente
trilho de bronze era a única mobília de qualidade.
Com um aceno para Flora, chamou a atenção da garçonete. Flora
adorava os rapazes, e muitas vezes descrevera para Sophie de várias
maneiras como os amava. Afastar a atendente de cabelos ruivos de um
pescador que parecia o Barba Negra custou mais do que Sophie gostaria.
Ela sentia-se nervosa por estar ali, naquela noite. O medo de ser
descoberta fazia seu pulso disparar num passo incomum. Um pequeno
conselho de Flora e iria voltar para casa.
— Sophie, é sábado à noite! Não deveria ter vindo aqui, menina!
Com a testa franzida e um brilho irritado em seus olhos verdes
estreitados, Flora mostrava mais zanga do que seria necessário, na opinião
de Sophie.
— Eu precisava vê-la. Meu romance sumiu, e Andrew Ferguson me
pediu para marcar a data de casamento.
Flora fez um gesto de descaso.
— Nada se perde sob o céu. Você encontrará seu romance.
— Mas eu olhei por toda parte!
— E diga ao capitão que se casará com ele no Natal.
— Impossível. Meu pai me deu um ultimato. Não tenho mais que seis
semanas até me casar com Andrew.
A garçonete fitou o teto.
— Flora iria preferir se jogar em cima de uma lança afiada. — A
garçonete falava de si com freqüência na terceira pessoa.
Sophie não estava preparada para morrer.
— Terei de vender meu romance o mais cedo possível. Mas primeiro
é preciso encontrá-lo.

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— Tem certeza de que quer que o mundo inteiro leia o que Flora lhe
conta?
— Não é apenas sua história — Sophie retrucou, um tanto indignada.
— Acrescentei meus próprios sentimentos e experiência aos modos de Fifi
LaDeux, é lógico.
— Ei, Flora, encha o copo!
A garçonete olhou para a extremidade do bar, onde um homem alto
segurava sua caneca vazia.
— Flora não pode ficar conversando com você agora, Sophie. Não
percebe?
Desesperada, Sophie agarrou Flora pela manga.
— O que eu deveria fazer? E se meu caderno foi jogado fora durante
a faxina de primavera?!
— Segure-se nos cascos, já irei aí! — Flora gritou para o cliente
sedento. Com um suspiro, fincou os cotovelos no balcão e inclinou-se para
responder a Sophie: — Você escreverá seu romance de novo, só que desta
vez o fará melhor e depois o mandará para uma daquelas companhias
editoras de que ouvi falar, em Nova York ou Boston.
Flora poderia não ser a melhor fonte de informação, mas era a mais
segura. Sophie poderia confiar nela.
— Mas isso levará meses. Estarei casada até lá!
Os cachos vermelhos dançaram nos ombros expostos de
Flora, quando ela sacudiu a cabeça. A criada era uma bela garota que
fizera a própria vida desde que ficara órfã. Sophie dera a Fifi, a heroína de
sua ficção, os lábios polpudos e os cabelos ruivos dela. Guardara as
orelhas grandes da amiga para outra personagem, outro romance.
— Já pensou em fugir, Sophie?
— Não!
— Flora! Outra rodada aqui! — Um senhor sentado sozinho à mesa
lateral ergueu sua caneca.
Logo, cada homem na taverna estaria levantando as suas, também
vazias.
A garçonete o dispensou como se ele fosse um inseto peçonhento.
— Flora precisa ir agora, Sophie. Ela a encontrará na doca por volta
do meio-dia, amanhã.
Desapontada ao extremo, Sophie teve de concordar. Sentia-se
pesada como se tivesse triplicado de tamanho sem uma gota para beber

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ou um bocado para comer.


Com a rapidez de uma tartaruga, seguiu para a saída, es- * premida
entre corpos masculinos. Muitos estavam tão bêbados que mal a notaram
ou prestaram atenção àquela mulher velada que andava por entre eles.
Todos pareciam felizes. A tristeza de Sophie se perdia ali.
Um grupo reunido em torno do pianista no canto dos fundos, perto
das janelas, cantava uma cançoneta desafinada. Gargalhadas sonoras
quase abafaram o som de copo quebrado que ribombou pela taverna. Um
coro de urras e berros pontuou o aplauso que se seguiu.
Benjamin jamais esperaria encontrar Sophie Harrington na Taverna
Reynolds. Presumindo que ela se recolhera em casa, ele trocara o uniforme
por trajes civis e saíra para uma rodada de dardos, uma caneca de cerveja
e um bom flerte com as damas. Naquela noite, sentira-se mais necessitado
que nunca de uma das garotas que costumavam aparecer por ali aos
sábados para oferecer conforto a um homem cansado.
— Droga!
Foi o som daquela voz, quando a jovem o empurrou, que alertou
Benjamin. Ao olhar para baixo, não poderia haver engano. Quem mais
usaria numa taverna um chapéu com um véu negro adornado com
brilhantes cerejas vermelhas e as penas de um pássaro preto?
Embora Benjamin soubesse como se locomover num salão lotado, a
filha do almirante estava encontrando alguma dificuldade.
— Sophie!
Ela ergueu a cabeça. As penas pretas do chapéu estremeceram.
De dentes cerrados, ele segurou-a pelo cotovelo e seguiu para a
porta, abrindo caminho a pulso. Não haveria cerveja, nem dardos, nem
damas para Benjamin naquela noite. Suas entranhas se contorceram de
raiva.
Será que Sophie Harrington vivia para atrapalhar-lhe os planos e
estragar-lhe a alegria?!
Atado a um compromisso de protegê-la do perigo, assim que saíram
para o ar frio noturno, ele se pôs a arrastá-la pela rua.
— Solte-me! — Sophie lutava para livrar-se da mão que a apertava.
— O que acha que estava fazendo?!
— Eu tinha de ver Flora.
— Damas não vão à taverna num sábado à noite.
— Estou disfarçada.

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— Isso não é um disfarce. Serve apenas para chamar atenção sobre


você.
— Não!
— E se acontecesse de o capitão Ferguson aparecer, depois de tê-la
deixado na mansão? Não acha que ele a reconheceria com essa roupa?
— Não. — Sophie empinou o queixo. — Andrew não é tão observador.
Benjamin bufou.
— Detesto ser aquele que tem de lhe dizer isso, mas mesmo o
inexperiente aspirante Baker poderia identificá-la.
— Está enganado. E sendo indelicado e bruto comigo. Benjamin
procurava conter o temperamento e manter a civilidade. Mas seus esforços
não obtiveram sucesso.
— O que houve de tão importante para que tivesse de ver Flora ainda
hoje?
— É assunto particular.
— Como alguém que deve resgatá-la de confusão, acho que seu
assunto é de minha conta.
— Não preciso que ninguém me resgate, Benjamin.
— Acho que sim.
— Você fala como meu pai!
— Agora é você que quer me magoar.
— Por que está em toda parte aonde vou?
— Se você estivesse na cama agora, como deveria estar, não me
veria. Posso lhe assegurar. Lembro-me de ter visto Andrew Ferguson levá-
la para casa.
— Costuma ir à Taverna Reynolds com freqüência?
— Isso é assunto meu.
— Vai lá em busca de um jogo de dardos ou de uma mulher?
— Dardos.
— Creio que estava procurando uma mulher. Tem uma reputação...
— Todo marinheiro tem uma reputação.
— A sua é mais vergonhosa que a da maioria.
— Como pode saber disso?
— Eu... ouço conversas.

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Ela bisbilhotava. Ele soubera desde logo que Sophie tinha as


qualidades de uma abelhuda.
— Estou tentando conhecer tantas jovens quanto possível. Procuro a
mulher certa para gerar meus filhos. Não se pode culpar um homem por
isso.
— E como saberá que é ela quando aparecer?
— Eu saberei.
De repente, um homem atarracado passou sob o lampião, o
suficiente para que suas feições se iluminassem. Benjamin sobressaltou-
se.
— Céus... é Andrew Ferguson!
Envolvendo Sophie nos braços, Benjamin a fez girar, tirou-lhe o
chapéu bizarro e comprimiu-a contra o muro de uma loja. Ao bloquear-lhe
a vista do corpo, Benjamin baixou a cabeça, dando a impressão de que
cochichava ao ouvido de uma namorada. Seria pouco provável que
Ferguson a identificasse. Sophie estaria num mundo de problemas se o
pretensioso capitão julgasse que Benjamin e Sophie estavam juntos.
Ao esfregar o nariz no pescoço dela, Benjamin inalou aquele aroma
suave de madressilva. O corpo dela tremia contra o dele como um
passarinho assustado. A pele de seu rosto parecia uma seda. E a raiva de
Benjamin se dissipou.
Por uma fração de segundo, ele se esqueceu de que era um ato de
necessidade e desfrutou do momento.
O capitão parou a uns poucos metros de distância e soltou uma
risada.
— Benjamin Swain, vejo que faz jus a sua fama... Benjamin não virou
a cabeça, apenas respondeu:
— Sim, senhor.
Ouviu o bufo de Ferguson, que prosseguiu seu caminho:
— Divirta-se.
Sophie não se moveu, nem Benjamin. Ele esperou até que o som das
botas de Ferguson sumisse por completo para soltá-la.
— Ele já foi? — Sophie murmurou.
Benjamin olhou para a rua a tempo de ver Ferguson entrar na
Taverna Reynolds.
— Sim. — Deu um passo atrás. — Essa foi por pouco.
— Aonde acha que o capitão ia? — ela indagou, a alisar as saias.

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— Não sei.
"Arrumar uma mulher e uma dose de uísque", Benjamin suspeitava.
Mas isso não faria a relutante noiva de Ferguson sentir-se melhor.
Ofereceu o braço a Sophie.
— É provável que ele tenha ido visitar o senador. Andrew é bom
amigo do senador Smith, que mora na rua Charles.
— E isso, sem dúvida — Benjamin afirmou, como se fosse razoável
alguém visitar uma pessoa àquela hora da noite. — Vamos levá-la para
casa antes que apareça mais outro conhecido. Detestaria ter de enfrentar
seu pai. Ela o encarou.
— Mas papai gosta de você.
— Não tanto quanto do capitão Ferguson. O almirante não ficaria
contente em me ver com você sozinho num horário destes.
— Porque você é apenas um marinheiro, Benjamin?
— Não. Porque você é uma mulher comprometida.
"E porque sou apenas um marujo", admitiu consigo mesmo. Não
tinha direito de se interessar pela filha única do almirante.
Ouviu-a deixar escapar um suspiro débil. Sophie, contudo, não voltou
a dizer palavra até que se aproximaram do quartel.
— Quando chegarmos ao portão, eu continuarei sozinha. Eles irão
pará-lo, e nunca me param.
— Por quê?
Ela lhe endereçou um sorriso luminoso.
— Sou a filha do almirante. E conhecida por minha ousadia. Ninguém
se atreve a me questionar. Receiam que eu possa responder!
Benjamin apurou os ouvidos de novo. Erguendo a cabeça do
travesseiro, apoiou-se nos cotovelos. A princípio, confundira o leve roçar
em sua porta com o som de um rato no telhado. Mas concluiu que se
tratava de um ser humano. E alguém que não queria ser ouvido.
"E agora?"
Jogou as cobertas e acendeu o lampião na mesa-de-cabeceira. Duas
passadas no estreito quarto do sótão era tudo de que precisava para
chegar à porta. Segurando o lampião, entreabriu-a.
— Olá, Benjamin.
— Sophie?!
— Sei que é tarde, mas... eu tenho... um problema sério. Um dilema.

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— O quê?!
— Posso entrar?

Capítulo VII

Benjamin pensou no pedido de Sophie por um instante. Via-a pela


fresta da porta, sabendo que deixá-la entrar seria uma arrematada tolice.
Sophie usava uma camisola feita de tecido fino sob um négligé do
mesmo material, brancos e enfeitados com flores bordadas em tom pastel.
Não. De jeito nenhum! Ela não poderia entrar em seu quarto no meio
da noite. Será que era louca?!
— Isso não pode esperar até de manhã?
Sophie meneou a cabeça. A massa densa de cabelos agitou-se como
um mar de ondas douradas.
— Não consigo dormir. Por favor, deixe-me entrar, mesmo que por
um instante. Não sei o que fazer.
— Se seu pai a encontrar em meus aposentos, serei coberto de
alcatrão e passado por baixo da quilha.
— Passado por baixo da quilha?
— Arrastado debaixo de um navio.
— Papai não faria uma coisa dessas com você! E se eu não encontrar
alguém que converse comigo, enlouquecerei antes do amanhecer. —
Lágrimas assomaram aos olhos de Sophie.
— Benjamin, por favor, preciso de sua ajuda!
Ele não teve forças para resistir à verdadeira angústia refletida
naquelas pupilas, nem ao tom suplicante. Assim, deu-lhe passagem, e
Sophie entrou.
— Cuidado com a cabeça — ele advertiu.
As vigas de sustentação do telhado pareciam baixas demais diante da
estatura de Benjamin. Isso o obrigava a andar curvado ali dentro.
— Este lugar não tem iluminação? — Sophie perguntou.
— Isto aqui é o sótão. Tenho uma janela, um lampião e uma vela.
— Ai!
— Quieta!
— Dei uma topada. — Deixou escapar um gemido. — Na cama.
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— Machucou?
— Não muito.
— Não se mexa. E fique quieta.
— Incomoda-se de eu me sentar?
— No leito? — indagou, constrangido.
Sophie não esperou pela resposta. Afundou no colchão, parecendo a
Bela Adormecida que acabara de despertar.
Com um suspiro, Benjamin correu a mão pelos cabelos. Ela se
sentara aonde poderia. Não havia uma cadeira ali. O espaço comportava
apenas uma cama estreita e uma cômoda com uma jarra e bacia. Ganchos
na parede serviam de cabides.
Os olhos de Sophie encontraram os dele por um instante, e depois se
desviaram para baixo. Benjamin tornou-se, de repente, objeto de intenso
escrutínio. E então Sophie soltou uma risadinha.
— Alguma coisa engraçada? Não costumo achar graça em nada às
duas da manhã!
— Não, não. É que eu não imaginava que você usasse camisolão.
— Como hóspede na casa do almirante, sou obrigado a estar
composto o tempo todo.
— É... um camisolão muito bonito. Listrado de azul, de colarinho
aberto. De flanela?
Benjamin se balançou num pé e no outro.
— Minha mãe o fez para mim.
— É evidente que é uma boa costureira.
A mãe de Benjamin passara a vida inteira costurando, cozinhando e
cuidando com amor de sua família. Porém, agora estava doente e
recusava-se a deixar a ilha. Não queria abandonar os amigos e o lugar
onde nascera.
Benjamin se preocupava muito com ela, a imaginar se o dinheiro que
lhe enviava todo mês era suficiente. Uma mulher corajosa que enfrentara
muitas lutas e pesares no correr dos anos, sua mãe nunca lhe pedia. Se o
dinheiro não desse, jamais pensaria em pedir mais.
— Você não veio aqui para admirar meu camisolão, Sophie — ele
disse.
A presença dela ali não apenas despertara a culpa de Benjamin com
respeito à mãe, mas provocara uma sensação de formigamento em suas
entranhas desde o instante em que a deixara entrar.

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Fora um tolo. Deveria ter fechado a porta. A vestimenta que mal


cobria a nudez de Sophie era sedutora, provocante, e as necessidades por
muito tempo reprimidas de Benjamin combinavam-se para deixá-lo mais
alvoroçado que um marujo que tivesse visto uma bandeira pirata.
— Não. Não vim admirar seu traje de dormir. — O olhar de Sophie
percorreu o espaço e fixou-se no bloco de papel sobre a cômoda. — Você
escreve também?
— Não, estou trabalhando num projeto para um navio de combate a
vapor.
— É um homem de muitos talentos. — Ela o fitou, com um ligeiro
sorriso.
— Não é hora de falar sobre minhas qualidades.
Se Sophie ficasse um minuto a mais, ele não seria capaz de reprimir
um de seus mais impulsivos talentos. Rumou para a porta.
— Não! Eu... não sei o que fazer. Meu romance sumiu. Benjamin
cruzou os braços.
— Achei que era um dilema que não pudesse esperar.
— E é! Meu livro comprará minha liberdade. Você sabe que não posso
me casar com Andrew Ferguson.

— Compreendo por que não está ansiosa para desposar o capitão,


mas, Sophie, nem todos que escrevem romances conseguem vendê-los. —
Benjamin demonstrava uma paciência que não sabia possuir. — Se eu
fosse você, tentaria arranjar alguma outra maneira de me safar do
compromisso.
Um faiscar cintilou naqueles olhos verde-mar.
— O meu venderá.
Não fazia sentido discutir com uma criatura tão teimosa.
— Como pode ter tanta certeza? Sophie empinou o queixo,
desafiadora.
— Tendo, ora. Mas não posso vender As Românticas
A venturas de Fifi LaDeux, uma Mulher Solteira se meu diário sumiu.
— É mais provável que você o tenha colocado no lugar errado. Volte
para a cama e durma. Esteve doente e está esgotada. Quando estiver
descansada, conseguirá encontrá-lo.
— Guardo meu caderno de capa dura em apenas um lugar nos
últimos seis meses — Sophie retrucou, num tom gélido.

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Benjamin bem que tentou ignorar a suave fragrância de madressilva


e o envolvente e poderoso perfume dela. Desviou o olhar dos lábios
rosados e da encantadora covinha na face. Mas era apenas um homem
normal com desejos saudáveis.
Não precisaria lançar olhares de soslaio que lhe divisassem os
contornos das curvas de Sophie. O suficiente das formas sedutoras já lhe
fora desvelado para lhe atiçar a imaginação. Sob as roupas não havia
apenas um coração ousado, mas seios firmes e redondos, um ventre liso e
quadris cheios, voluptuosos.
O mais espantoso de tudo era que, em sua inocência, Sophie parecia
alheia ao efeito que causava.
Ele dormia com a janela aberta porque julgava o ar frio noturno
revigorante. Não, porém, com Sophie no quartinho ilo sótão. Sentada na
cama, a falar ofegante, ela o punha em chamas. Deitar-se com ela seria...
"Droga!" Devaneios como aquele eram mais perigosos que enfrentar
uma baleia de quarenta toneladas sem um arpão.
Benjamin, angustiado, virou-se de costas para ela. Respirando fundo,
de punhos fechados, voltou-se outra vez.
— Houve uma grande faxina de primavera na mansão. É possível que
uma das criadas tenha tirado seu diário do lugar enquanto você esteve
doente.
— Já olhei em toda parte. Não há mais onde procurar em meus
aposentos.
— Pode ter sido jogado fora durante a faxina?
— Talvez. Mas não creio. Ninguém se atreveria a jogar uma coisa
minha sem perguntar, mesmo que eu estivesse doente.
— Está me pedindo ajuda para encontrar seu livro?
— Sim. — Ela ergueu o rosto triste para ele. — Preciso recuperar meu
romance antes que alguém o leia. Poderia constranger meu pai.
Benjamin fungou.
— Embora isso só fosse acontecer se o leitor acreditasse que aquilo
que está escrito é verdade, e não uma obra de ficção — ela emendou
depressa.
— Você escreveu sobre o almirante?
Sophie baixou os cílios.
— E sobre você.
— Eu?! — Benjamin sentiu o coração falhar. — Falou de mim?!

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— Sim, mas apenas o mencionei de passagem. Benjamin afundou-se


no colchão e enterrou a cabeça entre as mãos.
E levantou-se num salto.
Ser coberto de piche e puxado pela quilha não seria castigo suficiente
se fosse pego na mesma cama com a virginal filha do almirante. Estaria
pendurado num mastro antes da alvorada.
— O que escreveu sobre mim? — Sua garganta secou.
— Fiz... uma vaga referência a sua aparência. Ah, por favor, não
faça essa carranca! Você é admirável, sabe disso. Tem as feições e as
formas de um verdadeiro herói.
— Sério? — Benjamin ficou lisonjeado. Porém, recuperou o bom-
senso. — E você usou meu nome?
— Eu tinha intenção de mudá-lo.
— Sophie! Não sabe o que dizem sobre intenções? — Benjamin rilhou
os dentes num esforço para não gritar.
— Elas pavimentam o caminho para o...
— Esqueça!
— Vai me ajudar? — Sophie implorou, baixinho.
— Eu a ajudarei dando-lhe meu melhor conselho: procure o almirante
e converse com ele antes de qualquer coisa de manhã c: conte-lhe o que
aconteceu.
— Papai me mandará para um hospício. Ou pior, para Saint Louis!
— Se tentar ocultar isso dele, você se verá numa tremenda confusão.
E se seu diário foi encontrado por alguém inescrupuloso que queira
divulgá-lo? Saber que seu romance pode estar em mãos de estranhos
auxiliaria seu pai a se preparar... para alguma eventualidade.
Sophie levantou-se. Seu rosto pálido e triste recordava a Benjamin a
esposa de um baleeiro depois de saber da morte do marido, abatida e
inconsolável.
— Não creio que eu tenha coragem de procurar papai.
— Mas deve. Garanto que enfrentou o almirante vezes incontáveis,
antes.
— Meu pai não chama isso de coragem, mas de atrevimento... e
algumas vezes de insolência.
— Pelo que pude observar, você tem uma alma corajosa,
Sophie. De manhã, inspecione seu quarto mais uma vez, e se não
encontrar seu diário, ou romance, ou seja lá o que for, fale com o
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almirante.
Ela rumou para a saída, ombros arqueados.
— Papai nunca entenderá por que eu escrevi um romance.
— Você tem de contar a ele e fazê-lo entender, se necessário. Se o
livro foi roubado mesmo, confessar ao almirante é a única atitude a tomar.
Não pode fazer segredo disso.
Com a mão na maçaneta, Sophie fitou Benjamin por sobre o ombro.
— Não vai me ajudar a achá-lo, então?
— Fale com o almirante. Ele pode não ser tão duro quanto você
pensa.
Ela voltou-se e caminhou até Benjamin.
— Papai não entenderá e... Oh, seria muito melhor se eu pudesse
recuperar o diário sem ter de contar ao almirante! Quando eu encontrar
meu romance, e eu o encontrarei, ele me possibilitará procurar uma
editora.
Sophie não desistia. A despeito de tudo, Benjamin sentiu admiração
pela determinação dela. E apesar de compreender sua relutância em
enfrentar o pai, ela não tinha alternativa.
— Terá de revelar a ele, Sophie.
Sua paciência estava por um fio. Por inúmeras razões, Benjamin mal
podia esperar para que ela se fosse. Era como uma sereia do mar a
chamar os marinheiros para a tragédia. No presente caso, ele.
Sophie não apenas implorava para que se juntassem num conluio
contra o almirante, mas também o provocava sem misericórdia com aquela
camisola e o négligé, os mais perturbadores que já vira na vida. A estampa
delicada de flores sugeria que o céu na terra jazia por baixo do tecido.
Será que Sophie julgava que Benjamin ficara cego e abobado de repente?
— Não posso procurar papai. Ele jamais compreenderá. Nunca
compreendeu nada com respeito a mim.
— Se o almirante souber que o diário sumiu, existe a possibilidade
de que a ajude, mesmo se por interesse próprio, a achá-lo.
— Ah, Benjamin, meu livro foi roubado. Eu jamais o deixaria fora do
lugar.
— Roubado... Quem faria algo semelhante?
— Alguém como eu, que também queira ser escritor, por exemplo.
Um dos estranhos que entraram em meu quarto enquanto estive
adoentada, como... você. — Os olhos de Sophie se arregalaram. — Você!

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— Não. Não. — Benjamin ergueu as mãos, em protesto. — Eu não o


faria e não fiz.
Sabendo agora o que sabia, Benjamin desejou ser o autor do feito.
Dava-lhe calafrios imaginar o que ela poderia ter escrito a seu respeito.
Se de fato o romance tivesse sido furtado, poderia ser obra de
alguém que quisesse ferir o almirante assim como assumir a autoria do
livro sem ter escrito uma linha sequer. Benjamin começou a sentir as
têmporas latejarem.
— Sophie, resolveremos isso amanhã, depois de uma boa noite de
sono.
— Você pode dormir, mas eu nunca enfrentei um problema tão
grande como esse.
Aquele sorriso melancólico confrangeu o coração de Benjamin.
— Irá se sentir melhor ao enfrentar seu pai se eu a acompanhar?
— Sem dúvida!
— Mas prometerá verificar de novo assim que for dia claro.
— Você é um amigo de verdade, Benjamin. Ele abriu a porta.
— Boa noite, Sophie. Ela beijou-o na face.
— Boa noite, marujo Swain.
— Você... o quê?! — O almirante se mostrava estupefato. Mais uma
vez, Sophie se via diante do pai, no escritório, ao lado de Benjamin.
— Eu escrevi um romance.
Wesley a encarou por trás dos óculos como quando ela era criança e
se metia em trapalhadas.
— Por quê? — indagou, cheio de suspeitas.
Sophie podia ouvir o bater do próprio coração temeroso, os ruídos
dos aspirantes a distância e o zumbido de uma mosca que entrara pela
janela aberta. Tudo o mais caíra em quietude no austero recinto. Fechou a
mão sobre o lencinho.
— Porque desejo fazer algo de minha vida além de tocar piano e
participar de chás.
O almirante meneou a cabeça.
— Bobagem!
— Meu caderno onde escrevi o romance sumiu.
— Escreva outro, se puder. Não posso me aborrecer com tal tolice.
— Papai, custou-me seis meses para imaginar aquelas duzentas
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páginas!
Ao lado dela, Benjamin lançou-lhe um olhar impaciente de soslaio e
pigarreou.
Sophie sabia que aquilo era uma maneira de empurrá-la para a parte
mais difícil da confissão. Ignorou-o. Mal conseguia respirar.
— Eu gostaria de recuperá-lo.
— Se quiser desperdiçar seu tempo, não posso impedi-la, mas não
permitirei que isso atrase os preparativos para seu casamento.
— Obrigada, papai.
Benjamin tornou a pigarrear, dessa vez mais forte.
Embora quisesse o apoio de Swain, Sophie começou a achar que
cometera um erro. Ele não a deixaria sair dali sem contar a história toda.
Diante disso, endireitou os ombros e procurou ser forte. E tomou coragem
para dizer, numa enxurrada de palavras:
— Papai, o romance foi roubado antes que eu tivesse a chance de
mudar os nomes, e o seu é mencionado várias vezes.
— O quê?! — Em questão de segundos, o rosto do almirante assumiu
uma perigosa tonalidade rubra. Os olhos se arregalaram. — Você
mencionou meu nome?! De que maneira?!
— O pai de Fifi LaDeux é baseado no senhor.
— Quem é essa Fifi?!
— A heroína de meu romance, As Românticas Aventuras de Fifi
LaDeux, uma Mulher Solteira.
Erguendo o olhar aflito para o teto, o pai, horrorizado, levou a mão à
garganta como se vida se lhe esvaísse.
— Estou arruinado! Serei expulso da Marinha!
— Não escrevi meu livro para destruí-lo, papai, e sim para ganhar
minha independência. Não quero me casar com Andrew Ferguson, nem
com nenhum outro. Eu me sustentarei escrevendo romances.
— Antes de você nascer, não havia notícias de loucura na família —
o almirante declarou, num tom glacial.
Sophie baixou os cílios, incapaz de suportar aquela acusação. Embora
acostumada àquilo, a desaprovação paterna a cortava como a lâmina de
um punhal.
O almirante se voltou para Benjamin.
— Encontre o diário de minha filha e será designado para um navio
dentro de trinta dias.
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— Sim, senhor.
— Não poupe despesas. Devolva o romance de Sophie antes que se
transforme num constrangimento que eu não poderia superar. E ache-o
antes que o capitão Ferguson fuja dela como se fosse a própria Medéia.
— Meus alunos...
— O capitão Ferguson será designado a assumir suas aulas, por
enquanto.
Em menos tempo do que levaria para escrever seu nome, Sophie fora
banida do assunto. Seu pai e Benjamin Swain propunham-se a resolver a
questão como se ela não existisse. Furiosa, cerrou os punhos, tomada de
frustração.
— Se o marinheiro Swain recuperar meu romance, papai, o que vai
acontecer comigo?
— Você se casará com Andrew Ferguson.
— Não! — Incapaz de refrear a indignação, Sophie bateu o pé e
enfrentou o almirante.
— Por que não oferece uma troca como fez com Benjamin?
O almirante retraiu-se por trás de um olhar de mártir.
— É o que quer, Sophie? Se ela não firmasse posição já, tudo estaria
perdido.
— Se eu recuperar o livro, posso oferecê-lo para uma editora sob um
pseudônimo, como George Sand...
— George Sand?
— George é mulher, papai. Uma autora. Como George Sand, eu
assumiria outro nome, talvez masculino.
Os olhos do almirante se estreitaram. Embora a corja tivesse voltado
ao normal, continuava com o maxilar cerrado.
— E tem mais, não é?
— Sim. Se eu vender meu romance, poderei ganhar minha
independência. Não serei forçada a me casar com o capitão Ferguson.
— Acredita mesmo que pode encontrar seu diário?
— Sim.
O sisudo militar soltou uma risada. Fazia anos que Sophie não ouvia
dele nenhuma demonstração de alegria.
— Está bem, minha incorrigível filha. Se encontrar o caderno perdido,
poderá ganhar...

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— Minha independência, papai.


— Sua independência.
Depois de solicitar que Benjamin ficasse no escritório para uma
conversa, o almirante dispensou a filha. Era óbvio que esperava que ela
fracassasse. Afinal, falhara com o almirante no dia em que nasceu mulher.
Sophie, contudo, estava determinada. E sua determinação jamais
fora tão segura do que quando saiu do aposento.
Depois de receber as ordens do almirante e lecionar em sua aula de
navegação, Benjamin rumou para a cidade.
Caminhava pela rua principal em direção à Taverna Reynolds, com o
intuito de ter uma conversa particular com Flora. Uma estranha sensação
em suas entranhas lhe dizia que a garçonete, confidente de Sophie, tinha a
chave para recuperar o tão falado diário.
Sempre que Benjamin se atrevia a especular o que Sophie poderia ter
escrito sobre ele, as palmas de suas mãos cobriam-se de suor frio. A filha
do almirante era tão imprevisível como o clima.
Por que então se espantou quando ela saiu da doceria e lhe
interceptou o caminho?
— Benjamin Swain, imagine encontrá-lo agora! — Com um rodar da
sombrinha, ela o encarou com um sorriso largo.
— Imagine — ele repetiu. Não acreditava no acaso no que dizia
respeito a Sophie. Ficou tenso.
— Um lance da Providência, eu diria. Gostaria mesmo de conversar
com você longe de casa.
Ali estava a armadilha. Benjamin saiu pela tangente:
— Você fez a coisa certa esta manhã.
— Se eu fosse um aspirante, teria ido para a solitária.
— Sinto muito que seu pai a tenha tratado com rudeza.
— Ele sempre faz isso. — Sophie deu de ombros. — Estou
acostumada.
Sophie não deixara de sorrir, a seduzi-lo de propósito com aquela
covinha. Benjamin ficou mais nervoso. Algo não estava certo. Os instintos
de sobrevivente o impeliam a prosseguir avante.
— Desculpe-me, mas estou com pressa. Não posso parar para
conversar agora.
Quanto mais rápido recuperasse o romance de Sophie, mais rápido se
faria ao mar, de novo no lugar a que pertencia.

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Ao ministrar aquelas que poderiam ser suas últimas aulas naquela


manhã, sentiu um estranho desassossego. Teria saudade dos rapazes.
Aquelas faces jovens e ansiosas nunca deixavam de conduzi-lo a uma
época anterior. Apenas uma vez na vida de um jovem o mistério do oceano
e a excitação da aventura adiante o cegavam para tudo o mais. E
Benjamin revivia esses momentos com os alunos. Lamentava, acima de
tudo, perder a oportunidade de trabalhar com Joseph Baker. Jo-seph tinha
o feitio de um ótimo oficial.
— Por favor, por favor, converse comigo apenas por uns instantes! —
Sophie pediu, pousando a mão no braço dele.
Aqueles olhos grandes, extraordinários, hipnóticos, toldados e
súplices... Poderia fugir a um pedido assim?
— Cinco minutos.
Ela enlaçou-lhe o braço.
— Entre na loja comigo. Comprarei uma cidra de maçã para você.
— Cidra?
— Ou cerveja de gengibre, se preferir. "Cerveja de gengibre? Credo!"
Uma sineta tilintou na porta quando Benjamin a abriu. Tirando o
chapéu, seguiu Sophie para dentro do estabelecimento, que recendia a
canela e açúcar.
Benjamin nunca entrava naquele lugar antes. Ao lado das janelas que
davam para rua, viam-se várias mesas circulares rodeadas de delicadas
cadeiras.
Sophie o levou até uma mesa no canto, longe da janela. Desviando-
se do gingar provocante das saias dela, Benjamin fixou a atenção no
balcão.
A não ser pelas banquetas de madeira e o tamanho menor, parecia o
bar da Taverna Reynolds, sem cerveja ou uísque. Toneis de licores e
barras de açúcar abundavam, junto com travessas de muffins de canela e
docinhos ainda fumegando do forno.
Benjamin puxou uma cadeira para Sophie e fitou a outra com um ar
de ceticismo. Temia que quebrasse sob seu peso. Acomodou-se com
cuidado.
— Bom dia! — Uma mulher miúda aproximava-se. Faces f rosadas,
cheia de corpo, com um coque dos cabelos loiros presos no alto da cabeça,
ela enxugava as mãos no enorme avental. — Desculpem-me por fazê-los
esperar. Eu estava nos fundos preparando uma calda de chocolate.
— Trouxe meu amigo Benjamin para experimentar seus muffins de

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canela, Lulu.
— E um é para você, sei disso.
— Gosto muito dos bolinhos de canela de Lulu — Sophie disse a
Benjamin, com um sorriso luminoso.
— Quer um pouco de chá ou chocolate com os muffins!
— Para mim, nada — Benjamin afirmou.
Sophie quis chá e, assim que Lulu se afastou, inclinou-se para
Benjamin, murmurando:
— Lulu é viúva e tem um filho. Seu sonho é que o garoto freqüente a
Academia algum dia.
Benjamin a encarou, desconfiado.
— Por que será que estou com a estranha sensação de que isso é
um encontro às escondidas?
— Não quero que meu pai pense que estamos em conluio. Se ela
soubesse...
— Benjamin, você tem de me ajudar. — Segurou-lhe a mão. —
Temos de trabalhar juntos.
— Não ouviu o que o almirante falou? — Ele experimentava um
prazer enorme com a suavidade e o calor daquela mãozinha. Com uma
impressionante força de vontade, soltou-se. — Se eu recuperar o romance
de Fifi, serei recompensado com o embarque num navio.
— E isso é o que quer mais do que tudo?
— Sim. A menos que a Marinha quisesse construir um dos navios a
vapor que projetei. Embora eu receie que isso jamais virá a acontecer,
gostaria ainda mais.
As sobrancelhas de Sophie se juntaram numa expressão de mágoa.
— Mais do que fazer um ato nobre e salvar uma mulher inocente do
casamento com um velho ogro do mar?
— Ogro do mar? Está falando de Andrew?
— Sim.
— E você seria a jovem inocente?
— Ele me tratará como meu pai, Benjamin.
— Espero que se livre dessa. É uma moça inteligente, e lenho certeza
de que irá sair-se com um belo esquema para evitar o casamento com o
capitão Ferguson.
— Sua confiança em mim não é compartilhada por muitas pessoas.

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Ele respirou fundo.


— Você fez a coisa certa ao contar tudo ao almirante.
— Então, por que não me sinto entusiasmada? Não acha que eu
deveria ficar feliz depois de fazer a coisa certa? Minha alma pesa, e nada
sinto a não ser melancolia, graças a você.
— Graças a mim?!
— Eu não teria contado tudo se não fosse por sua causa.
— Compreendo. Ora, muitas vezes demora um pouco para... a
emoção se acomodar numa alma pesada.
Lulu os interrompeu ao retornar com uma bandeja com os bolinhos
quentes e o chá. Porém, tão logo a alegre doceira os deixou, Sophie
começou de novo:
— Por favor, Benjamin, você sabe que irá voltar ao mar um dia. Mas
se eu for forçada a me casar com Andrew Ferguson, o que acontecerá
comigo?
Ponto para ela. Benjamin, contudo, não poderia se intrometer numa
situação que não era de sua alçada. Seu problema era sair de Annapolis
tão logo fosse possível para um lugar onde se sentisse em casa, a bordo
de um navio. Se se metesse na vida de Sophie como queria ela, teria de
voltar a Nantucket sem nada.
Tentou se explicar:
— Retornar ao mar algum dia não é o que procuro, Sophie. Tenho
responsabilidades. Uma mãe que está enferma e uma mulher que me
espera em algum lugar deste mundo para começar uma família. Preciso
voltar à ação ou vender um de meus projetos tão logo seja possível. E
ganhar promoções e um salário melhor.
Lágrimas encheram os olhos dela.
— Eu não tinha percebido o quanto você era egoísta.
— Sophie, uma mulher inteligente como você e com seus encantos
achará seu caminho. Não necessita de mim.
O que dissera era verdade. Embora cabeça-dura, ela possuía todo o
necessário para ter um futuro feliz e sucesso. Só sua beleza a levaria em
frente. E haveria um homem que pudesse mudar o rumo de seu interesse
pelos direitos femininos e aquele absurdo voto de castidade.
— Quer dizer que não vai me ajudar?
— Não posso, Sophie. Sinto muito.
— Você me julga uma moça frívola, uma tola.

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Não inteiramente. Benjamin aprendera que, sob as rédeas curtas do


almirante, Sophie poderia fazer pouca coisa, a não ser compras.
Estaria o remorso a espicaçá-lo no fundo da consciência? Benjamin
suavizou as feições.
— Não. Creio que seja teimosa, talvez, mas não uma tola. Jamais.
— Tenho de ser teimosa para ganhar minha independência. Algum
dia, toda mulher será independente dos homens, lal como Lulu Malone.
Ficaremos com maridos que escolhermos, não por termos essa obrigação.
Lá vinha ela com aquela conversa absurda outra vez...
— Não viverei tanto para ver isso, Sophie.
Furiosa, Sophie se pôs de pé. Abriu e fechou a boca como se fosse
dizer algo e mudasse de idéia. Rumou para o balcão c pediu:
— Uma libra de calda de chocolate, Lulu! Benjamin olhou para o
bolinho frio. Pensou em guardá-lo no bolso, mas perdera o apetite.
Levantou-se devagar da cadeira frágil e seguiu até onde Sophie o
aguardava.
— Lamento, Sophie.
— Na realidade, vai sentir muito quando eu levar a melhor, Benjamin
Swain!

Capítulo VIII

Benjamin não viu Sophie na sala de estar quando perguntou ao


mordomo por Mildred. A curiosidade a fez segui-lo, sem fazer barulho e a
uma distância segura, quando Benjamin rumou para a cozinha.
Esgueirou-se para a despensa e, colando o ouvido à parede divisória,
Sophie conteve a respiração. Queria manter-se incógnita. Um espirro
poderia significar problemas.
Ela não tinha escrúpulos em espionar em prol da arte da literatura.
Contudo, não fora até ali em busca de informações que pudesse
incluir no próximo romance. Não, era mais uma forma de auto
preservação. Abafando a culpa incipiente, comprimiu a mão sobre o peito
para acalmar o nervosismo.
O almirante tivera sucesso ao colocar Sophie e Benjamin como
antagonistas. Para se salvar da situação de desastre iminente em que se
encontrava, ela precisava ter acesso ao mesmo conhecimento que o
marinheiro Swain.

