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Centro de Assistência à Terceira Idade e Infância de Sanguêdo

Projecto “Desalojar a Exclusão”

Instituto de Segurança Social (Progride/2)

Levantamento Etnográfico
no Acampamento Cigano da Baralha

Filipa Costa (filipasc@hotmail.com)

Janeiro de 2010
Ao Sr. António e às crianças da Baralha
ÍNDICE

Introdução 4

I Os Gitanos da Baralha 11
Composição do grupo 11
Árvore genealógica 14
Identidade étnica 15
Linguagem 21
Recolha de vocabulário 28
Habitação e apropriação sócio cultural do espaço 35
Actividades económicas e subsistência 41
Religião 49
O quotidiano 57

II A Lei Cigana 67
Parentesco e organização social 69
Género e comportamentos socioculturais específicos 75
O Casamento 87
O Luto 98

III Educação e Escolarização 104


A educação na Baralha 104
A escolarização 115

IV Histórias de Vida 122

Bibliografia 139
INTRODUÇÃO

Este levantamento etnográfico surge inserido no projecto de intervenção


social “Desalojar a exclusão”, destinado a um grupo familiar cigano que vive
há cerca de 14 anos num acampamento em Sanguêdo, freguesia de Santa
Maria da Feira. O projecto – financiado pelo Instituto de Segurança Social no
âmbito do Programa Progride (medida 2) e concebido e executado pelo Centro
de Assistência Social à Terceira Idade e Infância de Sanguêdo (Castiis) – tem
como objectivo geral facilitar, às crianças e jovens deste grupo, o acesso à
educação, à saúde e à habitação, e como objectivo específico a redução
efectiva do absentismo escolar. Não obstante, o projecto intervém a vários
outros níveis atingindo, não apenas as crianças e os jovens, mas também as
suas famílias com as quais se estabeleceu, desde cedo, relações de
proximidade e confiança.

Na origem deste levantamento está a preocupação em conhecer as


características étnicas específicas deste grupo, permitindo assim que o
projecto se defina pela sustentabilidade antropológica. Sustentabilidade esta
que se traduz numa politica de análise e de intervenção na realidade social
etnograficamente informada.

Para além deste apoio ao projecto, este levantamento tem como


objectivo mais vasto o de registar aspectos significativos sobre a vida e cultura
deste grupo em particular, contribuindo assim para a construção de um
conhecimento mais alargado sobre a cultura cigana (ou culturas ciganas) em
Portugal. Sublinhando a importância de atender às especificidades étnicas de
cada grupo e evitando generalizações artificiais, este levantamento pretende,
sobretudo, fornecer pistas para outras investigações. Pistas porque o que aqui
se deixa fica com certeza muito aquém do que poderia produzir uma
investigação mais detalhada e demorada, nomeadamente nos domínios da
linguagem (sobre a qual aqui julgo deixar informação muito relevante), da
identidade e do parentesco. Pretende ainda ser um documento útil a
instituições e técnicos interessados numa aproximação, de facto, a grupos ou
famílias ciganas.
Importa-nos sobretudo criar uma ponte entre “nós” e ”eles”, uma ponte
de significações que, não sendo comuns, possam ser apreendidas por este
lado de cá, tantas vezes fechado à diferença cultural mas com o poder
institucional de intervir. Se este poder existe que seja, tão somente,
informado quanto às singularidades culturais, para que possa construir-se e
actuar com sustentabilidade. Salvaguardando as diferenças étnicas intrínsecas
a cada grupo cigano, e sublinhando sempre a existência de particularidades
absolutamente determinantes na construção da identidade de cada um,
acreditamos que este levantamento poderá contribuir para que outros
projectos sociais possam intervir, junto da população cigana em geral, de uma
forma mais ética e, consequentemente, mais frutífera.

Não me interessa aqui fixar definições elaboradas ou afirmações


absolutistas sobre a cultura cigana em geral, mas antes distinguir
características específicas a este grupo, tal como ele se define. Mais
objectivamente, pretende-se estabelecer a identidade étnica deste grupo com
base no seu próprio sistema de classificação e diferenciação, na sua história e
na sua linguagem. Importa-nos entender como, discursivamente, este grupo
se coloca perante a população cigana, como são criadas, mantidas e geridas
as fronteiras com o Outro (cigano e não cigano) e quais os sistemas simbólicos
e socioculturais que presidem ao estabelecimento de diferenciação.

Muita da literatura portuguesa sobre esta etnia tende a definir como


objecto os ciganos enquanto um grupo homogéneo que partilha em absoluto
um conjunto de características étnicas e linguísticas. Uma das primeiras
evidências constatadas, no terreno, foi precisamente a de não estar perante
um grupo exemplificativo da cultura cigana, enquanto uma entidade absoluta
teatralizada nas performances culturais, mas perante um grupo que constitui
um fragmento com características intrínsecas que se reafirmam e se
redefinem continuamente, dentro de um contexto sociocultural extremamente
rico e diversificado. A dimensão deste contexto – tal como ele se define étnica
e territorialmente é algo que começamos apenas a vislumbrar, tal a
complexidade da estrutura social e da matriz simbólico cultural em que ela se
inscreve. Existem, portanto, diferenças fundamentais dentro daquilo que
normalmente a bibliografia apresenta como a cultura cigana em Portugal.

Não faria sentido falar dos ciganos em geral, ou dos ciganos


portugueses, partindo desta pequena amostra cujas fronteiras de identidade
são claramente mantidas e definidas por eles. Existem traços identitários
comuns àqueles a quem normalmente se aplica o termo “ciganos”, mas entre
estes estabelecem-se sistemas de diferenciação baseados em características
étnicas e linguísticas. Assim que iniciei o trabalho de terreno e a investigação
bibliográfica, entendi rapidamente que a literatura existente não fala sobre
esta gente. Porque na generalidade é pouco explícita sobre que gente fala,
recorrendo a uma categorização generalista: os ciganos. Ora um grupo de
ciganos portugueses alentejanos é muito diferente de um grupo de gitanos do
norte do país. Aliás, na mesma freguesia encontramos grupos que se
distinguem e não convivem – não só por diferenças morais mas também
etnolinguísticas. Atender às especificidades e particularismo de cada grupo é a
única forma de entender a realidade cigana em Portugal. Diferenças
linguísticas ou rituais, por exemplo, levar-nos-ão a entender a natureza das
relações que mantêm ou não com outros grupos, assim como a entender qual
o percurso sociocultural e histórico dos diferentes grupos étnicos e familiares.

Paulo Filipe Machado (1994) escreve: “não existe uma etnoclasse


cigana, mas sim vários estratos sociais ciganos que comungam, porventura,
com níveis de participação diferente, uma mesma etnicidade e assumem uma
identidade étnica comum mas que se pode expressar diferentemente. Não tem
validade teórica nem fundamento empírico defender-se a homogeneidade
social da comunidade cigana em Portugal”. O que aqui se defendo é que esta
identidade étnica comum se fragmenta em grupos étnicos que se diferenciam
entre si. Este levantamento pretende ser, precisamente, um testemunho desta
realidade e do argumento de que é na enorme fragmentação a todos os níveis
da realidade sociocultural, na enorme diversidade de práticas, crenças e
dialectos, que se encontra a riqueza cultural da etnia cigana.

Os ciganos de que falo neste documento são unicamente aqueles que


constituem o nosso objecto de estudo: um grupo indivíduos, pertencentes a
uma mesma família, que chamam a si próprios ciganos galegos ou espanhóis e
aqueles que, por relações de parentesco ou convivialidade, conheci através
deles. Ou seja, os indivíduos que pertencem ao seu grupo étnico e, na maioria
dos casos, ao seu grupo familiar alargado. A verdadeira dimensão deste grupo
ficou fora do meu alcance, embora territorialmente tenha ficado evidente que
se estendem do centro ao norte litorais do país. Em última instância, escrevo
sobre um grupo familiar que partilha a identidade étnica com um grupo mais
alargado, que se define como gitanos espanhóis. Este levantamento é sobre as
suas vivências, presentes e passados, os seus costumes e tradições, e, acima
de tudo, sobre o seu quotidiano e a forma como todos os dias vivem a Lei
Cigana.

O trabalho de campo decorreu de Maio de 2006 a Dezembro de 2008.


No terreno, a observação participante foi o método de recolha privilegiado.
Perante a desconfiança inicial da população à minha presença e curiosidade, e
perante o “secretismo” que senti que envolvia as questões culturais, desde
cedo ficou estabelecida uma aproximação de facto à população e às suas
rotinas quotidianas como método mais pertinente e ético de recolha e
investigação. Inicialmente, o registo da história de vida de duas das pessoas
mais velhas foi o ponto de partida para a aproximação e integração no grupo.
Informalmente fui recolhendo informação e passando cada vez mais tempo na
companhia destas famílias. Passado este período de aproximação, a minha
presença no acampamento foi quase diária. Para além do tempo passado no
acampamento com as famílias, efectuei inúmeras deslocações com vários
elementos do grupo quer em actividades quotidianas, como idas às compras,
ao tanque público, aos centros de saúde e emprego, em passeios, etc., quer
em actividades mais cerimoniais ou familiares, como um casamentos, rituais
religiosos, deslocações ao hospital por altura de acidentes ou nascimentos,
visitas a familiares mais distantes e visitas ao cemitério. Passei também muito
tempo com as crianças, graças à participação em outras acções do projecto,
nomeadamente o acompanhamento dos ateliers pedagógicos, a quem, aliás,
devo muito do que aprendi.

A aprendizagem da linguagem que o grupo utiliza – para análise e


interacção – foi um elemento prioritário. Desde o princípio, os esforços foram
no sentido de entender o que diziam quando não falavam português e,
felizmente, todos os elementos do grupo contribuíram, em maior ou menor
grau, para que isso acontecesse, pois foram-me ensinando mais palavras e
expressões e abandonando gradualmente o português, que inicialmente
utilizavam na minha presença.

A análise documental e bibliográfica – centrada particularmente na


literatura portuguesa, espanhola e anglo-saxónica – serviu sempre como
elemento de confrontação, comparação e suporte ao material recolhido no
terreno e, muitas vezes, como fonte geradora de novas questões e aspectos a
observar. No caso especifico da recolha e estudo da linguagem, a pesquisa
documental foi indispensável à compreensão histórica e linguística, e mesmo à
aprendizagem da linguagem no terreno.

É importante, neste ponto, elucidar quanto à natureza particular da


minha presença no terreno. Ou seja, sendo eu mulher e tendo em conta a
especificidade das questões de género, a aproximação ao grupo foi feita
inevitavelmente através das mulheres. Tendo sempre a preocupação de não
quebrar códigos de conduta locais ou ferir susceptibilidades morais, a
aproximação ao universo masculino foi sempre mediada por estas. Logo, esta
foi uma aproximação prioritária e preferencial à população feminina: a
perspectiva através da qual conheço este grupo é uma perspectiva feminina.

A maior parte do tempo no acampamento foi passado entre as mulheres


e a maioria das conversas mais relevantes foram mantidas com estas. Durante
todo o tempo que passei no acampamento nunca estive sozinha com um dos
elementos masculinos nem mantive conversas prolongadas, excepto com os
homens mais idosos. O meu contacto com os homens foi sempre limitado no
tempo e no espaço e aconteceu sempre na presença das suas companheiras
ou familiares do sexo feminino, com o objectivo de que a minha aproximação
ao universo masculino não prejudicasse a minha aproximação ao grupo como
um todo. Porque a minha presença no terreno foi-se gradualmente tornando
mais intensiva e familiar, foi absolutamente fundamental reger-me pelas
regras sociais locais e comportar-me sempre de forma culturalmente
adequada. A desvantagem imediata é que não posso fornecer uma visão do
universo masculino muito detalhada. Tudo o eu posso transmitir sobre o
quotidiano dos homens, os seus comportamentos, as suas actividades, etc.,
resulta, claro, do que vivenciei no terreno, mas sobretudo do que as mulheres
me contaram acerca deles e dos seus assuntos.

É portanto a perspectiva feminina que domina neste documento. Isto


deve ser entendido como um traço característico vantajoso pois a
predominância do discurso feminino, tantas vezes omitido, imprime um
carácter peculiar ao levantamento. Relativamente à educação, por exemplo,
área de especial interesse no âmbito do projecto, a perspectiva feminina é
essencial.

Relativamente ao registo formal do material etnográfico recolhido,


procuro sempre utilizar os conceitos locais. Sempre que a pertinência e a
relevância de conceitos culturais considerados essenciais assim o justifique,
recorro ao itálico para destacar palavras ou expressões na linguagem local,
independentemente da língua a que pertencem (português, espanhol ou
romanó). A terminologia local, no que a questões identitárias se refere, é
sempre preferida em detrimento de outra.

De um ponto de vista teórico e conceptual, evita-se a utilização de


conceitos que trazem consigo uma herança teórica pesada,
antropologicamente falando. Por exemplo, no contexto informal do projecto os
técnicos utilizam o termo comunidade para se referir ao grupo em questão. No
entanto, este é um conceito que suscita uma problematização teórica e será,
portanto, substituído por grupo – termo que acredito revestir-se da
neutralidade que aqui me importa manter. Outros conceitos muito utilizados
relativamente à cultura cigana, como linhagem e clã, por exemplo, não são,
pelos mesmos motivos, utilizados. Para facilitar a identificação, utilizarei o
conceito de grupo para me referir especificamente ao grupo familiar que
coabita no acampamento. Para me referir à família mais alargada com quem
têm relações sociais, utilizo o termo grupo alargado. O termo grupo étnico é
utilizado em referência a um grupo muito alargado de indivíduos que
partilham características identitárias e que se definem como gitanos gajegos
ou ciganos espanhóis. Localmente, o conceito local utilizado é o de raça,
embora este possa ser usado num sentido mais lato para significar a raça
cigana, em oposição à “vossa raça”, a raça não cigana.1 Para mencionar os
ciganos na sua generalidade, independente desta ou doutras categorizações,
são utilizados os termos etnia ou cultura cigana.

Como já mencionei, o primeiro passo no terreno foi a recolha das


histórias de vida de duas das pessoas mais velhas, a Tia C. e o Aguelito, seu
Pai. Nestas pessoas busquei – através do registo das suas histórias de vida,
mas também da conversação informal – elementos que auxiliem a
reconstrução do passado nómada do grupo. Este interesse pelo passado, pelas
vidas dos “antigos” foi, inegavelmente, o primeiro elo de ligação que surgiu
entre mim e os indivíduos mais velhos do grupo que, com toda a paciência e
simpatia, acolheram, respeitaram e responderam positivamente ao interesse
por mim demonstrado em conhecer mais sobre “as raízes”, sobre a língua e
sobre as suas vidas.

Se hoje tenho algo a contar sobre os ciganos, sobre estes ciganos, foi
porque eles assim o permitiram e, cada vez com menos pudor, me foram
abrindo as portas das suas casas e permitindo-me experimentar, tanto quanto
possível, o que é ser cigano e viver num acampamento na Rua da Baralha. Se
hoje conto o que conto, foi porque, em algum ponto desta viagem, me foi
dado o prazer e o direito de ouvir as conversas na sua própria linguagem, de
entrar sem pedir licença, tomar café quente à fogueira e sair sem dizer
obrigado.

E, por tudo isso, eu agradeço calorosamente e espero que, de alguma


forma, esta minha humilde tentativa de contar a outros quem são estes
ciganos galegos, seja também uma forma de lhes prestar homenagem.

1
Os não ciganos são referidos como pajos, mas também como rambos ou senhores. Crianças e
jovens não ciganao são chamados de corrijos.
I OS GITANOS DA BARALHA

Composição do grupo

No acampamento da Baralha vivem cerca de 70 indivíduos pertencentes


a uma mesma família e, portanto, de sobrenome comum: Monteiro.
Encontramos ainda os sobrenomes Soares, Santos e Garcia, normalmente a
preceder Monteiro. A maioria destes indivíduos é constituída por crianças e
jovens e convivem, neste grupo, 4 gerações.

O grupo é composto sobretudo pelos descendentes de um casal: a Tia


C. e o Tio J., com 79 e 63 respectivamente.2 Sete dos seus filhos vivem no
acampamento com as mulheres, filhos, noras, genros e netos, à excepção de
um que foi realojado num bairro social perto mas que, ainda assim, passa
bastante tempo junto da família. Uma das três filhas da Tia C. também vive no
acampamento juntamente com o marido e os filhos. Como veremos adiante, o
mais comum é que os casais vivam junto dos pais do homem mas esta não é
uma regra sem excepções. Muitos dos netos do Tio J. e da Tia C. são casados
precisamente entre si, portanto com primos directos, e destas uniões existem
já bisnetos. Alguns dos bisnetos têm a mesma idade dos netos, ou seja de
alguns dos seus tios. Na árvore genealógica, à frente, tornar-se-ão mais claras
as peculiaridades desta família.

Para além dos elementos desta relação de parentesco, que constituem a


maioria dos indivíduos, vivem ainda no acampamento: o Tio D., irmão da Tia
C., com a sua mulher, um filho, nora e netos; e ainda o Tio A. que é tio
paterno da Tia C. juntamente com a sua mulher e dois filhos pequenos. Esta
união é um segundo casamento entre dois viúvos.

Durante algum tempo forma cinco as gerações que conviviam neste


local pois o pai da Tia C. e do Tio. D, irmão do Tio A., o Aguelito, vivia também

2
As idades não são exactas mas são as que constam nos bilhetes de identidade, (tirados muito
posteriormente aos nascimentos) e as que os indivíduos geralmente referem pois não sabem
exactamente quantos mais anos têm, calculando que devem ser dois ou três.
no acampamento juntamente com o seu filho. Este era uma situação
provisória pois a sua casa era em Braga, embora nos últimos anos passasse
muito tempo na casa do filho, Tio D., na Baralha. Faleceu em Braga, com 87
anos, a 30 de Outubro de 2007.

Na árvore genealógica abaixo estão representados todos os membros do


grupo. Esta não é, obviamente, representativa dos limites da família que se
estende por vários grupos familiares, territorialmente dispersos. A Tia C. e o
Tio J., como já foi referido, tem mais três filhas que não vivem na Baralha; o
Tio D. e a T. L. tem mais oito filhos no norte do país; e o terceiro casal mais
velho, O Tio A. e a D., porque se trata de um segundo casamento entre dois
viúvos, ambos têm filhos adultos que não vivem neste acampamento.

As ligações familiares estendem-se pelo norte e centro litorais do país,


sendo os distritos mais mencionados os de Braga e Aveiro. Contudo os laços
de parentesco são mais alargados do que isso embora o grupo não mantenha
relações sociais com todos aqueles com quem partilha o sangue e o
sobrenome. Outros grupos são identificados como sendo família, pela partilha
de ascendentes, embora isto não implique relações sociais de solidariedade ou
convivialidade. Nestes casos o conceito de família tem um significado duplo
pois os indivíduos dizem, em relação a eles: “pertencem-nos mas não são
família”. Isto pode significar que são da mesma raça mas não são grupos com
quem se conviva ou comunique. O conceito de família, aqui, implica a
manutenção de relações sociais e emocionais. Alguns destes grupos – gajegos
e de sobrenome Monteiro – são mencionados pejorativamente como “mais
sujos” ou “mais escuros”, alguns destes grupos poderão até ser contrários,
como veremos adiante.

Algumas relações familiares não são visíveis na árvore genealógica pois


não estão presentes todos os ascendentes. A dificuldade em falar sobre os
mortos e o costume de não voltar a mencionar os seus nomes, dificultam
muito a tarefa de identificar as relações de sangue entre as pessoas. Seria do
maior interesse conseguir estender mais esta árvore para o passado e
entender como os descendentes foram, através do casamento, reforçando
laços já existentes ou construindo novas relações sociais. Destaco algumas
relações que estão assinaladas na árvore: a Tia L. e a C. (mulher de F., nora
da Tia C.) são irmãs; L. e P. são sobrinhas do Tio J (filhas do seu irmão), para
além de noras; F. e Ad. (1969) são sobrinhas da Tia C. Estas relações
demonstram o que a maioria dos indivíduos afirma, ou seja, que é muito
frequente e desejado o casamento entre primos em primeiro grau, apelidados
de “primos-irmãos”.

Na árvore genealógica abaixo, os círculos representam os elementos do


sexo feminino e os quadrados os elementos do sexo masculino. Para além das
relações de descendência evidentes, representam-se, com linhas vermelhas,
relações tio/a – sobrinho/a, e a verde, a relação de duas irmãs.
D. 2007 1940 1964
87 70 46

"El Tio A. D.
aguelito"
segundo matrimónio

1930 1946 1956


Árvore genealógica

80 64 54

Tio J. Tia C. Tio D. Tia L.

1958 1962 1966 1971 1966 1969 1973 1974 1973 1977 1979 1977 1976 1989 1986 1987
52 48 44 39 44 41 37 36 37 33 31 33 34 21 24 23

F. C. Ls. F. J. Ad. E. R. Ln. P. D. L. T. G. Cr. N. Sm.

1986 1988 1990 1993 1995 1999 2002 1988 1985 1987 1989 1991 1993 1995 2002 1988 1991 1992 1994 1996 1992 1995 1997 2000 2002 1996 1998 2001 2002 2008 1994 1996 1999 2002 2003 2008
24 22 20 17 15 11 8 22 25 23 21 19 17 15 8 22 19 18 16 14 18 15 13 10 8 14 12 9 8 2 16 14 11 8 7 2

Ag. V. An. Cn. Pt. Dg. Tm. An. M. E. An. Ss. H. S. I. An. T. G. Ag. Ld. Ant. Am. Cl. G. Tg. E. L. Sn. J. Ls. Tt. F. R. An. L. Gb. Sr.
1999 2001
11 9

2007 2004 Ln. G.


3 6

2004 2008 Mr. I.


6 2
2003 2007 2006 2008 2008 2009
C. N.
7 3 4 2 2 1

An. And. Er. F. M. T.


Identidade étnica

Etnicamente, em termos teóricos, os ciganos da Baralha pertencem ao


grupo Caló (plural Calé) que genericamente compreende os ciganos da
Península Ibérica. A sua permanência na península remontará ao séc. XV.
Dentro do contexto português, como já mencionei, existem mais diferenças
entre aqueles que são comummente identificados como ciganos do que nos é
dado a entender à vista desarmada.

Os indivíduos deste grupo identificam-se como ciganos espanhóis ou


galegos, diferenciando-se assim daqueles a quem chamam os ciganos
portugueses. Na sua linguagem dizem ser gitanos gajegos. Dizem ter vindo da
Galiza e falar o espanhol. O falecido Aguelito já nasceu em Portugal mas
afirmava que o seu pai era galego e a mãe madrilena. Estes dados referem-se
ao lado materno da família, ou seja aos ascendentes da Tia C., quanto ao Tio
J. cuja saúde já não permite falar, tenho menos informação. Pelo que pude
apurar, no entanto, os seus pais eram ambos nascidos em Portugal. Enquanto
que os familiares mais directos da Tia C. parecem mais ligados ao norte do
país, os do seu marido parecem ocupar mais a zona centro.

