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INSTITUTO DE ARTES
ESPAÇOS EM CONFLITO:
ENSAIOS SOBRE A CIDADE NO CINEMA ARGENTINO CONTEMPORÂNEO
CAMPINAS
2016
NATALIA CHRISTOFOLETTI BARRENHA
ESPAÇOS EM CONFLITO:
ENSAIOS SOBRE A CIDADE NO CINEMA ARGENTINO CONTEMPORÂNEO
CAMPINAS
2016
Para Diego.
AGRADECIMENTOS
Escrever esta tese foi tanto uma aflição quanto um profundo prazer; uma obrigação em
alguns dias e um trabalho de amor em outros. Inúmeras pessoas foram fundamentais e
especiais para encarar esse processo de quase cinco anos, desde a concepção do projeto
até o momento da defesa: das trocas sempre valiosas em congressos e outros eventos às
dicas de filmes e livros; dos e-mails e cafés atenciosos às conversas mais prosaicas e
acolhedoras (imagino que várias foram sucedidas de um banho de sal grosso por parte
de meus interlocutores, tamanha a encrenca que eu carregava com o doutorado, a tese,
um ou outro texto). Obrigada a todos que me escutaram e partilharam ideias comigo
nesse período. Também àqueles colaboradores anônimos das infinitas plataformas de
compartilhamento gratuito de filmes e livros que me proporcionaram acesso a uma
porção de obras inestimáveis para estas linhas e para a minha formação.
Agradeço principalmente à Miriam Gárate que me abriu caminhos e me fez acreditar
que eu poderia percorrê-los e realizar um trabalho sempre melhor, e por sua
compreensão com meus prazos sempre fora do prazo e com meu perfil inquieto. À
CAPES pela bolsa concedida durante quase todo o doutorado, crucial para que o
trabalho se desenvolvesse da melhor maneira possível. A todos os professores do
DECINE pelas aulas intrigantes e pela convivência espirituosa fora das classes –
especialmente ao Alfredo Suppia e ao Francisco Elinaldo Teixeira que toparam ser
suplentes na defesa, e mais uma vez ao Elinaldo, por propiciar minha primeira
experiência docente através do PED. Aos alunos da Midialogia 2013, sua paciência e
receptividade que resultaram, para mim, em uma vivência fascinante. Aos funcionários
do IA pela generosidade com minhas demandas.
Há uma crença de que ninguém tem certeza do que pensa sobre um determinado assunto
até que tenha colocado esses pensamentos no papel; da mesma forma, acredito que
compreendemos muito pouco o que pensamos até que tenhamos submetido nossa
reflexão a alguém. Assim, agradeço ao José Alves de Freitas Neto, pelas contribuições
durante o exame de qualificação, e a Cecília Mello, Gilberto Alexandre Sobrinho e
Ismail Xavier, por aceitarem participar do momento tão importante para nos
confrontarmos com nossos próprios pensamentos como é uma banca de defesa.
Agradeço ao Fernando Passos (além de tudo, presente na qualificação e na defesa) e à
Lucrecia Martel, parceiros do mestrado, por fazerem com que o cinema entrasse
definitivamente em minha vida e que sua presença diária como trabalho nunca tirasse o
prazer da paixão. À Regiane Ishii (cuja dissertação de mestrado foi iluminadora para a
definição do objeto desta tese) pela amizade carinhosa e por me apresentar à Giuliana
Bruno. À Marie Goulart que me ajudou com diversas sugestões, revisões e cuja
dissertação também foi essencial no momento fundacional da tese. À Daniela Gillone e
suas dicas preciosas na estruturação do projeto para a seleção do doutorado. À Maria do
Socorro Senne, pela revisão cuidadosa do texto em tempo recorde.
À Mônica Campo, também presente na banca (no susto!), fundamental em meu percurso
intelectual desde o mestrado, tão inteligente e maravilhosa que encontrá-la significa
passar, no mínimo, oito horas em sua companhia. Ao Yuji Kawasima e à Paula Ramos,
pelos momentos mais festivos e divertidos. À Ana Carolina Lahr, Flávia Oliveira
Machado, Gabriela Virdes e Paula Pulga pela cumplicidade fraterna. À Letizia Nicoli,
por saber tudo do mundo inteiro e estar sempre disposta a dividir. À Lúcia Monteiro,
Mariana Duccini, Marina da Costa Campos e Teresa Sanches pelas inúmeras parcerias
que se transformaram em amizade afetuosa. À Ligia Aguilhar e nossos papos sempre
contagiantes. Ao Josias Leme por ocupar com dedicação esse difícil papel de pai
postiço. À Lili Fernandes, ao Fernando Hebling e à Laila Hebling, por terem me
ensinado tanto em tão pouco tempo, e aos nossos amigos Alexandre Alvarenga, Caio
Rosa, Danilo Couto, Diego Paganini, Henrique Bortolotti, José Antônio Catelani,
Leonardo Bícego, Luís Guerreiro, Marcos Hummel, Renato Camarinho e Ricardo
Bassani, por me lembrarem, nas buenas e nas malas, o que é união. À Monique
Deheinzelin que, com um pequeno e prosaico comentário em um jantar, fez a fase final
da escrita muito mais leve: “mas não é uma maravilha fazer um doutorado?”.
Aos amigos do Multimeios Carla Paiva, Cássia Hosni, Felipe Bomfim, Jennifer Serra,
Líllian Bento, Priscyla Bettim, Rafael de Almeida, Régis Rasia, Renato Coelho,
Rodrigo Barreto, Teresa Noll e Viviana Echávez pelos intercâmbios intelectuais e pelo
companheirismo. Aos integrantes do grupo de estudos Cinema da América Latina e
vanguardas artísticas por todos os debates incríveis, especialmente à sua diretora Yanet
Aguilera que, gentilmente, discutiu comigo sobre El asaltante e Elefante blanco e a
quem devo diversas ideias que desenvolvo sobre esses filmes. Aos parceiros no comitê
editorial da Imagofagia, com quem sempre aprendo muito – especialmente sobre
trabalhar em equipe de verdade. Aos colegas argentinos do Centro de Investigación y
Nuevos Estudios sobre Cine (CIyNE) com quem é um privilégio investigar e um prazer
se encontrar, especialmente Anabella Castro Avelleyra, Ana Laura Lusnich, Andrea
Cuarterolo, Pablo Piedras e Silvana Flores. Também à Irene Depetris Chauvin e à Julia
Kratje pelos diálogos e dicas instigantes, mesmo que a distância. À AsAECA –
Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual pela oportunidade de
participar de sua Clínica de Tesis e, novamente, a Ismail Xavier, meu supervisor nessa
atividade, que interveio com propostas estimulantes em um momento árido do trabalho.
À minha mãe Adriana, uma vez mais e sempre. Ao meu irmão Bruno que é todo fervor
criativo e vida. Ao meu pai que, mesmo depois de tantos anos de ausência, continua
sendo uma presença inspiradora. Ao Diego Cordes, “mi amor mi cómplice mi todo”.1 A
ele está dedicada esta tese e tudo aquilo que não cabe em palavras.
Agradeço ainda alguns interlocutores teóricos (felizmente presentes em minha vida não
apenas através dos livros, mas pessoalmente) sem os quais não teria escrito o que
escrevi aqui: Gonzalo Aguilar, David Oubiña e, outra vez mais, Ismail Xavier. Uma
mínima parte da felicidade intelectual que produz lê-los é a que desejo para os leitores
deste texto.
1
BENEDETTI, Mario. “Te quiero” in Inventario uno (1950-1985). Buenos Aires: Sudamericana, 1963.
RESUMO
Nos últimos 20 anos, a relação entre cinema e cidade tem sido objeto de sucessivas
conferências ao redor do mundo, de um grande número de livros e coletâneas e de
especiais em revistas científicas de várias áreas. Também há 20 anos emergia o que se
convencionou denominar nuevo cine argentino: a retomada, após um período de crise,
da produção cinematográfica argentina. O espaço urbano assumiu papel privilegiado
nos filmes que inauguraram e consolidaram essa nova geração, aspecto abordado em
inúmeros estudos. O presente trabalho pretende pensar como se concebe e se percebe a
cidade nos filmes pós-nuevo cine: o espaço urbano ainda seria importante na
cinematografia argentina contemporânea, após alguns anos de intensas modificações no
panorama cinematográfico (com a consolidação das carreiras de diversos diretores e
produtoras do nuevo cine e o incessante aparecimento de novos e diversificados
cineastas, estéticas e modos de produção)? Sete longas-metragens irão compor o eixo do
texto: El asaltante (2007) e La sangre brota (2008), ambos de Pablo Fendrik, nos quais
as ruas da cidade são, quase exclusivamente, o espaço da ação, assim como em Castro
(Alejo Moguillansky, 2009); Una semana solos (Celina Murga, 2008) que se
desenvolve dentro de um condomínio fechado de alto padrão; El hombre de al lado
(Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009) que se passa dentro de uma casa e no limiar da
mesma; Elefante blanco (Pablo Trapero, 2012) cujos conflitos se dão em uma favela; e
Historia del miedo (Benjamín Naishtat, 2014), no qual temos personagens que habitam
um bairro privado, um alto edifício e a periferia. Nessas produções, a cidade constitui
potente linha de força para perceber a vida social e seus conflitos e não é apenas
cenário, mas elemento fundamental e estruturante. Localizam-se alguns temas que
dialogam de forma prolífica com as obras escolhidas e que vão nortear o texto: a
constante circulação dos personagens, o medo que os move ou os paralisa, os diversos
tipos de violência, a fuga – todos relacionados à construção de novas fronteiras e à
reconfiguração dos espaços públicos e privados. As aproximações propostas são, cada
uma a seu modo, formas oblíquas de nos debruçarmos sobre essa relação entre a cidade
e o cinema argentino contemporâneo. Assim, buscamos mobilizar este corpus como
uma forma particular de panorama no qual transitam diversas questões, identificando
recorrências e particularidades nos modos de filmar, escutar, experimentar e construir a
cidade.
ABSTRACT
During the past twenty years, the relationship between cinema and city has been the
subject matter of several conferences around the world. Also of a large number of
books, collected writings, and special articles in science periodicals from several areas.
Also, twenty years ago there came up something given the conventional name of nuevo
cine argentino (new Argentinian cinema): the comeback, after a time of crisis, of the
Argentinian cinematographic production. The urban space was given a privileged role in
the films that inaugurated and consolidated this new generation. This aspect is covered
in countless studies. This paper aims at thinking the way the city is conceived of and
perceived in post-nuevo cine films: was the urban still important in contemporary
Argentinian cinematography, after some years of intense changes in the
cinematographic landscape (such as the consolidation of the careers of several nuevo
cine directors and producing companies and the ceaseless emergence of new and
diversified film makers, aesthetics and modes of production)? Seven feature-length
films will be central to this thesis: El asaltante (2007) and La sangre brota (2008), both
by Pablo Fendrik, where the city streets are nearly exclusively the space for the action,
as in Castro (Alejo Moguillansky, 2009); Una semana solos (Celina Murga, 2008),
which takes place within a high-level gated community; El hombre de al lado (Gastón
Duprat and Mariano Cohn, 2009), which takes place within a house and its environs;
Elefante blanco (Pablo Trapero, 2012), whose conflicts happen within a slum; and
Historia del miedo (Benjamín Naishtat, 2014), where we have characters living in a
private neighborhood, a tall building and the city outskirts. In these productions, the city
is a strong power line to help us realize social life and its conflicts. It is not merely a
scenario, but a fundamental and structuring element. I place some themes that establish
a prolific discussion with the works chosen, and that will be the text guidelines: the
constant way the characters move about, the fear that moves or paralyze them and the
several kinds of violence – all related to the construction of new frontiers and
reconfiguration of public and private spaces. The approximations proposed are, each in
its own way, slanted ways of analyzing this relationship between the city and the
contemporary Argentinian cinema. So, we seek to call upon this corpus as a particular
form of landscape where several questions move about, identifying recurrences and
specificities in the ways of shooting, listening to, experiencing and constructing the city.
Key words: motion pictures – Argentina, motion pictures – Latin American, cities and
towns in motion pictures, fear in motion pictures, violence in motion pictures.
SUMÁRIO
6. Palavras finais:
espaços em conflito …………………………………………………………......... 171
11
1
Os filmes que possuem título em português estrearam comercialmente no Brasil.
12
Aires, e uma breve estadia para um estágio de pesquisa transformou-se em uma vivência
de alguns anos. Devido ao permanente interesse pelo cinema argentino contemporâneo,
parecia apropriado que o próximo passo, o doutorado, seguisse esse caminho: foi
delineado um projeto sobre Martín Rejtman, um diretor da geração de Martel. Porém,
quando esse estudo deveria ter sido iniciado, outra coisa foi tomando minha atenção: a
volta ao Brasil. Um retorno que não se configurava exatamente como um retorno, já que
eu me instalaria em uma cidade que nunca havia habitado: São Paulo.
A exploração de uma cidade nova fazia-me atentar e frequentemente
provocava comparações sobre os modos de habitar, transitar e se relacionar nessas duas
urbes latino-americanas. Enquanto a presença de São Paulo se dava fisicamente, Buenos
Aires aparecia de maneira bastante reconhecível na obra de Rejtman. Seus longas de
ficção – Rapado (1992, estreia em 1995), Silvia Prieto (1999) e Los guantes mágicos
(2003) – me serviam para pensar certas questões com as quais me deparava, ao colocar
a cidade não como mero marco cenográfico ou ambiental, mas como um elemento
essencial ao assunto e a sua impostação narrativa. Como diria Geoffrey Nowell-Smith
(2001), tais produções não poderiam prescindir do uso da locação utilizada sem que isso
as alterasse de maneira radical. Dessa forma, filmes me davam voltas na cabeça,
enquanto eu dava voltas pelas ruas paulistanas, entrelaçando a(s) cidade(s), o cinema e
meu dia a dia on ou off tese. Encontrar-me com Caro diário alguns anos depois deu um
novo sentido a esses primeiros passos da reestruturação do projeto de doutorado. E em
seguida, entra o livro que mencionei no primeiro parágrafo.
Em Atlas of emotion. Journeys in art, architecture, and film (2007), a
arquiteta napolitana e professora da Universidade de Harvard Giuliana Bruno explora as
relações entre arquitetura, artes visuais, geografia, design, moda e, especialmente,
cinema. A escolha do conceito de atlas para intitular seu texto é estratégica para nuclear
seus objetivos teóricos e críticos: incitada por um impulso cartográfico de conectar
espaços e emoções, o trabalho de mapeamento é onipresente. Simultaneamente, a
jornada à qual ela faz alusão no título é um percurso pessoal.
A Carte du pays de Tendre (em tradução livre, Mapa do país da Ternura),
que Madeleine de Scudéry desenhou para ilustrar sua novela Clélie, histoire romaine
(publicada em 10 volumes em Paris, entre 1654 e 1660), acompanhou Bruno por anos,
não apenas impulsionando a escrita do Atlas, mas também pontuando sua viagem
13
14
que, obviamente, tratam da morte – entretanto, Outros amarão as coisas que amei se
imprime como uma vibrante celebração da vida. E, também, da inteligência e da
sensibilidade.
Houve longos aplausos na sessão em que o vi e, por isso, pensei que o
diretor estivesse presente, mas não. O público festejava e agradecia aos belos 75
minutos que havia compartilhado com o filme. Eu agradeceria outra vez, mais tarde, a
descoberta dos textos de João Bénard que não conhecia e pelos quais terminei obcecada.
Em suas críticas, há uma mescla de fervor amoroso com análise meticulosa, tanto das
obras quanto de seus contextos de produção e recepção. O encontro com esse material
proporcionou um reencontro com meus objetivos de escrever e pensar o cinema que
andavam um tanto perdidos, apesar de parecerem evidentes, ao serem puxados um
pouco pelo trabalho construído até ali, um pouco pela carreira almejada a se construir.
Mas, como firmou o próprio Bénard, “(...) quando nos pegam na mão para nos lembrar
o óbvio, é porque o óbvio não é tão óbvio como aparenta sê-lo”. Eu pude recordar,
então, do cinema como aquilo que imprime novo impulso ao girar das coisas, como
oração noturna antes de dormir, como lugar de confluência de amizades. E, enfim, se
conto tudo isso aqui, é para (re)afirmar meu desejo em fazer destas palavras um
conjunto de apontamentos para uma conversa inacabada que busca aproximar-se de
outros interlocutores e, assim, uma ponte para a compreensão da vida e do mundo
através do cinema, desejo compreendido ou reacendido pelas linhas que Bénard deixou.
***
15
(...) chama a atenção que três dos filmes mostrados pelo BAFICI nesta
última edição trabalhem com tantos espaços abertos, territórios
imensos. (...) Este espaço virgem, desabitado, inquietante (…) é o
protagonista de Los salvajes, de Alejandro Fadel, de Germania, de
Maximiliano Schonfeld, de La araña vampiro, de Gabriel Medina.
Um espaço a recorrer, a transitar, um espaço vazio que lentamente se
enche de corpos, de árvores, de rios, de violência, de casas, de
enfrentamentos. (...) O recorrido desses exteriores, incomensuráveis e
excessivos, é a prova que os personagens devem superar. (...) O
verdadeiramente importante é o recorrido desses espaços, o
transcorrer. O resultado desse caminhar, fugir, escapar, buscar é uma
forte sensação de desorientação (GAMBERINI, 2012).3
16
17
5
Mariana Sanjurjo, no texto “Derivas de la identidad en la filmografía de Martín Rejtman” (2007), faz uma
interessante análise dos filmes de dito diretor a partir dessa perspectiva.
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que abrem o longa uma espécie de manifesto fundador de um cinema que se coloca do
outro lado do limite de velocidade do neoliberalismo.
No artigo “Pizza, birra, faso: la ciudad y el margen” (2009), Malena Verardi
faz um dos mais interessantes exames do filme que, segundo ela, permite dar conta das
transformações dos modos de representar a cidade e da relação entre os espaços urbanos
e suburbanos no NCA. Analisando a estruturação de espaços, Verardi encontra, como
princípio construtivo, a constante delimitação de um dentro e um fora, configurando
uma cidade dual de espaços exclusivos e marginais. Nessa cidade, as exclusões espacial
e social se determinam mutuamente:
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22
10
Apesar de ser considerado parte do NCA, especialmente no exterior, Campanella trabalha com modos de
produção e poéticas bastante diferentes aos do nuevo cine, sendo mais ligado aos grandes conglomerados de
comunicação e a grandes estúdios. Fabián Bielinsky e Marcelo Piñeyro, junto a Campanella, são alguns
realizadores que se destacam entre esses “diretores industriais”. Tais esquemas mais “industriais” de
produção também foram renovados a partir de meados dos anos 1990 para acompanhar os novos padrões de
consumo. Podemos notar renovações estéticas e temáticas que se correspondem com as propostas do NCA,
sendo a presença da cidade uma delas – filmes como Nove rainhas (Nueve reinas, Bielinsky, 2000) e Taxi,
un encuentro (Gabriela David, 2000) são exemplos notáveis da importância do espaço urbano nas tramas.
11
Nesse sentido, Verardi (2009) já chamava a atenção para Pizza, birra, faso como um filme noturno, no
qual a noite parecia ser o cenário mais adequado para a observação daquelas cenas que o dia invisibilizava.
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***
12
Pérez Llahí, no texto citado anteriormente, também invoca o filme de Santiago para tratar da reinvenção
do espaço no cinema argentino: “Invasión é, definitivamente, o primeiro expoente de um cinema argentino
que vai começar a lutar com seu território para inventar um lugar próprio no qual transcorrer, mesmo que
nunca deixe de estar tingido de uma inevitável localidade” (2007, p. 75).
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13
Este exemplar faz parte da coleção World Film Locations, cujo objetivo, segundo o site da Intellect Books
(uma das editoras), é explorar e revelar as relações entre a cidade e o cinema usando uma aproximação
predominantemente visual (http://www.intellectbooks.co.uk/books/view-Series,id=27/). Inspirada pela seção
“On location” da revista The Big Picture (também editada pela Intellect: http://thebigpicturemagazine.com/),
a série já lançou mais de quarenta livros desde 2011.
14
Na introdução da compilação, os organizadores Santiago Oyarzabal e Michael Pigott esclarecem que a
Ciudad Autónoma de Buenos Aires é delimitada pelo Riachuelo e pela autopista General Paz, mas que o
livro abarca também os subúrbios que a permeiam e penetram: tais áreas, que compõem a Grande Buenos
Aires, não são apenas essenciais à identidade da Capital Federal, mas as diferenças, as interações e os ideais
que surgem dessa coexistência estão intimamente imbricados no cotidiano da(s) cidade(s).
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- finalmente, e como viemos discutindo até aqui, a consolidação do espaço urbano como
um lugar privilegiado para se pensar as relações sociais, políticas e culturais nos filmes
do NCA – os quais, geralmente, ignoram ícones arquitetônicos e promovem uma rica
exposição da vida na cidade.
E como se dá a relação entre a cidade e o cinema argentino nos últimos
anos? Como afirma Gonzalo Aguilar em um breve epílogo para a edição de Otros
mundos publicada em 2010, “muitos dos princípios que regiam o cinema a princípios
dos anos 2000 se modificaram radicalmente, e o que antes eram casos isolados hoje
configuram uma tendência cujos caminhos são muito difíceis de prever” (p. 238). Há
mais de uma década já se discute que o nuevo cine transitou o tempo de uma geração
inteira, lapso demasiado extenso para a dinâmica própria de um movimento
cinematográfico.
David Oubiña, por exemplo, escreve em 2004 que, após dez anos, a
renovação terminou por construir outro establishment, renunciando frequentemente à
experimentação para refugiar-se nas convenções, na autoindulgência e no
conservadorismo. Sergio Wolf, em um debate promovido pela revista Otros Cines em
2007, denominado “Qual é a verdadeira situação do cinema argentino?”, prefere propor
outro enfoque e fixar uma periodização do NCA a partir da estreia, naquele ano, de dois
filmes que ele considera definidores, devido à capacidade de refletir sobre suas próprias
problemáticas: Estrellas (Federico León e Marcos Martínez) e UPA – Una película
argentina (Camila Toker, Santiago Giralt e Tamae Garateguy).
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Llinás para fechar seu livro Nuevo cine argentino. De Rapado a Historias
extraordinarias (2009), Jaime Pena utilizou o título para nomear a compilação
organizada por ele Historias extraordinarias. Nuevo cine argentino 1999-2008 (2009),
localizando-o como arremate da primeira década de NCA ou inaugurador de um NCA
2.0 que então se iniciava, e Gonzalo Aguilar o colocou como principal representante do
que chamou de cinema anômalo.
A consolidação do cinema anômalo, segundo Aguilar, foi um dos
acontecimentos mais significativos no cinema argentino entre 2006 e 2010, período
entre a publicação de Otros cines e de sua reedição. Com este termo, ele se refere a
uma série de filmes que não se vinculam ao INCAA para conseguir orçamento e que
buscam instaurar outros circuitos de exibição. Partindo do subtítulo do livro de
Campero, Aguilar acredita que o NCA traçou o caminho de um filme independente a
outro. Porém, enquanto Rapado foi uma obra independente em um contexto hostil;
descobrimento e aprendizagem ante a escassez de opções, Historias extraordinarias
tem a independência como uma escolha, uma postura estética, política e vital;
estratégia e fortalecimento de um modo de pensar o cinema (AGUILAR, 2010, p.
240). Dessa forma, o cinema anômalo não se enfrenta necessariamente a uma ordem,
mas se faz à margem dela, e foi o filme de Llinás que realizou essa torção e
inaugurou uma nova modalidade de realização fora dos moldes de produção
previsíveis e convencionais15 e de busca do público em outros lugares que não os
cinemas – como os museus.
Assim, apesar de sua narrativa de aventuras, do excesso de elementos e da
voz over predominante que confronta a estética minimalista de grande parte dos filmes
do NCA, Historias extraordinarias se configura como ponto de inflexão mais por sua
forma de produção que pelo paradigma estético que promove. Como provoca Nicolás
Prividera (2014), o filme de Llinás não possui nada de extraordinário em si mesmo –
construindo-se, na verdade, como uma profusão de histórias mínimas e reproduzindo o
modelo do título a que parece contestar: Historias mínimas, de Carlos Sorín (2002) – e
15
Mais especificamente, q ue se convencionaram a partir das leis de fomento de meados da década de 1990,
que citamos anteriormente. Tais leis, benéficas para estabilizar o fenômeno do nuevo cine, deveriam ser
repensadas e atualizadas, segundo propõem esses novos cineastas (que, aliás, não deixam de produzir
através de outros caminhos enquanto se envolvem nesse debate).