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Nascida para a racionalização, Sophie justificava sua posição na


crença de que qualquer informação que Benjamin conseguisse iria se
comprovar mais importante para ela que para ele. Fora forçada a
bisbilhotar.
— Contrato o mesmo pessoal ano após ano — Mildred dizia. — Emma
Dirkins foi a única nova ajudante, e é filha do reverendo Dirkins. Não
pegaria um trapo que pertencesse à srta. Sophie.
"Ah! Como eu suspeitava! Benjamin pretende interrogar todas as
criadas!"
— E quanto à camareira da Srta. Harrington? Ela não foi embora logo
que me mudei para cá?
Em vez de responder, Mildred fez uma pergunta num tom de muito
atrevimento:
— O que foi que sumiu, rapaz?
— Não tenho liberdade para revelar.
— A Srta. Sophie não me disse uma palavra sobre algo de natureza
pessoal que tenha desaparecido de seus aposentos.
— Para não alarmá-la, decerto. Agora, Mildred... posso chamá-la de
Mildred?
"Céus, Benjamin resolveu usar o charme!" Sophie podia visualizar
aquele sorriso encantador emoldurando o timbre sedutor. E o faiscar
daqueles olhos como se os fitasse. Mildred não teria escapatória.
— Bem... acho que não haveria mal algum.
A governanta lhe contaria tudo o que ele quisesse saber.
— Obrigado. Acha que a criada pessoal da Srta. Harrington teria
alguma necessidade de furtar?
— Abigail? Oh, não! A garota é de uma família pobre, lógico, mas não
é ladra. Diga-me, sumiu alguma jóia da senhorita?
— Não. Não que eu saiba. O almirante me pediu para lazer um
inquérito geral.
O que significava que ele agia por ordens do superior, e Mildred não
ousaria mais questionar.
— Compreendo.
Sophie quase enxergou os lábios contraídos da governanta.
— Pode me dizer por que Abigail foi embora, Mildred? Embora Sophie
tentasse, não conseguiu ouvir a resposta
de Mildred. A criada murmurara a ponto de se tornar inaudível.
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"Família" foi a única palavra que conseguiu entender. Por que a mulher
sussurrava estava além da compreensão de Sophie. Abigail não fizera
segredo do fato de que seus parentes precisavam dela em casa.
— Claro... Sabe para onde ela foi?
— Os familiares moram nos arredores de Washington, em Falls
Church, eu creio.
— E qual o sobrenome de Abigail, Mildred?
— Grant. Abigail Grant.
Mildred dera trabalho a Benjamin. Embora em aparência desse a
impressão de um galho frágil, que se quebra com facilidade, possuía uma
vontade férrea. A lealdade da governanta foi um bálsamo para Sophie.
— Mais uma coisa. Durante a faxina de primavera, foi jogado fora
algo do quarto da srta. Harrington?
— Não, nada. Ela é quem deve decidir o que guardar e o que
descartar. E estava doente.
— Foi de muita ajuda, Mildred.
De fato. Sophie agora sabia que seu diário não fora jogado fora por
descuido. Benjamin concluíra o mesmo.
— Obrigada. Poderia me dizer o que vem a ser tudo isso afinal?
— Sinto muito.
A entrevista terminara. Com receio de ser surpreendida
bisbilhotando, Sophie esgueirou-se dali sem esperar para descobrir se
conversariam mais.
Abigail foi sua camareira pelos últimos três anos. Sophie ficara
arrasada ao perdê-la. Tinha saudade daquela mocinha tímida e calada.
Nunca teria suposto que Abigail fosse a culpada. Não seria capaz de furtar
um grampo de Sophie. Mas, num momento como aquele, cada
possibilidade deveria ser explorada.
Abigail tivera acesso ao diário. E Sophie resolveu seguir um plano.
Em questão de uma hora, estava no escritório do pai, na Academia. O
almirante não erguera os olhos desde que Sophie irrompera pelo aposento.
Sua pena traçava linhas no papel enquanto ele continuava atrás da
escrivaninha, a terminar o que quer que fosse que escrevia. Resolvida a
ser paciente, ela ficou de pé, à espera.
Embora não conseguisse imaginar que a querida Abigail lhe furtara o
romance, precisava ter certeza. E, na eventualidade de a antiga
empregada ser a culpada, Sophie pretendia chegar à garota antes de
Benjamin Swain.

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— O que há, Sophie?


Sorrindo como se não tivesse percebido o pesado suspiro do pai, ela
estendeu o pacote de tabaco que comprara para ele antes de ficar à
espreita de Benjamin, horas antes.
— Saí para algumas compras de manhã e lhe trouxe um pouco de
tabaco. O sr. Peavey afirma que é novo e excelente.
Os olhos de granito de seu pai se estreitaram ao cofiar a barba.
— O que está querendo?
Sophie se magoou. De novo. Adquirira o tabaco porque pensava nele;
não se tratava de suborno. Mas isso lhe dera a desculpa para vê-lo no
meio do expediente.
— O que o faz pensar...
— Deixe disso. Sou um homem ocupado, e você está interferindo em
meu trabalho.
— Não vou atrapalhá-lo, então. Rosalind Montrose me convidou para
visitá-la em Washington. O senhor deve se lembrar de eu tê-la
mencionado como colega de escola. Passei um Natal com Rosalind e sua
família.
— Quer visitar uma colega?
— Rosalind seria a perfeita companhia para ajudar-me a escolher um
novo guarda-roupa... para agradar a meu futuro marido.
Para imenso alívio de Sophie, o almirante recostou-se no espaldar e
adotou uma postura mais serena.
— Reconsiderou o assunto de se casar com Andrew?
— Pensei muito na idéia.
— Hum... — Wesley continuou a cocar a barba, analisando-a. — Seria
mesmo bom para você ter a opinião de outra mulher.
— Isso mesmo! Obrigada, papai. Tomarei o coche amanhã. Se a
sorte lhe sorrisse, Sophie estaria na casa de Abigail antes que Benjamin
Swain percebesse que saíra de Annapolis.
Benjamin se apresentava ao escritório do almirante Harlington. Fora
convocado no momento em que ia sair à procura de Joseph Baker.
Preocupado que as aulas do capitão Ferguson pudessem ser insuficientes,
Benjamin queria descobrir como o jovem aspirante fora tratado, antes de
se dedicar à recuperação do caderno de Sophie Harrington.
O escritório do almirante na Academia parecia ainda mais austero
que o de sua residência. O aposento tinha um aspecto intimidador e

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consistia de duas cadeiras, uma escrivaninha e uma estante, num espaço


servido por duas janelas. Um único retrato de George Washington pendia
na parede atrás da mesa de Harrington.
— Já descobriu alguma coisa importante, sr.-Swain?
— Suspeito que Abigail, a criada de Sophie, possa ter pegado o
diário de sua filha, senhor.
O almirante olhou pela janela, parecendo observar os trabalhadores
no campo de obras.
— Não se pode confiar em ninguém hoje em dia.
— Creio que não.
Depois de um dia inteiro de entrevistas com criados e conhecidos de
Sophie, Benjamin descobrira que dar aulas de marinharia básica era uma
alegria, em comparação.
— Sua filha mencionou algum problema com a moça, senhor?
— Não. A pobre criatura não parece uma ladra.
— Teve a oportunidade.
— Mas por quê? Decerto não saberíamos agora se ela tivesse furtado
o romance a troco de dinheiro?
— Não necessariamente. Creio que eu deveria fazer uma visita a essa
jovem.
— Sempre é alguém de quem não se suspeita. Uma menina tão
quieta...
— O almirante desviou o olhar da janela saber que Sophie decidiu
deixá-lo recuperar o diário.
— É mesmo?
Um nó do tamanho da âncora de uma fragata formou-se na boca do
estômago de Benjamin. O instinto o avisava de que a filha do almirante
estava preparando alguma.
— Sim, Sophie parece ter readquirido o bom senso. Recebeu um
convite para visitar uma antiga colega de escola e partirá logo pela manhã.
A suspeita de Benjamin aumentou.
— Uma amiga íntima?
— Sim, imagino que sim. Parecia que se chamava... Rose... ou
Rosaline? — Tirou os óculos e os enfiou no bolso do casaco. — Seja qual
for seu nome, ajudará Sophie a comprar um novo guarda-roupa. As
mulheres precisam ter roupas novas quando se casam.

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Sophie desistira de seu sonho para fazer compras? Concordara em se


casar com Ferguson? Benjamin não conseguia crer numa mudança tão
brusca de comportamento. Aquele pai não conhecia muito bem a filha. Ela
estava prestes a lazer algo escandaloso. Mas Benjamin julgou melhor
ocultar as suspeitas diante do almirante.
— Uma expedição de compras?
— Uma expedição é o termo certo, e eu gostaria que você a
acompanhasse até a casa dessa amiga.
— Perdão?
— Viajar pode ser perigoso nos dias de hoje, e você parece contar
com a confiança dela.
— Senhor, Sophie é bastante inteligente. Se eu for junto, poderá se
dar conta de que sou...
—...seu cão de guarda?
— Sim.
— Logo que ela estiver segura em seu destino, poderá deixá-la e ir
resolver o assunto com Abigail até que seja hora da volta para casa.
— Quando partiremos?
— Bem cedo, amanhã.
Resignado, Benjamin despediu-se do almirante. Logo quando julgava
que tudo poderia ficar melhor, ou pelo menos não tão complicado, piorava.
— Swain?
— Sim, senhor.
— Encontre esse diário. Se me livrar do constrangimento, eu o
colocarei no melhor navio da frota.
— Certo, senhor.
Com outro cumprimento firme e rígido, Benjamin se foi.
De volta a casa, ele subiu os degraus de dois em dois, parando no
segundo andar diante da porta do quarto de Sophie. Bateu de leve.
— Tenho de falar com você.
— Estou muito ocupada, marinheiro Swain.
— Aposto que sim. Fazendo as malas, talvez? Silêncio.
— Saia no corredor e converse comigo por um instante. Imagino que
possa dispor de um momento.
— Não. Na realidade, não posso, e se você não for embora, terei de
chamar meu pai.
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Benjamin deu dois passos para as escadas do sótão e retornou.


— Não vai se safar assim. — Ele não ouviu nenhum som do outro
lado da porta.
— Sophie? Nada.
— Irei com você amanhã para Washington. O silêncio aumentou.
Mulheres não ignoravam Benjamin. Ele não estava acostumado a ser
recebido com menosprezo. Contendo a vontade de esmurrar a madeira,
seguiu para a escadaria.
Desceu correndo. Deixar-se tomar pela raiva não adiantaria nada.
Um jogo de dardos e uma caneca de cerveja o acalmariam.
— Marinheiro Swain!
Ele se virou. Deparou com Sophie no alto da escada, pálida e
maravilhosa.
— Creio que tenho tempo para um pequeno passeio antes do jantar.
Poderia me acompanhar?
Já lá fora, Benjamin deixou que ela assumisse o controle da situação.
Em silêncio glacial, Sophie caminhava a seu lado com o queixo erguido.
Embora girasse a sombrinha sem parar, não abriu a boca até se
aproximarem do riacho do parque.
— Por que irá comigo para Washington?
— Seu pai receia por sua segurança.
Ela continuou a andar, o olhar fixo à frente.
— Sou capaz de tomar conta de mim mesma.
— Embora eu esteja convencido disso, o almirante não concorda.
— Irá embora assim que chegarmos a meu destino?
— Sim. Mas voltarei em quatro dias.
— Quatro dias?
— Ordens do almirante.
Ao chegarem perto do riacho, Benjamin ficou a pensar se as ondas
lânguidas que o invadiam tinham algo a ver com a fragrância de
madressilvas que respirava ou com a tranqüilidade da paisagem.
Nada perturbava a calma serena do lugar, a não ser a brisa que
soprava por entre os carvalhos e os peixes que saltavam no remanso.
Talvez ele tão-só se sentisse em paz, mesmo em guarda. Era preciso ficar
alerta estando perto de Sophie.
— Não creio que seja possível fazer... compras de tudo o que

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necessitarei para meu casamento em quatro dias.


— Sugiro que se esforce.
Sophie parou, encarou-o e esbravejou:
— Gosta de bancar a babá de uma mulher crescida?! A postura
fleumática de Benjamin evaporou-se.
— Você sabe que não.
— Nesse caso, por que vejo um baleeiro, um homem forte,
destemido, reduzido a servir de ama-seca para a filha do almirante,
relegado a acompanhante de uma dama?
— Protetor. Prefiro ver meu compromisso como de seu protetor.
— Não tem orgulho? — escarneceu.
— Você não tem compaixão? — Benjamin ficou a observá-la seguir
até um enorme carvalho.
Com a ampla saia de seda lavanda a abrir-se em leque, Sophie
sentou no chão, na margem.
— Sophie, sei o que está tentando fazer. — Ele se recostou no tronco
da árvore. — Ofender-me não vai adiantar nada. Não entende? Sigo
ordens, goste delas ou não. Se eu não a acompanhar até Washington,
outro oficial irá em meu lugar.
— Eu preferiria viajar com alguém que não estivesse trabalhando
para me privar daquilo por que trabalhei tanto para conseguir.
Qualquer um, menos ele. Benjamin cruzou os braços.
— Não quero ser seu inimigo.
— É muito tarde. Você fez sua escolha.
Benjamin detestava falar com as costas de Sophie. Não tinha opção,
contudo. Ela se recusava a encará-lo. Continuava a se fingir fascinada com
os peixes que saltavam nas águas.
— O almirante me disse que você resolveu não tentar recuperar o
diário. É verdade?
— Se eu tropeçasse nele, é provável que pudesse tê-lo de volta.
— Tropeçar? — Se não estivesse tão bravo com ela, Benjamin teria
rido. — O que planeja Sophie?
— Uma visita a minha amiga Rosalind.
— Uma viagem repentina, não?
— Rosalind tem me pedido para visitá-la faz um ano.
— Sabe, se tivesse feito amigas como Lulu na doceria, em vez de na
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taverna de Flora, seu romance não teria desaparecido.


— Lulu é minha amiga e ela é muito parecida comigo. Leva uma vida
tediosa como a minha, nada romântica. Flora, por outro lado, viveu
muitas... aventuras.
— Não do tipo sobre o que você deveria descrever.
— Ah! Você é farinha do mesmo saco de meu pai! Um tirano!
— Não sou!
— Arrogante e dominador!
— Está indo longe demais. — Benjamin conteve a ira. Desde que
conhecera Sophie, era o que vinha fazendo.
— Meu pai receia a maneira como o descrevi em meu romance. E
você? Não está nem um pouquinho preocupado sobre o que eu poderia ter
escrito a seu respeito?
— Não — mentiu Benjamin. Os cabelinhos em sua nuca se eriçavam
toda vez que se lembrava disso. — Mas teria sido mais esperto de sua
parte se houvesse trocado os nomes, Botão-de-ouro.
Ela empinou o queixo ainda mais alto.
— Eu pretendia fazer isso antes de remeter a história para
publicação.
Benjamin não conseguia mais suportar falar com as costas de Sophie.
Com passadas rápidas, chegou à margem do riacho e sentou-se nos
calcanhares bem em frente a ela. Sophie o encarou, algo desconcertada. A
zombaria brilhou em seus olhos e se firmou no trejeito dos lábios.
— Já pensou que poderia haver outra maneira de conduzir à vida
independente e casta que você deseja? Uma que não implique publicar um
romance escandaloso?
— Não, Benjamin. Não se dão chances a mulheres, caso você não
tenha percebido.
— Ergueu-se e limpou as saias. — Não posso impedi-lo de ir comigo a
Washington. É uma viagem inofensiva, e no entanto meu pai não me dá
liberdade nem para isso.
Incapaz de conter o temperamento por mais tempo, Benjamin
retrucou:
— O almirante deve ter boas razões para manter a rédea curta com
você.
— Misericórdia!
E antes que ele se desse conta do que Sophie pretendia, ela o

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empurrou. Benjamin perdeu o equilíbrio e caiu na água.


Sorrindo, a atrevida filha do almirante acenou com seu lencinho de
renda e se afastou correndo.
Abigail esperava por Fletcher Thurman na cabana de um quarto atrás
da casa de sua mãe, em Falls Church, Virgínia. Por ser uma lavadeira, a
mãe de Abigail mantinha um grande tanque de água na cabana para
aqueles dias em que a chuva impedia o trabalho ao ar livre.
No alto, varais cruzavam o espaço numa teia. Com pouco espaço
para uma cama, Abigail dormia numa enxerga no chão. As condições em
que vivia eram muito diferentes daquela anterior, no aconchegante quarto
que chamava de seu, na mansão do almirante. A coisa mais difícil que
fizera fora deixar o emprego.
Por fim, Abigail ouviu o som que aguardava, um piado que indicava a
chegada de Fletcher. Abriu a porta.
— Por onde esteve? Faz dias que o espero.
Ele franziu a testa. Ela sabia que Fletcher não gostava de ser
interrogado, mas Abigail nunca parecera tão assustada.
— Fui ver um homem a respeito de alguns cavalos, em Williamsburg.
Abigail se apaixonara pelo rapaz alto e robusto assim que pusera os
olhos nele. O que alguns poderiam ver como uma aparência rude ela
julgava como viril.
Fletcher ganhava a vida como camponês. Trabalhara em várias das
melhores plantações de tabaco na Virgínia, mas não era criatura sem
ambição. O jovem de olhos castanhos sonhava em ter as próprias terras
algum dia.
Ele beijou Abigail nos lábios, um roçar sem a emoção que mostrara
na noite em que lhe tirara a virgindade.
— Conseguiu Abby?
— Sim. Mas... isso é errado. Sophie foi boa para mim. Confiava em
minha pessoa.
— E eu confio em você também.
— Vamos ter um filho, Fletcher. Roubar não é jeito de iniciar nosso
futuro juntos.
— Se quiser se casar comigo, vai me dar o diário da moça e deixar o
resto comigo.
—- Pensei que nos casaríamos assim que eu o trouxesse para casa,
para você.

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— Eu disse isso?
— Sim.
— Quando tivermos o dinheiro na mão, iremos procurar o padre.
Lágrimas encheram os olhos dela. A gravidez era de sete meses,
embora ela por sorte não parecesse maior que a maioria das mulheres com
quatro.
Sua mãe a escorraçara porta afora, e agora Fletcher se esquivava de
torná-la uma mulher honesta. Entregou-lhe o grosso caderno preto.
— E o romance de Sophie. Porém é mais como um diário, um relato
de vida.
— Você leu? Ela diz coisas pesadas?
Fletcher era analfabeto, mas Abigail lia e escrevia. Freqüentara a
escola por quatro anos.
— Sophie comenta da primeira vez que fez amor, mas não menciona
o nome do homem. Porém, pela descrição, acho que é o novo instrutor de
navegação, o marinheiro Benjamin Swain. Sophie dedicou as últimas
páginas a ele. Repete como é bonito, como é alto e... como gostaria de
tocar seu... — Abigail interrompeu-se. — É muito particular para que eu
repita.
Com um sorriso de malícia, Fletcher esfregou as mãos.
— Ótimo! Não arranjaríamos dinheiro com um livro sem segredos. E
sem dinheiro, não posso me casar com você. E assim, ficará com o
pequeno bastardo nas mãos.
Aquele soco verbal doeu tanto que Abigail levou a mão ao ventre,
que se contraiu. O pranto rolou por suas faces, transformando Fletcher
num borrão. Aquele não era o mesmo homem que a seduzira com palavras
doces quando ela viera para casa em uma das visitas para a mãe, meses
atrás.
Abigail nem mesmo se sentia muito contente pelo fato de ter
ocultado algo de Fletcher. Não lhe contara como Sophie descrevera o pai
no romance. Fletcher, na certa, a obrigaria a pagar mais se soubesse sobre
o almirante.
— Jamais imaginei que você pudesse ser tão cruel.
— E eu nunca pensei que você fosse de ficar chorando sem cessar.
Acha que pode parar de se lamentar e escrever um bilhete para a srta.
Sophie?
— Eu... creio que sim.
"Fletcher tem de se casar comigo. Mas e se ele se recusar?" Ela

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fungou e reprimiu o choro.


— O que quer que eu escreva?
— O seguinte: "Estou com seu livro. Se o quiser de volta, deixará
seiscentos dólares num saco na ponte do riacho do cemitério, daqui a
quatro dias".
— É muito!
— Não se a filha do almirante quiser seu romance de volta.
A mão de Abigail tremia quando ela escreveu a nota. Depois de
alguns instantes, estendeu o papel sujo e amassado para o namorado.
— Coloque aqui um aviso.
Um calafrio correu pela espinha de Abigail.
— De que tipo?
— Quero que Sophie Harrington saiba que, se nos causar problemas,
eu a matarei.

Capítulo IX

Meu Deus, Sophie está usando calção!" Não apenas Benjamin tinha
de servir de acompanhante, mas de uma mulher naqueles trajes!
Cumprimentou-a com formalidade. Não a perdoara ainda por tê-lo
empurrado para dentro do riacho.
— Bom dia, sita. Harrington.
— Bom dia, marinheiro Swain. Parecer estar ótimo o clima para
velejar.
Benjamin desviou os olhos para as amplas pantalonas de cor rosa
que ela usava por baixo da saia em balão e a túnica de brocado.
— Também está bom para uma viagem por terra.
— Levará horas tediosas até chegar a Georgetown.
— Eu seguirei a cavalo ao lado do coche, desfrutando a paisagem.
As claras tentativas de Sophie em fazê-lo desistir de acompanhá-la
eram esperadas. Em outras circunstâncias, ele as acharia divertidas.
Benjamin baixou o tom:
— O almirante sabe o que está usando?
— Meu pai saiu para o escritório antes que eu descesse para o
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desjejum, esta manhã.


Era mais provável que ela tivesse esperado até que o almirante
saísse. Mesmo assim, Benjamin julgou que era uma vergonha que o pai
não tivesse feito um esforço para desejar à filha uma feliz viagem. Mais
que isso, Benjamin gostaria de ter o poder de insistir que Sophie trocasse
de roupa para outra mais adequada.
— Posso ajudá-la a tomar o coche?
— Estou à espera de minha criada, sr. Swain.
— Eu não sabia que havia contratado outra.
— Tive a sorte de encontrar ajuda depressa, visto que meu pai
estipulou que eu não poderia viajar desacompanhada.
— Você é habilidosa. Ela fez uma careta.
— É um elogio, Sophie.
— Acho interessante que papai tenha mandado que você fosse
comigo.
— Por quê?
— Mudou-se para casa para trabalhar mais perto dele. Num projeto
de engenharia a vapor, eu creio.
— Sim. O almirante vem analisando um de meus projetos de navio a
vapor.
A bem da verdade, Benjamin submetera seus trabalhos ao almirante,
mas tinha pouca esperança de que Harrington tivesse sequer olhado para
eles.
— Se isso é tão importante, por que papai o deixa ir comigo?
— Ora! Porque sua segurança é mais importante para o general do
que qualquer projeto naval, é claro!
— Mesmo? Nunca percebi tal preocupação por parte de meu pai.
— Mulheres nem sempre reconhecem esses sinais em um homem.
Sophie meneou a cabeça.
— E quanto a sua busca por meu diário? Isso não teria nada a ver
com o fato de você viajar comigo, não é?
— De fato, esta viagem pode me ajudar a fazer uma rápida
recuperação. — Benjamin sorriu. Começava a apreciar o duelo.
— Sei! — Sophie, com um trejeito desdenhoso, se pôs a andar, numa
profusão de botões de rosa, fitas e seda. O chapéu cheio de adornos
balançava.

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Benjamin seguiu atrás até a escada.


— Ah, eis ali minha criada!
Flora, parecendo outra pessoa muito diferente, descia os degraus
carregando três caixas de chapéu. Usava um vestido preto de decote alto e
abotoado, os cachos ruivos ocultos debaixo de um severo toucado negro.
Benjamin conheceu um minuto de pavor.
— Seu pai sabe que Flora está atuando como sua criada? — indagou,
depois de recobrar-se.
— Papai não tinha tempo para uma entrevista.
— O almirante não aprovaria.
— Bom dia, Benjamin! Alguma vez esperou ver Flora como criada de
uma dama?
— Não. Estou bastante espantado.
— Eu precisava sair da cidade por uns poucos dias, e minha amiga
aqui precisava de mim.
— Perfeito.
— Vão ficar aí atrasando a viagem? — perguntou Sophie, impaciente.
Benjamin ajudou-a a subir no coche, e depois Flora, que lhe deu uma
piscadela e um sorriso enviesado. A moça tinha a reputação de gostar de
rapazes e tentara seduzir Benjamin em mais de uma ocasião.
Calafrios correram pela espinha dele. Uma excursão que em geral
tomaria metade do dia, prometia ser uma longa viagem. Deveria ter
sabido. Nada mais encontrara a não ser problemas desde que conhecera
Sophie Harrington.
A chuva começou a cair no fim da tarde, em pesados mantos, num
frio aguaceiro. Antes que percebesse, Benjamin estava ensopado até os
ossos.
Trovões ribombavam ao longe, e raios faiscavam no céu. Quando
ouviu o grito de Sophie, ele gritou ao cocheiro que entrasse na próxima
hospedaria. Embora tivessem uma hora a mais pela frente de viagem
apenas, Benjamin sabia como os raios a assustavam.
Ajudou-a a descer do veículo e correu com ela pela borrasca gelada.
Alugaram quartos. Flora e Sophie dividiriam um, e Benjamin preferiu pagar
o seu em vez de compartilhá-lo com o cocheiro. Graham tinha um tique no
olho que o incomodava, e pigarreava a cada poucos minutos.
Em seguida, Benjamin pediu uma refeição ligeira de salsicha, pão,
queijo e morangos, a ser entregue nos aposentos.

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A tempestade servira para domar Sophie. Ela não se intrometeu nas


ordens dele. Porém, enquanto tomava as providências, Benjamin notou
que Flora recebia uma resposta ansiosa e atrevida de seu flerte com o
cocheiro.
Os quartos na Hospedaria Oriole eram pequenos e limpos,
recendendo a uma gostosa mistura de limão e pout pourri de canela. O
fogo queimava na lareira do aposento compartilhado por Sophie e Flora.
Mas os raios a estalarem e o espoucar do granizo não deixavam dúvidas da
fúria da natureza.
Horas mais tarde, Sophie ainda não conseguira dormir. Ouviu quando
Flora fez planos de juntar-se a Graham e não ficou surpresa quando a
assanhada garçonete se esgueirou do quarto logo depois de apagar o
lampião e desejar-lhe boa noite.
Benjamin insistira em ficar sozinho e, assim, Graham tinha um quarto
só para si, no fim do corredor. Benjamin ocupava aquele vizinho ao de
Sophie.
A chuva martelava contra a vidraça num ritmo forte, e o vento
ondulava e uivava com fúria. De costas no colchão, vestida apenas com a
combinação, Sophie olhou para o teto de vigas expostas.
Suas roupas, junto com as de Flora, foram penduradas em cadeiras
para secar, diante da lareira. O fogo espalhava um brilho alaranjado pelo
ambiente e espantava a friagem da noite úmida.
Sozinha no enorme leito, ela se encolhia a cada relâmpago que luzia
no firmamento e imprimia a luz mortal pelo quarto.
Raios matavam e mutilavam. Provocavam incêndios que queimavam
casas e celeiros até o chão. Sophie os detestava, temia-os e não conseguia
ficar sozinha durante uma borrasca como aquela. Deveria ter impedido
Flora de sair.
Após acender o lampião na mesa-de-cabeceira, enrolou-se no lençol
e se pôs a andar diante das chamas. Mas não adiantou.
Não importava o que fizesse, não poderia ignorar a tempestade.
Parava e saltava de susto, o coração a falhar a cada trovão. Uma série de
calafrios a perpassava sempre que os ouvia.
Incapaz de continuar só por mais tempo, cedeu ao medo, engoliu o
orgulho e bateu na porta de comunicação entre seu quarto e o de
Benjamin. Não ouviu resposta. Bateu outra vez, mais alto.
A densa quietude continuou. Encostada na parede, comprimiu a
orelha contra a fina divisória. Benjamin devia ter mergulhado num sono
profundo.

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Pegando uma das botinas, ela usou o salto para bater uma, duas...
seis vezes.
E então, por fim, a maçaneta girou.
Com o lençol preso ao redor, Sophie tentou fingir surpresa, ao vê-lo.
— Benjamin!
— O que você quer, Sophie?
— Como?
— Não bateu na porta seis vezes? Ela deu de ombros.
— Pode ser.
— Por quê?
Sophie respirou fundo.
— Flora saiu e estou assustada. Por favor, entre aqui.
— Não.
O estouro de um raio e o ribombar de trovões sacudiram as paredes.
A tremer, ela implorou:
— Pelo amor de Deus, entre e converse comigo até eu ficar tão
cansada que adormeça a despeito dos raios.
Com um suspiro pesado, Benjamin cerrou as pálpebras e entrou.
— Ainda está bravo comigo por tê-lo empurrado para dentro do
riacho?
Benjamin aproximou-se, de cenho franzido.
— Estou cansado. Eu dormia, Sophie. E se for descoberto no quarto
da filha do almirante, serei expulso da Marinha. Mais provável ainda, serei
enforcado.
Outro raio explodiu perto dali, banhando o quarto num brilho
espectral de prata. Sem conseguir raciocinar, Sophie cobriu o rosto e
correu para Benjamin. Agarrou-se a ele, contra a sólida estrutura daquele
corpo.
Devagar, os braços dele a rodearam, rígidos a princípio, e em seguida
firmes e protetores. De encontro a ele, Sophie sentiu-se protegida. O
aroma másculo que vinha dele entorpeceu-lhe os sentidos e a acalmou. E
quando parou de tremer, Benjamin guiou-a de volta à cama.
— Por que tem tanto medo de raios, Sophie?
— Minha amiga Mary foi atingida e morta por um. Fomos
companheiras de quarto no internato por mais de dois anos. Ela era como
uma irmã para mim.
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Lágrimas que Sophie não conseguiu mais conter escorreram por suas
faces. Detestava ser assim tão fraca. Lutou para se recompor e tentou
explicar:
— Mary tinha apenas doze anos, um a mais que eu. E num piscar de
olhos se foi. Eu a vi cair do carvalho onde costumávamos nos encontrar.
— Sinto muito. — O braço de Benjamin circundou-a pelo ombro e ele
apertou Sophie ainda mais, conferindo-lhe seu calor e sua energia. —
Perder Mary pode ter sido difícil para você, mas foi um acidente raro. Um
terrível e fortuito acidente.
— Não tem medo algum de raios, Benjamin?
— Não, mas entendo o perigo que são e uso de cautela. Com um
suspiro fundo, Sophie enxugou o pranto no lenço de renda.
— O que você teme?
Benjamin olhou para a frente, para a escuridão.
— Eu... não sei.
— Não temia as enormes baleias? Li que são dez vezes maiores que
as baleeiras, algumas vezes tão grandes como navios.
Benjamin assentiu.
— Sim, vi animais do tamanho de um navio algumas vezes.
— Conte-me sobre a última ocasião em que saiu ao mar para caçá-
las.
— Por quê? Não tem nada de interessante nisso.
— Uma história poderá me ajudar a esquecer a tempestade.
— Não sei...
— Por favor, Benjamin. Ele respirou fundo.
— Eu estava a bordo do Trina, uma baleeira que acabara de vender
para pagar as dívidas de jogo de meu irmão Matt. listávamos no oceano
fazia quase cinco meses antes de encontrarmos um grupo grande de
baleias. Havia pelo menos uma dúzia.
— Deviam ter adentrado longe o Atlântico.
— É verdade. Fazia um frio de rachar quando baixamos (>s botes.
Descemos dois, naquele dia. Eu liderava a primeira tripulação. íamos atrás
de um macho gigantesco. No primeiro ataque, ã baleia aproximou-se de
nós e atingiu as costas de Billy. Ele manejava o arpão. Quando caiu, bateu
a cabeça o desmaiou, e então eu tomei seu lugar.
Benjamin calou-se por instantes.

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— O que aconteceu depois?


— O animal circulou em torno de nós. Enquanto os homens remavam
para onde sua cabeça apareceria a seguir, eu me posicionei à proa. Ergui o
arpão, e ele se esquivou. Bateu a cauda com tamanha força que lançou
nosso barco para cima. As ondas eram altas e quando o bote caiu, partiu-
se.
— Seu bote separou-se em dois?!
— Sim. Havia dez homens nele. Quatro começaram a nadar para o
navio, enfrentando ondas tão grandes que poderiam alcançar o teto da
cabana de um pescador.
— Meu Deus!

— O bicho aproximou-se de mim quando agarrei Billy. Mas fez uma


coisa estranha. Não sei por que, e não posso explicar isso até hoje, mas
aquela baleia parou como morta na água. Olhou direto para mim, como se
pudesse me ver do mesmo jeito que eu a via e estivesse me avaliando.
Preparei-me para morrer.
— Oh, não!
— Então, nadei para longe. O que eu tinha a perder? Dei-lhe as
costas e me afastei, arrastando Billy desacordado junto comigo para o
navio. A baleia submergiu. Deixou-me ir, qualquer que fosse a razão,
porém aquilo me marcou. Caso eu cruzasse com ela de novo, sei que me
mataria.
Benjamin fitou a escuridão. E murmurou como se falasse consigo
mesmo:
— Nunca tinha olhado um daqueles animais antes, olho no olho. E
quando o fiz, perdi a coragem.
— Não, não perdeu, Benjamin. Escolheu o caminho sensato e salvou
seu companheiro. Sua coragem foi testada, e você sobreviveu.
— Quanto mais distante entrávamos pelo oceano em busca de
baleias, maiores as nossas chances de morrer. Se eu morresse, minha mãe
não teria ninguém para ampará-la. E não haveria ninguém para dar
continuidade ao nome Swain.
— Todos os seus irmãos estão... mortos?
— O caçula, Matt, ainda pode estar vivo. Saiu de casa um ano antes
de mim. Nós tínhamos boa situação financeira, graças à caça à baleia, mas
Matt gostava de jogar. Sem meu conhecimento, meu irmão mais novo
continuava a jogar mesmo quando perdia. Custou uma boa quantia do
dinheiro da família pagar as dívidas dele.
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— Matt continua jogando?


— É o que acho. Partiu de Nantucket e seguiu para a Califórnia, com
a promessa de encontrar ouro e pagar o que perdera. Creio que é mais
fácil eu comandar uma frota do que Matt encontrar ouro.
— E por isso que você se alistou na Marinha? Para tornar-se um
almirante?
— O pagamento é certo. Minha mãe mora na casa que adora,
rodeada por amigos de uma vida inteira. Tem toda a comida e o dinheiro
de que precisa. Pede apenas uma coisa de mim, agora.
— E o que é? — perguntou Sophie, lutando para resistir à vontade de
tocar com o dedo a cicatriz em crescente da sobrancelha.
— Netos. E, creia ou não, quero lhe dar netos. É hora. Venho de uma
família grande, e gostaria de ter também uma assim, algum dia.
— Você... deixou uma namorada em Nantucket?
— Não. A garota se casou com outro.
— Ah...
Sophie ficou surpresa. Como poderia uma mulher em sã consciência
trocar Benjamin por outro? Nenhum homem poderia se comparar a ele. Se
pudesse tomar-lhe as mãos nas suas e lhe dizer como era maravilhoso...
Swain, contudo, a julgava uma mulher influenciada por malucas que
tentavam melhorar a participação feminina no mundo. Assim, em vez
disso, ela limitou-se a dizer apenas:
— Sinto muito.
— Eu ficava ausente por muito tempo, passava meses na pesca.
Martha não conseguiu esperar.
— A moça certa vai aparecer, Benjamin. —Porém, egoisticamente,
Sophie desejou que não aparecesse tão cedo.
Entristeceu-a de certa forma a idéia de que Benjamin passaria a vida
com alguém que ela não conhecia. Olhou para o fogo.
De repente, a porta do quarto se abriu.
— Oh! Perdoe-me a intrusão. Flora vai sair se precisarem de mais
tempo. Nada melhor que um bom aconchego numa noite de tempestade.
— Existe uma diferença entre aconchego e oferecer conforto! —
Benjamin esbravejou, levantando-se de imediato. — E uma criada não
deve deixar sua dama sozinha, fique sabendo.
Flora ignorou a descompostura de Benjamin.
— Aconchego é a melhor maneira de oferecer conforto.

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— Boa noite, senhoras.


Qual era o problema dele, afinal? Por que tivera de contar sua
história de vida para Sophie? Porque ela continuava a fazer perguntas, eis
o porquê. Aquela mulher o espreitava sem cessar, penetrava-lhe sob a
pele, estava atravessada em sua garganta, flutuava em seus pensamentos
quando ele menos esperava.
Benjamin, contudo, não fora muito sincero para com ela. Tinha
medos. Temia falhar. E falhara.
Fracassara na caça à baleia. Temia-as, bem como o mar. Salvara
duas vidas quando aquele espécime imenso suspendeu no ar o bote. Ele,
porém, jamais voltara ao oceano depois disso. E de que valia um homem
sem coragem?
Seu segundo fracasso era em relação a seu povo, a gente de
Nantucket. Falhou com ele de maneira deplorável. Se tivesse ficado na ilha
em vez de juntar-se à Marinha, poderia ler sido capaz de fazer algo que
melhorasse as condições dos ilhéus. Eles o encaravam como um líder e
esperavam grandes feitos de Benjamin.
No entanto, ele não pôde impedir o incêndio desastroso nos
atracadouros, nem trazer as baleias de volta para Nantucket. Incapaz de
ganhar o sustento como fazia quando a ilha reinava como capital da caça à
baleia no mundo, ele partiu. E sabia que, ao partir, causava um grande
desapontamento em muitos velhos amigos.
Ao afundar na cama, Benjamin comprimiu os dedos nas têmporas.
Sua cabeça latejava, e a virilha também. Com o corpo em brasa, ele se
remexia como um peixe no anzol.
Fora melhor contar a Sophie o que houvera do que tomá-la ali no
colchão macio da estalagem. E, sim, ficou muito tentado.
A dor do desejo reprimido por ela persistia, recordando-o de outro
receio que ficava mais forte a cada dia. Assustou-se até os ossos ao se dar
conta do quanto queria Sophie Harrington.
Na manhã seguinte, depois da viagem sob um céu cinzento c pesado,
a pequena comitiva de Sophie chegou à residência de Rosalind Montrose. A
governanta levou Sophie para a .sala de música da espaçosa mansão em
estilo georgiano.
— Sophie! — A alta e esguia jovem ergueu-se do piano c correu para
cumprimentá-la.
— Que bom revê-la!
— Peço desculpas por esta súbita intrusão, Rosalind. Mas minha
futura independência está em jogo.

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— Quando recebi seu bilhete, pensei que uma visita sua era bom
demais para ser verdade!
Na escola, Rosalind sempre se mostrara encantada em juntar-se a
Sophie em qualquer tipo de comportamento rebelde ou em trapalhadas. Só
precisava de um mínimo de inspiração. Com as pupilas a luzir de
ansiedade, agarrou as mãos da amiga.
— O que pretende fazer enquanto permanecer aqui, em Washington?
— Vim procurar minha ex-criada, Abigail. Sairei com Flora amanhã
bem cedo. A mãe de Abigail mora em Falls Church e é lá que espero
encontrá-la.
— Por quanto tempo acha que ficará fora?
— Não mais que dois dias. Mas preciso me livrar do marinheiro
Swain.
— Quem é ele?
— O cão sentinela que meu pai colocou em meus calcanhares.
Um sorriso conspiratório torceu os cantos da boca de Rosalind.
— Gostaria que eu mantivesse o marinheiro ocupado?
— Oh, sim!
— Será um prazer ajudá-la.
E ajudou. Durante e depois do jantar, Rosalind envolveu-se numa
conversa sem fim com Benjamin. Bateu as pálpebras de um jeito
provocante, tocou piano e cantou para ele.
Sophie começou a não gostar da idéia de deixar Benjamin a sós com
Rosalind, pois a amiga poderia devorá-lo. Mas quem sabe a antiga
companheira de escola ficasse feliz em dar ao instrutor de navegação
tantos filhos quantos ele pudesse contar.
Não era isso o que Sophie queria para si. No improvável caso de o
almirante permitir que se casasse com Benjamin Swain, ela não poderia
dar a seu belo herói a família que cie desejava.
O pensamento pesou-lhe no coração. Porém não tinha tempo para
ficar se lamentando. Pretendia encontrar Abigail pela manhã e, se tudo
saísse bem... seu diário.