Crianças e adultos reconhecem à distância um cigano galego de um


cigano português. Por vezes, a simples passagem de uma carrinha é seguida
imediatamente de comentários como “aqueles são portugueses” ou “aqueles
são espanhóis”. Invariavelmente pergunto: “como sabe?” e invariavelmente a
resposta é “vê-se” ou “nota-se”. As diversas vezes que tento abordar a
questão da diferença entre portugueses e galegos, dizem-me, divertidos, que
mesmo sem os ouvir falar vê-se logo que são portugueses, “pela maneira de
ser”, porque “são diferentes”. As diferenças, essas, parecem ser intraduzíveis
numa linguagem que eu possa compreender na totalidade pois até hoje não
me é possível diferenciar, apenas pela observação, o que para estes indivíduos
é um dado adquirido ao primeiro olhar. A única diferença que me é evidente é
a língua que utilizam.

Muitas vezes a afirmação “são portugueses” parece acompanhada de


algum desdém como se uma diferença essencial implícita estivesse implicada.
Não obstante, existe um casamento misto no acampamento.3 A mulher de Ls.
é portuguesa, muita embora o seu sobrenome seja também Monteiro. Os
filhos deste casamento consideram-se galegos como o pai. O irmão de F. –
português, portanto – que é casado com uma irmã de Ls., filha da Tia C.
também, visita frequentemente a irmã e o cunhado juntamente com a sua
mulher e filhos. Os filhos deste casal dizem ser portugueses e não falam o
“espanhol”.4 O culto, como veremos, tem um papel importante na socialização
entre espanhóis e portugueses, sendo que os pastores são frequentemente
portugueses.

Esta reivindicação de uma identidade galega não tem nada a ver com
uma identidade nacional. Se questionados, os indivíduos afirmam-se
inquestionavelmente portugueses com os mesmos direitos dos outros. São
ciganos nascidos em Portugal cuja etnicidade é, segundo os próprios, galega.
O ser espanhol ou galego é uma questão étnica que só faz sentido dentro das
fronteiras do país, para estabelecer uma diferenciação dos ‘outros’, dos
ciganos portugueses que, creio, constituirão a maioria dos ciganos em
Portugal, e eventualmente de outros grupos de ciganos.

A prevalência dos ciganos portugueses não deixa de ser uma suposição


pois não existe informação suficiente que permita ter uma noção real da
dimensão dos diferentes grupos étnicos pois os sistemas internos de
categorização têm vindo a ser descurados pelos investigadores. Na literatura
existente as reivindicações de especificidade étnica de um determinado grupo,
tendem a não ser levadas em consideração tanto quanto desejável. A questão
da etnicidade galega ou espanhola não deve ser descurada, antes pelo
contrário, deve ser analisada mais profundamente na tentativa de entender
melhor quem são, como são, e como se distinguem entre si aqueles a quem se
chama invariavelmente ciganos, numa categorização absoluta muito distante
da realidade.

3
Esta foi uma situação que não consegui explorar suficientemente pois F. também tem
sobrenome Monteiro o que significa que o sobrenome pode ser partilhado por indivíduos que se
distinguem etnicamente. No terreno dizem-me que sim, que também há Monteiros portugueses.
Na verdade, este argumento vem complexificar a natureza dos sistemas de diferenciação étnica.
Seria importante entender melhor a origem desta diferenciação.

4
Os filhos pertencem ao grupo familiar e étnico do pai.
Estas distinções internas não se limitam a ciganos portugueses e
espanhóis. No terreno, as categorias locais de identificação étnica, distinguem:
os berones ou rancheros, pessoas que vivem e vestem como os ciganos, que
dizem ser ciganos mas que não o são pois “não têm sangue cigano”; e os
quinquilheros, um outro grupo de ciganos sobre o qual parece haver distintas
opiniões: uns dizem que são eles próprios, outros recusam firmemente esta
afirmação. Estas categorias estão de tal forma incorporadas pelos indivíduos
que é difícil para eles explicar em que se baseiam. Não consegui decifrar esta
terminologia nem identificar as características intrínsecas aos grupos étnicos
que reconhecem. Existem ainda os húngaros, ciganos estrangeiros que dizem
falar uma língua parecida. O Aguelito falava também dos rómanos, também
estrangeiros, cuja língua não entendem.5

O acesso a estas categorias locais, mais sentidas e experienciadas do


que teorizadas, não é fácil. Digamos que esta diferença está incorporada
desde cedo nos indivíduos e não é hábito exercer sobre ela uma análise
reflexiva. Não é uma diferença ensinada no sentido expositivo, mas antes algo
com que se cresce ou onde se cresce. Assim, dificilmente um indivíduo saberá
dizer-me o que significa ser cigano. Mas facilmente me apontará outros iguais
a si e outros mais ou menos diferentes de si próprio, estabelecendo a sua
identidade por comparação. Muitas vezes, quando no acampamento
conversamos sobre outros ciganos, que aparecem na televisão ou que andam
por perto, ouve-se o comentário irónico: “esses não são ciganos!”. Esta
afirmação comporta uma qualidade inerente ao facto de se ser cigano. Ao
desvalorizar a ‘ciganidade’ de outros, o indivíduo reafirma a sua autenticidade
étnica e a legitimidade da sua forma de ser cigano.

5
Lurdes Nicolau (Bastos, et al, 2006), num artigo sobre os ciganos transmontanos – apelidados
por outros ciganos de gitanos ou quitanos – identifica outros grupos de ciganos, segundo a
categorização deste grupo, como os gitanos (que não são os próprios e que são maus), os
canquilheiros (segundo eles, espanhóis que antigamente vendiam burros e muares nas feiras e
hoje vendem velharias em mercados de rua,) e os latoeiros (que também são maus mas têm
melhores condições de vida).
Normalmente, sempre que se fala de outros ciganos estes são-me
apresentados numa hierarquia relativamente flexível mas onde, em geral,
estes outros surgem numa posição inferior, como “mais sujos”, “mais
escuros”, “esquisitos”, enfim, gente menos boa a quem normalmente se
referem como “essa gente”. Ainda que se trate de ciganos galegos com o
mesmo sobrenome, poderão ser avaliados pejorativamente. Mesmo dentro do
mesmo grupo étnico, da mesma raça – os galegos – este grupo estabelece
sistemas de diferenciação. Algumas famílias são contrárias, o que significa
que, por algum acontecimento passado – um assassinato, um divórcio ou
outro conflito grave relacionado com questões de honra – estas famílias têm
obrigação de vingança e não devem entrar no território uma da outra.

De uma forma geral, as mulheres do grupo, definem o mesmo com


frases como: sempre fomos “pobrezinhos mas limpinhos” e “semos” de boas
falas”. A ligação à Igreja de Filadélfia, que abordarei mais à frente, serve
frequentemente para explicar a superioridade moral do grupo sobre outros
que “não são de Deus”. Estas diferenciações são muitas vezes usadas para
justificar a opção tantas vezes sublinhada de não querer viver com outros
ciganos, nem ter outros grupos por perto. Isto para que as fronteiras que
traçam entre si e os outros não sejam adulteradas, senão por si próprios,
pelos não ciganos, nomeadamente aqueles com quem tem relações de
carácter institucional que envolve a subsistência da família.

Se há uma tendência para a particularização e distinção do grupo,


também encontramos o oposto: o ‘ser cigano’ – entendido na sua
generalidade – é razão e solução em muitas situações. Muitos dos meus
porquês, quer em relação a comportamentos culturais específicos, quer em
relação a situações contextualizadas, obtêm a mesma resposta: “os ciganos
são assim”.

Mas ser cigano pode não implicar ter-se nascido cigano. Pelo menos em
relação às mulheres uma vez que uma paja casada com um cigano pode ser
considerada “como nós”. Uma das mulheres diz-me “há muitas (pajas) que
casam com ciganos e até aprendem a dançar”. Vestir, aprender a dançar e a
falar à cigana são elementos fundamentais para a adquirir o estatuto de
cigana. Durante uma festa onde estão presentes muitas famílias ciganas de
fora, uma das mulheres do acampamento aponta-me uma paja trajada à
cigana com um bebé ao colo. Diz-me quem ela é e fica obviamente curiosa
com ela. Vejo que se aproxima dela e trocam algumas palavras. Volta depois
para junto de mim e conta-me que foi ver se ela falava “à cigana”. Diz-me que
sim, que fala e que fala mesmo bem e que também pega no bebé como as
ciganas: “é igual a nós, é cigana” – conclui.

No que se refere às mulheres, pelo menos, a ‘ciganidade’ pode ser


adquirida. A mulher casada com um cigano que adopte os hábitos e a
linguagem dos ciganos vai ser tratada como igual e vai ser considerada cigana
em muitas ocasiões. Entre as mulheres contam-se várias vezes casos de pajas
que casaram com ciganos como exemplos positivos. No caso dos homens,
nunca ouvi histórias de um indivíduo que se ”tenha tornado” cigano. Se uma
cigana casa com um pajo, e esta é uma situação menos tolerada, muito
dificilmente o indivíduo será aceite pelo grupo portanto a mulher terá de
abandonar a família. Não tenho conhecimento de nenhum caso em que um
homem não cigano tenha casado com uma cigana e ficado a viver com a sua
família.

Voltando ao ser cigano, entendido na generalidade do termo. Ser


cigano, de uma forma geral, é não ser senhor, não ser pajo, e não viver como
estes vivem. É uma identidade que se constrói em oposição. Ser cigano é
pertencer a um grupo, a uma família, e respeitar a tradição, a Lei Cigana,
acima de qualquer outra lei, incluindo a lei dos pajos. No fundo, o que significa
ser cigano é em si mesmo um processo contínuo de identificação e
diferenciação. É simultaneamente um processo individual e colectivo pois é,
em grande medida, o grupo de referência e de pertença que confere e legitima
a identidade individual.

Antigamente, aliás, nem tão antigamente assim, era costume marcar-se


os bebés com uma, ou mais, pintas azuis na cara e no corpo, feitas com uma
agulha e tinta. Para “dizer que são ciganos”. Às mulheres eram os tios ou os
pais que faziam quando eram bebés. Os homens faziam a si próprios quando
já eram maiores. No acampamento encontramos mulheres de 26 e 27 anos
com estas marcas, o que demonstra que não é uma prática assim tão antiga.
No entanto hoje ninguém parece praticá-la e, quando questionados sobre este
costume, os indivíduos dizem apenas que “já não se usa”.

Com as crianças entendemos facilmente como esta questão de ter uma


identidade cigana, distinta da dos senhores que constituem uma maioria, é
desde muito cedo incorporada e experienciada. Talvez até mais do que os
adultos, ou pelo menos de uma forma mais aberta, as crianças verbalizam
frequentemente a diferença entre si e os outros. Mais tarde falaremos com
mais pormenor nas crianças e na educação cigana. Por ora, parece-me
relevante acrescentar que, muitas vezes, talvez por terem comigo uma
amizade e proximidade não comuns com um paja, as meninas do
acampamento insistem em discutir comigo sobre a minha própria identidade e
afirmam zangadas “você é cigana” – ainda que saibam que não é verdade.

A identidade cultural de cada indivíduo cigano depende absolutamente do


grupo familiar alargado a que pertence. Porém, a sua identidade étnica tem
contornos mais amplos que no entanto não implicam um sentimento de
partilha absoluto. Há aspectos culturais que podem ser considerados comuns
na cultura cigana. Serão estes, então, segundo Carlos J. Sousa (s/d): a
partilha de uma língua própria, o respeito pelos mais velhos, a predominância
das relações familiares em todas as dimensões da vida social, o casamento
endógeno, a virgindade feminina, a dedicação às crianças, o respeito pela Lei
Cigana, o respeito pelos mortos e pelo luto, o gosto pela música e a sua
importância social, e o respeito pelo território dos outros grupos. Eu
acrescentaria ainda a forte distinção de género.

Estes serão os elementos mais significativos da cultura cigana, aqueles


que um indivíduo reconhecerá como ‘seu’ ou igual a si. Estes – e porventura
outros – elementos são a base de uma ‘maneira de ser e estar’ que identifica a
pertença étnica dos indivíduos. Blasco escreve, a próposito: “their communal
identity relies on the recognition of particular individuals as Gitano, rather
than on exact knowledge of the size, location and composition of the
community or on the awareness of a shared origin or history” (2000: 16, 17).
Um episódio contado pelo Aguelito a propósito de um encontro com um grupo
de ciganos estrangeiros – rómanos – é ilustrativo deste reconhecimento
identitário:

Em Braga há um rio e nós, de vez em quando, de Verão, vamos para lá.


Vamos comer, para a sombra, e um dia fomos para lá. Levava-se de comer e
encontramos aquilo cheio de rómanos e….nós não os compreendíamos, mas a
mais víamos mesmo que eles faziam a mesma coisa que nós, começavam a
brincar com as mulheres …à nossa moda, com a nossa moda. Empurravam as
mulheres…a brincar,… nós costumamos fazer assim. Diziam coisas mas não nós
os compreendíamos, nem eles nos compreendiam a nós. (…) A língua não
compreendíamos mas agora o resto sim, o resto era igual.
Linguagem

Como já mencionei, a partilha de uma linguagem é um elemento


fundamental na definição identitária de um grupo cigano. Este grupo tem uma
definição clara quanto à linguagem que utilizam entre si. Sem demoras,
afirmam “nós somos galegos” e “falamos o espanhol”. Dizem que o espanhol é
a língua que falam porque é a língua que “veio das raízes”. Os mais velhos, no
entanto, afirmam que algum do vocabulário que usam não é espanhol mas
antes romanó.6 A Tia C., com quem aprendi algum vocabulário romanó que os
seus filhos já não sabem, diz-me muitas vezes: “eu sou cigana e nunca soube
o romanó”. Esta era a língua que falavam os seus antepassados e cuja
existência hoje se resume a uns quantos vocábulos que os mais novos dizem
ser espanhol ou “cigano”. Muitos dos jovens adultos (cerca de 30 anos) dizem
não saber o que é o romanó. Dizem que falam “à cigana”, ou antes, que
hablan gitano.

Romanó é o que chamam na Baralha à língua caló – a língua que falam


ou falavam os ciganos ibéricos. O caló era considerado um dialecto do romani
mas, hoje, é considerada uma língua para-romani,7 uma vez que a gramática
já não é romani mas espanhola. Linguisticamente é então uma língua mista
cuja base gramatical é espanhola mas cujo vocabulário é, em grande parte,
romani. Esta língua terá nascido de um Romani Ibérico que se terá fraccionado
primeiro em dialectos (Romani Espanhol, Romani Catalão, Romani Basco ou
Errumantxela – todos extintos) e depois, através de uma simbiose linguística
entre a gramática e a fonologia espanholas e romani, naquilo que pode ser
chamado um etnolecto. Acredita-se que este Romani Ibérico (do qual não há
registos e que seria certamente já muito fragmentado constituindo

6
“O caló chama-se romanó”- explicou-me o Aguelito - “o romanó espanhol é igual ao nosso, ao
português. E o romanó húngaro também é igual ao nosso.” O termo caló é utilizado como
sinónimo de cigano, ou seja, identitariamente, e não relativamente à língua. Só os mais velhos
entendem quando me refiro a uma língua caló.

7
Para informação detalhada sobre os diferentes dialectos do romani, consultar The Romani
Project (Universidade deManchester).
possivelmente um grupo de Romanis ibéricos) não seria muito diferente do
Romani que hoje se fala nos Balcãs.

Para que nos situemos melhor neste complexo linguístico entenda-se


que o Romani é a língua Cigana mais falada na Europa e também a mais
estudada. Podemos considerar três grupos dentro desta categoria : o Romani,
língua falada pelos Rom, ou seja, os ciganos europeus; o Domari, falado pelos
Dom da Síria; e o Lomavren língua dos Lom da Arménia.

O Romani é uma língua Indo-ariana derivada do sânscrito cuja


gramática é similar às línguas indo europeias da Índia. É, alias, a única língua
com estas características que sobrevive na Europa desde a Idade Média. Hoje
em dia encontra-se fraccionada em pelo menos 60 dialectos e línguas mistas
que terão nascido de uma única Romani chib (língua Romani). Algumas
hipóteses situam em meados do século XI o início da divisão desta língua mãe
em três grupos de onde teriam depois surgido distintos dialectos: um primeiro
grupo teria partido dos Balcãs para o Norte, Este e Oeste europeus; um
segundo grupo estaria mais concentrado na Europa Central e do Sul; e um
terceiro grupo teria emergido das populações Romani escravizadas até
meados do século XIX na Moldávia e Valáquia, de onde depois partiram
principalmente para a América do Norte e do Sul.

Todos os dialectos Romani partilham uma forte componente Grega


encontrada na gramática, vocabulário e sintaxe. Podemos portanto afirmar
que o Romani possui um carácter linguístico tão Indico quanto Balcânico
(nomeadamente, Grego). Para alguns autores, isto poderá significar que foi
durante a permanência na Grécia, no período Bizantino, que a linguagem e a
identidade étnica se cristalizaram.

Não obstante, as características históricas deste povo originalmente


nómada, conferiram uma enorme adaptabilidade à sua linguagem e o carácter
oral desta permitiu uma permeabilidade constante facilitada pela não fixação
da língua. Isto implica que hoje em Portugal se encontrem provavelmente
diferentes “descendências” do caló, para além da divisão que, logo à partida,
se nos apresenta: o caló que falariam os antepassados dos ciganos espanhóis
– ou romanó – e o calão dos ciganos portugueses. Dentro destas duas
subdivisões uma investigação linguística aprofundada encontraria certamente
uma quantidade incalculável de localismos riquíssimos.

Mesmo neste pequeno grupo encontram-se várias formas de dizer a


mesma palavra conforme o contexto em que esta é dita. E mesmo entre este
pequeno grupo e grupos vizinhos do mesmo grupo étnico com quem mantêm
relações familiares e sociais encontramos diferentes formas de falar que
provocam o riso a uns e a outros. Apesar destas diferenças locais e/ou
familiares uma definição é comum e permite a identificação e a comunicação:
o falar à cigana.

Formalmente o que se fala neste acampamento, quando a presença de


pajos não faz com que o português seja a língua dominante, não é de todo o
espanhol na sua forma mais pura mas antes uma mistura entre este, o
português, e em menor percentagem o caló, ou antes, o romanó.
Foneticamente, a proximidade é maior com o espanhol embora por exemplo
na declinação dos verbos o português predomine. A maioria do vocabulário é
espanhol e a sintaxe também, pelo menos a maior parte das vezes. Elementos
fundamentais como os sufixoS –ini, –una e –uncho, são heranças do caló e
transformam os vocábulos espanhóis e portugueses. O sufixo –i utilizado para
o género feminino – herança do caló – tende a desaparecer em detrimento do
–a, utilizado em português para este género. Assim, muitas vezes ouço
correcções como: referindo-se a uma bebé, uma mulher diz “santini!”, outra,
mais nova, corrige: “santina!”.

Na verdade é muito complicado fixar regras que ajudem a compreender


melhor a linguagem que utilizam. A enorme flexibilidade desta, aproveitada
com carácter lúdico entre os indivíduos, dificulta uma definição. De certa
forma é como se a linguagem fosse reinventada diariamente pois os diversos
mecanismos de transformação – sufixação, entoação, uso de diminutivos –
são usados de diferentes formas dependentemente do contexto. As regras da
língua são flexíveis e esta parece ser a sua maior riqueza pois permite que a
linguagem seja apropriada quer pelo indivíduo quer pelo grupo.
Esta flexibilidade e potencial transformativo têm que ser entendidos
num contexto histórico social mais alargado. Tradicionalmente haveria uma
necessidade do grupo de não ser entendidos pelos pajos, uma vez que a
proximidade entre o espanhol e o português é grande. Ora o que ouvimos
então é uma linguagem disfarçada favorável ao secretismo e á cumplicidade.
Acredito que estes mecanismos de “disfarce” possam funcionar a todos os
níveis, ou seja, não só na dicotomia cigano/não cigano mas também entre
diferentes grupos de ciganos e mesmo até entre indivíduos do mesmo grupo
pertencentes a géneros ou faixas etárias diferentes.

Seria necessário um estudo linguístico profundo para entender todas as


nuances desta linguagem que os ciganos da Baralha falam entre si. A
classificação é difícil e mesmo em termos de recolha de vocabulário
confrontamo-nos com bastante inexactidão em termos de significado e
significante. Muitos dos vocábulos que os indivíduos dizem ser espanhóis já
sofreram transformações coloquiais e não podemos classificá-los como tal.
Encontramos então vocábulos portugueses e espanhóis que foram
“aciganados” e são muitas vezes usados metaforicamente. A riqueza
metafórica com que nos deparamos quando começamos a entrar no discurso
local é espantosa e um dos principais elementos de humor. As palavras e as
suas possíveis transformações são ferramentas poderosas e a sua forma
depende do contexto em que é usada. O potencial lúdico da linguagem é
muito rico.

Embora nos seja complicado discernir e justificar qual a linguagem que


usam na Baralha e mesmo se estamos perante um dialecto ou não, aqui
interessa-nos sobretudo entender a grande significância da partilha da
linguagem e o que isto significa em termos étnicos e identitários. Assim, ainda
que a pergunta “que língua falam” possa ter múltiplas respostas, algumas
contraditórias entre si, todos os elementos da comunidade parecem concordar
num ponto: todos falam à cigana, isto é, à maneira cigana. Seria do maior
interesse entender os processos linguísticos e históricos que originaram esta
linguagem contudo, na ausência de mais informação que apoie esse projecto,
resta-me sublinhar a importância da língua no estabelecimento de
diferenciação étnica e a sua natureza versátil e flexível que imprime um
registo próprio nas relações sociais. Independentemente dos localismos –
dentro do grupo étnico – todos os elementos falam à cigana.

Falar à cigana não é falar uma determinada língua, uma língua


específica passível de fixação, mas antes falar de uma determinada maneira
que possibilite o entendimento dentro do grupo e o distanciamento do não
cigano, dos pajos. Assim falar à cigana é o primeiro traço identitário de um
cigano. Significa entender e manejar diferentes processos linguísticos e
diferente vocabulário de origens distintas. Significa ser capaz de partilhar um
processo de comunicação característico de determinado grupo étnico.

Num casamento onde estive presente G. apontava-me uma mulher que


em nada se distinguia das outras mulheres ciganas presentes. Trajava saia
comprida e usava o cabelo comprido apanhado num rabo-de-cavalo. G.
confidenciava-me que ela era senhora, paja, mas que era casada com um
cigano. Disse-me que ia falar com ela para ver se já falava à cigana. Voltou
satisfeita. Disse que ela já era cigana, pois falava como eles, vestia como eles
e até pegava no bebé como as ciganas, “é igual a nós” – concluiu.

Para ilustrar a natureza complexa e híbrida da linguagem que utilizam, e


um pouco do seu sistema fonético, apresento em seguida algumas palavras e
expressões (transcritas como são ditas), tal como são comummente utilizadas
no acampamento. Esta amostra pretende ser apenas ilustrativa e não um
dicionário.

