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“BU NACI, SO PA BU KA FIKA NA BARIGA” BATUKO & MATERNIDADE TRANSNACIONAL Alcides José Delgado Lopes’ tchida pesquisai@gmail. com Introdugio No mundo crioulizado, hibrido e mestigo, a migrago internacional dé lugar ao transnacionalismo, aos transmigrantes e as comunidades da diaspora. De acordo com Trajano Filho (2011), os estudos transnacionais argumentam que os novos migrantes constroem suas relagdes sociais dentro de uma rede que se estende através das fronteiras dos Estados Nacionais (Trajano Filho, 2011: 159). A pritica musical & um ingrediente substancial nos fluxos imateriais que atravessam fronteiras ¢ formam identidades transnacionais, Sendo assim, que tipos de redes teéri podem nos ajudar a responder questées relativas & miisica no mundo como o compreendemos? A maioria de nés entende que o mundo, no qual nés e os nossos colaboradores fazemos, sentimos ¢ experimentamos miisica, esté mais complicado do que antes costumava ser, ou estamos nos conscientizando de que ele sempre foi complexo e que as nossas maneiras de pensé-lo eram muito esquematicas ¢ demasiadamente inadequadas (Rice, 2008: 151) Neste trabalho, procuramos discutir abordagens sobre as experiéneias e percepgdes da maternidade em campos sociais transnacionais quando gerenciada e experimentada em contextos de incerteza e presses conflitantes. A proposta de andlise ¢ baseada no fenémeno da emigragdo feminina de Cabo Verde para Portugal (vide Carreira, 1983; Batalha & Carling, 2008) A abordagem conceitual se aplica a pratica do batuko® — género performativo complexo que envolve percussio, poesia, canto e danga. Quando, um grupo de mulheres (raramente um homem aparece nesse contexto) canta ¢ toca percussdo em uma roda ou semicirculo, havendo uma solista © um coro que Ihe responde, Uma expresso musical coreografica que é encontrada na ilha de Santiago do arquipélago de Cabo Verde com * Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pés-Graduagéo em Antropologia, Universidade Federal de Pemambuco — Av, Prof, Moraes Rego, 1235. Cidade Universitéria, Recife/PE, CEP: 50670-901 — Capes — tchida pesquisa@gmail.com, * Batuque, batuku e batuko sdo vocabulos usados corriqueiramente na descrigdio desta manifestagao. Neste texto, usaremos batuko. 57 cas relativamente estiveis desde 0 século XVIII (vide Nogueira, 2011; Ribeiro, Dentro do nosso recorte, focamos em grupos de batuko que emerge na cidade de ios da década de setenta do século XX. isboa a partir dos i stes grupos, organizados por mulheres, na maioria da ilha de Santiago, cujos integrantes residem em bairros como Fontainhas, 6 de Maio (Damaia), Cova da Moura (Buraca) e Marianas (Careavelos) interpretam um repertério que versa sobre experiéneias, tais como 0 processo para conseguir 0 visto para emigrar, a legalizago da sua situagZo em Portugal, o trabalho da venda nos mercados de peixe, no comércio ou em residéncias privadas, ¢ ainda sobre como a vida familiar teve que ser estruturada devido a emigragaio (Cidra, 2008; Ribeiro, 2012), Mobilidade, Moralidades e Maternidade: “Rabidansa” Falar sobre a emigragdo feminina caboverdeana reserva suas peculiaridades. A literatura sobre maternidade transnacional relaciona situagSes nas quais uma mulher adulta emigra para o estrangeiro enquanto seus filhos menores de idade permanecem no pais de origem (Andall, 1998; 1999; Hondagneu-Sotelo & Avila, 1997; Lobo, 2006; Parrefias, 2005). Esta compreensiio de maternidade é a contrapartida de uma nogdo de infincia relacionada com a idade, descrevendo 0 periodo entre o nascimento e a idade adulta. Infancia, contudo, & um termo relacional: individuos permanecem os filhos de seus pais pela vida inteira (Akesson, Carling & Drotbohm 2012: 239). Entender este ponto de vista nos