Capítulo X

Bem cedo, Sophie começou a procura por Abigail. A viagem a levaria

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ao longo do rio Potomas até a pequena vila de Falls Church.


Rosalind Montrose providenciou-lhe uma montaria dócil e um
envergonhado cavalariço como guia. A gentil anfitriã luzia de enlevo, a
saborear seu papel de conspiradora na ousada perseguição de Sophie pela
independência. Tímida demais para tentar a vida por conta própria,
Rosalind preocupava-se, sobretudo em cuidar da mãe frágil e em arranjar
um marido.
Se sua amiga de olhos grandes e cabelos cacheados tecia idéias de
tomar Benjamin Swain como cônjuge, a pobre garota estava à beira de ter
o coração partido. Como amiga, era dever de Sophie abrir-lhe os olhos.
Embora não pudesse culpar Rosalind por se sentir atraída pelo belo
marujo de olhos cor de safira, Benjamin sempre amaria o mar mais que
qualquer mulher, não importava o quanto fosse bonita e inteligente. Além
do mais, era um homem ambicioso e, embora falasse da vontade de ter
uma esposa e filhos, Sophie temia que a carreira naval sempre tomaria
precedência sobre tal família.
Por outro lado, Rosalind precisava de alguém que pudesse se devotar
a ela e à mãe. Embora Sophie não tivesse intenção de ter um
companheiro, tinha bom senso suficiente para saber que a felicidade de
uma vida inteira com um homem dependeria de algo mais do que um par
de ombros largos e uma atraente aparência.
Tão logo Sophie encontrasse Abigail e recuperasse o romance,
planejava falar com franqueza com Rosalind. Claro, a bobinha poderia
acreditar que seu aviso era apenas coisa de mulher ciumenta. Sophie,
contudo, não tinha ciúme. Mesmo quando se livrasse do compromisso com
o capitão Ferguson, pois se livraria, não queria se casar com um rapaz já
casado com a Marinha, tão parecido com seu pai.
Não tinha importância que seu coração batesse mais depressa ao
lado do marinheiro Swain. Tudo o que Sophie desejava em verdade era ser
independente. Escolhera ser livre, para voar como uma borboleta.
No entanto, era preciso admitir que era perturbador perceber que a
maioria de seus pensamentos na jornada até Falls Church centrava-se em
Benjamin. Sophie chegou à casinha de Abigail por volta do meio-dia.
Ninguém respondeu quando bateu na porta da cabana, mas ela podia ver a
fumaça que subia por trás de uma choupana nos fundos.
Com a pulsação acelerada em nervosa antecipação, Sophie correu
para lá.. Ao rodear o canto, deparou com um quintal sujo com duas bacias
de ferro apoiadas em tijolos sobre o fogo. Debruçada sobre uma delas,
Abigail remexia a roupa fervente com uma pá de madeira. Uma mulher
mais velha e desgastada, que só poderia ser sua mãe, lidava com a outra.

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— Abigail! — Sophie exclamou com genuína alegria, encantada por


tê-la encontrado tão depressa e com tanta facilidade.
Em seu coração, Sophie tinha certeza de que a antiga criada poderia
ajudá-la a recuperar o caderno com o romance. Abigail ficou paralisada. E
a mãe lançou um olhar duro e inquisitivo para Sophie.
No espaço de poucas semanas, Abigail se tornara macilenta e magra,
a não ser pelo ligeiro volume do ventre. A verdade tornou-se cristalina
para Sophie. Abigail estava esperando um filho!
Um tanto constrangida, Sophie pôs-se a examinar a criada como se
nunca tivesse visto a jovem antes. Os brilhantes olhos cor de avelã de
Abigail eram agora buracos fundos, e seus cabelos castanhos pendiam em
mechas úmidas, muitas grudadas à face. Estava prestes a dar à luz, e
assumira o trabalho de sua mãe. Era uma lavadeira sobrecarregada e
cansada.
A tristeza inundou o coração de Sophie.
Abigail deixou cair a pá.
— Srta. Harrington?
— Sim, sou eu. — E Sophie seguiu até a jovem, estática de espanto.
— Estava passando por Falls Church e decidi fazer uma visita de improviso.
Tenho saudade de você.
E tomou as mãos da moça, vermelhas e enrugadas do trabalho.
Abigail continuou a olhar para Sophie como se a ex-patroa fosse uma
aparição.
Sophie voltou-se para a mãe da garota.
— E a senhora deve ser a mãe de Abigail, a Sra. Grant. Nunca nos
encontramos, mas devo lhe dizer o quanto apreciei ter sua adorável filha
comigo. Sinto muita falta de Abigail.
A Sra. Grant fez um gesto de cabeça, a testa ainda franzida, e
inclinou-se num cumprimento.
— Prazer em conhecê-la, senhorita.
— Posso conversar em particular com você, Abigail? — pediu-lhe
Sophie.
A ex-criada assentiu e voltou-se para o casebre atrás delas, fazendo
um gesto para que Sophie a seguisse.
A choupana de um quarto tinha uma tina para lavar roupas quando
chovesse. As de Abigail, de segunda-mão de Sophie, pendiam em ganchos
ao longo de uma parede. Havia uma enxerga que servia como cama sobre
o chão duro. Nada de tapetes ou pinturas, apenas um espelho preso a uma

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fita enfeitava a parede de madeira.


— Está morando aqui? — indagou Sophie, tão gentilmente como
possível.
— Sim. — Uma grande tristeza parecia permear todo o ser de Abigail.
Ao ver os olhos baixos dela e seus ombros caídos, Sophie (ornou uma
decisão:
— Gostaria que você voltasse para minha casa.
As sobrancelhas de Abigail cerraram-se numa ruga de incredulidade.
— Veio até aqui para me pedir para voltar?
— Na verdade, sim.
— Obrigada por sua gentileza, mas não posso. Olhe para mim.
Espero um filho.
— Um bebê é tudo o que é necessário para encher minha casa de
alegria — afirmou Sophie, com toda a sinceridade.
Bebês a encantavam. Apenas tinha medo de dar à luz.
— Mas ainda vou me casar. — A jovem forçou um sorriso melancólico
e pousou a mão no ventre.
— Entendo. Então está ajudando sua mãe até o casamento...
— Não, sempre serei uma lavadeira, acho.
— Mas por quê? Seu marido não cuidará de você?
— Ele não é um homem bem-educado, mas eu amo Fletcher de todo
meu coração. — O olhar de Abigail implorava a compreensão de Sophie. —
Farei o que tiver de fazer por ele.
— Quando se casará?
— Em poucas semanas. Não marcamos uma data. Sophie meneou a
cabeça como se compreendesse o que não acontecia.
— Por que não percebi que você estava grávida?
— Por sorte continuei pequena até há pouco. Pude esconder meu
estado debaixo das saias.
De novo, Sophie concordou ainda um pouco aturdida diante da
inesperada circunstância.
— Não me lembro de você ter me contado que estava apaixonada.
Embora eu não saiba por que devesse — emendou, depressa. — É que
partilhávamos tantas coisas...
— Conheci Fletcher durante uma visita a minha mãe. Foi amor à
primeira vista, senhorita.
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— Eles fornicaram e Fletcher a deixou com um filho — uma voz


monótona declarou no vão da porta.
Abigail ficou rubra.
— Mamãe!
— É a verdade, menina. Vim perguntar se posso oferecer uma xícara
de chá para a dama.
— Seria adorável — disse Sophie, ignorando o comentário da sra.
Grant. — Obrigada.
Quando a amarga mulher se afastou, Sophie postou-se ao lado de
Abigail.
— Não fique perturbada. Se as coisas não saírem como o esperado,
sempre haverá um lar para você comigo. — E passou um braço pelo ombro
da jovem.
Abigail estava mortificada.
— A senhorita é tão boa! Não mereço sua generosidade.
— Por favor, Abigail, não chore. Tudo ficará bem.
— É um filho do amor que estou esperando, senhorita. Compreende
agora por que não pude ficar?
— Sim, lógico. Apenas quero que me deixe ajudá-la.
— Não há nada que possa fazer. A natureza seguirá seu curso.
— Está... com medo? Abigail fitou-a com curiosidade.
— Medo de quê?
— De dar à luz.
— Por que deveria? É coisa de mulher. Nascem bebês todo santo dia.
— Pela primeira vez, Abigail sorriu, um sorriso terno, feliz. — E ter um
bebê que é parte de mim e parte de Fletcher é uma coisa maravilhosa.
Será o símbolo vivo de nosso amor.
Era óbvio que Abigail estava obcecada a ponto de arriscar a própria
vida por amar Fletcher. Sophie desejou que o homem valesse o sacrifício.
— Quando ele vai se casar com você?
— Não temos dinheiro para pagar ao padre ainda. Sophie enfiou a
mão na bolsa.
— Ficarei feliz em dar-lhe esse presente.
— Não, srta. Harrington! — A futura mamãe mostrou-se horrorizada.
— Fletcher se casará comigo em breve. Não se preocupe.
— Não posso evitar ficar preocupada.
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— Não há necessidade. — Uma expressão sonhadora perpassou pelas


feições de Abigail.
— Algum dia a senhorita irá se sentir assim também, do jeito que
estou.
— Ah, não!
Não, Sophie tinha certeza de que jamais se deixaria enredar nas
malhas de um amor obcecado.
— Encontrará um homem e o amará, e haverá de querer ter um filho
dele no ventre.
E conhecerá a completa alegria, como eu, ao sentir a vida crescendo
dentro de sua carne.
Vida crescendo dentro dela? Uma idéia absurda. Sophie duvidava que
pudesse experimentar alegria se se encontrasse num tal estado de risco.
Enquanto procurava um comentário apropriado, a sra. Grant retornou
com uma xícara pela metade de um líquido cor de âmbar.
— Aqui está seu chá. Não demore, Abigail. Há muita roupa para
lavar hoje.
A mãe de Abigail não trouxera chá para a filha. Sophie tomou um
gole com uma sensação de culpa.
— Não irei retê-la por mais tempo. Porém existe um outro assunto
sobre o qual tenho de conversar com você.
Os olhos da jovem sombrearam de cautela.
— E o que seria?
— Meu romance. Eu guardava um caderno de capa de couro preta em
meu armário, e agora parece que sumiu. Nada é o mesmo desde que você
se foi. Não sei mais onde encontrar as coisas. Saberia me dizer o que
poderia ter acontecido com meu diário?
O olhar de Abigail ficou vago e obtuso. Ela baixou os cilios, fitando o
chão, e chacoalhou de leve a cabeça, numa negativa.
Sophie colocou a xícara na beirada da tina.
— Lembra-se do livro de capa de couro de que falei?
— Sim...
— Tenho de encontrá-lo, Abigail. É minha única esperança de
estabelecer uma vida por conta própria. Meu pai quer que eu me case com
o capitão Ferguson. Mas se encontrar o livro e vendê-lo para uma editora,
poderei viver do jeito que eu quiser.
A antiga criada continuava a encarar o piso.
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— Eu... gostaria de poder ajudá-la.


— Tem certeza?
— Perdoe-me, mas tenho de voltar ao trabalho antes que minha mãe
se zangue.
— Abigail rumou para a porta.
Sophie deu um passo, bloqueando-lhe a passagem.
— Imagina quem pegaria uma coisa assim?
— Não.
— Meu pai receia ser chantageado. Antes que eu tivesse a
oportunidade de mudar os nomes de meus personagens, o diário
desapareceu. Diz algumas coisas pouco lisonjeiras sobre o almirante. — Ela
não mencionou as próprias fantasias com respeito ao marinheiro Swain.
— Não posso ajudá-la, mas espero que encontre seu caderno.
Sophie enfiou vários dólares de ouro na palma da mão da garota.
— Se souber de algo, de onde possa estar, por favor, me avise.
Lágrimas marejaram os olhos de Abigail.
— É muito generosa, sita. Harrington. Não posso aceitar...
— Você deve. E se pensar em onde eu poderia procurar meu diário...
— Eu avisarei.
A frustração tomou conta de Sophie. Embora Abigail mostrasse um
comportamento estranho, mesmo assim não conseguia imaginar que a
antiga criada a houvesse furtado.
— Poderia conhecer Fletcher antes de partir de Falls Church, Abigail?
— Ele está fora... a negócios.
— Bem, talvez eu o conheça antes que se casem. E como você vai se
chamar após o casamento?
— Sra. Thurman. — A voz de Abigail tinha uma entonação de
orgulho. — Sra. Fletcher Thurman.
Sophie sorriu.
— Se houver alguma coisa de que precise, seja o que for que eu
possa fazer por você, avise-me.
— Obrigada, sita. Harrington. Tem um excelente coração. Porém uma
mente suspeitosa. Sophie conhecia Abigail o suficiente para saber que ela
não fora sincera. A hesitação ao falar, a recusa em olhá-la nos olhos
indicavam que poderia estar ocultando informações.

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Sophie acompanhou a ex-criada para fora da choupana. Tinha mais a


fazer antes de voltar a Georgetown. Com sorte, encontraria Fletcher
Thurman. Desejava trocar uma palavra com aquele rapaz.
Outra preocupação se aninhou nos recessos de seu cérebro. Como
Benjamin estaria se saindo com a sedutora Rosalind?
Sophie não teve muito tempo para dar asas à imaginação. Ao olhar
para a frente, estacou.
— Droga!
Benjamin Swain, esplêndido como Poseido em uniforme, conversava
no quintal com a sra. Grant. Rosalind deixara sua presa escapar.
Um brilhante céu azul e uma brisa cheirosa de flores silvestres da
primavera propiciavam um dia perfeito para cavalgar, e melhor ainda para
velejar. Se Benjamin estivesse em Annapolis, estaria velejando. Se assim
fosse, teria se levantado com o raiar da aurora.
Ele experimentara uma sensação ruim nas entranhas e decidiu
certificar-se de que Sophie não fugira para longe de suas vistas. Da janela,
avistou-a de relance na companhia de Rosalind. As duas rumavam para o
estábulo. Enquanto ele se vestia às pressas, Sophie saiu montada numa
égua baia, acompanhada por um cavalariço dos Montrose.
Benjamin correra para o estábulo para selar seu cavalo. li em questão
de minutos se pôs a caminho, no rastro de Sophie, de uma distância
segura. Imaginava que rumava para Falls Church em busca da antiga
criada. Acertara em cheio.
— O que está fazendo aqui?!
— Zelando por sua segurança, senhorita.
Sophie respirou fundo antes de se voltar para a mãe de Abigail,
esboçando um sorriso forçado.
— Bom dia, Sra. Grant.
— Sra. Grant, prazer em conhecê-la. — Com uma ligeira mesura,
Benjamin piscou para a lavadeira, que respondeu com uma risadinha.
Sophie teve de se esforçar para não bater o pé no chão, e deixou
escapar um suspiro antes de seguir para a frente da casa, onde deixara a
montaria.
Olhou ao redor, espantada.
— Onde está o cavalariço?
— Eu o mandei para a mansão. Você tem a mim para protegê-la,
agora.

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— Proteger do quê?
— De si mesma.
— Não quero, nem preciso de você.
Sorridente, Benjamin tirou-lhe as rédeas da mão. Ela era a primeira
mulher que lhe dizia que não o queria.
— Vai ter de me agüentar por algum tempo, de qualquer jeito.
Sophie ergueu o queixo.
— Não há escolha, eu creio.
— Não.
Benjamin conduziu os cavalos, e Sophie seguiu sem mais objeções ao
lado dele pela trilha que levava à cidade. A manhã fora feita para uma
caminhada. Margaridas despontavam nas campinas de ambos os lados da
estrada de terra, junto com uma colorida paisagem de boninas e pervincas
em meio à grama verde. Havia ainda enormes carvalhos brancos e uma
profusão de cerejeiras em flor.
— Abigail devolveu seu romance?
— Ela não está com meu diário.
— A moça tem um amante? Sophie parou no mesmo instante.
— Como sabe? Benjamin deu de ombros.
— É só uma suposição.
Ela continuou a andar, as feições contraídas.
— Abigail vai se casar em breve. É por isso que saiu do emprego. Não
foi embora porque me roubou.
— Falou com ela com franqueza?
— Sim.
— E acha que lhe contou a verdade?
— Evidente!
Mas Sophie não soava convincente. Benjamin passara horas demais
com ela para reconhecer a diferença entre sua atitude e seus sentimentos.
Sabia quando se sentia confusa, zangada ou vulnerável. E quando estava
feliz. Por isso, constatou, num súbito insight, que jamais conhecera uma
mulher tão bem. Aquilo o surpreendeu.
— Receio que seja muito influenciável e que por isso não esteja
pronta para uma vida independente — disse, com total honestidade.
— Sua opinião pouco me importa, marinheiro Swain. Sou capaz de
cuidar de mim mesma.
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Ela se iludia. Sophie precisava dele, ou de alguém como ele, e


Benjamin sabia disso, embora ela não se desse conta. Porém dizer isso
bastaria para deixá-la irritada, e então ele mudou de assunto:
— Se não me engano, você ia procurar o futuro marido de Abigail
quando apareci.
— Ela me disse que o rapaz estava fora, a negócios.
— E você não acreditou?
— Claro que acreditei! — Sophie fez um ar de indignação.
— É que esse tal de Fletcher poderia ter voltado sem que Abigail
soubesse.
— O nome dele é Fletcher?
— Fletcher Thurman.
— Tenho uma proposta a lhe fazer.
— O quê? — Sophie parou no meio da estrada.
Benjamin achou que o chapéu cor-de-rosa dela era a moldura
perfeita para seu rosto em formato de coração. Seus olhos, os lábios, o
nariz estavam em encantadora simetria.
— Uma proposta? — ela repetiu.
Percebendo que poderia ser mal interpretado, ele se apressou a se
desculpar:
— Sophie, não acha que eu quis dizer que... Furiosa, ela plantou os
punhos nos quadris.
— Acha de fato que eu iria propor alguma coisa para a filha do
almirante dessa maneira?
— Creio que você é capaz de quase tudo! — E ela saiu andando.
Com uma risada, Benjamin alcançou-a.
— Eis o que quero propor: em vez de seguir para a cidade e
perguntar sobre Thurman, o que chamaria atenção para você, poderíamos
esperar e seguir Abigail. Se ela roubou eu romance e o entregou ao
amante, e se ele estiver mesmo em Falls Church, a jovem irá avisá-lo, sem
dúvida.
Sophie estacou outra vez. — Quer trabalhar comigo? Mudou de idéia
sobre fazer um pacto?
— Não. Mas esperarei com você. Estou aqui para protegê-la. Se
acontecer-lhe algo nesta viagem, seu pai retiraria a oferta de me colocar
num navio e me poria sob um monte de pedras com um forcado, em vez
disso.
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— Quer reaver meu romance antes de mim, Benjamin. Finge ser meu
amigo, mas se prepara para me trair.
— Entenda como quiser.
Sophie lançou-lhe um olhar de soslaio.
— Quanto tempo acha que ficaremos à espera?
— Até a garota se ver livre. Pode ser em duas ou em doze horas. A
mãe dela parece ser bastante dura.
— Trata Abigail de forma abominável!
— É evidente.
— Mas Abigail está apaixonada. Espera um filho.
— Uma moça solteira, grávida e sem dinheiro ou marido é uma
mulher em desespero, Sophie.
— Pedi a ela que voltasse comigo, porém está muito apaixonada para
ouvir-me. Se Fletcher amasse Abigail, teria se casado com ela de imediato.
— Concordo — Benjamin afirmou, embora não conhecesse muitos
homens que tivessem corrido para o altar, não importava quais fossem as
circunstâncias.
Ao contrário, a maioria de seus amigos teria fugido à simples menção
da palavra "casamento". Sophie suspirou fundo.
— Pobre Abigail... Receio que possa levar uma vida infeliz.
— A existência humana é um jogo. Todos fazemos nossas próprias
escolhas.
— Eu adoraria ter uma escolha!
Benjamin não tinha uma resposta pronta para uma verdade tão
lamentável. Seu coração pareceu apertado por uma mão gigante. Com um
sorriso triste, levou os cavalos para fora da estrada, em direção à campina.
— Vou esperar ali, atrás daqueles arbustos, mas você está livre para
ir até a cidade e procurar por Fletcher.
— Você sabe muito bem que não sou livre para coisa alguma. Mas
algum dia serei.
Se Sophie tivesse nascido homem, teria comandado uma frota de
navios baleeiros.
— Eu não ficaria surpreso — respondeu Benjamin.
— E então nenhum homem jamais me dirá o que fazer de novo.
— Sim, mas, enquanto isso, eu sugeriria que em vez de procurar por
Fletcher Thurman, você visse se encontra uma hospedaria em Falls

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Church. Está tarde para retornarmos a Georgetown hoje.


Apostava que Sophie ficaria com ele em vez de viajar por conta
própria. Se não tivesse perdido a intuição, ela permitiria que Benjamin
recuperasse o romance e depois tentaria enganá-lo.
— Se Fletcher Thurman estiver com meu livro e Abigail o levar até
ele, eu não seria esperta se ficasse descansando numa confortável
estalagem, Benjamin. Pior, terei de me casar com Andrew Ferguson. Não,
vou esperar nos arbustos com você. — Abaixando-se, Sophie espalhou as
saias e sentou-se no chão.
Após amarrar os cavalos num galho, Benjamin agachou-SE ao lado
dela. Pegou um capim e começou a mascá-lo. Uma moita de arbustos,
trepadeiras e árvores de pequeno porte compunham o lugar que ele
escolhera para esperar. Bem escondidos, Benjamin e Sophie poderiam ver
o caminho com clareza, mas ninguém que passasse os notaria. Uma hora
se passou em total silêncio. Sophie não parava de mudar de posição e de
suspirar. Então, resolveu conversar:
— As boninas estão lindas.
— Quer que eu lhe faça um buquê?
— Se eu pudesse comer flores... Estou com fome. E você?
— Não, e não tenho nada além de um charuto.
— Não podemos comê-lo, tampouco.
— Há amoras no mato atrás de nós.
— Talvez algumas estejam maduras. — Levantando-se, Sophie tirou
o chapéu e os grampos que prendiam os cabelos.
A massa espessa caiu-lhe sobre os ombros, e Benjamin experimentou
um súbito desejo de enterrar os dedos naquelas mechas sedosas.
— Usarei meu chapéu para colhê-las. — Os olhos dela brilhavam de
animação.
— Não poderia fazer melhor uso para ele.
Ela inclinou a cabeça e endereçou-lhe um olhar que faria fraquejar
qualquer homem.
— É um belo chapéu — ele emendou, depressa.
Com um empinar de queixo, Sophie virou-se e se foi, abaixada, até a
moita de amoras.
Benjamin despiu a jaqueta e enrolou as mangas da camisa. Fazia
muito calor para continuar de uniforme.
Por um instante, ficou deitado de costas na grama. Como alguém

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sem obrigações, permitiu-se desfrutar do sol como na época em que era


garoto.
O momento passou. Com um gemido, ergueu-se para deitar-se de
lado. Apoiado num cotovelo, segurou a cabeça com a mão. Assim, poderia
observar tanto a estrada como Sophie.
Era evidente, pela expressão deliciada nas faces dela, que se divertia
com a tarefa. Benjamin notou que Sophie colhia as frutas e colocava uma
no chapéu e outra na boca. Sorriu, ao observá-la, ciente de um calor que o
aquecia por dentro, um bem diferente daquele proporcionado pelo sol de
primavera.
Não poderia negar que, a sua maneira, Sophie Harrington era
sedutora. Para uma mulher que usava calções.
Logo depois ela retornava com o chapéu cheio de amoras, a maior
parte ainda não bem madura. Com um sorriso deslumbrante que
evidenciava sua encantadora covinha, sentou-se ao lado dele.
Benjamin não aceitou o convite para dividir a colheita, mas ficou a
olhar com profundo interesse enquanto ela devorara as frutinhas. A
satisfação era evidente e se exprimia em pequenos gemidos de deleite e
no movimento sensual da ponta da língua, conforme Sophie lambia gulosa
o suco dos lábios e dos dedos.
Uma gota de um vermelho vibrante alojou-se no canto de sua boca.
Se fosse qualquer outra que não a filha de Harrington, Benjamin teria
se deixado levar pelo desejo insistente que sentiu de lamber aquela
pequena trilha e de rolar com ela na grama quente.
— É quase como um piquenique! — exclamou Sophie, encantada.
— Quase. — Ele continuava como que hipnotizado pela gota que
manchava os lábios de Sophie.
Suas palmas cocavam de vontade de percorrer aquelas curvas, de
sentir os seios voluptuosos e a cintura que poderia abarcar com as mãos.
Sophie não fizera nada para excitá-lo, c mesmo assim Benjamin via-se
prestes a perder o controle de si mesmo.
Ela deixou escapar um suspiro de exasperação.
— Não parece que Abigail vá sair. Faz quatro horas que estamos
aqui.
— Quem sabe ela prefira esperar que escureça. — Benjamin fitou a
estrada.
— Ou talvez não tenha nada a ver com o sumiço de meu diário.
— Se está começando a se cansar, vá para Falls Church e alugue um

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quarto na hospedaria mais próxima. — Benjamin sentou-se. — Eu a


encontrarei. Não deve haver muitas hospedarias numa cidade tão
pequena.
— Não. Ficarei aqui. Se eu for embora, você poderá sair à procura de
Fletcher por conta própria.
Ela sempre parecia estar um passo à frente dele.
— Nesse caso, aguardemos por mais uma hora. Ponha-se
confortável.
— É mais fácil falar do que fazer. — E cerrou as pálpebras, virando o
rosto para o sol.
Benjamin fitou-a, fascinado, imaginando se já apreciara plenamente
a beleza natural de Sophie antes. Ela fazia parte daquele campo de flores e
grama verde. Do elegante contorno dos ossos da face à compleição rosa e
creme, não precisava de pó-de-arroz ou rouge para melhorar a aparência.
Se ele fosse um artista, poderia pintá-la naquele instante, um adorável
espírito radiante nascido da primavera e do sol. Se fosse um poeta, iria
descrevê-la como uma flor rara que deveria florescer para sempre.
Porém não era nem uma coisa nem outra, e sentia coceiras de
desejo. Era bem mais que a volúpia ardente de macho o que sentia por
Sophie. Na verdade, ardia todo.
Cocou o braço sem tirar os olhos dela. E então cocou o outro. Alguma
coisa no mato parecia tê-lo picado. Irritado, olhou para baixo... e viu as
bolhas.
— Deus! Hera venenosa! — Sophie se inclinou para ver melhor. —
Você deve ter a pele sensível.
— Pele sensível?
— Coca, não é? — Ela falava de um jeito brincalhão, e não era aquilo
que ele gostaria de ouvir.
Benjamin fitou-a, furioso.
— Sim, coca e queima.
— Não pode se cocar — avisou-o.
Sophie inclinou-se ainda para mais perto, provocando os sentidos de
Benjamin com seu aroma doce de madressilvas e o provocante cheiro de
mulher. Aflito com a sensação de agulhadas por toda a epiderme e a
imperiosa vontade de se cocar, ele poderia perder a cabeça.
— Hera venenosa é comum em campos como este — informou
Sophie. — Você deve ter roçado numa delas.
Ele olhou de cenho fechado para as bolhas.

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— Como sabe a respeito de hera venenosa?


—Li Enfermeira da Família, um livro indispensável em toda
residência. A autora é Lydia Childs. Outro exemplo de mulher que abriu
seu próprio caminho pela escrita. Existe alguma coisa para fazer a coceira
parar? Creio que a Sra. Childs recomenda um banho de imersão frio em
salmoura.
- Banho de imersão? Não vou ficar numa banheira como algum bobo
metido a elegante. Entro e saio do banho.
— Você é mais teimoso que eu!
— O mar é mais seguro que a terra. — Pôs-se de pé. — Nilo existe
hera venenosa por lá.
— Não, apenas escorbuto.
— Talvez devêssemos procurar aquela hospedaria agora. Benjamin
estendeu a mão para ajudá-la a se levantar.
Sophie olhou para a palma, indecisa.
— Tocou a mão em seu braço?
— Não me lembro. — Ele fitou as mãos avermelhadas. Sophie
levantou-se sozinha.
— Quer desistir da espera? — ele perguntou, enfiando as mãos nos
bolsos, rumando para os cavalos.
— Sim, Benjamin. Acho, de qualquer maneira, que Abigail não está
envolvida no sumiço de meu diário. Gostaria de voltar para Annapolis e
interrogar todos que trabalharam na casa enquanto estive doente.
— Isso vai provocar comentários — avisou, esfregando um braço no
outro, o que pareceu não adiantar nada.
— Já falam de mim do mesmo jeito. Não coce!
— Não estou cocando!
— Se esfregar e cocar, vai ficar pior. Se me lembro bem,a Sra. Childs
adverte que a hera venenosa se espalha co facilidade para todas as partes
do corpo.
A alusão de Sophie era evidente. Ela não tinha vergonha Falara de
abstinência e castidade e agora, com coragem honestidade, fazia
referência às partes pudendas.
— Acredita em tudo o que lê? — E, antes que ela pudesse responder,
Benjamin resmungou:
— Deixe para lá. Precisa mos encontrar uma hospedaria antes que
escureça.

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Capítulo XI

Sophie estava cansada, com fome e incapaz de dar mais um passo


quando ela e Benjamin entraram na Estalagem da Alameda Sombria.
Embora o estabelecimento tivesse também um bar, Sophie seguiu
Benjamin pelas portas de vaivém, agradecida por ter chegado a um lugar
onde pudesse descansar.
Ainda que bastante irritado com as queimaduras da hera venenosa,
Benjamin entrou no bar com um ar de imponente autoridade. Sophie ficou
próxima a seus calcanhares.
Ela sempre usara um disfarce para entrar na Taverna Reynolds, e
sentiu-se bastante constrangida por não ter posto o pesado chapéu velado.
Aquele que usava agora, todo manchado de amora, não servia para nada.
Endireitando os ombros e mantendo a cabeça erguida, Sophie
ignorou os olhares abusados dos clientes.
Se seu pai descobrisse que ela estivera num lugar assim, iria renegá-
la, com certeza. Contudo, a experiência poderia ser valiosa para futuras
incursões literárias.
Uma atmosfera pacífica reinava dentro dás paredes do
estabelecimento. Uma dúzia ou mais de homens jogava c tas. Várias
mesas pareciam ser ocupadas por negociantes que trocavam confidencias
em torno de canecas de cerveja Em contraste com a Taverna Reynolds em
Annapolis, a Estalagem da Alameda Sombria era tão silenciosa que Sophie
podia ouvir a poeira de cascalho estalar sob seus pés ao seguir Benjamin.
— Posso ajudar? — um sujeito de bigodes atrás do balcão perguntou.
— Procurando um quarto?
— Dois — corrigiu-o Sophie.
— Um — disse Benjamin, com firmeza.
— Só tem um. Há um comício político na cidade, não sabem?
— Ficaremos com ele — Benjamin afirmou, antes que Sophie pudesse
protestar.
— É sua senhora?
— Decerto que sim.
O homem soltou uma risadinha.
Sophie estampou um sorriso forçado. Talvez forçado demais, mas foi

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o melhor que pôde esboçar. Logo quando acreditava que haviam


estabelecido um tratado de paz ou uma trégua, Benjamin escorregara para
aquele seu jeito arrogante e autoritário.
— Meu nome é Hank. Se precisar de alguma coisa, avise. — O
homem jogou uma chave sobre o balcão. — Pegue o quarto dois.
— Obrigado.
Ao se afastar do balcão, Sophie parou de repente e recuou diante do
grito assustador de um jovem que irrompeu pelas portas. Parecia o uivo de
um coiote, e dava a impressão de que ele usava as mesmas roupas fazia
semanas.
— Voltei para mais uma! — gritando e sorrindo enviesado, ergueu o
indicador.
Hank, o estalajadeiro, meneou a cabeça.
— Não vai ter, Cadê. Você está acabado.
Cadê, loiro de olhos azuis, amarfanhado em sua camisa de brim,
caminhou cambaleante na direção de Sophie e de Benjamin.
Ela recuou e se postou atrás de Benjamin. A compleição enorme e de
ombros largos dele oferecia proteção contra o recém-chegado, que sem
dúvida estava bêbado.
— O rapaz é o filho do reverendo — Hank informou a Sophie e
Benjamin, à meia-voz.
Cadê avançou um passo e endireitou-se para dar uma olhada melhor
em Sophie. Sorriu-lhe, como se brincassem de esconde-esconde. A
despeito do sorriso, Sophie ficou com medo. Com o coração disparado,
sentiu, mais do que viu, que Benjamin se enrijecia.
Parecendo alheio à presença de Benjamin, Cadê começou a provocar
Sophie:
— Ei, belezinha, venha cá brincar comigo.
— Filho — Benjamin interveio —, saia daqui. Você está pedindo
confusão.
O rapaz oscilou nos pés.
— E você, quem seria?
— O marido dela! — exclamou Hank, interferindo na conversa.
— Talvez a moça esteja cansada dele. Está, docinho? Gostaria de
tentar alguma coisa nova?
— Se não tiver saído quando eu contar até três, vou lhe dar uma
surra — avisou-o Benjamin.

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— Quem? — O bêbado deu um passo à frente, numa atitude


belicosa.
— Eu. — Benjamin cruzou os braços no peito.
A hera venenosa iria se espalhar, pensou Sophie, incapaz de aceitar o
fato de que, naquele instante, poderia estar no meio de uma briga. A filha
do almirante, quem diria. "Oh, que droga!"
— Um...
— Meu marido é um herói de guerra condecorado, conhecido por sua
força e coragem
— avisou Sophie, na esperança de que o rapaz recuasse.
Swain continuava imóvel como uma montanha. Prosseguiu com a
contagem, muito frio:
— Dois...
— Nenhum forasteiro me diz o que fazer — Cadê desafiava.
— Três.
Ninguém se mexia ao redor. Sophie nem mesmo respirava. O
zumbido de uma mosca parecia altíssimo. Benjamin meneou a cabeça,
com desdém.
— Filho, eu o avisei com franqueza.
— Ah! — O rapaz fechou os punhos.
Benjamin se voltou e colocou a chave do quarto nas mãos de Sophie.
— Vá na frente. Não demorarei mais que um minuto. De olhos
arregalados, ela desviou-se de Cadê, mas, rápido como um gato, ele
agarrou-a e puxou-a contra si.
O jovem cheirava a uísque e cerveja azeda, o que fez o estômago de
Sophie embrulhar. Lutando para libertar-se, ela sentiu os lábios de Cadê
no pescoço, molhados e repulsivos. Logo quando ia gritar, viu-se de
repente livre das mãos que a prendiam, enquanto Cadê era içado e jogado
para longe dela, caindo ao chão. — Levante-se! — Benjamin gritou, ao lado
do jovem. Sophie olhou de relance por sobre o ombro, ao correr para a
escada. Ofegante, Cadê ergueu-se. Cambaleou por um momento antes de
se jogar sobre Benjamin. Seu punho atingiu o queixo dele.
Cadê soltou um grito quando Benjamin acertou-lhe um murro que o
atirou sobre uma mesa vazia. Apavorada, Sophie estacou no meio da
escada. Uma mescla de medo e mórbida curiosidade a prendia à briga lá
embaixo.
Nos mais fantasiosos devaneios que tivera, jamais imaginara

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Benjamin Swain a lutar por sua honra. Se algo acontecesse a ele enquanto
ela se escondesse atrás de uma porta trancada, jamais se perdoaria.
Correu degraus abaixo. A indignação sobrepujou o medo. Resolvida a
ajudar Benjamin em vez de vê-lo ferido, pegou uma velha cadeira e
esperou pela oportunidade. Se o atrevido ousasse atacar de novo, ela
arrebentaria a cadeira na cabeça de Cadê.
Seu coração ameaçou parar quando Cadê arremeteu contra Benjamin
de cabeça baixa como um touro enlouquecido c acertou direto a barriga
dele. Uma dor lancinante espalhou-se pelo ventre de Sophie como se ela
tivesse recebido o impacto.
Swain gemeu e rodou nos calcanhares quando Cadê lhe acertou um
soco no queixo.
Sophie, com a respiração presa na garganta, segurava a cadeira com
tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Mas o rapaz gastara sua
última gota de energia.
Os olhos esgazeados pareciam estar fora de foco quando Benjamin se
voltou. Em segundos, o forte marujo desfechou um poderoso golpe na
mandíbula de Cadê e depois na altura de seu estômago. O filho do
reverendo se dobrou como um leque chinês.
Quando Cadê se esparramou no piso, Sophie largou a cadeira e
correu para a escadaria e para o quarto de número dois. Benjamin não
precisava mais dela. Ele lhe salvara a honra.
Por um longo instante, ninguém no bar se moveu. Então, o taverneiro
encheu um copo curto e empurrou-o para onde Benjamin se recostara,
contra o balcão, recuperando o fôlego. Um entrechocar de canecas e um
coro de aplausos quebraram o silêncio.
Com um aceno para a platéia, Benjamin dirigiu-se a Hank e pediu
dois ensopados, uma tina e jarras de água quente para um banho, além de
um saco de sal para o aposento dos dois. Arranhado, cheio de coceiras e
ardendo, subiu as escadas.
A porta estava trancada.
— Sophie, é Benjamin. Abra.
Ela entreabriu uma fresta e espiou para fora. Sem paciência para
joguinhos, ele empurrou a porta com força e entrou.
— Obrigada, Benjamin. Obrigada pelo que fez lá embaixo.
— Não fale nisso.
Ele desabou na beirada da cama e olhou para as bolhas nos braços.
Como aquilo cocava!

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Esfregou o queixo. Ardia tanto que Benjamin julgou que pudesse tê-
lo quebrado. Quem diria que um rapaz embriagado poderia fazer tamanho
estrago?
— Seu olho inchou — Sophie disse baixinho, ao se ajoelhar e fitá-lo.
— Deve ser por isso que vejo tudo borrado. Creio que estará preto e
azulado pela manhã.
— Correu um olhar rápido pelo ambiente.
Um velho lampião estava aceso sobre uma mesa. Benjamin
reconheceu o cheiro: óleo de baleia. O quarto pouco iluminado tinha uma
janela, com cortinas desbotadas.
A mobília simples incluía uma cama larga o suficiente para alguém de
bom tamanho, uma bancada com uma jarra e uma bacia para higiene,
bem como uma cadeira de encosto reto. O chão de tábua crua não tinha
tapete. O quarto não era, de modo algum, ao que a filha do almirante
estava acostumada.
— Sente dor? — Sophie quis saber, no mesmo tom rouco e reverente
que usava desde que Benjamin entrou ali.
Aquela nova Sophie, diferente da mulher que ele conhecia, o
confundiu e o deixou ainda mais cauteloso.
— Já estive pior.
Ela estendeu a mão e tocou-lhe o queixo.
— Está machucado.
Aquele toque na mandíbula dolorida de alguma forma aliviou-lhe o
sofrimento. Sophie correu os dedos gentis sobre a parte avermelhada. E o
coração de Benjamin disparou como louco, sem ritmo, fora de controle.
Com um suspiro fundo, cerrou as pálpebras e se permitiu desfrutar do
calor daquela carícia.
Deus do céu, ia perder a cabeça!
Com um gesto brusco, afastou a mão de Sophie. O carinho o excitara
e o colocara num estado em que não poderia mais confiar em si próprio.
Como chegaram àquele ponto? Sophie Harrington, a filha de seu oficial
comandante, uma jovem comprometida com outro, um diabrete de
calções, ali, no mesmo quarto, sob o mesmo teto!
— Eu o machuquei, Benjamin?
— Estou irritado. O olhai' preocupado de Sophie encontrou o dele,
poças de luz e cor cambiantes, que o levaram de volta aos balsâmicos dias
no Caribe e o encheram de uma nova quentura que se espalhou por suas
veias como um doce xarope a lhe acalmar os extremos da própria alma.