Aja = Lá
Aji = Ali
Alantre = À frente, adiante
Buscalio = Aquela que busca problemas
Caja-te! = Cala-te!
Chabo! = É verdade!
Culeta = Trança
Drigaini ou drigaina = Magrinha
Gilau = Gelado
Guena moça = Rapariga/mulher bonita ou boa (Forma de chamamento comum entre
as mulheres)
In cané si méte! ou Em canúria se mete! = Mete-se em confusão ou problemas
Inriadora = intriguista
Listra = refilona, espertalhona
Lo à jibado = Levou-o
Louquini = louquinho ou louquinha
Manganau= enganei-me
Me boi à laval = vou lavar [a roupa]
Nós peliemos = Nós lutamos
Pongo-ti-lo! = Põe-no!
Porque no te parerrás? = Porque não te mudas?
Posso quitar? = Posso tirar?
Pra quel lau = Para aquele lado
Qui à diguini? = O que é que disse?
Qui chanela!= Que bonita/ que esperta
Qui churo/a! = Que feio/ que mau
Rajina = galinha
Su pai lhe à dau = O pai dela deu-lhe
Terca = Porca
Vai diguir = Vai dizer
Recolha de vocabulário

A maior parte do vocabulário aqui apresentado foi recolhido junto do


Aguelito - e posteriormente confirmado junto de alguns elementos da grupo,
nomeadamente da sua filha, a Tia C.. Também ela forneceu uma parte
substancial desta recolha. Outros elementos contribuíram esporadicamente
relembrando palavras cuja utilização é já rara.

Como disse, a maior parte dos indivíduos não faz uma distinção clara
entre o que é romanó e o que é espanhol. Nesse sentido, a contribuição do
Aguelito foi essencial. Palavras que alguns me ensinaram como sendo romanó
foram, mais tarde, assinaladas por este como espanhol ou derivadas deste.

Apenas uma pequena parte das palavras romanó recolhidas é de


conhecimento e utilização generalizados no grupo. Palavras como manrón
(pão), panhi (água), unga (sim), camelar (querer), entre outras, são ainda
utilizadas pelos adultos e mesmo pelos mais novos. Para algumas das palavras
fornecidas pelo Aguelito não foi possível encontrar uma confirmação junto da
comunidade ou mesmo da sua filha. “Já ninguém sabe” – como o próprio me
disse tantas vezes.

Na Baralha, o termo caló é usado identitariamente e o termo romano é


utilizado em relação à língua. Para respeitar as categorias nominativas locais,
por um lado, e, por outro, tornar possível uma comparação entre as palavras
recolhidas na Baralha e aquelas que os dicionários e registos consultados
definem como caló, vou utilizar a designação local: romanó. Esta comparação
é analiticamente relevante pois mostra um pouco do processo pelo qual um
vocábulo caló se transforma em contacto com a língua portuguesa ou como
este é adaptado diferentemente pelos grupos.

Invariavelmente os dicionários (espanhóis) de Caló utilizados não


mencionam onde foram recolhidos os vocábulos e tendem a apresentá-los
como generalizados. Como tal, não será sempre claro se uma diferença entre
dois vocábulos é devida a um ‘aportuguesamento’ ou a uma diferença original,
isto é, uma variação regional anterior à entrada em território português. Dado
a natureza fragmentada da língua e a riqueza da variabilidade regional, a
generalização dos vocábulos, necessária ao estudo, tende a fixar formas.
Mesmo numa amostra tão pequena como a do presente estudo isto acontece:
entre duas formas de dizer a mesma palavra (por vezes pela mesma pessoa)
optei pela sempre pela mais frequente. Deve ter-se igualmente em
consideração que as palavras em caló seleccionadas não esgotam as
significações possíveis. Por exemplo, existem várias palavras que significam
pistola, espingarda ou arma em Caló, no entanto, seleccionei apenas aquela
que é semelhante à palavra usada na Baralha. Da mesma forma, currelar tem
muitos significados em Caló mas aqui menciona-se apenas o significado
atribuído na Baralha.

Sempre que possível foi acrescentada a origem da palavra assim como


o vocábulo em Romani de onde esta deriva. Como se verá, em alguns casos
trata-se exactamente da mesma palavra. Infelizmente, noutros casos,
encontrei referência à origem da palavra mas não a encontrei a mesma em
Romani (ou o contrário). Ainda que incompleta, esta pesquisa demonstra-nos
a relação evidente entre o Romanó da Baralha e o Romani, a língua “cigana”
indo-europeia derivada do Sânscrito que sofreu a influencia de diversas
línguas indianas, da língua eslava, do grego, do persa e, evidentemente, de
várias línguas europeias. O Romani sobrevive na Europa nas mais diversas
formas desde o século XV. Na Baralha também.

Também nos dicionários e registos usados referentes ao Romani se


tende a usar formas fixas generalizadas sobre o termo alargado de Romani.
Quando não encontrei uma especificação do dialecto mantive o termo geral.
Noutros casos encontrei uma correspondência directa com termos do Romani
Calderás, o dialecto Romani usado na Romania que é também o mais
conhecido e generalizado.
Vocabulário Romanó recolhido na Baralha

Romanó Caló Origem/Raiz Português


(fonética
portuguesa)

araquerar v. araquerar; acarabear do Sânscrito Falar

Rom. Cald.: akharel


arcanhi aracate; jaracañales possível relação com Polícia
subs. fem..sing. arakhel (Rom.Cal. =
guardar)

balisco baló; balischó do Sânscrito; do Porco


subs.masc.sing. Hindi (barah)

Rom. Cald.: balo


barqui bacria; braqui Cabra
subs.fem.sing.
(masc. bracó) Rom.Cald.: bakri

barri baji do Sânscrito; do sina, sorte


subs.fem.sing. Persa (baknt)

(“echar la barri”) (“penar la baji”) Rom. Cald.: baxt (“ler a sina”)


basni basni; cañi do Sânscrito Galinha
subs.fem.sing.
(masc. basnó) Rom.Cald.:khajni

bastes bas; ba do Sânscrito(hasta); Mãos


subs.fem.pl. do Hindi (hath)

Rom. Cald.:vast
bato;pato bato da palavra russa: Pai
subs.masc.sing. batusdlka
(pl. batuces)

berdô berdô possível relação com Carro


subs.masc.sing. (navio; ferro; carro) vurdon (Rom.; =
carroça)

busnó busnó provavelmente do homem não cigano


subs.masc.sing. Sânscrito (pessoa em
geral; pessoa
impura)
calhardó gallardó; callardó preto; luto
adj.masc.sing.
(fem. callardi; calhardi)
(fem. calhardi)
caló caló do Sânscrito: do cigano
subs.masc.sing. Hindi (kala =escuro,
(fem. cali; pl. calé) negro)
Rom: kalo
Cambri arañi adj. Grávida
adj.fem.sing.
ararí;cambri subs. Rom: khamni

camelar v. camelar do Sânscrito Querer

Rom. Cald.:kamel
cangri cangri do Persa(literalmente Igreja
subs.fem.sing. torre)

chabo; chaborro chaborro; chabo; do Árabe e do menino/a cigano/a


subs.masc.sing chavo Sânscrito

(fem. chaborri) (fem. chaborri;chabi;


chavi) Rom.: chavo
chalar; chalelar chalar; chalelar do Sânscrito ir,andar
v.

chanela chanelar v. bonita, esperta


adj.fem.sing.

chanelar v. chanelar entender,saber

Rom.Cald.: xatjarel
chorar v. chorar do Sânscrito; do Roubar
Hindi (chor =ladrão)

Rom.: tchor
chungalo chungalo; chunga do Hindi (choona) feio/a
adj.masc.sing.

(fem. chungali)

chuquel chuquel do Persa Cão


subs.masc.sing.
Rom. Cald.: zukel
corrijo criança ou jovem
subs.masc.sing. não cigano

(fem. corrija)
currelar v. curelar; curar do Hindi (gurhna) pegar, roubar

estaripén estaripel, estaripen do Árabe Cadeia


subs.masc.sing.

estatchi estaché do Árabe (corda) Chapéu


subs.masc.sing.

grai grã do Sânscrito; do Cavalo


subs.masc.sing. Hindi

Rom.Cald: grast
greni jeriñi; jeñi; greñi burra
subs. femc.sing.
jaqui yaque;yéqui,yequero do Sânscrito (aksha) fogo, lume
subs.masc.sing.
Rom.: yak

jero jero; shero do Sânscrito (siras); Cabeça


subs.fem.sing. do Hindi (sir)

Rom.: shero
lachê lacha; lache do Sânscrito Vergonha
subs.fem.sing.
Rom.: lashav
ladicar v. dicar;diquelar; do Hindi (dehk) Ver
endicar;diar
Rom. Cald.: dikhel
lumia lumia; lumi; lumiaca prostituta
subs.fem.sing.

manrón Manró do Hindi (roti) Pão


subs.masc.sing.
Rom. Cald.: manro

marcura Marcúri do Sânscrito; do gato


subs.masc.sing. Eslavo (mackra)

Rom.: machka
más Maas do Sânscrito; do Carne
subs.fem.sing. Russo (miàso)

Rom.: mas
matô; pilô matagarnó; mato do Grego (methúw) Bêbado
adj.masc.sing.

Matus do Latim? mãe


subs.fem.sing.

Mole Mol palavra Persa pura Vinho


subs.masc.sing.

Mui Mui do Sânscrito; do boca


subs.fem.sing. Hindi (mookh)

Rom. Cald.: muj


narrar v. najar; najabelar do Hindi (natha) Fugir

pajo (ou padjo) Paillo homem/mulher não


subs.masc.sing. cigano/a
(fem. pailla)
(fem. paja ou
padja)

Panhi Pañi do Sânscrito (paniya) Água


subs.fem.sing

Rom.: pani
parnó Parné Dinheiro
subs.masc.sing.

Rom:parno

peles pele pl. coragem


subs.masc.pl. (literalmente os
genitais masculinos)
(“ter pelés”)
pinrés pinró sing; pinré pl. Pés
subs.masc.pl.
Rom.: punrro

puscanhi Pusca do Espanhol Espingarda


subs.fem.sing. (escopeta) ou do
Russo (pusclica)
quer; quel quer; ké do Sânscrito; do Casa
subs.fem.sing. Hindi (kurna)

Rom: kher
rajipen Jachapen; jallipén do Sânscrito; do Comida
subs.fem.sing. Hindi (khaja)

ralar v. jalar;jamar do Sânscrito; do Comer


Hindi (khana)

Rom: xa-
Rambo Hambo homem/mulher não
subs.masc.sing. cigano/a
(fem. hamba)
(fem. ramba)

rebén galinha
subs.fem.sing.

relaoras Rilaoras Batatas


subs.fem.pl.

rocal juncal; jucal; bonito/a


adj.sing. jucalorro

Rom Rom em todas as esposo/a cigano/a


subs.masc.sing. variedades do
Romani Ocidental
(fem. Romi) (fem. Romi) significa esposo/a ou
homem/mulher
cigano/a
rununares undunar; jundanal Polícias
subs.masc.pl.

Sacais sacais; acais Olhos


subs.masc.pl. Rom:jakha
sobar v. sobar, sobelar do Sânscrito Dormir
(svapati); do Hindi
(sona)

Rom: sov-
tchatchipén tchatchipen; do Sânscrito Verdade
subs.fem.sing chachipen (composto:
cha=verdade + chipe
=língua)

Rom.: tchatchipen
Undebel Debel; Undebel do Sânscrito (da Deus
subs.masc.sing. palavra céu)

Rom :Devel
unga adv. Unga do Sânscrito Sim

Uscasti Caste do Sânscrito; do lenha


subs.masc.sing. Persa; do Hindi
(gachh)

Rom. Cald.: kast


Habitação e apropriação sociocultural do espaço

É numa rua de pouco movimento, rodeado de eucaliptos pelos dois


lados, que encontramos o acampamento da Baralha. A entrada principal é
precisamente por esta rua, entre dois muros, e estende-se numa “avenida” de
terra, desnivelada e ligeiramente ascendente, até ao fim do acampamento. Ao
longo desta “avenida”, que funciona como eixo central da estrutura
habitacional, as barracas dispõem-se em duas fileiras contínuas de ambos os
lados. As casas surgem como ramificações que partem deste tronco central de
natureza eminentemente pública, espaço colectivo de circulação e acesso. Este
é um espaço essencialmente pedonal embora os veículos acedam às
habitações para descarregar. Não é, no entanto, um espaço de
estacionamento pois os carros não são normalmente estacionados em frente
ás barracas. Este espaço central permite a visibilidade de todo o acampamento
de qualquer uma das casas. Permite, por esta razão também, que as crianças
brinquem livremente sob a vigilância de todos. É também neste espaço que se
realizam festejos, muitas das vezes com imensa gente. A maioria das casas
têm a porta principal virada para este espaço, embora possuam uma segunda
porta para as traseiras. É frequente que as pessoas se juntem à porta das
suas casas, à volta de fogueiras que fazem sobre chapas grandes. Mais à
frente falaremos um pouco mais sobre esta área frontal de cada casa que
funciona como um prolongamento da mesma não deixando de ser um espaço
eminentemente público e colectivo.

Num primeiro olhar vemos então este espaço alargado de terra ao longo
do qual estão construídas as habitações. Isto é o núcleo central do
acampamento. Num segundo olhar vemos que também o espaço envolvente é
apropriado e alvo de várias utilizações: estacionamento, secagem da roupa,
queima e depósito de sucata, espaço de alojamento de cavalos (quando os há)
e, claro, ‘wc’ público, uma vez que os barracos não possuem canalização ou
esgotos. Esta utilização do espaço envolvente dizem-me ser negociada com os
proprietários. Muitas vezes o espaço é cedido na condição de não serem
cortadas árvores e este é um compromisso respeitado na generalidade.
As barracas, de diversas formas, diferentes tamanhos e mais ou menos
precárias, dependendo da situação económico-social da família, reflectem a
flexibilidade e adaptabilidade da construção como um todo. Encontram-se
como que encaixadas umas nas outras e na paisagem exibindo uma lógica
espacial própria e uma irregularidade paradoxalmente simétrica. Algumas das
casas parecem apenas uma habitação mas encontram-se subdivididas
internamente, de forma a que dois casais (pais e filho/nora) possuam
habitação independente. Esta independência de espaços, nomeadamente do
espaço destinado a cozinhar, é comummente desejada depois do nascimento
de um primeiro filho. Nestas alturas, a nora passa a “cozinhar separado”.

As barracas possuem electricidade apesar de não possuírem agua. É


portanto comum encontrar uma televisão, um frigorifico, uma aparelhagem ou
até playstation, no caso dos mais novos. O fogão é normalmente a gás. A
cozinha/sala é o espaço mais importante e mais frequentado da casa onde se
cozinha e se passa o tempo em família junto ao fogo. É um espaço
multifuncional e amplo por excelência. O fogo – numa salamandra ou sobre
uma chapa ou braseira – é o ponto focal de socialização. Muitas vezes é feito
cá fora, na área frontal da casa, e não lá dentro na cozinha, mesmo havendo
espaço e local para tal. Os casais mais novos não fazem uso da sua casa desta
forma, não fazem fogo e muitas vezes nem “cozinham separados” – é na casa
da mãe do homem, da sogra, portanto que comem as refeições e socializam
junto ao fogo.

Na cozinha/sala – divisão a que normalmente se acede pela porta


principal – é comum encontrarmos uma grande quantidade de louça exposta
nos armários. Pratos, pratinhos e chávenas de cores fortes e também
dourados, são dispostos de forma organizada em exposição. Também
encontramos paninhos de renda ou com estampados. Em geral uma mulher
que mantenha assim a sua cozinha é elogiada por todas. A louça é muito
apreciada embora algumas mulheres com menos espaço ou menos dedicadas
às lides domésticas abdiquem desta decoração. Nos espaços de dormir são
comuns as colchas e almofadas rendadas e, sobre uma arca, subindo parede
acima encontramos invariavelmente os cobertores (“as mantas”) coloridos,
dobrados e empilhados uns sobre os outros em múltiplas faixas coloridas.
Estes cobertores são usados para fazer a cama todas as noites e voltam a ser
empilhados pela manhã. Na falta de camas, estas são feitas sobre o chão.
Nunca vi uma cama feita para dormir nem à noite nem de manhã. Durante o
dia apenas as cobrem os colchões. A ideia de uma cama feita todo o dia
parece desagradar bastante estas mulheres.8 Os cobertores empilhados, a
que, aliás são também objectos bastante queridos das mulheres que parecem
achar sempre que são poucos. Nunca são guardados em armários ou arcas e
são quase sempre o cenário de fundo preferencial para tirar fotografias.

A área em frente da casa tem um importante carácter sociocultural.


Este espaço frontal da habitação funciona como um prolongamento da casa,
não só como espaço de socialização mas, muitas vezes, como um espaço de
trabalho para lavar a louça (sobretudo no verão), para cortar lenha, para fazer
cestos ou tratar de sucata. Algumas das barracas possuem uma cerca a
delimitar esta área sem que no entanto este seja uma área fechada. Aliás, a
porta da frente das barracas está sempre aberta. Estando a porta aberta, o
que acontece durante todo o dia, a barraca está aberto a todos e o comum é
que se entre e saia sem pedir licença. Mesmo o interior da habitação –
especialmente a cozinha/sala que é a primeira divisão da casa - não pode ser
reclamado como um espaço completamente privado. Obviamente que
relações de afectividade poderão delimitar quem entra onde mas, de uma
forma geral, a casa está aberta. Uma porta fechada implicará que alguém está
doente ou a dormir ou a fazer a sua higiene pessoal, o que não é comum nem
visto com bons olhos, durante o dia. Nunca vi ninguém a bater a uma porta
fechada podendo este facto constituir o limite à vida pública. Estes espaços, a
área frontal da casa e também a cozinha/sala desafiam noções
preestabelecidas de público e privado na medida em que as fronteiras entre
estes conceitos se diluem, interpenetrando-se.

Os espaços dentro da habitação tendem a ser alargados tal como as


famílias. A amplitude parece ser preferencial à compartimentação excessiva,
especialmente nas áreas destinadas a cozinhar, comer e estar. Não são
comuns as portas dentro de casa, dando-se preferência à acessibilidade Os

8
As crianças, quando visitaram a minha casa pela primeira vez, perguntaram pelas minhas
mantas e mostraram estranheza pela forma como a cama estava feita para dormir.
quartos, quando existem separadamente do resto da casa, isto é, com paredes
entre si, são pequenos. Na maioria das barracas a área de dormir constitui
uma segunda divisão ampla com varias camas que, à noite, são separadas por
cortinas. No caso dos casais mais novos, estes habitam as barracas
construídos mais recentemente que normalmente são constituídos por uma
única divisão onde se cozinha (se for o caso), se vê televisão e se dorme.
Outras famílias possuem igualmente apenas uma divisão que partilham com
cinco ou seis filhos pequenos. Nestes casos, apesar da divisão única, as
diferentes áreas – de dormir, de ver televisão, de cozinhar… – encontram-se
claramente definidas e delimitadas e visivelmente diferenciadas no espaço
apesar da ausência de paredes.

Pode não existir uma área de refeições definida ou, mesmo existindo,
esta pode ser preterida a favor de uma banco na porta da casa. Nem todas as
casas possuem uma mesa. Os hábitos alimentares, como veremos adiante,
não implicam um horário rígido e uma partilha da refeição à mesa por toda a
família. Come-se quando se tem fome e não necessariamente sentado.

Normalmente as barracas possuem uma porta para as traseiras, ou


lateral se o espaço atrás da casa é exíguo. Esta é uma porta mais privada para
uma área mais privada, digamos. Ou seja, não se verá nunca ninguém lavar
ou estender roupa na parte da frente da casa mas isso acontece na parte
traseira.

Se considerarmos esta área traseira como o espaço mais privado e a


rua como o espaço mais público, poderemos entender como toda a área entre
estes dois pontos está sujeita a uma constante rearticulação e renegociação
de significados espácio-culturais. Ou seja, partindo da rua para a área traseira,
atravessando a casa, movemo-nos através de espaços cada vez menos
públicos e cada vez mais privados sem que isso implique uma definição rígida
e cimentada das diferentes áreas. O mesmo acontece, obviamente, em
sentido inverso. A conceptualização dos espaços é tão flexível quanto a
funcionalidade dos mesmos. Aliás, a flexibilidade e multifuncionalidade dos
espaços públicos e privados são características intrínsecas da cultura cigana
como foi já observado e sublinhado pelo arquitecto espanhol Juan Montes
Mieza (1986).

Na verdade, desde que iniciei o trabalho de campo o acampamento já


mudou de disposição inúmeras vezes – quer interiormente, quer
exteriormente. Creio que não há uma única barraca que mantenha a mesma
disposição no seu interior. Exteriormente, também a maior parte delas sofreu
alterações. E apesar do espaço disponível já não ser muito construíram-se
novas barracas para novos casais.

Por dentro acrescentam-se ou subtraem-se divisões, altera-se a


disposição da mobília, transformam-se os quartos em salas e as salas em
quartos. Cimenta-se o chão ou coloca-se azulejo para ser “menos miséria”.
Por fora melhoram-se os telhados e às tábuas que fazem de parede,
acrescentam-se janelas, aumenta-se a barraca, pintam-se as paredes e
fazem-se cercas a delimitar o espaço.

A maioria das alterações de grande monta faz-se durante o verão.


Nesta época, algumas famílias mudam-se para o mato atrás das casas e
passam a habitar tendas semi-abertas onde dispõe os seus móveis e
pertences. O chão, para evitar a poeira, cobre-se de ramos de eucalipto.

Ultimamente, algumas destas mudanças envolvem a completa


reconstrução da barraca em cimento e tijolo com azulejo no chão e paredes
pintadas. Este esforço envolve alguma disponibilidade económica para compra
dos materiais e contratação de um pajo que fará o serviço. Não é costume
serem os próprios a fazer as obras mas por vezes auxiliam os profissionais que
contratam.

Esta versatilidade e flexibilidade com que o espaço é apropriado e


desapropriado é algo que deve ser sublinhado e estará eventualmente
relacionado com antigos hábitos nómadas. As recentes casas de tijolo são o
que de mais sólido e definitivo existe no acampamento. De resto, tudo é
passível de mudar de um dia para o outro. Quer pela facilidade que os
materiais permitem – madeira e chapa - quer pela vontade dos habitantes de
alterar a disposição interior, seja porque sim, seja porque agora chove onde
antes não chovia, seja porque alguém morreu, como veremos. As habitações
na Baralha modificam-se e adaptam-se quotidianamente à vida dos seus
habitantes.

A diferente percepção do espaço doméstico como um espaço


eminentemente público de socialização, de natureza versátil, levanta
problemas sobejamente conhecidos relativamente ao realojamento de famílias
ciganas em habitação social. A forma como o espaço é apropriado está
intimamente relacionada com um passado de nomadismo que implicaria a
reconstrução frequente do espaço habitacional. Pormenores como fazer e
desfazer as camas diariamente, atirar o lixo para o chão, o pouco apego
demonstrado aos objectos materiais, parecem de facto estar relacionados com
a herança deixada por uma vida itinerante.
Economia e subsistência

Antes do Rendimento Social de Inserção (RSI) constituir o principal


rendimento das famílias do acampamento, o que terá acontecido há cerca de
uma dúzia de anos, a venda de cestos fabricados pelos homens e a revenda
de outros produtos, como roupas, facas, etc.,9 assim como a leitura da sina e
a mendicidade por parte da mulheres, constituíam as principais fontes dos
parcos rendimentos desta família.