29
seu maior mérito é obrigar a uma revisão do cinema argentino em geral e do NCA em
particular.16
Pensar e expor todo esse itinerário me pareceu importante para, finalmente,
sistematizar o que me interessa explorar neste trabalho: como se concebe e se percebe a
cidade nos filmes pós-NCA. O espaço urbano ainda seria privilegiado na cinematografia
argentina contemporânea, após alguns anos de intensas modificações no panorama
cinematográfico (com a consolidação das carreiras de diversos diretores e produtoras do
nuevo cine e o incessante aparecimento de novos e diversificados cineastas, estéticas e
modos de produção), como questiona Gamberini? Ainda são válidos conceitos como os
de fuga, nomadismo, sedentarismo, entre outras categorias que expusemos
anteriormente, como as propostas por Jens Andermann?
A decisão de adotar uma perspectiva do presente não obedece tanto a uma
opção metodológica, mas a uma estratégia que permite a análise crítica simultânea ao
relato pessoal: tal recorte me interpela tanto teórica quanto intimamente. Ademais, me
faz pensar que lugar ocupa minha própria produção na elaboração do conhecimento
(especialmente se tratando de uma mirada estrangeira), e é também por isso que assumo
os riscos do ensaio, com o que esta forma implica de envolvimento subjetivo e de
pensamento em marcha. Nesse sentido, também me sinto mais à vontade para puxar
algumas linhas e deixá-las soltas.
Sete filmes irão compor o eixo do texto: El asaltante (2007) e La sangre
brota (2008), ambos de Pablo Fendrik, cujas ruas da cidade são, quase
exclusivamente, o espaço da ação, assim como em Castro (Alejo Moguillansky,
2009); Una semana solos (Celina Murga, 2008) que se desenvolve dentro de um
condomínio fechado de alto padrão; O homem ao lado (El hombre de al lado, Gastón
Duprat e Mariano Cohn, 2009) que se passa dentro de uma casa e no limiar da mesma,
dramatizando a questão dos espaços público e privado; Elefante branco (Elefante
blanco, Pablo Trapero, 2012) cujos conflitos se dão em uma favela; e Bem perto de
16
A despeito do ânimo de manifesto que o longa de Llinás gerou, é importante não esquecer que Raúl
Perrone (considerado um dos pioneiros e inspiradores do NCA) filma e exibe por fora dos circuitos
tradicionais desde suas primeiras produções do fim dos anos 1980 até hoje (somando em seu currículo mais
de 30 obras). Há também todo um universo de produção de filmes B que se concentra no já consolidado
Buenos Aires Rojo Sangre – Festival Internacional de Cine de Terror, Fantástico y Bizarro, que se realiza
desde 2000. Imagino que, com o cada vez mais disseminado uso do digital, devem existir inúmeras outras
redes de realização e difusão independentes que não lograram a visibilidade do filme de Llinás, mas
integram o que Aguilar denomina cinema anômalo.
30
Buenos Aires (Historia del miedo, Benjamín Naishtat, 2014), no qual temos
personagens que habitam um bairro privado, um alto edifício no centro da cidade e a
periferia. A partir deles, poderão ser estendidas conversas com outros filmes do país e
também latino-americanos, especialmente brasileiros, para complexificar e
dimensionar de forma relacional as proposições apresentadas – sendo que não se
configura um compromisso com reflexões aprofundadas dos mesmos, mantendo maior
atenção sobre a cinematografia argentina.
Nessas produções, a cidade constitui potente linha de força para perceber a
vida social e seus conflitos e não é apenas cenário, mas elemento fundamental e
estruturante, como explorarei nas análises. Sergio Wolf afirma que, ademais de poder
examinar os modos como o espaço é construído no cinema, o mesmo também pode ser
pensado como tema. Para o crítico argentino, “há filmes nos quais a topografia demarca
e expande outras coordenadas, conota e informa algo mais que o referido a seu valor de
uso para o relato ou para os personagens” (1993, p. 45, destacados no original).17
Nos últimos 20 anos, a relação entre cinema e cidade tem sido objeto de
sucessivas conferências ao redor do mundo, de um grande número de livros e coletâneas
(especialmente em língua inglesa) e de especiais em revistas científicas de várias áreas.
Dita relação tem alcances enormes e enfoques que convocam a quase qualquer
disciplina humanística, tendo geralmente caráter interdisciplinar e possibilitando
inúmeros cruzamentos metodológicos, especialmente com a Arquitetura, a Cartografia,
a Geografia e a Sociologia. Grande parte dessa literatura acadêmica toma como
embasamento teórico o reconhecimento, a partir da década de 1970, do espaço como
categoria organizadora, e da espacialização como termo de análise e descrição da
sociedade e culturas moderna e pós-moderna (MELLO, 2011). Esse fenômeno,
intitulado spatial turn (guinada ou virada espacial), tem em Henri Lefebvre e Michel
Foucault seus principais referentes, já que suas análises do espaço contribuíram bastante
para o entendimento da organização e da coerência do mundo moderno, influenciando
consideravelmente o interesse cada vez maior no espaço. Aos trabalhos dos filósofos
17
De maneira similar, Giuliana Bruno constata: “Lugares e até meios de transporte são específicos a gêneros
fílmicos e ciclos que, por sua vez, mudam a maneira como remapeamos esses lugares. A estrada de ferro e a
paisagem aberta geraram e moldaram o western, o espaço sideral definiu o domínio da ficção científica, o
carro determinou o road movie, e a casa delimitou a fronteira do melodrama – uma fronteira não
transgredida facilmente. Em muitos casos, no entanto, essas fronteiras existem apenas para serem
transgredidas” (BRUNO, 2007, p. 28).
31
***
18
Vários títulos poderão ser consultados nas referências, ao final do texto, e muitas obras já trataram de
recuperar e sistematizar tal bibliografia, entre as quais gostaria de destacar a introdução de Julia Hallam e
Les Roberts ao livro organizado por eles Locating the moving image (2014), na qual buscam esclarecer
denominações e delinear teórica e metodologicamente perspectivas pertencentes à virada espacial nos
estudos de cinema, identificando áreas temáticas e indicando seus autores; e Film and urban space: critical
possibilities (2014), de Geraldine Pratt e Rose Marie San Juan, cujo título já diz a que vem. Um dos poucos
materiais em português que podem ser consultados é o excelente relatório de pós-doutorado de Cecília
Mello: Movimento e espaços urbanos no cinema mundial contemporâneo (2011).
32
33
cinema intervém no espaço.19 Irene Depetris Chauvin (2013) aponta que uma forma de
compreender essa intervenção é através da categoria de prática espacial, a partir da qual
Michel de Certeau (1994) concebe o espaço como um lugar praticado, resultado da
mobilidade dos corpos, da experiência e da interação humana.
Esse andar dos indivíduos configura uma enunciação pela qual, como
resultado do movimento, da prática, os “lugares” adquirem novos
sentidos que os convertem em “espaços”. (...) A ficção é entendida,
também, desde esta perspectiva, como uma proposta de deslocamento
na qual toda história seria uma história de viagem, uma prática
espacial, cujos “recorridos” fazem ver os “lugares” de um modo
particular e os convertem em “espaços”. Embora Certeau analise os
trânsitos citadinos e nunca se refira diretamente ao cinema, a ênfase
nas trajetórias e nas práticas é aplicável ao cinema. Muitos aspectos da
imagem em movimento têm a ver com os atos de habitar e atravessar
o espaço: os filmes realizam “recorridos” de seus espaços, mas, ao
mesmo tempo, o aparato cinematográfico reinventa esses espaços
antes que reproduzi-los mimeticamente (DEPETRIS CHAUVIN,
2013, p. 160).
Cecília Mello também trabalha com a visão do cinema como prática espacial,
mas se dedica a pensá-lo mais como produtor de espaços: ao movimentar-se através do
espaço real, o cinema acaba criando um novo espaço, o espaço cinematográfico,
construído a partir do enquadramento, dos ângulos e movimentos de câmera, da
iluminação (natural ou artificial), da interação com os atores ou os habitantes reais de uma
cidade, da montagem, em suma, de todos os recursos da arte cinematográfica e das outras
artes com as quais o cinema interage (MELLO, 2011, p. 35). Além de Certeau, Mello
19
Stephen Heath, em seu texto Narrative space (1976), considera que o cinema manipula o espaço ao longo
do desenvolvimento de uma narrativa. Para Heath, isso se dá especialmente através do movimento dos
personagens, da câmera e de uma tomada para outra (por meio da montagem se representa a “passagem” de
um espaço a outro no tempo). É possível também fragmentar o espaço como, por exemplo, através dos
closes. Mark Garrett Cooper (2002) avança sobre as ideias de Heath, propondo que a construção do espaço
fílmico também pode se dar em apenas um frame fixo – ou seja, mesmo que não haja movimento ou edição.
Além das intervenções de Cooper, Cecília Mello observa como a abordagem de Heath foi sendo contestada
a partir da identificação de uma qualidade sensorial da experiência cinematográfica por Gilles Deleuze que
assinalou, nos anos 1980, uma passagem do modelo espectatorial de óptico para háptico, contribuindo assim
para um distanciamento da noção de representação na teoria do cinema: “A ênfase na natureza háptica da
experiência cinematográfica pôs em xeque abordagens acerca do espaço no cinema tais como a de Stephen
Heath (1976), afinada à tradição teórica de inspiração semiótico-psicanalítica. Para Heath, a narrativa seria o
elemento que asseguraria um posicionamento coerente ao espectador habituado ao ponto de visto estático da
perspectiva renascentista, garantindo a coerência espacial a despeito da mobilidade inerente ao cinema. No
processo de revisão pelo qual passou a teoria cinematográfica, a ideia do cinema como herdeiro direto da
perspectiva Renascentista foi plenamente rechaçada, e a apreciação do espaço fílmico passou a ser
considerada acima de tudo a partir da experiência tátil e do movimento” (MELLO, 2011, p. 57). Tratarei
mais detidamente da qualidade háptica do cinema no capítulo 2.
34
35
***
36
No projeto inicial sobre os filmes de Martín Rejtman, uma das coisas que
mais me intrigava era a ideia da “narração como circulação”, como conceitua Oubiña
(2005, p. 11) a respeito dos filmes do cineasta. Para Verardi (2010, p. 282), a circulação
é um dos assuntos centrais dos longas e aparece também como eixo de toda a obra de
Rejtman – o movimento contínuo, o trânsito, atravessa os personagens e os objetos
convertendo-se em uma das chaves de leitura do universo proposto pelo cineasta. Como
acabo de comentar, os filmes do diretor são utilizados por Aguilar (2006) para discutir a
ideia de nomadismo, e por Dipaola (2012a) para abordar a noção de fuga.
Oubiña (2005, p. 06) analisa que os filmes de Rejtman são microcosmos de
personagens que reaparecem e se recombinam, a partir de pequenas situações que se
repetem e com uma seleção limitada de objetos que se dedicam a circular de maneira tão
imparável quanto impassível. Para Aguilar, “o cinema de Rejtman é um mapa em que
pessoas e coisas não deixam de traçar recorridos” (2006, p. 61). Segundo o autor, um dos
traços do mundo rejtmaniano é que tudo e todos estão se movendo permanentemente: os
personagens frequentemente não têm casa e estão sempre se deslocando, jamais se detêm,
viajando de carro, de avião, de trem, de moto ou no skate, e as coisas não deixam de ser
trocadas, vendidas, presenteadas, passadas de mão em mão. Os animais emulam esse
destino e também vão de um lado a outro, assim como os afetos, as relações e até as
depressões; alguns assuntos são repetidos ou reciclados, as identidades não são firmes e
estão flutuando, da mesma forma que os diálogos à deriva.21
Em uma análise preliminar do corpus, a ideia da circulação voltava a aparecer
devido à constante movimentação, especialmente, dos personagens. Se em Rejtman22 a
circulação das pessoas e dos objetos configura-se como elemento organizador da
experiência, determinando a direção e o ritmo dos acontecimentos, qual o papel dos
deslocamentos nos filmes a serem analisados? Como os personagens atravessam espaços
que não são apenas pano de fundo de seus dramas, mas parte intrínseca da arquitetura do
drama, acredito que os diferentes modos de narrar esses trânsitos correspondem a formas
21
Uma passagem que me parece paradigmática e imperdível que gostaria de citar é esta de Los guantes
mágicos: Alejandro encontra casualmente Piraña, escuta seu disco de rock frenético e fica com dor de
ouvido. Vai a um médico que o encaminha a um oftalmologista, quem lhe receita óculos e diz: “O corpo aos
40 é como essas casas velhas – quando alguém toca algo, mesmo que seja um encanamento insignificante,
percebe que o que está podre é estrutural. Está tudo conectado. Na verdade, está tudo podre. Tem que
continuar arrumando uma coisa, que leva a outra e depois a outra. Até não terminar nunca. Aconteceu
comigo. No fim, me cansei e decidi vender. Me mudei a um apartamento muito mais novo”.
22
Sobre a obra de Rejtman, ver – além dos trabalhos já citados – a dissertação de mestrado de Fábio Allan
Mendes Ramalho (2009).
37
distintas de pensar a cidade que percorrem ou, pelo menos, formas particulares de
preludiar e representar algumas de suas questões. Assim, o segundo capítulo, intitulado
Introdução, segunda parte: mise en scène do espaço como movimento, estruturou-se
como uma apresentação dos filmes, a partir do elemento que alinha a costura entre eles: o
movimento. Nele, procuro analisar as figurações da circulação e apontar como elas
participam da construção dos espaços das/nas obras. Por vezes, o texto parecerá errante e,
as ideias parecerão incompletas, mas o objetivo é que o capítulo realmente funcione
apenas como porta de entrada para o corpus.
As relações entre medo e experiência urbana guiam o terceiro capítulo,
Histórias do medo, que se concentra em Historia del miedo, Una semana solos e El
hombre de al lado, nos quais se destacam o medo como fator fundamental para
engendrar pautas de segregação social e espacial e o outro como ser temido por
excelência. Paira uma atmosfera de fobópole nesses filmes – termo criado pelo geógrafo
Marcelo Lopes de Souza (2008) que condensa o que o pesquisador tenta qualificar
como cidades nas quais o medo e a percepção crescente do risco (do ângulo da
segurança pública) assumem posição cada vez mais proeminente, relacionando-se
complexamente com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou repressor
levados a cabo pelo Estado ou pela sociedade civil.
Segundo Yi-fu Tuan (2005) e Zigmund Bauman (2008), o medo está
totalmente ligado à incerteza, à incompletude, à instabilidade, à estranheza, ao
desequilíbrio, à imprevisibilidade e à sensação de fragilidade diante de tudo isso. Os
filmes de Naishtat, Murga, Duprat e Cohn estão embebidos desses elementos de
diversas formas, e a ressignificação constante – que mantém a incerteza, a instabilidade,
etc. – é matéria corrente nos três.
O estudo de Historia del miedo se inspira em reflexões sobre algumas
produções brasileiras recentes como Trabalhar cansa (Juliana Rojas e Marco Dutra,
2011) e O som ao redor (Kléber Mendonça Filho, 2012) que retratam o cotidiano, mas se
afastam do realismo tradicional para abraçar de maneira sutil aos códigos do horror.
Artigos como os de Mariana Souto (2012), de Cristiane da Silveira Lima e Milene
Migliano (2013) e de Kim Wilheim Dória (2014) sobre essas obras voltaram minha
atenção para a presença do gênero nas diversas representações do medo e suas
38
39
40
(ou villa, como é chamada na Argentina) – entre elas, a violência como um elemento
constitutivo da cotidianidade. Esse movimento se dá através da vivência de personagens
alheios a tal mundo e que elegem ser parte dele, mergulhando em uma trajetória de
aprendizagem que, como tudo no filme, tem a dupla cara de destruição e de construção.
No capítulo 5, Em transe-to, a fuga é o mote que estrutura Castro e El
asaltante, os quais também se irmanam pela apreensão sensorial que fazem dos espaços
que percorrem. Movimento recorrente dentre os acionados pelos personagens do corpus,
a fuga é, nestes filmes, o recurso através do qual os protagonistas desdobram atitudes
críticas – às vezes radicais e explosivas, às vezes silenciosas – diante de noções fixadas,
sugerindo certo ceticismo em relação à “estabilidade” e à “ordem” que eles
(des)encontram na normalidade. A questão da fuga conforme sugerida por Dipaola
continua a pulsar no cinema argentino.
Castro foi bem descrito pelo crítico português Jorge Mourinha como “uma
tragédia existencialista a fingir que é uma comédia dobrada de atualização pós-moderna
do velho burlesco dos tempos de mudo reencarnado em arte performativa” (2010). Pois
a apreciação do filme de Moguillansky tentará articular todos esses dados com o
itinerário hipercinético do personagem-título e de seus perseguidores que transformam a
cidade em um fluxo incessante.
A cidade também é um fluxo – ou, mais bem, um flou – em El asaltante,
como o homem que se funde a ela. A indeterminação que rege o filme se replica em seu
estudo, que deambula por diversos caminhos e conceitos, tentando compreender essa
confusão entre corpo e espaço, entre perseguir e ser perseguido, hostilizar e ser
hostilizado.
As aproximações propostas são, cada uma a seu modo, formas oblíquas de
se debruçar sobre essa relação entre a cidade e o cinema argentino contemporâneo.
Assim, busco mobilizar este corpus como uma forma singular de panorama no qual
transitam diversas questões, identificando recorrências e particularidades nos modos de
filmar, escutar, experimentar e conceber a cidade. Apesar de soar como uma tarefa
cartográfica, com a tentativa de assinalar tendências, rumos e linhagens, a investigação
pretende se encaminhar mais como uma série de reflexões sobre a singularidade de cada
filme e de intervenções que estimulem um diálogo entre eles, prescindindo da aspiração
de construir um mapa estático ou de pensar as produções como exemplares
41
representantes de uma totalidade cerrada. Nesse sentido, nos identificamos mais com
uma noção de mapeamento proposta por Giuliana Bruno:
42
43
acompanhar tanto os atores quanto os meios de transporte dos quais eles se utilizam,
além das pistas (não importa se verdadeiras ou falsas) que vão sendo deixadas. O relato
articula panorâmicas, travellings e planos-sequência para seguir todos os deslocamentos
que possuem um grande desenvolvimento formal e forte conexão com a dança
contemporânea – reflexo da colaboração entre Moguillansky e o grupo de dança-teatro
experimental Krapp, do qual são membros Edgardo Castro (quem incorpora a Castro) e
Luciana Acuña (que aparece nos créditos do filme como diretora coreográfica).23
Aguilar localiza Castro entre aquelas obras que caracterizou como
composições coreográficas: imagens que se centram nas relações entre os corpos, o
espaço e os planos. “As coreografias são uma mise en scène do corpo, uma exibição da
teatralidade da vida e do poder do cinema para entregar performances mais poderosas”
(2010, p. 248).24 O pesquisador qualifica Moguillansky como o mais coreográfico dos
cineastas argentinos porque ele não representa a dança em si mesma, mas a dilui na vida
cotidiana, e chama a atenção para seu trabalho como montador em quase uma vintena
de longas nos últimos dez anos,25 o que o dotou de um sentido único da rítmica da
imagem (AGUILAR, 2014).
44
45
1973) os deslocamentos não são nada fluidos e se caracterizam pela falta de estabilidade
de uma câmera na mão que não descola do protagonista, repercutindo sua agitação.
No início, os créditos piscam na tela sobre um fundo preto. Em off, há uma
profusão de sons que vão se fundindo e nos confundindo: provavelmente um carro que
arranca; um rock que parece sair de caixas de som ruins, abafadas; o silêncio. Não é
possível imaginar qual é esse ambiente e, só após um jump cut que revela a imagem,
observamos, em plongée, um homem de meia-idade, elegante, sozinho, que bebe um
suco de caixinha e caminha lentamente, indo e vindo, em uma esquina. Não há nenhum
carro, e o farfalhar da árvore que quase tapa nossa visão se junta ao canto de
passarinhos que toma a rua deserta.
Mais um corte, mais créditos sobre tela negra: novamente, alguns sons são
fundidos, outros são interrompidos e substituídos por ruídos completamente diferentes.
Já não podemos identificar se é o carro ou a música anteriores e, conforme os créditos
avançam, há “cortes secos sonoros” que revezam esse ruído grave que nos é estranho
com o silêncio, passarinhos, ou com outros carros menos barulhentos e vozes. As vozes
aumentam de volume até o fim dos créditos, quando nos encontramos de novo com o
homem de terno. Desta vez, a câmera está bem próxima dele, na altura da nuca, e todo o
fundo é desfocado – depois, ela se move na linha de seus ombros para ver o mesmo que
o personagem.
Nessas duas primeiras aparições, avistamos o homem de costas ou de perfil,
sem poder contemplá-lo de maneira privilegiada. Primeiro, ele parece ser espiado, sendo
o foco do ponto de vista. Em seguida, ele parece espiar, sendo o dono do ponto de vista.
Ademais, não reconhecemos os sons que o circundam devido aos variados cortes e
fusões – não identificamos alguns ruídos; outros são interrompidos de maneira brusca.
Essa indeterminação do começo se instalará em todo o filme: o que pode ser a matrícula
em uma escola acaba sendo um roubo, quem persegue torna-se perseguido, uma arma é
um brinquedo, a frieza cede ao descontrole, uma fuga converte-se em um resgate, o que
pode ser um pai de aluno é na verdade um assaltante e também um professor, Alejandro
Williams é Carlos Schultz que é Ramos. Os sentidos não deixam de se movimentar.
Não existe apenas a irresolução visual, sonora e narrativa, mas também a
espacial, que desorienta e gera suspense. Apesar dos inúmeros planos-sequência, a
continuidade do espaço é frequentemente truncada, seja pelos enquadramentos
46
instáveis, seja pelas elipses, seja pelos falsos raccords. O espaço termina sempre
entrevisto, em fragmentos. Igualmente, há apenas fragmentos do corpo do homem.
Enquanto os pedaços desse corpo inquieto promovem uma fixação ansiosa
do olhar (já que os gestos não possuem progressão dramática, mas algo de brusco e
imprevisível) e ocupam, literal e permanentemente, o centro do quadro, os pedaços de
espaço urbano os rodeiam. O deslocamento gera imagens desfocadas que diluem o
corpo e o aglutinam à cidade, e também diluem a cidade e a aglutinam ao corpo,
fazendo desses fragmentos uma totalidade – ainda que seja uma totalidade borrada,
imprecisa, mas que firma a relação simbiótica entre ambos.
O corpo absorvido pela cidade (e vice-versa) através do movimento abre
lugar para uma relação mais sensorial e intuitiva com o filme – aposta também presente
em Castro, ainda que de maneira diversa, já que o longa de Moguillansky propõe uma
apreensão mais sensorial de sua proposta, ao se deixar invadir pelo que Cristian Borges
denomina apelo coreográfico, ou seja, quando a narrativa (ou um momento de suspensão
da mesma) “se vê tomada por uma movimentação de corpos muito próxima da dança
contemporânea e que sugere laços estreitos, por um lado, com o gênero musical e, por
outro, com as ‘atrações’ dos primórdios do cinema” (BORGES, 2014, p. 47).
A presença do gênero musical no filme se dá, especialmente, com a explícita
referência a Os guarda-chuvas do amor, de Jacques Demy (Les parapluies de
Cherbourg, 1964), musical atípico sem dança em que apenas se canta – porém, não se
dialogam canções como no clássico modelo hollywoodiano, mas se cantam os diálogos.
Apesar do constante colorido que exala o amor jovial entre Geneviève e Guy (obrigado
a partir para a guerra da Argélia, deixa a garota grávida que acaba se casando por
pressão da mãe com um rico comerciante), a inevitável separação do casalzinho e as
vicissitudes da existência fazem com que Les parapluies... seja tão melancólico como
Castro, e tão cinza quanto a cena que este lhe dedica: em um bairro comercial
usualmente lotado de gente e de bugigangas, as ruas aparecem sem vida, abandonadas e
degradadas.