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Desviando-se, Benjamin correu os dedos pelos cabelos. Assustava-o


pensar que aquela mulher impertinente não apenas lhe penetrara a pele,
mas que poderia de fato gostar dele. Não podia ser. E pôs a culpa por tais
pensamentos insanos na dor física.
— Estou bravo, cocando por inteiro, mas estou bem.
— Deveria se deitar. Benjamin fez que não com mais força que o
necessário.
— Pedi um banho e sal.
— Eu lhe darei banho.
— Não, de jeito nenhum!
A explosão de indignação a assustou, e Sophie se encolheu. Seus
notáveis olhos se arregalaram de espanto. Mesmo assim, endereçou-lhe
um sorriso que destinaria a um santo.
— Colocarei compressas de sal sobre as brotoejas e...
— Não preciso de enfermeira!
Benjamin levantou-se e caminhou até o lado oposto, o que lhe custou
apenas quatro passadas.
— Sou muitíssimo capaz de me banhar, porém pedi o banho para
você. O sal é para mim.
Sophie levantou-se. Fitou-o como se ele tivesse acabado de matar
um dragão por ela.
— Você defendeu minha honra e me pediu um banho, tudo no
mesmo dia? Como posso retribuir?!
— Poderia renunciar a seu voto de castidade. "Como?! Por que eu
disse isso?!"
Sophie ficou vermelha como um pimentão.
— Logo quando julguei que pudesse ser um homem admirável, você
se revela um patife!
Com esgar de nervoso, Sophie rumou para a bancada com a bacia.
— Há água na jarra. Banharei seus braços agora e colocarei o sal
quando chegar.
A idéia de ser tocado por ela de novo deixou Benjamin tenso. Suas
necessidades reprimidas por tanto tempo ficavam mais fortes a cada
minuto. Queria Sophie. Desejava-a naquele instante. E ela era a última
mulher no mundo que poderia ter.
— Tomarei conta de mim mesmo. — A frustração transparecia
quando falava. — Sempre cuidei de mim.
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— Tem uma faca, Benjamin?


— Sim. — Ele arqueou uma sobrancelha, desconfiado.
— Gostaria que me emprestasse. — E Sophie se aproximou do leito.
Uma arma nas mãos de uma garota de calção obrigou Benjamin a
indagar:
— Para quê?
— Quero cortar minha anágua.
— Agora? Ela suspirou.
— Sim.
Com relutância, ele tirou a faca da bota e estendeu-a a Sophie.
— Obrigada. Agora, sente-se.
— Isso soa como uma ordem...
— E é.
Benjamin sentou-se na beirada do colchão e ficou a observá-la com
apreensão crescente.
Sophie ergueu a saia que usava sobre o calção e começou a cortar
pedaços da anágua fora, criando um tipo de atadura. Depois de submergir
o tecido na água, trouxe a bacia e as bandagens úmidas para a mesa-de-
cabeceira.
Com os músculos retesados, como se se preparasse para uma luta,
Benjamin tomou coragem para enfrentar o toque dela. Mas não poderia
fazer nada com respeito ao martelar da pulsação, que disparara mais uma
vez.
Sophie enxaguou e espremeu a cambraia macia, que colocou sobre o
braço direito de Benjamin.
— Está melhor?
Cocava como o inferno, mas pelo menos passara a ser uma coceira
fria.
— Talvez devêssemos esperar até que chegue o sal. — Era um pouco
desconcertante ter Sophie a cuidar dele. Porém seu protesto caiu em
ouvidos moucos.
— Não, não devemos nos demorar. Este é o pior caso de hera
venenosa que já vi.
O protesto de Benjamin foi interrompido por uma batida na porta.
Hank e clientes da estalagem tinham chegado com uma tina e
barricas de água. Uma mulher que parecia tão robusta como o taverneiro

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apareceu com uma bandeja coberta. Sophie empurrou a bacia para o lado
para dar lugar ao jantar.
Com agradecimentos por ter colocado Cadê em seu devido lugar, os
homens encheram a tina de cobre e saíram.
Benjamin descobriu a bandeja. Duas tigelas de um grosso ensopado
fumegante, duas canecas de cerveja e um saco de sal. Poderia imaginar as
conversas lá embaixo sobre o que ele e Sophie iriam fazer com o sal.
Ela olhou para a tina.
— Ou nossa comida vai ficar fria ou a água da tina.
— Entre no banho enquanto ainda está quente. Eu descerei.
— Se comermos primeiro, a tina esfriará, e você poderá tomar um
banho de imersão depois que eu puser o sal.
Benjamin não entendia as mulheres. Aquela em particular.
— Achei que queria banhar-se.
— Você precisa mais que eu.
— Perdão?
Ela endereçou-lhe um sorriso encantador.
— Por causa das coceiras.
Na verdade, os resultados do encontro com a hera venenosa lhe
davam mais tristeza que o queixo dolorido ou o olho inchado. Naquele
instante, Benjamin faria tudo para que sua pele sarasse, porém não
cederia no orgulho.
— Posso esperar, Sophie. Vamos comer.
— Você é muito teimoso.
E aquela era a mais geniosa das jovens. Sophie se sentou na beira da
cama, e Benjamin puxou a cadeira, que tinha uma perna mais curta pelo
menos uns cinco centímetros que as demais.
Sophie espiou dentro da caneca.
— Você pediu cerveja?
— Já bebeu cerveja antes?
Claro, ela nunca bebera. Ele pedira sem pensar.
— Não, bebo chá ou leite.
— Então talvez não devesse começar agora. Sorrindo, Sophie ergueu
a caneca.
— Mas é uma oportunidade para experimentar algo novo que poderia

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usar num futuro romance.


Benjamin ficou a observá-la sorver a bebida.
— Gosto disto — ela anunciou.
Era o que ele temia. Uma linha de espuma dançava sobre o lábio
superior de Sophie. Primeiro, as amoras. Agora a cerveja vinha descansar
sobre aquela boca sedutora. Se pelo menos pudesse lamber as bolhas...
— A maioria das mulheres conversa sobre bebês, não sobre livros. —
Benjamin baixou o olhar para o ensopado, uma área mais segura. Pensou
se deveria se preocupar pelo fato de Sophie beber aquela quantidade de
cerveja.
— Sou diferente da maioria delas.
— Eu diria que sim. — E emendou: — Seria uma pena se vivesse sua
vida apenas para que pudesse escrever sobre ela algum dia.
Sophie lançou-lhe um olhar de soslaio. —Jamais faria uma coisa
dessas — contestou com frieza, antes de atacar o ensopado com a fome de
um barqueiro.
Depois de alguns minutos em que apenas o som das coIheres se
ouvia, Sophie parou para outro gole de cerveja... e mais conversa.
Seus olhos de sereia cravaram-se nos dele.
— Por que pediu um só quarto?
Benjamin colocou a colher no prato. Vários fios dos cabelos sedosos
dela escapavam do coque na nuca para lhe emoldurar as faces. Analisava
as mechas, fascinado, ao responder:
— Se estivéssemos em quartos separados, eu não poderia garantir
que você ficaria sossegada. Detestaria acordar de manhã e descobrir que
sumiu.
— Não confia em mim...
— Não. — Benjamin piscou-lhe, malicioso, ao estender a mão e
colocar alguns fios atrás da orelha dela.
Inclinando a cabeça, Sophie cruzou os braços e o acusou:
— Sua namorada de Nantucket partiu-lhe o coração e você jamais
será capaz de confiar numa garota de novo.
— Martha feriu meu orgulho, mais que meu coração. Se eu a amasse
mesmo, teria feito dela minha esposa mais cedo, não a deixaria esperar. —
Benjamin jamais admitiria ter se magoado, nem a impossibilidade de
confiar de novo numa mulher.
— Então, por que não confia em mim?

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— Estamos atrás da mesma coisa, nós dois, e você está louca para
assumir riscos. Se algo ruim lhe acontecer, o almirante me fará carregar
urinóis.
— Embora reaver meu diário signifique tudo para mim, nada significa
para meu pai, a não ser salvar sua reputação.
E não escrevi sobre ele em especial. Fui esperta e descrevi o
almirante com outro tipo de caráter.
Um desejo avassalador de pôr fim à discussão tomou conta de
Benjamin. Se tomasse Sophie nos braços, comprimisse seu corpo contra o
peito, baixasse a boca sobre a dela e a beijasse com ardor... ela poderia
parar de tagarelar.
E talvez parasse de tentar conseguir-lhe a ajuda. E até mesmo de
pensar naquele diário por um glorioso momento.
Benjamin se agitou com aquela solução. Suas entranhas se
inquietaram e se aqueceram. A virilha esquentou. Todavia, tomá-la seria
perdê-la. Perderia tudo por que lutara até então.
Deu um salto, e empurrou a cadeira para trás.
— Vou descer para jogar cartas. Você terá bastante tempo para
tomar seu banho.
— Mas... e suas coceiras?
— Jogar baralho irá me distrair.
Ele esperava por isso, com ardor. Por um instante, ao se imaginar
enchendo Sophie de beijos, a coceira constante fora esquecida.
Rumou para a saída.
— Não importa o que faça, não vá se cocar, Benjamin.
— Não espere acordada, Botão-de-ouro.
Benjamin estava mais preocupado com outras coisas que com as
brotoejas. A dor que experimentava nada tinha a ver com a hera venenosa
e tudo com seu autocontrole.
Fazer a coisa certa e honrada algumas vezes era penoso...
Instantes depois de Benjamin sair, Sophie despiu o calção manchado
de grama, jogou a túnica para o lado, tirou o corpete, as saias e anáguas e
entrou na tina tépida.
A despeito de seu desapontamento, um banho jamais lhe parecera
tão maravilhoso como aquele, no pequeno aposento, à luz de um lampião
bruxuleante.
Teve esperança de que Benjamin a beijasse. No fundo, vinha

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ansiando que ele lhe desse outro beijo, e seu desejo não vinha de
interesse literário. Nem mesmo pensara em descrever uma sensação tão
pessoal num romance.
Porém, julgou que Benjamin pudesse ter razão. Será que ela caíra no
hábito de viver só para o que poderia escrever algum dia? "Misericórdia!"
Ao afundar na água, recordou-se de Abigail. Até mesmo aquele
quarto pobre era melhor que o casebre em que sua antiga criada estava
confinada. Sophie se afligia com a segurança e o bem-estar de Abigail. Ao
mesmo tempo, tinha a sensação de que a jovem não fora honesta com ela.
Admirava a aparente devoção da garota por Fletcher Thurman e sua
coragem de optar por ter um filho, mas Sophie suspeitava que as coisas
estavam interligadas. Talvez Thurman, o pai da criança, tivesse persuadido
Abigail a furtar seu caderno.
Um complô improvável! Bebera cerveja demais, viajara muito e por
muito tempo nos últimos dois dias.
Como não estaria exausta quando suas emoções brincavam de
gangorra de uma hora para outra? Se pelo menos pudesse convencer
Benjamin a trabalhar com ela na recuperação do romance...
Detestava enfrentar um homem que lhe tirava a respiração sempre
que se aproximava. Isso a deixava numa tremenda desvantagem. Tinha de
sobrepujá-lo em astúcia, e no entanto seu corpo conspirava contra ela,
ganhando vida de uma maneira excitante sempre que Benjamin se achava
por perto.
Seu pulso disparava como o de uma menina de escola quando
Benjamin lhe endereçava aquele sorriso enigmático, quando encontrava
aqueles profundos olhos azuis cintilantes.
Contra sua vontade, Benjamin Swain despertava-lhe vontades que só
ouvira descritas nas palavras de Flora. A ousada garçonete insinuara a
necessidade de a mulher ser preenchida por um homem, tal como uma
jarra vazia que devesse ser cheia de cerveja forte.
Flora avisara Sophie para ficar atenta a um anseio misterioso, um
calor derretido, para prestar atenção à insistente necessidade de tocar um
rapaz ou de ser apertada contra um peito. Sophie rira, sem acreditar que
algo semelhante fosse possível. Até que o arrogante marujo Swain a
conquistou com uma piscadela e um sorriso de viés.
Porém, se não encontrasse seu diário depressa, teria de se casar com
o capitão Ferguson, o que lhe parecia mais do que nunca um destino
terrível.
Abigail dobrava a roupa lavada com sua mãe, à luz do lampião.
Sentia-se tão fraca que receava que seus ossos pudessem se quebrar. No
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entanto, sua mente não se fixava no serviço monótono; seus pensamentos


estavam em outro lugar, com Fletcher.
Com toda a probabilidade eleja teria chegado a Annapolis naquele
horário. Logo o almirante Harrington receberia o bilhete que ela escrevera
exigindo pagamento pela devolução do diário de Sophie. Em vez de sentir
excitação ou alívio por seu calvário estar prestes a terminar, Abigail estava
triste acabrunhada.
A Srta. Harrington fora tão bondosa com ela! Mesmo naquele dia, a
despeito do evidente fato de que Abigail concebera um filho fora do
casamento, oferecera-se para levá-la do volta para casa.
Na certa a filha do almirante a perdoaria se soubesse que Abigail não
tivera escolha. Fletcher se recusara a desposá-la ii menos que concordasse
com o esquema.
Seu erro fora lhe contar sobre o diário em primeiro lugar.
Encontrara o romance um dia, no meio de outras coisas, quando
limpava o armário de Sophie. Embora Abigail tivesse lido apenas umas
poucas páginas de As Românticas A venturas de Fifi LaDeux, uma Mulher
Solteira, ficara ao mesmo tempo chocada e divertida. Semanas depois,
após uma noite de bebedeira proibida com Fletcher, Abigail confidenciou-
lhe o segredo de Sophie. Entre estouros de gargalhadas, descreveu-lhe o
conteúdo.
— Onde está seu namorado?
A voz da mãe a arrancou dos devaneios. Abigail pôs as lamentações
de lado para responder:
— Fletcher está fora da cidade a negócios.
— Boa coisa não pode ser.
A Sra. Grant nunca fizera esforço para esconder que não gostava de
Fletcher.
— A senhora verá, mamãe. Quando ele chegar, iremos nos casar.
— Quantas pobres garotas ouviram essa história quando seu homem
foge?
— Fletcher não está fugindo de mim. Voltará com o dinheiro para
comprar uma casinha.
A mãe fungou.
— Guarde bem minhas palavras. Se Fletcher Thurman colocar a mão
em um tostão que seja, nunca voltará, queridinha.
Abigail a olhou. Idosa e acabada antes da época, o rosto da mãe e os
olhos sem vida refletiam um estoicismo entranhado. Nunca sorria, e

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deixava transparecer uma exaustão além deste mundo, bem como um


cinismo amargo demais para se engolir.
E estava errada sobre Fletcher. Ele jamais pegaria o dinheiro e
sumiria, deixando Abigail para trás.
Não. Nunca!
Entretanto, Abigail conheceu um momento de dúvida e, com ele, a
verdade.
Não poderia confiar em Fletcher Thurman.

Capítulo XII

Benjamin jogou cartas até quando conseguiu manter os olhos


abertos. Fez perguntas e obteve algumas respostas durante a longa e
amistosa partida de pôquer. Quando ninguém estava olhando, ele
esfregava os braços, o que não era a mesma coisa que cocar. Para o caso
de Sophie querer saber, mais tarde.
Por volta da meia-noite, esperava que Sophie tivesse dormido e ele
pudesse descansar também. Disse boa noite, embolsou os ganhos e subiu
as escadas.
Uma luz fraca, bruxuleante, brilhava pela fresta debaixo da porta. Na
esperança de que ela houvesse adormecido com o lampião aceso, entrou
silencioso no aposento. Depois de fechar a porta atrás de si, ergueu os
olhos.
Sophie estava sentada na cama. Escrevendo!
— Benjamin! — Enviou-lhe um sorriso encantador.
Ele não podia garantir se ela sorria de alívio ou de felicidade. Sabia
apenas que, como que por encanto, toda sua irritação desapareceu.
— O que é isso? — Apontou para o livro de capa de couro marrom no
colo dela.
— Eu estava preocupada com você — ela afirmou, ignorando a
indagação.
— Isso é o que eu penso que é?
— É um diário.
— O que está fazendo?
— Escrevendo, ora! Sempre carrego um lápis e um caderno comigo.
Benjamin jogou as mãos para o alto.
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— Não aprendeu nada?!


— Sim, aprendi. — Sophie endireitou-se e se sentou como uma
severa e comportada professora. — E tenho certeza de que você terá paz
de espírito ao saber que estou trocando os nomes à medida que escrevo e
disfarçando também meus personagens. Nenhum se parece com alguém
que eu conheça.
Contanto que nenhum fosse como ele, pensou Benjamin. Porém,
como poderia saber?
Ondas brilhantes de cabelos raiados de sol caíam pelos ombros de
Sophie. Sua pele reluzia em rosa e branco sob a luz do lampião. Seus
lábios tinham um lustro úmido e rosado. Em contraste com o diabrete que
Benjamin sabia que ela poderia ser, Sophie parecia o modelo de recato, de
uma doce e encantadora inocência.
Vestira-se depois do banho e mais uma vez usava seu calção
entremeado de renda. Porém, por uma questão de conforto sobre a
modéstia, deixara os botões de pérola da túnica desabotoados.
Benjamin viu de relance a combinação de cambraia abaixo de uma
fenda. E ficou a imaginar se Sophie sabia que imagem perturbadora
apresentava. Será que ela fizera isso de propósito para distraí-lo? Se assim
fosse, tivera sucesso.
— Creio que meu segundo romance será melhor que o primeiro —
Sophie afirmou, com a confiança de uma Charlotte Brontê.
Sua tendência ao exagero era estarrecedora.
— Deixe-me ver.
— Não! — Saltando do colchão, Sophie escondeu o caderno nas
costas. Seus olhos brilhavam, desafiadores.
Será que ela acreditava por um minuto que poderia deixar o diário
longe dele? Benjamin o tiraria dela antes que a petulante pudesse piscar.
— Dê-me.
— Não está pronto para outros lerem.
— Sophie, foi um longo dia. Tenho uma pálpebra inchada, o queixo
dolorido e braços que cocam como o diabo. Não tenho paciência. Dê-me a
droga desse diário!
— Não!
"Bruxinha!" Um sorriso brincava no canto de sua boca. Quando
Benjamin avançou sobre ela com a intenção de tomar-lhe o caderno, ela
correu para o outro lado.
— Acha que pode escapar de mim neste lugar minúsculo? Sophie

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deixou pender a cabeça, como quem está ponderando. E em seguida,


meneou o corpo, provocante.
— Talvez...
Nenhum aspirante jamais lhe tentara a paciência da forma como
Sophie Harrington fazia. Os músculos de Benjamin enrijeceram. O
estômago, os braços, os ombros ficaram duros preparando-o para a luta.
Estendeu a mão.
— Sophie, dê-me isso.
Os olhos dela cintilaram quando fez que não com a cabeça.
De dentes cerrados e estreitando os olhos, Benjamin avançou um
passo.
Com a rapidez de um beija-flor, Sophie desviou-se, escapando.
Para horror de Benjamin, ela se enfiou debaixo da cama. Ele se
ajoelhou no chão.
— Sophie, saia daí!
— Venha me pegar!
Ela sabia muito bem que Benjamin era grande demais para entrar ali.
— Não tenho o costume de brincar desses joguinhos.
— Perdeu uma enorme diversão enquanto esteve ocupado velejando
e caçando baleias.
O conceito de Sophie de diversão não batia com o dele.
— Saia daí, já disse! Ela espirrou.
— Está empoeirado...
Benjamin podia ver os contornos dela no escuro. Estendeu um braço.
Sophie se esquivou de seu alcance. Rogando uma praga, ele ficou de pé e
empurrou a cama contra a parede para certificar-se de que Sophie só
tivesse um caminho para escapar.
— Não é justo!
— O que sabe sobre justiça? — esbravejou Benjamin. Ajoelhou-se e
em seguida se deitou no solo. Escorregou
para debaixo do estrado tanto quanto possível. Ao agarrar o que
esperava que fosse o braço dela, Benjamin a puxou. Sophie saiu às
gargalhadas.
Gargalhadas!
Ela não o empurrou nem mesmo quando metade do peso
considerável de Benjamin se atirou sobre ela. Continuou a rir baixinho, um

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som como de um sino doce e suave a ecoar por uma campina.


Benjamin ergueu o torso e encarou Sophie. Sua túnica se abrira,
revelando a tonalidade cremosa e delicada dos seios sob a fina combinação
de cambraia. Ele reteve a respiração na garganta.
Sophie fitou-o dentro dos olhos, e a alma de Benjamin se afogou nas
profundezas perigosas daquelas águas-marinhas. Como uma bela
miragem, ela lhe seduzia o coração para praias rochosas.
Benjamin duvidava que pudesse se salvar. Sentiu-se invadido por um
calor intenso que ardia em labaredas, imobilizado por um desejo profundo
e exigente diferente de qualquer um que conhecesse. A masculinidade
dolorida insistia por alívio.
Contudo, aquela era Sophie, pelo amor de Deus! Fora do alcance,
portanto.
Sophie Harrington despertava aqueles poderosos sentimentos nele. E
Benjamin não poderia saciar-se, a menos que estivesse disposto a morrer.
O almirante o mataria. Benjamin seria despachado de volta a Nantucket
dentro de um caixão, sem nada. Sem uniforme, sem enterro naval no mar.
Um lento sorriso abriu-se nos lábios tentadores de Sophie para
acentuar a covinha a que ele não conseguia resistir. Benjamin a desejava.
Sim, ele a desejava. Queria provar-lhe os lábios, saborear a textura
da pele daquele pescoço macio.
Ansiava por explorar com a língua o rico vale da cavidade daquela
boca sedutora. Respirou fundo.
— Consegui fazê-lo esquecer a hera venenosa? Hera venenosa?
— A coceira continua Benjamin? Coceira? Nada cocava. Tudo ardia!
— Talvez se tomar um banho, você se sinta melhor. Deixei a água na
tina e adicionei uma boa porção de sal.
Só um banho gelado faria Benjamin melhorar.
— Tomar um banho tendo você no quarto?
— Fecharei meus olhos e irei dormir.
Benjamin rolou para o lado e ficou de pé. No futuro, manteria
distância de Sophie. Ao tocá-la, ele requeimava todo. Aprendera a lição
mais de uma vez. Por enquanto, ela continuaria com o diário.
— Não, nada de banho, Sophie.
Dividir o mesmo aposento os colocara numa situação
comprometedora. Benjamin se recusava a piorá-la, não importava o
quanto o corpo lhe cocasse ou doesse.

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— Seu pai me mandará para o Ártico num barco a remo se descobrir.


— Vai achar o banho calmante, e papai jamais saberá. — Sophie
abotoava a túnica, tarde demais para proclamar modéstia.
O almirante não iria saber? Se pelo menos Benjamin pudesse ter
certeza...
Ajudou Sophie a se levantar. Ela se jogou na cama no mesmo
instante, o caderno comprimido contra os seios.
— Apague o lampião. Ela fez o que ele pedia.
A tina estava num canto escuro.
Benjamin tinha orgulho de sua anatomia. A natureza o abençoara.
Comparado à maioria dos homens, possuía um físico admirável. Sophie, no
entanto, não deveria estar no mesmo quarto que um homem nu.
Fitando de relance para certificar-se de que ela não o observava,
Benjamin despiu-se depressa e entrou na tina.
A água, mesmo fria e usada, pareceu-lhe ótima. Grande demais para
a velha banheira de cobre dobrou os joelhos.
A água mal lhe cobriu a cintura. Porém, tal como previra Sophie, era
um bálsamo para seus braços. Depois de metade do dia no lombo de um
cavalo, de ficar agachado no meio de hera venenosa, de lutar com um
bêbado e jogar muitas partidas de pôquer, necessitava de um banho.
— O que ficou fazendo enquanto esteve lá fora? — Sophie quis saber.
O murmúrio na escuridão assustou Benjamin. Ficou tenso c
reclamou:
— Sophie, você prometeu dormir.
— Tive medo que alguma coisa lhe acontecesse. Que se metesse
numa outra briga.
— Eu não me meto em brigas.
— Estava jogando dardos?
— Pôquer.
O lampião se acendeu. Benjamin mergulhou o quanto pôde.
— Ganhou?
— Uns poucos dólares. Você está de olhos fechados?
— Não, porém mal consigo enxergá-lo. Nunca imaginei que fosse tão
acanhado.
— Estou pensando em você.
— Protegendo-me de novo?
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— Sim.
Benjamin olhou para o sabonete perfumado que esfregava no peito e
no ventre. Que graça. Iria ficar cheirando como uma rosa. Como uma
mulher.
— Descobri algumas coisas enquanto jogava Sophie.
— Como o quê?
— Fletcher Thurman, o namorado de Abigail, não é boa coisa. Parece
que não trabalha e tem uma reputação de fazer negócios escusos.
— Acha que ele forçou Abigail a pegar meu diário?
— É possível.
Ela jogou o lençol de lado e escorregou para fora do leito.
— Aonde vai?
— É difícil conversar de longe. — Sophie se aproximou dele. — Só
cheguei mais perto.
— Está perto demais.
O sorriso que Sophie esboçou o deixou preocupado. Confundiu-o. Se
não fosse absurdo, concluiria que ela o provocava.
No entanto, uma mulher que pretendia continuar tão casta e pura
como a neve recém-caída não brincaria com as necessidades de um
homem. Benjamin reforçou sua vontade. Se não quisesse ser expulso da
Marinha, era melhor proteger a virgindade de Sophie.
Era uma lástima, contudo. Ela fora feita para o amor. Benjamin vira
atrizes no palco que Sophie faria enrubescer. Construída com as linhas
esguias de um veloz barco a vela, suas curvas sedutoras, a cintura fina, os
seios fartos e orgulhosos prometiam prazeres incríveis. Todavia, poderia
ela prezar um simples mortal mais que sua própria independência?
Benjamin duvidava.
— Vai procurar Fletcher Thurman amanhã, antes de voltarmos para a
casa de Rosalind?
— Não tenho idéia do que irei fazer Sophie. — O sabonete
escorregou-lhe da mão. Ao tatear para procurá-lo, a barra perfumada
deslocou-se para debaixo de seu traseiro. Tentou pegá-la, mas quando
ergueu a cabeça Sophie estava a um passo da tina. — O que faz aqui?
— Você tem um belo corpo... Ele juntou os joelhos depressa.
— Volte para a cama.
— Sabe quantas pinturas existem de mulheres nuas, e como são
poucas aquelas de homens nus?

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— O que isso tem a ver comigo?


— Uma moça deve se educar onde e quando tiver a oportunidade.
— Sua curiosidade vai matá-la um dia, Sophie. Juro que se não se
afastar...
— O que fará? Pulará da tina e me empurrará para trás? — E
irrompeu numa risada cristalina, um riso contagioso que obrigou Benjamin
a sorrir.
Ele cedeu e rendeu-se a uma gargalhada, uma luz de alegria a lhe
brilhar nos olhos. Como poderia um homem se defender dos modos de
Sophie Harrington? Poderia sugeri-la como a próxima arma secreta da
Marinha dos Estados Unidos.
— Por favor, volte para a cama e eu sairei daqui. — Antes que fosse
tarde. Não iria descartar a hipótese de que ela seria capaz de se enfiar na
banheira com ele.
Porém o olhar de Sophie estava afixado em seu tórax. O tom de voz
suavizou-se até uma nota sombria:
— Onde você... como arranjou essas cicatrizes? Embora Benjamin
não costumasse gastar um pensamento com isso, ele sabia que, para
alguém que olhasse para seu peito nu pela primeira vez, o tecido
intumescido e raiado seria uma coisa feia de se ver.
— Fiquei no caminho de um arpão.
— Pelo jeito disso, você deve se dar por feliz por estar vivo.
Ele apanhou a toalha.
— Estava no lugar errado na hora errada com um rapaz novo
empunhando o arpão.
— Benjamin tinha poucas dúvidas de que repugnara Sophie.
Ela não deveria tê-lo inspecionado como se ele fosse um pedaço de
bife no mercado.
— Fico contente de que não tenha sido morto, Benjamin.
— Obrigado, eu também.
— E feliz que tenha se juntado à Marinha em vez de continuar como
baleeiro. E mais feliz ainda que tenha sido designado para a Academia
Naval.
— É bom que um de nós se alegre com isso.
— Caso contrário, eu não o teria encontrado, nem conhecido. E estou
muito satisfeita por conhecê-lo, marinheiro Swain.
Benjamin não poderia deixar de responder à seriedade de Sophie.
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Olhou pelo pequeno espaço que os separava. Viu-a nas sombras a fitá-lo
com indisfarçável admiração. E naquele momento ele soube que estava
perdido. Agarrou a toalha e, encarando-a, ergueu-se na água.
— Foi ótimo conhecê-la também, Sophie Harrington... romancista.
O ambiente mergulhou num silêncio tão profundo que Benjamin
poderia ouvir o próprio coração bater. Incapaz de se mover ficou ali,
pingando na tina como algum velho demente. Apenas a toalha o cobria do
abdome às partes íntimas.
Sophie virou-se e seguiu para o leito. Sem mais uma palavra, apagou
o lampião.
— Devo fazer minhas preces agora. Boa noite, Benjamin.
— Boa noite, Sophie.
Logo cedo, na manhã seguinte, Sophie voltou com Benjamin até a
residência de Abigail para outra visita.
— Você vai ficar do lado de fora. Desta vez, eu mesmo interrogarei a
moça — disse ele, ao se aproximarem do casebre.
— Acha que arrancará alguma informação que eu não conseguiria?
— Sim. Aquela confiança a irritou.
— Por que não posso estar presente quando interrogá-la? Dê-me
uma boa razão.
— Eu estava lá ontem quando a inquiriu?
— Não. Mesmo assim, acho que conseguiremos mais se trabalharmos
juntos.
Uma batida na porta não recebeu resposta. Benjamin rumou para os
fundos, seguido de perto por Sophie.
A Sra. Grant trabalhava numa tina enorme, lavando roupas no
esfregador, com os nós dos dedos ralados.
Benjamin aproximou-se com seu sorriso desconcertante.
— Bom dia, Sra. Grant. Ela o encarou com certo cinismo.
— Bom dia...
— Vim ver sua filha.
— Abigail não está aqui.
— Sabe onde eu poderia encontrá-la?
— Não. Fugiu. Foi atrás daquele sem-vergonha, Fletcher Thurman, eu
suponho.
Sophie postou-se ao lado de Benjamin.
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— Sabe para onde Fletcher foi? A sra. Grant fez uma careta.
— Não, e não me importa. O cretino prometeu que traria dinheiro. E
que compraria uma casa e se casaria com minha menina. Soprou fumaça
ao vento, e Abigail, aquela estúpida, acreditou nele.
— Abigail não é estúpida.
— E que tipo de dama é a senhorita?! Onde está sua acompanhante?
— Não preciso de acompanhante. — Sophie empinou o queixo. — Sou
uma mulher independente.
— Ah! — A mãe de Abigail jogou a cabeça para trás, e uma mecha de
cabelos grisalhos lhe caiu sobre os olhos. — Não, Srta. Harrington, não é.
Olhe para mim e verá uma mulher independente. Observe-me bem de
perto. Jamais houve nenhum homem para me sustentar, nem a meu bebê.
Nunca. Ele morreu antes de Abigail nascer.
O nó na garganta de Sophie cresceu como uma bola. Ela não sonhava
com o tipo de independência que a lavadeira conhecia, jamais considerava
vir a ter uma vida assim.
— O almirante Harrington me designou para proteger a Sra.
Harrington nesta visita — disse Benjamin. — Para todos os efeitos, sou eu
seu acompanhante.
A Sra. Grant afastou os fios brancos dos olhos com as costas da mão.
— E quem irá proteger a jovem dama de você? Benjamin reagiu com
um franzir de testa e um prolongado pigarrear.
— Pode ter certeza de que Sophie Harrington está segura comigo.
A Sra. Grant não pareceu impressionada.
— Não imagina onde Fletcher ou sua filha possam estar?
— Não, senhorita, e que bons ventos os levem.
A expressão de Benjamin permaneceu serena ao se despedir da
amarga mãe de Abigail.
— Obrigado por sua ajuda, Sra. Grant. Tenha um bom dia. — Com
um ligeiro gesto de cabeça, virou-se e saiu do quintal. Sophie correu para
alcançá-lo.
— O que faremos agora?
— Por que continua usando o pronome "nós"? — ele perguntou, sem
parar. — Você e eu não estamos ligados.
— Seguimos atrás da mesma coisa.
— Por motivos diferentes. Eu estou comprando minha liberdade, não
a sua. Procure se lembrar disso.
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— O que é de um extremo egoísmo!


— É para seu próprio bem, Sophie. Com um marido rico, você terá
um futuro seguro. Poderá fazer compras até seu armário estourar.
— Acha que sou tão fútil que só ligo para isso? Esperava que você
fosse diferente dos demais. Julguei que fosse mais arguto, mais sensível.
— Agora sabe a verdade. Sou apenas um homem.
— O que você vai fazer? Alcançaram os cavalos.
— Estou me preparando para partir de Falls Church.
— Muito bem, iremos juntos para Georgetown. Rosalind me ajudará a
pensar no que fazer a seguir. Ela é uma amiga. Benjamin ajudou-a a
montar. Seu sorriso zombava da determinação de Sophie.Naquele
instante, Sophie compreendeu que precisava de Benjamin Swain. Mais do
que ele dela.

Capítulo XIII

Onde esteve? Fiquei muito preocupada! Rosalind correu para


cumprimentar Sophie punido ela entrou no vasto saguão de mármore da
mansão dos Montrose. Cansada e um tanto irritada, Sophie não tinha
vontade de explicar a prolongada ausência. O desejo de seu coração no
momento incluía um banho quente e um longo cochilo numa cama macia.
—Peço-lhe desculpas, Rosalind. Não queria causar preocupação.
—Não é de admirar que seu pai tenha insistido para que o marinheiro
Swain ficasse de guarda sobre você!
—Por favor, perdoe-me. — Sophie segurou as mãos da amiga.
Estavam frias e eram ossudas. — Eu pretendia voltar ontem, mas
aconteceu um atraso inevitável. Você sabe que eu nunca faria algo de
propósito para alarmá-la.
Nunca fez antes. — Rosalind baixou os olhos e tirou as mãos das de
Sophie. — Mas eu falhei com você. O que quer dizer?
Embora tenha feito o melhor para retê-lo, o marinheiro partiu atrás
no mesmo instante em que você saiu.
— Ele me achou.
— Poderá me perdoar? Eu queria que ele ficasse. Sophie sorriu-lhe.
— Claro que está perdoada!
— O marinheiro não a magoou, não é?
— Não seja bobinha. Benjamin jamais poderia magoar alguém.

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As sobrancelhas de Rosalind se juntaram.


— Benjamin?
— O marinheiro Swain — Sophie se corrigiu depressa.
— Achei que você estava tentando fugir dele.
— Acontece que ele se mostrou útil.
— Fico contente por saber que a companhia dele não interferiu em
sua busca. Tudo está bem quando acaba bem.
— Já ouvi dizer.
— Encontrou sua criada? — Rosalind aproximou-se, baixando o tom
até um grau quase inaudível. — Abigail estava com seu diário? Era mesmo
a ladra?
Sophie contara a Rosalind que seu diário sumira, mas não que
continha um romance. Na presente condição, não se arriscaria a ser
ridicularizada por ela. Dissera a Rosalind que o caderno documentava seus
pensamentos particulares, e saber que poderia ser lido por outros a
aborrecia muito.
— Abigail negou saber alguma coisa a respeito do desaparecimento
de meu diário.
— Quer dizer que você saiu à caça do ganso selvagem!
— Não, eliminei Abigail como suspeita.
Rosalind deu um passo atrás. Inclinando a cabeça, esfregou as mãos.
— Bem, se você perdesse o baile de máscaras, eu não poderia
perdoá-la, Sophie.
— Baile de máscaras?
— Sim, hoje à noite! — Esboçou um largo sorriso. Rosalind parecia
encantada consigo mesma. Os cachos balançaram dos lados de sua cabeça
com o que parecia um tremendo entusiasmo. — Os bailes de máscaras
estão na moda de novo em Georgetown.
— Sério? — Perplexa, Sophie percebeu que preferiria lavar roupas
para a sra. Grant a comparecer a uma festa naquela noite.
— É uma reunião às pressas que organizei assim que soube que
você estava chegando. Mandei convites para todos os meus conhecidos,
mas sei que há de compreender que, com tão pouco tempo, nem todos
poderão vir.
A perspectiva de dormir num colchão macio fora tudo o que
mantivera Sophie ereta na sela na viagem de retorno de Falls Church.
Imaginar-se tendo uma boa noite de descanso e retornando a Annapolis ao

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alvorecer da manhã seguinte mantivera sua mente desperta. Continuar a


busca pelo romance era tudo o que lhe importava. E o tempo escasseava.
Se não encontrasse Fletcher Thurman e Abigail antes de Benjamin, e
recobrasse o livro, seu sonho terminaria.
— Rosalind, você é tão gentil e imaginosa, mas eu não tenho um
traje apropriado. Receio não poder comparecer.
— Pois tenho o traje perfeito para você. É um que usei para uma
noite de gala vários meses atrás. Você o encontrará à espera em seu
quarto.
O primeiro impulso de Sophie foi explodir em lágrimas. Em vez disso,
fingiu alegria.
— Você pensa em tudo. Não sei o que dizer.
— Não precisa dizer nada, mas eu gostaria que desse um jeito de o
marinheiro Swain comparecer ao evento também. Providenciarei um traje
para ele.
— Não se preocupe com isso. — Sophie suspirou. — Aonde eu for, o
marinheiro vai. Com Benjamin Swain, meu pai arranjou um cão de guarda
para mim, para certificar-se de que não faça nada para mortificá-lo.
— Se eu fosse você, não reclamaria por ter um cão de guarda tão
bonito.
— Benjamin Swain é um arrogante.
— Alto e de ombros largos. Sophie bufou de impaciência.
— Ele acredita ser o mais esperto dos homens.
— Tem os olhos azuis ou pretos?
Os olhos de Benjamin eram azuis, cor de safira, que cintilavam,
provocavam e seduziam. Como poderia uma mulher não notar, não saber
ou mesmo esquecer que as íris de Benjamin eram azuis?
— Rosalind, tudo o que precisa fazer para assegurar a presença dele
é dizer ao marujo que eu irei a seu baile de máscaras.
— Certo. — Rosalind bateu palmas, encantada. — Mal posso esperar.
Nós nos divertiremos, hoje!
Sophie arrastou-se para o quarto, onde Flora a aguardava para
ajudá-la a se banhar e.se vestir.
— Achou Abigail?
— Sim, mas ela negou que tenha pegado meu diário. E quando
voltamos para interrogá-la, havia desaparecido.
— "Nós" deve significar que Benjamin Swain foi com você, Flora

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imagina. É a única mulher que poderia parecer aborrecida por ter aquele
marujo lindo como acompanhante.
— Não fiquei aborrecida o tempo todo — admitiu Sophie, baixinho.
Terminou o banho de certa forma descansada, mas logo depois via-se
de pé em frente ao espelho, com Flora drapeando e prendendo o traje em
estilo de toga emprestado por Rosalind.
Por fim, a garçonete recuou para apreciar seu trabalho.
— Flora diz que o vestido está perfeito.
— Acho que sim. — Sophie lançou um olhar de relance para o
espelho. — Mas não pareço que vou a um baile de máscaras.
— Quando ouvir a música esquecerá seu problema... o que, na
humilde opinião de Flora, você precisa fazer. Ficou por demais arrasada.
— Também ficaria arrasada se seu romance tivesse sumido e
Benjamin Swain corresse para reavê-lo.
Flora jogou a cabeça para trás e gargalhou.
— O que escreveu sobre ele?
— Nada de mais. Só um parágrafo ou dois.
— Parágrafos maliciosos? — brincou Flora. Seus olhos verdes
faiscavam de divertimento.
— Como pode rir quando uma vida inteira está em jogo? Minha vida!
Em vez de dançar, eu deveria descansar, raciocinar, planejar.
— Tome cuidado com o que está planejando, amiguinha. Eu lhe direi
com muita franqueza, sendo eu mesma uma mulher independente: esse
nem sempre é um caminho feliz.
— Farei com que eu seja feliz.
— A partir de amanhã. Hoje, Flora acha que você será a bela do baile
de máscaras. Rosalind lhe emprestou um vestido que fará com que todos
os olhos a sigam quando caminhar.
Sophie meneou a cabeça, com cuidado para não soltar uma das
pregas do trabalho de Flora.
— Não me importo de ser a bela.
— Rosalind disse a sua criada, que me contou, que ela espera ser
convidada para sua casa em breve. Está um fala-tório só na cozinha. Sua
colega de escola tem a impressão de que você há de querer lhe retribuir a
hospitalidade. E, em Annapolis, Rosalind Montrose planeja encontrar um
belo oficial da Marinha, tal como Benjamin Swain, para desposá-la.
— Mas Benjamin não é um oficial.
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— A srta. Montrose está ansiosa para formar uma família, de acordo


com Mary Jane, a criada.
— Claro que convidarei Rosalind para ir a Annapolis, mas não creio
que Benjamin se sinta atraído por ela. Você acha?
— Não. Benjamin Swain necessita de uma mulher, não de uma
garotinha. Uma senhorita afetada não conseguirá manter o interesse do
marujo.