A cestaria era uma ocupação tradicional dos homens embora hoje em


dia apenas dois elementos deste grupo continuem a fazer cestos,
normalmente por encomenda de outros ciganos, e os mais jovens não tenham
interesse em aprender esta arte que, verdade seja dita, pouco lucro garante e
dá muito trabalho. A leitura da sina era outra actividade que garantia a
sobrevivência no passado embora hoje, devido à ligação com a Igreja
Filadélfia, seja mal vista. Ler a sina – echar la baji – é uma arte que o
imaginário colectivo identifica com as ciganas, rodeando-as de uma áurea de
misticismo mas, na realidade, as mulheres deste grupo riem-se disso e
admitem que a leitura da sina era um embuste estratégico onde, com alguma
perspicácia, poderiam surpreender mulheres mais crédulas e ansiosas por
boas previsões. E quanto melhor estas fossem – contam – mais dinheiro essas
mulheres davam.

O falecido Aguelito dedicou-se sempre à venda ambulante,


principalmente de tecidos e roupa, fazendo inclusive contrabando entre
Espanha e Portugal, quando isso era comum. O seu irmão, o Tio A., também
se dedicou à venda – primeiro ambulante, depois em feiras, e alguns dos seus
filhos continuam a faze-lo. O Tio D. – que vive neste grupo – é precisamente o
único a “fazer feira”. A família do lado do Tio J., não parece estar tão ligada à
venda em feiras, parecendo estar mais ligada tradicionalmente à cestaria, aos
cavalos e, em tempos mais recentes, à sucata. Em vez de envolvidos numa
única actividade, parecem ser mais dados a diversificar as suas fontes de
rendimento e os seus negócios.

9
Actividade que deixou de ser rentável devido a proliferação de lojas chinesas, dizem.
Não vamos aqui detalhar como viviam – ou sobreviviam – estas famílias
no passado pois isso merece um capítulo por si só. Interessa-nos antes definir
as práticas económicas actuais assim como as actuais lógicas de gestão
económica e doméstica. Na verdade, a forma como os rendimentos são
geridos e, de uma forma geral, as estratégias económicas, parecem muito
dependentes ainda das lógicas do passado, caracterizadas fundamentalmente
pela precariedade, transitoriedade e efemeridade. Voltaremos aqui.

Ora, hoje em dia, o RSI garante um rendimento mensal garantido


atribuído de acordo com o número de elementos do agregado familiar e
respectivas idades, e segundo um acordo de inserção que determina que os
indivíduos cumpram com determinadas obrigações que é suposto contribuírem
para a sua inserção social. No caso dos elementos deste grupo, a frequência
escolar é a principal medida imposta. Assim as crianças têm que frequentar o
ensino regular e os adultos, o ensino recorrente.

Para além deste rendimento fixo, os homens de cada família


esforçam-se por aumentar o rendimento familiar através de outros
negócios ou ocupações, como a venda de sucata, o negócio com cavalos
ou, ainda, os cestos. Na verdade, os rendimentos obtidos com estas
actividades são parcos o que parece sugerir que os indivíduos se dedicam a
elas mais pela importância sociocultural do negócio, da actividade
económica em si. As actividades económicas a que os homens se dedicam,
e a forma como o fazem, distribuindo trabalho e lucro, reflectem, nas
palavras de Alda Gonçalves et al.: “lógicas e racionalidades (…) que se
configuram de forma diferenciadora das que prevalecem na sociedade
dominante” (2000: 2). Para Fátima Pinto, “as actividades tradicionais das
comunidades ciganas têm geralmente mais a ver com as actividades típicas
das sociedades pré-capitalistas, pelo peso que assumem neste âmbito, por
exemplo, a desvalorização da noção de lucro e de produção de excedentes,
quer a própria solidariedade inter-familiar, como núcleo a partir do qual se
desenvolvem tais actividades” (2000: 135).
Entre os homens, negociar é parte do seu universo e identidade. De
certa forma, o facto de se dedicarem a práticas socioeconómicas que estão à
margem da economia dominante, e de assim procurarem mantê-las,
rejeitando por exemplo a possibilidade de legalizarem essas actividades, ou
mesmo de trabalhar para outros com empregados assalariados, está
intrinsecamente relacionado com a manutenção da identidade étnica,
enquanto indivíduos e enquanto grupo.

A liberdade, flexibilidade e autonomia a que estão tradicionalmente


habituados são incompatíveis com a rigidez de um horário laboral, com a
fixação não discutível de tarefas e com a autoridade patronal. Assim, ainda
que alguns destes jovens tenham já tido breves experiências em contextos
laborais, no âmbito de outros projectos, nunca foi uma adaptação fácil. O facto
de estar fechado dentro de um espaço é recorrentemente apontado como algo
difícil de suportar por todos os membros deste grupo, adultos ou crianças,
acostumados a estar ao ar livre.

Se as questões do RSI são directamente relacionadas com o universo


feminino, uma vez que são as mulheres as responsáveis por tratar dos papeis
e contactar as entidades responsáveis e, portanto, são questões de fácil
acesso para mim até porque muitas vezes me envolvi directamente nos
processos, as restantes actividades económicas pertencem ao universo
masculino, embora as mulheres possam participar e estar mais ou menos
envolvidas. Os negócios são uma questão dos homens e parecem ocupar
grande parte das suas conversas. Pela minha própria condição de género não
me foi possível aproximar deste mundo de uma forma socialmente
conveniente. Pela observação e por questões que fui colocando eventualmente
recolhi informação muitas vezes cedida com alguma condescendência.
Contam-me frequentemente, especialmente os mais novos, sobre negócios
que fazem – se alguém vendeu ou comprou um carro, uma aparelhagem ou
qualquer outra coisa – mas isto não são negócios para ganhar dinheiro mas
sim actividades que podem ser consideradas de socialização pois o negócio, a
troca, são partes intrínsecas do universo masculino, como já mencionei.
Os rapazes, desde pequenos, falam e fazem negócios entre si trocando
brinquedos, ou vendendo algum deles em troca de algumas moedas. Antes de
saberem até o real valor do dinheiro este já faz parte das suas vidas e da sua
interacção social. E também, claro, das suas brigas nas quais os adultos não
interferem a não ser que se tornem violentas. Os miúdos pequenos brincam à
sucata juntando pedaços de metal velho imitando, dessa forma, os seus pais.

Observemos individualmente as actividades em que se ocupam os


homens:

Cestaria

A feitura de cestos parece ser de origem remota. Apenas dois homens


no acampamento, os dois filhos mais velhos da Tia C. continuam a faze-los
quando há vime e, normalmente, por encomenda. O pai de ambos, o Tio J.
sabia faze-los e normalmente a mulher e os filhos iam vende-los pelas portas.
Parece ter sido uma actividade bastante recorrente no passado. Hoje os mais
novos não tem interesse em aprender porque “ não dá nada”, ou seja,
significa muito trabalho para pouco dinheiro. As lojas chinesas e os
hipermercados vendem cestos a preços competitivos e não compensa tentar
concorrer com eles. A Tia C. conta que nos últimos anos, em que ainda podia
andar, o seu marido ainda comprou cestos nos chineses e vendia-os como se
fossem feitos por si.

Sucata

Ir “apanhar um bocadinho de sucata” é uma actividade que ocupa


grande parte dos homens durante o dia. È necessário ter um carro ou carrinha
e percorrer largas distâncias muitas vezes. Por vezes, a sucata é encontrada
nas bermas de estradas, outras vezes, é comprada em casas particulares ou
fábricas. Há contactos já estabelecidos com determinadas pessoas a quem
recorrem esporadicamente para saber “se têm alguma coisa”. Os que tem
carrinhas maiores transportam por vezes máquinas grandes, outros, com
carros mais pequenos transportam tudo o que possa caber.
Apesar de serem maioritariamente os homens que se ocupam da
sucata, as mulheres muitas vezes os acompanham. Os filhos rapazes desde
cedo se acostumam a acompanhar os pais e ajudam a descarregar e a limpar
as peças conseguidas, uma vez em casa. Muitas vezes os outros homens,
irmãos ou sobrinhos ajudam nestas tarefas e por vezes acompanham na
procura.

Mesmo os meninos mais pequenos, durante deslocações que fazem


comigo, estão atentos aos caminhos e a eventuais peças de sucata. Os mais
velhos tomam muitas vezes a iniciativa de ir falar com pessoas que possam
ter algo que interesse à porta de casa ou no quintal para combinar ir lá buscar
depois. Mesmo as mulheres, e a própria Tia C., estão sempre atentas a
frigoríficos velhos, banheiras antigas, enfim qualquer coisa que se aproveite e
que se esconda entre os arbustos no caminho. Esta é uma procura que
envolve todos os elementos da família, homens, mulheres, miúdos e graúdos.
Os jovens adolescentes são, no entanto, os mais atentos e os mais activos
nesta procura, talvez pela sua aproximação cada vez mais rápida e desejada
ao mundo dos homens adultos.

Mesmo os homens que não se dedicam à sucata podem faze-lo


esporadicamente ou participar de vez em quando nesta actividade com outro
elemento da família mais activo nestas andanças. Os mais novos que já são
casados e desejam por isso autonomizar-se mais, procuram acompanhar o
pai, tios, irmãos ou cunhados, recebendo uma parte pelo seu trabalho. Desde
muito pequenos os rapazes envolvem-se na procura e no negócio – desde
muito cedo as referências à sucata nas suas brincadeiras são constantes.

Cavalos

Os cavalos também são uma referência importante no universo


masculino. São talvez os animais mais apreciados e ter um cavalo é motivo de
orgulho. Homens e mulheres apreciam a beleza e o porte dos animais.
Normalmente são os rapazes mais novos que tratam dos cavalos, com o apoio
dos seus pais. Ainda que ter um cavalo possa dever-se ao prazer de o ter e
tratar dele, está sempre implícita a ideia de um eventual negócio: se houver
uma boa oferta o negócio faz-se. Aparentemente preferem manter o negócio
entre ciganos pois os pajos, dizem, “não sabem dar valor”, logo, pagam
menos pelo animal. Existe uma preferência pelas fêmeas pela possibilidade de
ter crias.

Antigamente esta família viajava com carroças puxadas a cavalo, se as


tivessem, se não, a pé. Era portanto desejável ter cavalos e isso implicava
algum estatuto social. Era igualmente importante que esses animais
estivessem bem cuidados pois a família dependia deles e um bom animal
poderia garantir um bom negocio. Na verdade, um mau animal também podia
garantir um bom negócio. Os mais velhos contam divertidos os truques que
usavam para fazer com que um cavalo velho parecesse mais novo garantindo
assim mais dinheiro na venda.

O passado recente de perseguição e exclusão, a herança cultural


deixada pelo nomadismo e pela sobrevivência estratégica em condições
extremamente adversas, deixaram inevitavelmente marcas profundas na
forma como este grupo vive e gere os seus rendimentos.

O que acontece quando mensalmente chega a prestação do RSI é que


cada família vai abastecer-se comprando comida para todo o mês. Como
também é nesta altura que se acertam contas pagando as dívidas, por
exemplo, ao padeiro e à comerciante de fruta a quem vão comprando fiado
quando já não têm dinheiro, a prestação que chega nunca dura muito, nem a
comida aliás. Claro que há famílias que gerem o seu dinheiro melhor do que
outras mas, de uma forma muito generalizada, enquanto há dinheiro compra-
se o que se quer e, quando já não há…não se compra nada. A forma como o
dinheiro é gerido é orientada para o presente, para o dia de hoje, e não para
amanhã. Ter pouco dinheiro, ou nenhum, quando se aproxima o final do mês,
não é um grande drama para estas famílias acostumadas a viver com muito
pouco.

Quando todos têm dinheiro há muita fruta, muita carne, muitas


bolachas, iogurtes, sumos e outras gulodices. Quando não há dinheiro, há pão,
massa, arroz, água, e outras coisas que garantem o básico da alimentação – e
ninguém se queixa. Mesmo as crianças estão acostumadas a esta inconstância
e adaptam-se facilmente ao contexto, sendo este de fartura ou de escassez.
Como ouvi, uma vez, uma cigana dizer: “Hoje há, amanha deus dará”.10

Na verdade, esta flexibilidade e capacidade de adaptação às condições


manos favoráveis reflectem-se em várias áreas da vida destas pessoas. A
capacidade para a improvisação, para o desenrasque, é algo que parece ter
ficado dos tempos do nomadismo, aliás, é algo que está com certeza
relacionado com a história deste grupo étnico. Assisti aos mais caricatos
episódios, sempre surpreendida pela constante reutilização, adaptação e
reaproveitamento de objectos. A necessidade com certeza aguça o engenho e
muitas vezes vi esse provérbio ser aplicado no acampamento quando, por
exemplo, foi necessário transformar um fogão num galinheiro temporário, ou
transformar uma salamandra de parede numa portátil. A constante
reconstrução criativa de objectos e utensílios – que os pequenos desde logo
aprendem – é prova da lógica de desenrasque que predomina e subverte o
estabelecido, em favor da necessidade.

De uma forma geral os indivíduos dão relativamente pouco valor aos


objectos utilitários – desde os objectos domésticos, aos brinquedos, roupa,
livros e material escolar, etc., havendo, em geral, pouco cuidado com os bens
materiais.11 Mesmo aqueles que são mais significativos no estatuto social e
para as necessidades quotidianas das famílias são sempre tratados como um
meio para algo, nunca como um fim. Um carro por exemplo, coisa que a maior

10
Alda Gonçalves et al. escreve a propósito: “A lógica que preside às suas actividades
geradoras de rendimento é imediatista, garante da satisfação das necessidades de um
quotidiano onde o amanhã raramente é perspectivado “ (2001: 23).

11
O desapego pelas coisas materiais, relacionado com a condições histórico sociais do grupo,
está na origem de alguns problemas com a sociedade não cigana. Na escola, por exemplo, as
crianças ciganas são apontadas pelo pouco cuidado que tem com o material que desaparece ou
se estraga rapidamente. O pouco cuidado e importância que se dá aos documentos e papelada
institucional, que alguns indivíduos simplesmente não conseguem deixar de perder, é por vezes
problemático no relacionamento com os técnicos de acção social. Isto não está apenas
relacionado com o desapego pelas coisas materiais, mas também com o baixo grau de literacia
e com o desconhecimento dos meandros da burocracia a que, em geral, dão pouca importância.
parte das famílias considera essencial e que todos compram, assim que
podem, nunca é tratado como um bem precioso. Transportar dez crianças aos
saltos e a comer batatas fritas, num carro de cinco pessoas é um cenário que
me parece ilustrar bem essa realidade. Uma televisão há muito desejada que
finalmente chega a casa, poderá muito bem servir igualmente para colocar
louça suja. Isto não vale em todas as habitações, entenda-se, mas na maioria
delas não constituirá um problema. Mais ou menos cuidadosas com a limpeza,
as donas de casa tem uma visão muito flexível do espaço e objectos
domésticos.

Os laços de solidariedade implícitos nas relações de parentesco e


culturalmente legitimados,12 conduzem a uma divisão do trabalho, isto é, um
homem que encontre uma ocupação temporária que lhe garanta um
rendimento, por exemplo, poderá incluir os seus filhos, genros, sobrinhos ou
irmãos, de forma a que também eles obtenham algum rendimento. O
trabalho, ou seja, aquilo que gera rendimento à família e proporciona a sua
subsistência, é algo que envolve todos, em maior ou menor grau, dependendo
do seu género e estatuto. Citando Alda Gonçalves et al.: “para as
comunidades ciganas, trabalho e vida social e familiar não são duas dimensões
separadas”, de facto, “a noção de trabalho, intimamente ligada aos seus
modos de vida, é determinada pela organização social na qual se insere e que
se baseia na família extensa – unidade na qual elementos masculinos e
femininos de distintas gerações cooperam trabalhando juntos. De acordo com
alguns estudos, a propriedade e gestão dos rendimentos obtidos pertence ao
pai e a ele compete a distribuição pelos seus filhos, de acordo com o que
entende serem as necessidades de cada um, guardando o restante para si.”
(2001: 22 e 28).

12
“a reciprocidade surge como forma privilegiada de troca num contexto em que a relação
salarial ou a busca de uma contra prestação não está sequer colocada e em que a solidariedade
e a cooperação prevalecem” (Pinto, 2000: 54).
Religião

Deus e o Diabo, a fé e as promessas, são referências constantes nos


discursos locais, especialmente dentro do universo feminino. Mas embora a fé
seja partilhada por todos, em menor ou maior grau, nem todos professam
uma religião. Dentro deste grupo encontramos famílias dedicadas ao culto,
famílias cuja participação tem altos e baixos e outras que não participam de
todo ou que só um membro do casal participa, a mulher em regra. Os casais
que não vão à Igreja deixam no entanto os seus filhos e filhas acompanharem
os parentes. “Ir ao culto”, para muitas destas crianças e jovens, constitui uma
das poucas distracções do dia-a-dia.

Assim dentro de uma mesma família alargada temos os que “são de


Deus” e os que “não são de Deus”. Aqueles que “são de Deus”, que pertencem
à Igreja e frequentam o culto têm um discurso mais moralista e uma
linguagem mais branda. Procuram seguir uma conduta moral e não ser parte
de discussões ou ilegalidades. Se tiver sido baptizado, então, deverá ter um
comportamento correcto e irrepreensível. Para uma mulher, isto poderá
significar não dançar e cantar apenas músicas de Deus.

O culto – como todos dizem – é a Igreja Evangélica Cigana de Filadélfia


de Portugal, ou Délfia, que tem vindo a cativar as famílias ciganas por todo o
país, desde os anos 70. A liberdade de expressão durante o culto, a
proximidade dos pastores ao grupo (e das pastoras, as suas mulheres), a
crença no milagre e na cura, o fervor espiritual que com que se vivem as
cerimonias religiosas, assim como o processo de redefinição de identidade que
a conversão possibilita, serão talvez os aspectos mais importantes para
compreender a dedicação ao culto que muitos dos elementos deste grupo
professam.

A doutrina deste Igreja é de origem pentecostalista, sendo portanto


uma doutrina protestante que pode ser definida através de: “a) a sua
referência à constante autoridade da bíblia em matéria de fé; b) concepção da
revelação de Deus na Sua palavra contida na Bíblia e compreendida pela
presença do Espírito Santo; c) salvação como dom de Deus; d) concepção da
igreja como assembleia de fiéis, reunidos para a celebração da palavra de
Deus (Rodrigues, D., A. P. Santos, 2004: 137, 138).

As cerimónias são realizadas por um pastor (cigano) que, estando


próximo da comunidade de crentes, deve ser um exemplo de comportamento
e servir de apoio a estes que são livres para partilhar com eles os problemas
pessoas ou familiares. A mulher do pastor – ou pastora, como todos lhes
chamam – também tem um importante papel social pois é com ela que as
mulheres falam mais sobre a Igreja e sobre as suas vidas. Também é a
pastora a responsável pelo coro, constituído unicamente por mulheres. Ainda
que os pastores mudem frequentemente – para que não se envolva
demasiado com a comunidade, dizem-me – os crentes procuram sempre ter
uma ligação próxima com eles. Na realidade, entre as crianças, por exemplo, o
casal pastor/pastora é constantemente elogiado e mencionado. Todos os
pastores que conheci até agora eram ciganos portugueses, o que pode sugerir
que a Igreja contribua para um maior relacionamento inter-étnico. Os
indivíduos mais dedicados ao culto sublinham muitas vezes que todos são bem
vindos e contam com satisfação muitos casos de pajos que pertencem à Igreja
Filadélfia. No caso desta Igreja especifica é raro que aparecem pessoas de fora
pois a Igreja é praticamente constituída por esta família.

As cerimónias religiosas não são formais e silenciosas mas antes


deveras espontâneas sendo que os crentes podem exprimir a sua devoção ou
sentimentos de qualquer forma sempre que sintam necessidade disso. A
presença do Espírito Santo entre estes garante estas explosões espirituais que
podem incluir gritos e choros. Por outro lado, a presença das crianças, sempre
inquietas, a liberdade de entrar e sair e conversar transformam estes rituais
em momentos intensos e, tal como o resto da vida diária, muito pouco
tranquilos. Efectivamente, esse à vontade quer religioso, quer social, a
separação entre física entre os homens e as mulheres – mulheres à esquerda,
homens à direita –, e outras coisas como, por exemplo, o papel da música e
do canto durante o culto ou o envolvimento activo de todos os fieis durante as
cerimónias, permitem-nos adivinhar o que terá levado os crentes ciganos a
afastar-se definitivamente do formalismo das cerimónias católicas e a adoptar
a espontaneidade e a energia dos movimentos evangélicos, muito mais em
sintonia com a as suas vivências culturais.

Não pretendemos alongar muito a exposição da doutrina da Délfia, até


porque existe literatura onde o assunto é abordado detalhadamente (ver
bibliografia). Isolemos apenas alguns elementos centrais como sendo o
baptismo, o testemunho, a cura, e o “falar línguas” – elementos estes que são
também os mais mencionados no acampamento. Ainda antes, umas palavras
sobre as cerimónias: numa cerimónia típica o pastor lê e explica citações da
Bíblia e depois prega sobre determinado assunto ou comportamento que se
relacione. Haverá também momentos em que o coro canta e todos
acompanham. Ouvem-se sempre palavras de assentimento ou veneração
como “amem”, “aleluia” ou “glória a Deus”, que os fiéis gritam livremente. Os
obreiros – que são os membros da Igreja que aspiram a ser pastores e que
são portanto uma espécie de assistentes do pastor – são convidados a orar em
voz alta, assim como as suas mulheres. O culto é realizado quatro vezes por
semana e são momentos porque todos esperam ansiosamente.

Para além das cerimónias da Igreja local organizam-se mensalmente


campanhas onde se juntam diversas Igrejas da região. É nestas campanhas
que acontecem os testemunhos e os rituais de imposição de mãos através dos
quais se procura que o demónio se afaste da vida da pessoa em questão ou
que esta se cure de determinado “mal”, ou seja, doença. As pessoas que
foram milagrosamente curadas, ou aquelas cuja vida melhorou desde que
“aceitaram Jesus”, são chamadas a prestar testemunho perante a comunidade
de fiéis. São momentos importantes e emotivos que, para aquele que
testemunha, significa um passo em frente no seu envolvimento com a igreja
e, claro, com Deus.