O musical subversivo do cineasta francês traz seres à deriva, em processo de
ruptura com o mundo, como uma típica obra da nouvelle vague – que ecoa em Castro
não somente através do filme de Demy. A fuga e um destino semelhante ligam Castro
ao protagonista de O demônio das onze horas (Pierrot le fou, Jean-Luc Godard, 1965), e
47
Com o advento do sonoro, entre o final dos anos 1920 e o início dos
1930, muito rapidamente intensifica-se algo que já começava a
despontar, ainda que timidamente, no cinema silencioso: os corpos
vão gradualmente perdendo sua mobilidade em nome da proeminência
das palavras. Muito pouco daquilo que se via na movimentação
delirante e às vezes difusa dos filmes de Méliès, das comédias
burlescas de Mack Sennet, Charles Chaplin ou Buster Keaton e de
obras das vanguardas europeias, como as de Vertov, Eisenstein,
Epstein, Dulac e Buñuel, permanece nesse cinema em que falar,
muitas vezes compulsivamente, torna-se a tônica (...). Isso não
significa, obviamente, que os personagens do cinema silencioso não
falavam ou que aqueles do sonoro não se moviam; apenas que a
ênfase dada a cada uma dessas ações – falar ou mover-se – é
deslocada de um período a outro (BORGES, 2014, p. 47-48).
48
49
50
A língua inglesa faz uma transição oral sem emendas entre sight
(visão) e site (lugar). O site-seeing também é uma passagem. O
movimento do ótico para o háptico propõe uma crítica à pesquisa
acadêmica focada no olhar fílmico, que não levou em conta a emoção
do espaço que se dá a ver. Muitos aspectos da imagem em movimento
– por exemplo, os atos de habitar e atravessar espaços – não foram
explicados pelo arcabouço teórico lacaniano, que não estava
interessado em explorar o afeto da espacialidade, mesmo em termos
psicanalíticos. Preso em um olhar lacaniano, cujo impacto espacial
mantinha-se inexplorado, o espectador do cinema foi transformado em
um voyeur. Por contraste, quando falamos de site-seeing sugerimos
que, devido à mobilização espaço-corporal do cinema, o espectador é
na realidade um voyageur, um passageiro que atravessa um terreno
háptico e emotivo (BRUNO, 2007, p. 15-16).
A partir disso, Bruno vai considerar que assistir a um filme seria uma forma
imaginária de flânerie. Nos casos de Castro e El asaltante, o olhar descompromissado e
51
52
33
A utilização das aspas será justificada no capítulo 4.
53
, o deslocamento do táxi de Arturo é suave, e o mesmo parece flutuar. Isso não impede
uma sensação de vertigem e desconforto (especialmente nas curvas), inserindo um
caráter de instabilidade no único lugar e na única pessoa que parecem guardar algum
indício de estabilidade.
Se o carro é o lugar de Arturo por excelência, a rua é o lugar de Leandro. A
sequência inicial já estabelece sua intimidade com esse território, apresentando o
personagem em um terraço, a partir do qual é possível avistar privilegiadamente a
cidade até seus edifícios mais longínquos (apesar da combinação entre sol e névoa
típicos do começo da manhã), assim como escutá-la. Os ruídos de construção e de
trânsito vão se mesclando a um hipnótico som agudo que caracterizará o adolescente,
atuando como antecipação às suas aparições e exteriorizando sua percepção
permanentemente alterada pelos comprimidos de ecstasy.
Enquanto seus pais, especialmente Irene, insistem em manter hábitos da
“tradicional família de bem” (bem economicamente, para ser específica – comportamento
entrevisto não apenas nos diálogos mas na maneira de se vestir e de caminhar do casal),
Leandro se esforça para transgredir esse tipo de atitude o tempo todo através de sua
vestimenta, de sua aparência descuidada, de seu trabalho ilegal vinculado à venda de
drogas, de seus atos infratores (como fumar no ônibus) e do vagabundeio que faz do
espaço público seu lugar de pertencimento mais que o espaço privado.
Ligado a esse desenraizamento, o movimento também se constituirá como
um dos atributos mais marcantes de Leandro e está presente desde sua apresentação: ele
faz sexo, anda pela rua, pega um ônibus. E continua: verifica seu “local de trabalho”,
deambula, passa por sua casa, vê amigos, boludea, segue uma garota (Vanesa), flerta
com ela, ajuda-a a distribuir panfletos, atravessa avenidas movimentadas, galerias,
comércios, parques e corre loucamente após um roubo. Romina, como uma sombra,
tenta acompanhá-lo.
Vanesa, igualmente, tem o movimento entre seus atributos, mas não se
move por si só e vai sendo arrastada, sem resistência, pela vida: seguindo as indicações
de Sandra, ora cuida da arruinada loja de conserto de celulares, ora sai para divulgá-la;
compartilha sua cotidianidade (anda de ônibus, trabalha) com Luis, homem maduro que
está negociando a virgindade da teen com sua chefe/“protetora”, o que ela sabe e aceita
porque acredita que deve ajudar à mulher e ao bebê; passa a tarde pra lá e pra cá a
54
55
(retorna exausta, parece passar mal) é para abastecer esse seu último recanto, esse
espaço que a permite viver ficcionalmente em outro tempo, mais glorioso.
De acordo com Julieta Lorea e Constanza Tagliaferri (2013), Irene é uma figura
alerta e controladora que a todo o tempo surpreende e increpa os membros de sua família:
enfrenta Leandro ao pensar que ele estava roubando seus remédios, retém o marido no hall
para saber onde está o táxi, impede-o de pegar as economias para enviá-las a Ramiro (filho
pródigo que quer voltar pra casa). A circulação de sua presença ameaçadora, que desponta
agressiva detrás das portas, faz da casa um campo minado que ninguém quer enfrentar,
contribuindo para a destruição dos laços familiares já em frangalhos.
De certa forma, a desagregação da residência familiar (e de seu entorno) a
partir de um olhar movente e vigilante também se dá em El hombre de al lado.35 O
sofisticado arquiteto Leonardo Kachanovsky vive com sua esposa Ana, a filha
adolescente Lola e a empregada paraguaia Elba36 na também sofisticada Casa Curutchet,
única obra de Le Corbusier na América Latina.37 “A marretadas”, ele é obrigado a
interagir com seu vizinho Víctor Chubelo através da janela – uma fronteira que os une e
os separa, de acordo com a acepção de fronteira proposta por Andréa França:
35
El hombre de al lado é o quarto longa-metragem da dupla Cohn (Villa Ballester, 1975) e Duprat (Bahía
Blanca, 1969), antecedido por Enciclopedia (2000), Yo presidente (2006) e El artista (2008); sucedido por
Querida, voy a comprar cigarrillos y vuelvo (2011), Living stars (2014) e El ciudadano ilustre (2016). A
parceria entre ambos começou no início da década de 1990, durante a qual produziram mais de uma vintena
de obras de videoarte que circularam por diversos museus do mundo todo. Trabalharam também na televisão
e, em 2002, idealizaram o canal de TV da Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Ciudad Abierta.
36
Nos filmes do corpus que contam com empregadas, estas provêm de cidades diferentes das que habitam
então: em Una semana solos, Esther é de Paraná, na província de Entre Ríos (a cerca de 500 quilômetros da
Capital Federal), o que ela mesma afirma. Em Historia del miedo e El hombre de al lado, adivinhamos que
Teresa e Elba possuem origens distintas às dos outros personagens devido a seus sotaques.
37
A Casa Curutchet foi projetada por Le Corbusier em 1948 e edificada entre 1949 e 1953 em La Plata
(cerca de 60 km ao sul de Buenos Aires). Encomendada ao arquiteto pelo médico Pedro Curutchet, a
construção da casa teve muitos problemas e custou dez vezes mais que o planejado. Curutchet viveu aí com
sua família por 12 anos, na década de 1960. Depois, o local esteve desocupado e esquecido, até que em 1988
uma fundação médica o alugou e, mais recentemente, o Colégio de Arquitetos da Província de Buenos Aires
o utiliza como sede. Atualmente, há um projeto para expropriá-la e transformá-la em patrimônio público. É
importante lembrar que La Plata foi uma das primeiras cidades do mundo (fundada em 1882) construída a
partir de um plano urbanístico prévio, seguindo uma concepção racionalista dos centros urbanos em voga
em fins do século XIX.
56
Víctor quer abrir uma janela para receber uns raios de sol, mas sua vista dá
diretamente para a sala de Leonardo, o que dispara o conflito – no espaço íntimo dos
Kachanovsky se instala um olhar invasivo que provoca medo, conforme a percepção do
arquiteto que compartilhamos. Buscando resolver a desavença, os homens se encontram
para conversar, ora através da janela em construção, ora através de outras fronteiras
como o portão ou outra janela da Curutchet, ora fazendo Elba de passa-recado: em
poucas ocasiões estão frente a frente sem algo que os “emoldure”, que contorne os
limites de cada um (REIS, 2012). As diferenças entre ambos e os terrenos que habitam
são constantemente marcados.
Porém, na tentativa de expulsar essa “presença” assustadora que altera a
rotina da família, Leonardo vai cruzando algumas dessas linhas – passando de vítima a
algoz desajeitado. Primeiro, em busca do ruído que toma a casa, ou mergulhado em
angústia, ele perambula pela residência, transformando-a em um labirinto que dificulta a
mobilidade dos outros membros em seus interiores confusos, promovendo desencontros.
A inquietação e o enervamento do arquiteto, sua obsessão por segurança, são muito
mais perturbadores para a vivência na casa que a interferência inesperada e chocante de
Víctor. Posteriormente, reproduzindo e devolvendo, de maneira muito mais incisiva, o
olhar lançado pelo homem ao lado.
Se os limites entre os personagens vão ficando cada vez mais difusos, os
limites espaciais vão sendo endurecidos a partir da atitude de Leonardo – não só
internamente. A Curutchet poderia ser considerada, como denominou Beatriz Colomina
(1998, p. 127), uma “casa exibicionista”. A autora apregoa que o que distingue a
arquitetura do século XX é o papel central ocupado pela casa: por um lado, porque a
casa foi o mais importante veículo de investigação para novas ideias na área; por outro,
pela maneira como essas novas ideias são desenvolvidas em outros “espaços” como
fotografias, publicações, exibições, congressos, feiras, revistas, jornais, museus, galerias
de arte, competições, publicidades e computadores – fazendo com que a casa se torne
uma nova forma de espaço público.
57
58
assim como bairro fechado ou privado, enclave fortificado, gated community, entre
outras. Sob esses nomes se agrupa uma grande diversidade de conjuntos habitacionais:
são heterogêneos quanto a sua fisionomia e tamanho, aos grupos socioeconômicos que
os habitam, às formas de organização, aos estilos arquitetônicos e aos serviços
incorporados. Contudo, têm em comum o fato de privatizar o espaço público e, em
termos gerais, possuem uma gestão interna que não compartilham com o resto dos
cidadãos. Com relação aos bairros fechados existentes há décadas (a partir de 1930), foi
modificada a concepção de residência secundária de luxo para determinadas temporadas
(fins de semana, férias) para a de moradia permanente devido, por um lado, à busca de
uma vida mais saudável e próxima do “verde” e, por outro, devido à segurança – além
de se constituir como ícone de um novo modo de vida exitoso (KRALICH, 2009), como
irei explanar agora.
Durante a maior parte do século XX, a sociedade argentina se distinguiu da
de outros países periféricos por suas amplas camadas médias e sua estrutura social
relativamente mais igualitária. Como explica Maristella Svampa, o desenvolvimento
histórico das classes médias nas grandes cidades da Argentina constituía uma
excepcionalidade para a América Latina, continente caracterizado, desde sua origem,
pela profunda fratura social e marcadas hierarquias que tiveram como correlato uma
distância insuperável entre as distintas classes sociais. Tal processo é mais tardio na
Argentina porque “diferentemente de outros países latino-americanos, onde a
heterogeneidade aparece alimentada por uma distância étnica e cultural, a Argentina se
caracterizou por uma tendência à homogeneidade social e pelo desenvolvimento de uma
cultura mais igualitária” (SVAMPA, 2008, p. 14). Tal tendência começa a se fissurar
com o último golpe de Estado, em 1976, que rompe com esse modelo e instaura práticas
que acentuam as diferenças sociais, e se intensifica nos anos 1990 com a entrada ao
neoliberalismo.38
38
A partir de 1976, a Argentina experimentou uma significativa transformação vinculada ao abandono do
modelo substitutivo de importações e à adoção de um novo modelo baseado na abertura e desregulação
econômica. As mudanças radicais na economia foram promovidas e acompanhadas por uma série de
transformações institucionais, entre as quais se destaca a modificação do papel do Estado. A liberalização
dos mercados, incluindo o mercado de trabalho, foi um pilar central das políticas implementadas,
especialmente no começo dos anos 1990. Ainda que numerosos países latino-americanos tenham adotado
políticas de corte neoliberal nessa década, a Argentina constituiu, talvez, um caso paradigmático tanto pela
radicalidade na aplicação de ditas políticas como na celeridade do processo (CERRUTTI e GRIMSON,
2008).
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39
Os condomínios fechados ligam-se à cidade por meio de vias rápidas, sendo que a expansão de ambos
coincide justamente para facilitar o deslocamento desses moradores através do carro. A incrementação do
transporte público nessas vias não acompanha tal desenvolvimento, deixando claro o privilégio do transporte
individual e dificultando a movimentação das pessoas de menor poder aquisitivo que vivem nos subúrbios e
não possuem carro.
40
Apesar de se dedicar a São Paulo, várias considerações de Caldeira podem ser aplicadas a Buenos Aires e
a muitas outras grandes cidades contemporâneas, especialmente latino-americanas.
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44
Aqui, é interessante lembrar uma entrevista posterior com Murga, realizada por Paulina Bettendorff e
Agustina Pérez Rial em 2013. À pergunta “Como você chega às histórias de seus filmes?”, a cineasta
responde: “Me interessa contar pequenos mundos, geralmente fechados, porque a escola, o country, a cidade
de Paraná, convenhamos, o são. (...) Há algo da relação entre o personagem e o meio ambiente que o
condiciona que sempre está posto em jogo de alguma maneira. Creio que há uma relação muito direta entre a
pessoa e o meio ambiente. Influenciam-se mutuamente o tempo todo. E isso está muito presente em meus
filmes. Em geral, me custa fazer primeiros planos muito fechados, porque há algo do entorno que, para mim,
está sempre atuando” (Murga em entrevista a BETTENDORFF e PÉREZ RIAL, 2014).
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45
Antes, Murga atuou como assistente de direção e realizou alguns curtas-metragens. Após o lançamento de
Una semana solos, foi convidada para participar do programa The Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative,
no qual passou um ano trabalhando junto a seu tutor Martin Scorsese, quem produziu sua ficção seguinte La
tercera orilla (2014). Entre um filme e outro, dirigiu o documentário Escuela normal (2012).
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46
Em entrevista a Mercedes Halfon (2009), Murga conta que, “nos castings, uma das perguntas que
fazíamos para ganhar intimidade [com as crianças] era do quê elas gostavam de brincar. A maioria dizia
futebol, tênis, algum esporte organizado. Chamou-nos muito a atenção que não aparecesse a ideia de jogo
livre, caótico ou inventado”.
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Naishtat dirigiu diversos curtas a partir de 2007 e estreou em 2015 seu segundo longa de ficção, El
movimiento, espécie de western gauchesco experimental em que retrata um período especialmente violento
do processo de construção da Argentina – especificamente a década de 1830 – que costuma ser chamado de
“época de desorganização nacional”.
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são minimalistas, compostos por linhas retas, duras e por cores neutras, compondo com a
quietude um ambiente frio e desconfortável, que mais parece um espaço morto que um
lugar habitado.
A casa do subúrbio – onde moram Pola (jardineiro do country) e sua mãe
Teresa (empregada doméstica de Edith) –, por outro lado, é composta por uma
acumulação de objetos e por cores quentes, cercada por ruídos constantes que indicam
uma grande movimentação ao seu redor. Entretanto, essa vida que borbulha não faz a
residência mais aconchegante, mas sufocante.
É fundamental apontar como se dão (ou não) os deslocamentos dos
personagens entre esses espaços: os habitantes do country nunca saem dali, como se este
fosse um lugar pleno no qual nada nem ninguém fazem falta. Mesmo em seu interior os
trânsitos são raros, e em suas esmeradas e convidativas ruazinhas podem ser vistos
apenas o jardineiro, o segurança (cujo automóvel para fazer a ronda é seu companheiro
inseparável) e algumas crianças brincando no bosque que é parte do barrio.49 Quando
Camilo e a mãe empreendem uma viagem até o condomínio em seu carro
hermeticamente fechado (já que mal se escuta o trânsito ou o próprio ruído do motor),
deparam-se com um homem nu no meio da estrada, o qual desafia a passagem do
automóvel e cujo físico e atitude nos faz lembrar um zumbi.
Pola e sua namorada, Tati, são os únicos que se aventuram nas ruas, em
moto, provando um corpo a corpo com a cidade. Nessas ocasiões, ela é sempre guiada
por ele, que também circula sozinho tanto no veículo quanto explorando lugares a pé,
como o hospital em que Teresa é atendida. Movimentar-se no espaço público é se
misturar, encontrar, dividir, e Pola é o único personagem que prova dessa vivência.
Entretanto, não parece haver prazer nessa experiência, e os lugares nos quais
o jardineiro se move relembram sempre cenários de horror. Enquanto no country ou no
apartamento é sempre dia, quando estamos no subúrbio é sempre noite. Pola deve
atravessar um estreito corredor para sair de casa (o qual desemboca em um beco que,
apesar de pleno de adultos e crianças brincando, está envolto em sons que parecem tiros),
as ruas do bairro são desertas, a quitinete de sua amante é tão sufocante quanto sua
própria residência, o rio ao qual leva a companheira mais parece um pântano, o hospital
49
A proximidade da natureza é uma das benesses dos condomínios fechados mais exaltadas por suas
publicidades. Porém, o arvoredo do country de Bem perto de Buenos Aires está mais para perturbador do
que agradável, sendo mais uma das figuras do medo que despontam no filme.
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Ver o estudo de Andermann (2015) sobre a paisagem nesses três filmes do diretor.
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movie, noir, policial, crime drama, thriller e suas variantes,53 mesclando-os com um
particular “realismo” social – como o diretor trata de esclarecer desde seus primeiros
longas: “O que me interessa da realidade não é copiá-la, nem ser muito fiel a ela. (…) O
que me atrai da realidade é a possibilidade que apresenta de descobrir algo que não se
conhece, mundos que são alheios. Só nesse sentido poderia qualificar o que faço de
realismo” (Trapero em entrevista a BERNADES, 2002). Montes faz uma consideração
pertinente sobre a questão:
53
Como estipula Aguilar (2006) ao colocar El bonaerense entre o crook story e o procedural (descendentes
do noir e do policial, respectivamente).
54
O site da exposição A cidade informal no século XXI descreve alguns aspectos que poderiam agrupar os
lugares denominados favela, que não são unívocos: núcleos habitacionais deficientes, com moradias
autoconstruídas, formadas a partir da ocupação de terrenos públicos ou particulares, estão associados a
problemas da posse da terra, a elevados níveis de precariedade ou à ausência de infraestrutura urbana e
serviços públicos e população de baixa renda. Espaço de contradições e assimetrias, na favela convivem
de forma conflituosa o arcaico e o moderno, tradições orais ao lado de tecnologias digitais, o mundo
urbano com problemas de infraestrutura pré-urbana, uma educação precária e, ao mesmo tempo, uma
produção cultural que vem ganhando cada vez mais espaço na mídia. A complexidade do espaço suscita
imagens que ora convergem para uma percepção romantizada, ora demoníaca. A cidade informal no
século XXI foi uma exposição realizada pela Prefeitura de São Paulo em 2007, com itinerância por
diversas cidades até 2011. http://cidadeinformal.prefeitura.sp.gov.br/.
73
55
Apesar de reconhecíveis para moradores e visitantes de Buenos Aires, grandes avenidas arborizadas não
são emblemáticas só dessa cidade, mas também de outras capitais da América Latina que, no começo do
século XX, se “reconstruíram” seguindo o modelo criado por Haussmann em Paris na segunda metade do
século XIX.
56
Richard Sennett, em seu livro publicado em 1974 O declínio do homem público, traça algumas linhas de
diálogo com Morte e vida de grandes cidades, lançado em 1961 por Jacobs. Ele também trata do espaço
público morto, lugar de passagem e não de permanência, ideia que deriva das relações entre espaço e
movimento produzidas pelo automóvel particular. O carro não é utilizado para ver a cidade, para turismo,
mas para permitir a liberdade de movimentação, de viajar sem ser interrompido por paradas. Assim, as ruas
adquirem uma função peculiar: servem apenas para ir de um lugar a outro, e o espaço público perde seu
sentido. Esse entendimento irá se desdobrar na questão do isolamento que, como iremos notar, é uma
constante nos filmes do corpus: “(...) empregamos o termo ‘isolamento’ em dois sentidos: em primeiro
lugar, significa que os habitantes ou os trabalhadores de uma estrutura urbana de alta densidade são inibidos
ao sentirem qualquer relacionamento com o meio no qual está colocada essa estrutura. Em segundo lugar,
significa que, assim como alguém pode se isolar em um automóvel particular para ter liberdade de
movimento, também deixa de acreditar que o que o circunda tenha qualquer significado além de ser um
meio para chegar à finalidade da própria locomoção. Existe ainda um terceiro sentido, um sentido um tanto
mais brutal de isolamento social em locais públicos, um isolamento produzido diretamente pela nossa
visibilidade para os outros” (SENNETT, 1993, p. 29).
57
Em algumas críticas, ela é apresentada como Villa Virgen, uma favela fictícia – porém, em nenhum
momento do filme podemos ouvir o nome Villa Virgen, e é possível que essa denominação venha de algum
press release equivocado.
58
O verdadeiro nome desse bairro é Villa 15, mas ele é mais conhecido como Ciudad Oculta devido à
construção de um muro ao seu redor, durante a Copa de 1978 na Argentina, o qual pretendia esconder o
local da vista dos visitantes estrangeiros.
59
Como esclarece Vezzetti (2014), não é a maior favela da Buenos Aires, mas a mais emblemática por sua
localização, em Retiro, uma zona cêntrica próxima da Recoleta, um dos bairros mais ricos da cidade.
74
filme é dedicado realizou seu trabalho –, faz com que tal favela se apresente como a
combinação de várias,60 demarcando sua ficcionalidade.
Há um procedimento recorrente no filme que é antecipação da voz de Julián,
que de over passa a ser in na sequência seguinte – como quando, por exemplo, vemos
algumas cenas da favela enquanto ouvimos o padre e, momentos depois, a imagem do
mesmo celebrando uma missa. Esse recurso promove fluidez narrativa, pois encadeia os
planos automaticamente, impedindo pausas. Neste caso, vemos a “ressonância” da voz
de Julián na favela como seu poder para abençoar aqueles que ali vivem. Essa voz que
ora e que pode ser “ouvida” pela favela também se repetirá no momento em que Julián
reza o terço junto a Nicolás e a um padre local assistente, Lisandro, enquanto cai a noite
na villa. Assim, o som pauta o espaço: a voz de Julián marca sua presença como algo
que contamina o lugar – daí que esses espaços não sejam apenas espaços de uma favela,
mas da favela de Julián.
Nicolás é resgatado da Amazônia e chega à favela pelas mãos de Julián,
quem será seu guia – mas não por muito tempo. O padre belga, com dificuldades
devido a seus ferimentos, se apoia (literalmente) ao padre local em sua primeira
incursão ao novo hábitat, sob uma grandiosa música extradiegética que preludia o
caráter épico de suas trajetórias, como sob a noite e a forte chuva, que adiantam o
futuro sombrio e tempestuoso.
Ao amanhecer, o ponto de vista se desgruda dos protagonistas para oferecer
uma panorâmica da favela. Segundo Teresa Castro, “a visão panorâmica responde a um
desejo de abarcar e de circunscrever o espaço, permitindo ao olho do observador captar
o todo de uma imagem” (2009, p. 11). Localizada nas alturas e ao longe, a câmera se
move de uma porção de edifícios para um mar de casinhas, em uma visão que “abraça”
a imensidão do local para depois, ainda em uma posição elevada, ir captando cenas mais
pontuais: casas amontoadas e sem acabamento, roupas penduradas nos varais, uma
reunião de cartoneros (recolhedores de material reciclável), crianças em bicicletas ou
brincando, um homem fuçando no lixo, até chegar à dupla de padres que também
parecia observar essa cotidianidade matutina.
60
Além disso, há a fala do voluntário Cruz ao contar sobre a apreensão de drogas que foi feita na Villa 31.
Nessa conversa com Julián, nunca fica claro se a Villa 31 é outro local ou se é a comunidade onde eles
atuam.