Sophie teve de morder a língua para não perguntar a Flora o que ela
sabia sobre as mulheres de Benjamin. Prostitutas sempre freqüentavam a
Taverna Reynolds, e ela vira os olhares de cobiça que Benjamin recebia
das garotas quando andava pela rua.
Será que ele gostava das altas ou das mignon! Estaria inclinado para
alguma em particular? Se alguém soubesse, seria Flora. Mas Sophie não
poderia questionar sem parecer Interessada nos assuntos de Benjamin.
— Acho que você poderia ir ao baile de máscaras.
— Flora precisa dormir Sophie.
— Passou uma noite insone? Ficou tão preocupada comigo assim?
— Na realidade, Flora ficou preocupada com você, mas Graham e eu
passamos a noite no gazebo ao lado do lago.
— O que faziam lá?
— O que acha?
— Não tem medo de que... possa ficar numa situação delicada?
— Flora já lhe disse que existem meios para evitar tais problemas.
Porém não me importaria de dar um filho a Graham.
— Não?
Com um sorriso quase constrangido, Flora meneou a cabeça.
A garçonete queria ter um bebê! Abigail logo daria à luz, e Rosalind
expressava o desejo de conceber filhos, de preferência com Benjamin.
Parecia que as mulheres que Sophie conhecia melhor não tinham medo de
fazer amor. Nem de engravidar. Por outro lado, não compartilhavam do
histórico familiar de Sophie.
Com relutância, seguiu pelo corredor, em direção à música e às
risadas. Pelo menos Benjamin também estaria lá. Não deveria ficar no
quarto a traçar planos para capturar Fletcher Thurman. E até seria possível
divertir-se um pouco com aquele marujo de derreter corações.
— Não esqueça seu dominó! — E Flora correu atrás de Sophie com

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uma grande máscara cheia de plumas e contas.


— Oh, obrigada! — Sophie não poderia se disfarçar sem ele.
— Agora sim nenhuma alma irá reconhecê-la.
— Existem apenas duas pessoas presentes que podem me
reconhecer. Rosalind e... Benjamin Swain.
— Ele nunca adivinhará.
— Rosalind vai reconhecer seu vestido. Flora sorriu.
— Mas nunca ficaria tão linda como você nele. Depois de se despedir
da amiga, Sophie colocou a máscara e desceu as escadas.
A espaçosa sala de música que se abria para os jardins fora
transformada num reluzente salão de baile. Sophie dirigiu-se a uma mesa
com toalha de renda que continha o ponche e os docinhos. Atrás da mesa
poderia observar tudo, do canto mais escuro.
Músicos vestidos de escarlate e azul-pavão tocavam em uma
plataforma no fundo da sala. Uma cintilante combinação de lampiões a
querosene e velas de cera emprestava um brilho dourado aos dançarinos
fantasiados conforme rodopiavam pelo ambiente ao som de uma animada
melodia.
Benjamin rezava para passar despercebido. Sentia-se um idiota na
roupa que lhe providenciaram, um hábito de monge. A ocupação e a
natureza de um religioso eram um completo contraste com a vida de
Benjamin. Não se espantaria em saber que cometia uma heresia pelo
simples fato de usar aquele traje.
Contudo, era confortável. No manto marrom-escuro de capuz e com
a máscara, Benjamin parecia uma figura bastante ameaçadora, o que o
agradava.
Se não tivesse sido forçado a comparecer à festividade para manter
os olhos em Sophie, estaria em seu quarto, dormindo. Porém, não iria
confiar naquele diabrete. Impulsiva como era, seria bem próprio dela partir
na escuridão da noite para iniciar a procura por Fletcher e Abigail. E isso
seria perigoso.
Rosalind, como Maria Antonieta num longo vestido de brocado de
decote baixo que revelava a maior parte dos seios fartos, flutuava em
torno dele como uma borboleta ferida. Trazia a Benjamin taças de cristal
de champanhe, uma atrás da outra.
Ele receava que pudesse estar nas nuvens quando Sophie fizesse sua
aparição. Ficar embriagado poderia tornar difícil reconhecer a filha do
almirante, não importava qual fosse o disfarce que a anfitriã lhe tivesse
arranjado.

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Benjamin dançou com Rosalind, com a atenção voltada ao redor, à


procura de Sophie. A mocinha não parava de falar, em geral sobre os
próprios atributos.
No entanto, ao rodopiar pelo salão com a amiga de Sophie, o olhar
dele foi atraído para uma outra beleza. Uma mulher vestida de criada
francesa flertava sem pudor com ele, do saguão.
Benjamin começava a sentir o espírito livre de preocupações.
Encorajado pelo champanhe, viu-se tomado pela gostosa sensação de
estar no porto depois de um longo período no mar. Costumava se divertir
muito naqueles dias, com mulheres fáceis, bebida e ruidosos jogos de
dardos. Uma vida de risadas e rebeldia.
Após levar Rosalind para perto da mãe, ele preparou-se para
convidar a criada francesa para dançar. Precisava de uma mulher. Ainda
mais após ter ficado confinado na véspera no mesmo quarto que Sophie, a
ouvir sua respiração suave, a reprimir as naturais necessidades
masculinas.
Pegando uma taça de champanhe da bandeja de um criado que
passava, Benjamin aproximou-se da mesa de bebidas para apanhar um
doce, antes de abordar a tentadora francesinha. Ao escolher um docinho
de amêndoa, um lampejo de luz bateu em sua vista. Ele ergueu os olhos.
Afrodite, a deusa do amor, bebia champanhe naquele que era o único
canto escuro da sala. Endereçou-lhe um ligeiro sorriso, apenas um
entreabrir dos lábios úmidos.
Benjamin apreciou a boca convidativa da deusa até a longa e
graciosa coluna de seu pescoço. Esse, também, ele julgou provocante.
Imaginou-se com os lábios colados na sensível depressão da base, numa
demorada carícia. Aproximou-se dela.
— Boa noite — disse, e espantou-se ao ouvir uma rouquidão não
costumeira na própria voz.
Ela inclinou a cabeça num gesto de recato. Contudo não havia recato
em sua aparência. A deusa usava a toga das lendárias figuras gregas de
todas as pinturas que Benjamin já vira. O tecido imaculado era drapejado
sobre um dos ombros, deixando o outro exposto. E a análise dele
demorou-se naquele ombro nu e sedoso que convidava a um beijo.
Ao mudar o foco, a visão lhe trouxe o volume redondo dos seios dela.
Estreitas linhas de um pálido azul das veias traçavam provocantes sendas
sob a carne translúcida.
Fitou-a então por toda a estatura, admirado. As palmas de suas mãos
formigaram de vontade de acariciar aqueles quadris roliços e macios, de
comprimir aquele corpo sensual t outra o dele.

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A investigação continuou até encontrar uma fenda na toca. Um ligeiro


movimento expôs longas pernas e canelas torneadas. Benjamin começou a
tremer como um garoto prestes a içar uma vela pela primeira vez.
Nenhum homem naquele baile poderia resistir a uma deusa assim,
descida dos céus. Nem hesitaria em lhe dar sua fortuna para lhe conhecer
a identidade.
— Posso ter o prazer desta dança? — Benjamin detestava dançar,
mas parecia a maneira mais rápida de tê-la em seus braços.
Ela aquiesceu.
A máscara com plumas e contas encobria a maior parte de seu rosto,
a não ser os lábios. Aqueles lábios... Não, não poderia ser. Rezou para que
não fossem de... Sophie.
Saberia num instante. Benjamin envolveu-a junto a si, trazendo-a
para tão perto quanto poderia. Ela não protestou ou recuou. Flutuava como
uma criatura etérea ao dançarem naquele canto escuro.
— Posso perguntar seu nome?
— Vênus.
Um murmúrio! Se Benjamin pudesse lhe ver os olhos, saberia se a
deusa era mesmo Sophie. Afastou-se. Ela inclinou a cabeça.
— Vênus, a deusa do amor... — Benjamin sussurrou, puxando-a para
o peito outra vez, perdido no calor que vinha dela e no escaldante fogo que
o incendiava.
Ansiava por uma mulher. E aquela em seus braços não poderia ser
mais desejável, a não ser que a verdadeira deusa do amor tivesse
encarnado.
— Já esteve no gazebo, irmão?
Ela estava sugerindo que saíssem do salão. Benjamin não conseguiu
acreditar em sua boa sorte.
— Não, não estive. Gostaria de me mostrar o caminho?
— Venha.
A deusa se voltou. Seus quadris gingavam suaves, enquanto ela
rumava para o jardim.
Sem um momento de hesitação, Benjamin seguiu-a. Será que havia
madressilva no jardim dos Montrose? Ou o perfume vinha da adorável
jovem que o conduzia rumo à tentação?
"Deus do céu, é Sophie!"
Não, não poderia ser. Benjamin sabia que madressilva era uma

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fragrância comum. Se pelo menos pudesse lhe ver os olhos, o sorriso


pleno, então saberia.
Não suportaria que aquela deusa tentadora se transformasse em
Sophie e, em conseqüência, se tornasse intocável para ele. Por outro lado,
se fosse ela, teria de descobrir que jogo era aquele. Quereria seduzi-lo?
Usá-lo de novo em prol de suas "pesquisas literárias"?
Arrepiou-se. Uma coisa assim era própria dos truques de Sophie.
Deusa do amor? Deusa da malícia era mais condizente com aquelas
atitudes!
Sophie iria aprender uma lição valiosa. Benjamin a deixaria crer que
ele a tomara por uma bela estranha. Ele a levaria até o limite do êxtase e
então pararia. E depois a deixaria a contemplar o jogo perigoso que
iniciara.
Não muitos mascarados vagueavam pelo frio ar noturno.
Umas poucas tochas distribuídas pelas alamedas do jardim e uma
brilhante lua crescente davam alguma luz.
A deusa Afrodite o puxou por uma abertura nas sebes pronduzindo-o
do jardim cultivado para um campo de flores silvestres e um imenso
gramado.
Seduzir uma mulher era como casar o bom senso com o vento.
Benjamin esperava que pudesse ter se enganado, que a formosura mítica
que avançava diante dele não fosse Sophie Harrington. Com qualquer
outra mulher, ele aliviaria a dor na virilha e o buraco no coração, sem
demora.
O gazebo de forma octogonal, de um branco reluzente, fulgia em
meio às trevas. Raios de luar cintilavam no pequeno lago próximo à
estrutura em domo.
A pulsação de Sophie martelava numa batida selvagem. Almofadas
de plumas suavizavam os bancos, e rosas floriam pelas treliças de uma
parede. O aroma doce e forte das flores perfumava a atmosfera.
Benjamin puxou-a pela mão e obrigou-a a parar no centro do gazebo.
Sophie virou-se para ele.
— Quem é você?
— Hoje não é importante quem somos.
O almirante ficaria furioso se soubesse que ela flertava com um
simples marujo. E Benjamin jamais se arriscaria a afrontá-lo.
— É Sophie?
— Sou a deusa do amor.

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— É você. Receei que fosse.


— Vênus é meu nome.
— O que quer de mim?
— Quero que faça amor comigo — afirmou, sem pensar.
"Céus! É verdade!" A peça que queria pregar em Benjamin se voltara
contra ela.
Ele não respondeu. Continuou imóvel e calado como um relógio
quebrado.
— Não quer fazer amor comigo?
— Não quero ser sua ferramenta.
Sophie compreendia aquilo. Num esforço mais direto para persuadi-lo
e minorar o medo, ela ergueu-se na ponta dos pés e beijou-o na face.
— Você cheira a madressilvas.
— Mesmo? — Ela puxou a corda que prendia o manto dele.
— Alguém pode aparecer e nos flagrar aqui.
— Onde está sua coragem? Nunca fez amor ao ar livre sob uma lua
de primavera, com o perfume de rosas a seu redor?
Se ele não tomasse coragem logo, Sophie perderia a sua. Ela estava
incerta de como dar início às coisas, e Benjamin continuava a relutar.
Do momento em que o vira dançando com Rosalind, ela ansiara por
estar em seus braços. Retorcera-se de desejo de sentir-lhe os lábios sobre
os seus. Sophie sabia que o desejava, conhecia a fonte que a enchia de
descontentamento e inquietação.
Sophie sentia-se quase alheada. E sem nenhum pudor, queria tomar
para si apenas naquela única noite a força guerreira de Benjamin, aquele
beijo ardente e a virilidade de tirar o fôlego. Seu coração batia furioso
conforme se postava diante daquele homem de aparência perigosa que
usava um manto de monge. À espera.
— Não, jamais fiz amor sob a lua de primavera. E muito menos com
uma mulher como você.
Antes que Sophie pudesse responder, uma das mãos grandes e
quentes de Benjamin empalmou-lhe a nuca, a outra lhe emoldurou a face.
A máscara escorregou quando ele desceu a boca sobre a dela.
Aqueles lábios, quentes, úmidos, exigentes, se apossaram dos dela
com ardor. E Benjamin a beijou com toda a avidez que o consumia.
Sophie sentiu-se flutuar como se de repente tivesse asas.

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E a alma atingiu as estrelas. Com os sentidos aguçados e a latejar,


queria mais e mais dele. O beijo tornou-se suave e terno. E os joelhos de
Sophie amoleceram, ameaçando falhar.
Benjamin era um herói em carne e osso. Sua figura imponente e rude
era de lendárias proporções, tão poderosa como a de Netuno, senhor e
regente do mar.
O magnífico instrutor de navegação poderia comandar a maré e o
fluxo dos oceanos, acalmar as águas ou a tempestade, assim como guiava
as incríveis ondas de emoções dentro de Sophie, da doce serenidade à
mais desconcertante excitação.
A mão que lhe sustentava a cabeça deslizou para baixo, acariciando-
lhe o ombro nu. Um arrepio delicioso, tórrido, a percorreu por inteiro. Uma
rendição completa diante dele parecia a única e mais adorável coisa a
fazer.
Sophie saboreou o cheiro másculo de Benjamin, de luxúria e
especiarias. Gemeu de prazer quando aquela língua ávida se esgueirou por
entre seus lábios, invadindo sua boca.
— Sophie Harrington! "Droga! É Flora!"
Sophie e Benjamin pularam de susto. E se separaram. A mais
dolorosa experiência que Sophie sofrerá até então.
— Vá até ela — ele murmurou. — Flora não deve me ver.
Sem alternativa, Sophie se afastou. O juízo de súbito estava de volta.
Chegara muito perto de esquecer seus votos de celibato nos braços de
Benjamin, sem sequer considerar as conseqüências.

Capítulo XIV

Sabe o que é isto? Apenas os olhos de Benjamin se mexeram,


fixando-se na folha suja de papel que o almirante agitava acima tlc sua
cabeça.
O comandante dos aspirantes chamara Benjamin para uma reunião
em seu escritório no início das atividades do dia. Benjamin e seu pequeno
grupo de viajantes, que incluía Sophie, Flora e Graham, chegaram a
Annapolis na noite anterior, exaustos pela jornada apressada desde
Georgetown.
Benjamin olhava para a folha, com receio de saber o que o almirante
brandia com indisfarçável fúria: o pedido de resgate.
Problemas. Mais problemas.
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Porém, de qualquer forma, Benjamin estava cansado demais para se


importar, além de aborrecido. Incapaz de negar por mais um minuto que a
deusa em seus braços era a filha ilo almirante, ficou destroçado. O desejo
de ensinar a Sophie uma merecida lição competira com a ânsia de amá-la.
A paixão em guerra com a honra. E a honra perdia a batalha quando Flora
apareceu.
Naquela ocasião, não se sentiu grato pela interrupção da mal-
humorada garçonete. Embora não tivesse certeza sobre Sophie, Benjamin
sabia que Flora o salvara de fazer uma bobagem. Ela silvara nas sombras
como uma cobra zangada, resmungara contra os homens por entre os
dentes e arrastara Sophie para longe.
Benjamin não foi mais o mesmo desde então. Naquele instante,
pretendera apenas demonstrar a Sophie aonde suas impetuosas ações
poderiam levá-la. Não tivera a menor intenção de sucumbir sob o apelo
daqueles lábios, sob o deslumbramento da inocente acolhida. Mas
sucumbira.
O som de um punho contra a madeira dura arrancou Benjamin dos
devaneios, trazendo-o de volta ao presente.
Zangadíssimo, o almirante debruçou-se sobre o tampo.
— Sabe o que é isto?! — repetiu. — Enquanto estavam à caça de um
ganso selvagem, entregaram isto em casa. O bandido amarrou-o a uma
pedra e jogou-o pela janela de meu escritório, quebrando a vidraça!
Benjamin sabia. Seu superior parecia mais ofendido com a janela
quebrada que com o bilhete de resgate que estava agora sobre a mesa,
coberto pela mão de Wesley Harrington.
— Parece ser uma mensagem do ladrão que roubou o diário da Srta.
Harrington — disse Benjamin, da maneira mais natural que pôde.
— O safado quer seiscentos dólares!
— Isso parece excessivo, senhor. Se não se importa que eu o diga.
— Minha filha deve ter escrito coisas terríveis! Benjamin compreendia
os temores de Harrington. Partilhava deles. Desde que Sophie lhe
confessara ter escrito sobre ele no diário, Benjamin experimentava uma
estranha sensação de ruína... ou seria um prazer secreto?

— Com todo o respeito, senhor, sua filha alega ter uma |imaginação
fértil, mas talvez o diário não seja tão...
— Soube de alguma coisa?
— Abigail Grant está prestes a dar à luz e quer se casar com o pai da
criança.
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Pelo que pude descobrir esse sujeito, Fletcher Thurman, não


trabalha. O casal está em difíceis condições financeiras, motivo pelo qual
creio que Thurman e Abigail são responsáveis pelo sumiço do romance de
Sophie.
— Faz idéia de onde encontrar esse ladrão, o tal Thurman?
— Já que o senhor recebeu o pedido de resgate, imagino que ele
esteja na área de Annapolis. Tenho uma descrição do sujeito. Eu o
encontrarei.
— Ele exige uma resposta daqui a dois dias! Uma batida soou na
porta.
— Entre! — gritou. — Descansar, Swain.
Andrew Ferguson entrou, lançando um olhar irritado para Benjamin,
antes de se dirigir a Harrington:
— Perdoe-me, mas não sabia que estava ocupado, Wesley.
— Meu assunto com o marinheiro Swain está encerrado. — O
almirante dobrou o bilhete.
O capitão fitou Benjamin de soslaio.
— Na verdade, meu assunto inclui o marinheiro.
Um gosto amargo invadiu a boca do estômago de Benjamin, em
alerta.
— Julguei que um estudante, um dos seus, Swain, é inadequado para
a Academia e a vida naval. Com sua permissão, almirante Harrington,
gostaria de dispensar o aspirante Baker.
Uma raiva fervente e aguda borbulhou dentro de Benjamin. Mas não
ousou demonstrá-la diante do pomposo capitão e do já irritado almirante.
— Perdoe-me, senhor, mas devo discordar. Em minha opinião, o
aspirante Baker tem um grande potencial. Seria um erro dispensá-lo.
— Sua opinião é irrelevante. Não está mais na instrução básica dos
aspirantes. Eu estou.
— Mas conheço o rapaz. Foi meu aluno por semanas.
— Se quiser reassumir seus deveres, então deixarei a decisão por sua
conta.
— Andrew dirigiu um sorriso condescendente a Benjamin.
— Swain recebe ordens minhas Andrew. O rapaz continuará na
Academia até que Benjamin conclua sua atual incumbência.
— Muito bem. — Tenso, o capitão se dirigiu em passos duros para a
saída.
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— Ah! Gostaria de acompanhar Sophie à festa da Sra. Frawley


amanhã à noite, se isso for conveniente.
Sem hesitar, o almirante Harrington respondeu pela filha, uma
presunção que Benjamin sabia que deixaria Sophie agastada.
— Sem dúvida, Andrew. Sophie ficará encantada em ir com você.
— Deveremos anunciar nosso noivado em breve também. Adiei a
decisão de me casar por muitas vezes.
Harrington achou graça.
— Tem minha bênção.
Com um sacudir de cabeça num cumprimento tosco para Benjamin, o
capitão os deixou.
Sozinhos mais uma vez, o almirante voltou-se para o subordinado.
— Encontre o chantagista agora mesmo. Se acontecer alguma coisa
que impeça o casamento de Ferguson e minha filha, pode esquecer a
indicação para um navio, e eu não poderei garantir que você continue com
seu posto em Annapolis. Compreendeu?
— Sim, senhor.
Sophie seguira Benjamin até o escritório de seu pai, porém,
despreparada para um encontro com o almirante, optara por não se
intrometer na reunião.
Receava o dia em que um pedido de resgate pudesse aparecer. E era
apenas uma questão de tempo antes que o pai percebesse que ela voltara
sem o novo guarda-roupa que fora a Georgetown para comprar.
Em vez do enxoval, retornou a Annapolis com uma dor incessante e
um calor que brotava de suas partes íntimas, até então desconhecido e
inexplorado. Sophie jamais perdoaria Flora por ter interferido em seu
encontro com Benjamin no gazebo. Ficara com um anseio que não
conseguia superar.
Não teve oportunidade de conversar com Benjamin, agora
estranhamente taciturno, na volta. Sophie viajara de coche; ele, a cavalo.
Benjamin descobrira, no baile de máscaras, que Sophie estava
disfarçada como a deusa do amor. Ela soubera disso por instinto.
O que não sabia era se ele teria feito amor com ela ou se teria
recuado no final.
Sem dúvida Benjamin estaria à procura de FletcherThurman, e
Sophie resolvera segui-lo naquele dia. Ele tinha um idéia de como o safado
se parecia, e se encontrasse ou Fie cher ou Abigail, Sophie queria estar lá.

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Levar a efeito uma busca sozinha seria difícil. Se seu p a descobrisse


interrogando pessoas em lojas e hospedaria poderia tomar medidas
excepcionais. O almirante se irritava com facilidade.
Depois de sair do escritório de Wesley, Benjamin não seguiu para a
cidade, para surpresa de Sophie. Correra par o dormitório, onde procurou
o aspirante Baker. Assim qu o rapaz e seu instrutor saíram a caminhar em
direção à doe da cidade, Sophie pôde ver que Benjamin falava e o jovem
ouvia. Na doca, diante de seus olhos incrédulos, Benjamim entregou o
adorado barco Dama de Nantucket ao inexperiente aspirante.
Joseph Baker quase fez soçobrar um veleiro durante aquele dia de
temporal do qual Sophie se recordaria até o fim d seus dias. Estivera no
veleiro, e lutara pela própria vida.
Dos degraus da casa de barcos, observou Benjamin começar a subir
a colina, logo depois. Com a sombrinha nu ângulo inclinado, ela o seguiu.
Em frente à doceria, Benjamin parou de repente e se virou tão
depressa que Sophie não teve como se esconder. Ele a pegara em
flagrante.
Um lento sorriso enviesado torceu-lhe o canto da boca. E o coração
de Sophie disparou.
— Gostaria de um muffin?
— Obrigada, Benjamin, mas eu mesma comprarei. Vim à cidade só
para comprar muffins.
Ele meneou a cabeça.
— Pensei que estivesse me seguindo.
— Oh, não! — Ela soltou uma risadinha como se a idéia fosse à maior
tolice que já ouvira.
— Poderia caminhar comigo, em vez de atrás de mim. s pessoas
falariam menos.
— Eu não...
— Se quiser que eu confie em você, terá de parar com essas
bobagens.
Balançando-se num pé e no outro, nervosa, Sophie recordou-se das
confidencias que Benjamin lhe fizera. A garota com a qual queria casar-se
não fora leal com ele. E ele ficara magoadíssimo, embora se recusasse a
admiti-lo. Porém as mentiras inofensivas de Sophie não eram a mesma
coisa. Ela jamais magoaria alguém. Não poderia. Mesmo assim, a mais
inocente tentativa era inútil se Benjamin pudesse descobrir sem dificuldade
quando lhe dizia ou não a verdade.

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Com um ar sombrio, Sophie fez que sim. Depois daquele fogo


inexplicável que queimava dentro dela por Benjamin Swain, resolveu
ganhar sua confiança. Bem como sua admiração e muito mais.
— Aonde vai, Benjamin?
— A Taverna Reynolds, e depois seguirei a cavalo pela legião.
— Acha que Fletcher e Abigail estão em Annapolis?
— Sim, embora duvide que fiquem numa hospedaria. Imagino que
estão escondidos em algum lugar dos arredores, num celeiro ou choupana
abandonada.
— Onde não chamem atenção para si mesmos.
— Sim, porém alguém na cidade pode tê-los visto.
— Tenho um pressentimento de que os encontraremos em breve. E
a perspectiva é emocionante.
— E perigosa, creio eu.
— Meu único receio no momento é passar o resto de minha vida com
Andrew Ferguson.
Benjamin sorriu com suavidade, e o coração de Sophie dobrou de
tamanho.
— Compreendo.
— Viu meu pai esta manhã?
— Você sabe que vi Sophie. O almirante recebeu o bilhete de resgate.
Seu diário será devolvido por seiscentos dólares.
Sophie quase engasgou. Esperava por uma exigência, julgando,
esperando que pudesse atendê-la. Mas qualquer possibilidade de recuperar
o romance por si com um simples pagamento acabava de se desvanecer.
Seiscentos dólares! Estava à mercê do pai, a menos que Benjamin pudesse
ser persuadido a ajudá-la.
Passou a maior parte do dia cavalgando ao lado de Benjamin em
busca de Abigail e Fletcher. Embora não dissesse uma palavra sobre aquilo
que tinha se passado entre os dois no gazebo, via-o de forma diferente
agora. Por seu turno, ele a tratava com formal deferência. E aquela frieza a
feria. Fora tão ousada...

Mesmo que tivessem objetivos opostos desde o início, Sophie


respeitava Benjamin, e acreditava que haviam se tornado adversários
amistosos. Contudo, seu comportamento atrevido no baile de máscaras
pelo jeito o afastara.

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Nada mais seria o mesmo entre os dois outra vez, e não tinha
ninguém além dela mesma para culpar. Mas aquele beijo... Haveria
sempre de se recordar do beijo de Benjamin. Swain interrogou dois
lavradores que tinham visto Fletcher na véspera, porém uma busca pela
área norte não revelou traço de Thurman ou Abigail.
— Amanhã de manhã começarei de novo a procura.
— Por favor, Benjamin, não vamos parar agora. Há um celeiro logo
ali na estrada, olhe.
— Sophie apontou colina abaixo. — Por favor, vamos verificar antes
de desistirmos.
Para alegria de Sophie, Benjamin concordou e incitou o cavalo para
frente.
A estrada de terra conduzia a um celeiro abandonado e às ruínas de
uma casa de fazenda que queimara até o chão, meses atrás. Onde a cor do
celeiro não mudara do vermelho para o tom de ferrugem, a pintura
descascara. As dobradiças de uma porta tinham se perdido, fazendo com
que a porta ficasse um tanto aberta, meio caída.
Benjamin foi incapaz de recusar o pedido de Sophie, embora a
escuridão da noite se aproximasse. Quando aqueles extraordinários olhos
de água-marinha, sombrios de desapontamento, encontraram os dele, seu
peito reagiu com um aperto insuportável. Naquele fugidio momento,
Sophie lhe parecera tão doce e vulnerável como uma sereia perdida nas
ondas de um estranho mar desconhecido.
Assim que chegaram ao celeiro, ele desmontou e estendeu os braços
para auxiliar Sophie. As mãos dela pousaram-lhe nos ombros, as dele a
circundá-la pela cintura. Benjamin ergueu-a, segurou-a. Não queria que
seu corpo deslizasse contra o dela e, ao mesmo tempo, desejava muito
que isso acontecesse.
Imobilizado pela indecisão, Benjamin hesitou. O olhar d# Sophie
estava cravado no dele. A pulsação em suas veias acelerou como se de
repente ele estivesse em perigo. Respirando fundo, tirou-a do cavalo e
colocou-a no solo com firmeza, longe de si.
— Não se mova — avisou-a num tom rouco, antes de se voltar para
amarrar os cavalos numa carroça quebrada, perto dali.
Sophie fitava a entrada do celeiro como se quisesse que Abigail,
Fletcher e seu diário estivessem lá dentro.
— Entrarei primeiro, Sophie. Fique atrás de mim. Benjamin nem
mesmo sugeriu que ela esperasse até que
ele revistasse o celeiro. Teimosa demais para aceitar ordens, Sophie

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faria o que lhe aprouvesse, o que poderia ser mais arriscado do que se
ficasse perto dele.
A tensão deixou Benjamin de músculos retesados. Mente alerta, ele
receava que pudessem cair numa armadilha.
Avançou com cautela. Por tudo que sabia, Fletcher poderia estar
armado e preparado para atirar. Se algo acontecesse a Sophie, Benjamin
jamais se perdoaria.
Benjamin esgueirou-se pela porta aberta. Esperou até que sua visão
se ajustasse à diferença de claridade. A fresta de luminosidade da porta e
uma larga abertura no teto proporcionavam iluminação.
Apressado, Benjamin deu quatro passadas e chegou a um espaço
aberto usado para guardar carroças, foices e utensílios de lavoura.
Decidido a investigar o paiol primeiro, rumou para a escada que
conduzia ao andar superior. Sophie apoiou-se numa engenhoca de ceifar
enquanto subia. Uma fina camada de feno velho cobria o chão, e num
canto, ao fundo, uma enxerga de cavalo fora estendida sobre um monte de
palha. Duas velas, queimadas até o toco, se achavam de um lado da
manta.
— Eles estiveram aqui — Sophie murmurou, atrás de Benjamin.
— Alguém esteve aqui — corrigiu-a.
— As baias estão vazias.
— Não desanime. Só começamos a procurar.
— Mas estou ficando sem tempo. A oportunidade de viver como
sonhei se esvai a cada minuto.
Ao ver-lhe a expressão angustiada, Benjamin se esqueceu do que
significava para ele recuperar o diário. Tudo parecia menos importante do
que salvar o sonho impossível e improvável de Sophie.
Ele se rendera.
— O mais provável é que Fletcher e Abigail estejam se mudando de
um lugar para outro, escolhendo refúgios abandonados como este. Olhe. —
Pegou Sophie pela mão e puxou-a para baixo, forçando-a a se sentar nos
calcanhares como ele, examinando os tocos de vela.
— Faz pouco que essas velas terminaram de queimar.
— Acha que estiveram aqui ontem?
Benjamin não sabia, mas sentindo uma imperiosa necessidade de lhe
manter a esperança viva confirmou.
— Nós os encontraremos amanhã.

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— Obrigada, Benjamin! — Com lágrimas nos olhos, Sophie inclinou-se


e beijou-o na face.
Ele cerrou as pálpebras para saborear o momento e não se deu conta
de que Sophie perdeu o equilíbrio até que ela se chocou contra seu tórax.
Benjamin caiu de costas na enxerga com Sophie sobre ele. Que tipo
de demônio jogava a tentação assim sobre um pobre marinheiro?!
"Sou apenas um homem, um baleeiro solitário de Nau tucket, no
escuro com uma bela jovem cujas curvas quentes comprimem-se contra
mim, cujo coração bate de encontro ao meu." Labaredas de volúpia o
invadiram como foguetes a arrasar uma fortaleza.
Sophie o encarou, os olhos arregalados de surpresa, o lábio a apenas
milímetros dos dele. E ao continuar a fitá-lo sua boca se curvou num
sorriso.
Benjamin jamais imaginara que poderia sentir-se soçobrar assim. A
covinha aprofundou-se conforme a surpresa refluía dos olhos dela,
substituída por um faiscar que envergonharia as estrelas.
As nobres tentativas dele de manter-se distante e tratar a filha do
almirante com polida indiferença fracassaram.
Não se atreveu a se mexer, não ousava respirar, mal conseguia
engolir. A garganta ficou seca como uma corda velha. E o coração batia
ensurdecedor no peito. — Benjamin...
Atingido fundo, com as virilhas a doerem e o estômago comprimido
contra qualquer movimento inesperado, moveu a única parte de si que
presumia a salvo: as pálpebras.
Pestanejou. E ouviu a risadinha rouca quando ela baixou a cabeça.
Ainda sorrindo, Sophie pairava à distância de uma respiração e
então... beijou-o. Lábios tão doces como açúcar, manos como seda,
encontraram os dele. E ele gemeu.
O beijo de Sophie tornou-se mais intenso.
Ele era um marinheiro de escalão inferior. Não poderia fazer amor
com a filha do almirante. Mas o homem que era queria Sophie mais do que
algum dia quis uma mulher. Embora queimasse de paixão, sua consciência
bradava que não fosse adiante.
Aquele beijo era como a carícia bem-vinda da chuva num deserto
esturricado. Sophie correu os dedos por seus cabelos, brincando com a
língua na dele.
— Sophie... Não posso garantir que você continuará casta por mais
tempo se não me deixar sair neste instante.

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A expressão intrigada deu lugar a mais um sorriso tão radiante que


pareceu iluminar o paiol.
— Renunciei a meu voto. Uma dúvida o atingiu.
— Você não está me usando, está?
— Usando?
— Esta não é sua idéia de pesquisa para qualquer coisa que esteja
escrevendo no novo diário, é?
— Não! De modo algum!
Antes que ele pudesse levantar mais uma objeção, Sophie tornou a
beijá-lo.
O beijo terno e amoroso incendiou Benjamin. Ele a desejava fazia
muito tempo, sonhara com ela por muitas e muitas noites e não tinha
certeza de poder conter a ânsia de tê-la.
Aquela mulher de enlouquecer qualquer um, atraente e deliciosa,
trouxera uma curiosa excitação a seus dias solitários. Durante anos
Benjamin se orgulhara de sua disciplina auto-imposta. Porém, justo
quando precisava dele mais d que nunca, seu autocontrole se evaporara.
Costumava ser um homem de vontade de ferro e vigorosa fibra
moral, mas não tinha o menor interesse em recusar beijos de Sophie.
Sentia-se perdido na nuvem de madressilvas que o engolfara.
Envolvendo-a nos braços, Benjamin rolou sobre Sophie Deitou-se ao
lado, a lhe distribuir beijos pelo nariz, sobre os olhos, as orelhas. Sophie
não sabia até então como uma orelha poderia ser sensível, ou um pescoço.
Abrigada junto a Benjamin, uma sensação deliciosa se guia-se à
outra. Aqueles eram os únicos braços feitos par envolvê-la. Ele a inspirava.
O gingar no andar, a risada fácil a piscadela sedutora enchiam-na de calor,
faziam-na sorri quando queria chorar ou gritar de raiva.
Seu pai os colocara um contra o outro, mas o almirante não poderia
impedi-la de amar o marujo instrutor de navegação. Não importava que
não fosse um oficial. Benjamim era tudo o que um homem poderia e
deveria ser. O amor de Sophie pertencia a Benjamin Swain.
— Minha doce, doce Sophie...
— Não pare, Benjamin! Por favor, não pare...
Com os cabelos em desalinho a lhe caírem pela testa, ele franziu as
sobrancelhas.
— Tem certeza?
— Jamais tive tanta certeza... de alguma coisa — ela gaguejou.

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Comprimindo-a contra si, Benjamin abraçou Sophie por um longo e


silencioso momento.
A batida forte de seu coração e sua rigidez pulsante excitava Sophie
ainda mais.
A textura áspera de sua pele e o aroma másculo de almíscar lhe
preencheram os sentidos, dominando-a, sobrepujando tudo.
Suas palmas passaram a deslizar pela cintura até a curva cios
quadris, para sem demora tirar-lhe o calção. Quando a acariciou no lado
interno, tão sensível, das coxas, a dor in-comum que a consumia tornou-se
insuportável.
— Benjamin... Acho que vou morrer.
— Não, não vai morrer Botão-de-ouro. Você nunca viveu antes.
Acalmando-a com beijos e separando-lhe as coxas com gentil
suavidade, Benjamin cumpriu sua promessa.
Sophie suspirou quando Benjamin penetrou-a com a ternura de um
amante de longa data. O gemido não foi de dor, mas do milagre, da
deliciosa conjunção das almas. Por fim, ela descobriu o que significava ser
completa. Como a vela no mastro, Benjamin a completava.
Unida com o único homem que poderia fazê-la sentir-se como se
estivessem no Jardim do Éden a fazer amor, e não num celeiro em ruínas,
Sophie flutuou, mais leve que o ar, mais alto que os céus.
Arqueando as costas, encheu-se de emoção a cada investida,
enquanto Benjamin a levava para um mundo extraordinário conhecido
apenas pelos apaixonados. Nem em seus mais fantasiosos devaneios,
Sophie não poderia ter criado ou reproduzido a paixão e o fogo, a alegria
profunda na alma que sentiu ao se tornar una com Benjamin. Chegou ao
sol e às estrelas feitos apenas para ela naquele seu novo mundo.
Risos, excitação e a dor mais adorável de todas borbulharam dentro
dela até que, de repente, atingiu o alívio. Numa dourada explosão de
visões cambiantes como um caleidoscópio de visões e sons, Sophie deixou
escapar um longo e espasmódico grito.
A flutuar devagar, suspensa acima da cama de enxerga e palha,
ouviu o profundo eco de barítono da voz de Benjamin no ouvido,
chamando seu nome:
— Sophie!
Após um longo instante de silêncio, ele repetiu, numa entonação
preocupada:
— Sophie?

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Ela respirou fundo, em absoluto contentamento.


— Não estou morta, mas creio que cheguei ao Paraíso.