Os rituais de cura milagrosa são momentos emocionantes e,


normalmente, são contados e recontados depois. Histórias como “tirou um rim
e no culto voltou a nascer”, são recorrentes. Um pastor a quem tenha sido
concedido por Deus o dom da cura chama aqueles que tem uma doença ou um
mal desconhecido, para que sejam “curados em nome do senhor”. Coloca as
suas mãos sobre a cabeça destes e a todos que rezem por um milagre. Se o
crente tem um mal nas pernas o pastor incita-o a andar. Ele pode até
conseguir andar mas a sua cura só será verdadeira se tiver fé em Deus. A
falta de fé impossibilita uma verdadeira cura milagrosa. São a fé e a absoluta
confiança em Deus que fazem com que Ele vença sobre o demónio que causa
o mal no mundo e nos homens, impelindo ao pecado. O demónio é instigado a
partir e a deixar aquela alma. Pode ser preciso a intervenção de um outro
pastor que tenha o dom de exorcizar. Estes são momentos de catarse onde
todos se envolvem emotivamente, rezando, pedindo ou chorando.

Este fervor espiritual entre os crentes e a presença do Espírito Santo


entre eles, podem originar que um dos fiéis comece a “falar em línguas”, isto
é, a expressar-se emotivamente numa linguagem incompreensível. A
glossolália é comum a diversos cultos religiosos em diferentes culturas. Aquele
que é tocado pelo Espírito Santo começa a exprimir-se numa linguagem divina
que ninguém entende. É sinónimo de verdadeira devoção e, de certa forma,
um reconhecimento de pureza pelo próprio Espírito Santo que concede ao
crente aquilo que é considerado um dom.

Se o indivíduo que foi desta forma tocado pelo Espírito Santo ainda não
foi baptizado, este será um sinal de que deverá ser “baptizado pelas águas”. O
baptismo por imersão na idade adulta é comum nas doutrinas protestantes.
Representa um compromisso do crente para com Deus e para com a Igreja.
Normalmente são realizados no rio Douro onde, enquanto toda a Igreja canta,
o crente vestido de branco é mergulhado nas águas pelos pastores. Aqui, os
jovens que acompanham o culto e que manifestam esse desejo, e que se
mostram merecedores, são baptizados pelas águas. Mas “primeiro vemos se
eles servem” – dizem-me. Para uma jovem pertencer ao coro – o que é uma
grande honra e prova do seu comportamento de acordo com os mandamentos
bíblicos – deverá ser baptizada.

A música desempenha um papel importantíssimo no culto e é uma das


coisas mais elogiadas pelos crentes, especialmente pelas mulheres que
cantam as “músicas de Deus” ou ouvem cds com as mesmas, em casa. A
interdição de dançar as “músicas do mundo” – imposta às mulheres
baptizadas, é o principal motivo de critica daqueles que não vão ao culto. Isto
porque, na verdade, é muito difícil que uma mulher cigana não possa dançar
nunca na medida em que a dança faz parte da maioria dos eventos sociais que
frequenta. Talvez por isso existam situações em que uma baptizada possa
dançar sem ofender a moral da Igreja. Assim, por exemplo, quando uma
baptizada casa, é esperado que dance como manda a tradição. Aqueles que
criticam esta realidade dizem precisamente que não faz sentido poder dançar-
se nuns sítios e não noutros. De facto, a dança é um elemento essencial na
identidade feminina cigana, é algo que se começa a ensinar às crianças ainda
antes que andem, e portanto o discurso é sempre moldado perante as
circunstâncias. As mulheres mais velhas, mesmo “sendo de Deus”, dizem que
dançar como se dança nas discotecas é pecado, mas “dançar como as ciganas
não tem maldade”.

O tema da dança não é tão polémico quanto poderia. Aliás, entre os


crentes, não parece levantar nenhum problema. Nada que se compare com
aquilo que os indivíduos retiram da Igreja: a oração colectiva, os momentos
catarse, e a possibilidade do milagre. Efectivamente “ser de Deus” representa,
para muitos, uma mudança assumida de vida e de comportamentos. Assumir
o pecado e procurar viver de acordo com os mandamentos implica não mentir,
não roubar, enfim, viver de acordo com os princípios morais cristãos. Aqueles
que “são de Deus” sentem, por isso, que são diferentes daqueles que não
aceitam Jesus nas suas vidas. E, como já foi referido, existe de facto uma
diferença visível entre aqueles que “são de Deus” e aqueles que não são. Aliás
o grupo em si espera que o comportamento dos primeiros se distinga dos
demais.

Perante a acalorada discussão de duas mulheres (porque uma delas viu


um gato entrar em casa da outra e, em vez de avisá-la, comentou com as
vizinhas – entenda-se que os gatos são considerados animais nojentos e que,
portanto, são indesejados dentro das casas), todo o grupo se envolveu na
discussão, como é costume, mas desta feita principalmente porque eram
“duas baptizadas a discutir!”. Para alguns tal não era admissível, para outros,
sim. Decidiram perguntar ao pastor mais tarde se duas “baptizadas” podiam
discutir.
A Tia C. – crente dedicada e fervorosa assume sempre a conversão
como uma decisão fundamental na sua vida. Diz que: “já ando nisto há muitos
anos” e que “depois caí…mas depois levantei-me”. Associa as alturas más da
sua vida aos momentos em que viveu afastada da igreja, tal como outros.
Demonstra sempre ter uma grande fé e conta, muitas vezes, como a sua fé
em Deus ajudou sempre que houve membros da família com grandes
problemas de saúde, pois frequentemente fez promessas pela sua cura. Conta
que, por causa de um dos seus filhos que nasceu com muitos problemas,
prometeu “comer no chão e não beber café durante dois meses”e depois
“aconteceu tudo como eu pedi”. Comer no chão parece ser uma promessa
comum entre as ciganas pois é considerado um grande sacrifício, embora
muitas coloquem – dizem-me – uma couve ou um papel entre a comida e o
chão, o que é considerado uma espécie de batota. A Tia C. fala muito sobre o
pecado e critica os seus filhos que não vão ao culto insistindo que a sua vida
seria melhor se o fizessem.

Na realidade algumas das suas noras vivem, digamos, entre lá e cá,


aproximando-se da Igreja quando tem problemas graves e afastando-se
novamente depois, muitas vezes por desejo dos maridos, sendo que os
homens são menos dados à conversão. Uma delas, por exemplo, diz-me que
sempre que deixa de ir ao culto tem muitas dores de cabeça e pesadelos,
sintomas que desaparecem assim que volta a frequentar as cerimónias. Uma
outra, cujo marido é até bastante critico quanto à igreja (“ela fala assim
porque anda ai numa igreja” – dizia da Tia C., sua mãe, com algum cinismo)
quando esta o criticava por fumar demasiado), numa altura em que os
episódios de doença eram frequentes na sua família tentou aproximar-se da
igreja e, durante uma campanha, ela e o marido foram sujeitos à imposição de
mãos para que o diabo se afastasse da sua vida. Apesar de não se ter
convertido, esta sua nora é uma mulher de fé que acreditava que durante esse
período algo, mais do que o mero azar, exercia uma influência negativa na sua
vida. “Mala sombra” – exclamava frequentemente. A conversão, por vezes o
mero desejo desta, é associada à mudança de comportamento que decorre da
rejeição do pecado.
“Antes de saber o que era o pecado rogava pragas e atirava e tomates
ás prostitutas na estrada” – confidenciava-me envergonhada uma baptizada.
Outra mulher diz-me que, pelo contrário, “tem muitos pecados…digo pragas e
falo mal das outras”, diz que não quer ser como outras que se baptizam e
continuam a pecar e que, portanto, só se vai baptizar “quando já não pecar”.

Ainda que distantes do culto, os indivíduos partilham um sistema de


crenças onde o bem e o mal são forças supremas que agem sobre os
indivíduos. A superstição, a crença na intervenção das forças malignas ou
diabólicas, na sobrevivência dos espíritos após a morte (os “defuntos”), no
valor das promessas e na existência de milagres, são referências do
imaginário comum.

Rogar pragas é algo que acreditam poder ter um poder efectivo


potencialmente perigoso. Mas também é o mais comum acontecer nas
discussões acaloradas. Não obstante a pior ofensa eu se pode fazer a alguém
é jurar os mortos, o que significa amaldiçoar e maldizer os antepassados de
alguém, isto é, os seus mortos. A expressão “me cago em tus mortos” é uma
ofensa grave e motivo de desavenças.

Os mortos são sempre lembrados com respeito e ninguém fala mal de


alguém que já faleceu. As expressões “coitadinho/a” “que Deus o tenha”
acompanham as referências à sua pessoa, embora sejam normalmente
mencionados pelo parentesco. O respeito pelos “defuntos”, tal como o medo
deles, é algo verdadeiramente fundamental no grupo. Como veremos adiante
quando se discutir o luto, o nome de um morto não deve ser mencionado e as
suas fotografias não devem ser vistas. A crença na sobrevivência da alma e o
culto dos mortos são aspectos intrínsecos da sua cultura. As campas dos seus
antepassados – muitas delas num cemitério na região de Aveiro,
especialmente do lado do tio j, outras em braga do lado da tia – são tratadas
com todo o esmero e ricamente adornadas com grades jarras e flores de
plástico. Nesse cemitério na região de Aveiro, onde estive, estão muitas
pessoas da família do Tio J, incluindo os seus pais, não há uma campa
abandonada, mesmo as mais antigas. Por mais pobres que as famílias sejam,
a última morada dos seus entes queridos é sagrada e portanto juntam-se
esforço para a providenciar. O dia de todos os mortos é um feriado muito
importante para os ciganos e as famílias acorrem ao cemitério para prestar
homenagem aos seus antepassados.
Quotidiano

Socialização e alimentação

Ana Gonçalves et al. escrevem que “trabalho, lazer e convivialidade são


dimensões interligadas e intrínsecas às vivências quotidianas” constituindo um
“dos traços identitários da etnia cigana” (2001:28). No terreno esta realidade
é bem visível. Sendo que o espaço do acampamento é, em grande medida,
um espaço público, onde as portas das casas se mantêm abertas prolongando
a arena do social, a interacção é constante e intensa. Assim, “Tudo que
acontece no clã cigano é vivido colectivamente. A vida do cigano é uma
permanente vida em grupo. Assim sendo, as acções de cada individuo
reflectem-se no prestigio do grupo de que faz parte e o prestigio deste
reflecte-se nos seus membros” (Rodrigues, D. in Bastos, S. P. , J. G. P. Bastos
(eds.), 2006:190).

No espaço colectivo vivem-se as relações sociais quotidianamente e


partilham-se as actividades – domésticas, económicas e sociais – dentro de
redes de solidariedade individuais e/ou familiares. O espaço colectivo de
socialização é intergeracional e de fronteiras permeáveis no que à participação
e à espacialidade se refere. Aliás, é muitas vezes junto aos mais velhos que os
indivíduos tendem a agrupar-se.13 Não há espaços fechados. Em volta do fogo,
no inverno, dentro ou fora de casa, e à sombra, no verão, os indivíduos
reúnem-se e conversam sobre os mais variados temas, nomeadamente de
negócios e de subsistência.

A organização do quotidiano familiar diz respeito apenas à própria


família ainda que muitas actividades possam ser partilhadas, sendo isto
negociado muitas vezes implicitamente numa base diária.14 De uma forma

13
Os indivíduos juntam-se muito frequentemente à volta do Tio J. – pai ou avô de grande
número de elementos do grupo. Porque não anda, têm sempre gente a fazer-lhe companhia.
14
A tarefa de levar crianças à escola constitui um problema para algumas famílias. Muitas vezes
um ou dois elementos levam ou vão buscar todos os miúdos e outras vezes isso não acontece,
ficando a tarefa a cargo dos pais ou outros. Pensou-se em tentar, no âmbito do projecto, que o
grupo definisse responsáveis fixos para essa tarefa. Rapidamente se tornou claro que esta
rigidez na organização quotidiana não seria funcional.
geral existe grande flexibilidade nos horários e nas tarefas. Os homens
juntam-se entre si para trabalhar, descansar e, por vezes, comer. As
mulheres, para além das actividades domésticas dentro de casa, juntam-se
para ir buscar água, lavar a roupa, fazer compras ou ainda para tratarem de
assuntos institucionais. Entre elas, discute-se constantemente o que há e o
que não há para comer, e pedem-se e trocam-se alimentos ou comida entre
as casas. A Tia C., quando conta a sua história de vida (cap. IV), diz: “ os
ciganos são assim, se eu tiver arreparto, um dia que eu não tenho também
eles arrepartem comigo”. As mulheres dizem-me isto muitas vezes, reforçando
o carácter solidário das relações de parentesco e coabitação.

As refeições, nomeadamente, são um exemplo bastante ilustrativo das


dinâmicas flexíveis da organização quotidiana. “Comemos quando temos
fome”, “a gente janta quando tem fome, às vezes é muito cedo, às vezes é
muito tarde” – são respostas frequentes. As mulheres vão comendo durante o
dia, almoçando ou jantando de pé, quanto têm fome. Em geral as mulheres
cozinham para o almoço e para o jantas mas muitas vezes cozinham em doses
suficientes para que a comida dure mais do que uma refeição. A mesa é
utilizada para comer mais pelos homens. Se uma mulher acabar de cozinhar,
sopa ou uma panela de comida, provavelmente oferece comida aos homens
presentes. As mulheres presentes servir-se-ão sozinhas, sem pedir, ou
servirão a comida aos seus maridos. A meio da manhã ou da tarde é comum
que os indivíduos se juntem para tomar café feito por uma das mulheres. A
dinâmica é a mesma. A proximidade –emocional ou de parentesco - entre as
mulheres traduz-se no à vontade com que partilham as refeições. Quem
partilha comida com quem é informação que nos oferece uma imagem das
relações sociais e emocionais estabelecidas dentro do grupo.

Às crianças pequenas todos oferecem comida e ninguém nega nada que


desejam. Assim se uma criança está na casa de um indivíduo com quem a sua
própria família não mantém relações muito próximas, e este oferecer comida
aos seus filhos, irá oferecer também à outra criança. Se alguém comprar algo
particularmente desejado, como uma fruta de época, ou doces, reparte por
todas as crianças. Os irmãos mais velhos, mesmo na escola, preocupam-se
em guardar guloseimas para os irmãos mais novos.
Em geral as crianças comem bastantes guloseimas. Nas alturas do mês
em que os pais têm mais dinheiro, é frequente a circulação de doces, batatas
fritas, bolachas e iogurtes. Uma lista de compras habitual incluirá: massa,
arroz, batatas, cebolas, tomates, carne, especialmente frango (também peru),
e porco (rojões, courato e fêveras) e peixe sardinhas, carapaus, bacalhau,
pescada). Polpa de tomate, caldos de carne, refrigerantes, iogurte, e fruta e
legumes também estão incluídos. As compras são na sua maioria feitas no
comércio local, mercearias, talhos e peixarias, assim como nos peixeiros,
fruteiras e padeiros ambulantes que passam no acampamento ou perto deste,
com quem normalmente as mulheres têm “conta”.

O que se come e como se cozinha no acampamento não difere muito da


alimentação tradicional do norte do país. São predominantes as sopas ricas
em legumes e feijão, os estufados de massa, batata ou arroz com carnes e
legumes. É comum utilizar-se os caldos de carne e a polpa de tomate nestes
estufados. Também as sardinhas, carapaus e bacalhau assados, com tomates
e pimentos, são muito apreciados.

O pão é essencial na alimentação e acompanha tudo. “Não havendo pão


é como se não houvesse nada” – explica-me uma das mulheres. O pão
acompanha todas as refeições e por vezes constitui a refeição em si mesmo. A
meio da tarde ou pela manhã é costume acompanhar o café com pão simples.
Nos dias de mais fartura queijo ou fiambre poderão ser acrescentados. Muitas
vezes a carne que se cozinhou com arroz ou massa é comida com pão.

Nas celebrações – festas ou casamentos – fazem-se grelhados na brasa


e grandes panelas de rojões ou massa. O bacalhau desfiado com tomate e
pimentos também é servido. Nas festas tradicionais – Natal, S. João, etc. – os
alimentos são os mesmos que nas outras famílias portuguesas e é costume
todo o grupo participar e partilhar a refeição. Nestas ocasiões, os homens
costumam cozinhar. É costume haver cerveja. A música e a dança são o
centro da festa, invariavelmente.

O casamento é o acontecimento social mais importante que reúne


membros do grupo alargado com diferentes graus de proximidade. È um
momento de celebração colectivo, que reúne grande numero de indivíduos
para a confirmação e legitimação do nascimento de uma nova família e da
continuação do grupo, da identidade étnica. É costume viajar distâncias longas
para ir a casamentos.

Embora o casamento represente a festa por excelência e possua, como


veremos, uma natureza ritual específica, a forma como se festeja, como é
performatizada socialmente uma celebração, é a mesma: música, dança e
comida. Homens e mulheres juntam-se entre si em grupos onde se come e
conversa, os homens especialmente em volta do local de dança. Aqui,
acompanhados por música em tom elevado – “música gitana” – dançam
normalmente um, às vezes dois casais, no centro de um círculo formado por
todos que batem palmas ou dançam. O homem tende a dançar durante mais
tempo enquanto as mulheres vão à vez dançando com ele. A grande maioria
das vezes um outro homem, com um pau na mão, indica a mulher que vai
dançar com ele em seguida. A dança tem muito de flamenco – passe o
simplicismo – e não há toque. As celebrações podem acontecer por várias
razões, como por exemplo, o regresso de alguém ou um aniversário.

O culto também é um importante momento de socialização que envolve


muitas das famílias. Não obstante, as celebrações que envolve, como
baptizados e mesmo casamentos (no acampamento os casamentos são feitos
de acordo com a Lei, ou seja, com música, dança e álcool), não envolvem
dança nem álcool e a musica é “de Deus”, música religiosa cantada por
ciganos evangélicos.

Quotidianamente, a vida familiar e os momentos de interacção são


caracterizados pela familiaridade entre os indivíduos que se reflecte num
registo conversacional jocoso, com recurso à provocação e à ironia. A
versatilidade da linguagem potencia o carácter lúdico da interacção. Verbaliza-
se o valor dado à “palavra” dos indivíduos, sendo um homem de palavra um
homem de respeito. Valoriza-se o juramento. Quando há discussões ou
conflitos, discute-se publicamente quem “leva razão”.
Saúde e doença

No acampamento predomina uma concepção da saúde associada à


resistência física. “Ter sangue antigo”, é a explicação muitas vezes dada à
cura de um individuo mais velho, valorizando-se assim a capacidade do
individuo para reagir à doença. A tendência generalizada é para menosprezar
problemas de saúde pouco graves, para deixá-los “nas mãos de Deus”. É
frequentes os indivíduos ostentarem uma certa displicência relativamente ao
seu estado de saúde. Quando existe uma situação de doença declarada e
indicações específicas de tratamento médico, este também é muito frequente
ignorado ou adaptado pelo próprio às suas próprias convicções. Voltaremos
aqui.

A saúde e a doença pertencem ao plano metafísico pois a doença é


entendida como “um mal” para o qual é possível a cura. Para além dos
milagres de cura que acontecem no culto, são vários os episódios contados,
sobre experiências pessoais ou de outrem, acerca dos milagres de cura
resultantes de promessas e de pedidos a Deus. “Agarrar-se a Deus” ou “pedir
a Deus” são concelhos dados a quem tem um “mal”. As mulheres contam que
comer do chão por determinado tempo é uma promessa frequente que se faz
para obter do poder divino a cura de um parente. Contam ainda que algumas
mulheres que fazem essa promessa colocam uma couve entre a comida e o
chão, mas não o fazendo o sacrifício é considerado maior.

“Ter um mal” ou “ter uma coisa má” são afirmações comuns


relativamente àqueles que tem doenças eventualmente fatais. Não se ouvem
palavras como cancro, como se nomear um “mal” pudesse dar-lhe mais poder.
Em caos de cancro, especificamente, ouvi várias vezes a opinião de que é
melhor não fazer nada e “deixar na mão de Deus” pois os efeitos secundários
dos tratamentos são temidos.

Por outro lado, estar saudável é explicado pela ausência de sintomas.


Ouço frequentemente dizer que quando se vai ao médico ou ao hospital
passamos a saber o que temos e a partir dai começamos a preocuparmo-nos e
ficamos pior. Assim, principalmente entre os mais idosos, existe uma certa
relutância em ir ao médico ou ao hospital e muitos recorrem a ele só em caso
de urgência. Embora ir ás urgências seja o mais comum no caso de acidentes
e dores ou mal-estar fortes, principalmente com as crianças, existe uma
desconfiança generalizada na medicina e nos seus representantes e muitas
vezes os tratamentos são recusados.

As frequentes idas às urgências, nomeadamente das crianças, são


resultado de uma medicina preventiva ineficaz e das precárias condições de
habitabilidade. Se não há sintomas, então não há doença, pelo que os
indivíduos muitas vezes não mantêm os tratamentos eventualmente
recomendados pelos médicos para situações clínicas que podem não ter uma
manifestação no imediato e visível. Se um tratamento é recomendado para
uma situação específica é comum os indivíduos não o prolongarem para além
do tempo que demora a passar a dor ou o desconforto. Só há necessidade de
um médico quando há sintomas ou mal-estar. Da mesma forma só se vai ao
dentista quando já há pouco mais a fazer do que arrancar o dente ou o pouco
que dele resta. Aliás normalmente quando o dente dói o desejo é tira-lo, e não
arranjá-lo.

Quanto à gravidez, na generalidade, as mulheres são acompanhadas


no centro de saúde e hospital e recorrem ao hospital para o parto. A
contracepção é uma temática sensível devido ao desejo de ter mais do que um
filho. Após o casamento o desejo de ter o primeiro filho – que vai como que
confirmar o relacionamento perante o grupo –, não só da própria como da
família, anula por completo a necessidade de contracepção (embora existam
casos excepcionais de jovens que recorrem a métodos contraceptivos para
adiar uma primeira gravidez). Na maioria dos casos, o primeiro filho é
desejado por todos e bem-vindo. Depois do primeiro filho muitas jovens
recorrem a métodos contraceptivos (a pílula tende a ser evitada pois são
frequentes os esquecimentos), algumas encontrando resistência dos maridos.
As mulheres mais velhas, com cerca de 4/5 filhos, recorrem frequentemente à
laqueação das trompas. Alguns maridos também se opõem a este
procedimento.
Os conhecimentos de anatomia e fisiologia são muito poucos e portanto
são comuns as interpretações erradas das informações clínicas. Não existe
uma preocupação absoluta em saber o que causa determinado sintoma ou
doença, sendo que a preocupação recai sobretudo na eliminação estes. A
maioria das vezes que algum dos indivíduos vem do hospital não sabe o que
tem ou teve e isto não parece afligi-lo nem ao grupo, foi “alguma coisa que
lhe deu”, é uma explicação razoável. Por vezes surgem outras explicações,
readaptadas daquela dada pelos médico,15 pois a linguagem utilizada pelos
profissionais de saúde é complicada e difícil de entender. Esta opinião é as
vezes recusada outras vezes serve para validar a opinião dos próprios
indivíduos.