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aspecto negativo desse traçado. Opondo-se a Julián, seu posicionamento afirma que a
villa é, sim, um lugar à parte, mas no sentido de que não pode ser dimensionado pela
cidade “tradicional” – sendo esse desenho o que o caracteriza frente à urbe cartesiana.
As diferenças entre esses dois personagens aparecem desde suas
apresentações. O filme começa com o plano fixo sobre um ambiente todo branco, com a
assepsia e a alta tecnologia de um hospital – o reverso do Elefante branco, projetado
para ser um. Julián entra em quadro lentamente, deitado em um equipamento, e somente
o espectador é cúmplice dessa cena secreta que avisa, silenciosamente, um problema de
saúde. A assepsia se grudará à personalidade de Julián: sempre bem vestido, limpo,
alinhado. Abnegado e moralmente sem reprovações, sua aparência é “esterilizada”, até
fria – talvez um atributo aprendido e apreendido que o ajuda a “viver para eles” ao invés
de “morrer por eles”, conforme o dito do padre Mugica repetido por Julián. Por outro
lado, seu rosto denuncia o ocaso de suas forças, e ele se soma à galeria dos últimos
personagens encarnados por Ricardo Darín que tem o esgotamento ante o mundo colado
na cara – o taxidermista de El aura (Fabián Bielinsky, 2005), o oficial de justiça de O
segredo dos seus olhos (El secreto de sus ojos, Juan José Campanella, 2009), o
advogado-urubu de Carancho.
Do ambiente exageradamente iluminado, de paredes e objetos inteiramente
brancos e planos fixos, passa-se para um ambiente totalmente diferente: um local escuro
que não conseguimos distinguir, uma câmera na mão muito tremida, que hesita a cada
avance, sempre voltando a se esconder na escuridão. Escutamos a respiração ofegante
de um homem, todo enlameado, que entra em quadro e recua, replicando o
comportamento da câmera, transmitindo sua tensão. Assim, impregnado de medo e de
sujeira, machucado e fragilizado, conhecemos a Nicolás que, nas sequências seguintes,
usa sandálias e um figurino relaxado.
Luciana desequilibra o que se ensaiava como uma polarização entre a razão
e a emoção, colocando-se, por vezes, ao lado de Julián, outras, ao lado de Nicolás, ou,
ainda, discordando de ambos. Se tanto o padre argentino quanto o belga realizam uma
atividade mais social que pastoral, o primeiro adota uma postura mais teórica e medida
e o segundo uma postura mais prática e impulsiva, enquanto a assistente social alterna
suas forças entre a burocracia e a revolta. Representante do poder público (que também
77
aparece na figura da polícia), Luciana compartilha com os padres a crise interna em que
se debatem em suas relações com a fé (religiosa no caso deles, militante no dela).
Assim, em Elefante branco, a favela é vivenciada por aqueles que estão no
entre – que se exilaram parcialmente de sua origem, mas não pertencem totalmente ao
que escolheram como destino (especialmente os que se deram ao luxo de ser pobres,
como comenta Luciana a respeito de Julián e Nicolás, provenientes de famílias
abastadas). Além dos planos-sequência que acompanham de perto esses personagens e
seus pontos de vista, o olhar exterior é constantemente evocado através do
comportamento da câmera que se coloca atrás de um objeto. Esse objeto geralmente está
desfocado, não atrapalhando o que realmente se quer mostrar, mas revelando uma
distância que se toma, já que a câmera se limita a espiar, pelos cantos, um pouco
escondida, o que transcorre. Isso acontece já no massacre da Amazônia, e é marcante na
sequência em que alguns adolescentes conversam sobre a favela em uma reunião junto a
Lisandro, Luciana e Nicolás (recebido com curiosidade e empatia): eles são rodeados e
vistos por vários ângulos, mas sempre há um corpo ou algo à frente. Dessa forma, a
câmera não se mostra onisciente no sentido de revelar uma transparência com relação ao
que espia, sendo que há um processo de deformação e de afastamento que indica a
consciência da limitação dessa imagem que se constrói.
Essa pequena reunião também é relevante pelo protagonismo dos
adolescentes moradores da favela, criando alguns desvios na predominante enunciação
dos outros – quem costumava ser de dentro nos outros filmes do corpus é, aqui, aquele
que vem de fora. Há uma rara referência a outras zonas da cidade por parte dos garotos
e garotas e se discutem questões sobre a saída ou a permanência na villa, sobre
pertencimento, sobre as complicadas relações familiares, os preconceitos existentes “do
lado de lá” e outros temas aparentados.61
61
Essa noção de “dentro”/“fora” e a sensação de confinamento que os moradores da villa verbalizam ecoam
algumas descrições feitas anteriormente sobre os condomínios fechados – ainda que os sentidos sejam
inversos. Lior Zylberman (2013) destaca a constante comparação dos condomínios fechados com a figura do
gueto tanto nos filmes que os tematizam como nos estudos que os abordam. Um exemplo notável é o
subtítulo do já citado Cara de queso: “mi primer gueto”. Neste longa, em que se retrata a transição da
infância à adolescência de amigos que passam temporadas em um country exclusivo para a comunidade
judaica, o avô do protagonista comenta como o lugar se assemelha aos guetos judeus sob o nazismo:
“Primeiro, nos colocaram em um gueto e não nos deixavam sair; agora todos querem entrar e não querem
sair”. Seguindo a Zygmund Bauman e a Loïc Wacquant, Zylberman comenta que tanto nos bairros privados
como nos guetos combina-se o confinamento espacial com o social, além da homogeneidade daqueles que
estão dentro em contraste com a heterogeneidade do exterior. Contudo, o autor ressalva que a comparação é
metafórica, voltando a Bauman: “Os guetos reais são lugares dos quais não se pode sair (...); o principal
78
Esteban, mais conhecido como Monito, jovem viciado em paco62 que o pai
tenta recuperar, é um personagem-chave para consumar esses “desvios” de perspectiva
que Elefante blanco propõe: sua intervenção, aparentemente secundária, influencia de
maneira decisiva na relação amorosa entre Nicolás e Luciana e propicia a invasão da
favela que resulta tanto na morte trágica de Julián como na sua própria. Ainda que o
padre receba grande homenagem enquanto ficamos a desconhecer o destino do rapaz
(sumamente ignorado) e ainda que exista uma grande distância entre as desgraças da
doença fatal e da dependência química que decepa uma vida que recém se inicia,
observamos como esses dois personagens são equiparados ao atravessar o filme
igualmente como condenados que lutam contra a morte e que sucumbem juntos e da
mesma maneira violenta.
A violência que cruza os caminhos de Julián e de Monito será uma
constante no filme – como analisarei no capítulo 4, não apenas a violência evidente dos
corpos e das condições de vida dos personagens, mas a violência invisível das
instituições e a violência difusa do projeto modernizador que se cobiça e que faz da
favela um resíduo incômodo da metrópole. A brutalidade que paira sobre os
personagens também promove uma intensa movimentação: seja para se defender, atacar
ou fugir.
propósito do gueto voluntário, ao contrário, é impedir a entrada de intrusos – os de dentro podem sair à
vontade. (...) Os guetos reais implicam na negação da liberdade. Os guetos voluntários pretendem servir à
causa da liberdade. (...) Os guetos voluntários compartilham com os verdadeiros uma espantosa capacidade
de permitir que seu isolamento se perpetue e exacerbe” (BAUMAN, 2003, p. 106). Assim, enquanto os
condomínios fechados seriam como “guetos voluntários”, as favelas estariam mais próximas do que se
considera um “gueto real”, constituindo-se como o polo oposto do country na fragmentação e reorganização
urbanas recentes. A partir dessa ideia, também é possível pensar na Curutchet de O homem ao lado como
uma “casa-gueto”.
62
Subproduto do crack, mais tóxico e mais barato.
79
3. Histórias do medo
1
Desde 2011, Roger Alan Koza pede a dezenas de críticos, pesquisadores, programadores e cineastas do
mundo todo que façam uma lista com seus cinco filmes preferidos do ano e a recomendação de um título
vernáculo. A lista de 2015, publicada em 27 de dezembro do mesmo ano, pode ser consultada no blog de
Koza, Con los ojos abiertos: http://ojosabiertos.otroscines.com/la-internacional-cinefila-2015-las-mejores-
peliculas-del-ano/.
2
Disponível no canal da produtora Ideas por Rosca no Vimeo: https://vimeo.com/122715152.
80
***
81
medos mais culturais, como é o medo do outro. Segundo o autor, a alteridade nos
assusta pela sua diferença, e não deixa de ser uma forma de medo do desconhecido.
Delumeau ainda pinça algumas questões sobre a cidade e o medo: embora,
para ele, seja uma banalidade dizer isso, hoje é, sobretudo, nas cidades (e,
especialmente, nas grandes cidades) que se tem medo. É preciso lembrar que essa
situação é contrária ao que prevaleceu durante muito tempo, já que o surgimento da
cidade está ligado à necessidade de aplacar o fenômeno do medo, como nos explica
Josepa Bru e Joan Vicente:
3
Como afirma Gabriel Kessler, o sentimento de insegurança não é um mero reflexo dos índices de delito:
“em geral aumenta quando se produz um incremento na criminalidade, mas uma vez instalado como
problema social, não necessariamente decresce, ainda que as taxas de delito diminuam” (2014, p. 55). No
mesmo sentido, Marcelo Lopes de Souza (2008) explica que a criminalidade violenta e a sensação de
insegurança não necessariamente mantêm entre si uma relação linear – entre outros fatores, devido a uma
mídia sensacionalista que trata de inchar e distorcer estatísticas.
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Historia del miedo estabelece o medo como seu cerne desde o título. Quando
observamos a denominação que o filme recebeu no Brasil (para lembrar, Bem perto de
Buenos Aires), ficam em evidência as conexões que serão estabelecidas entre a
experiência urbana e o medo. Em realidade, a cidade em si, enquanto espaço público,
aparece na produção de maneira fugidia, mais como um grande extracampo, mas são suas
dinâmicas e como estas se refletem no espaço privado que determinam o que ocorre na
narrativa.
Como apontado no segundo capítulo, a sequência de abertura logra
estabelecer, de saída, o espaço como um importante componente da mise en scène.
Também nestas cenas iniciais se institui uma atmosfera de ambiguidade que vai rondar
todo o filme: um estranhamento que vem não apenas do choque visual ao se constatar
como estão tão longe e tão perto aqueles que têm muito daqueles que têm pouco, mas
porque os ocupantes do helicóptero tentam dar uma notícia através de um alto-falante,
como ocorre, geralmente, em filmes apocalípticos nos quais já não se pode mais ter
contato com o que ficou em terra. Devido ao som da hélice, é difícil entender o que é
83
comunicado, sendo claras poucas palavras como “devem apresentar-se em sete dias”,
“ordem de despejo”, “perseguição e punição”. O ponto de vista do helicóptero se reveza
com as reações dos que estão no chão, que olham assustados e confusos para o alto, mas
não tomam nenhuma atitude. Não se termina de definir se tal situação é inusitada ou
ordinária, como ocorrerá em diversas outras ocasiões: o que é estranho parece corriqueiro,
e o que poderia ser corriqueiro é insólito, desenhando verdadeiros episódios de terror e
estabelecendo o medo.
O country, por exemplo, é apresentado como um lugar de tranquilidade,
bonança e beleza; mostrado sempre com a exuberante luz do dia – com exceção da
sequência final, na qual desembocarão todas as tensões acumuladas até então. Contudo,
essa (aparente) estabilidade sofre um curto-circuito logo nos primeiros planos: seja
através do ruidoso e enigmático helicóptero; seja pela explosão de raiva, e sem sentido,
do garoto com o pai. Os momentos disruptivos vão se encadeando e multiplicando: o
guarda que desaparece da guarita mergulhada na escuridão, a chuva de barro que cai
misteriosamente sobre o carro da segurança. Há, ainda, o lixo queimado que aparece
sem cessar vizinho ao condomínio, e os buracos que se multiplicam na cerca que limita
as moradias.
A preocupação com a cerca partida ultrapassa a necessidade de consertá-la
como uma atividade de manutenção, da mesma forma que o simples recolhimento do lixo.
Esses inconvenientes parecem sugerir algo mais do que uma depredação ou um efeito do
tempo – suspeita reforçada pela recorrência com que se dão: algo se quebra sem que se
possa contê-lo, e algo entranhado (e sujo) jorra pelas fissuras para a superfície. O fogo e
seu aspecto destruidor, difícil de ser contido, agravam a situação, assim como a fumaça
fétida que pode avançar sem obstáculos e adentrar em todo e qualquer lugar, independente
das barreiras que existam, intervindo com seu cheiro desagradável e perturbando a visão.
Carlos, por vezes, parece não compreender o que acontece e, por outras, parece receber
esse mistério como sinal de uma desgraça esperada. O desespero de Mariana a situa
exclusivamente no segundo caso, enquanto os empregados encaram os fatos com
naturalidade e como irremediáveis, seguindo resignadamente com suas atividades. O
formato da cerca como um alambrado, vazado, e o ato de remendá-la sem sucesso,
indefinidamente, alude ao fato de tapar o sol com a peneira e a inevitabilidade daquilo que
os rombos pressagiam.
84
Quando o alarme de uma casa dispara sem motivo, tem-se mais uma ocasião
de distúrbio nessa cadeia. Tudo começa com um jovem casal que (como se estivesse
perdido no meio de uma estrada isolada) acena por ajuda em uma rua do verdejante
country, enquanto se ouve o insistente ruído. A dupla é tranquilizada pelo guarda que,
ainda assim, é solicitado a averiguar a residência. Enquanto este conversa com o rapaz, o
espectador é levado a participar de uma troca de olhares entre a garota e Pola, quem
aguarda dentro do carro e esquiva a mirada. Este fugaz momento de incômodo parece
indicar uma cumplicidade entre os dois personagens sobre as causas (e futuras
consequências?) daquele evento. Da mesma maneira que Carlos, Mariana e os
empregados se comportam frente à cerca quebrada e ao lixo, Pola e a moça se comportam
frente ao alarme: como se soubessem que se concretiza uma maldição. A persistência do
barulho enfatiza a impotência das pessoas, sensação realçada pela câmera fixa em uma
mise en scène que dispõe os personagens imóveis.4
Esse clima não se restringe ao condomínio fechado e se estende aos outros
lugares da ação: há o elevador que sempre trava no meio do trajeto, a aparição de um
rapaz inicialmente gentil e seu acesso de fúria quando negam sua entrada em um prédio, a
explosão de diversas casas noticiada pela televisão (tragédia que os moradores atribuem a
um meteorito), o garoto que atua de forma estranha ao realizar movimentos de dança
contemporânea na fila de um fast food, o homem-zumbi que surge no meio da estrada ou
as bombinhas e bolas de futebol que ecoam como tiros.
Esses episódios transitam entre o inexplicável, o fantástico e o absolutamente
concreto, situando a narrativa num ambiente de instabilidade que provoca um insistente
medo. Também é fundamental, para a introdução dessa atmosfera assustadora e
desconfortável, a presença de ingredientes típicos de filmes de horror como são os zumbis
e as maldições, além de cenários citados anteriormente como pântanos e estacionamentos
desertos, que aparecem claramente ou diluídos em Historia del miedo.
Segundo Noël Carroll (1999), as obras que se pretendem de horror devem
conter dois componentes fundamentais: provocar na plateia o afeto que empresta nome
ao gênero e possuir monstros que podem ser tanto seres antinaturais, que não pertencem
4
Esse recurso do ruído que se estende no tempo, gerando um estado de angústia por patentear a impotência
dos personagens, é utilizado novamente na cena em que Teresa desmaia durante o trabalho e o aspirador de
pó segue funcionando, acompanhado pelo toque do telefone – ainda como no caso do alarme, com um
volume hiper-realista que aumenta o incômodo das situações.
85
à realidade física, quanto seres naturais que apresentam algum desvio físico ou
psicológico. Cumprindo com a incerteza que domina o filme, nunca fica nítido quem é o
monstro dessa provável história de horror – e até mesmo se ele realmente existe.5
Pola e Camilo são jovens que se cruzam, rapidamente e de um jeito pouco
claro, no que parece um casting ou a gravação de um documentário promovida pelo
segundo. Apesar da distância de seus cotidianos, eles terminam, cada um por seu lado,
configurando-se como possíveis monstros devido ao mal-estar que parece acometê-los
(ainda que de maneiras diversas) e que contamina àqueles às suas voltas. Desse modo se
constroem tanto como amedrontadores quanto como amedrontados, materializando de
forma rarefeita e ambígua essa emoção da qual o filme propõe contar a história.
Camilo é um elemento de distúrbio por estar sempre fazendo perguntas
desconfortáveis, através das quais escancara e produz estranhamento no que parece
naturalizado, como ao promover o jogo no qual insta os convivas de um jantar a dizer o
que gostariam de ser e de ter. Seus objetivos não são patentes, mas sua presença é
evidentemente perturbadora através, especialmente, de sua fala. Já Pola configura-se
como inquietante por meio de seu permanente silêncio. Ao não externar seu incômodo
verbalmente, como o faz Camilo, sua moléstia é visível no jeito como habita seu corpo,
tomado por um tipo de raiva contida que estala em pequenos gestos e em suas
expressões faciais – como a que ilustra o cartaz do filme, resultado da “cara de louco”
solicitada por Camilo no suposto casting.
Ecoa, nessa “cara de louco”, algo do monstro amedrontador e amedrontado
por excelência: Frankenstein – mais especificamente, o Frankenstein do filme
homônimo de James Whale, realizado em 1931. Como explica Luiz Nazário (1986),
essa versão cinematográfica moldou de forma definitiva para a cultura de massa a
imagem do personagem criado por Mary Shelley. Pola ainda tem em comum com a
caracterização de Boris Karloff as botas enormes (que usa quando está trabalhando), os
5
Carroll (1999) separa de forma muito clara o horror do fantástico. Recuperando a Tzvetan Todorov,
assevera que a vacilação ou hesitação entre explicações sobrenaturais e naturalistas é a marca do
fantástico: os acontecimentos da história devem permanecer ambíguos para o leitor/espectador em relação
a essas explicações rivais; propõem a hipótese sobrenatural, mas deixam em aberto a possibilidade de
uma saída naturalista – diferente do horror, em que a explicação, para Carroll, é sempre sobrenatural.
Entretanto, neste ponto discordo de Carroll e me aproximo mais da visão de horror levantada por Román
Gubern e Joan Prats Carós (1979), que consideram o horror film como um gênero cinematográfico
fantástico-terrorífico no qual são válidas ambas as possibilidades. Como tem sido dito desde o início
sobre Historia del miedo, é justamente o tráfego por inúmeros caminhos que despertam o horror no filme.
86
ombros caídos e uma palidez que deixa os olhos fundos e cansados, sem contar o queixo
anguloso e a testa achatada.
Jonathan da Rosa, que interpreta o jardineiro, não era cotado para assumir
este papel: havia participado da seleção para o garoto do fast food, que terminou
representado por seu colega da companhia de dança que faz parte do projeto KM29,6
Daniel Leguizamón. Esse personagem pode ser outro monstro (também da seara dos
assustados-assustadores) que o filme nos oferece: além de seu proceder incomum que
deixa todos ao redor alarmados, ele é inserido em um ambiente bastante afim às
histórias de terror que é o parque de diversões (ademais, de beira de estrada).
Após a já analisada sequência do helicóptero, interrompida por um corte
seco de silêncio e pela inserção do título do filme,7 temos um plano fixo que recorta
uma velha montanha-russa e suas minguadas luzes em um entardecer com sua típica
tonalidade lusco-fusco. Uma paisagem sonora de rangidos mecânicos vai emergindo do
silêncio e culmina com uma porção de gritos em off – anúncio de perigo rapidamente
dissipado pela aparição do carrinho, cheio de passageiros, que anda velozmente pelas
curvas do brinquedo. Os gritos ressoam na próxima cena, fazendo com que o novo
ambiente – a lanchonete de fast food – seja reconhecido como parte do parque.
No centro do quadro, um rapaz imóvel, esguio, exerce uma força centrípeta
que magnetiza o olhar em sua direção. A trivialidade da espera em uma tão padronizada
lanchonete, dos ruídos de fliperama e do caixa, do falatório, é alterada por essa figura e
6
Como descrito em seu site (http://grupo.km29.net/), o KM29 é um projeto de pesquisa e criação cênica que
dialoga com diferentes linguagens artísticas na busca pela experimentação e pelo intercâmbio humano.
Ademais, o quilômetro 29 é uma popular parada no caminho que liga a província de Buenos Aires à Capital
Federal, formada por um terminal desprotegido, precário e caótico – sendo, de dia, conexão obrigatória de
milhares de pessoas e, de noite, lugar liberado para a prostituição e a violência. Para o projeto é um
inevitável ponto de encontro, partida e divergência por vincular extremos culturais tão incompatíveis como a
Capital e González Catán, polos onde vivem seus integrantes. O programa de dança do KM29 e a produtora
La Unión de los Ríos realizaram, em 2013, o filme Los posibles, dirigido por Santiago Mitre e Juan Onofri
Barbato, baseado em espetáculo idealizado pelo último. Apesar de a fisicalidade constituir-se como seu
centro, me parece convidativo pensar como Los posibles é mais um filme que se conecta com o corpus da
tese ao deixar entrever questões tocantes à relação de seus personagens/bailarinos com o espaço da cidade
que ocupam – preocupação enunciada desde o nome do grupo. Através de algumas paisagens suburbanas
como a estrada e o conjunto habitacional, e do subsolo do imponente teatro, principal cenário da coreografia
(que fica dividido entre um “em cima” – desabitado, luminoso – e um “embaixo” – em penumbras, mas
cheio de vida e movimento), novos sentidos podem ser construídos. O média-metragem está disponível no
canal da KM29 no Vimeo: https://vimeo.com/99936997.
7
O letreiro Historia del miedo aparece frente à imagem desfocada e escurecida de um muro de tijolos de
concreto sem acabamento. O muro é uma figura de crucial importância tanto neste filme como em vários
outros aqui trabalhados ou apenas citados. Neste caso, quase não se nota sua presença no segundo plano,
mas é perceptível a falta de um ponto de fuga e a consequente impressão de sufocante encerro. É frente a
esse muro que Camilo irá colocar os personagens em suas estranhas entrevistas.
87
seus movimentos. Até a paisagem sonora local é sobreposta por uma misteriosa música
extradiegética que acompanha a virada de clima.8 Porém, o que poderia ser apenas um
happening toma a dimensão de ameaça: um segurança surge em cena falando e
gesticulando, como se estivesse prestes a caçar um animal – ou um monstro –, e os
presentes se encolhem pelos cantos ou vão embora. O olhar desafiante (do qual a
câmera se atreve a se aproximar) que o garoto lança a Pola – quem corresponde ao ato
sem fugir, ao contrário do que fará adiante no recém-comentado cruzamento com a
moça – é sua atitude mais “agressiva”, já que até sua resistência à investida do guarda é
bastante comedida. Pola, apesar de conseguir encarar firmemente o rapaz, titubeia
quando é solicitado a imobilizá-lo – será medo ou compaixão por esse alguém no qual
ele se reconhece devido ao silêncio e ao vigor físico?
Outros potenciais monstros que atravessam o longa de Naishtat são os cães:
eles entram repentinamente no quadro para cruzar uma rua escura e deserta na qual Pola
anda com sua moto, surgem junto ao lixo queimado acentuando o risco que este
representa (“os cachorros são perigosos”, diz o segurança) ou são protagonistas de um
pesadelo que mais parece um conto de terror. Parentes do lobisomem, esses animais
relembram a presença de uma natureza humana nos monstros e de uma natureza
monstruosa nos homens – hipótese recordada pela mulher, ao contar que o cachorro de
seu sonho “tinha algo estranho em seu olhar: não olhava como cachorro, mas como
humano... Algo perverso”.
Da mesma forma que Camilo se sobressai através de sua voz (enquanto o
jardineiro e o performer da lanchonete se caracterizam pela ausência da mesma), os cães
se fazem notar através dos latidos e uivos que pontuam toda a narrativa. Latidos e uivos
são típicos de filmes de horror – como o são o ruído da serra elétrica, aqui incorporado
no cortador de grama manejado por Pola, ou o grito, expressão do genuíno desespero na
cena final. Naishtat ainda utiliza padrões que, segundo Rodrigo Carreiro (2011), são
recorrentes no gênero: a audição de um ruído inesperado, que provoca o susto (quando
uma bola bate na parede da casa de Teresa e Pola, o impacto do barro no carro do
segurança); o deslocamento no espaço de sons cuja origem é ou pode ser ameaçadora
8
Essa música também irá acompanhar Pola quando ele se encontra andando sozinho de moto pela rua
escura, na imensidão do campo deserto, nos últimos andares do hospital. Sendo o único som extradiegético
de todo o filme, adquire um caráter de comentário fantasioso, além de característico de Pola, incrementando
a natureza misteriosa desse personagem.