Capítulo XV

Benjamin não iria se culpar por ter feito amor com Sophie. Um
homem poderia ser arrastado a ir tão longe! Porém, Deus do céu, o que
fizera? E com a filha do almirante!
Passaria o resto da vida confinado numa pequena cela em alguma
ilha esquecida. Contudo, sempre se lembraria da hora encantada que
tivera com Sophie Harrington.
Jamais experimentara a avassaladora paixão que sentira ao tomar
para si o corpo flexível e adorável. Sophie o fizera ultrapassar as fronteiras
do êxtase. Fazer amor adquirira um significado inteiramente novo e muito
perturbador.
Quando Benjamin saiu do celeiro, seus joelhos bambeavam como os
de uma menina de escola. Abalado, confuso e flutuando no que parecia
uma fina película de ar que o sustinha acima do chão, acompanhou Sophie
para casa num pesado silêncio.
Até poucos dias atrás, era um homem honrado de intenções
honradas. Sophie o tornara incapaz de honradez no que lhe dizia respeito.
Consumido de desejo por uma mulher que jurara conquistar a
liberdade e independência a qualquer custo, ele temia pela própria
sanidade.
Para seu alívio, Sophie parecia perdida em conjecturas e não quis
conversa, ou pior, explicações. Benjamin lançou-lhe um olhar de esguelha.
Ela ostentava uma expressão sonhadora. Um ligeiro sorriso brincava no
canto de seus lábios, inchados pelos beijos dele. Se não estivesse
enganado, havia um brilho novo e diferente em seus olhos.
— Sophie... tomei sua... sua mais preciosa dádiva, e eu...

— Não diga mais nada, Benjamin. Fiz minha escolha, uma da qual
não me arrependo e jamais me arrependerei. — Ao fitá-lo enviou-lhe um
deslumbrante sorriso.
Benjamin conteve a respiração. Poderia haver uma mulher mais bela,
mais encantadora?
Seu coração disparou no peito como o de um adolescente

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apaixonado. Benjamin faria qualquer coisa por Sophie, a não ser aquilo
que ela mais desejava. Quando recuperasse o diário, entregá-lo-ia ao
almirante ou enfrentaria uma existência atrás de uma escrivaninha em
terra.
Despediu-se de Sophie na porta dos fundos da mansão. Embora se
sentisse relutante em deixá-la, Sophie, em evidente estado de enlevo,
irradiava luminosidade ao lhe desejar boa noite.
Ele não compreendia os próprios sentimentos... ou os dela.
Quando chegou ao quarto no sótão, duas cartas o esperavam. Com a
pulsação acelerada, abriu a primeira com visível impaciência. Era de Matt,
portanto significava que seu irmão ainda estava vivo. Na breve mensagem,
Matt dizia que estava de partida dos campos de ouro e retornando para
Nantucket. Prometia vir a Annapolis para visitar Benjamin antes de seguir
para casa, para assumir os cuidados com a mãe.
Pobre Matt. Benjamin podia ler nas entrelinhas. Seu irmão não se
saíra bem nas minas e se voltara para o único caminho que lhe restava:
cuidar da mãe. Benjamin ficou agradecido.
A segunda missiva continha um convite para a recepção no ar livre
do tenente Gilbert Frawley e senhora ao cair da noite seguinte. O motivo
era celebrar a conclusão dos mais novos dormitórios da Academia.
Benjamin nunca fora antes convidado para uma das festas de gala
dos Frawley, e eles recebiam com freqüência. Não participava de festas no
jardim. Não conseguia equilibrar xícaras de porcelana no joelho. Não tinha
treinamento no uso do garfo adequado.
Deixou o convite de lado. Queria apenas um gole de uísque, uma
sonora canção e um bom charuto. Contudo, não linha dúvida de que
Sophie compareceria, acompanhada de Andrew Ferguson. Talvez ele
devesse ficar a postos.
Sophie acordou pela manhã com um sorriso. Seu corpo murmurava
de alegria, seu coração se rejubilava. Não havia dúvida de que o doce
estado de languidez tinha a ver com o ato de amor com Benjamin.
Se pelo menos ele estivesse ali na cama, com ela! Da próxima vez...
e prometeu a si mesma que haveria uma próxima vez... queria virar a
mesa e seria ela a fazer amor com o instrutor de navegação.
Por mais que apreciasse ficar deitada durante todo o dia, linha muito
que fazer. Havia inúmeros casebres abandonados na região que poderiam
servir de esconderijo para Fieicher e Abigail.
Porém, primeiro precisava ir ver Flora. Sua amiga se gabava de ter
um pequeno frasco de pílulas francesas de uso feminino que prometiam
purificar o sistema. A idéia de ter um filho de Benjamin deixava Sophie
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dividida. Por um lado, agradava-a sobremaneira. Por outro, a assustava.


Naquela incerteza, rumou para o quarto alugado de Flora, no estábulo.
Foi recebida com um grito.
— Flora! Flora, você está bem? — Sophie gritou, por sua vez,
batendo forte na porta.
Silêncio. A leve brisa carregava um cheiro de cavalo pela janela
aberta do corredor.
Comprimindo o ouvido na porta, Sophie ouviu um baque. A maçaneta
girou, e Flora, com mechas de cabelos grudados na face, olhou para
Sophie pela fresta.
Sem dúvida Sophie chegara na hora errada. Flora estava entretendo
um cavalheiro. Graham era o mais provável. Desculpou-se pela intrusão:
— Querida, sinto muito! Por favor, me desculpe. Eu... voltarei depois.
— Não. Entre. Depressa. — E Flora puxou Sophie para dentro. —
Chegou a tempo de ajudar.
Curiosa, Sophie entrou.
Espessas cortinas de veludo pendiam das duas janelas. Embora
fizesse um claro e luminoso dia de primavera, o quarto de Flora estaria em
total escuridão não fosse por três lampiões, um em cada lado da cama e
outro sobre a cômoda na parede dos fundos.
O olhar de Sophie dirigiu-se de imediato para a figura sobre o leito de
Flora. Não era um homem.
— Abigail!
— Srta. Harrington!
— Tenho procurado você por toda parte!
Lágrimas escorriam pelas faces suadas e vermelhas da jovem.
— Flora, Abigail está doente?
— Ela foi à taverna na noite passada, na hora de fechar. Sua bolsa se
rompeu.
— Como? — Sophie a fitava, sem entender.
— Abigail está tendo o bebê.
— Não!
— Entrou em trabalho de parto já faz dez horas. Aturdida, Sophie
correu para o lado da ex-criada.
— Mas é muito cedo, não é a hora...
— Quatro semanas adiantado — Abigail disse, numa voz débil.
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Tranqüila quanto a isso, Flora olhou para o espelho no canto para


prender as mechas soltas.
— Mesmo assim, há indícios de que ela dará à luz uma criança forte e
saudável.
— Claro — Sophie confirmou, embora não acreditasse. O que Flora
sabia sobre bebês?
— Vou buscar a parteira.
— Não! — gritou Abigail. Sophie estacou.
— Por quê?
— Não tenho como pagar pelos serviços.
— Não se preocupe. Eu pagarei, e com satisfação.
Abigail agarrou a mão de Sophie e apertou-a. Um pavor evidente
brilhava em seu semblante.
— Ninguém deve saber onde estou.
— Uma parteira saberia ser discreta. Mas por quê? De quem está se
escondendo?
— Tenho medo de que Fletcher venha atrás de mim e faça mal a
nosso bebê.
Sophie ficou espantada. Fletcher? Presumira que Abigail soubesse
que Benjamin Swain procurava por ela. Alto e robusto, era de fato um
homem a ser temido. Mas Fletcher Thurman, o pai da criança? Por que ela
o temeria?
— Que tipo de homem faria mal ao próprio filho?
— Fletcher faria. — Deixando cair à mão de Sophie, Abigail ofegou e
apertou o ventre. Cerrando os dentes, deixou escapar um longo gemido.
Todos os pensamentos de inquirir a garota sobre o aparente
rompimento com Fletcher se dissiparam. Não era momento de perguntar
onde seu diário estaria. Deixaria as questões para o dia seguinte. Por ora,
o sofrimento de Abigail enchia o dormitório fechado. E aos ouvidos
destreinados de Sophie, sua antiga criada parecia à beira da morte.
Abigail gritou. Sophie estremeceu de horror.
Ao fitar o abdome distendido da moça, bastante visível sob o tecido
fino da camisola, a pulsação de Sophie acelerou como se fosse ela a estar
em trabalho de parto. Algo estava prestes a acontecer, podia sentir nos
ossos, e não queria ficar ali para testemunhar.
— Misericórdia... — murmurou, tentando controlar-se. Detestaria que
Flora e Abigail a julgassem um rato medroso. Mas era.

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Piora ergueu a barra e espiou debaixo da camisola de Abigail. Afastou


uma mecha da face.
— Está chegando.
Sophie sentiu o sangue fugir-lhe do rosto. Engoliu em roo, para
dissolver o nó que se formara na garganta.
Abigail ofegava e gemia.
— Escute Flora, Abigail — disse a garçonete para a futura mãe. —
Você precisa fazer força e empurrar agora.
Lágrimas escorriam pelo rosto da garota, mas ela concordou com
valentia.
Flora voltou-se para Sophie e distribuiu ordens com a firme eficiência
do próprio almirante.
— Deixe de lado essa sombrinha, tire o chapéu e as luvas e fique com
Abigail. Faça o que quer que seja preciso. Flora irá buscar algumas coisas.
Sophie a seguiu até a porta.
— Não posso ficar aqui sozinha com ela! — Zangada com Flora e
apavorada por Abigail, os nervos de Sophie pareciam querer estourar. —
Eu... não posso ver Abigail morrer.
— Abigail não vai morrer. Sua tarefa até que Flora volte é encorajá-la
a continuar fazendo força. E ficar com ela se o bebê sair logo.
— Isso pode acontecer?
— O bebê pode sair a qualquer momento. Depende. Agora, deixe-me
ir, para que eu possa voltar a tempo.
— Dê-me o pano, dê-me o pano! — Abigail suava em bicas.
Sophie correu para atendê-la.
— Torça.
Sua ex-criada lhe dava ordens. Sophie fez o que Abigail pediu, e a
garota devastada pela dor enfiou o pano entre os dentes.
— Empurre! — Sophie instruiu com a voz tolhida pela ansiedade.
Jamais testemunhara o nascimento de uma criança.
Seu conhecimento e sua informação eram limitados aos trágico?,
resultados de partos dentro de sua família.
— Estou empurrando, estou empurrando!
Sophie procurou outro pano e, não encontrando nenhum, rasgou uma
tira da combinação, o que, parece, se tornam um hábito. Mergulhou o
pedaço de cambraia na bacia, torceu-o e colocou-o sobre a testa de

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Abigail.
— Quando tudo acabar, quero que vá para casa comigo. — Sophie
desejava com fé que Abigail fosse uma das afortunadas mulheres que
sobreviviam aos rigores de um parto.
A jovem deixou escapar um gemido abafado.
— Empurre! — Sophie recordou-a, esperando soar tão autoritária
como Flora.
— Força!
Cuspindo o pano da boca, Abigail soltou um grito agoniado e apontou
para o pé da cama.
Sophie saltou e correu a tempo de ver uma cabeça apontando entre
as coxas dela.
— Jesus! — Afastando a camisola de Abigail até acima do ventre,
uma mescla de deslumbramento e excitação apertou o estômago de
Sophie. — Empurre!
O rostinho e os ombros da criança apareceram.
Abigail urrou.
O coração de Sophie ameaçava saltar pela boca.
— Mais uma vez, Abigail! Força!
Com um poderoso esforço que sacudiu a cama e vibrou no último
arranco da jovem mãe, o bebê nasceu, com um vagido de protesto.
Lágrimas de alívio e alegria escorreram pelas faces de Sophie quando
a criaturinha escorregou para suas mãos. Segurou a criança, desajeitada,
temendo que pudesse machucá-la e, com toques gentis, limpou a boca do
recém-nascido, provocando uma explosão de gritos de indignação. Incapaz
de controlar o fluxo da própria emoção ou os arrepios, Sophie aninhou a
criança molhada e enrugada nos braços.
— É uma menina, Abigail. E é linda!
— Dê-me meu bebê, srta. Sophie.
Abigail estava viva e parecia esplêndida! A despeito do excessivo suor
e das manchas arroxeadas sob os olhos, a nova mãe vivia e parecia bem.
E mais feliz do que jamais Sophie pudera imaginar.
Sophie depositou o bebê sobre o colo de Abigail.
— Acho que a próxima coisa a fazer é cortarmos o cordão. — E olhou
ao redor à procura de algo para concluir a tarefa.
Enquanto procurava, a porta se abriu e Flora irrompeu para dentro
com uma profusão de coisas de bebê. Sophie sorriu para ela.
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— Você perdeu um milagre.


Uma recepção ao ar livre. Se alguém dissesse a Benjamin que ele
compareceria a uma festa daquelas, ele teria rido. Agora, um torneio de
dardos seria outro assunto.
Clima ameno e um céu cheio de estrelas brindavam os convidados na
cintilante festa realizada no gramado de inclinação suave com vista para a
baía. Bolos e docinhos preparados por Lulu da doceria eram servidos junto
com o mais refinado chá inglês e licores franceses.
Sophie chegou com seu pai e Andrew Ferguson, ladeada pelos dois
como uma prisioneira. Ele começava, de fato, a pensar que ela era.
Sophie caminhava devagar, o olhar a percorrer a multidão. Estaria
procurando por ele? Quando o localizou, segundos depois, a resposta se
tornou evidente. Ao encará-lo com aqueles estonteantes olhos turquesa, a
pulsação de Benjamin o deixou tonto.
Resplandecente num vestido cor de lápis-azul, Sophie era a mais bela
mulher presente, deixando até mesmo as flores envergonhadas. O vestido
sem ombro de cetim e renda farfalhava a cada passo. Andava com uma
graça tamanha que deixou Benjamin aturdido.
Sua atenção demorou-se nos cabelos esfriados de sol, repartidos ao
meio, puxados para o alto e presos com uma fita de seda azul. Uma suave
cascata de ondas lhe caía pelos ombros, a roçar a pele clara onde seus
beijos tinham pousado.
Quando ela não aparecera em seus calcanhares naquele dia, ele
ficara preocupado. Primeiro temera que Sophie tivesse descoberto o
paradeiro de Fletcher Thurman; depois que tivesse sido raptada por
Thurman e por fim que tivesse caído doente.
Mas ela estava muitíssimo bem.
Cativante e belíssima, Sophie chamava atenção. Todos os olhos se
voltaram para ela, porém aquele olhar luminoso permanecia no dele, %
aquecê-lo, excitá-lo. O sangue subiu à cabeça de Benjamin.
Ela não se casaria com Andrew Ferguson.
Benjamin não gostara de Ferguson desde o início. O pretensioso
capitão alcançara seu posto por meio de conexões políticas num tempo em
que era dificílimo alguém chegar a capitão. Muitos oficiais mais velhos e
mais capacitados esperavam por promoção.
Andrew Ferguson, porém, que não demonstrara coragem no mar,
nem um vasto conhecimento de navegador, alcançara uma posição que o
fazia superior hierárquico de Benjamin.
Dirigiu-se ao trio para apresentar seus respeitos, como era esperado

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que fizesse, mas não se desviava de Sophie. Não a vira o dia todo, e não
conseguia fartar-se de vê-la. Além disso, ela lhe devia algumas
explicações. Onde estivera e o que estaria aprontando?
A oportunidade de conversar com Sophie não se apresentou. Assim
que os cumprimentos e gentilezas foram trocados, Andrew postou-se ao
lado de Benjamin e lhe deu um tapinha nas costas como se fossem
colegas.
— Você ficará interessado em saber, Swain, que em complemento às
aulas de sua turma, consegui implementar o içamento de velas e o uso de
vapor em uma embarcação. Minhas idéias progressistas de engenharia não
sofreram com sua nova incumbência.
Ele se vangloriava, o asno pomposo. E tinha mau hálito.
— Estou ansioso para ver seu navio — afirmou Benjamin, todo gentil.
— Não encontrará um melhor. Estarei no leme dirigindo o futuro da
Marinha.
Era mais provável que Ferguson ficasse estacionado na popa, a
admirar o passado.
Benjamin sorriu como se concordasse com a noção absurda de
Ferguson sobre velas e vapor. Além de tudo o mais, era óbvio que faltava
presciência ao capitão. Navios de guerra movidos a vapor e, quem sabe,
submersíveis, eram sem dúvida o futuro da frota.
— Ouviu dizer que em breve a Companhia Collins estará lançando um
navio a vapor para viagens transatlânticas, capitão? Querem competir com
Cunard, e eu não ouvi menção a velas.
— Ótimo para um empreendimento comercial, mas as velas são
parte integrante da tradição da Marinha.
— Ficarei ansioso para seguir a bordo de sua embarcação. —
Benjamin deduziu que discutir não adiantaria nada.
Era uma pena, mas muitos oficiais navais compartilhavam da atitude
de Andrew, que precisava mudar se a Marinha quisesse sair de seu estado
atual de estagnação.
Antes que Benjamin pudesse se dirigir a Sophie, o almirante
Harrington pegou-o pelo cotovelo e guiou-o para longe da filha, que
pareceu aborrecida com isso. Benjamin sentiu o mesmo.
Quando se viu longe de ouvidos indiscretos, a expressão agradável
de Harrington transformou-se numa careta ameaçadora.
— Ainda não localizou aquele sujeitinho, o tal Fletcher?
— Não, senhor, mas estou perto. Durante a maior parte do dia,

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mantive vigia num celeiro onde Thurman esteve se escondendo. Eleja


havia saído quando cheguei lá, ao amanhecer. Mas voltará, e eu o pegarei.
Visto que Fletcher se instalara como se estivesse em casa no lugar,
Benjamin tinha certeza de que o pilantra retornaria aquele celeiro em
particular. Relutara em encerrar a vigilância para comparecer à recepção.
Contudo, não sabia por que Sophie não fora se reunir a ele. Receava que
apenas um risco à vida poderia mantê-la longe dos rastros de Fletcher
Thurman.
— O prazo está se esgotando. Se eu não fizer o pagamento do
resgate, o diário estará por toda Annapolis e Washington. Se uma palavra,
uma que seja, for publicada no jornal de Annapolis, você será remetido a
um bote de pesca de camarões.
— Senhores não crêem que tenha de se preocupar em fazer o
pagamento. Capturarei Fletcher e recuperarei o diário antes que ele faça
valer as ameaças. Embora a tentativa de pedir dinheiro pelo romance de
Sophie possa ser um blefe da parte dele.
— Não arrisco minha carreira sob circunstância alguma, Swain. E é
melhor que você também não o faça.
— Quem quer que conheça sua filha compreenderá que é propensa a
exagerar os fatos.
O almirante arqueou uma sobrancelha.
— E o quanto você conhece minha filha, marinheiro Swain?
Benjamin pensou que seu coração tivesse parado de bater por um
instante.
— O suficiente para entender o pendor da Srta. Harrington em super
dimensionar a verdade às vezes.
Harrington o encarou, o cenho fechado.
— Continue a procurar por Fletcher. Você não tem tempo para
recepções, Swain. Sophie não fará nada, comigo e com o capitão ao lado
dela.
— Sim, senhor. Direi boa noite à sita. Harrington e me porei a
caminho.
— Não precisa. Eu me encarregarei de transmitir sou respeitos a
Sophie.
Benjamin inclinou a cabeça e saudou seu comandante.
Em busca de resultados, o almirante Harrington ordenam lhe que
deixasse a festa. Contudo, quando Benjamin chegou ao limite do jardim,
parou para olhar para trás, numa última contemplação de Sophie.

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Com um sorriso, ela deu as costas à festa para ir ao encontro dele.


— Querida, trouxe seu champanhe.
Sophie não percebera que Andrew Ferguson voltara. Nem notara que
ele saíra de perto dela, para começar.
— Obrigada. — Pegou a taça da mão dele, com o olhai ainda preso
em Benjamin.
— Senhoras e senhores. Posso pedir um momento de atenção?
— Andrew bateu em sua taça com uma colher de prata.
A banda parou de tocar conforme Andrew continuava a bater na taça.
Um burburinho começou e se espalhou rápido assim que a notícia era
passada de um para o outro, de que haveria um anúncio.
— Andrew? O que está fazendo? — Sophie esbravejou por entre os
dentes. Sorria, mas estava nervosa.
— Senhoras e senhores, sua atenção, por favor — o capitão repetiu,
ignorando-a.
O almirante postou-se ao lado do colega. A apreensão de Sophie
aumentou. Fitando Benjamin, que continuava no terraço, ergueu as
sobrancelhas para indicar a própria incredulidade.
Benjamin desceu para o gramado, aproximando-se. Os olhos de
Sophie não o deixavam.
Andrew fez seu comunicado, alto e bom som:
— A Sra. Frawley me deu a honra de me permitir fazer um anúncio
muito importante nesta deliciosa recepção ao ar livre.
Ergueu-se um murmúrio de especulação enquanto os convivas
perguntavam uns aos outros do que poderia se tratar.
— Sem prolongar o suspense, gostaria de anunciar meu noivado com
a sita. Sophie Harrington.
Sophie não ouviu o resto do comunicado do capitão Ferguson. A
princípio aturdida, sentiu-se desorientada, e em seguida tonta. Cerrando
as pálpebras contra o pesadelo que a noite lhe trouxera, fraquejou nas
pernas.
Teria caído no chão se o marinheiro Swain não corresse para ampará-
la.

Capítulo XVI

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Benjamin irrompeu como um furacão pelas portas da Taverna


Reynolds. Precisava de uma bebida forte, talvez várias, e um disputado
jogo de dardos para lhe devolver um pouco de razoável disposição.
Depois que impediu Sophie de sofrer o que seria uma queda feia, fora
posto de lado por Ferguson e dispensado pelo almirante.
Enquanto a sra. Frawley abanava com vigor o rosto de Sophie e
Ferguson empurrava um copo de água pelos lábios dela, Benjamin fora
forçado a deixar a recepção. Seu sangue ainda fervia. Podia até sentir o
vapor a lhe sair pelas orelhas.
Não era de admirar que Sophie possuísse um gênio rebelde.
Benjamin haveria de preferir catar ostras pelo resto de sua existência a ter
de viver com o almirante Harrington.
A capacidade dela de resistir à rígida insensibilidade do pai era um
atestado da força da bela de cabelos dourados. Qualquer outra mulher
teria procurado um casamento prematuro. Determinada a conseguir a
independência, a filha do almirante escolhera suportar julgamentos e
tribulações.
Benjamin compreendia. Se Sophie achasse que iria se encontrar na
mesma posição desrespeitosa com um oficial da Marinha como marido,
acostumado a dar ordens e a ser obedecido sem questionamento como o
pai, a independência na realidade pareceria a única solução.
— Dê-me um uísque. Gus, o dono da taverna, serviu a bebida a
Benjamin.
— Onde está Flora?
— Doente. Assim ela diz. — Gus não parecia ter acreditado.
Benjamin não poderia culpá-lo. Flora adorava rapazes | mais que
servir uísque. A bela ruiva devia estar com Graham.
— É melhor deixar a garrafa, Gus. — E Benjamin entornou a bebida.
Ao se voltar, apoiou os cotovelos no balcão enquanto procurava
rostos familiares entre a multidão. Ao fundo, entre os jogadores de dardos,
viu alguém que não esperava encontrar.
— Matt! — Benjamin gritou o nome, com surpresa, tão alto que a
maioria dos fregueses se virou para ele.
Inclusive seu irmão. Matt olhou por sobre o ombro ao ouvir o próprio
nome. E começou a esboçar um lento e largo sorriso.
— Meu irmão!
Benjamin atravessou o salão mais rápido do que demoraria um
homem para acertar na mosca e envolveu o irmão caçula num abraço de

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urso. Fazia quatro anos que vira Matt, durante os quais se preocupara,
temera e imaginara que ele perdera a vida nos rudes campos de ouro da
Califórnia.
— Jamais fiquei tão feliz em ver alguém!
— Ora, você nunca disse isso antes! — Matt afastou-se. A audácia
ainda brilhava em seus olhos azuis, mas o rosto de adolescente escurecera
pelo sol até a textura de uma vela sela de couro.
— Jamais me senti do jeito que me sinto agora.
— Macacos me mordam se você não é um marujo da Marinha de
guerra! Nossa mãe me escreveu, dizendo que você se fora e se alistara,
mas era difícil acreditar que meu velho irmão iria aceitar ordens de algum
marinheiro do governo.
— É duro, mas aceito. Sabe as colinas da Califórnia não lhe causaram
danos, Matt. Você me parece bem, muito bem.
Embora os cabelos desgrenhados de Matt indicassem a necessidade
de um bom corte, continuava um rapaz bem-apessoado. Sua aparência
ficara mais interessante com o passar dos anos e a experiência adquirida.
— Estou bem, de fato. — Riu e enfiou a mão pelos cabelos em
desalinho. — Vim vê-lo para uma visita rápida antes de tomar o caminho
de Nantucket. Mamãe me disse que você estava aqui. Recebeu minha
carta?
— Ontem mesmo.
Matt deixou escapar um muxoxo.
— E possível cruzar o país mais depressa do que o correio funcionar
no prazo.
— Quando chegou a Annapolis?
— Faz pouco, na última diligência da tarde. Fui até os alojamentos,
mas não o achei.
— Eu estava... numa recepção ao ar livre.
— O quê?! Recepção ao ar livre?! — Matt soltou uma gargalhada que
ecoou pela taverna e quase sacudiu o teto.
Benjamin endireitou-se numa postura de "atenção".
— O pessoal da Marinha cumpre as funções a que é obrigado.
— Acho que é melhor voltar a Nantucket comigo, Benjamin, antes
que a Marinha faça de você um rato.
— Vamos nos sentar.
Com a mão nas costas do irmão, Benjamin conduziu-o até uma
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mesinha lateral. Nem bem se acomodou uma das garçonetes trouxe a


garrafa de uísque que ele pedira antes, junto com dois copos.
— Não sabe como estou contente em vê-lo vivo e bem! — Benjamin
serviu um copo e deslizou-o para Matt.
— Vou deixá-lo ainda mais contente.
— Não, não creio. Duvido que possa.
O rapaz se inclinou até ficar a apenas alguns centímetros da garrafa
que os separava.
— Achei ouro.
A cabeça de Benjamin saltou para trás por conta própria, como se
não fizesse parte do corpo.
— Como é?!
— Minerei até ter o bastante para viver com conforto pelo resto de
meus dias. E isso depois de lhe pagar tudo o que você gastou para liquidar
minhas dívidas de jogo.
Benjamin não podia acreditar no que ouvia.
— Você não fala a sério.
— Sério é pouco. Tudo o que lhe devia está depositado no banco da
rua principal à espera que vá buscar. Fiz o depósito esta tarde, com juros.
Aturdido por aquela inesperada reviravolta nos acontecimentos,
Benjamin só conseguiu arregalar os olhos e sorrir.
— Devo estar sonhando.
— Não, não está. Seu irmãozinho cresceu. Naquelas colinas da
Califórnia eu me dei conta da confusão que tinha feito de minha vida. Era
um moleque tolo que julgava que sabia tudo e que jogara fora tudo o que
a família possuía, u não ser a casa de nossa mãe, e foi você que a salvou.
— Teve um surto de má sorte, Matt.
— E depois fiquei a pensar em como sentia saudade de Nantucket.
Naquelas montanhas, sonhava com o som do mar. Vou ficar onde possa
ouvir as ondas a bater contra as rochas.
— Está pensando em caçar baleia de novo?
— Não, não preciso trabalhar. Mas talvez abra uma es cola, para
fazer o que você faz, mas com rapazes mais jovens. Os pequenos precisam
saber uma porção de coisas ;i mais do que ter perícia nos trabalhos do
mar. Têm de aprender a ler, escrever e fazer contas, para o caso de
acharem ouro. — Suspirou. — Somos felizes por termos uma mãe que
sabia ler e escrever.

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— Sim. — Embasbacado, Benjamin só conseguia ficar olhando para


aquele novo homem, amadurecido na adversidade, que dizia ser seu irmão
caçula.
— Somos os únicos dois Swain que restaram. De uma forma
figurada, devemos algo à ilha. Vou me casar com uma mulher de
Nantucket com quadris largos e ser pai de uns doze filhos.
Benjamin não cabia em si de alegria, e ergueu o copo.
— Vai tornar alguma moça de sorte uma mulher muito feliz.
— Bebamos a isso!
— Até quando ficará em Annapolis?
— Agora, que já o vi, partirei de manhã, depois de fazer barba e
cabelo. Depois, estarei ocupado em encontrar aquela moça de sorte.
— Ficou longe da ilha por anos, meu irmão. O pessoal de lá vai
adorar ter um Swain de volta.
— E você, Benjamin? Pensa em voltar?
— Não; ainda não, de qualquer forma.
— Achou uma moça?
Em resposta, Benjamin endereçou um sorriso que queria dizer talvez.
Sim, encontrara. E ela não era dele.
— Swain?
Absorto na conversa com o irmão, Benjamin não percebera que
Andrew Ferguson se aproximara. Aquilo significava que teria de se levantar
e saudá-lo com formalidade na frente do irmão. Matt caçoaria, porém
Benjamin não tinha escolha.
— Capitão Ferguson...
— Eu o considero responsável pelo incidente na recepção desta noite.
Vou avisá-lo apenas uma vez: fique longe da filha do almirante.
Nos velhos tempos, poucas semanas atrás, Benjamin teria posto a
nocaute aquele fanfarrão. Contudo, na companhia de Sophie, aprendera a
necessidade de manter o temperamento sob controle. Mesmo assim, sentiu
um desejo enorme de soltar um punho fechado na barriga de Andrew. Em
vez disso, no entanto, fitou o sujeito com a sombra de um sorriso,
esperando irritar ainda mais o inadequado pretendente de Sophie.
— Sim, senhor.
— Ou mandarei expulsá-lo.
— Sim, senhor. Com uma curta saudação e um chocar dos
calcanhares,
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o capitão saiu da taverna.


— O que foi isso? E por que não o encheu de socos? O que a Marinha
fez a você, Benjamin?!
Não fora a Marinha; fora Sophie.
Muitas horas mais tarde, abaixado para evitar as traves, Benjamin
olhou pela janela de seu quarto no sótão, na casa do almirante.
Ninguém estava acordado quando ele regressara. Exceto pelas
lamparinas de querosene no corredor, tudo se mantinha escuro e quieto.
Fitou a distância, mas nada pôde ver a não ser a negra escuridão noturna.
O negror combinava com seu ânimo. Negro como piche.
Matt planejava retornar para Nantucket pela manhã. E quando
Benjamin recuperasse o romance de Sophie, o que confiava que
conseguiria no dia seguinte, ela estaria perdida para ele para sempre.
Agora, formalmente comprometida com outro, o destino daquele espírito
rebelde fora selado. Quando devolvesse o livro ao almirante, Benjamin
seria designado para uma função no mar, e Sophie seria obrigada a se
casar com Andrew Ferguson.
Seu coração ansiava por ela, por causa daquilo que acontecera mais
cedo na recepção da sra. Frawley e porque Ferguson aparecera mais tarde
na Taverna Reynolds. Benjamin gostaria de confortá-la, e a sensação
persistira mesmo depois da alegre reunião com seu irmão, vários drinques
e um gordo charuto.
Sophie ficara em choque quando Ferguson anunciou o noivado. Que
surpresa cruel! Ela não era uma mocinha frágil propensa a desmaios,
contudo possuía uma alma sensível.
Nada se movia na velha mansão, nem mesmo uma vela pingava.
Todos dormiam, a não ser Benjamin. E Sophie. Sophie não poderia
conciliar.
Na firme crença arrogante de que ela precisava dele, foi procurá-la.
Saiu sem fazer ruído, desceu as escadas e atravessou o corredor, na
esperança de que Sophie pudesse apreciar sua companhia por um
momento.
Ela respondeu à primeira batida suave, o que indicava que estava
acordada. Ao indicar, num gesto mudo, que ele entrasse no dormitório
espaçoso, ela fechou a porta atrás de Benjamin.
Uma lamparina queimava, e os pálidos raios dourados lançavam luz
suficiente para que Benjamin visse os olhos dela inchados e vermelhos de
tanto chorar.
Ele traçou o caminho das lágrimas com a ponta dos dedos. Os lábios

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de Sophie tremiam. Benjamin trocaria a própria vida por um poder mágico


que aliviasse aquele coração partido e banisse aquela melancolia.
Sophie ergueu os olhos úmidos. E Benjamin baixou a cabeça até não
conseguir mais ver tanta tristeza, até que a testa descansasse no ninho de
suaves ondas presas no alto da cabeça de Sophie. Ela estava descalça.
Atingido de repente por um violento desejo de lhe beijar os pés,
Benjamin cerrou as pálpebras e exalou a respiração que contivera.
Alcançara um novo nível de insanidade. Nunca beijara os pés de uma
mulher antes, nem tivera o menor desejo de fazê-lo.
Voltando-se, Sophie afastou-se dele. Sua camisola de cetim farfalhou
atrás dela. Benjamin a seguiu e segurou-a pela mão, puxando-a para que
o fitasse.
— Você está bem?
— Oh, Benjamin! — Sophie o enlaçou pelo pescoço co o fervor de
uma mulher prestes a naufragar.
Ele a apertou contra o peito.
— Seu pai e Ferguson não me deram a oportunidade falar com
você... ou ficar a seu lado.
— Eu não sabia que Andrew pretendia anunciar nosso noivado. Ele
não me perguntou, ou eu teria dito que não poderia desposá-lo.
— O que vai fazer?
Sophie soltou-se dos braços de Benjamin.
— Dar-lhe uma razão para romper o noivado.
— Como o quê?
— Não sei. Cavei uma trilha no tapete de tanto pensar nisso. Estou
tentando imaginar o que Fifi LaDeux faria na mesma circunstância.
— Imploro que não faça nada impulsivo, Sophie. Você não é a
heroína de um romance. Seu pai não reagiria com gentileza diante de uma
rejeição de Andrew, depois de um anúncio público.
— Ele decerto irá rugir gritar e me mandar para St. Louis. Mas o que
importa? Você estará em seu navio.
— Não vejo nenhum navio à vista. Fletcher Thurman ainda me
escapa.
— Porém ele está aqui! — exclamou, animada pela ex-citação. — Sei
que está porque estive com Abigail.
— Onde? Quando?
Com um gesto de descaso, Sophie se afastou.
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— É uma longa história.


— Tenho tempo. Abigail lhe contou onde Fletcher está escondido?
— Não, dormiu antes que pudesse me dizer. Abigail não está mais
com ele.
— O que houve?
— Não sei. — Meneou a cabeça, parou e sorriu. — O que sei é que a
ajudei a dar à luz a filha hoje.
— Você? — Ciente do quanto Sophie receava ter filhos, Benjamin
julgava impossível que ela participasse de um parto.
Suspeitou de um estratagema para desviá-lo das perguntas sobre
Abigail e Fletcher.
— Não é metade do pavor do qual eu ouvira falar. E embora a
criança tenha nascido antes do tempo e seja frágil, parece sadia.
— Ótimo. Bom para você e bom para Abigail. Benjamin ficou a
imaginar se a experiência curara Sophie do medo de ter filhos. Não faria
diferença, contudo. Ela nunca seria dele. Se recusasse a casar com
Ferguson, Wesley sem dúvida a mandaria embora.

E em seguida o almirante Harrington começaria a procurar outro


oficial de alta patente para desposar e domar a filha rebelde.
— A primeira coisa que hei de fazer amanhã é pegar Abigail e o bebê
e trazê-los para cá, onde você poderá interrogá-la.
Sophie o deixaria interrogar Abigail?!
— Onde estão agora?
— Com Flora.
— Seria melhor se eu interrogasse Abigail aqui. Desse jeito seu pai
jamais precisaria saber da cumplicidade dela se você preferir não contar a
ele. Abigail pode passar por inocente, uma vítima daquele demônio,
Fletcher Thurman tanto quanto você.
— Claro! Eu deveria ter pensado nisso. Obrigada, Benjamin. Parece
que estou sempre lhe agradecendo... Você sempre me salva do desastre
iminente.
— Estou ficando bom nisso, não estou? — Mas o comentário
brincalhão mascarava um coração pesado. Benjamim desejava poder
salvar os sonhos de Sophie. — Verei Abigail assim que amanhecer. Com
sua ajuda e um pouco de sorte terei Fletcher sob custódia no final do dia.
— Se eu não o tiver enredado em minha teia até então.

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— O quê?
— Tenho meus próprios planos para o futuro de Fletche Thurman.
— Aquele sujeito é perigoso, Sophie. Fique longe dele e deixe que eu
cuido disso.
— E depois vai entregar meu romance a meu pai e sairá de Annapolis
no primeiro navio que partir do porto.
— Você está escrevendo um novo romance, eu vi o outro diário.
Talvez seja aquele com o qual ganhará sua independência. E nesse caso,
ambos teremos conquistado o que buscávamos.
— E assim parece que não poderíamos mais ficar juntos.
— Talvez não. Porém sempre poderemos ser amigos. Não importa
onde eu estiver no mundo, sempre comprarei e lerei seus romances. E lhe
escreverei longas cartas de meu navio, descrevendo tudo à vista. Você
será a primeira a ver meus projetos para os navios que levarão a Marinha
para o futuro.
— Calou-se e tomou-lhe as mãos nas suas. — E você me i escreverá
do chalé da rua Príncipe George contando sobre sua última escapada.
— Sim, sim, eu contarei!
— Temos nossas lembranças.
— E temos esta noite.
— O quê? Como poderia pensar em fazer amor com a filha do
almirante em seu quarto? Que tipo de tolo faria uma coisa louca e ousada
dessas debaixo do teto do oficial comandante?
Ele. Naquele instante, ao fitar os olhos luminosos de Sophie,
Benjamin sentiu-se esse tipo de tolo.
O momento seguinte apagou toda dúvida e o bom senso que lhe
restara.
— Se esta for nossa última vez juntos, eu gostaria de recordar o
amor que partilhamos Benjamin. Portanto, tranque a porta e deixe-me
amá-lo.
Era arriscado. Se fosse flagrado no leito de Sophie, Benjamin seria
trancado a ferros e jogado numa prisão pelo resto da vida.
— Sei o que estou lhe pedindo, e entenderei se preferir sair.
Aquilo não soava como palavras da desafiadora e impudente Sophie
que ele conhecia; nem era a futura romancista inclinada a conduzir
pesquisas íntimas. 0 desejo aprofundara o tom e emprestara à voz dela
uma rouquidão incomum. De uma nova mulher. Que o desejava.

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CHE 211 - Sandra Madden - A FILHA DO ALMIRANTE

Benjamin trancou a porta.


Abigail acalentava sua filhinha adormecida. Embora pequena e
enrugada, Flora Sophie Grant era um belo bebê. A mãe olhou para a
recém-nascida, fazendo votos para que tivesse uma boa vida.
Flora deixara Abigail e a menina para cuidar do bar n;i Taverna
Reynolds. A noite caíra, e com ela chegara o medo para Abigail. Ela se
encolhia a cada som, ao pio das corujas, ao ruído das tábuas a estalarem.
Fletcher poderia estar a sua procura, e Abigail temia que pudesse
encontrá-la. Amor c casamento não estavam mais na cabeça do homem
por quem se apaixonara.
Recuperada o suficiente da exaustão física do parto, Abigail
concentrou-se em sua difícil situação. Depois de receber a visita de Sophie
e do belo Benjamin Swain, dera-se com da enormidade de seu erro.