Ora se por um lado se vive numa situação de grande dependência das


urgências hospitalares (em oposição a uma maior recorrência aos centros de
saúde para consultas de rotina e tratamentos preventivos), por outro lado
existe grande desconfiança nos tratamentos médicos. Um caso que suscitou
alguma confusão foi o de uns pais que, estando a filha internada por causa de
uma queimadura grave num braço, decidiram levá-la para casa, contra as
indicações do médico, e procurar uma solução alternativa. Visivelmente houve
um problema de comunicação, eventualmente uma incompatibilidade de
discursos, pois a família não ficou convencida da eficácia do tratamento ou da
opinião médica. É muito importante realçar, quanto a este episódio, que a
reacção da criança de 3 anos foi fundamental na decisão dos pais. O
argumento de que a criança chorava quando lhe tratavam o braço ferido que
parecia nunca melhorar, e pedia para ir para casa, foi uma confirmação da
ineficácia do tratamento. Por outro lado queixavam-se da sujidade do espaço.
O argumento que um espaço esterilizado seria melhor para evitar uma
possível infecção não foi aceite pois não é de fácil compreensão.

15
Depois de um tratamento para um problema de pele, uma mãe dizia-me que os médicos
tinham dito que o problema iria voltar pois “na Primavera, quando rebentam as folhas rebenta
também a criança”. Através de uma apropriação à sua linguagem ela conseguiu apreender uma
indicação médica. Noutros casos, a aceitação das indicações médicas pode depender de uma
experiencia passada: uma mulher a quem foram receitadas injecções de penicilina por causa de
uma infecção pulmonar (segundo a própria), deitou-as fora porque disse que “ uma vez fiquei
manca”.
Argumentavam que também mantinham as casas limpas e a única vantagem
comparativa que viam entre o hospital e a casa, era o facto de o primeiro ser
mais quente. Optaram por recorrer a uma senhora conhecida por aplicar uma
pomada caseira que cura as queimaduras. Contaram vários episódios de
outros ciganos, seus conhecidos, que foram curados por ela.

Para além da dificuldade de entender os quadros clínicos, da


desconfiança relativamente aos médicos e aos tratamentos, existe um horror
generalizado ao hospital. Uma das muitas vezes que fui ao hospital de santa
Maria da feira com um casal e a filha, para uma consulta, a mãe fez-nos dar a
volta ao hospital para não passar pela morgue pois, segundo ela, uma criança
da família morreu depois de “apanhar aquele ar”. Ao passarmos próximo, ela
tapou a cara da sua filha.

As mezinhas tradicionais da cultura popular portuguesa, como as


infusões e os banhos de ervas, são do conhecimento dos indivíduos e são de
utilização frequente. Também encontrei no terreno outras crenças populares
associadas à saúde ou a situações fisiológicas específicas, como por exemplo
colocar uma bola de cotão vermelho na testa de uma pessoa para tirar os
soluços. Seria interessante explorar mais profundamente esta realidade pois
um conhecimento mais alargado daquilo que foi apropriado do contexto
cultural onde se integram, trar-nos-ia uma noção mais clara da dimensão
histórico social dessa apropriação cultural de extrema relevância.

Quando alguém é levado para o hospital devido a um caso grave de


urgência (doença ou acidente) muitos elementos da família se deslocam
imediatamente para o hospital, muitas vezes não saindo do local até que o
doente volte para casa. Não é apenas a família próxima, ou aqueles com quem
se coabita, mas membros do grupo familiar alargado (não necessariamente de
convivência habitual) também se deslocam. Estive presente em alguns desses
momentos e observei que ciganos que passavam casualmente pelo local,
estacionavam e vinham juntar-se ao grupo apurando o que se passava. Uma
ameaça sobre um dos elementos do grupo acciona uma rede de solidariedade,
baseada em padrões identitários, que nem sempre é visível.
Noções de puro e impuro

Na realidade, os hospitais são mencionados muitas vezes como espaços


sujos. Isto implica não só uma ideia de ausência de detritos e de sujidade mas
também a noção de que o hospital é um local onde se lidam com coisas
impuras, como o próprio corpo humano, ou partes deste. A doença e a morte
tornam o espaço hospitalar um espaço de fronteira, de eventual contágio, num
sentido simbólico.

As categorias que regem a concepção das coisas como puras/limpas ou


impuras/sujas não são de acesso fácil. Nem sempre um indivíduo, de qualquer
cultura, consegue verbalizar por que é que sente aversão ou repugnância por
determinada coisa pois estas são conceitos incorporados que determinam a
experiencia fenomenológica dos indivíduos. Entre diferentes culturas, estas
são noções difíceis de partilhar. Foi sobretudo pela partilha das vivências
quotidianas que consegui aceder a uma pequena parte deste território
simbólico.

Os cabelos, por exemplo, são considerados nojentos. As mulheres


mantêm o cabelo apanhado no dia-a-dia e verbalizam desconforto na presença
de cabelos no chão, por exemplo. Cabelos na comida é o melhor exemplo de
uma casa suja, uma mulher suja. Um poço de água, no acampamento, deixou
de ser usado depois, entre vários objectos, terem sido atirados pentes e
sapatos. Apesar de em muitas alturas o lixo abundar no chão do
acampamento – embalagens vazias, brinquedos partidos, papeis, cascas de
fruta – o espaço não é considerado sujo no sentido de intocável, repulsivo.
Embalagens vazias são usualmente atiradas para o chão - mesmo dentro de
casa – e posteriormente varridas e colocadas em baldes de lixo. Existe uma
grande tolerância quanto a esta acumulação de lixo, relacionável talvez com o
passado recente de nomadismo pois a não fixação num local não levantava
problemas quanto à manutenção de materiais excedentes do consumo.

Parece ser com o próprio corpo humano, suas partes, dejectos e fluidos,
que incidem as principais preocupações. Com os bebés insiste-se muito para
que não coloquem as mãos na boca. As peças roupa íntimas, por exemplo,
nunca são vistas a secar junto com a outra roupa.

Alguns animais são considerados nojentos, como por exemplo o gato ou


o cão. O porco é considerado um animal mais limpo do que os cães e os gatos.
Os ouriços – que muitos contam que faziam parte da alimentação no passado,
assim como os coelhos, são bichos limpos porque “ só comem erva e fruta”.
Ouvi uma vez uma cigana dizer que não comia vaca “porque são menstruadas
como as mulheres”. Contaram-me também sobre uma égua que comeu a
própria cria e, portanto, “ já não servia”. Ia ser vendida mas aos pajos, pois
não a venderiam a outros ciganos. Os cavalos são muito admirados e
considerados animais limpos.

Um episódio interessante ilustra como esta categorização simbólica se


estende aos espaços. Estava com as crianças no edifício do Castiis – sede do
projecto – onde decorriam, na altura, os ateliers pedagógicos frequentados
pelas crianças do acampamento. Não tínhamos água engarrafada perto por
isso quando alguns miúdos me disseram que tinham sede, disse-lhes para
beberem das torneiras da casa de banho, coisa que não fizeram. Com a minha
insistência senti relutância e tentei explorar a questão. Diziam-me que “dava
asco”, e um dos miúdos perguntou-me: “Em sua casa você bebe água da
retrete?”. Foi preciso esta pergunta para que eu entendesse que o quarto-de-
banho – espaço que aliás não tem nas suas casas – é um local sujo, onde não
é suposto estar algo que se destine ao consumo. Expliquei que a água vinha
de sítios diferentes mas isso não os convenceu, fui buscar copos mas isso
também não os convenceu. Quando finalmente eu própria bebi a água da
torneira pelo copo, a seu pedido, alguns também o fizeram, tal devia ser a
sede!

Este episódio foi um daqueles em que entendi a repugnância que


sentiam por determinada coisa ou situação. Tenho plena consciência que
muitos outros houveram em que eu não consegui de todo entender a sua
aversão.
II A LEI CIGANA

”Na nossa Lei é assim” – esta é, em muitíssimas ocasiões, a única


explicação para determinados comportamentos ou costumes. E é assim
porque “é da tradição”, foi sempre assim. A Lei Cigana é, portanto, a maior
referência moral, social e cultural deste grupo. A vida dos indivíduos – o seu
comportamento social e as suas escolhas – é orientada por este conjunto de
normas que não está escrita nem codificada de nenhuma forma, mas que
todos conhecem e todos respeitam. A Lei Cigana é passada oralmente, de
geração em geração e, mais do que discutida ou explicada, é vivida
quotidianamente e, desta forma, perpetuada. É pela Lei Cigana que os
indivíduos orientam e legitimam o seu comportamento e é, através dela, que
se distinguem dos demais. Ser cigano é viver de acordo com a Lei. Isto não
implica uma postura acrítica perante ela, muitos indivíduos, em confidência,
dizem que algumas coisas não deveriam ser assim, que algumas coisas “estão
mal”, nomeadamente no que às mulheres se refere. No entanto, agir em não
conformidade implica a censura de todo o grupo e, dependendo da gravidade
da infracção, pode implicar a expulsão e ostracismo.

Não existe um número de regras ou princípios, claramente identificados


e numerados que constituem a Lei Cigana. Para nós, pajos, é certamente
complicado aceder ao significado intrínseco desta lei que, para nosso
desconcerto, não se encontra organizada em lado nenhum, nem no discurso
daqueles que vivem segundo ela. Porque mais do um conjunto de regras a
seguir, de comportamentos a ter ou a evitar, a Lei Cigana é toda uma filosofia
de vida que contempla valores morais, organização e relações sociais,
comportamentos de género, educação, relações de parentesco, um conjunto
de rituais associados a ritos de passagem como a morte ou o casamento,
enfim, a Lei Cigana é, em grande medida, a base da cultura cigana.

Ainda que os indivíduos possam não se alongar em dissertações


reflexivas sobre a sua Lei, pois tal não acontece frequentemente e é até
comum um certo secretismo, é necessário compreender que toda a vivência se
organiza dentro desta ordem. Não entender a extensão da Lei Cigana a todos
os recantos da vida pessoal e social implica uma perspectiva da cultura cigana
completamente desenquadrada da sua realidade essencial.

A Lei Cigana é a resposta por detrás de questões relacionadas, por


exemplo, com a autoridade masculina no casamento e na sociedade, com o
casamento endogâmico, com o comportamento das mulheres, nomeadamente
com a importância da virgindade feminina. Não obstante, existe alguma
flexibilidade e ambiguidade moral relativamente aqueles que se considera que
agem em não conformidade com a Lei. Dependentemente da gravidade da
situação e do grau de relacionamento com aquele que prevarica. Uma mulher
fugida do seu marido – algo que atenta contra a quase sacralidade da união
matrimonial e do respeito de uma esposa pelo seu marido – pode ser
desculpabilizada pelo comportamento do marido se este for toxicodependente
ou alcoólico. No discurso colectivo ela será criticada e pode até ser afastada
mas, num registo mais pessoal, pode encontrar solidariedade por parte dos
seus parentes e outros.

Antes de analisar diferentes aspectos da organização social deste grupo


detalhadamente, importa reter que a Lei Cigana subjaz todos eles,
constituindo, em ultima análise, a tradição que constrói a identidade étnica do
grupo e cuja continuidade este procura garantir. Os rituais de casamento e os
comportamentos associados ao luto são, neste grupo, exemplos fundamentais
de como este assegura a vitalidade das suas instituições fundamentais.
Organização social e parentesco

Ser família é pertencer ao grupo e usufruir da protecção e da


solidariedade deste. Também é estar sujeito às mesmas relações hierárquicas
e ao mesmo controlo social. Os laços de sangue são o mais importante elo
entre os indivíduos na medida em que o grupo é legitimado pelo parentesco
entre todos os seus membros. A família alargada proporciona a cada indivíduo
um sistema de referências culturais e identitárias pois a identidade de cada
indivíduo no grupo – e por conseguinte o seu papel social – dependem da sua
pertença familiar. A identidade do individuo, da sua família nuclear e alargada,
e do seu grupo étnico estão intimamente relacionadas. A identidade de cada
indivíduo no grupo constrói-se dentro desse esquema de parentesco que lhe
garante uma pertença cultural.

Aliás, como vimos ao abordar as actividades económicas, ”é a partir das


relações de parentesco que tudo se estrutura na organização social cigana, na
qual se destacam a separação dos sexos e a importância dos grupos de
idade”, segundo Donizete Rodrigues (in Bastos, S. P., J. G. P. Bastos (eds.),
2006:197). Em concordância também com o que escreve David Laguna Árias
sobre os ciganos na Catalunha, encontramos o conceito local de família como
a unidade base de análise da realidade social, “a concept as polisemic as
subjected to negation in practice, but turns out to be the institution and
semantic category on which the social, economic, political and educational
organization lies” (2002: 49).

Ainda que, neste contexto, cada individuo se particularize, ou seja, se


distinga dos outros pelas suas peculiaridades e, sobretudo, distinga a sua
família e a independência desta, quando o grupo como um todo é alvo de
crítica ou contestação, todos surgem coesos na defesa da identidade comum e
da família. Assim, ainda que os indivíduos nunca respondam em nome de
outros que não pertençam à sua família nuclear (perguntas como “onde está
fulano”, “porque que fulano fez isto ou aquilo”, “fulano vem ou não vem”,
recebem sempre a mesma resposta: “não sei”) e, havendo alguma intimidade
e confiança, possam deixar passar comentários críticos relativamente a
alguém, se o que estiver em causa for uma critica ou ataque exterior –
portanto, não cigano – essa nunca encontrará apoio da família alargada da
pessoa em causa. Será sempre defendida publicamente ainda que possa ser
criticada dentro do seio familiar.

As crianças, inclusivamente, já interiorizaram este comportamento e


nunca comentam sobre as outras crianças e suas famílias com os pajos.
Provavelmente a pergunta que mais ouvem é: “porque é que fulano não veio à
escola?” e invariavelmente respondem “não sei”. No contexto escolar, que
abordaremos adiante, é muito importante que professores e outros entendam
esta desresponsabilização pelo comportamento dos demais. Ainda que a
instituição escolar olhe para os vários alunos ciganos como um grupo a que
normalmente chamam “eles”, as famílias gostam de ser tratadas não como
uma parte de um todo mas como uma unidade autónoma. Que na verdade
são, embora a forma como vivem – partilhando um conjunto de valores
intrínsecos e um espaço que é de todos – impeça que do exterior sejam vistos
como tal.

Na verdade, a imagem folclorizada da cultura cigana que ainda


predomina no senso comum é responsável por este facto. A ideia de um chefe
tribal, ancião, que responde por todos e a quem todos obedecem ainda
subsiste no imaginário comum, mas esta é uma ideia errada, pelo menos de
acordo com os membros desta família, que chegam a brincar com isso.

De facto existe uma forte hierarquia geracional e os “mais velhos” são


indivíduos que merecem o respeito de todos e são muitas vezes chamados a
opinar sendo a sua opinião apreciada e levada em consideração. São aceites
pelos mais novos como representantes do grupo mas não há um indivíduo que
seja o chefe, no verdadeiro sentido da palavra. Se um estranho for ao
acampamento falar de assuntos que envolvam todo o grupo, certamente serão
os homens mais velhos a dialogar com ele, isto é, os representantes de cada
família nuclear. Estes discutem em conjunto as questões que dizem respeito a
todos, sendo que as opiniões dos mais velhos são as mais consideradas
embora não constituam uma ordem ou decisão final.
As mulheres, neste esquema hierárquico não possuem grande
representatividade embora se aproximem e se envolvam nos debates públicos.
Se o assunto for realmente sério as mulheres ouvirão os homens discutir entre
si sem intervir. Muitas vezes estabelece-se, entre estas, um diálogo paralelo,
num volume mais baixo, formando uma espécie de rede de conversação onde
vários registos, se cruzam e entrecruzam. Para aquele habituado a conversas
onde cada qual fala na sua vez e a argumentação segue um percurso linear
com princípio, meio e fim (idealmente), estas são conversas difíceis de
acompanhar. Um antropólogo apanhado neste fogo cruzado pode, de facto,
perder o norte das ideias e simplesmente não perceber nada!

As mulheres mais velhas são as que mais intervêm nas discussões


colectivas. A Tia C. por exemplo, dá sempre a sua opinião sobre os assuntos
em discussão e a sua opinião e conselhos são respeitados na generalidade.
Entre as mulheres, que são na sua maioria, suas noras, netas e bisnetas, ela é
de facto alguém com autoridade e a quem devem respeito e com quem podem
partilhar assuntos de alguma intimidade. Enquanto “avó de todos”, como ela
própria se identifica, os seus conselhos são importantes e as suas noras
procuram o seu apoio e consentimento.

É importante mencionar que apesar do seu marido, o Tio J., se


encontrar num estado de pouquíssima mobilidade e lucidez que não lhe
permite uma participação plena na vida social, os seus filhos e netos procuram
fazer-lhe alguma companhia e tratam-no com carinho, brincando sempre com
ela para que se divirta. A sua filha e as suas netas estão sempre por perto
atendendo os seus desejos. É importante mencionar este facto para ilustrar o
respeito que é devido aos “mais velhos”. Todos – homens e mulheres –
garantem o seu bem-estar e a sua boa disposição, pois todos o integram nas
suas conversas e brincadeiras.

Voltando atrás, é importante mencionar que os solteiros e solteiras não


participam nas discussões públicas. Os rapazes intervêm muitas vezes fazendo
graças ou ridicularizando a situação, mas não são levados a sério. As
solteirinhas, por sua vez, não comentam ou dão opiniões em assuntos
importantes e não devem responder quando chamadas a atenção. Será o
casamento que lhes permitirá ser olhados como adultos.

Quando por exemplo, rebenta uma discussão entre duas mulheres,


todos intervêm, comentando e opinando. Quando os assuntos não são sérios,
quando o que se discute são trivialidades do dia-a-dia, as discussões alargam-
se bastante e quer homens, quer mulheres opinam livremente. No quotidiano
são frequentes estes momentos de discussão pública onde todos parecem falar
ao mesmo tempo e se estabelecem vários diálogos paralelos. Na realidade,
não há discussão que não seja pública, a menos que seja à porta fechada.

É costume chamar-se a sogra e o sogro de Tia e Tio, respectivamente.


Esta terminologia não é empregue como entre os pajos, para chamar os
irmãos dos pais, embora seja usada com esse sentido quando para explicar
uma relação de parentesco. Aqueles que são mais idosos são chamados de Tio
por todos aqueles que não são seus filhos ou netos. A partir de uma certa
idade, um individuo é respeitosamente tratado dessa forma.

É portanto sobre as relações de sangue que se estrutura toda a


organização social e, consequentemente, a organização económica sendo que
estão muito inter-relacionadas. As redes de solidariedade e a hierarquia social
estão ambas assentes nas relações de parentesco. Claro que um indivíduo que
não partilhe o mesmo sangue – no caso de uma criança adoptada por exemplo
– é igualmente considerada família pois cresceu dentro dela. Assim o conceito
de família não está incontornavelmente preso a uma relação de sangue. Pelo
contrário, a definição de parentesco pode ser negociada contextualmente.

A Lei dos Contrários determina que famílias cujos elementos, no


passado, tenham tido incompatibilidades graves – o que normalmente implica
a morte de alguém – vivam separadas por uma determinada distância e não
entrem no território uma da outra. Isto porque, por exemplo, se o pai de um
individuo for assassinado pelo pai de outro, o primeiro deve vingar a morte do
seu pai, não só ele como os seus filhos, os seus netos e assim
sucessivamente. Se esse indivíduo matar de facto o assassino do seu pai, o
filho deste também quererá vingar-se. Este é um assunto que suscita algum
secretismo mas que está enraizado profundamente em cada indivíduo. Ainda
que, principalmente aqueles que “são de Deus”, acreditem ser errado matar,
os contrários da sua família já o é há muito tempo e a não convivência já está
instituída. Como ouvi muitas vezes, “todos tem contrários”.

Quando, normalmente em jeito de troça, alguém quer dizer que este ou


aquela não pertence à sua família, diz que não lhe é nada, que não lhe
pertence “nem de água, nem de sal”. E embora isto seja dito frequentemente
– nesse tom de troça que é registo frequente – na verdade este grupo é
inteiramente constituído por indivíduos pertencentes a uma mesma família,
como tem sido mencionado recorrentemente. Esta é, de certa forma, uma
família que representa a organização tradicional pois, apesar da realidade
actual dos bairros sociais por onde as famílias são distribuídas muitas vezes
sem critérios socioculturais, este grupo continua a viver em família num lugar
que pertence a todos.

Portanto a organização social que encontramos no grupo é tradicional


sendo que as relações de parentesco são a base onde esta se edifica.
Reconstituindo, a família é a base da organização social e económica.
Encontramos a família nuclear antes da família alargada, sendo o pai o chefe
da família, símbolo da autoridade e responsabilidade. A autoridade masculina
é inquestionável embora a mulher, como veremos, seja a responsável pela
educação das crianças, pela organização doméstica e por todos os assuntos
que envolvam um contacto institucional.

O respeito aos mais velhos, inscrito na Lei Cigana, é visível na forma


como é sempre perguntado aos mais velhos presentes o que pensam sobre
determinado acontecimento em discussão. Junto deles procura-se aprovação
embora não necessariamente autorização.

A hierarquia social vigente pode ser entendida de duas formas


paralelas: homens sobre mulheres e mais velhos sobre mais novos. Os casais
jovens dizem muitas vezes que “os mais velhos” irão decidir isto ou aquilo,
cientes de que, embora casados, são ainda muito novos e não lhes competem
decisões importantes relativas a todo o grupo. Portanto, dento da casa da
família a autoridade compete ao pai e, na ausência desta, ao filho mais velho.
A importância de ter um filho homem é, por isso, grande sendo que o desejo
de ter um primogénito seja partilhado por todas as futuras mães. A autoridade
de uma mãe sobre os seus filhos rapazes por exemplo vai diminuindo
proporcionalmente ao grau de autonomização destes que, geralmente, é
precoce. Desde muito cedo, os meninos largam literalmente as saias da mãe e
se tornam rebeldes às suas ordens, o que é encarado com grande normalidade
mas não sem algum desespero, principalmente quando a desobediência destes
representa um incumprimento, por exemplo, dos acordos de RSI, como a
frequência escolar.

Em termos teóricos, o parentesco entre os ciganos era tradicionalmente


considerado um sistema patrilinear, significando isto que é definido em termos
de um sistema de descendência que segue a linhagem paterna, ou seja, um
individuo pertence à família do seu pai. Não obstante, um maior conhecimento
das estruturas de parentesco da etnia cigana levou a que o sistema de
descendência fosse definido como bilinear, na medida em que os indivíduos
são igualmente considerados pela sua descendência materna. Isto coaduna-se
perfeitamente com a realidade do acampamento da Baralha, onde quer o lado
materno, quer o lado paterno, são social e culturalmente valorizados e
legitimados. Até porque, mesmo voltando atrás no tempo, as alianças
matrimoniais são estabelecidas dentro das mesma família alargada,
preferencialmente entre primo em primeiro grau, ou, como é comum dizer-se
localmente, entre “primos-irmãos”.