88
(os incomuns grilos e outros bichos que cricrilam na sequência final) e o retardamento
do processo de identificação de um determinado som com o que o origina (os gritos na
montanha-russa, os meninos que imitam macacos, o plano frontal de Camilo paralisado
escutando o interfone).
Todos esses casos são articulados a partir de sons off. Como indica K.J.
Donelly (2005), o deslocamento entre o que ouvimos e vemos cria uma tensão
fundamental que confunde o conhecido e o desconhecido, o que ouvimos e não, o que
pensamos que ouvimos – são quebras em um mundo sincronizado. A sensação de horror
vem de não poder ancorar ou corporificar uma voz ou um ruído. Nesse sentido, é
interessante observar o que diz Bauman:
9
Em seu livro La peur au cinéma (2006), Emmanuel Siety destaca como a “incompletude” pode ser uma
forte característica dos monstros nos filmes que objetivam causar medo: o plano-detalhe de partes do corpo,
a sombra, a voz sem corpo – cujo grande exemplo recuperado por Siety é O testamento do Dr. Mabuse (Das
testament des Dr. Mabuse, Fritz Lang, 1933) – ou o corpo sem voz – como em Halloween, a noite do terror
(Halloween, John Carpenter, 1977), no qual o assassino está mudo do começo ao fim – fazem com que seja
mais difícil desvendar ou entender aquilo que é ameaçador.
89
Existe, tanto dentro como fora do cinema, dois tempos diversos que
atravessam a existência humana: o tempo real, ou seja, o tempo
marcado pela posição do sol, pelos grãos de areia na ampulheta, pelos
ponteiros do relógio, pelo ciclo das estações, pela passagem dos dias,
meses e anos no calendário; e o tempo mental, que se cristalizava nas
nervuras do cérebro em forma de memória ou expectativa, carregado
pelas sensações de esgotamento ou eternidade. Cedo o cinema
descobriu as possibilidades de conflito entre o tempo mental, que
transcorre dentro de nós, e o tempo real, que transcorre fora de nós
(NAZÁRIO, 1986, p. 41, destacados no original).
10
Há diversos trabalhos que consideram o suspense um gênero por si só, como o de Odair José Moreira
da Silva (2011). Apesar de não aderir completamente à proposta de Silva, minhas análises devem muito a
seu estudo.
90
91
92
Aqui, é essencial voltar à relevância dos sons off no filme. Retomando o que
já foi inicialmente explorado, as alterações nas rigorosas paisagens sonoras de cada
ambiente (como descrito no capítulo 2) colaboram para a instalação da incerteza e, logo,
do medo – especialmente porque se dão em off. Nunca se vê o que incomoda, que adquire
dimensão fantasmal.
Se um monstro pode ser um fantasma, a cidade é mais um que ronda o longa
de Naishtat. É assim que se dá a presença da cidade: como uma força que age sobre tudo
e todos, sem que se possa defini-la de forma precisa. Por mais que muitos personagens
tentem ignorá-la e se desvincular dela, as origens de muitos mistérios que os assombram
estão na cidade. Imagens do skyline de Buenos Aires são inseridas entre situações,
lembrando que aquele mundo (imenso, como destaca esse tipo de tomada) continua ali
apesar das distâncias que se tomem dele.
Nesse sentido, o calor parece ser outro personagem que cumpre um papel
similar ao da cidade e sua qualidade de fantasma que incide sobre os acontecimentos de
maneira invisível, mas audível, sendo percebido através dos trovões pesados da chuva de
verão e dos sons agudos de bichinhos frequentes desse clima, além de ser verbalizado nos
escassos diálogos – o calor está nas poucas palavras trocadas entre Pola e o segurança, no
diálogo de Teresa com a outra empregada que fica presa no elevador, na causa do mal-
estar de Teresa e tem destaque no pesadelo com o cachorro (“fazia um calor sufocante!”).
Ademais, é o responsável pelas quedas de energia que provocam diversas situações
importantes do filme.
A insistência dos sons off também sinaliza o temor como inscrito no
extracampo: o que ameaça, pressiona e assusta vem de fora – ou da alteridade. De modo
similar, Carroll (1999) indica que a geografia das histórias de horror geralmente situa a
origem dos monstros em lugares fora ou desconhecidos do mundo humano, ou lugares
93
11
Nesse sentido, é importante ter em mente o que foi dito sobre os deslocamentos dos personagens do filme
no capítulo anterior.
94
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sobre o som grave, que desaparece, e surgem, em off, risadas de crianças. Nas próximas
cenas, veremos María correndo por um campo, olhando para a câmera de maneira
afetuosa, como quem espera por alguém: um garoto que aparece no final da sequência
(seu primo Fernando). A sensação de claustrofobia desaparece e a cena é iluminada,
incluindo alguns raios de sol à contraluz que dão um aspecto romântico, adiantando o
frágil flerte que se dará entre eles. Porém, ao invés de correr plenamente neste espaço,
os vemos dar voltas, correr em círculos.
Enquanto em Historia del miedo a ambiguidade entre o provável e o
improvável rondava as situações, fundando o caráter obscuro e atemorizante do filme,
em Una semana solos a montagem vai se ocupar de forjar uma energia
desestabilizadora ao repetir o padrão da primeira sequência: cenas coloridas, com muito
verde, de plena felicidade, articuladas com cenas onde há algo destoante – ou um
conflito, na maioria das vezes subjacente, seja devido às contendas entre as crianças,
entre María e Fernando, seja pela presença de Juan. Não faz falta uma crise profunda
nem uma eclosão dramática para evidenciar que há dois mundos em choque, e os
enfrentamentos se dissolvem em um jogo intermitente de crueldade e ternura, aceitação
e transgressão da norma, aceitação e boicote ao que está fora da norma.
Esses conflitos se desenvolvem mais através de gestos e de olhares que de
palavras. Quando se fala, o que não deve ser ouvido é ouvido (como a conversa de
Facundo com a mãe, na qual o garoto pede a partida de Juan, quem escuta tudo); ou as
perguntas são respondidas de forma evasiva (quando María não quer se estender nas
curiosidades da prima mais nova, ou na reveladora situação em que Juan contesta o
regulamento). A pequena Sofía é a única que insiste na comunicação e que está sempre
disposta a ouvir, especialmente em sua relação com Esther e Juan. É uma personagem
solitária e singular que resiste em apreender alguns comportamentos sem se
questionar.12 Seu interesse por música permite que ela deixe os ouvidos abertos e
perceba as diversas tensões que a rodeiam, ainda que não as compreenda
completamente.
É também através de uma música que temos um indício forte e, ao mesmo
tempo, quase subliminar da ligeira percepção que Sofía tem dos eventos: Invisible
12
Além dessa predisposição para dialogar, outro pequeno aspecto consolida seu distanciamento das outras
crianças: o fato de Sofía gostar que María deixe o cabelo solto. Os únicos que concordam com Sofía e o
expressam, através de frases muito similares (“te queda lindo el pelo suelto”), são Esther e Juan.
96
(per te), cantada em italiano pela garota, foi composta para o filme e, apesar de se
tratar de uma canção de amor, reflete a dinâmica que as crianças viveram com a
chegada de Juan: “Escuta, meu menino / não conhecerei o destino / quantas coisas não
sabe de mim / quantas coisas não sei de ti / essa pessoa não é você (...). / Invisível, eu
sou invisível pra você / eu sou invisível / eu sou invisível. / Invisível, meu coração é
invisível pra você / meu coração é invisível pra você (...)”. E o último estribilho
adianta o desfecho do filme: “Que mal você faz, / termina aqui, / termina aqui (...) /
Adeus, amor / tchau tchau”.
Nesse espaço diegético, a composição da trilha sonora se ancora no silêncio.
Além dos ruídos de passarinhos e grilos típicos de uma tranquila paisagem campestre
(como na apresentação do country de Historia del miedo), estão presentes quaisquer
pequenos sons produzidos pelos personagens dentro das casas: desde a colherzinha que
bate na borda da xícara até os passos de cada um, em uma construção bastante detalhista
que chama a atenção para a exclusividade daquele local tão cercado de silêncio no qual
se pode ouvir qualquer pequeno movimento. Esse silêncio se configura como mais uma
das benesses dos moradores do country, como notamos quando um dos garotos pergunta
ao colega que vive na cidade: “En Capital, ¿cómo hacés para dormir con tanto ruido?
Yo nunca viviría en Capital... por el ruido”. Além da inexistência de típicos ruídos
urbanos, as crianças falam da cidade de Buenos Aires (duas vezes durante todo o filme)
de modo extremamente distanciado, como se aquela não fosse a cidade onde vivem,
mas um lugar exótico e incompreensível. Assim, o “fora”, tudo que ultrapassa os limites
do bairro fechado é apenas uma referência no discurso, uma realidade longínqua.
Por outro lado, esse insistente silêncio é o reverso do que se poderia imaginar
ao se referir a um grupo de crianças que estão sozinhas, denotando uma espécie de enfado
que nem a “liberdade irrestrita” – uma das facetas mais publicitadas dos countries –
consegue empolgar. Ainda que o local seja enorme e repleto de natureza, ele se configura
como o único mundo conhecido pelas crianças – que só saem desse espaço para
frequentar uma escola também fortificada, dado corroborado pela afirmação de María de
que foi à Capital apenas duas vezes –, o que justifica esse fastio. Desse modo, o silêncio
que domina no country se configura tanto como mais um dos privilégios de seus
moradores como uma expressão de inquietante tédio no cotidiano dos personagens.
97
98
Juan fissura esse universo linear e dicotômico povoado mais por categorias
que por indivíduos, já que não se encaixa em nenhuma função conhecida, trabalha
enquanto “deveria” estudar ou ignora regras que aparentam ser óbvias e universais.
Mediante esse personagem, o filme aborda a inevitável tensão irresoluta entre
estamentos sociais que não têm pontos de encontro reais no espaço social que a vida
urbana oferece.13
A televisão parece ser o único ponto de contato possível entre Juan e os
outros personagens: ao estar reunidos frente ao aparelho, dá-se uma situação ímpar de
distensão junto ao “convidado indesejado” que, ademais, conserva o poder do controle
remoto sem que ninguém se incomode. A tevê também é bastante presente através do
off, indicando sua centralidade no cotidiano das crianças e intervindo no predominante
silêncio. Pelos créditos, descobrimos que ouvimos, por meio dela, trechos de filmes
argentinos que têm a cidade como personagem importante e que já citei no capítulo 1:
Moebius, Mala época e Sábado, mais a animação Mercano, el marciano (Juan Antín,
2002). Todos eles tematizam o cruzamento de situações proporcionado pelo “caos”
urbano, que termina se infiltrando na casa com a emissão televisiva.
Além disso, no filme, vemos uma repetição de procedimentos para a
regulação da entrada de pessoas em todos os lugares: a porta da escola reproduz a
movimentação da porta do condomínio; no interior da casa, o aposento dos adultos fica
trancado enquanto eles viajam; e María impede as pessoas de acessarem seu quarto. É o
som da televisão que faz a ligação entre os ambientes da casa, sendo que, muitas vezes,
os habitantes preferem refugiar-se cada um em seu quarto, mesmo que assistam aos
mesmos programas – por exemplo, quando Sofía e Esther, na dependência da
empregada, veem a mesma novela que María, que havia expulsado a prima.
Numa das raras incursões fora do condomínio, a saída da escola é tomada
através de um plano fixo que capta, em um plano-sequência, a coreografia dos
personagens nesse espaço. Essa breve cena que se desenvolve em tempo real não mostra
apenas um “capítulo” do namorico de María e Fernando ou os típicos cochichos,
paqueras e conversas que se dão na porta de qualquer escola, mas revela outro espaço
13
Ademais, a desconstrução do conceito de semelhante é, para Mirta Antonelli, a primeira consequência da
década menemista (1989-1999). Segundo a autora, é um “processo que, sob novas e múltiplas modalidades,
fratura toda possibilidade de laço como forma de sociedade; formas descarnadas de concorrência e de
coisificação do outro terminaram de se consolidar” (ANTONELLI, 2007 apud RASO, 2010, p. 32).
99
100
entrar no condomínio nos é dada através de uma montagem com muitas elipses,
denotando o longo intervalo de tempo que teve de aguardar.
Ao ingressar na casa que reúne os personagens, novamente temos a câmera
seguindo Juan muito próxima a sua nuca, e as plantas que conformam o corredor de
entrada “comprimem” o caminho que ele trilha, como já havia ocorrido na passarela.
Adiante, quando invadem a última casa e alguém pergunta por Juan, as respostas que
surgem são: “Com certeza está roubando”, “Com certeza!”. Juan é previamente culpado,
e essa maneira de mostrá-lo sempre “acossado”, com a câmera à espreita, parece indicar
que ele deve ser vigiado de perto, pois é sempre um suspeito. Como não se sabe quem é
Juan, lança-se mão da associação entre o desconhecido e o perigo.
Juan está ciente da distância que o separa das outras crianças. Porém,
apesar de bastante reservado, ele não perde a oportunidade de ocupar os espaços:
entra na piscina da casa, os acompanha na piscina do country, diz que eles mesmos
podem preparar o Nesquick, enfrenta María na porta do banheiro e questiona o
regulamento. Enquanto Juan se afirma por meio de seu corpo e de sua voz, os
empregados têm suas individualidades claramente negadas – especialmente os
guardas, que são apresentados sempre de costas, falando em off, ou ao longe, de
perfil. São pessoas sem rosto, pois seus rostos não importam, apenas o uniforme que
os enquadra em uma função, e o discurso decorado que eles repetem.14 Esther,
devido ao convívio mais íntimo, é chamada pelo nome e aparece em cena, ainda que
seja de forma sempre fugaz, com o corpo fragmentado e em movimento, realizando
alguma de suas tarefas. Em um dos poucos momentos que a vemos de maneira mais
plena, ela canta, mas o faz em frente à pia cheia de louça, como para que não
esqueçamos seu verdadeiro papel. Ou, ainda, quando faz algo solicitado pelas
crianças, como em suas interações com Sofía.
Essa resistência de Juan em não agir com resignação frente àqueles que
querem impor-lhe um lugar (tanto social quanto geográfico – afinal, ambos se
correspondem) me faz pensar nele como uma versão soft da personagem Jéssica de
Que horas ela volta? (Anna Muylaert, 2015). O conflito do filme brasileiro também é
14
Enquanto os guardas possuem “voz”, mas não “imagem”, a favela que é vista através do vidro da van é
imagem, mas não possui som, anulado pelos vidros fechados e pelo ruído do motor. Ao não mostrá-los
integra(l)mente, revela-se a pouca importância que lhes é dada naquele universo, apesar de suas
onipresenças.
101
centrado no espaço: uma mansão em São Paulo, na qual trabalha como doméstica
cama adentro a mãe de Jéssica, Val. Como observa Cezar Migliorin (2015), a jovem
do filme de Muylaert perturba a ordem da casa em diversas esferas e traz para esse
ambiente um subversivo princípio de igualdade: o que ela reivindica não é nada
substancialmente material, mas pedaços de um modo de vida. Assim como Jéssica,
Juan (ainda que de forma mais branda) não espera o convite, altera a distribuição dos
direitos da casa-grande e rompe barreiras usufruindo tudo que as crianças do country
usufruem.
A piscina é um dos mais marcantes ícones da classe alta que termina por ser
apropriado por Jéssica e por Juan.15 Como se tratando de um jogo de forças, também é à
beira da piscina que sucede uma das mais claras manifestações de exclusão em Una
semana solos: quando Juan fica de fora da distribuição de refrigerantes feita por
Facundo. E é ainda nessa sequência que se dá um dos mais perturbadores diálogos de
surdos do filme, na ocasião em que Juan contesta o regulamento, e os meninos não
sabem responder “o que não se pode fazer”. Eles são evasivos e respondem coisas como
“aqui há um regulamento, não se pode fazer o que quiser”, e repetem: “não se pode
fazer o que não se pode fazer”. Eles mesmos não sabem quais são as regras e o que não
se pode fazer – porque, na verdade, eles podem fazer “tudo”. As tão exaltadas regras
que se impõem são frágeis, mudadas segundo a conveniência dos patrões: o dia da
milanesa, a entrada no country.16
Aqui se consolida (mas de maneira tortuosa) outra das facetas mais
publicitadas dos condomínios fechados: a tal liberdade sem limites. Não há nada nem
ninguém para conter ou orientar as crianças. Os pais estão acessíveis apenas pelo
telefone e se destacam por sua ausência – nem suas vozes, ainda que em off, ainda que
filtradas pela ligação, podem ser ouvidas. Mesmo que estejam também as figuras
adultas de Esther e dos guardas, estas não exercem nenhum comando e são apenas
15
É interessante lembrar também de outros filmes brasileiros recentes nos quais a piscina é um elemento
recorrente enquanto símbolo de status (e, ao mesmo tempo, de sua perda): O som ao redor e Casa grande
(Fellipe Barbosa, 2014).
16
Aqui vale lembrar a Marta Muñoz Aunión (2013), que explica que a reclusão da classe média/alta urbana
em comunidades blindadas responderia, também, à necessidade de criar espaços nos quais a governabilidade
não só esteja garantida, mas possa ser controlada, orientada e adaptada segundo os requerimentos
apresentados pela mutável dinâmica urbana. Seguindo a Sonia Roitman, Muñoz Aunión destaca que, sendo
a privatização do espaço urbano uma marca distintiva dessa forma de ocupação do território, engendra-se
um novo estilo de governabilidade e novas formas de controle da vida cotidiana, já não mais a partir do
Estado, mas a partir dos próprios indivíduos.
102
coadjuvantes.17 Uma tênue autoridade se esboça naquela que parece a mais velha do
grupo, María. Ela sempre está se movendo entre dois polos: a infância e a idade adulta,
a proximidade e a distância (tanto de Juan quanto dos próprios familiares), a justiça e a
injustiça. Seu comportamento oscila entre o zelo e a preocupação pelo bem-estar de
todos, a conveniência que extrai do poder que exerce, e o cansaço que esse poder
também ativa (permitindo-se perder o controle e se comportando como uma criança).
María igualmente tem um papel de liderança durante as invasões, acalmando
discussões e ordenando o tempo que devem permanecer; é também quem dá o start para a
devastação da última casa. María estimula Fernando a entrar na primeira casa com ela,
quando diz ao primo: “tentou abrir? Vamos, tente!”. Já aí dentro, eles circulam à vontade
por seus interiores, sem receio de serem vistos, apesar das paredes de vidro. Ao entrarem,
o ranger da porta é estendido: não obstante a tranquilidade de ambos, o gemido insistente
da porta perturba o ambiente e sugere a “ilegalidade” do ato – inocente, mas que não
perde a oportunidade de roubar um carrinho alheio (especialmente depois de ver os
retratos e concluir que a residência não pertence a conhecidos). Essa ação fugidia bem no
início do filme vai ecoar em diversos momentos, expondo as contradições daqueles que
acusam, levianamente, a Juan. Na sequência seguinte, descobrimos que outra coisa foi
furtada: uma chave para abrir a porta da bomba da piscina da casa de María. Saber o
sentido da invasão dá leveza à mesma, justificada pela busca de um objeto simples, sem
valor, para que eles pudessem brincar na piscina.
A segunda invasão gera uma dúvida quanto a tal ato: entrar nas casas alheias
é habitual ou algo que se inaugurou na busca da chave para a piscina? Eles possuem
gestos codificados sobre como agir, ressignificando a impressão de inocência gerada
anteriormente. Apesar da segurança de María e dos movimentos ensaiados de todos, é
possível identificar que não sabem bem o que fazer, nem o prazer daquilo, estendendo o
tempo (“só mais um minuto”) na esperança de terem alguma ideia ou que a atividade
17
Durante a incursão em outra casa, da qual participam apenas alguns dos meninos, um guarda finalmente
os questiona. Como sabiam quem era o proprietário da residência, os personagens logram escapar de um
problema. No diálogo que se trava com o segurança, a admirável convicção ao contar a mentira decorre da
confiança dos garotos de que pouco será feito para desmascará-los ou castigá-los. Como diz Rodrigo: “o que
os copi copi [apelido recebido pelos guardas que supervisionam o country em carrinhos] vão fazer, se são
todos empregados?”. Junta-se a tal confiança uma pitada de indiferença que desarma qualquer tentativa do
guarda de seguir contestando-os (afinal, o conflito já está resolvido de antemão). Todas as interações entre
os guardas e as crianças seguirão um roteiro parecido, no qual as atitudes das segundas oscilarão entre a
cordialidade e a demonstração de poder, como quando María ignora o conteúdo de uma denúncia ao se fixar
na equivocada conjugação verbal do funcionário ou através do suborno no caso da residência destruída.
103
finalmente resulte atraente. Por vezes, parece ser “cumprir tabela” da necessária
transgressão adolescente – neste caso, estimulada mais pelo tédio que por qualquer
outra coisa (sendo que a invasão tampouco reverte esse quadro). Da mesma maneira que
na casa de vidro, não se importam em serem descobertos: ligam uma profusão de sons
altos (várias televisões, aparelhos de música), quando já é noite. Por outro lado, são
orientados por María a arrumar tudo antes de sair.
Na última residência “visitada”, logo de entrada há um elemento inusitado e
que modifica a aura da incursão: a falta de luz. Estar no escuro descerra alguns impulsos
que vinham se encastelando em Historia del miedo, e não é diferente em Una semana
solos. Porém, enquanto no primeiro o medo domina a situação, no segundo a explosão
que toma conta dos personagens parece ser uma maneira de exorcizá-lo. Se Sofía rejeita
ser parte dessa festa às avessas, Juan a vê como uma oportunidade de finalmente
compartilhar algo com aqueles que o têm rejeitado – sem se dar conta que o
acolhimento repentino do grupo estava ligado à sua transformação em testa de ferro, e
não à sua aceitação genuína.
Se Juan só existe e importa face à possibilidade de sua instrumentalização,
as atitudes de invasão e de destruição das propriedades vizinhas indicam como os
moradores das casas vandalizadas, iguais, tampouco importam e também são ignorados.
Da mesma forma, não existe preocupação com a segurança dos demais quando andam
de carro em alta velocidade. Assim, ainda que o garoto de Entre Ríos seja quem
desperte reações mais frontais que geram situações inéditas de encontros e
desencontros, o individualismo está arraigado nos personagens. Esse comportamento
corresponde às observações de Bauman (2003) de como a fuga do público reverte-se à
busca pelo individual. Ao passo que os espaços de interação são reduzidos, as
liberdades individuais se expandem, e as comunidades se dissolvem em nome da
individualidade. Nem a comunidade forjada pela identidade country consegue resistir,
pelo menos em Una semana solos.
E aqui discordo de Castrian em sua avaliação do filme como um conto de
aprendizagem, cuja efetivação se dá na sequência final. Apesar de, pela primeira vez, a
câmera se prostrar de frente para os garotos, num ato de impugnação inédito para eles, a
resposta que se recebe não é nada inédita com a imputação da culpa a Juan. A reação de
María tampouco é novidade e condiz com seu comportamento até então de trânsito entre
104
105
fácil? (Juan Taratuto, 2007), Sétimo (Séptimo, Patxi Amezcua), Una semana solos e,
especialmente, El hombre de al lado.
Hortiguera (2013, 2015) dedica vários textos ao filme de Duprat e Cohn
devido à maneira contundente com que o longa toca a questão da casa como espaço
íntimo fraturado, onde se torna impossível manejar conflitos. A dissolução dos laços
sociais que revela um tecido de desconfianças atinge a casa que deixa de ser o lugar que
provê proteção e sentido a seus habitantes para se transformar em mais um espaço
instável e em permanente discórdia dentro da cidade.