Incapaz de ir avante e compactuar com Fletcher no esquema de


chantagem, gastou as últimas moedas para volta a Annapolis. Resolvida a
encontrá-lo e impedi-lo, percorrer os arredores até chegar a um velho
celeiro abandonado. Fletcher, escondido no paiol, respondeu a seu
chamado Abigail passou a noite com ele, tentando convencê-lo a desistir
da empreitada. Fletcher se recusou, ameaçando matá-la e à criança se
Abigail tentasse interferir.
Ela concordou como sempre concordara com qualquer coisa que ele
dissesse, mesmo quando soubesse que não era correto. Porém, daquela
vez era diferente, pois Fletcher lhe partira o coração.
Abigail permaneceu com Fletcher durante uma noite insone e, aos
primeiros raios de sol, fugiu. Deixando-o a dormir no celeiro, voltou para a
cidade pelos campos. A primeira contração a atingiu quando chegava à rua
principal. Por instinto, apressou-se a buscar a ajuda de Flora Muldoony.
Um dia inteiro se passou desde então, e Fletcher deveria procurar seu
paradeiro. Durante as nebulosas contrações, Abigail não pôde confessar a
verdade para Sophie Harrington. A filha do almirante se desdobrara em
gentilezas, aparando o bebê e lhe prometendo um teto.
Abigail caíra no sono a acalentar o bebê enquanto Sophie explicava a
Flora o que houvera durante a ausência da garçonete. Quando Abigail
acordou, Sophie tinha ido embora, deixando um recado para que a
esperasse logo ao amanhecer. A filha do almirante pretendia levar Abigail e
sua menina para casa.
A manhã, porém, estava a horas de distância, e Fletcher, lá fora, em
algum lugar, procurava por Abigail.
Sophie acordou num sobressalto. Pretendia levantar-se aos primeiros
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raios de sol, mas um olhar lhe bastou para que se desse conta de que o
dia nascera fazia algum tempo. O astro-rei ardia forte já, os raios a se
infiltrar pelas janelas.
Estendeu a mão para o travesseiro ao lado. Puxou-o e enterrou a
face na fronha macia. Aspirou fundo, tomada de languidez. O aroma viril
de Benjamin Swain se agarrou à fronha onde a cabeça de seu amado
descansou até as horas mais densas da noite. Em algum momento, bem
depois de Sophie ter adormecido aninhada nos braços dele, Benjamin se
foi.
A serenidade interna que muitas pessoas conheciam, mas que
sempre se esquivou dela, Sophie encontrou por fim junto de Benjamin.
Envolvida por aquele abraço caloroso e forte, sentiu-se mais leve que o ar
que respirava. Seus pés não mais tocavam o chão, e Sophie vagueara por
trilhas de imaculadas nuvens brancas. Pairara sobre luminosas águas de
um azul tranqüilo.
Sem jamais ter feito amor com um homem, uma tímida incerteza
reprimiu Sophie no início. Todavia, quando pousou as palmas naquele
tórax compacto, os dedos a formigai ao toque dos músculos rijos, dos
pêlos encrespados, da carne irregular, em questão de minutos sua inibição
se dissipou, substituída por uma paixão avassaladora.
Aquela, porém, fora a última noite, e essa era a nova manhã. Com
relutância, pôs o travesseiro de lado. Gostaria de poder afastar as
lembranças de Benjamin com a mesma facilidade. Se não pudesse ter o
belo marinheiro consigo, não teria nada.
Mas ainda lhe restava um sonho. Depois de se vestir apressada,
Sophie recusou o desjejum e saiu para uma missão mais importante, uma
que poderia lhe mudar o destino.
— Espere, Srta. Harrington! "O assistente de papai. Droga!"
Sophie estava a caminho da casa de Flora, com a intenção de
interrogar Abigail antes de Benjamin. Tinha planos de procurar Fletcher
Thurman por conta própria.
Ciente de que poderia precisar de mais que determinação para
recuperar seu romance, carregava uma pistola Derringer na bolsa. O
pequeno revólver era a última palavra em armas. Sophie o emprestara da
caixa de armamentos do almirante com a certeza razoável de que o sumiço
não seria notado por algumas poucas horas. Também enfiara as economias
na bolsa. Em um ano, poupou trinta dólares da mesada. Em sua opinião,
aquela era uma grande quantia de dinheiro, mais do que valia a
informação contida no diário.
O bandido teria de se dar por satisfeito com muito menos do que

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pedira pelo resgate ou ela seria forçada a dar-lhe um tiro.


Resolvida a recuperar o romance, Sophie faria qualquer coisa.
Embora nunca tivesse disparado uma arma antes, observara os aspirantes
nas aulas práticas.
Sua frustração não tinha limites ao seguir o assistente do almirante
até o escritório do pai. Sua cabeça zunia como se uma nuvem de abelhas
tivesse feito ninho lá. Agulhadas e picadas a pinicavam.

De sobrancelhas franzidas, bufara de impaciência diante daquela


ordem... e era o que era, uma ordem. Wesley nunca lhe pedia a presença.
Exigia, como se Sophie fosse ainda uma menina de escola.
Benjamin estaria adiante dela. Se seu pai a atrasasse, não teria
esperanças de encontrar Fletcher Thurman antes dele.
O almirante sentava-se à escrivaninha, a alisar a barba em V. Andrew
Ferguson, tão rígido como uma das barbatanas de tubarão do espartilho de
Sophie, se encontrava ao lado dele.
Oh, não, mais problemas...

Capítulo XVII

Os lábios comprimidos e a expressão sombria do almirante pareciam


mais intimidadores que de costume quando ele olhou para Sophie por
detrás da escrivaninha Desde as mais remotas recordações, parecia que
ela sempre se postara do lado oposto da mesa de seu pai. Um tipo d
parede ou muralha se interpunha entre os dois.
Andrew Ferguson, junto do almirante, ostentava um ar estóico de
mártir.
— Está se sentindo melhor hoje, querida?
— Sim, muito melhor, obrigada. Não tenho o hábito d sucumbir
quando tomada de surpresa.
— Tarde demais, percebi meu erro. Eu deveria ter discutido o que
havia planejado com você, Sophie. Mas, por ter esperado tanto para
anunciar nosso noivado, com um atraso atrás do outro, resolvi tomar o
assunto em mãos em vez de me ver diante de outra objeção.
Como decerto aconteceria.
— Além disso, como deve se recordar, eu tinha a bênção de seu pai.

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— E mais uma vez você me deixou constrangido, Sophie — o


almirante emendou.
— Papai, não era essa minha intenção. Só... aconteceu.
A explicação nada fez para suavizar a carranca do almirante. Sophie
consultou o relógio, no canto. Tempo precioso se escoava. Benjamin
estaria adiante dela. Enquanto ele se confrontava com Fletcher Thurman,
ela estava ali, a acalmar o orgulho ferido do capitão Ferguson. Que
injustiça!
— Andrew já pediu sua mão — o pai resmungou. — O anúncio público
não deveria ser assim tão chocante.
— Pois é, papai. Não sei o que me deu, mas eu ficaria feliz em falar
sobre isso mais tarde. Estou atrasada para um compromisso na cidade.
O olhar do almirante estreitou-se sobre a filha. Seus olhos
acinzentados não irradiavam luz, nem perdão.
— Nenhum compromisso que possa ter é tão importante como chegar
a um mútuo entendimento e estabelecer um rumo para o futuro.
— Sim, senhor.
— Já que o capitão Ferguson anunciou sua intenção de fazê-la sua
esposa, senti-me na obrigação de lhe contar a humilhante situação em que
nos encontramos.
Sophie esperava que seu pai não quisesse dizer aquilo que julgava
que ele dizia.
— De que se trata, papai?
— Andrew foi generoso em concordar em pagar o resgate para
recuperar seu diário. E permanece firme em sua disposição de desposá-la.
Tudo o que o capitão pede em retorno é que eu transfira Benjamin Swain
de imediato e que você desista de escrever seus romances.
— Não! — Tremendo de indignação, Sophie tinha dificuldade em
respirar. Voltou-se para Andrew, que olhava para o teto. — Peço que me
desculpe, mas não posso me casar com você. Não o amo, Andrew. Além do
mais, eu., não quero me casar... com ninguém!
— Você desposará o capitão Ferguson ou será mandada para Saint
Louis!
— Farei minhas malas e mandarei um bilhete para minha tia avisando
que logo chegarei lá.
— Girando nos calcanhares, Sophie rumou para a saída, porém parou
a meio caminho.
— Você é um bom homem, Andrew. E será o marido perfeito para

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alguma mulher. Não quero constrangê-lo ou humilhá-lo por terminar nosso


noivado. Porém, se tivesse me falado antes, eu poderia explicar. Anseio
por longo tempo ser uma mulher independente.
— Mas... toda mulher deseja se casar!
— A maioria delas, mas nem todas. — Foi quando lhe ocorreu uma
brilhante idéia. — Minha amiga Rosalind está à procura de um marido e
prefere que seja um oficial da Marinha. Eu o apresentarei à Srta. Montrose
antes de partir para Saint Louis.
Andrew pareceu aparvalhado. Ela mudava depressa de um
pensamento para outro, e aquilo o confundia.
— Se não se casar, o que fará de sua vida?
— Quero ser escritora.
— Escritora! — O pomposo capitão ergueu os braços. — Que tolice,
Sophie! Já não causou problemas suficientes com sua escrita?
Ela empinou o queixo, orgulhosa, tão alto quanto conseguiu.
— Nem tanto.
Enquanto Andrew lançava perdigotos de espanto, o almirante saltou
da cadeira.
— Já chega, sua garota insolente, atrevida... incorrigível! Saia! Ficará
confinada em seu quarto até ordem posterior.
— Papai, por favor...
Recobrando a compostura, o capitão Ferguson intercedeu:
— Os ânimos estão muito alterados. Talvez devêssemos continuar a
conversar à noite.
O almirante respirou fundo e recuperou a postura militar.
— Espero que tenha razão, Ferguson.
— A despeito desse impulso fantasioso, ainda quero me casar com
Sophie.
Sophie maravilhou-se diante da tenacidade do capitão até que ele se
dirigiu a ela de uma maneira superior: — Tenho certeza de que você há
de recuperar o juízo em breve, querida. Nesse ínterim, seguiremos adiante
e cuidaremos do assunto do resgate e do marinheiro Swain.
Sophie abriu a boca para objetar, porém não falou a tempo.
— Saia! — gritou-lhe o pai, apontando a porta. — Para seu quarto,
já!
Espicaçada por aquele autoritarismo, Sophie endireitou os ombros,

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ergueu a cabeça e marchou para fora do escritório sem um olhar para trás.
Conhecia seu histórico. Mais de um marinheiro enfrentara a morte
por se recusar a obedecer a uma ordem do almirante. Mesmo assim, ela
não poderia voltar para o quarto quando todos os seus sonhos
desmoronavam em tomo dela como uma chuva de cinzas.
Benjamin encontrou-se com seu irmão do lado de fora da diligência,
ao raiar do dia. Estar com Matt de novo fora unia bênção, e não porque
seu irmão fosse agora um homem rico Saber que ele triunfara e superara
todos os obstáculos dava lhe um enorme prazer.
Ver que Matt se tornou um homem amadurecido com planos de fincar
raízes em Nantucket removia um lastro de remorso dos ombros de
Benjamin. Não seria mais apenas ele o responsável pela mãe; não mais
teria de se preocupai em povoar o mundo com pequenos Swain.
Imensas nuvens pesadas e cinzentas rolavam pelo firmamento,
prometendo tempestade antes que o dia findasse Benjamin correu para o
quarto de Flora, em cima do estábulo. Se tivesse sorte, e era hora de a
sorte aparecer, arrancaria em breve informações de Abigail. Decidido a
encontrar e capturar Fletcher Thurman antes do meio-dia, Benjamin
imaginava que poderia ter seus papéis de embarque a hora do jantar.
Subiu as escadas da residência de Flora de dois em dois degraus.
Sem tentar ocultar a ansiedade, bateu na porta. Depois de esperar um
pouco, ninguém veio atendê-lo. Apurou a audição. Nenhum choro de
criança. Nenhum barulho. Se Abigail tivesse sumido, ficaria furioso.
Cruzando os braços, Benjamin olhou para a porta fechada como se
ela pudesse lhe dar respostas. Ouviu o som abafado enquanto pesava as
opções que lhe restavam. Não hesitou Com o ombro, arrombou a porta. —
Flora!
A pobre Flora jazia amarrada e amordaçada no chão. Seus olhos
verdes reluziam de ira, seus cabelos ruivos caíam em uma massa
embaraçada. Apenas de camisola, parecia ter começado o dia pelo lado
errado da cama. Não que Benjamin ousasse mencionar o fato a ela.
Ao se agachar ao lado da lívida mulher, Benjamin tirou-lhe o lenço
desbotado que lhe tapava a boca. Em vez de agradecer, Flora gritou:
— Se eu pegar aquele maldito, eu o matarei!
Seus braços estavam manietados atrás das costas, as pernas, presas
pelos tornozelos. Benjamin trabalhou rápido para libertá-la.
— Isso quer dizer que conheceu Fletcher Thurman?
— Ele pegou Abigail e o bebê. Que tipo de homem ameaça matar a
própria filha?!

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— Nenhum que eu conheça.


— O desgraçado se apossou do bebê para ter certeza de que Abigail
não o denunciaria antes que ele consiga o resgate, esta tarde.
Teria o almirante concordado em pagar o resgate sem avisar
Benjamin?
— Sabe para onde Fletcher levou os dois, Flora?
— Não.
— Pode se recordar de como estava vestido? Como era ele?
— Usa calça folgada e uma camisa axadrezada. E um daqueles
chapéus grandes de feltro peludo que quase lhe esconde o rosto. Mas Flora
pôde ver que tinha um bigode. As botas chegavam aos joelhos.
— Mais alguma coisa?
— Parece um lavrador sujo e pobre. Apenas os santos nos céus
sabem o que Abigail viu naquele sujeito!
— Pode pensar em algum lugar onde um homem poderia se esconder
não muito distante da ponte do riacho do cemitério?
— Há aquele velho moinho abandonado no caminho, a nordeste do
terreno da Academia.
— Obrigado!
— Traga Abigail e o bebê de volta inteiros, Benjamin. Flora conhece
os homens e tenho certeza, como o sol se porá de noite, que Fletcher
Thurman não dará a Abigail e ao bebê nada além de sofrimento.
— Farei o melhor que puder, Flora. — Benjamin correu para as
escadas. — E se Sophie vier procurar por Abigail, não lhe diga o que
aconteceu. Não quero que se envolva e se machuque.
— Acha que ela irá atrás de Thurman também?
— Você duvida? Flora meneou a cabeça.
— Flora talvez tenha de amarrá-la.
— Se precisar de mais corda, achará bastante em meu veleiro.
Confiante de que Flora impediria Sophie de segui-lo, Benjamin
chegou ao estábulo da Academia em tempo recorde. Não vira Sophie
naquela manhã e não sabia se sua ausência daquele melodrama deveria
preocupá-lo ou não. Ela poderia ter visto Thurman seqüestrar Abigail e a
criança e resolvido segui-lo. Esperava que Sophie não estivesse em perigo.
Selou o primeiro cavalo disponível que encontrou e saiu em disparada
antes que alguém o visse. Embora pudesse ir a pé até a ponte do riacho do
cemitério, não sabia direito a exata localização do moinho. A cavalo lhe
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pareceu mais prudente e mais rápido.


Estava quase acabado. Em breve estaria a bordo de um navio,
âncoras recolhidas, velas enfunadas, e sentindo o borrifo salgado do vento.
De noite, ficaria projetando os navios do futuro.
A idéia que lhe ocorreu, no entanto, a seguir roubou-lhe o ar dos
pulmões: perderia Sophie Harrington. Nunca mais ouviria sua risada, nem
olharia dentro de seus olhos notáveis, ou provaria seus lábios doces e
macios. Não mais escutaria histórias das excitantes aventuras de Fifi
LaDeux.
Contudo, talvez com Sophie fora da vista, ele pudesse tirá-la da
cabeça também. Talvez...
Sem avisar, seu bom-humor se esvaiu. A ebulição do instante
anterior lhe escapou, deixando Benjamin com a sensação de estar morto,
boiando na água.
Sophie chegou ao quarto de Flora num total estado de agitação. O
cheiro dos cavalos não lhe acalmou os nervos... ou o estômago.
Quando a amiga a atendeu, ela irrompeu pelo aposento e estacou.
— Onde está Abigail? Onde está o bebê?!
— Foram embora.
— Benjamin Swain os levou? Ele esteve aqui?
— Sim, esteve, mas foi Fletcher Thurman quem levou Abigail e a
pequena Florrie.
— Não!
— O pilantra amarrou Flora também.
— Você se machucou?
— Só meu orgulho. Espero que Benjamin mate o miserável!
— Benjamin foi atrás dele?
— O que acha? Sophie virou-se para sair. Não esperava que Flora
tentasse impedi-la.
Por isso o empurrão que levou foi uma desagradável surpresa. Caiu
no chão duro com um baque. Seu nariz achatou-se contra as tábuas do
assoalho.
— O que está fazendo?!
— Benjamin disse para mantê-la aqui.
— Flora, se eu não recuperar meu diário, estarei casada com Andrew
Ferguson antes que você possa piscar. Ou me caso com um homem de

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quem não gosto, ou meu pai me porá na diligência para Saint Louis. Estas
são minhas opções! Flora colocou o pé descalço sobre as costas de Sophie.
— Ninguém pode forçá-la a se casar ou deixar a cidade.
— Meu pai tem seus meios. A garçonete suspirou.
— Benjamin está fazendo isso para seu próprio bem. Ele não quer
que você se machuque.
Apoiada nos cotovelos, Sophie esticou-se e olhou por sobre o ombro,
vendo a ruiva que a mantinha cativa.
— Benjamin não sabe o que é bom para mim, Flora. Andrew
concordou em pagar o resgate se meu pai assinar os papéis de dispensa de
Benjamin. Andrew ficará com meu romance, e Benjamin será mandado
para o mar. O almirante Johnson não olhará para seus projetos de navio, e
ele não viverá uma vida independente.
— O capitão Ferguson é um homem ciumento.
— Não tem razão para isso.
— Claro que tem. Deve ter notado o jeito como Benjamin a olha. A
cidade inteira sabe que Benjamin Swain está louco de amor por você.
— Não!
— Não falam mais de seus calções, mas do belo casal que você e o
instrutor de navegação fazem.
— É apenas falatório. Será que sempre serei perseguida por esse tipo
de coisa?
— Pela primeira vez, é verdade.
Por mais que Sophie desejasse acreditar em Flora, julgava
impossível. Benjamin jamais dissera que a amava, nunca indicara que
haveria de preferir ficar em Annapolis com ela que fora, no mar.
Embora se orgulhasse de possuir uma formidável imaginação, Sophie
não poderia permitir que seus devaneios criassem pernas e fugissem de
seu controle. Benjamin Swain já lhe roubara o coração e a fizera renegar o
voto de castidade. Não poderia deixar que ele interferisse em sua
derradeira determinação.
— Não tenho tempo para mexericos, Flora. Se Fletcher Thurman
chegar à ponte e pegar o resgate, meu romance será destruído. Meu pai e
Andrew irão jogá-lo no fogo. Meses de escrita terminarão em cinzas, e eu
não terei chance de viver por minha conta, como sempre sonhei. Alguém
mais, que não serei eu, irá morar no chalé da rua Príncipe George.
Não mencionou o que poderia acontecer se Wesley ou Andrew lessem
o diário. Se o almirante se reconhecesse, iria deserdá-la, e Andrew saberia

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quem conquistara a filha do almirante.


Depois de um longo momento de ponderação, a garçonete respirou
fundo e endireitou os ombros.
— É melhor Flora ir com você.
— Depressa, não temos tempo a perder!
Deixando o cavalo amarrado numa árvore perto da estrada, Benjamin
aproximou-se, cauteloso, do moinho abando nado. A área de mata que o
cercava dava-lhe proteção par seguir pelo caminho sem ser visto.
Esgueirou-se por entre as árvores, num lento avanço, sempre abaixado.
Agachou-se atrás de uma pedra, apenas a alguns metro do moinho, e
apurou os ouvidos. A não ser pelos insetos passarinhos que zumbiam e
cantavam na mata, não escuto nenhum som.
Fletcher poderia não ter se escondido ali, afinal. Benjamim fizera uma
aposta, na qual precisava confiar. A tensão Ih pesava na boca do
estômago.
Ainda abaixado, correu para a edificação, parando atrás dos grossos
troncos de carvalho para certificar-se de não se notado. Ao chegar ao local
em ruínas, comprimiu-se contra a parede e seguiu em direção à porta
aberta.
Uma criança chorou.
O som de um tapa ecoou no ar.
Uma mulher gritou de dor.
Depois de alguns minutos, o bebê sossegou.
Benjamin tirou a pistola da bota, um dos novos revólveres Colt da
polícia. Olhos focalizados em contínuo escrutínio, esgueirou-se para dentro
do moinho. Uma vez lá, seguiu furtivo pelas sombras, à espera de que a
visão se ajustasse à luz fraca.
A primeira coisa que avistou com clareza foi a plataforma, onde
estava a família de Thurman. Abigail acalentava seu bebê enquanto
Fletcher vigiava da janela voltada para o Sul. Se alguém se aproximasse
vindo das vizinhanças do riacho do cemitério, Thurman veria o intruso. Não
levara em consideração nenhuma outra possibilidade, inclusive aquela pelo
Norte, que Benjamin acabara de usar.
Fletcher fracassara como lavrador e, pelo visto, também não tinha o
feitio de um bandido de sucesso. Faltava-lhe a inteligência necessária para
a profissão escolhida.

Benjamin se manteve nas sombras e aproximou-se em silêncio da

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plataforma até se ver a apenas alguns metros de


Fletcher. Esperava que Abigail não mudasse de opinião. Naquele
caso, poderia correr em auxílio de Thurman. Era um risco que teria de
levar em conta.
Saindo da penumbra, ele subiu agachado a escada que levava à
plataforma. O terceiro degrau estalou. Parou e se encolheu mais ainda.
— Ouviu isso? — Fletcher perguntou a Abigail.
— O quê? Não ouvi nada. Fletcher resmungou alguma coisa.
Benjamin contou até dez e galgou os degraus restantes.v Saltou sobre
a plataforma como revólver engatilhado, apontando a arma para a cabeça
do lavrador.
— Acabou, Thurman. Vire-se, e bem devagar. Fletcher se voltou tão
depressa que perdeu o equilíbrio.
— De joelhos!
— Não atire. Não fiz nada. Não atire — Fletcher implorou, trêmulo,
obedecendo-o.
— Fez demais. Deite-se de braços abertos.
Lágrimas do tamanho de botões espirravam dos olhos d Abigail. Sua
face esquerda, muito pálida, ostentava a marca escarlate da mão de
Thurman.
— Ele me obrigou. Fletcher tirou a mim e ao bebê a casa de Flora.
Eu não queria vir junto, mas não tive escolha
— Está tudo bem, Abigail. Você está a salvo agora.
A jovem recuou para longe de Fletcher, enquanto Benjamin revistava
o bandido lacrimoso. Manteve o revolvo apontado para a cabeça do
marginal. Dois bolsos externo do casaco de Thurman estavam costurados.
Benjamin achou uma arma, que jogou pela janela. No bolso direito,
encontrou o diário de Sophie. Tirou o livro de capa preta, com um gesto
firme.
— Levante-se! — gritou para o bandido, que começara a praguejar
mais que um marujo.
— Não irei para a cadeia! — Fletcher encarou Benjamin com evidente
hostilidade.
— Levante-se, vamos!
Benjamin não esperava o que se deu a seguir. Em meio ao ato de se
erguer, Fletcher pareceu ter perdido o equilíbrio. Ao cambalear, levou a
mão para trás da calça. Quando o bandido tombou para cima dele,

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Benjamin viu de relance um lampejo prateado, mas percebeu tarde


demais. A lâmina atingiu-o no peito.
Girando de surpresa e dor, Benjamin deixou cair o romance ao ir para
trás. O rosto de Thurman tornou-se um borrão conforme a tontura o
invadia. Como um bêbado, ele se desequilibrou e caiu de braços. O último
pensamento consciente de Benjamin foi que caíra sobre o diário de Sophie
Flora dirigia a carroça alugada como se os cavalos tivessem asas.
Contudo, nem os animais eram alados, nem a carroça tinha molas. Sophie
se agarrava ao banco, temendo pela própria vida a cada solavanco.
A dupla de cavalos corria pela estrada de terra que levava ao moinho
como se o diabo os perseguisse. Depois de resolverem que a estrada de
trás era o melhor caminho, no caso de Fletcher tentar escapar, Sophie e
Flora rumavam direto para a tempestade que se avizinhava.
Sophie avistou o primeiro lampejo de um raio ao longe. O relâmpago
correu pelo céu, iluminando a extensão e a largura do rio Severn. Porém,
ela não poderia recuar.
— A borrasca está vindo sobre nós! — Flora gritou, e refreou os
cavalos.
— Não pare! Temos de continuar!
— Flora não pode dirigir com lama e raízes, é muito perigoso.
Com a mão sobre a barriga, à altura do estômago enjoado, e a outra
a segurar o banco, Sophie afirmou, irredutível:
— Temos de prosseguir.
— Não, não podemos! O céu está negro como a noite.
— Você pode voltar, mas me leve antes.
— Vai começar a chover em breve. A tempestade estará sobre sua
cabeça antes que chegue ao moinho, Sophie.
— Preciso encontrar Fletcher antes que ele entregue meu romance a
Andrew e pegue o resgate.
Flora conseguiu deter os animais, e Sophie saltou da carroça logo
quando outro raio cortava o céu. Um terrível ribombar de trovão amoleceu-
lhe os joelhos. Respirou fundo. Seu coração batia contra as costelas,
disparado. Se não recuperasse o diário, toda a esperança de uma vida
sonhada iria morrer.

Criaria coragem e conversaria muito a sério com o almirante, para


que concordasse com uma troca. Se ela trocasse os nomes dos
personagens do romance, poderia publicar o livro sob um pseudônimo e

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viver a vida com que sonhava no chalé dos Bailey, na Rua Príncipe George.
— Volte! — gritou para Flora, antes de correr para a mata, em
direção ao moinho.
E Sophie se foi, em desabalada carreira.
Ela diminuiu o passo quando chegou perto. A porta estava aberta e
batia com o vento, que ganhava força a cada minuto. Os primeiros outros
sons que escutou foram o choro do bebê e os soluços de Abigail.
Receando o pior para a antiga criada e a criança, refreou o impulso
de irromper moinho adentro. Em vez disso, entrou com cuidado, a se
esgueirar pela escuridão.
Quando sua visão se ajustou à pouca luz, Sophie reagiu com um arfar
horrorizado. Benjamin jazia no solo. Abigail, agarrada à criança, se
agachava ao lado dele, a implorar:
— Levante-se, Benjamin. Por favor, meu Deus, faça-o se levantar!
Arrojando-se para o lado dele, sem pensar em si mesma, Sophie caiu
de joelhos.
— O que aconteceu?
— Fletcher... Fletcher tinha uma faca. — Abigail soluçou. Pôs-se de
pé e se afastou. O bebê chorou mais alto quando a mãe o colocou num
monte de feno a um canto.
— Benjamin, Benjamin, você pode me ouvir?! — Sem esperar pela
resposta, Sophie rolou o corpo inconsciente para cima, com a ajuda de
Abigail.
Seus olhos caíram sobre o diário. Seu precioso romance ficara sob o
peito dele e lhe aparara o sangue. "Sangue!"
O sangue manchava a jaqueta azul e a camisa branca. Sophie rasgou
uma tira de Unho da anágua. Seus dedos tremiam tanto que mal
conseguia desabotoar os botões da camisa de Benjamin. Ao comprimir o
pano sobre o ferimento, os olhos dele se entreabriram.
— Sophie?
— Não fale. Você ficará bem. Voltaremos para a cidade e o levaremos
a um médico o mais rápido possível.
Ele respirou com dificuldade, murmurando:
— Pegue seu livro, Sophie. Vá embora, saia daqui. Lágrimas
escorreram pelo rosto dela.
— Mas e sua designação para o navio, seus projetos navais? —
perguntou.

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— Serei despachado para um navio, por fim.


— Não sabe o que está dizendo. Perdeu muito sangue. Está delirante.
— Não é hora de discutir.
— Não diga mais nada, Benjamin, guarde suas forças — ordenou,
num tom rouco. Suas veias pareciam querer estourar de tanto medo.
— Vá. Fuja enquanto tem a chance.
Sophie, porém, sentia-se imobilizada, incapaz de deixá-lo. Comprimiu
o pano contra o ferimento com mais força e nem mesmo ergueu os olhos
quando Flora irrompeu porta adentro.
— O que aconteceu?
— Benjamin foi ferido! — exclamou Sophie.
— Fletcher esfaqueou o marujo — emendou Abigail. — O marinheiro
Swain está morrendo.
A chuva começou a bater no telhado, raios riscavam o firmamento, o
ribombar de trovões sacudia o chão. O dilúvio chegara.
Estaria ele morrendo? Benjamin lutou contra a negra cor tina que o
envolvia. A dor latejante em seu tórax parecia a mordida de uma baleia.
Mais uma vez forçou as pálpebras a se erguerem. Um borrão de faces
femininas pairava acima dele, Sophie, Flora e Abigail. As mulheres o
fitavam, ansiosas, como se ele estivesse prestes a exalar o último suspiro.
Não era assim que esperava morrer.

Capítulo XVIII

Sophie pensou que seu coração fosse se partir. Paralisada por uma
dor tão palpável que mal a deixava respirar, afastou as mechas que tinham
caído sobre a testa de Benjamin. Dividida entre fugir e ficar ao lado dele
pressionou o ferimento mais firme.
Incapaz de estancar o sangramento encostou o ouvido no peito dele e
ouviu as fracas batidas do coração de Benjamin. Um calafrio a percorreu e
lhe enregelou os ossos.
Se Sophie quisesse reclamar o futuro que sonhara por tanto tempo,
teria de correr. Não havia escolha a não ser aventurar-se pela tempestade
para salvar seu sonho... ou Benjamin.
— Não houve nada que eu pudesse fazer para impedir Fletcher de
esfaquear o marinheiro Swain — Abigail choramingou.

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— Ele teve o fim que merecia. O cretino está lá fora, na mata,


sangrando com o traseiro rasgado.
— Traseiro, Flora? — Os olhos de Abigail se arregalaram.
— Fletcher passou correndo por Flora na mata. Um homem correndo
na mata não é boa coisa. Imaginei que deveria ser Thurman e então fiz a
mira e atirei. Não tive tempo de questioná-lo.
— Olhem! — Sophie mal ouvira a troca de palavras entra Flora e
Abigail. Sua atenção se concentrava no ponto onde Benjamin caíra.
Apanhou o caderno ensangüentado. As Românticas Aventuras de Fifi
LaDeux, uma Mulher Solteira. Abigail baixou os cílios.
— Por favor, por favor, me perdoe! Eu jamais deveria ter me
apossado dele.
— Você conseguiu o que queria. Pegue esse romance, Sophie, e leve
para Nova York! — exclamou Flora. — Se partir agora, poderá pegar a
diligência da tarde.
Partir? Sophie vivia entre os alunos e instrutores na Academia Naval,
todos guiados por altos padrões morais. Eles não roubavam, não mentiam,
não quebravam regras para obter vantagens. Em todas as situações,
esforçavam-se para serem justos. Ela não poderia fazer nada menos que
honrar aquele estrito código de conduta.
Benjamin recuperara seu diário e pagara um alto preço. A vida dele
estava em risco. Sob nenhuma circunstância Sophie poderia tomar
vantagem sob um homem ferido, ou desconsiderar a troca a que se
propusera.
Ouviu os pensamentos a se atropelarem dentro do cérebro, e em
seguida deu ouvidos ao coração. Benjamin precisava dela.
— Não. Não posso ir embora. Não deixarei Benjamin agora.
Com os modos reprovadores de uma professora de escola, a amiga
de cabelos ruivos apontou um dedo para ela.
— Flora e Abigail tomarão conta do instrutor de navegação. Vá para
Nova York. Ninguém pode impedi-la mais.
— Benjamin precisa de um médico, Flora. Vou buscar o doutor.
Abigail objetou de imediato:
— Mas está uma tempestade horrível lá fora!
— Não é possível esperar mais. Aplique tanta pressão no corte
quanto possa Flora.
— Flora sabe como cuidar de um homem! — retrucou a garçonete,

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indignada.
Com um suspiro, Sophie voltou-se e rumou para a escada.
— Voltarei tão cedo quanto possível.
Reunindo mais coragem do que jamais acreditaria que possuísse,
Sophie saiu correndo do moinho em meio à tempestade.
Sophie irrompeu pela porta do hospital da Academia Naval, aos
gritos, pelo corredor vazio:
— Dr. Collins! Dr. Collins!
O médico atendeu ao chamado de imediato. Ensopada até os ossos e
a molhar o chão brilhante, Sophie descreveu as condições de Benjamin e
onde ele fora mortalmente ferido.
— Irei com o senhor, eu lhe mostrarei onde...
— Não há necessidade de que saia na tempestade de novo, srta.
Harrington. Não se preocupe, conheço o moinho. Posso encontrá-lo sem
dificuldade.
Sophie ia argumentar, mas naquele instante a porta do hospital
bateu e se abriu como se empurrada por uma lufada forte de ventania. O
almirante se dirigiu a ela, transtornado
— Minha filha está doente?!
— Não, senhor. — O Dr. Collins esboçou um sorriso tranqüilo e
cordial. — Mas um banho quente e cama seriam excelentes para a Srta.
Harrington.
— Venha, Sophie.

Ela não ousou protestar. A raiva gélida e sombria que luzia nos olhos
de seu pai ameaçava explodir a qualquer momento. Confiante de que o
médico iria ao encontro de Benjamin de imediato, empinou o queixo e
precedeu o ai mirante, ao deixar o recinto.
Benjamin viveria, e seu diário era dele para que fizesse o que lhe
aprouvesse.
Benjamin sentia-se emergir de um escuro nevoeiro. Avançava
devagar pela escuridão úmida. Quando por fim a nevou se dissipou,
substituída por uma luz embaçada que vinha de cima, ele abriu os olhos, a
pestanejar.
Onde estava?
Seu peito doía como se tivesse sido atingido por um ferio quente.
— Marinheiro Swain? Benjamin virou a cabeça.
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— Aspirante Baker?
O alto e desajeitado rapaz sorriu-lhe e ergueu-se da cadeira a um
canto onde estivera sentado, atento. Cumprimentou Benjamin com uma
saudação formal:
— Sim, senhor. Como está se sentindo, senhor?
— Como um homem que esteve à deriva no mar sem uma vela, por
vários meses. Fraco, em outras palavras. E tenho uma dor pavorosa no
tórax. Alguém me tirou o coração? — brincou, tentando minorar a própria
condição.
— Não, senhor. O Dr. Collins o suturou, mas não tinha certeza de
como estaria quando recobrasse a consciência.
Benjamin olhou ao redor, para o quarto todo branco.
— Onde estou?
— No novo hospital, senhor.
Claro. Embora não tivesse entrado na nova enfermaria, fazia sentido
ter ido parar ali, diante da dor que sentia. E então Benjamin recordou.
Fletcher Thurman. A faca.
— Tenho um corte de faca.
— Sim, senhor. Mas ficará novo em folha. Todos da quarta série se
ofereceram como voluntários para cuidar do senhor. Nós nos revezamos
em turnos desde o começo, quando foi trazido para cá.
— O começo? Quem me trouxe ao hospital?
Antes de desmaiar, a última coisa de que Benjamin se recordava era
de ver as faces de Flora, Abigail e Sophie. As mulheres o fitavam com
variados graus de pavor nos semblantes.
Joseph encheu um copo de água da jarra da mesa-de-cabeceira.
— Tanto quanto sei, o Dr. Collins o encontrou.
— Bem, posso agradecer ao Dr. Collins, mas não sei como agradecer
a uma classe inteira de aspirantes.
— Voltando à ativa tão cedo quanto possível. — O aspirante
estendeu-lhe a água. — O capitão Ferguson não sabe tanto sobre
navegação quanto o senhor. E não creio que goste muito também.
Sentimos sua falta.
Benjamin sorriu.
— E eu senti falta de vocês. Ao dizer isso, percebeu que falara a
verdade.
Gostava das expressões ansiosas dos rapazes quando velejavam
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sozinhos pela primeira vez. Saboreava o jeito sonhador quando seus


alunos voltavam as faces para o vento, os olhares para o mar. Fora
arrebatado pela vivacidade daquelas mentes rápidas. Gostava de assumir a
condução daqueles jovens inexperientes e moldá-los naqueles que
esperava que fossem os melhores marujos dos oceanos.
Depois de tomar um gole, Benjamin perguntou:
— Há quanto tempo estou aqui?
— Dois dias. O doutor diz que o ferimento poderia tê-lo matado; por
um centímetro não acabou com o senhor.
— Que reconfortante...
O estranho era que não sentira medo quando vira a arma de
Thurman. A única emoção da qual podia se recordar era a determinação de
desviar o golpe, e a imperiosa necessidade de resgatar o diário de Sophie
da posse de Fletcher.
— O doutor tomou conta do senhor muito bem.
— Tenho certeza disso. Sabe o que aconteceu com o homem que me
esfaqueou?
— Thurman é o nome dele, senhor. A sita. Flora atirou nele no
traseiro. Está a ferros, esperando que o delegado de Falls Church venha
para transferi-lo de cadeia. Parece que roubou um cavalo para chegar a
Annapolis, e essa é apenas uma das acusações que pesam contra ele. O
homem é um fora-da-lei.
— Isso ele é.

— Ouvi dizer que com essas acusações e com a tentativa de matá-lo,


Thurman será um velho antes de sair da cadeia.
Distraído, Benjamin cocou o ferimento num movimento circular.
— Pobre Abigail. Ela e o bebê sentirão os resultados das trapaças de
Fletcher por mais tempo do que eu ficarei curado.
— A briga aconteceu por que razão, senhor? Se não se importa de
me dizer.
— Eu estava tentando recuperar uma coisa roubada, um diário.
— Há um caderno de capa dura no saco com as roupas que o senhor
usava. E a esse que se refere?
Benjamin quis se levantar, e fez uma careta com a pontada que o
movimento provocou.
— Deixe-me ver.

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Baker tirou um saco de debaixo da cama, e depois de remexer nele,


levantou-se segurando o diário de Sophie.
Ao pegá-lo da mão do rapaz, Benjamin fitou o caderno manchado de
sangue, admirado. Revirou-o no ar. Não havia engano. Era o romance de
Sophie. Por que ela não o pegara? Será que não vira?
— Era por isso que estava brigando?
Benjamin fez que sim. Intrigado por o romance ainda estar em sua
posse e incapaz de pensar numa explicação plausível, uma sensação
estranha brotou-lhe no íntimo.
— É o diário que retomei.
Se pedisse ao jovem aspirante que saísse, poderia ler As Românticas
Aventuras de Fifi LaDeux, uma Mulher Solteira, e assim descobrir o que a
bela Sophie escrevera sobre ele. Porém, de certa forma, não parecia
correto. Lê-lo sem a permissão da bela de co vinhas seria como invadir sua
privacidade. E ele não poderia fazer isso.
O quartanista balançava-se nervoso. Seus olhos estavam fixos no
livro.
— Está coberto com seu sangue. Benjamin o encarou.
— Sabe, embora eu o tenha recuperado isto não me pertence.
Poderia colocá-lo num saco limpo e entregá-lo à Srta. Sophie Harrington?
— A filha do almirante?
— Sim. Não o dê a ninguém a não ser a ela. Aguarde até que possa
encontrá-la a sós.
— Sim, senhor. — Joseph se postou como se tivesse recebido uma
ordem do próprio almirante.
— E, Joseph, assim que minhas pernas estejam firmes do novo,
voltarei a lecionar.
O jovem abriu um largo sorriso.
— Sim, senhor!
Depois que o rapaz saiu, Benjamin caiu num sono profundo.
Sua visita seguinte apareceu no fim da tarde.
Benjamin ficou rígido quando o carrancudo almirante entrou no
quarto.
— Ouvi dizer que está se recobrando.
— Sim, senhor. Não devo ficar hospitalizado por mu mais tempo.
— Devo presumir que não retomou o diário de Sophie daquele

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bandido, Thurman?
— Ele me esfaqueou e correu.
Com um pesado suspiro, o almirante tirou os óculos e começou a
limpá-lo no canto do casaco.
— Um lavrador ladrão nos enganou a todos. O capitão Ferguson
esperou por quatro horas na chuva torrencial para entregar o resgate a
Thurman, e o bandido não mostrou o focinho.
— Talvez eu o tenha assustado.
— É muito provável. Mesmo assim, o safado nos sobrepujou. —
Wesley devolveu os óculos ao nariz. — Você foi ferido, e Andrew está
acamado, com pneumonia.
Benjamin reprimiu um sorriso. Quem a não ser Andrew ficaria à
espera por quatro horas, na chuva?
— Por favor, leve meus votos de pronta recuperação ao capitão
Ferguson.
— Diante do sumiço do diário, ele resolveu não se casar mais com
Sophie.
"Covarde!"
— Não posso culpá-lo — prosseguiu o almirante Harrington. —
Andrew também requereu uma transferência para o serviço naval tão logo
esteja bem de saúde.
— O capitão deve estar desapontado. — Benjamin tentou fazer uma
expressão séria, embora as agradáveis notícias da iminente partida de
Ferguson o deixassem feliz.
O almirante Harrington alisou a barba em V já bem grisalha.
— Só posso transferir um de vocês, e Andrew tem posto superior.
Por mais surpreendente que fosse Benjamin não experimentou a
menor pontada de desapontamento.
— Compreendo senhor.
— Até que o diário de Sophie seja encontrado, minha posição é frágil.
Posso ter ainda minha carreira em ruínas,
— Sua filha é firme em suas decisões. No final, ela pode ter
recuperado o romance. Duvido que Sophie tenha desistido.
— Ela não tem opção a não ser desistir. Estou enviando minha filha
para morar com minha irmã em Saint LOUIS, Deus sabe que tentei, porém
não posso aprovar nem compreender suas idéias estranhas e seu
comportamento.