permite expandir a compreensdo sobre este fendmeno, Neste sentido, uma emigrante que deixou seu filho ou sua filha aos cuidados da av6, participa simultaneamente de duas relagGes de maternidade transnacionais. Este ponto é significative no caso caboverdeano, onde o vinculo mae-filho (a) € central por toda a vida, A unidade familiar analisada neste trabalho é tipica do interior de Santiago, onde a familia extensa composta por marido, mulher, filhos solteiros (adultos e criangas), netos e, em alguns casos, as esposas dos filhos casados que se encontram emigrados, em que as chefes de familia so normalmente as anciis e os homens adultos ausentes (Trajano Filho, 2005). Esta cont muragao opera no sentido de dar maior peso as mulheres no interior das familias. A centralidade feminina € reforgada pelas redes familiares que, devido a relativa auséneia da figura do homem, operam entre as casas por meio de troca e partilha de coisas, valores © pessoas (Lobo, 2006: 12). 58 A pesquisadora Marzia Grassi, em seu estudo sobre género ¢ diéspora caboverdeana pesquisou o caso das rabidantis’ , e nos informa que as dindmicas das redes caboverdeanas pelo mundo tém aumentado cada vez mais, principalmente o niimero de mulheres migrante: que se movimentam entre Cabo Verde e os paises de acolhimento. Segundo a autora, as mulheres ocupam na organizag4o familiar caboverdeana posigdo preponderante no que diz respeito 4 reprodugdo material ¢ simbélica da sociedade e sugere a importéncia ¢ pertinéncia do género como estrutura interpretativa do movimento migratério de origem caboverdeana (Grassi, 2006: 2). Nesta seo procuramos demonstrar como, na situagdo caboverdeana, as separagdes longas so construidas como uma necessidade dolorosa, mas ndo so assumidas como sendo trauméticas. A configuragdo triangular mae biolégica, mae adotiva e filho (a) exige que cada uma das mies desempenhe papéis complementares, que tenham con: preparadas para enfrentar incidentes imprevistos e obstculos contingentes e a possivel renegociagao das expectativas individuais e coletivas. Akesson, Carling & Drotbohm (2012) analisam o ideal e as expectativas com relagdo 4 maternidade transnacional em Cabo Verde, enquanto procuram estabelecer relagSes com as formas locais de parentesco, de adogio e de organizagtio doméstica. No seu estudo, o uso das trés categorias enunciadas no subtitulo aponta para um elo que ¢ central As vidas das mulhere: caboverdeanas: a mobilidade para além das ilhas é frequentemente necesséria e desejada; enquanto que a maternidade se apresenta como uma ancora em um universo social instével; os desafios praticos e emocionais da maternidade distancia séo enfrentados em um contexte de moralidades socialmente definidas. Nas sociedades onde existe um forte etos de mies provedoras, geralmente a mie idades emocionais e educacion: prioriza as nece: enquanto assume a responsabilidade de providenciar um padréo material satisfatério, Assim, mdes caboverdeanas so obrigadas a equilibrar de forma preciria o seu duplo papel de cuidadoras e de ganha-pio (Akesson, Carling & Drotbohm, 2012: 239) Neste contexto, segundo Lobo (2006), partilhar é uma categoria fundamental no entendimento das relagdes familiares, os quais ndo esto restritos aos lagos genealdgicos. O conceito fundamental de “fazer familia” esté presente nas préticas de partilha, ajuda mutua e solidariedade entre as pessoas e os grupos domésticos de forma que o enfoque do pesquisador deve recair no sistema familiar enquanto um processo que é construido cotidianamente. 7 Mulheres comerciantes que integram um movimento migratério temporério que varias vezes ao ano é feito nos fluxos de comércio informal para varias partes do mundo a partir de Praia (GRASSI, 2006). 59

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