El hombre de al lado constata e desdobra um problema de comunicação e
negociação na diferença que provoca uma mudança radical na forma de morar na Casa
Curutchet: as vozes discordantes de Leonardo e Víctor passam o filme buscando meios
de acomodação, e esses personagens são construídos a partir de suas oposições – e
também de suas complementaridades. O enfrentamento dessas personalidades e de suas
posições é bosquejado já na primeira sequência: o filme se inicia com a tela negra e os
créditos, enquanto ouvimos o canto de passarinhos, sugerindo um lugar calmo e
bucólico. Logo, a tela passa a ser dividida ao meio – de um lado, branca; de outro,
cinza. Essa transição da tela negra à tela dividida é acompanhada pelo som da passagem
de um carro em alta velocidade que buzina, ressignificando nossas impressões sobre o
local da ação. Ouvimos também um cachorro latir, o que reforça essa sensação, já que
vai se instaurando uma sutil poluição sonora. Ao fim dos créditos, surge uma marreta
que começa a quebrar a parte cinza da tela, que então descobrimos ser uma parede – e
cada lado da tela é uma face da parede. Não vemos quem detém a marreta, apenas os
golpes. Conforme a marreta avança em seu trabalho, o lado branco vai se rachando, até
que se abre um buraco, através do qual os dois lados se conectam. Nesse momento,
podemos notar que a parede cinza não era pintada dessa cor, mas era escura pela falta de
luz no ambiente.
Em seguida, conhecemos Leonardo: em um close up (que sugere a íntima
relação que a câmera terá com esse personagem), o vemos acordar devido ao som das
marretadas. Ele se levanta e continua sendo acompanhado de perto pela câmera que,
assim, faz seu primeiro recorrido na casa pelas mãos de seu anfitrião, enquanto este
busca a origem dos ruídos. A proliferação do branco nesse espaço nos leva a intuir que
Leonardo está do lado “iluminado” da tela dividida. Após um breve passeio, ele verifica
106
que estão abrindo um buraco na parede que dá para a janela de sua casa e grita
agressivamente com o operário que faz o serviço.
Nessa primeira aparição, Leonardo nos é apresentado como autoritário e
mal-educado, perfil reforçado por sua fala desdenhosa ao olhar para o buraco: “que país
feo, la puta madre!”. Porém, logo depois, teremos outras informações sobre o
personagem, enquanto ele cria um site pessoal: arquiteto e designer importante que
ganhou prêmios internacionais, seus produtos são sucesso de venda no mundo todo (o
site deve ter vários idiomas: espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, japonês e
chinês), é culto (enfatiza a importância do chinês em sintonia com as tendências
contemporâneas) e conhece várias línguas (corrige a ortografia em outros idiomas e faz
ligações internacionais). Quando a câmera deixa a tela do computador para mostrar a
situação na qual Leonardo dá instruções ao webdesigner, vemos essa sofisticação na
composição do ambiente, confirmação de sua genialidade profissional que será
enfatizada, durante todo o filme, através da alternância entre planos gerais e primeiros
planos e da exibição dos cômodos da Curutchet a partir de variados ângulos,
demarcando o protagonista e o espaço minimalista e ordenado da casa, frente a um
exterior vegetal belo e tranquilo. Assim, Leonardo e a casa onde vive são emblemas do
design, da excelência e do bom gosto.
Entretanto, a arrogância e a crispação do arquiteto na primeira cena vão
ecoar em diversos momentos, contrariando e poluindo seu perfil virtuoso: ele repete
com o tio de Víctor a postura ofensiva que havia tido com o pedreiro, interrompe sem
motivo uma entrevista para a televisão, destrata seus alunos. Quando busca reconhecer
alguma qualidade no outro, sempre o faz de maneira irônica, de modo a inferiorizá-lo,
como ao considerar a saída com Víctor uma experiência antropológica.
A vivência na Curutchet também vai apresentar desajustes, reforçando a
hipótese de que Leonardo e sua casa funcionam como reflexos um do outro. Por um
lado, dá-se uma deterioração das relações familiares: no começo do filme, Lola brinca
nas rampas de entrada da casa e se deixa ser acariciada pelo pai, recepcionando-o em
sua chegada; os biquitos pedidos pela mulher são correspondidos, ainda que
burocraticamente. Um pouco depois, há uma mudança drástica nesse clima: a pré-
adolescente comporta-se com um alheamento muito mais profundo do que o esperado
para essa idade, ignorando qualquer tentativa de contato (com uma exceção que
107
18
Na verdade, Leonardo é o único que tenta empreender uma comunicação com a garota dentro da casa,
mas nunca o faz diretamente, pegando atalhos que podem justificar seu fracasso: ou propondo o diálogo pelo
telefone, ou dando um sermão que nada diz, ou puxando assunto sobre as miniaturas cool que compraram no
MoMA – Museum of Modern Art de Nova York (momento em que está vestido com um macacão, traje
infantilizado que o faz parecer ainda mais desajeitado).
19
Como na cena em que veste o macacão, a imagem de Leonardo se reveste de um ar meio engraçado, meio
patético, nutrindo a impotência que este encarna frente à filha, destoante da persona poderosa que demonstra
o tempo todo.
108
109
20
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Db-IITg60ls.
21
A penitenciária de Caseros, na cidade de Buenos Aires, foi uma penitenciária em modelo pan-ótico
idealizada em 1960 e cuja construção foi abandonada após informes que alegavam a inumanidade e
inviabilidade do projeto. A obra foi retomada em 1969, durante o governo ditatorial de Juan Carlos
Onganía, e inaugurada dez anos depois sob outro governo ditatorial, de Jorge Rafael Videla. Em 1984,
uma violenta rebelião abalou as estruturas do edifício, fazendo com que se iniciasse um processo de
desativação da prisão, concluído em 2000.
22
Modelo de prisão ou de torre de observação idealizado para que os vigilantes possam facilmente ver todas
as partes de um edifício ou de um recinto, sem serem vistos. O efeito mais importante do pan-ótico é induzir
no prisioneiro um estado consciente de permanente de visibilidade que garante o funcionamento automático
do poder.
23
Agradeço a ajuda de Lúcia Monteiro e de Taís Barrenha para compreender este conceito de Freud.
110
24
A página não é indicada pois utilizei um arquivo digital (proveniente da edição publicada pela Imago em
1976) que não contava com numeração.
25
Nesse único acesso que temos ao universo de Víctor, tudo entra em conflito com o padrão estético clean e
racional do mundo dos Kachanovsky, com uma profusão de clichês do brega: acarpetado de oncinha, bola
de espelhos como as que ficam nos tetos de nightclubs e excessos em geral – de cores, de objetos, de
materiais. É evidente o desconforto de Leonardo, que não tem jeito para manejar nada (quando logra
sustentar a cuia de mate, se queima).
111
seu gosto pela caça, sua arte feita a partir de munição velha, mas, especialmente, sua
imagem captada em primeiro plano. A maneira de apresentá-lo mantém o personagem
enigmático (traço necessário para conservar a tensão da narrativa): ele é, praticamente,
um desconhecido.
Assim, apesar das intervenções desestabilizadoras de Víctor, que ativam os
quiproquós da trama, acompanharemos o desenvolvimento das situações através de
Leonardo. A história se estrutura a partir dos diálogos travados entre os dois, mas nunca
há uma situação de campo e contracampo, sendo que sempre ocupamos o lugar do
arquiteto. Além do ponto de vista desse personagem, estamos sob seu ponto de escuta –
procedimento significativo, já que Víctor e tudo que ele traz desse “mundo misterioso”
chegam, especialmente, na forma de ruídos.
É importante considerar, então, que vemos Víctor pela perspectiva de
Leonardo, que o percebe e faz com que o percebamos como um mal-educado, invasivo,
preconceituoso, machista, um rústico atrás do qual – segundo os critérios de cada um, e
aqui sob os critérios de Leonardo – se aloja um violento perigoso.26 A postura pedante
de Leonardo tende a suscitar antipatias que nunca se revertem em simpatia a Víctor,
quem paira todo o tempo em um limbo entre o ridículo e o ameaçador, fazendo-nos rir,
mas sem aderir totalmente a ele. O filme alterna nossa inclinação entre um e outro
personagem, mas nunca desafia efetivamente a nossa impressão de qual deles é digno de
desconfiança.
Essa forma de localizar os personagens, articulada à suspeita que rege a
relação que o protagonista estabelece com Víctor, me levou a pensar em El hombre de
al lado como uma possível versão remixada do conto “Casa tomada”, de Julio Cortázar.
Publicado pela primeira vez em uma antologia organizada por Jorge Luis Borges (1946)
e, posteriormente, incluído no livro Bestiario (1951), o conto suscitou uma infinidade de
interpretações, sendo a ideia da casa tomada um dos mais importantes eixos conceituais
para se pensar o país desde então.
26
Por exemplo, ele não é percebido dessa forma por Elba (que o considera um vizinho) nem por Lola, a
quem a janela parece agradar pela possibilidade de se divertir com o misterioso teatrinho entre naïf e
perverso que Víctor encena para ela – feito com alimentos baratos nos quais se lambuza e contamina, oposto
à assepsia que prevalece na vivência da garota. Não há nada em comum entre esses indivíduos que não
sejam as botinhas que se mexem nos dedos de Víctor – iguais (as mesmas?) às da boneca de Lola – e o fato
de estarem ali, disponíveis para conhecer o desconhecido.
112
113
28
Ademais, os personagens compreendem e se relacionam com o significado da janela (daquela janela) de
maneiras diferentes: para Leonardo, a janela não serve para nada e é puramente uma invasão de privacidade;
para Víctor, a janela serve para receber uns raios de sol, para os vizinhos conversarem, para provarem
receitas um do outro, para fazer um teatrinho e até para averiguar se a casa contígua está em segurança.
114
outro universo, no qual suas armas discursivas, seu poder e todas as suas seguranças são
neutralizadas – impotência que aprofunda seu temor.
O modo como a relação entre os personagens se desenvolve faz do título do
filme uma escolha evidente: o homem frisa distância, pois se trata de um desconhecido,
a despeito da proximidade espacial (ao lado). Leonardo nunca chama Víctor por seu
nome, tampouco o trata como vizinho (o que os ligaria de alguma forma), e se refere a
ele apenas como “o homem ao lado”, “selvagem”, e outros termos depreciativos que
servem para marcar uma separação entre eles – não apenas física, mas um afastamento
que os impeça de se relacionar.
Cada descompasso entre Leonardo e Víctor empurra o último a assumir o
papel de monstro – o que se entrosa com sua voz grave e gutural, com seu emergir de
um buraco negro, com suas aparições inesperadas e desagradáveis, com o som de
pancadas secas e furadeiras agudas a pressagiar a moléstia que causará e a partir da qual
o arquiteto se vê forçado a redefinir sua rotina, da mesma maneira que os irmãos de
“Casa tomada” redefiniram as suas, ao ouvirem ruídos imprecisos. Entretanto, ao passo
que os irmãos recuam até se retirarem completamente, Leonardo não chega a ter sua
casa tomada. Nesse sentido, o que sucede a Leonardo se parece mais com o que sucede
a outro personagem da literatura argentina: o Sr. Lanari, do conto “Cabecita negra”, de
Germán Rozenmacher, publicado em 1962 – segundo Piglia (1993), uma resposta ao
comentário de Sebreli sobre “Casa Tomada”.
“Cabecita negra” aborda as relações racistas e classistas que se
desenvolveram no país, depois de 1940, através do encontro do Sr. Lanari, um próspero
comerciante que, ao sair do aconchego de seu lar em uma noite de insônia, se depara
com uma dupla de – segundo ele – cabecitas negras que acabam ingressando em sua
casa, “seu refúgio, onde era o dono, onde podia viver em paz, onde tudo estava em seu
lugar, onde o respeitavam” e que se converte no espaço dos outros, do escândalo, onde
Lanari fica “aprisionado por esses negros” (ROZENMACHER, 1971, p. 33-36). Essa
experiência de se sentir invadido é relatada pelo narrador onisciente como se fosse um
pesadelo, a partir do qual Lanari reconhece a certeza de jamais estar seguro de nada.
Leonardo também é acometido por essa insegurança com a aparição de
Víctor, a qual busca sanar pedindo para Elba averiguar as fechaduras, consultando um
especialista na proteção de residências e instalando um botão de pânico. Porém,
115
enquanto a “invasão” sofrida pelo Sr. Lanari se dá de forma literal (com os corpos
adentrando o recinto), o ingresso de Víctor na Curutchet (quem dança ocupando toda a
sala e todas as atenções; quem desfruta de todos os movimentos da cadeira star de
Leonardo) é apenas a cereja do bolo de uma incursão que se inicia com seu olhar – e é
nesse ponto que os objetos do medo começam a se embaralhar.
Os Kachanovsky já são observados, mas em uma posição exibicionista e
confortável. Morar em um marco da arquitetura modernista reforça o sucesso de
Leonardo; há sempre turistas tirando fotos do local e alunos de arquitetura têm aulas em
sua calçada. Ele não se incomoda com esse olhar admirador, e o toma como sendo
também para si. Em primeiro lugar, como analisa Vera Lúcia Follain Figueiredo,
A luta pelo direito à janela, travada por Víctor, recoloca (...) a questão
da visibilidade, isto é, não se trata somente de quem tem o direito de
ter acesso a um raio de sol, mas também de quem tem o direito de ver
e ser visto. O olhar de admiração dos turistas, legitimado pela
capacidade de reconhecer o valor artístico da obra do arquiteto, não
incomoda Leonardo: o que o desespera é o olhar do vizinho, do
homem comum que não possui a competência cultural específica para
render homenagem àquele monumento arquitetônico, e, portanto, não
sabe respeitar a distância que sua sacralização exigiria
(FIGUEIREDO, 2012, p. 111).
116
(mais franca e direta) de Víctor, permanece até o fim, com Víctor utilizando uma
escopeta para proteger Lola e Elba e Leonardo deixando de pedir socorro médico para o
vizinho que agoniza. Como afirma Gabriela Copertari (2012), o filme cria um lugar de
identificação para o espectador que termina se revelando como profundamente
incômodo. É um lugar a partir do qual se projetam as fantasias e os preconceitos com
relação à ameaça do outro e que se apresenta não apenas como equivocado, mas
monstruoso, pois encarna a monstruosidade e a ameaça que o outro encarnava.29
***
117
preocupar com temas frequentemente abordados por aqui – especialmente com relação
aos laços entre medo, violência e fenômenos de fragmentação urbana.
La zona, na Cidade do México, é um condomínio fechado ultraprotegido
cercado de favelas. Quando uma pane de eletricidade corta momentaneamente a
vigilância do lugar, três habitantes da favela decidem aproveitar essa oportunidade única
para ali entrar. Em uma tentativa de roubo malsucedida, matam uma senhora e dois
deles terminam assassinados por um segurança e por um vizinho. Miguel, o terceiro
garoto, se esconde em uma casa, e os moradores dão início a uma operação para
encontrá-lo, armando-se e dispensando a intervenção da polícia.30
O intruso (o outro) perde sua condição de humano ao cruzar o muro,
convertendo-se simplesmente em um alvo que deve ser abatido. A caçada e o
linchamento têm roupagem de legítima defesa, e as ações violentas nunca são gratuitas:
há sempre uma justificativa, uma lógica distorcida que acalme a consciência de cada
um. Zona do crime discute, assim, não apenas a brutalidade naturalizada em um
coletivo, mas em um coletivo que localizava a brutalidade muito longe de si e se isolava
para não correr o risco de ser “contaminado” por ela.
O assalto desse unheimlich efetua-se através dos olhos de um adolescente
que vive no country e acolhe o intruso, identificando-se mais com este que, até então,
lhe era estranho, do que com aquele grupo que, até então, lhe era familiar. O
condomínio, suprassumo da tranquilidade e da segurança, assume-se lugar da barbárie,
do medo, da morte e da ameaça (não apenas para Miguel, mas para diversos
moradores). Enfim, como reflete Liliana López Levi (2012), os residentes de La zona
não apenas não podem escapar do caos exterior como terminam sendo parte dele (ou
piores que ele).
Assim como Zona do crime, o brasileiro O invasor (Beto Brant, 2001) é
outro filme que – além de rondar permanentemente a tese – desloca as origens do medo
e da violência do submundo de onde o senso comum acredita que elas estão para o
30
Mais que um condomínio residencial, La zona quer se erigir como uma comunidade com suas próprias
leis, ficando totalmente apartada de qualquer coisa exterior. A recusa da justiça formal aponta para dois
aspectos importantes nesse sentido: primeiro, um pai explica ao filho adolescente que, no passado, a demora
dos policiais teria sido responsável pela morte de seu irmão baleado – logo, a polícia não era digna de
confiança. Tal entendimento se mostra extremamente individualista, porque só analisa os efeitos sobre si
mesmo e recusa ver o papel dessa instituição no resto da sociedade. Em seguida, quando o comandante
Rigoberto tenta ingressar no local, argumentando que “a rua é pública”, é rebatido por uma moradora: “esta
rua não”, o que demonstra a reconfiguração dos espaços comuns em tempos de “guerra” (CARMELO, 2008
e OLIVEIRA, 2011).
118
campo feroz da concorrência e da ilegalidade entre as elites (KEHL, 2015). Uma São
Paulo suja, feia e desordenada, noturna ou iluminada por cores frias, abriga e participa
desse thriller marcado por traições, ganância, paranoia, conspirações, assassinatos e
seduções: Ivan e Giba, sócios de uma empreiteira,31 encomendam a morte de um
terceiro parceiro devido à discordância a respeito de uma grande oportunidade de
negócio, tão rentável quanto ilícita. Após a execução do trabalho, Anísio, o matador,
invade o espaço onde não era esperado, desrespeitando as convenções de discrição
próprias à prestação desse tipo de serviço e ultrapassando limites socialmente
estabelecidos entre a sua periferia marginalizada e o centro dos empresários.
Embora o longa seja extremamente sensível à constituição de espaços
apartados – com a assiduidade de prédios com interfones, portões eletrônicos, leões-de-
chácara e seguranças –, o que está em jogo é a “contaminação recíproca desses mundos
ilhados por uma fronteira simbólica, [que] vem superar a dicotomia entre centro e
periferia vista como um código espacial que significa a separação entre ordem e
desordem, lei e crime, civilização e barbárie” (XAVIER, 2006a).
31
Como nota Xavier (2006a), setor cujos interesses têm muito a ver com a história das grandes cidades
brasileiras e sua deterioração, focos de especulações financeiras e da ocupação ilegal do solo só possível em
função de uma relação promíscua com o poder.
119
120
4. Na cidade da fúria
1
Como constata Diego Lerer (2016), “o tema de Naishtat sempre foi a violência latente que tensiona todas
as relações humanas. Em curtas como El juego [2010] e Estamos bien [2007], essa violência se faz presente
através do uso de armas, sim, mas também em função da imprevisibilidade psicológica dos personagens. Em
Historia del miedo acontece algo parecido, mas ali o medo é já quase um estado da mente, uma condição da
existência no mundo atual, a sensação de que o real, o aparentemente normal, tem sempre um lado escuro e
imprevisível”. No longa, há um momento em que esse lado escuro e a brutalidade se materializam, mesmo
que seja através da televisão: quando Camilo revisa vídeos da ocupação (falida) do quartel de La Tablada,
em janeiro de 1989, no qual militantes do Movimiento Todos por la Patria (MTP) tentaram invadir essas
instalações militares da Grande Buenos Aires com o propósito de frustrar um possível golpe que estaria
sendo planejado pelas Forças Armadas em parceria com o candidato a presidente Carlos Menem. Desse
evento confuso e midiático até hoje pouco esclarecido, resultaram 39 mortos, 28 deles do MTP. A inserção
dessas imagens de arquivo parece prenunciar os interesses que movem o próximo filme de Naishtat, El
movimiento, no qual o diretor viaja ao passado para traçar uma história da violência política na Argentina.
121
2
“O homem é o lobo do homem”. Com esta frase de sua célebre obra Leviatã, Thomas Hobbes (1651) faz
referência a uma tendência violenta inerente aos homens (GROSS, 2015).
3
O longa chegou a 3,5 milhões de espectadores, batendo a cifra de 3,4 milhões de Nazareno Cruz y el lobo
(Leonardo Favio, 1975). A eles se seguem O clã (El clan, Pablo Trapero, 2015) e El santo de la espada
(Leopoldo Torre Nilsson, 1970) com 2,6 milhões cada, Juan Moreira (Leonardo Favio, 1973) com 2,5
milhões, El secreto de sus ojos e Martín Fierro (Leopoldo Torre Nilsson, 1968) com 2,4 milhões cada.
Ultimamente, surgiu uma espécie de “rumor” a partir de alguns trabalhos do historiador de cinema argentino
César Maranghello, quem afirma que Deshonra (Daniel Tinayre, 1952) encabeçaria essa lista com um
público de quatro milhões de pessoas. Entretanto, o número nunca foi oficialmente confirmado devido às
dificuldades em resgatar esse tipo de dado. Estas informações são do site Taquilla Nacional, coordenado por
Mariano Oliveros, que compila as informações sobre a bilheteria argentina a partir de vários outros
organismos oficiais como a base de dados do Ultracine, do INCAA e de revistas especializadas:
http://www.taquillanacional.com.ar/.
122
4
Aguilar traz à baila Peter Sloterdijk e seu livro Ira e tempo, no qual se fala do momento histórico de
esplendor da ira (o início da Ilíada) e de seu regresso na contemporaneidade contradizendo a natureza
123
instaura a violência como artigo banal pronto para ser usado e abusado em quaisquer
situações, fazendo da violência uma potência onipresente que atravessa o filme e que é
o que realmente une cada capítulo.
Aguilar também se dedica a desconstruir a importância que a crítica atribuiu
ao poder catártico que teria a obra: se em nenhum dos relatos há satisfação, se quase
nenhum protagonista sai incólume, onde estaria a catarse? “Parece, na verdade, que a
referência aqui não é a Poética, de Aristóteles, mas sim que o termo é utilizado no
sentido de descarga, de raiva acumulada”, conclui o pesquisador (2015b, 194). Na
esteira de Aguilar, interpreto que a catarse não se dá, primeiro, porque o espectador é
mantido irrevogavelmente em posição confortável, não precisando sujar as mãos em
nenhum momento – ele é, indefectivelmente, um espectador, e os selvagens são os
outros. Ninguém quer realmente se identificar com um selvagem, e o filme cuida para
manter essa distância através da presença de algumas estranhas tomadas subjetivas:
visões a partir de um armário no restaurante, onde há veneno para ratos; do
compartimento de bagagens no avião; do porta-malas em que se depositam alguns
explosivos; de dentro de um caixa eletrônico e de um bueiro. Só um espectador, alguém
completamente alheio à diegese, poderia ter esse ponto de vista – oculto, protegido,
resguardado, apenas se assiste às barbaridades desse outro mundo com total imunidade.
Em segundo lugar, a selvageria exposta termina por... não ser tão selvagem
assim, ao estar invariavelmente disposta a ser infiltrada pelo humor – ainda que se trate
de um humor negro. Por um lado, apresenta-se a degringolada das relações e, quando se
está suficientemente próximo de um rompimento sem salvação, o filme recua e, através
do riso, tira seriedade do que até então era muito sério. Não há catarse porque, na
verdade, não se exploram realmente as paixões humanas mais baixas, como concluiu a
crítica – já que nunca terminam de entrar em campo as tais paixões humanas mais
baixas. Gustavo Gros (2014) expõe essa consideração metaforicamente, ao afirmar que
o cineasta “joga a pedra e esconde covardemente a mão”. Segundo ele, “o longa em si
não é uma comédia, mas se disfarça de comédia cada vez que a tragédia fica muito
(mal) exposta”.
racional do homem. “Desde que a psique grega transformou as virtudes heroico-guerreiras, afirma
Sloterdijk, em qualidades cidadã-burguesas, a ira foi desaparecendo paulatinamente da lista dos carismas.
Mas a ira retornou e se apresenta como um imenso capital que as ideias ou a vontade política nem sempre
podem administrar” (AGUILAR, 2015b, p. 195).
124
125
5
Além da ligação que quase se estabelece entre Leandro e Vanesa, o filme traz mais um lampejo de relação
afetiva que, igualmente, termina abortada: o affaire entre Arturo e a senhora mística que é aluna de sua
esposa.
126
àquilo que os cerca que tudo ao redor acaba sendo desfocado. A turbidez provocada cria
uma nebulosa que envolve as figuras em primeiro plano, fazendo com que a cidade,
mesmo sem aparecer de maneira nítida, atue continuamente sobre os personagens,
rodeando-os e os pressionando.
Na passagem de Leandro do alto do prédio à rua, em um jump cut, se soma
ao ruído agudo descrito no segundo capítulo uma música new age, interrompida por um
riff de guitarras sujas – interrompido, por sua vez, por um brusco silêncio. A
apresentação sonora caótica do rapaz se conecta com sua personalidade tumultuada: ele
é o único dentre o elenco coral que não se contém nem um pouco, indo e vindo e
fazendo o que lhe dá na telha; desalinhado, esquálido, com manchas de tinta pelo corpo,
debaixo das unhas, de cabeleira desgrenhada, vestindo jaqueta de couro apesar do (ao
que tudo indica) calor.