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O estômago de Benjamin contraiu-se.


— Posso ter a ousadia de sugerir que talvez algumas vez o
comportamento imprevisível de Sophie seja para ganhar sua atenção? Ela
pode sentir que o senhor não a ama.
Uma carranca feroz aprofundou as rugas na face do almirante.
— Não que isso seja de sua conta, mas eu me recuso expor minhas
emoções a todos, Swain.
— Sim, senhor. É óbvio, senhor. Mas eu descobri que mulheres não
compreendem a relutância de um homem em expressar seus sentimentos.
Se conversasse com ela...
— Está fora de questão! — Sem outra palavra, o almirante girou nos
calcanhares e rumou para a saída. Ao chegai passagem, parou e olhou de
volta para Benjamin. Embora seu cenho permanecesse franzido, sua mente
talvez não fosse de pedra. — No entanto, posso escrever uma carta a
minha filha.
— Sim, senhor.
— Assim que estiver bem, marinheiro, terá ordens para retornar a
seus deveres regulares como instrutor de navegação.
— Sim, senhor.
A cidade de Saint Louis tinha muito a recomendá-la. O grande rio
Mississípi devia ser uma vista maravilhosa.
Depois de uma semana, o almirante suspendera as restrições de
confiná-la ao quarto, o que Sophie considerara uma prisão a pão e água, e
dera-lhe ordens para preparar a viagem. Ela rasgara tantas anáguas nas
últimas semanas passadas que precisava encomendar outras novas.
Constavam do topo de sua lista.
Ao fazer compras na rua principal, seu olhar se desviou várias vezes
para o Dama de Nantucket atracado no píer. Na véspera, Sophie abordara
o dr. Collins e ficou sabendo que o marinheiro Swain recuperava-se bem.
Ficou aliviada. Mas como ansiava vê-lo!
Daria qualquer coisa por seu sorriso, para ouvi-lo cantar e ouvir sua
risada gostosa e profunda. Benjamin ficaria com outra cicatriz no peito.
Fletcher Thurman providenciara isso. Sophie, porém, jamais roçaria os
lábios naquela nova marca. Não poderia curar o ferimento de Benjamin
com todo o amor.
Pensara e depois descartara uma dúzia de métodos possíveis de se
esgueirar para dentro do hospital sem que seu pai soubesse. Seria difícil
não ser notada. Mesmo assim, como partiria de Annapolis sem dizer adeus
a Benjamin?

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Resolvida a achar um meio, desceu pela rua Príncipe George para


uma última olhada para o chalé dos Bailey.
No meio da estreita rua calçada, Sophie estacou. O pouco ânimo que
a sustinha se desvaneceu. O chalé não se achava mais à venda. A placa na
janela fora retirada, e o imóvel parecia vazio. Seus olhos se encheram de
lágrimas.
— Sita. Harrington!
Ela enxugou o pranto depressa e se voltou. O aspiram»* Baker corria
em sua direção. Sophie forçou um sorriso.
— Bom dia, Joseph.
Com uma saudação rápida, o rapaz retribuiu o cumpri mento.
— Bom dia.
— O que o traz à Rua Príncipe George? Ele ergueu um saco.
— Eu a estive seguindo. O marinheiro Swain me pediu para lhe dar
isto.
— Benjamin!
Benjamin pensara nela! Mandara-lhe um presente da cama que
poderia ter sido seu leito de morte!
O coração de Sophie disparou ao pegar o objeto do rapa/ Respirou
fundo ao espiar o conteúdo.
— Meu diário!
Constrangido, Joseph ajustou o quepe.
— O marinheiro Swain queria que a senhorita o recebesse tão logo
fosse possível.
Pela primeira vez em dias, Sophie sentiu-se cheia de vida. A
ansiedade borbulhava dentro dela. Mais uma vez seu sonho ficava ao
alcance da mão.
Poderia fugir para Nova York e apresentar seu romance aos editores.
Teria, assim, uma vida independente antes do fim do verão. Embora
quisesse muito morar no chalé dos Bailey, encontraria outra casa, talvez
uma ainda mais encantadora.
Mas por quê? Por que Benjamin teria desistido da oportunidade de
devolver o livro ao almirante e receber as ordens que tanto desejava? Por
que o alto e bronzeado baleeiro de olhos azuis trocara os próprios sonhos
pelos dela?
— Aspirante Baker, diga-me, como está o marinheiro Swain?
Joseph adotou uma postura rígida e focalizou o olhar em algum lugar
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acima e além de Sophie.


— O instrutor de navegação ainda se encontra fraco, mas alega que
tornará a lecionar em breve.
A notícia deixou Sophie ainda mais enlevada. Apenas alguns minutos
atrás, toda esperança parecera perdida e, agora, o mundo se mostrava
quase perfeito. A boa Terra girava nos pólos do jeito certo.
— Gostaria de poder ver o marinheiro Swain e agradecer-lhe
pessoalmente...
— Sim, senhorita.
Ela sorriu para Joseph, a estudá-lo. Sob a orientação de Benjamin, o
rapaz fizera grandes progressos. Sophie não tinha dúvidas de que Joseph
se tornaria um exímio marinheiro e um exemplar oficial da Marinha.
Parecia ter ganhado um novo grau de confiança sem a arrogância de
muitos aspirantes.
— Obrigada por trazer meu diário.
— Sim, senhorita, o prazer foi meu.
Desde o incidente no porto de Annapolis, quando Sophie convenceu
Joseph a levá-la para velejar, o jovem ficava nervoso na companhia dela.
— Isso é tudo, senhorita?
— Sim.
Porém, quando ele ergueu a mão para bater continência,
o que era de todo desnecessário, Sophie teve uma brilhante idéia:
— Aspirante Baker, você se importaria se eu emprestava seu
uniforme por um curto espaço de tempo esta noite?
Ele empalideceu.

Capítulo XIX

Benjamin não conseguia acreditar nos próprios olhos. A princípio,


suspeitou que se tratasse de um devaneio complicado por um ataque de
delírio. Um ruído, um pigarrear forçado de garganta o despertou de um
ligeiro sono. Quando ergueu as pálpebras, não reconheceu o mocinho aos
pés da cama. Entretanto, após a silenciosa figura entrar em foco, deu-se
conta de que uma única pessoa no mundo a possuir olhos turquesa era...
— Sophie?
Ela piscou, cúmplice.
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— Como está se sentindo, Benjamin? "Estarrecido!"


— O que faz aqui?
Com exceção das mães de aspirantes doentes, visitantes do sexo
feminino não eram permitidas no novo hospital.
A mulher que parecia crer que muitas regras não tinham sentido para
ela sorriu. Não: resplandeceu. O estupendo sorriso de Sophie purgou a
última das dores de Benjamin. Na cálida luz daquele sorriso, ele sentiu sua
energia retomar.
Poderia saltar da cama e tomá-la nos braços, esmagá-la contra si,
enchê-la de beijos.
O que custara ao médico quase uma semana para alcançar, Sophie
conseguira num instante. Curara-o, mas não do anseio sufocante que
sentia por ela, que também retornara numa velocidade espantosa com o
dobro da intensidade.
— Vim para me certificar de que você estava bem. E para dizer
adeus.
Embora Benjamin soubesse que essa hora chegaria e se julgasse
preparado para isso, a pontada aguda que de súbito lhe espicaçou o
coração foi bem pior que a causada pela lâmina da faca de Fletcher
Thurman.

— Você está de partida para Nova York — ele afirmou. Benjamin


sabia disso, não precisava perguntar. Sophie havia muito esperava pela
oportunidade de vender seu romance a um editor nova-iorquino.
Uma visão que ele jamais imaginara ter distraiu Benjamin por
instantes. Uma mulher vestida uniformizada estava a seu lado. Uma figura
feminina ostentando o uniforme da Academia Naval era bastante chocante;
uma que se movesse com tanta graciosidade adicionava um elemento
perturbador. Sem dúvida, Sophie passara muito tempo com Flora. Ele
imaginava que a garçonete nascera gingando os quadris.
— Eu não poderia ir sem me despedir.
— Esse disfarce é melhor que o último. Fez maravilhas para o
uniforme, Sophie. Vai substituir seus calções?
Com uma risada suave, Sophie empoleirou-se na beira do colchão.
Se Benjamin não estivesse com febre, logo estaria. Eli ficara perto
demais. Ele não poderia impedi-la; nem o faria se pudesse.
— Obrigada por devolver meu diário, Benjamin. Mas eu não queria
que tivesse arriscado a própria vida.

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— Foi minha culpa ser esfaqueado. Se tivesse usado a cabeça, teria


me preparado para um truque como aquele. Escroques como Fletcher
Thurman podem esconder facas, prontos para o que der e vier.
— Você é um homem de muita coragem. Ele meneou a cabeça.
— Fiz o que tinha de ser feito, o que qualquer homem faria.
— Você não é qualquer homem. — Sophie estendeu a mão, e seus
dedos acariciaram-lhe o queixo, parecendo alheios aos pêlos duros da
barba crescida.
— É possuidor de grande valentia e lealdade. Estou em dívida para
com você.
Benjamin umedeceu os lábios. Sua garganta estava seca como
cascalho.
— Não...
Sophie se inclinou, chegou mais perto, envolvendo-o numa leve e
perturbadora nuvem de madressilvas.
— Você veio em meu resgate mais uma vez.
— Apenas a protegi, como o almirante me ordenou.
— Meu pai foi injusto ao designá-lo para me vigiar como se você
fosse uma ama-seca.
— No começo, eu me ressenti das ordens, admito. E depois... passei
a apreciar sua... companhia.
— Você agiu acima e além do chamado do dever.
— O que aconteceu a Abigail e à criança? — Benjamin baixou a
cabeça e enfiou as mãos pelos cabelos. Precisava mudar de assunto ou
estaria perdido.
— Voltou a trabalhar como minha criada, e eu a tenho ajudado a
cuidar do bebê. A pequena Florrie é uma criança adorável.
— O almirante sabe que Abigail desempenhou um papel importante
no plano de Fletcher Thurman?
— Expliquei a papai que Fletcher forçou Abigail a roubai o livro. De
uma certa forma, ele a forçou mesmo. Abigail foi vítima da vilania de
Thurman tanto quanto eu. E depois de engolir uma boa dose de orgulho, o
que aprendi a fa/.a, implorei ao almirante que permitisse que ela
reassumisse seu antigo emprego. Abigail não foi feita para ser uma
Iavadeira, afinal, e o bebê merece uma vida melhor.
— E o almirante concordou? E um espanto! E... e Flora''
— Desistiu de sua vida desregrada para se casar com Graham.

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As incríveis novidades pegaram Benjamin de surpresa Ficou de


queixo caído.
— Jamais esperei ver Flora Muldoony se acomodar com um camarada
só, muito menos se casar.
— Ela ama Graham... e está grávida.
— O quê?!
"Céus! Enquanto fico aqui, de cama, o impossível acontece!"
Sophie apenas sorriu. E para imenso prazer de Benjamin, a covinha
apareceu para provocá-lo.
— Acho que estar esperando um filho é razão tão boa para se casar
como qualquer outra.
— Ah, mas eu posso pensar numa bem melhor! — disse Sophie. — A
melhor razão para um casamento é o amor.
— Tirando seu desejo por uma vida independente.
Em vez de retrucar, Sophie tomou a mão de Benjamin e levou-a aos
lábios.

Antes que ele soubesse o que ela iria fazer, a bela e atrevida filha do
almirante beijou-lhe a palma. O roçar cálido e suave daqueles lábios
macios contra a pele sensível desferiu faíscas por suas veias. A carícia
tinha uma ternura que nunca conhecera, jamais sentira.
Com a mão de Benjamin entre as suas, Sophie aninhou-a contra os
seios.
— Um dia julguei que queria viver uma vida celibatária, mas há
pouco descobri que sou bastante inadequada para uma existência assim
tão fria.
Os pensamentos tumultuados de Benjamin se evaporaram ao
primeiro ranger da cama. Arregalou os olhos.
— Sophie! O que está fazendo?
— Quero ficar perto de você mais uma vez. — E ela se aconchegou.
Antes que Benjamin tivesse tempo de explicar como aquilo poderia
parecer se alguém entrasse no quarto, alguém o fez.
— O que significa isso?! — gritou o Dr. Collins. — 0 que virá a seguir,
quando um aspirante e um instrutor partilham a mesma cama?!
Sophie saltou do leito de Benjamin tão depressa que o quepe caiu-lhe
da cabeça e uma cascata de longos cachos dourados despencou-lhe pelos
ombros.
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A expressão horrorizada do médico aos poucos transformou-se numa


que refletia alívio e atribulação.
— Dr. Collins, sinto muitíssimo. Sei que desrespeitei suas regras e
que eu não deveria estar aqui — desculpou-se Sophie, numa enxurrada de
palavras. — Porém, se olhar para o outro lado, só desta vez, sairei já e
ninguém será testemunha de minha presença. Ninguém saberá jamais que
estive aqui.
— Você é a jovem que correu pela tempestade para buscar ajuda
para o marinheiro Swain, não é?
— Sim, sou.
— Tudo bem, mocinha. Você tem todo direito à visita. Porém, vá
agora, antes que coloque os dois em confusão.
— Obrigada, senhor. — Sophie voltou-se para Benjamin. — Adeus,
marinheiro Swain.
A dor que transpassava Benjamin era insuportável. Era como se
algum animal selvagem lhe mastigasse os ossos.
— Adeus, Botão-de-ouro.
Mais tarde, naquela noite, depois de chorar até quase partir o
coração, de acalmar os olhos inchados com compressas frias e vestir uma
roupa adequada para se apresentar como a imagem da compostura,
Sophie bateu na porta do escritório do pai.
— Entre.
O almirante estava sentado à mesa, escrevendo. Ao erguer os olhos,
pôs de lado a pena.
— Boa noite, Sophie.
— Não pretendo perturbá-lo, mas tenho assuntos urgentes que
gostaria de discutir antes de partir para Saint Louis. Está muito ocupado?
Eu deveria voltar numa outra hora?
— Estava. Escrevia uma carta. Sente-se.
Sophie sentou-se na ponta de uma das poltronas que ficavam de
frente para a escrivaninha. Estava mais nervosa que nunca ao se
aproximar do autoritário pai. Torcendo um lenço de renda nas mãos,
começou:
— Papai, se se recorda, o senhor e eu conversamos sobre uma troca,
semanas atrás, com relação ao romance que escrevi em meu diário.
— Como eu poderia esquecer?
— Não, claro que não poderia. Se recuperasse meu diário, o senhor

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concordou que eu poderia publicá-lo sob um pseudônimo, se fosse


afortunada o suficiente para vender As Românticas Aventuras de Fifi
LaDeux, uma Mulher Solteira. E assim, viveria com independência.
— Sim, concordei com seus termos.
— E eu ofereci em troca mudar os nomes dos personagens para
proteger qualquer pessoa em que pudesse ser baseada.
— Eu me recordo. Aonde quer chegar?
— Além disso, combinamos que, se o marinheiro Swain recuperasse o
livro, ele seria recompensado recebendo uma designação imediata para o
serviço no mar, e seus projetos de navios a vapor seriam entregues ao
almirante Johnson para avaliação.
— Sim, Sophie. — Wesley tirou os óculos e esfregou a ponta do nariz.
— Mas a troca que combinamos fica sem sentido sem o diário.
Sophie respirou fundo, e empinou o queixo.
— Eu o tenho comigo.
O almirante inclinou-se para a frente tão depressa que quase
esmagou os óculos.
— Onde está?! Como o conseguiu?! Quando?!
Sophie ergueu as mãos como se para empurrá-lo para trás.
— Explicarei, porém, primeiro, que gostaria de alterar os termos de
nosso acordo.
Se o trovão assumisse a forma humana, o almirante seria o modelo.
Gritou o nome da filha como se fosse um estrondo:
— Sophie!
— Se aprovar, eu lhe entregarei o caderno. Antes de retrucar, o
almirante contemplou o teto.
— Minha própria filha barganha como um mercador de Baltimore...
— Quer pelo menos ouvir o que tenho a propor?
— Estou escutando.
— Se providenciar que o marinheiro Swain seja designado para um
navio e depois seus projetos encaminhados ao almirante Johnson, eu lhe
darei meu diário e partirei para Saint Louis sem um murmúrio de protesto.
Wesley inclinou a cabeça como se não tivesse ouvido direito.
— Por que você faria uma coisa dessas? O que está arquitetando?
Tem reclamado e tagarelado sobre independência por meses, e agora joga
fora a oportunidade para que o marinheiro Swain tenha seus projetos

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levados em consideração?
Sophie sentiu os joelhos amolecerem. Se não estivesse sentada,
cairia, sem dúvida.
— Não estou desistindo, papai. A realidade é que o marinheiro Swain
merece mais do que eu. Ele dará um excelente oficial um dia, e o senhor
será reconhecido também por qualquer recomendação que tenha lhe dado.
O almirante a analisava com suspeita.
— Você se tomou de afeições pelo marinheiro?
Sophie engoliu em seco.
— Essa é a única coisa honrada a fazer.
— Eu já designei o capitão Ferguson para o serviço do mar.
— Andrew deixou a Academia?
— Sim.
— Ele não se despediu.
— Pode culpá-lo? Sim, Sophie poderia.
— Creio que um adeus seria a atitude correta. Eu gostaria da
oportunidade de ajeitar as coisas com ele.
— Talvez. Ou quem sabe eu não julgasse prudente para você.
Intrigada ao ouvir a afirmativa do pai, Sophie aventurou-se a dizer:
— Mas o senhor tentou, e eu aprecio o fato de ter procurado
encontrar para mim um marido respeitável.
— Pois é. De qualquer maneira, quando dispensei Andrew, usei a
única vaga disponível para mim, agora.
Sophie saltou da poltrona.
— Oh, não! Deve haver alguma coisa que possa fazer!
— Eu poderia mandar por mensageiro os projetos de Swain ao
almirante Johnson, se isso a deixar satisfeita.
— Sim, por favor, obrigada! E quando surgir outra oportunidade de
designação?
— Assinarei as ordens de transferência do marinheiro Swain.
Grata e com um sorriso feliz, Sophie virou-se para sair.
— Vou buscar o diário para o senhor.
— Espere!
Sophie voltou-se. A barganha transcorrera bem. Pela primeira vez,

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não sairia do escritório sentindo-se frustrada, o pai não se mostrava


irritado com ela. Seria bom demais para ser verdade? Conteve o fôlego.
— Antes que se vá, Sophie, gostaria de ler para você carta que eu
estava escrevendo.
Que estranho... O taciturno almirante jamais lhe pedira opinião.
Wesley pigarreou e focalizou o olhar na página, antes d começar a
ler:
Minha querida Sophie. Depois da morte de sua amada esposa, um
oficial naval meu conhecido ficou sozinho com uma filha bonita e
inteligente. Porém, um homem que crescera nos mares não tinha
conhecimento do que fazer com a garotinha, ou de como tratá-la. A
menina permanecia para ele um mistério, e o oficial se manteve a
distância. Embora destemido de batalhas, receava criar sua pequena
precoce. Decidiu, assim, manter a mão firme, do jeito como fora criado.
Providenciou os melhores cuidados que pôde encontrar e a melhor
educação disponível para moças. Contudo, a filha tinha noções avante de
seu tempo, decerto como resultado de sua educação. Ele não poderia
culpar ninguém além de si mesmo. Ela não crescera uma senhorita dócil e
tímida; desabrochara numa jovem de espírito. Logo chegou a idade de a
mocinha se casar, e o oficial procurou encontrar-lhe um bom marido,
alguém que cuidasse dela quando ele se fosse. Fracassou. Fora de um
fracasso evidente para com a filha desde o princípio. Não obstante isso, ele
a amava. Amava-a com todo o coração.
Hirta, Sophie encarava o pai. As mãos dele tremiam durante a
leitura. E aquela missiva era sobre ela... e ele. Misericórdia! Parecia que
tudo o que Sophie fazia de uns tempos para cá era chorar e rasgar as
anáguas. Suas faces queimavam com o pranto.
— Foi até onde escrevi — disse o almirante, com um suspiro.
Sophie sabia que não era educado encarar alguém, muito menos
olhar para o pai como se o visse pela primeira vez. Mas era. O almirante
deixou o papel sobre a mesa, baixou a cabeça e tirou os óculos.
Sophie levantou-se de um salto e correu para o lado dele. Ajoelhou-
se e lhe tomou as mãos.
— Obrigada. Obrigada por ler sua carta. O senhor é um excelente
escritor, escreveu com o coração. — Sorria através das lágrimas. —
Deixou-me enxergar dentro de sua alma.
— Sophie...
— Sei que abusei de sua paciência no passado e peço desculpas por
isso. Mas sempre o amei também, papai. Prometo nunca mais lhe causar

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desapontamentos de novo.
— E vai ficar? — Ficando de pé, fez Sophie se erguer. — Eu também
muitas vezes me pronunciei com raiva. A despeito de meus resmungos,
sentirei muita saudade se você for para Saint Louis. Temos uma porção de
coisas a aprender um com o outro, Sophie. Diga que ficará em Annapolis.
Ela sentiu como se o sol tivesse raiado dentro de seu peito, a
espalhar luz e calor por todas as células. Sem se conter, deu um beijo
firme na face de seu pai.
— Pensei que o senhor jamais me pediria isso! Contudo... — Esboçou
um sorriso atrevido.
— ...há uma condição.
Na noite seguinte, depois de receber alta do hospital, Ben-jamin
refugiou-se em seu veleiro. Estendeu uma manta no convés e recostou a
cabeça contra uma almofada roliça. Dormiria a bordo do Dama de
Nantucket debaixo de um céu estrelado.
Grato por estar vivo e de volta a seu barco, cantarolou baixinho uma
canção. Porém, não pôde espantar a tristeza que o invadia. Duvidava que
mesmo um passeio ao luar pela baía lhe restaurasse o ânimo. Perder
Sophie era como perder o coração, renunciando à alma.
A bela rebelde nem mesmo sabia que caíra de amores por ela. Ele
não lhe dissera. Em vez disso, devolvera-lhe o diário com a esperança de
que pudesse tornar os próprios sonhos realidade.
Benjamin demonstrou seu amor da única maneira que poderia.
Mesmo que o almirante viesse a considerar uma permissão para que a filha
se casasse com um simples marinheiro, não poderia impedir que Sophie se
fosse, pois amava-a demais.
O ruído de passos no píer acabou com seus devaneios. Benjamin
ergueu a cabeça para escutar.
— Benjamin! Benjamin, você está aí?
Não havia engano. O murmúrio cantante e suave era de Sophie. A
incansável filha do almirante fora a sua procura outra vez, na calada da
noite, na doca. E Benjamin que julgara que ela estaria em Nova York, ou
pelo menos Saint Louis, por essas horas!
Sophie avançou mais um pouco. Benjamin olhou em sua direção e a
viu ali, a espiá-lo. Exibia um sorriso largo, satisfeito.
— Imaginei que o encontraria aqui. Posso me juntar a você?
Se Benjamin aprendera alguma coisa até então era que não poderia
impedir Sophie Harrington de fazer o que queria. Assim, levantou-se e
estendeu a mão para ajudá-la. Com um ligeiro salto, a sempre sorridente
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Sophie pisou a bordo do Dama de Nantucket.


— Interrompi sua contemplação das estrelas? Deveria voltar em
outro momento?
— Não, eu... estou apenas surpreso em vê-la.
— Há algo errado, Benjamin?
— Não. Achei que tivesse partido.
— Minha viagem foi adiada. — Sentou-se ao lado dele. — Deus, isso
é deslumbrante! — murmurou, a fitar o Armamento. — A lua está quase
cheia, e não há um ponto no céu sem o luzir de uma estrela.
— Deslumbrante — Benjamin repetiu, olhando para Sophie.
Semanas de avassaladoras emoções, sentimentos intensos que não
poderia expressar reduziram sua voz a um rouco sussurro. Ele a desejava
mais que a própria vida.
Fechou os olhos, porém o que não conseguia ver podia sentir. O
calor, a luz, o espírito de Sophie.
— Por que adiou sua viagem?
— Você não me ensinou a velejar ainda.
Espantado, ele a encarou.
— O quê?! Não entendi a brincadeira.
— Sabe quanto tempo se passou desde que lhe pedi p me ensinar a
navegar?
— Semanas.
— Hoje à tarde, papai leu para mim uma carta que estava
escrevendo. E quando terminou, passei a compreender o almirante muito
melhor. Por concordância mútua, decidimos que eu ficaria em Annapolis.
Mais uma vez Benjamin foi tomado de espanto. Arqueou uma
sobrancelha, mas manteve a boca fechada. Quando o almirante Harrington
o visitara no hospital, ele se atreveu ;i sugerir ao oficial que conversasse
com a filha. Na ocasião, Benjamin julgava que tinha pouco a perder, e se
arriscou a ser mandado a ferros por falar assim com seu superior.
Contudo, Wesley Harrington parecia ter levado em consideração a idéia, e
depois disse que escreveria uma carta. E Benjamin creu que aquele
assunto se encerraria assim.
Enganara-se. E não conseguia esconder a incredulidade. O
comandante de fato escrevera uma carta à filha, que pelo visto tivera o
condão de iniciar um novo tipo de entendimento entre o almirante e
Sophie.

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Uma notícia surpreendente se seguira à outra. A viagem de Sophie


até as editoras de Nova York, ou à casa de su tia, fora adiada. Benjamin
tinha a estranha impressão de qu algo estava acontecendo, só não
conseguia compreender c mo e por quê.
— Está feliz por eu ficar em Annapolis?
— Apenas se você estiver.
— Sim, Benjamin, estou.
— O almirante sabe que você saiu?
— Não exatamente.
Aquela era a verdadeira Sophie.
— No entanto, não disse a papai que estava me recolhendo para
dormir quando saí de seu escritório.
— Sophie... — Não pôde impedir o suspiro que lhe escapou.
Benjamin sabia o que esperar dali por diante. Na manhã seguinte, ele
estaria de pé ao lado dela, na sala do almirante, tentando explicar aquele
encontro noturno.
— Tenho algo importante a conversar com você, Benjamin. Não
poderia dormir sem lhe falar.
Sophie respirou fundo, antes de começar:
— Quando me devolveu o diário, você sacrificou a transferência que
desejava tanto. Não apenas desistiu de voltar ao mar. Sabia que seus
projetos de navio a vapor jamais seriam enviados a Washington. Ninguém
com poder para ajudá-lo os veria. Você me deu meu romance sabendo que
poderia ficar como instrutor de navegação pelo resto de seus dias.
O que poderia ele dizer?
Sophie voltou-lhe os olhos suplicantes.
— Por que, Benjamin? Por quê?
O coração dele pareceu dobrar de tamanho. Tomou a encará-la e,
com toda a suavidade, correu o dedo por aquele rosto acetinado.
— Você não sabe? Ela fez que não.
Com o polegar e o indicador, ele puxou-a pelo queixo.
—Por que te amo, Sophie. Eu te amo.
Benjamin levou a boca bem devagar até a dela. Seu pulso batia
descontrolado.
Sophie entreabriu os lábios e o recebeu com doçura. E quando, por
fim, tornou a fitá-lo, o sorriso que se espalhava por aquele semblante

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adorado tirou o fôlego de Benjamin.


— Eu também te amo, Benjamin. Desde sempre. Sem mais palavras,
Benjamin estreitou Sophie em seus braços, a aspirar o aroma de
madressilvas que lhe entorpeci o bom senso, o maravilhoso perfume da
mulher que o en cantara. E quando a beijou de novo, a saboreá-la, sentiu
necessidade dentro de si aproximar-se do ponto de uma explosão celestial.
Por isso, afastou-a.
— Sou apenas um marinheiro, Sophie. Seu pai...
— Ele e eu chegamos a um novo acordo. Posso me casar com quem
eu escolher.
"Meu Deus! Ela quer se casar comigo!"
— E quando seus projetos de navio a vapor forem envia dos a
Washington, você será reconhecido como um líder na nova Marinha. Será
um tenente antes que o ano acabe!
Ela o confundia outra vez.
— Mas... como meus projetos chegariam a Washington.
— Papai os está despachando.
— Como? Por quê?!
Benjamin começava a falar como o aspirante Baker durante seus
primeiros dias de instrução naval. Confuso. Em dúvida. Intrigado. A mente
parecia em torvelinho.
— Porque hoje eu entreguei meu romance a meu pai.
— Os olhos de Sophie faiscaram de felicidade. — Foi uma troca
lucrativa.
— Mas você poderia tê-lo vendido.
— Talvez, embora eu duvide. O livro que venho escrevendo em meu
novo diário é muitas vezes superior. Ao fazer o primeiro manuscrito,
contudo, aprendi muito.
Aturdido, Benjamin pôde apenas encarar aquela mulher brilhante e
bela, que ele amava com todo o coração. Sophie enchera sua vida de
surpresas e excitação, dera-lhe um amor mais profundo que qualquer
oceano, mais emocionante que qualquer porto inexplorado.
— Sinto-me perdido... perdi a fala. Sophie caiu numa vibrante
gargalhada.
— Mas eu não!
— Claro que não.
— Sempre escreverei, contudo não terei tanto tempo como
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planejava.
— E por quê?
— Quero ter filhos. Seus filhos, Benjamin.
Ele trouxe Sophie de encontro ao peito, para sentir as curvas
voluptuosas daquele corpo contra o seu, para pousar os lábios naquela
boca, para certificar-se de que aquela mulher era real. Ela se aconchegou a
ele, suave como seda, quente como o sol de verão. Era de verdade.
Benjamin subjugara baleias poderosas e homens guerreiros, mas
encontrara seu par em Sophie Harrington. E esperava que, pelo resto de
seus dias, tivesse a sensibilidade e sabedoria para honrá-la como uma
mulher independente e respeitada, cuja opinião pudesse ser ouvida.
Entretanto, naquele instante, o desejo de fazer amor com ela
sobrepujou qualquer outro pensamento ou emoção. Ansiava por sentir
seus seios roliços e nus nas palmas das mãos, para vê-la se incendiar e
derreter-se, a esperar por ele. A filha do almirante a deusa do amor
mostrava-se por fim desmascarada, e queria-o também.
— Você é a única mulher que eu gostaria que tivesse meus filhos.
— Quando poderemos começar?
— Já velejou ao luar?

Capítulo XX

Benjamin e Sophie estavam lado a lado no escritório do almirante,


em casa. Pela rígida postura, seria o caso de se pensar que a filha de
Wesley se metera em confusão outra vez. Contudo, aquela aparência
dominadora não tinha nada a ver com Sophie, daquela vez. E o almirante
não parecia zangado, apenas um tanto preocupado.
— Vocês devem estar imaginando por que os chamei aqui, esta
tarde.
— Sim, senhor — afirmou Benjamin.
— O almirante Johnson me comunicou que deseja vê-lo de imediato,
marinheiro Swain.
— Benjamin! — Sophie bateu palmas. — Eu sabia! Depois de dirigir
um olhar de advertência à filha, o almirante prosseguiu, falando apenas
com Benjamin:
— O almirante está impressionado com seus projetos de navio a
vapor e gostaria de discuti-los com você.

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As pupilas faiscantes de Benjamin fizeram o coração de Sophie


disparar.
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
— O prazer é meu. Você é um patrimônio para a Marinha, e eu não
poderia desejar um genro melhor.
Sophie resplandecia de felicidade.
— Obrigado. Senhor, posso falar com franqueza?
— Sem dúvida.
— Quando me ordenou pela primeira vez que vigiasse Sophie, devo
confessar que fiquei ressentido com o encargo...
— Meu pai ordenou que você... — Sophie interrompeu o comentário
quando os dois se voltaram para ela. Sorriu. — Eu sabia.
— Evidente que sabia. — Benjamin riu e voltou a atenção para o
almirante. — Superei o ressentimento. O senhor me deu a melhor ordem
que já recebi, senhor. Foi o dia mais abençoado de minha vida.
— Claro que foi — gabou-se Sophie.
— Quando devo partir para Washington, almirante Harrington?
— Logo após o casamento. Você deve se casar com minha filha antes
de mais nada, ou ambos ficaremos numa situação incômoda.
— Compreendo.
De soslaio, Sophie pensou ver Benjamin piscar de um jeito
conspiratório para seu pai. Enquanto imaginava como pudera tomar tal
liberdade, Benjamin bateu continência para o almirante, girou nos
calcanhares e rumou para a porta.
Sophie correu a abraçar Wesley e depois, apressada para reunir-se a
Benjamin no alpendre.
A suave brisa soprava do porto e esfriava a tarde de verão. Sophie
cumprimentou Benjamin com um largo sorriso.
— Você será um almirante algum dia, marinheiro Swain.
— Se for feliz em alcançar posição tão distinta, deverei o fato a
minha esperta esposa.
— Apertou-lhe o nariz, com carinho. Ficou sério em seguida: —
Sophie tenho uma coisa a lhe mostrar.
— O quê?
— É uma surpresa. Você já me surpreendeu muitas vezes. Agora é
minha vez. — Enlaçou os dedos nos dela. — Venha comigo, meu Botão-de-

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ouro.
Foi difícil para ela manter o passo quando Benjamin se apressou em
chegar ao portão e à rua. Depois de apenas duas quadras, Sophie parou.
— Esta é a rua Príncipe George.
— Eu sei, venha.
Mais curiosa do que nunca, Sophie o seguiu. Benjamin parou em
frente ao chalé dos Bailey.
— Querido, o chalé foi vendido semanas atrás... Ele assentiu.
— Sophie, lembra-se de eu ter lhe contado que meu irmão caçula foi
para a Califórnia para procurar ouro?
— Lembro. — Ela ficou a imaginar o que tinha uma coisa com a
outra. Onde se encaixava nisso o chalé?
— Matt encontrou ouro e me pagou o que me devia. Recuperou a
fortuna da família. Ganhou muito dinheiro. Não sou um pobre que precisa
viver com o salário de um marinheiro ou com o pagamento de um oficial
de navio. — Balançou as chaves diante dela. — Comprei o chalé dos Bailey.
— Benjamin!
— Tive medo de que alguém o adquirisse antes que você vendesse
seu primeiro romance.
— Eu te amo!
Enlaçando os braços em torno dele, ela o beijou como se aquele fosse
seu último momento.
Quando por fim Sophie interrompeu a carícia, Benjamin cambaleou
por um momento, como se fosse perder o equilíbrio.
— Para dentro, para dentro, antes que a cidade inteira esteja falando
de nós!
— Fazer a cidade inteira comentar é o que eu mais quero!
Os cantos dos lábios de Benjamin se curvaram num sorriso enviesado
antes que ele enfiasse as chaves do chalé na mão de sua noiva.
— Este sempre será nosso lar, Sophie. Não importa por onde
possamos perambular, sempre voltaremos a nosso lar, na rua Príncipe
George, que daqui para a frente será conhecido como o chalé dos Swain.
Rindo por entre as lágrimas, Sophie abriu a porta com a mão trêmula
e foi recebida pelo convidativo aroma de laranjas e cravos, uma mistura
fresca e deliciosa.
Olhou ao redor, maravilhada.

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— Como fez isso?


— Não teria sido possível sem Flora e Abigail para me ajudar. São
mulheres que gostam de um ninho, cheias de conversas sobre bebês e do
que torna uma casa confortável E conhecem seus gostos.
Sophie mal conseguia enxergar o futuro marido através do pranto.
Benjamin se inclinou para ela, sempre sorrindo, nos olhos de um índigo
profundo.

— É linda! — Sophie suspirou, a examinar a sala de visitas antes de


entrar pela cozinha, com seu espaçoso fogão de tijolos e uma larga mesa
redonda de carvalho.
No centro da mesa, um prato de dar água na boca de bolinhos de
canela da doceira os esperava.
— Você pensou em tudo, meu amor!
Benjamin a conduziu de aposento a aposento até que chegaram ao
segundo andar. O quarto dos fundos dava para um pequeno jardim de
rosas.
Admirada, Sophie inspecionou o cômodo, desde a cama coberta por
uma manta com as cores do arco-íris até a lareira, estantes e uma
escrivaninha completa, com papel, lápis, penas e tinteiros.
— Espero que goste — Benjamin murmurou, ao lado dela.
— Mesmo uma exímia escritora não teria palavras para agradecer o
bastante.
Sophie aproximou-se do leito, apertou os dedos contra o colchão e
em seguida se deitou.
— Estou testando. Já fez isso?
— Estava esperando por você.
Aquelas palavras dispararam um desejo alucinante. Uma calda
quente pareceu queimar o vão das coxas de Sophie. " Ela se ergueu. Com
os olhos nos de Benjamin, começou a despir-se, lenta e deliberadamente.
Quando jogou de lado o corpete, Benjamin começou a cantarolar uma
toada de marujo.
Ao ritmo do rouco barítono, Sophie tirou as saias, as meias e, por
fim, a combinação de renda da mesma maneira, sem pressa.
Quando as peças se dobraram a seus pés, a evidência da excitação
de Benjamin era clara e espantosa.
Seus olhos escuros de volúpia estavam fixos nela, ao chegar mais

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perto. Ele parou a centímetros. Sophie podia sentir seu hálito.


Ela desabotoou o casaco e a calça de Benjamin. Tinha o coração aos
saltos e a respiração ofegante, à beira do êxtase. Benjamin a amava pela
mulher que ela era. Jamais a reprimiria. Sempre seria seu herói, o homem
que a protegeria, amaria, honraria, adoraria.
E Sophie o amaria até o fim de seus dias. Dar-lhe-ia filhos, e dias e
noites de felicidade sem paralelo.
Com adorável abandono, Sophie correu o olhar e a mão pela longa
compleição muscular de Benjamin, pelos braços fortes, pelo abdome chato
e duro como aço. As cicatrizes que marcavam o tórax pareciam suaves em
contraste corri a textura firme da pele bronzeada. Ondas quentes e
insistentes de desejo lhe corriam pela espinha.
Benjamin gemeu quando Sophie roçou os dedos por sua excitação
poderosa, ofegou de prazer quando ela se ajoelhou e beijou-o com a
intimidade dos amantes.
— Céus, preciso escrever sobre isto! — Sophie murmurou depois,
muito depois. — Tenho mesmo de descrever tantas delícias...

*****

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