O poder social é, sim, herdado patrilinearmente pois esta é uma


sociedade patriarcal – pelo menos no que ao poder politico se refere, embora
esta seja uma discussão de que vamos manter-nos à distância – mas a
descendência das famílias ciganas não deve ser entendida unilateralmente.
Conceptualmente, o sistema de parentesco local define-se, então, como um
sistema matrimonial endogâmico, de descendência bilinear embora a
organização social adquira características patriarcais e patrilineares.
Género e comportamento sociocultural específico

Tradicionalmente existe uma forte diferenciação de género na cultura


cigana, sendo que a cada uma das categorias de género “estão ligados direitos
e obrigações, ligados ao princípio de autoridade, assim como certos traços
culturais e valores morais” (Rodrigues, D. in Bastos, S. P., J. G. P. Bastos
(eds.), 2006:193).

Hierarquicamente, como vimos, as mulheres encontram-se num


patamar inferior ao dos homens e devem respeito e obediência a estes. Isto
não implica, como se lê frequentemente, que a mulher cigana seja submissa e
dependente sempre das ordens dos pais, maridos e/ sogros. A mulher tem
total autonomia na esfera doméstica, embora a obediência aos homens da
família seja implícita. No terreno é evidente que às mulheres pertence um
espaço social específico donde advém um poder e uma autoridade que o
discurso e o comportamento social das próprias camufla: o espaço doméstico
dentro do qual se educa os filhos, se gere a economia doméstica da família e
onde se gere a manutenção das relações sociais e institucionais com os não
ciganos (centro social, escola, segurança social, centro de emprego,
vizinhança, comércio, etc.) e dentro do grupo, a manutenção das redes sociais
e dos laços de solidariedade. Ás mulheres cabe também um papel
fundamental ao nível da vigilância e controlo dos comportamentos,
nomeadamente das próprias mulheres, como já veremos. O poder das
mulheres é doméstico e familiar, no acampamento, embora transborde para
as esferas pública e política, no que à sociedade alargada se refere. Para além
do mais, como veremos, é, em ultima análise, do comportamento das
mulheres que depende a honra dos homens.

Verifica-se uma sobrevalorização social da masculinidade, a qual é


reforçada simbolicamente pelas próprias mulheres. O desejo de ter filhos
homens, nomeadamente de que o primeiro filho seja homem, é partilhado
pelo grupo. São os homens que continuam a sua família junto aos pais, em
geral, pois as mulheres tradicionalmente passam a viver com a família dos
maridos.
Os homens andam a seu bel-prazer. Entre os casais mais novos reparei
muitas vezes que as esposas normalmente não perguntam aos maridos onde
vão. Ou se perguntam, obtêm muitas vezes respostas vagas ou nenhuma
resposta. Quando, na casa de uma das famílias, pai e filho se preparavam
para sair, a nora, sentada perto do fogo com sogra e as cunhadas, perguntava
baixinho à sua sogra onde é que eles iam. Assisti a vários episódios
semelhantes. As mulheres, regra geral, aceitam que os maridos saiam
sozinhos à noite e a infidelidade masculina tende a ser tolerada ainda que
possa causar conflitos sérios entre o casal e mesmo no grupo. Nas vivências
quotidianas, no dia-a-dia dentro de casa, é nas coisas mais simples que se
reflecte a estruturação dos comportamentos de género e que se observa como
se relacionam e complementam: os homens não participam nem se envolvem
nas actividades domésticas. Um homem não se serve sozinho de comida, pede
sempre a comida ou bebida à esposa ou outra mulher da família, um homem,
mesmo que sentado perto de uma mesa, nunca pousa o seu prato ou o seu
copo depois de terminar mas passa-o sempre à esposa, um homem nunca
carrega as compras, ou vai buscar água e não limpa a casa. Nas festas, como
casamentos, os homens por vezes cozinham.

Os homens comem normalmente separados das mulheres, ou antes, é-


lhes servida a comida antes e, muitas vezes, na mesa. Quando uma mulher,
uma paja, come em casa de uma destas famílias, é-lhe frequentemente
oferecido um lugar na mesa junto aos homens,16 como também acontece no
culto: às mulheres não ciganas é oferecido um lugar do lado dos homens.

O homem possui um valor intrínseco, culturalmente implícito que se as


mulheres verbalizam muitas vezes. Muitas vezes ouvi: “um homem mesmo
sendo drogado vale sempre mais do que uma mulher” ou “duas mulheres não
valem tanto como um homem”. O comportamento feminino, de disponibilidade
e apoio constante aos homens, reafirma continuamente esta realidade.
Quando um homem chega a casa com o carro carregado de sucata, por
exemplo, a mulher, filhas e noras apressam-se a vir descarregar. Se não o

16
Em algumas casas continuam a oferecer-me lugar na mesa embora noutras, com quem existe
maior familiaridade, as mulheres me passem simplesmente a comida para a mão, onde eu
esteja, como fazem entre elas.
fazem, são as outras mulheres, as que estiverem presentes na altura, que as
mandam e criticam a sua falta de iniciativa. As mulheres formam uma espécie
de colectivo que tudo comenta em público, exercendo um controlo social feroz,
essencialmente sobre as próprias mulheres.

Os homens muitas vezes aludem às potenciais confusões que as


17
mulheres podem causar. As discussões públicas entre mulheres, que podem
envolver bastante alarido e confusão são muitas vezes criticadas abertamente
pelos homens que tantos criticam ambas as partes envolvidas como discutem
quem “leva razão”. Mesmo entre mulheres parece haver consenso quanto ao
facto de serem as mulheres as principais a causar problemas. Os maridos não
gostam quando as mulheres se juntam a “deitar conversa”, ou seja, a
conversar durante muito tempo, o que reflecte a preocupação em controlar o
elemento feminino. Isto passa-se principalmente relativamente às esposas
mais jovens. É costume as mulheres mais novas, casadas, serem chamadas
pelo marido quando a conversa entre mulheres já vai animada. Ou que um
sogro ou marido apareça a ver o que se passa e a conversa amorne
imediatamente.

Mas são as mulheres, de facto, as mais críticas em relação ao


comportamento das outras. A forma como uma mulher educa os filhos, como
mantêm a casa, como se veste, como gere o seu dinheiro e como fala do e
com seu marido, são sempre passíveis de critica aberta pelas outras mulheres,
da mesma idade e mais velhas. Várias mulheres me deram conta desta
vigilância colectiva, tentando manter um comportamento que não levasse as
outras “ a falar”. As mulheres que durante algum tempo tiveram os maridos
presos, mantinham-se por perto da sua sogra e demonstravam descuido na
forma como se apresentavam pois preocupavam-se com o que elas – entenda-
se as outras - iam dizer se andasse “arranjada”. Estas mulheres não
dançavam, não participavam nas festas, não demonstravam alegria e
visitavam os maridos religiosamente. Isto implica que, mesmo na ausência do

17
Quando, se discutia publicamente a questão de instalar tanques públicos no acampamento,
pois as mulheres têm de se deslocar a um local relativamente distante, os homens diziam que
isso ia dar confusão entre as mulheres, porque “umas são mais limpas”. As mulheres
concordam com este argumento.
marido, as outras mulheres da família se encarregam de vigiar o
comportamento da esposa que está, aliás, definido à partida. Uma mulher que
tinha o marido ausente pediu-me, na Páscoa, que fosse com a filha “levar o
ramo” ao padrinho. Porque este era cigano ela não devia ir sozinha, ainda que
acompanhada pela filha, visitá-lo. Se fosse um pajo, dizia-me, já não fazia
mal.

As mulheres mais velhas fazem muitos reparos as suas filhas e noras


sob a forma como se arranjam, sobre a limpeza e aspecto dos filhos e da casa.
As mulheres comentam sobre a roupa uma das outras e é frequente as mais
velhas fazerem reparos quanto ao comprimento ou transparência de uma saia.
Comentam onde as outras vão, com quem e fazer o quê. Entre mulheres o
assunto muitas vezes são as outras. Aliás, o “disse-que-disse”, os rumores e
os boatos que trocam entre si, funcionam igualmente como mecanismo de
controlo. Portanto se as mulheres podem ser implicitamente entendidas como
uma força disruptiva da ordem social, é também verdade que são estas que
maior controlo exercem sobre o seu comportamento das próprias.
Nomeadamente sobre o comportamento e o carácter das raparigas solteiras
pois depende destas a honra da família. Em ultima instância, depende das
mulheres, do seu comportamento, a honra dos homens. Cabe então a estas a
defesa simbólica da honra do grupo pois o comportamento das mulheres, em
termos sexuais, educativos e domésticos, vai reflectir-se sobre a imagem dos
homens e do grupo.

Este papel da mulher – enquanto guardiã da honra do marido –


estende-se para além da morte deste pois uma viúva deve continuar a viver e
comportar-se em função do seu falecido marido, até ao fim da vida. No
capítulo seguinte veremos em detalhe as particularidades relacionadas com a
viuvez mas, por enquanto, importa-nos sublinhar quão importante é o papel
da mulher na manutenção da honra do grupo, isto é, dos homens que o
representam

Já aludi ao episódio contado pelo Aguelito sobre o encontro com os


ciganos romanos, como ele lhes chamava. Neste encontro, uma das formas
que levou ao estabelecimento de identificação foi precisamente a forma como
eles tratavam as mulheres, como brincavam com elas. Ora o relacionamento
social entre homens e mulheres reveste-se de peculiaridade pois, por
exemplo, é raro ver um casal brincar em público, ou sequer demonstrar
qualquer intimidade. A intimidade entre casais é algo que pertence
exclusivamente à esfera do privado. Mais facilmente se assiste a brincadeiras
entre cunhados, do que entre marido e mulher que, publicamente, mantêm
um relacionamento que aparenta seriedade. Não obstante, em dias de festa
ou de bom humor, acontecem brincadeiras e trocam-se provocações.

Se o afecto entre casal é privado, o conflito pode não ser pois


comummente trespassa para o espaço público e, portanto, estão ao acesso de
todos. Se um homem trata mal ou agride a mulher em publico normalmente
ninguém intervêm. Se uma mulher responde ao marido, estará mais sujeita
aos comentários e criticas dos outros. Entre um casal se as coisas se agravam
a família intervém mediando o relacionamento entre o casal para evitar uma
separação. Esta mediação tenderá a favorecer o homem: quando uma mulher
se zangou com o marido por este ter chegado muito tarde à noite a casa, esta
discussão terminou em agressão e ela acabou por ir embora com os filhos
para casa dos pais. Aqui o grupo foi unânime em afirmar que ela estava
errada em faze-lo, porque “uma mulher que gosta de um homem não faz
isso”. Por outro lado, quando um outro homem fugiu, durante uma festa, com
outra mulher, a família dele aconselhou a esposa a dizer-lhe que não o “queria
mais” para assusta-lo. Assim, mais do que favorecer o homem, o grupo tende
a favorecer a união em si, o casamento, e a envolver-se para proteger este.
Ainda assim quando as criticas são feitas à mulher, são feitas por todos e em
público, quando é o homem que falha, a opinião pública é bastante mais
discreta.18

18
Em geral o comportamento das mulheres é sempre mais criticado. Assim, quando se discute,
por exemplo, o caso de um homem cigano que já viveu com várias mulheres tendo filhos de
várias, as mulheres dizem ser culpa das próprias mulheres pois estas, conscientes da sua
natureza e do facto dele atraiçoar e deixar várias mulheres sozinhas com os seus filhos,
continuam a aceitá-lo. Quando se discutem casos de infidelidade por parte dos homens, as
mulheres criticam sempre as mulheres envolvidas, desculpabilizando implicitamente o
comportamento masculino.
Mesmo entre irmãos solteiros, se o rapaz se zanga e aplica por exemplo
um pontapé na irmã, esta não é uma situação que alarme ninguém. Assim
como os protestos e insultos desta não vão surtir grande efeito na audiência.
Discussões entre indivíduos adultos de género diferente que trespassem para
a esfera pública acabam por envolver todos os elementos do grupo e tendem a
passar depressa, embora todo o grupo discuta – entre os seus pares – quem
“leva razão”. Em ultima análise, o relacionamento entre homem e mulher
depende absolutamente do grau de parentesco e da idade dos indivíduos em
causa.

As jovens mais novas, solteiras e casadas praticamente não interagem


com os rapazes da mesma idade e ou estatuto social (casado ou solteiro).
Mesmo com os homens mais velhos a interacção é condicionada pelos laços de
parentesco e pelo maior ou menor grau de familiaridade, e estas falam mais à
vontade com cunhados e irmãos. As mais velhas, já casadas, com mais filhos
e eventualmente netos, falam mais abertamente com todos sem no entanto
falar por cima dos homens, coisa que estes fazem constantemente. A única
mulher que ouvi criticar – em público e em privado – elementos do sexo
masculino foi a Tia C. relativamente aos seus filhos e netos. Nas discussões
públicas a Tia C. dá sempre a sua opinião, muitas vezes conciliadora ou
influente, e interrompe muitas vezes os homens mais novos. A Tia C., pela sua
idade e pelo parentesco, é uma mulher com poder, influência e autonomia
dentro do grupo.

A interacção entre homens e mulheres é sempre dependente do


contexto e é sempre potencialmente perturbadora. Se os laços de parentesco
não legitimam a interacção, esta pode tornar-se um conflito. Eu própria, uma
vez, por pouco não me safei de uma bengalada do Tio J., por me alongar na
conversa com um rapaz jovem casado. E a conversa estava a acontecer à
volta da fogueira, na frente de todos, e era sobre questões étnicas.

A diferenciação de géneros, no terreno, é visível em termos de


ocupação de espaço. Raramente se verá um homem nos locais destinados a
tratar da roupa, ou ir buscar água. Socialmente homens e mulheres misturam-
se mas existem graus de distanciação subtis que poderão passar
despercebidos num primeiro olhar e que reflectem a ordem hierárquica e de
género. Os lugares que ocupam, no espaço social, não é arbitrário mas antes
reflecte a própria ordem social. Quando se discute a instalação de balneários
no acampamento, mulheres e homens demonstram o desconforto de existir
apenas uma porta que dá acesso aos balneários femininos e masculinos. Este
espaço de proximidade, ausente do palco público, é sentido como num espaço
de potencial desordem social. Nem todos partilham este espaço, por diferentes
razões: pela distância da sua própria casa, pela própria partilha de um espaço
que é iminentemente privado, pela sujidade (talvez deva entender-se
impureza) que esta partilha implica. Este é um espaço misto, de proximidade,
a que o grupo não está acostumado.

Os mais velhos continuam a fazer a sua limpeza dentro de casa,


utilizando água fervida em bacias, e continuam a fazer as suas necessidades
no mato envolvente, como sempre. Esta apropriação do terreno arborizado
que envolve o acampamento para actividades do foro íntimo está interiorizada
por muitos anos de vida em habitações precárias e não parece levantar
problemas: está tacitamente estabelecido para que lado vão os homens e para
que lado vão as mulheres e estas nunca vão sozinhas ao mato mas sempre na
companhia de outras mulheres sejam filhas ou noras, irmãs ou cunhadas, que
vigiam as proximidades.

O meu envolvimento com os homens foi, como já disse, condicional e


limitado, pelo que não posso dar muita informação sobre o seu
comportamento entre os pares ou mesmo sobre a sua percepção do universo
feminino. Entre as mulheres, tive acesso àquela que é a sua rotina quotidiana,
às suas conversas, às suas preocupações e às suas expectativa. Tive acesso a
um espaço de contacto com o não cigano que é absolutamente fundamental
para compreender a relevância do papel social das mulheres dentro do grupo
pois é a estas que cabe, na grande maioria das vezes, a manutenção das
relações institucionais. São as mulheres que falam com as assistentes sociais
e com as professoras, por exemplo. Quando chega ao acampamento alguém
em representação de alguma instituição (centro de emprego, segurança social,
etc.) – na maioria das vezes são as mulheres que se acercam e tomam as
rédeas da conversa, nomeadamente a Tia C. as mulheres tentam sempre
saber com quem querem falar e, se for um dos homens, tentam sempre saber
o que se passa sem ter de chamá-lo, dizendo muitas vezes que ele não está
até saberem do que se trata. A mulher do indivíduo pode ser chamada mas, se
ela for ainda nova, as mais velhas, a mãe ou a sogra, falaram em nome dele.
Esta capacidade de mediação é estratégica e tende a proteger os elementos
do sexo masculino. Se for um homem a chegar ao acampamento as mulheres
mais novas não se aproximam e são as mulheres mais velhas e os homens
presentes que irão falar com ele.

Este papel de mediação em nome dos homens da família, em particular,


e do grupo, em geral, coloca na mãos das mulheres o poder de negociação
com os não ciganos no que as relações institucionais se refere. Por vezes é
difícil para estas mulheres fazer entender aos seus maridos determinadas
exigências dos acordos sociais, por exemplo, pois alguns homens mantêm-se
bastante alheados desta realidade e deixam na mãos das mulheres a
responsabilidade de garantir o rendimento social d inserção, por exemplo.
Estas muitas vezes tem um duplo papel de mediação pois devem estabelecer
compromissos quer com as instituições, quer com os seus maridos. Em muitas
ocasiões geram-se conflitos potencialmente complexos. A participação
obrigatória das mulheres num curso de formação à noite, por exemplo, pode
ser difícil de negociar com ambas as partes.

Para além deste papel de negociação e manutenção de relações, as


mulheres ocupam-se de toda a gestão doméstica. Compram mantimentos e
preparam comida para toda a família, lavam a roupa de todos e cuidam das
crianças. As noras ainda jovens levam a cabo grande parte destas tarefas em
casa das sogras e muitas vezes são elas que cozinham para todos. Cozinhar
separado – da sogra, entenda-se – pode passar a acontecer depois do
nascimento do primeiro filho e implica que a jovem esposa tem vontade de ter
mais autonomia dentro da sua casa. Assim passa a cozinhar no seu barraco,
para o seu marido e filhos, e não na casa da sogra.

Envolvi-me com profundidade neste universo feminino pois passei muito


tempo com as mulheres de todas as idades. Desde as crianças às mulheres
mais velhas. Assim tive acesso a um espaço exclusiva e eminentemente
feminino no qual cabem aspectos intrínsecos da natureza feminina – como a
menstruação, a gravidez e o parto – que representam um tabu para os
homens.

Estes temas nunca são discutidos na frente dos homens representando


uma interdição de género. Mesmo aquando do nascimento de uma criança, os
pormenores do parto não são partilhados com os homens. Pormenores
relativos à gravidez também são omitidos das conversas públicas. Os homens
nunca comentam estes temas. É importante aqui mencionar o conceito de
lache que significa vergonha. Estes assuntos “dão lache” e mesmo entre
mulheres a sua discussão não é totalmente aberta mas depende da idade e
grau de parentesco dos indivíduos.

Assim, uma jovem não irá falar sobre estes assuntos na frente da sua
mãe, por exemplo. A mãe é, aliás, a pessoa menos provável com quem irá
falar destes temas. As jovens conversam assuntos de natureza íntima com as
outras da mesma idade e eventualmente com tias ou primas mais velhas de
quem sejam mais próximas. Todos estes temas, incluindo ainda temáticas de
carácter sexual, pertencem a uma esfera essencialmente privada de grande
poder simbólico, poder este cuja significância se perdeu no tempo mas que
sobrevive comportamentalmente no quotidiano.

Relativamente à gravidez por exemplo, são muitos os aspectos que


regem este estado de liminaridade e nem sempre são passíveis de total
compreensão: os filhos são muito desejados mas a gravidez é um estado que
“dá lache”, talvez por ser o resultado visível de um relacionamento que é não
visível, não público, com o relacionamento íntimo de um casal. Quando, no
fotógrafo onde fui com uma mãe tirar fotografias aos filhos, apontei para a
fotografia de uma grávida a mostrar a barriga que um outro filho beijava, a
minha interlocutora disse imediatamente: “as ciganas não fazem isso, é feio”.
Tal como mostrar as pernas,19 mostrar a barriga grávida é indecoroso. Uma
das mulheres diz-me “ quando eu estava grávida nem saia da barraca com
vergonha”. Esta vergonha que deve ostentar-se durante a gravidez parece ser

19
O tabu relativo à parte inferior do corpo é muitas vezes relacionado com a herança indiana do
povo cigano.
uma vergonha que nasce do próprio acto da concepção. Se os assuntos de
sexualidade são de cariz privado, talvez a gravidez seja um reflexo dessa
intimidade e como tal esteja sujeita à mesma vergonha.

Por outro lado a vergonha prende-se também com o facto de uma


gravidez (principalmente quando se tem já mais filhos) complicar a vida
económica do casal. Quando já se tem muitos filhos e é complicado mantê-los
a todos, uma nova gravidez levanta criticas à mulher. Se esta a exibe em vez
de ser discreta, as críticas aumentam. As mulheres contam muitas vezes, para
reforçar as críticas feitas quer às mulheres com filhos que engravidam
novamente, quer às recém casadas que exibem a gravidez – que choraram de
vergonha por estar grávidas e evitavam sair das barracas. Uma gravidez
precoce, logo depois de casada, parece ser motivo de lache e criticas, pelos
menos se a jovem não for discreta em relação a isso. Das inúmeras gravidezes
que acompanhei durante o trabalho de campo nunca tomei conhecimento pela
boca da própria mas fui sempre informada por outras, em confidência.

Das grávidas acreditam-se que causam treçolhos ao desejar a comida


que alguém esteja a comer, por isso é-lhes sempre oferecida comida. É
também consensual o poder que a mulher grávida tem para rogar pragas.
Como eu própria estive grávida durante o tempo que estive no acampamento
(para alegria de todas que achavam lamentável eu não ter filhos com 28
anos), tive o privilégio de partilhar este espaço de liminaridade em que se
encontram as futuras mães. Era com as mulheres mais jovens (mais novas do
que eu mas grávidas do primeiro filho como eu própria pois as mulheres da
minha idade já tinham todas bastante filhos) que conversava mais sobre a
gravidez e as implicações socioculturais que esse estado implica. Encontramos
na cultura tradicional portuguesa muitas das crenças relativas à gravidez que
encontrei no terreno como, por exemplo, a interdição de usar coisas à volta
dos pulsos ou pescoço ou a necessidade de satisfazer os desejos da grávida
para a criança não ‘ougar’, ou ainda as diversas formas de predição do sexo
da criança como a forma da barriga (mais bicuda, rapaz, mais redonda,
rapariga), enfim, toda uma série de aspectos que pertencem também ao
folclore tradicionalmente português (porventura ibérico) e que nos dão
indicações sobre a permeabilidade da cultura cigana nos contextos culturais
onde se reconstrói continuamente.

Esta partilha permitiu-me entender quão importante era para estas


jovens ter um filho, o que isso implicava para si e para os seus jovens
maridos, e ainda, permitiu-me discutir mais abertamente todos os temas
relativos à sexualidade feminina. Com as mulheres mais velhas a minha
gravidez concedeu-me um estatuto que permitia a partilha de brincadeiras por
exemplo de caris sexual que antes me estavam vedadas. Estas brincadeiras,
normalmente acontecem entre pares e discretamente, e dependem de uma
grande familiaridade. Os relacionamentos sexuais podem então ser abordados
publicamente dentro de perspectiva jocosa ou, quando discutidos seriamente,
são sempre discutidos com discrição e com referência implícitas. Quando
discutidos seriamente, entre mulheres da mesma idade, assuntos como a
menstruação (geralmente mencionada como isso: “estou com isso” ou “veio
isso”), são abordados com decoro e longe das mulheres mais velhas e, claro,
dos homens. A contracepção é uma temática sensível que também têm lache
de discutir abertamente. As mais jovens falam sobre isso entre si, embora as
mais velhas, casadas e com mais filhos, falem sobre o tema mais abertamente
na frente na delas. Não é um assunto que se discuta na frente dos homens,
pela sua natureza e também porque muitos homens se opõem à utilização de
métodos de planeamento familiar por parte das mulheres.