Ainda no terraço, nota-se sua palidez, e o excessivo brilho do sol (redobrado
pela membrana asfáltica prateada que impermeabiliza a laje) colabora para o forte
contraste da pele com os cabelos e as roupas pretas. Tanto sua caracterização quanto sua
atitude sombria e ingovernável (entre o entorpecimento pela droga e a indiferença pelas
pessoas e pelo ambiente) fazem que Leandro se pareça a um zumbi à deriva nessa
cidade turva – se seguimos o estereótipo popular e corrente do zumbi como um morto-
vivo que se dedica a perambular e a agir de forma estranha e instintiva, em estado
catatônico. Plasticamente, essa impressão vai se consagrar quando ele aparece com a
cara destroçada.
Romina, com quem Leandro transa no terraço, compartilha com ele o
vestuário escuro que combina com as melenas e contrasta com a pele branca – o que,
articulado com a obsessão da garota pelo rapaz (que a faz persegui-lo cegamente
durante todo o filme), a identifica como outro zumbi. Ademais, de diferentes formas,
mesmo nos personagens que não adotam esse figurino há algo de sorumbático: na
aparência enfermiça de Sandra e em seu desgoverno; no aturdimento concupiscente em
que se encontra Luis; na letargia com que Vanesa segue sua vida; na assombração que
Irene representa dentro de sua própria casa.
Se o valium ajuda Irene a manter sua condição zumbi e o ecstasy faz o mesmo
por Leandro, Arturo é amparado pela voz sonambúlica dos CDs de relaxamento que escuta
127
6
Para Carolina Figueiredo (2008 apud Souza, 2014), um fator importante que ajudou a confundir distopia
enquanto subgênero da ficção científica reside na questão da ficcionalização da ciência, característica usada
pelo mercado editorial na trajetória de catalogação das distopias. Para informações sobre as relações entre
utopia, distopia e ficção científica, ver Baldessin (2006).
128
129
8
Destaco mais especificamente o quadro Cristo carregando a cruz (c. 1500) que, quase que totalmente
preenchido por rostos muito próximos uns dos outros, é descrito por Elvio Antônio Rossi (s/d) como “(...)
um verdadeiro estudo de expressões faciais humanas e de semblantes demoníacos; uma multidão de faces
caricaturais, disformes e contorcidas”. Para o autor, esta pintura revela como Bosch mostra de forma
admirável o abjeto, a maldade e a brutalidade através do uso da distorção e da expressão facial.
130
131
amplia (o que acontece apenas em espaços abertos), é para esmagar as pessoas nas ruas
babélicas ou para mergulhá-las em uma massa disforme produzida pelo desenfoque.
As residências e os recintos fechados (como a galeria, com a loja de
celulares e a fabriqueta de ecstasy disfarçada de lan house) são apenas lugares de
passagem, sendo que a trama se move a partir das ações nas ruas, parques e outros
espaços abertos que, quando não estão recortados, lotados ou desfocados, são cenários
abandonados que parecem terra de ninguém – como a parte externa do hospital onde
Sandra ameaça deixar seu bebê, o estacionamento do cassino (cheio de carros mas sem
qualquer indício de gente) ou a entrada da rodoviária. O parque escapa um pouco dessa
caracterização e promete ser um lugar de amor devido à sinergia que se constrói entre
Leandro e Vanesa – promessa que dura pouco frente à atuação impertinente de Luis e
que se quebra de vez quando o beijo, uma expressão de carinho, se transforma em uma
mordida forte e irrefreável.
A rodoviária, o aeroporto e o cassino, apesar de não serem propriamente
habitados pelos personagens, configuram-se como pontos de partida de acontecimentos-
chaves relacionados a Arturo. Locais como esses, nos quais sempre se está de passagem,
são denominados por Marc Augé (1994) como não-lugares: caracterizados pela
ausência de identidade, significado e referência histórica, opõem-se aos lugares
antropológicos que remetem à região e à tradição e são identitários, relacionais e
históricos. Sob tal perspectiva, o autor elenca os não-lugares como espaços de
circulação (estações de trem, rodoviárias, aeroportos, autoestradas, lojas de
conveniência em postos de gasolina), de consumo (super e hipermercados, cadeias
hoteleiras, shopping centers, cassinos) e os espaços de comunicação global e em rede
(telas, ciberespaço, redes sem fio como as de internet móvel e de telefonia celular).
132
133
do filme essa cena vira antecipação da pancadaria que o homem irá desatar contra o
próprio filho (e, em menor medida, contra a esposa).
Aguilar ainda analisa como os táxis são um emblema dos contratos
transitórios que sempre estão a ponto de se romper. Se, para Augé, “os lugares
antropológicos criam social orgânico, os não-lugares criam tensão solitária” (1994, p.
87), nos táxis, sugere o pesquisador argentino, não há organicidade social nem tensão
solitária. Essa vacilação é evidente nas relações situadas no táxi de Arturo – não
obstante, ela não se restringe a esse espaço e contamina todos os contatos do filme.
É possível, nesse sentido, aplicar a La sangre brota o que Aguilar infere
sobre algumas obras que se baseiam no conceito de nomadismo proposto por ele, como
Vida en Falcon e Pizza, birra, faso: “pode haver contratos, como quer Augé, mas
sempre sob suspeita; podem parecer orgânicos, mas esta organicidade sempre resulta
ilusória” (2006, p. 44). O nomadismo de Aguilar, inclusive, se realiza de maneira plena
no longa de Fendrik: a casa, espaço de configuração identitária, evidencia uma
deterioração em sua função acolhedora e mentora, aparecendo como um local do qual
todos desejam escapar. Ramiro se mudou não apenas da residência, mas do país;
Leandro e Arturo, nos poucos minutos que a ocupam, necessitam colocar a cabeça para
fora das janelas e respirar profundamente como se estivessem sufocados. Irene é a única
que aí permanece, o que se justifica por sua atitude hostil que parece mimetizar o
espírito repulsivo desse lugar-não-lugar. O taxista tampouco consegue ficar na morada
zen de sua amante, da qual sai tão descontente como dos outros locais (muito) menos
amigáveis que frequenta.
Entretanto, Ramiro quer voltar dos Estados Unidos. Arturo e Leandro, após
o choque entre ambos, terminam “juntos” na cozinha da casa. Se o espaço privado é
desconfortável, o espaço público tampouco é receptivo – vide a pressão que os
personagens encontram ao ocupá-lo, esmagados ou entre a multidão, ou na abstrusa
imagem desfocada, como já expus. A situação em que se encontram é um cruzamento
entre as problemáticas particulares e familiares com as questões sociais, que se
retroalimentam e se intensificam.
Outra demonstração exemplar dessa condição se dá na única sequência em
que a câmera não acompanha Arturo ao interior do táxi, observando-os de fora. Em um
ligeiro contraplongée, vemos o homem dirigindo, vestindo um colete de lã que tenta
134
10
O corpus inicial da pesquisa de Eduardo é formado pelos filmes Carlota Joaquina (Carla Camurati,
1995); Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1996); Dezesseis zero sessenta (1996) e Mater Dei (2000), de
Vinicius Mainardi; Anahy de las Misiones (Sérgio Silva, 1997); Os matadores (1997), Ação entre amigos
(1998) e O invasor, de Beto Brant; Kenoma (Eliane Caffé, 1998); Cronicamente inviável (Sérgio Bianchi,
2000); Estorvo (Ruy Guerra, 2000); Bicho de sete cabeças (Laís Bodanzki, 2001); Latitude zero (Toni
Venturi, 2001); Cidade de Deus (Fernando Meireles e Kátia Lund, 2002); Dois perdidos numa noite suja
(José Joffily, 2002); Durval Discos (Anna Muylaert, 2002) e O príncipe (Ugo Giorgetti, 2002).
135
136
137
11
Ou seja, uma visibilidade que se dá a partir de estereótipos que pouco elucidam quanto a sua
complexidade e atuam como uma sinédoque.
12
“A encenação da situação das periferias como abcesso de fixação da insegurança para a qual colaboram o
poder público, as mídias e uma grande parte da opinião, é de alguma forma o retorno das classes perigosas,
isto é, a cristalização em grupos particulares, situados às margens, de tudo o que uma sociedade traz de
ameaças. O proletariado industrial desempenhou este papel no século XIX: classes trabalhadoras, classes
perigosas. É que naquela época, mesmo trabalhando, na maioria da vezes, não estavam inscritos nas formas
estáveis do emprego. Eles importavam às periferias das cidades industriais uma cultura de origem rural
descontextualizada, percebida pelos urbanos como uma incultura, viviam na precariedade permanente do
trabalho e do hábitat, condições pouco propícias para estabelecer relações familiares estáveis e desenvolver
costumes respeitáveis. (...) Será que a fórmula não poderia aplicar-se às populações das periferias de hoje, ou
pelo menos à imagem que delas construímos?” (CASTEL, 2005, p. 55-56, destacados no original).
138
13
Também explode um interesse por outras práticas culturais vindas das margens, como o hip hop, o
grafite e a moda. O mesmo acontece no Brasil contemporâneo: para Bentes, “os filmes brasileiros que
falam da favela refletem um momento de fascínio por esse ‘outro social’, em que os discursos dos
marginalizados começam a ganhar um lugar no mercado: na literatura, na música (funk, hip hop);
discursos que refletem o cotidiano de favelados, desempregados, presidiários, subempregados, drogados,
uma marginalidade ‘difusa’ que ascendeu à mídia de forma ambígua. Pobreza e violência que
conquistaram um lugar no mercado como temas de um presente urgente” (2007, p. 248).
139
14
A expressão surge em oposição à estética da fome proposta por Glauber Rocha em 1965, que analisava
uma forma de expor a miséria. Em poucas palavras, segundo o cineasta, os filmes tinham de agredir a
percepção para refletir a violência social.
15
“O caráter europeu de Buenos Aires chegou a assumir a estatura de um mito. Pedra de toque na convicção
acerca da excepcionalidade dessa cidade no contexto latino-americano ou consigna para repudiar seu
manifesto desinteresse pelo país e o continente que deixa ‘a suas costas’, o caráter europeu de Buenos Aires
havia ficado, até há pouco tempo, preservado nas principais representações da cidade, como se fosse um
dado da realidade cuja evidência urbana, histórica ou cultural não merecesse discussão” (GORELIK, 2004,
p. 71).
140
Ouro do cinema argentino16 (o bairro é o refúgio do qual não se deve sair para não
correr o risco de cair nas tentações morais que se oferecem no centro da grande cidade)
à necessidade de escapar desse lugar miserável e sujo. Tal combinação (um tanto
contraditória) descortina os obstáculos de representar um espaço urbano que o cinema,
até então, havia dispensado. Nota-se a invisibilidade dessa parte da cidade através do
depoimento de uma das personagens, Amalia, a médica boa-vida que deixa tudo para
morar e trabalhar na favela: “meus olhos não conheciam essa pobreza, e há muitos olhos
que ainda não a conhecem” (FONTANA, 2013). Apesar da intenção de denúncia, esta
termina preterida em favor do melodrama.
Como conta Aguilar (2015a), após a queda do peronismo, em 1955,
realizaram-se os primeiros censos, nasceu a Comissão Nacional da Vivenda e surgiram os
primeiros agrupamentos políticos e comunitários das favelas. Em 1958, dois filmes que
tematizavam a vida nesses espaços foram estreados: El secuestrador (Leopoldo Torre
Nilsson) e Detrás de un largo muro (Lucas Demare),17 além de El candidato (Fernando
Ayala), do ano seguinte. Também apareceram jovens diretores que, nos seus curtas-
metragens documentais, utilizaram as favelas como assunto privilegiado: Buenos
Aires (David José Kohon, 1958) e o emblemático Tire dié (Fernando Birri, 1960). Todos
eles – realizados em um período democrático e eufórico pelo desenvolvimentismo –
visibilizavam as consequências negativas da modernização urbana, tratando (ainda que de
maneiras diversas) do problema da “cidade partida”. Javier Auyero (2007) escreve que,
além de servir como exemplo do malogro da “modernização excludente”18 nos anos 1950
e 1960, a favela também foi vista como lugar de ebulição da revolução na década de 1970
e berço da subversão durante a última ditadura – interpretações que apareciam
especialmente em documentários políticos e militantes, talvez os únicos interessados em
retratar esses locais.
Ausente tanto do cinema feito durante a redemocratização quanto dos
inícios do nuevo cine, a imagem da favela sofreu um turning point com a crise de 2001.
16
Na Argentina, o cinema clássico-industrial se estendeu de 1933 (momento em que irrompe a sonorização
óptica dos filmes) até meados da década de 1950, contexto no qual se materializa a desarticulação do
sistema de estúdios e se reformulam as práticas de produção e exibição.
17
O filme de Demare é o primeiro a incorporar o termo villa miseria a seus diálogos. O termo técnico villa
de emergencia aparece em torno de 1955, e o mais popular villa miseria em 1958, no título do romance Villa
miseria también es América, de Bernardo Verbitsky.
18
Conceito de Gorelik (2004) para problematizar a coexistência e correlação entre os distintos modelos de
cidade.
141
19
A Patagonik é uma produtora cinematográfica argentina que faz parte do conglomerado integrado por
Buena Vista International (divisão de The Walt Disney Company dedicada à distribuição de longas-
metragens dos selos Walt Disney Pictures, Touchstone Pictures, Hollywood Pictures, Miramax Pictures e da
mesma Patagonik), Cinecolor Argentina (empresa de pós-produção e laboratório audiovisual), Pol-ka
Producciones (produtora de ficções para televisão) e Artear Argentina (empresa audiovisual do grupo Clarín
e proprietária do Canal 13, líder em audiência na tevê aberta do país).
142
143
por entre os andares e os ambientes mais escuros se revezam com uma profusão de
luzes amarelas, verdes ou azuis que dão vida ao que se intui como esquecido, assim
como as vozes e a música que conformam a paisagem sonora. A extensa profundidade
de campo, desta vez, mostra as formas em que se inventam maneiras diferentes de
habitar, onde fronteiras entre casa, casa do outro e espaço em comum se dissolvem, e as
esferas da vida privada e da vida pública se confundem. Em um lugar de livre acesso, o
que confere domesticidade não são paredes e tetos rijos, mas gestos prosaicos de
apropriação e de delimitação de territórios – gestos que, igualmente, moldam novas e
distintas formas de sociabilidade, sendo possível notar não apenas o que falta, mas o que
possibilita. A obra que se faz no local, preferida à partida e à erradicação, como explica
Julián, é sinal da sensação de pertencimento mediada pela teia de afetos que se instala.
Assim como o Elefante branco é residencial nos andares mais baixos e antro
de criminalidade nos andares mais altos, todas as fronteiras na favela são confusas – e,
muitas vezes, determinadas pela violência. A igreja, por exemplo, e sua aura inviolável
e protetora, é invadida tanto pela água das chuvas quanto pela polícia que procura por
Monito; tampouco é sólida a ponto de sustentar as crenças dos padres em conflito, além
de conter um agente infiltrado em seu seio. Julián interrompe o livre trânsito que
caracteriza o Elefante branco ao barrar a entrada da polícia, ao mesmo tempo em que
barra a entrada de outros moradores. As invasões das forças de segurança – seja para
prender um traficante, seja para dispersar uma manifestação – provocam o mesmo
corre-corre sem direção que o tiroteio entre gangues.
Os limites que os padres argentinos consideram invioláveis são
ultrapassados por Nicolás que não discrimina o espaço da favela tomado pelo
narcotráfico. Enquanto a Igreja e Luciana não falam com a favela como um todo,
afastando-se dessa região, ele é o único que se aventura por ela e, ali, consegue
negociar, mostrando que há chance para diálogo até entre as camadas mais violentas: há
excesso, mas não é o lugar da barbárie absoluta (a propósito, a liderança da área é
ocupada por uma mulher indígena, um dos setores mais discriminados e fragilizados da
sociedade argentina). A Igreja também se comporta de forma violenta, ao ignorar
conscientemente e não negociar de forma alguma com essa parcela da população da
villa que são as quadrilhas, desejando, simplesmente, a extirpação desse setor em um
contexto que apresenta tantas variáveis.
144
145
desconhecida que permite que ninguém tenha de se responsabilizar pelas palavras ditas
e pelos planos feitos. Esse afastamento é selado em outra reunião, na qual se trata da
invasão, pelos moradores, do terreno em obras – ocasião em que também se dá uma
ruptura na atitude de Julián.
Julián incorpora uma figura emblemática tanto para a Igreja quanto para a
memória popular villera que é o padre Carlos Mugica, quem, segundo Hugo Vezzetti
(2013), proporcionou, para a consciência histórica argentina, o paradigma do cura
villero. Sua evocação não se dá apenas através de Julián, mas de sua permanência na
“realidade” por meio de retratos, placas, citações, seu túmulo e da dedicatória ao fim do
filme. Além de célebre padre terceiro-mundista, Mugica foi militante político e se
envolveu nas lutas internas do movimento peronista, sendo assassinado em 1974 em um
crime ainda não resolvido (como lembra a dedicatória).21 Sua maneira de se definir
(clara e publicamente) como socialista, revolucionário e inimigo dos interesses
oligárquicos também deteriorava sua relação com a cúpula eclesial, à qual estavam
ligados não só os tais interesses oligárquicos, mas os políticos.
Ainda que, durante a celebração de ordenação de um novo padre, o rosto de
Julián fique lado a lado com a bandeira que estampa o rosto de Mugica (também
celebrado pelo aniversário de seu óbito), ocupando com ela toda a imagem que tem
apenas o céu ao fundo, o que aproxima os homens em suas santidades, a “encarnação”
do segundo no primeiro tem algumas inflexões, dadas as diferenças tanto em suas vidas
quanto em suas mortes. Julián está acostumado a trabalhar nas condições mais duras,
convencido da eficácia de seu trabalho, transitando na caridade cristã apesar de, como
exposto anteriormente, exercer um labor mais social que pastoral. Ao contrário de
Mugica, Julián não assume a militância que “extrai sua razão de ser do político
entendido como uma forma de organização para disputar espaços de poder e que se
caracteriza pela intervenção de formas coletivas em um território”, como nota Nahuel
Montes (2012, p. 02), mas coloca seu corpo solitariamente na aglomeração da villa (o
21
Como explica Vezzetti, Mugica não foi assassinado pela ditadura (morreu dois anos antes que esta se
instaurasse), e em seu cadáver se condensava o que alguns historiadores chamaram de “guerra civil” entre
peronistas. “Mugica havia se enfrentado publicamente com José López Rega, Ministro do Bem-Estar Social,
secretário privado de Perón e criador da Triple A, um grupo parapolicial ilegal dedicado a assassinar
membros, sobretudo líderes, do peronismo montonero. Entretanto, o padre Mugica também havia se
enfrentado com os Montoneros, a organização guerrilheira que se proclamava peronista ‘autêntica’ e
afrontava Perón” (2014, p. 185). Assim, Mugica terminou, como situaram seus mais relevantes biógrafos,
entre dois fogos. Inicialmente se pensou que os responsáveis por sua morte haviam sido os Montoneros; hoje
as maiores evidências recaem sobre a Triple A.
146
147
violência de hoje na favela, participa dela, da mesma forma que Nicolás participava ao
tratar com os traficantes. Entre dois fogos como seu mentor, Julián se coloca no campo
de batalha da polícia e dos traficantes, uma rotina para os villeros, e assim não morre
por eles, nem vive para eles, mas vive com eles e morre como eles.
Se, em Elefante branco, Trapero parece render-se à sua fascinação pelas
causas perdidas, pela fatalidade, pela cotidianidade sórdida, pela violência que se
ramifica, pelos caminhos que não levam a nada, ele também se rende à sua frequente
constatação de que “entre mortos e feridos, todos se salvaram”. Nem todos, é certo, e,
aqui, nada menos do que um dos protagonistas é ceifado pela morte – além de tudo, uma
morte sem sentido, como é a maioria das mortes na favela. Não há propriamente um
mártir morrendo, já que o martírio é moeda corrente.
A ideia (cristã) de sacrifício ao redor do ato de Julián é desconstruída não
apenas porque ninguém termina como um mártir nesse universo, mas porque todos
podem terminar como um. Há dois planos que ligam o padre a Jesus Cristo devido ao
mesmo posicionamento da câmera: em sua primeira aparição, quando faz o exame, seu
rosto invertido é captado em plongée total, como a pequena escultura prateada do
Cristo, também invertida, que adorna o caixão de Cruz. Entretanto, justo antes que a
tampa com a escultura entre em quadro, aparece o rosto de Cruz – nome não menos
sugestivo – na mesma posição, pelo mesmo ângulo. Quando se descobre o cadáver
deste, ele também invoca a iconografia cristã, posicionado qual Cristo em pietà, com
uma pilha de resíduos do Elefante branco substituindo a Virgem Maria. O mesmo se dá
com o corpo de Mario, que Nicolás vai buscar na zona inimiga, transportado em uma
carriola com os braços abertos e a cabeça ligeiramente tombada, como Jesus crucificado
– e, depois, deitado sobre uma mesa, remetendo às diversas pinturas sobre o corpo do
Cristo morto como as de Andrea Mantegna (c. 1475), Hans Holbein (1521) e Philippe
de Champaigne (c. 1650).
Como caracteriza Wolf (2009) a respeito do destino de Julia em Leonera, há
uma fuga para adiante, e todos os personagens escolhem sobreviver e lutam por isso,
apesar dos pesares. Ainda que o fracasso pareça dado de antemão pela presença do
Elefante branco, o filme complexifica a questão fazendo da favela não apenas um lugar
de pobreza, de violência e de fiasco, mas de resistência, de amor e de luta. Contudo,
como explicava Julián em sua preleção, não é o mesmo espaço de luta preconizado pela
148
militância eclesiástica dos tempos de Mugica (coisa que ele mesmo vai realmente
entender apenas no final do filme).
Aguilar, ao contrário, considera que, junto à figura (desvirtuada, para ele) de
Mugica, o filme herda daquela época o legado do cinema militante, no qual “o único
olhar possível e desejado em relação com esse espaço de frustração e miséria é político
e o único modo em que os villeros podem se converter em sujeitos da narração é pela
política” (2015a, p. 202), o que faz com que a produção de Trapero caia em uma
contradição. Segundo o pesquisador, o filme multiplica estereótipos do cinema global
de miséria (a favela como um labirinto sem saída, o cura villero como personagem
altruísta e resignado, o padre jovem que cai em pecado, os garotos drogados, a
delinquência como única opção), mas, ao invés de criminalizar esse mundo, o politiza.
No entanto, a organização política e as manifestações não estão em primeiro
plano: primeiro, as relações se dão muito mais em um âmbito social que político (as
reuniões, as conversas, as festas, as cerimônias religiosas – tristes ou felizes) e, segundo,
a única manifestação planejada é a ocupação da obra, cuja importância está ligada,
antes, a demonstrar a negação ao diálogo e a truculência das autoridades (políticas e
religiosas) através da polícia, em mais uma ocasião em que a violência é o canal de
comunicação.23 Ademais, o tributo ao padre Mugica, uma figura dissidente em vários
sentidos, junto à representação patética e arrivista da hierarquia da Igreja, parece
apontar mais para a despolitização da ação católica que abandonou projetos efetivos de
mudança e de luta conjunta conforme propostos pela Teologia da Libertação seguida
por Mugica – assim como parece apontar para a despolitização de setores da esquerda e
criticar as maneiras como ambos, Igreja e esquerda, buscam converter (cada uma a seu
modo) os lugares marginalizados.24
Os moradores da villa de Elefante branco não são nem aspiram ser seres
políticos como demanda o cinema sessentista ou como analisa Aguilar, mas seres
23
Para pensar sobre essa sequência de Elefante branco, me parece interessante resgatar as considerações de
Sofía Tiscornia sobre o Estado militarizado e a penalização em massa dos pobres (especialmente jovens) por
sua condição instável e precariedade de existência nos filmes Tropa de Elite (José Padilha, 2007) e El
bonaerense: “(...) a falta de respeito pelos direitos civis está associada à necessidade de violência sobre o
corpo daqueles que, estereotipados como fracos e escassamente racionais – os pobres, os criminosos, as
mulheres, os adolescentes – devem experimentar a dor como forma de aprender obediência. A violência é
necessária como linguagem que qualquer um pode compreender” (2008, p. 13).
24
Essa concepção da (des)política está longe de ser aquela pregada pelo cinema militante dos 1960/1970 e
soa muito mais como um vestígio de um dos corroteiristas, Santiago Mitre – o polêmico e proeminente
diretor de El estudiante (2011), o já citado Los posibles e Paulina (La patota, 2015) – que, como se percebe
através de seus filmes, preocupa-se bastante com a dinamitação da política.
149
150
5. Em transe-to
151
1
La ciudad que huye (em tradução livre, A cidade que foge) foi realizado em 2006 para o projeto La ciudad
en ciernes (http://www.derechoalaciudad.org/index.htm), que reúne um conjunto de atuações pensadas para
chamar a atenção sobre como a cidade deve ser a materialização dos direitos humanos e como o urbanismo
que a organiza deve fundar-se em tal propósito. Enquanto a maioria das produções sobre condomínios
fechados que citei os apresentam a partir de uma visão interior (embora o mundo exterior seja onipresente),
o documentário de Martel assume o ponto de vista exterior. Nos diversos countries visitados, a segurança
não deixa a equipe de filmagem entrar, e as barreiras físicas também se convertem em uma “barreira” para o
filme. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1grtEpw0q9c.
152
153
Para Nelson Brissac Peixoto (1987), o homem que foge e que tenta se
esconder geralmente vai a uma grande cidade, território onde as pessoas podem se
ocultar. É justamente isso que Castro e sua amante Celia, quem o acompanha, fazem na
primeira sequência: tomam um trem em direção à capital. Ainda segundo Peixoto, a
estação de trem é outro espaço atraente à ideia da fuga – lugar cheio de gente apressada
ou apenas esperando, sem fazer nada, dispõe-se como uma espécie de terra de ninguém
em que qualquer tipo de atitude pode passar despercebido; onde é possível ficar sem ser
notado. Hotéis e congêneres são outros locais de trânsito por excelência, nos quais não
se coloca nada que seja para ficar, nada que marque nas paredes a presença de quem
“mora” lá, sendo caracterizados pela impessoalidade. Castro e Celia se hospedam em
uma pensão e não retiram nada de suas malas, seguindo o roteiro dos fugitivos.
Ademais, ouvimos constantemente a campainha do trem, sinalizando que estão alojados
perto de uma estação, prontos para uma nova partida.
De saída, o local não é identificado: nenhuma placa, nenhum lugar
emblemático. Essa cidade, como o indivíduo que se esconde, escapa à localização.
Contudo, enquanto nosso conhecimento sobre caça, caçadores e seus porquês sempre
ficam dissimulados, o espaço urbano vai sendo desvelado por meio da fala dos
personagens e de locais que não se constituem como ícones, mas são plenamente
reconhecíveis como elementos prosaicos das locações: em La Plata, os ônibus que se
dirigem a pontos cardeais; em Buenos Aires, a estação de trens de Constitución, as
saídas do metrô portenho, os táxis de cor preta e amarela, o bairro comercial do Once e
o estádio do Club Atlético Huracán.
Os personagens se movem especialmente pelo sul da Capital Federal
argentina, região mais antiga (e empobrecida) da cidade que concentra construções
154
3
Os passos irregulares do velho do quarto de cima são ruídos que a câmera sempre tenta mostrar, mas que
indefectivelmente ficam fora de campo, sendo o plano preenchido pelo teto inerte, sem alterações ou
respostas.
4
Leonardo Antunes Cunha recorda que “em seus primórdios, o cinema bebeu na fonte de diversas artes,
tanto visuais (como pintura e fotografia), quanto performáticas (o teatro, o circo, o ilusionismo) e narrativas
(a literatura, além do próprio teatro de viés dramático). O aspecto performático se configurou como uma das
principais inspirações e referências para alguns dos primeiros cineastas, que perceberam a possibilidade de
apresentar para o público diversas ‘atrações’, no mesmo sentido em que este público assistia, nos palcos e
nas feiras, a quadros de magia, ilusionismo, dança ou mesmo curtos esquetes teatrais. Mais do que narrar
uma história (mesmo porque os primeiros filmes eram muito curtos para estabelecer uma narrativa mais
estruturada), tratava-se de oferecer um espetáculo, uma atração” (2011, p. 75).
155
156
5
Agradeço à Danielle Crepaldi Carvalho a indicação desse material.
157
158
inaceitáveis na vida real e mesmo em outros gêneros, como sublinha Cunha seguindo a
Geoff King. “Este estilo de comédia deve muito aos desenhos animados, nos quais o
mundo pode ganhar uma plasticidade fantástica que pode derrubar, quando desejar, a
plausibilidade narrativa e também as leis da física” (KING, 2002 apud CUNHA, 2011, p.
149). Igualmente comum no burlesco é a tragédia que se filtra através da comicidade –
afinal, como lembra Aguilar (2014), o tropeço provoca tanto o riso quanto o
desassossego. A insistência das composições cômicas em Castro leva ao paroxismo:
amuando à medida que se sucedem, vão dando origem a uma melancolia difusa que se
materializa no plano final, literalmente um dead end.
Esses aspectos que se distinguem em Castro fazem com que Carolina Soria
(2015a) o localize como uma obra-chave para entender os fortes laços que se
estabeleceram recentemente entre o teatro e o cinema argentinos.7 A autora reconhece
que, entre as múltiplas e variadas relações entre essas linguagens artísticas, prevalece
uma constante intermidialidade, com o traslado de elementos narrativos e expressivos
do teatro que emerge nos anos 1990 (especificamente do teatro da desintegração)8 ao
cinema argentino contemporâneo. Entre esses elementos, Soria (2015b) se concentra em
quatro preceitos, os quais podem ser identificados no filme de Moguillansky:
1. A particular concepção da comunicação, que se afasta de uma forma tradicional
e realista na qual os diálogos são veículos de informação, caracterizando-se pela
desintegração da linguagem e pela perda da função referencial;
2. Desdobramento e dissolução dos personagens, que possuem motivações opacas. É
impossível reconstruir as personalidades dos mesmos e, consequentemente, reconhecer
7
Aguilar (2010) já destacara a aliança com outras artes (e com a história do cinema) como uma das
características mais salientes do que ele denominou cinema anômalo (ideia descrita brevemente no primeiro
capítulo). Para o autor, enquanto a primeira fase do nuevo cine apresentou, no geral, filmes com roteiros
originais e com uma autorreflexão sobre o meio e a mise en scène, na segunda etapa abundam os filmes
realizados em diálogo com a música contemporânea, a dança, as artes plásticas e a literatura em uma forma
peculiar que não pode ser denominada adaptação nem transposição (como acontece com Historias
extraordinarias e sua inspiração em Bioy Casares, R.L. Stevenson e Jack London, ou nos filmes de Matías
Piñeiro com Sarmiento e Shakespeare). No caso específico de Moguillansky, Aguilar enfatiza seu trabalho
no teatro e como seus filmes não podem ser entendidos sem a renovação que se produziu no teatro e na
dança argentinos nos últimos anos.
8
“Desde os anos 1990, Rafael Spregelburd, Federico León, Javier Daulte e Daniel Veronese têm regenerado
o teatro de Buenos Aires. Nessa década, com a implementação do mercado neoliberal sob o ex-presidente
Carlos Saúl Menem, quando se impôs a privatização de empresas e um fervor consumista, o teatro desses
dramaturgos reagiu demonstrando o sarcasmo e a vulnerabilidade da sociedade frente a essa nova regulação.
Uma gama desse movimento [foi] denominada por Osvaldo Pelletieri como teatro da desintegração (...)”
(HERNÁNDEZ, 2010, p. 01).
159
seus objetivos e prever suas reações – eles não contam com uma pré-história e uma
psicologia que possibilitem entender seus devires na trama. “O autor nega o oferecimento
de marcas contextuais que permitam localizar a ação a partir de determinado lugar de
justificativa e compreensão. Neste sentido, são personagens planos que vivem o tempo
presente à maneira de um instante” (IRAZÁBAL, 2003 apud SORIA, 2015b, p. 48);
3. A multiplicação de sentidos e o papel ativo do espectador que se desprendem da
ambiguidade da mensagem estética e de seu caráter autorreflexivo;
4. Fragmentação e narrações episódicas, ausência de causalidade lógica,
privilégio da imagem e da experiência sobre o relato. Este preceito está diretamente
relacionado com o primeiro e consiste da construção de tramas inverossímeis que se
caracterizam por apresentar um universo com outra lógica e coerência e transgredir os
princípios aristotélicos.
Ante essa estética dominada pela dispersão, pela imprevisibilidade e pela
desagregação, Soria resgata a afirmação de Martín Rodríguez de que o teatro da
desintegração desponta no campo teatral argentino “como a continuidade estética-
ideológica do absurdo – poética da qual incorpora o abstrato da linguagem cênica e a
crise do personagem como ente psicológico” (RODRÍGUEZ, 2000 apud SORIA,
2015b, p. 47).
O termo teatro do absurdo foi cunhado por Martin Esslin (1961), a fim de
agrupar, sob o mesmo conceito, obras de diversos dramaturgos que tratavam a realidade
de forma inusitada, utilizando elementos chocantes do ilógico (entre eles fragmentação,
repetição e ininteligibilidade), com o objetivo de mostrar a falta de soluções a que estão
fadados o homem e a sociedade e enfatizando o absurdo da existência humana como
reação artística à Segunda Guerra Mundial (GIROLA, 2011).
160
161
Enquanto Castro acredita que o trabalho será o fim do amor, Celia insiste
que será o começo. Rebeca Thompson parece ter opinião semelhante à de sua rival:
quando Samuel diz que teve a impressão de que ia começar a morrer, ela lhe devolve
que “começou, já parece um aposentado”. Há um embaralhamento entre o trabalho e a
vida – o emprego é condição necessária para o amor; o aposentado é alguém que não
trabalha mais, então já estaria pronto para morrer.
Tal comunhão faz com que em Castro não exista a noite, só dias
apressados nos quais nunca ninguém está parado, nem sentado, nem deitado, nem
deambulando: a inatividade, o tempo morto e improdutivo são inexistentes. O sono –
como aventado por Jonathan Crary (2014), única fronteira não dominada pela lógica
da mercadoria9 – está presente de soslaio, já que só é possível dormir sobre os degraus
de uma escada (como Acuña), de frente a uma parede (como Samuel) ou dentro do
guarda-roupa (como Castro).
O obstinado e inexplicável acosso a Castro poderia ser lido como uma
tentativa de introduzi-lo e cooptá-lo a essa concepção da existência (sendo que, no
filme, o trabalho e a perseguição estão vinculados a um mesmo princípio: os rápidos
deslocamentos pela cidade). Entretanto, essa busca também se comprova
definitivamente infrutífera e desprovida de sentido através do diálogo entre Wylie e
Rebeca Thompson: “até não encontrarmos Castro não há nada para fazer, mas quando
o encontrarmos...”, diz o discípulo de Samuel, interrompido pela mulher que completa
a frase afirmando que “vai ter menos ainda para fazer – se Castro não pode fazer nada,
é um inútil”.
Em meio a todo esse nonsense, nada faz mais sentido que Castro e sua
opinião de que “ganhar a vida é o mesmo que desperdiçá-la”. O absurdo, em Castro,
não é outra coisa que o absurdo da cotidianidade; a trivialidade daquelas ações mínimas
da vida diária que não conduzem ou parecem não conduzir a lugar nenhum, mas que são
o motor de um devir inexorável (SORIA, 2015a). O amálgama de épocas que se imprime
visualmente, a trilha sonora hipersincronizada, a proliferação de uma porção de elementos
9
No ensaio 24/7. Capitalismo tardio e fins do sono, Crary recorre tanto à cultura popular quanto a
estratégias militares para mostrar o surgimento de uma cultura na qual a economia força tudo a funcionar 24
horas por dia – uma lógica que vê o sono e o descanso humanos como empecilhos. Para o autor, é uma fonte
de otimismo o fato de que exista um intervalo crucial do tempo que é impossível de ser conquistado pela
força da monetarização e da mercantilização. A necessidade de sono não deixa perder de vista a natureza
cíclica e frágil dos seres vivos dentro de uma sociedade que exige, cada vez mais, que se esteja ligado,
operante, conectado, útil, ativo. Em Castro, o sono vive um tempo crepuscular.
162
insólitos que lindam com o excêntrico (de construções verbais sem sentido a efeitos sem
causa aparente, passando por vários outros já elencados): nada disso faz parte de uma
cidade fantástica, mas da vida urbana contemporânea.
10
Em diversas entrevistas, Fendrik comenta que já estava em contato com o ator Arturo Goetz por conta de
La sangre brota, antes de lhe propor a realização de El asaltante. De qualquer forma, me parece interessante
pensar que essa escolha não foi tão fortuita e que a trajetória de Goetz pode se configurar como algo bastante
operativo para a constituição de seu personagem: até esse momento, Goetz só havia incorporado papéis de
médico (La niña santa, Lucrecia Martel, 2004), advogado (Derecho de familia), pai preocupado (Una novia
errante, Ana Katz, 2006), escrivão (El otro, Ariel Rotter, 2007) – enfim, ele ocupava o lugar de senhor
distinto e gentil por excelência do cinema argentino. Além disso, Goetz começou a estudar atuação quando
já tinha 50 anos, tendo sido um reconhecido economista que se formou em Oxford, trabalhou no escritório
das Nações Unidas na Suíça, capitaneou equipes de polo e foi assessor do presidente Raúl Ricardo Alfonsín
(1983-1989).
163
164
165
desfalece diante de sua intimidação – e ele, outra vez, se converte no fugitivo que dá
voltas atordoantes de táxi... até abrir mão da fuga e retornar para resgatá-la.
Após a recuperação da moça (levada à mesma farmácia na qual foi comprada
a pomada para queimadura), ambos se sentam silenciosos no parque, lugar de refúgio já
frequentado pelo protagonista. Ali, onde anteriormente aflorara outra dimensão do
assaltante, sua composição sofre mais um giro: confessa à garçonete que o revólver era de
brinquedo, deixa-se ser derrubado e maltratado por ela, fica no chão sujo e se suja,
caminha resignado e com o cabelo desgrenhado. Em um último ato de cumplicidade, a
câmera se aproxima dele em sua tentativa de se reorganizar fisicamente (limpa a roupa,
confere seu aspecto no reflexo de uma vitrine), para depois vê-lo apenas de longe. Ele não
é mais perseguido, percorre a cidade lentamente, mas a distância com a qual é captado
reabilita os ares de desamparo que ameaçaram instalar-se na primeira tomada.
Quando o homem adentra um edifício, a câmera volta a escoltá-lo. Os
diálogos e as vestimentas indicam que se trata, novamente, de uma escola: porém, ao
invés das camisas com brasões e saias de prega, os típicos guarda-pós das escolas
públicas argentinas. Ao invés das conversas amáveis que se estabelecem com as
clientelas, uma exaltada reclamação sobre as condições de higiene do local. Ao invés
das paredes forradas de fotos e de troféus em armários envidraçados, paredes
desbotadas e remendadas. Reconhecido como Ramos, logo se percebe que o
protagonista chegou a seu território.
O inesperado destino (ou origem?) do personagem redesenha seu conjunto de
ações, mas a indeterminação narrativa é mantida: nunca se descobre se a incorporação do
assaltante pelo professor é algo corrente ou inédito, se ele conhece os esconderijos de
dinheiro de antemão ou como sabe os nomes de pais de alunos dos colégios particulares,
se é uma conduta a la Robin Hood para suprir as dificuldades da escola pública que dirige
ou se é para engordar a própria poupança.
A dubiedade desse último item é especialmente significativa, ao permitir que
nunca se termine de construir o protagonista como um herói ou um vilão – mesmo que
não me refira a esses termos de maneira ortodoxa. A tríade Williams/Schultz/Ramos se
equilibra não apenas entre o professor e o assaltante, mas essa ambiguidade se prolonga já
166
Antes [no cinema brasileiro das décadas de 1950, 1960 e 1970] havia
uma tendência não só para dramatizar a experiência do bandido, mas
também para entender sua ação dentro do modelo do bandido social
(Hobsbawm): marca de sua condição de vingador, justiceiro que,
mesmo ineficiente, limitado em sua consciência dos mecanismos de
dominação de classe, tinha sua carreira de violência entendida como
algo que encontrava suas afinidades com a ação revolucionária de
contestação mais consequente da ordem. No limite, era um potencial
agente histórico transformador (...) (XAVIER, 2000, p. 113).
11
Segundo a interpretação de Eric Hobsbawm, quem analisa o fenômeno do banditismo social como uma
forma de resistência camponesa que seria uma versão primitiva de protesto social organizado, fruto das
injustiças sociais da ausência do Estado (FERRERAS, 2003).
12
Como assinala Daniela Gillone, as figuras marginais estão representadas em um conjunto de filmes
produzidos durante os ciclos e movimentos mais capitulares do cinema da América Latina: “A
marginalidade heroica das revoluções e dos acontecimentos políticos do início do século XX, passando
pelos movimentos indígenas e pelas repressões dos latifundiários no campo e da ditadura militar nas cidades,
foi tematizada conforme a proposta política de determinados momentos do cinema. Durante o período
clássico-industrial e no cinema de resistência da década de 1960, os filmes ressignificaram em versões
romântica e revolucionária a representação das revoltas dos heróis bandoleiros: o Lampião no Brasil, o
Pancho Villa no México e o gaucho desbravador de fronteiras na Argentina – e ainda temos a configuração
de outras personagens marginais em outras cinematografias, tal como o cacique Tupac Amaru e as
associações de sua imagem ao conflito armado no cinema peruano. Esses heróis bandoleiros que fizeram a
história do início do século anterior influenciaram na maneira de se pensar o contexto de dominação e
colonização pelo cinema produzido durante as ditaduras militares. Essa associação da marginalidade à
política do cinema suscitaria uma avaliação de filmes cujos conteúdos são elaborados com estratégias
desenvolvidas por seus diretores no plano político” (GILLONE, s/d).
167
168
169
acessamos as poucas pistas que temos, além de contar, por si só, essa trajetória abalada
pelo dia a dia: do irreprochável senhor de terno, passando pelo nervoso – mas isento de
qualquer suspeita sob seu conjunto novinho – esportista, terminamos na companhia do
professor calado e impotente, dono de gestos cansados e lânguidos, de camiseta suada e
amassada, atravessado pelo desmantelamento de seu corpo.
13
Na verdade, trata-se de água quente para o chá, como já comentei.
14
Produzido no marco do projeto 25 miradas – 200 minutos, que reuniu 25 curtas-metragens de renomados
cineastas argentinos em comemoração ao Bicentenário da Independência. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=VXSXwluolBk. Neste canal é possível ver, também, os outros curtas da
coletânea.
170
171
1
Agradeço a Reinaldo Cardenuto o acesso a esse material, e a Marília Goulart por possibilitar esse contato.
2
Ver os textos de Cléber Eduardo (2016a, 2016b) e de Francis Vogner dos Reis (2016), no catálogo da
mostra, que fazem um percurso histórico da questão do espaço no cinema brasileiro.
172
173
até os tradicionais espaços de refúgio como poderiam ser o campo ou a casa – nos
filmes que abordei, por exemplo, nenhum se aproxima do sedentarismo, conforme
proposto por Aguilar (2006), ou do espaço doméstico como lugar de reconstrução,
conforme Andermann (2015).
Pablo Fendrik, o cineasta da violência e da entropia segundo Bernades
(2009b), trabalhou essa ruptura de maneira frontal, expondo o desespero e o sangue de
personagens desolados e perdidos que não têm para onde nem para quem apelar,
lançando-se em reações tão desmanteladoras quanto inevitáveis: a invasão e despojo de
um espaço alheio em El asaltante (estimulado por um despojo mais profundo no espaço
comum?), a opressão e rispidez que borbulham em todos os cantos em La sangre brota.
Una semana solos discerne a divisão da cidade a partir de crianças isoladas
em um condomínio fechado que se deparam com a diferença e não sabem o que fazer
com ela. Apesar de o olhar infantil trazer outro parâmetro de percepção e de
significação, o conflito – ancorado na dualidade dentro/fora, eu/outro – persiste,
expondo-se de modo sutil. Em El hombre de al lado, o encontro com a diferença e o
conflito causado resultam em morte. Em Castro, o incômodo de estar fora do lugar e
não ter nenhum lugar para estar faz o espaço urbano ao qual o protagonista é empurrado
tão inabitável que morrer é melhor que viver. Historia del miedo situa os espaços e as
relações no terreno do horror de forma assaz contundente que é impossível visualizar
alguma resolução para seus conflitos.
Cada um à sua maneira, os filmes se aproximam do posicionamento de
Branco sai, preto fica, em que a conciliação é impossível: “não há no horizonte do filme
uma estratégia centrípeta de se partir das bordas para chegar ao centro, dos extremos de
posicionamento para uma futura negociação, em nome de uma tolerância obtida como
perda. Estamos em um cinema de embate, de confronto” (EDUARDO, 2016b, p. 30).
Apesar da alta conflitividade que se expõe no espaço da ação de Elefante branco, o
longa de Trapero aparenta ser o menos duro ao alimentar a chispa da resistência (com
todos os seus poréns e sem idealizações, como exposto).3
Guardadas as diferenças, a problemática dos espaços em conflito penetrou
em diversas ficções cinematográficas argentinas dos últimos anos – as quais, várias
vezes, estiveram prestes a integrar o corpus, sendo finalmente escolhidas apenas para
3
Essa interpretação do filme corresponde com a interpretação que Carolina Rueda (2012) faz de Ronda
nocturna, como descrevi no primeiro capítulo.
174
serem citadas rapidamente neste último capítulo de maneira a deixar as portas abertas
para futuras reflexões. A mais notável, sem dúvida, especialmente em se tratando do
espaço urbano, é Medianeras – Buenos Aires na era do amor virtual (Medianeras,
Gustavo Taretto, 2011). De grande repercussão no circuito comercial tanto no Brasil
quanto na Argentina, com semblante de comédia pop romântica, o longa de Taretto
apresenta a cidade como artificie do encontro amoroso – não sem antes colocá-la como
lugar por excelência do desencontro e do sofrimento, atravessado pela estranheza e pelo
medo. Martín e Mariana são jovens que vivem no mesmo quarteirão; seus caminhos se
cruzam de vez em quando, mas nunca se encontram.
175
Impulsionado por uma grande força narrativa que funda suas raízes no
realismo clássico (uma espécie de Balzac dos subúrbios), Campusano
ambienta seus filmes nos bairros pobres da Grande Buenos Aires
(Monte Grande, Esteban Echeverría, Ezeiza) que conhece em primeira
mão. Não há, ali, nenhuma épica popular, senão a observação, com
precisão cirúrgica, da decomposição social e da espiral de violência
provocadas pelo abandono do Estado e pelo fortalecimento das redes
criminais (AGUILAR, 2015a, p. 208).
176
177
consegue voltar à vida. Por conta da bala que restou em seu corpo, ele acaba ficando
sempre de fora: do amor (perde a namorada), do trabalho (não consegue entrar nos
edifícios porque soam os alarmes detectores de metais), da arte (é expulso do quarteto
de flautas do qual participava, já a bala faz que ele soe “duplicado”), da diversão
(tampouco pode entrar na discoteca devido aos detectores).
O que acomete Mariano de modo exemplar se esparrama por todo o mundo
de Dos disparos. Os mortos-vivos vão da cidade ao litoral, mudam-se de uma casa a
outra, hospedam-se aqui ou ali, assistem à televisão na praia, tomam sol no terraço do
prédio de Buenos Aires, deitam em uma pedra para descansar, dirigem um carro pela
areia, tomam pílulas e dormem por dias sem se dar conta: tanto faz. Nesse sentido,
Rejtman recupera de seus outros filmes a deriva narrativa e pelos espaços que arrasta
personagens, tramas, lugares a direções misteriosas e imprevisíveis, da mesma forma
que a bala perdida nessa espécie de buraco negro que é o corpo do protagonista
(ZGAIB, 2015).
Porém, se, antes, a narração como circulação estava cheia de vitalidade
(ainda que ausente de significação), desta vez, ela se parece mais a uma fuga para
adiante: “entre mortos e feridos, todos se salvaram”. Só que, diferentemente das épicas
vividas pelos personagens de Trapero a caminho da “salvação”, em Dos disparos o que
está em jogo é o pós-sobrevivência – nada épico, mas pleno em conflitos.
178
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1
Baseada na norma NBR 6023, de 2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Organizo
as referências a partir de uma separação tentativa, em consonância com uma divisão temática, que pode ou
não obedecer à divisão por capítulos (especialmente porque várias referências se repetem ao longo do texto).
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