A percepção de que as pajas não partilham os mesmos códigos de


conduta e a mesma concepção do que é público e privado e mesmo do que é
limpo ou impuro, e também a consciência de que a virgindade e o contacto
com o sexo masculino são entendidos e vividos de outra forma, leva à partilha
de um preconceito sobre estas. As pajas também não partilham a mesma
conceptualização do corpo humano, mostrando as pernas – que não devem se
exibidas – e usando os cabelos curtos ou soltos. As pajas também falam dos
mais variados temas na frente dos homens.

Ouvi apenas das crianças coisa como “as pajas são porcas”. Sempre que
tentei explorar mais estas diferenças e entender qual a sua concepção das
mulheres não ciganas, as mulheres com habilidade desmentiam estas
afirmações e, certamente pelo receio de ferir a minha susceptibilidade, sempre
mostraram relutância em aprofundar esta questão.

Não obstante, as questões relativas à conceptualização cultural do que é


puro e limpo e do que é impuro e sujo, abordadas no primeiro capítulo, estão
muito relacionadas com questões de género e oferecem-nos uma perspectiva
única da cultura cigana pois expõe noções culturais profundamente enraizadas
que se traduzem em características socioculturais intrínsecas. Numa mulher
cigana é sempre elogiada a limpeza e o decoro, estando estes códigos de
conduta relacionados com o estabelecimento de espaços protegida e
legitimada pelas interdições de género e pela definição de espaços
absolutamente privados inscritos numa matriz cultural e simbólica.
O Casamento

O casamento é a festa por excelência. A fama dos casamentos ciganos


corresponde de facto à realidade na medida em que este é, indubitavelmente,
um momento de celebração e reforço da identidade étnica e de fortificação da
coesão do grupo no sentido mais alargado do termo. A festa, que
tradicionalmente dura três dias, reúne as famílias de maior e menor
proximidade pois ir a um casamento ainda que distante é um momento
importante na vida de todos. Um expoente na vida social e até individual pois
os casamentos funcionam como lugar de encontro repleto de possibilidades,
sejam elas negociais ou matrimoniais. Para os jovens solteiros deste
acampamento, de ambos os géneros, um casamento é uma oportunidade
pouco frequente de estar com outros jovens e conhecer eventualmente os
futuros companheiros. Alguns dos jovens casais do grupo casaram após terem
fugido durante o casamento de parentes. A fuga, como veremos adiante, é a
principal forma de marcar o compromisso entre um homem e uma mulher.

Não é só o ritual de celebração que comporta significados essenciais. Na


verdade o casamento entre dois jovens reafirma os laços entre as respectivas
famílias, alargando e fortificando a rede de solidariedade familiar. Neste grupo
o casamento acontece exclusivamente entre cognatos sem que isto seja uma
imposição. Mas é sem duvida o ideal veiculado na lei cigana – que o
casamento aconteça entre parentes, por conseguinte, entre ciganos. No nosso
caso especifico este acontece quase sempre entre primos direitos, primos em
primeiro grau, portanto. Não conheço nenhum caso, nesta família, em que a
união não tenha sido entre dois primos ou um outro tipo de parentesco muito
próximo.

O casamento é então preferencialmente endogâmico. Não conheço


pessoalmente nenhum caso de casamentos entre ciganos e pajos, mas alguns
casos foram-me contados. Normalmente os casos de homens ciganos casados
com uma paja são contados com normalidade reforçando as qualidades da
esposa, que normalmente adopta os costumes ciganos. Os casos de jovens
ciganas que fogem – porque não chega a haver um casamento pela lei cigana
– com pajos são, por sua vez, contados com criticismo. Casar na família e,
especialmente, casar com alguém cigano, é o desejo de todos os país,
especialmente no que às suas filhas se refere pois o seu casamento com um
elemento de fora do grupo étnico, implicaria o seu afastamento do grupo e,
consequentemente, a vergonha da família.

Como vimos, os laços de parentesco são a base de toda a organização


social que se centra, para cada indivíduo, no seio da sua família nuclear. Esta
constitui, portanto, para cada indivíduo, o centro de toda a organização social.
O casamento, como instituição geradora de mais uma família, ou seja, mais
um núcleo produtivo, representa a continuidade do grupo e consagra a Lei
Cigana.

Porque significa uma mudança de estatuto de fulcral importância – de


solteiro a casado, de criança a adulto – o casamento é um ritual de passagem
por que os indivíduos anseiam. Embora assuma diferentes dimensões para
rapazes e raparigas, funciona, para ambos, como uma entrada na vida adulta.
Confere a ambos a legitimidade social de intervir, de se fazer ouvir no grupo,
embora o casamento constitua o primeiro passo desde processo sendo que a
organização social obedece a uma forte hierarquia de género e de idade.

Enquanto solteira ou solteirinha, como é comum dizer-se, uma jovem


tem muito pouca liberdade e está sujeita à vigilância de todos. O seu
comportamento, a sua educação, a sua capacidade de trabalho mas também
de desenrasque, a sua limpeza e, sobretudo, o seu recato social, emocional e,
claro, sexual, são objecto de comentário e vigilância. O seu contacto com os
indivíduos do sexo masculino, ou seja, os primos com quem cresceu, é muito
reduzido e limitado. As solteirinhas nunca andam sozinhas fazendo-se sempre
acompanhar de alguém mesmo quando vão à casa de banho – até porque, no
contexto do acampamento, isto deve ler-se ir ao mato – e não devem
conversar com os rapazes ou estar alguma vez a sós com algum. O casamento
precoce, para muitas destas raparigas, é a única forma de se aproximarem de
uma pessoa de quem gostem.
Para os rapazes o casamento significa igualmente uma transformação
social. Casar permite-lhes serem ouvidos no grupo, permite-lhes terem algo a
dizer. Este é um poder que se vai adquirindo com o tempo e, sobretudo, com
a idade mas que, sem dúvida, engrandece com o nascimento de um filho
legítimo – o que o casamento permite. O mesmo recato não é pedido aos
jovens uma vez que a virgindade destes não é questionada ou desejada. No
entanto, para eles também, o casamento é a única forma de estar com a
jovem que escolheram para casar.

Estes são certamente factores que condicionam a idade -geralmente


considerada precoce – dos jovens quando casam. No acampamento os
casamentos das últimas três gerações parecem ter acontecido por volta dos
13/ 14 para as meninas, e 15/16 para os meninos. Estas idades são alvo de
inúmeras críticas pelos não ciganos mas, na verdade, também não são
pacíficas neste grupo, como poderíamos esperar. Os mais velhos dizem muitas
vezes que são idades demasiado jovens para um casamento, que são apenas
crianças. Não obstante, a tradição que aqui predomina coloca a decisão na
mão dos jovens no sentido em que são eles que escolhem fugir juntos e
assumir, dessa forma, um relacionamento perante todo o grupo. Embora
encontremos alguns casos de casamento combinado, estes são uma
percentagem insignificante perante o casamento por fuga, neste grupo.

O casamento entre dois jovens pode então acontecer de duas formas


distintas: ou por combinação, ou seja, por pedimento, quando os jovens estão
pedidos um para o outro – o que pode acontecer antes até do nascimento
ficando assim pedidos “de barriga para barriga”; ou por fuga, quando dois
jovens, normalmente auxiliados por uma terceira parte sendo que não podem
falar-se, fogem juntos para casa de um parente ficando assim comprometidos.

Quando dois jovens estão pedidos um para o outro apenas a mulher


pode “dar cabaças”, isto é, rejeitar o noivo. Este, por sua vez, não pode
recusar a noiva. A única forma de evitar um casamento que não deseja é
fugindo com outra jovem. No acampamento todas as crianças estão pedidas,
ou seja, todas têm um casamento combinado. No entanto isto faz-se mais por
costume do que com o objectivo de definir rigorosamente o futuro dos filhos.
Como já mencionei os casos em que os indivíduos casaram porque
estavam pedidos são quase inexistentes. Na verdade, a fuga é o ritual mais
recorrente e, pelo que me contam os mais velhos, o mesmo já acontecia no
passado. Assim, quando dois jovens se gostam combinam fugir juntos. Fogem,
em segredo, para casa de alguém da família que viva perto. Este alguém volta
para avisar os pais do sucedido. Mais tarde, traz os jovens fugidos que são
20
desde logo considerados noivos e o casamento deve realizar-se o mais
brevemente possível. Devem manter-se afastados um do outro e não
conversar, como anteriormente, embora a jovem possa ir-se acercando da
casa da sogra para onde irá viver. Alguns factores podem adiar a realização da
festa como sendo o luto de uma das famílias, a ausência do pai da noiva ou do
noivo ou mesmo a falta de dinheiro. Normalmente os jovens evitam fugir
quando sabem que a altura não é conveniente ao casamento. A fuga não
implica contacto sexual entre os jovens. A noiva deve voltar virgem e isto será
verificado ritualmente durante a cerimónia de casamento. A sua integridade
moral, assim como da sua família, dependem da sua virgindade. Aliás, o
próprio casamento depende da sua virgindade.

Apesar do que significa socialmente ser casado, o casamento por si só


não confere o estatuto de autonomia e independência. Também pela idade
jovem dos recém casados o grupo ainda não os olha como sendo
completamente independentes. Tradicionalmente a residência é patrilocal. Ou
seja, os jovens vão viver com os pais do noivo. Muito embora, no
acampamento, isto esteja dependente do espaço existente na barraca dos pais
do noivo ou mesmo ao seu redor para futura construção. Existindo esse
espaço os noivos, de preferência assim que surgir um primeiro filho, habitarão
uma barraca adjacente aos sogros, utilizando por vezes a mesma entrada.

Tradicionalmente, portanto, a noiva muda-se para casa da sogra e deve


ser obediente a esta. Deve assumir tarefas domésticas na casa da sogra
como, por exemplo, cozinhar para toda a família nuclear. Ainda que
eventualmente more numa outra barraca, a nova família poderá fazer as
refeições sempre na casa dos sogros que é o espaço de socialização principal

20
Aliás são considerados marido e mulher, no entanto esperam pela ritualização para
legitimar a relação perante todo o grupo.
onde o casal, as filhas e filhos solteiro, os seus filhos casados e respectivas
mulheres, e os netos se juntam à volta do fogo. Uma jovem que atenda
primeiro aos pedidos da sua mãe em vez de os da sua sogra, será criticada.
Este deve, após o casamento, assumir as suas obrigações para com o seu
marido e família deste. E embora a proximidade, no nosso caso especifico,
garanta que uma jovem casada possa continuar a ajudar a mãe nas tarefas
domesticas ou ter ajuda desta para tomar conta dos filhos, se os tiver, a lei
manda que a mulher casada assuma a família do marido como sua e, na
generalidade, as jovens demonstram imenso respeito pelos seus sogros,
especialmente pela Tia, ou seja, pela sogra.

Após ter casado a mulher deve “fazer as coisas para seu marido” e dar-
lhe muitos filhos. Deve obedecer sempre ao seu marido e cuidar deste e dos
filhos, estando a educação destes ao seu encargo. Os homens são obviamente
o símbolo da autoridade no casamento. A mulher deve responder sempre
quando este chama ou pede algo. O comportamento da mulher enquanto
esposa é sempre julgado pelo grupo, por exemplo se um homem tem
comportamentos considerados impróprios, as mulheres do grupo atribuem à
sua mulher alguma culpa por isso. Se uma criança é demasiado mal
comportada ou desobediente ou suja, os dedos são apontados à mãe. O
comportamento da mulher deve ser exemplar mesmo quando o do marido não
é. A mulher deve ainda vestir-se como uma casada, isto é, usar sempre saias
compridas (nunca calças), e usar o cabelo preso, excepto em dias especiais.

O casamento pela Lei Cigana é para sempre. É extremamente


condenada a mulher que abandona o marido embora o facto de o marido ser
alcoólico ou toxicodependente possa atenuar o caso. A mulher que decide
abandonar o marido para se juntar com outro homem, por exemplo, não será
bem vinda entre as famílias honradas e terá que abdicar dos seus filhos. No
acampamento não existe nenhum caso assim mas os relatos são bastantes.

A agressão entre marido e mulher é geralmente tolerada, embora


outros possam intervir se as coisas se agravarem ou se o marido estiver
embriagado. A família de ambos deve intervir se as coisas se tornarem
perigosas e em casos extremos a família do noivo pode ajudar a mulher a
voltar para casa dos pais com os seus. Se assim não for e a violência surgir
como consequência de qualquer conflito matrimonial, então muito
provavelmente ninguém interferirá. Como causa de conflito entre os casais
estão muitas vezes os filhos. Os maridos as vezes ralham com as mulheres
quando acham que estas são severas com as crianças, especialmente com os
meninos.

Os casos de homens que abandonam as mulheres são mais


frequentemente e normalmente lamentados. A mulher que é abandonada
pode ou ficar junto dos sogros com os seus filhos ou voltar para casa dos seus
pais com eles. Nos poucos casos que acompanhei ou tive conhecimento a
mulher optou por ficar e esperar que o marido mudasse de ideias, o que
acabou sempre por acontecer. Na verdade, quando algo assim acontece atinge
todo o grupo e os parentes de ambos os lados tentam influenciar ambos os
lados no melhor sentido. Assim, um casamento que nitidamente não está a
correr bem e do qual não há ainda filhos pode ser dissolvido pela vontade das
duas famílias. No caso de ser o marido o descontente no relacionamento, este
pode mandar a mulher embora tendo ela o direito de elevar os filhos com ela,
se os houver. O facto de não haver filhos pode ser inclusivamente a causa do
marido querer acabar com o casamento.

É claramente impossível descrever todas as possíveis causas de


rompimento e consequências deste pois a afinidade entre as pessoas, o
sentido de justiça e os pormenores contextuais, condicionam inevitavelmente
o grau de interferência e o desfecho de cada caso. Não obstante, da mesma
forma que o casamento é um assunto colectivo com implicações profundas
para todo o grupo, também o fim deste é algo que não diz apenas respeito aos
dois envolvidos. Assim a regulamentação e legitimação social (ou não
legitimação) dos acontecimentos é feita colectivamente sendo os mais velhos
de cada família envolvida quem toma as decisões finais.

No caso de segundos casamentos – no caso de viúvos ou de alguém que


foi abandonado – é muitas vezes a interferência familiar que faz com que as
coisas aconteçam. No caso que existe no acampamento – dois viúvos casados
um com o outro e já com dois filhos – o casamento aconteceu por
interferência directa da família do marido que, sendo este já velho, desejavam
uma companhia para ele. No entanto, embora este seja um casamento aceite
por todos, a sua legitimidade não é absoluta. Um segundo casamento não
possui nunca a valorização social que um primeiro e pode, até, ser alvo de
escárnio. Sendo que, nestes caos, a mulher é mais criticada do que o homem
envolvido. Talvez porque também se critica mais a mulher viúva que procura
um segundo marido do que o homem que, ao procurar outra companheira,
está apenas a agir de acordo com a sua natureza e com a necessidade de ter
alguém que cuide dele.

Quando é então a morte de um dos cônjuges que traz o fim ao


casamento aquele que sobrevive está sujeito a um comportamento
regulamentado pela Lei Cigana, embora seja no caso das mulheres que tal se
torna mais manifesto. A mulher cigana deve vestir-se de negro até ao fim da
vida. Tradicionalmente Deve cortar o cabelo longo e tapa-lo com um lenço e
deve abster-se de se lavar ou cuidar. Deve abster-se de ouvir musica, ver
televisão ou participar em qualquer tipo de festa ou discussão, como se
também ela morresse simbolicamente. No entanto, nos dias hoje há um
grande numero de ciganas que enviúvam muito jovens, às vezes com um ou
dois anos de casadas, devido a acidentes, droga ou criminalidade, e nestes
casos todos parecem tolerar um segundo casamento pois a idade das jovens
viúvas não justifica uma “condenação” para toda a vida. Embora no
acampamento não exista nenhum caso assim ouvi vários relatos de casos
semelhantes. Uma vez que muitos dos acidentes que vitimam estes rapazes
estão relacionados com situações típicas dos dias de hoje que, certamente,
não aconteciam com a mesma frequência há cem anos atrás, esta parece ser
uma daquelas situações em que a Lei Cigana choca com a modernidade.

A festa

A festa de casamento é muitas vezes apresentada como um estandarte


cultural que enche de orgulho as famílias. Os casamentos são tão significativos
que uma das coisas que mais circula entre os jovens são filmes de casamento
de jovens ciganos de famílias mais abastadas. Estes filmes – longas horas de
música elevada e dança onde as jovens ostentam vestidos brilhantes e justos
e os longos cabelos soltos21, contrariamente ao dia a dia – são apreciados e
elogiados por todos e muitos são mesmo comercializados. Mesmo as famílias
mais pobres, como aquela em questão, fazem vídeos caseiros para registar as
festas de casamento.

É frequente convidarem-se pajos para os casamentos. No entanto,


continua a existir um imenso secretismo quanto a alguns dos rituais. De tal
forma que se torna incontornável reflectir sobre a divulgação de alguns desses
rituais cujas informações me foram sempre transmitidas em segredo. Assim,
opto por não divulgar tudo aquilo que não me foi oficialmente divulgado.
Mesmo os filmes comerciais de casamentos omitem sempre aquele que é
considerado o ritual mais importante de tal forma que, quem não conhece as
diferentes fases a celebração, nunca perceberá que houve um corte na
filmagem. É precisamente o ritual que testemunha a virgindade da noiva que
suscita mais secretismo por parte da grande maioria dos indivíduos e sobre o
qual percebi ser pouco correcto fazer muitas perguntas. Mesmo na literatura
são poucas as referências àquilo que normalmente se chama a prova da noiva.
Voltaremos aqui.

Durante a minha permanência no acampamento houve apenas um


casamento, onde estive presente, mas assisti a inúmeros filmes, alguns deles
juntamente com as mulheres, no acampamento, o que se mostrou muitíssimo
interessante. Assim, tradicionalmente o casamento decorre por três dias e
comparecem imensas famílias, de vários locais e distancias. Comparecer a um
casamento não implica conhecer ou ser próximo dos noivos mas antes
comparecer a um evento social de legitimação de uma união, legitimação essa
concretizada exactamente pela comparência de uma grande parte da
comunidade alargada. A união dos dois indivíduos – garantida pela sua fuga
anterior – é legitimada pela celebração conjunta de acordo com a Lei Cigana.
No seu registo civil os indivíduos continuam solteiros, o que demonstra a
prevalência da Lei Cigana sobre todas as outras.

21
Ouvi muitas vezes: “ A beleza da mulher está no cabelo” que devem ser longos. Sempre que
cortei o meu fui severamente ‘repreendida’.
Os custos inerentes à festa são altos pois a família da noiva deve
oferecer comida e bebida em abundância e vestir a sua filha luxuosamente,
sendo que esta ostenta vários vestidos durante os dias da festa.
Tradicionalmente são os pais da noiva que pagam a festa embora os
rendimentos baixos das famílias em questão justifiquem a participação dos
pais de ambos nas despesas, assim como a ajuda de outros, como os
padrinhos. Durante a festa, aliás, o padrinho de casamento normalmente faz
publicamente um pedido de donativos a todos os presentes.

A música altíssima é com certeza característica fundamental desta festa


que se estende pelo dia fora entre danças e comidas. Há sempre comida e
bebidas disponíveis e a festa parece desenrolar-se em redor do espaço
destinado à dança onde um casal dança de cada vez – normalmente um
homem dança e outro vai chamando, com um pau, mulheres para dançar com
ele. Este é o cenário típico a que assisti sempre que houve algum tipo de
celebração. Em volta todos assistem, batendo palmas e dançando também.

Durante todo o primeiro e segundo dias a noiva anda de um lado para o


outro a tirar fotografias e a dançar. Muda de roupas várias vezes, vestidos
coloridos e brilhantes. O noivo, por sua vez, tem menos atenção da multidão e
mistura-se com os outros homens. No fim do segundo dia de festa – quando a
noiva veste finalmente um vestido branco e o noivo também traja a rigor –
dá-se finalmente el arruntamento – a prova que determina a virgindade da
noiva, executada com um lenço branco, a que se referem sempre como el
panuelo – sobre esta prova as mulheres são, em geral muito discretas e um
pouco secretistas. A prova, ou arruntamento, é realizada por uma mulher mais
velha a que chamam, la runtaora, e as manchas amarelas que devem ficar no
lenço como prova da virgindade da noiva são descritas como “flores muito
lindas”. O lenço é exibido no dia seguinte e, servindo de prova da honra da
noiva, é guardado pela sua sogra. A propósito deste ritual e da importância de
manter a virgindade, uma jovem dizia-me: “vocês têm o anel, não é? A gente
têm isso, é mais bonito!”

Depois da prova realizada a noiva e o noivo são colocados juntos, pela


primeira vez, perante todos e, seguidamente, baila-se ou alebanta-se la nobia.
Neste ritual, a noiva e o noivo são colocados em ombros e todos dançam em
circulo – os casais casados dançam lado a lado – agitando lenços brancos e
cantando uma música tradicional, enquanto que ao mesmo tempo atiram
amêndoas e rebuçados aos noivos. O padrinho e outros homens rasgam as
camisas.

A música cantada enquanto bailam la nobia parece ser comum a outros


grupos embora a letra possa variar. Aliás, neste mesmo grupo encontro
variações. Como o resto da sua linguagem é composta por uma mistura de
português, espanhol e alguns vocábulos difíceis de entender cuja origem e
significado deve perder-se no tempo. Uma delas, jeli, perguntei varias vezes o
significado porque compõe exactamente o refrão que se repete inúmeras
vezes, e ninguém achava que tivesse algum significado. No entanto, quase por
acaso descobri que significa amor em romani. A letra que apresento em
seguida é a versão mais frequente.

Atira flores, amêndoas al aire


Que o casamento é de convidar
Ai jeli jeli jeli jeli jeli jeli ai
Levanta la novia pra riba

E las amendoas en el aire
…todas mirando todas mirando
Lá vem a noiba, tão perfumada
Ai jeli jeli jeli jeli jeli jeli ai

Já se vá lá novia, já se va lá novia
Ai jeli jeli jeli jeli jeli jeli ai

Nessa noite os jovens continuam a dormir separados, cada um na casa


dos seus pais. Na amanhã seguinte é la manhanada, que começa com uma
grande refeição conjunta onde o lenço branco usado na prova no dia anterior é
exibido para todos. A festa continua até todos se irem e, nessa noite, os
noivos dormem pela primeira vez juntos, provavelmente na casa dos
padrinhos.
Júlio António Borges (1997) apresenta uma descrição detalhada dos
rituais praticados nas festas de casamento de um grupo cigano de Figueira
Castelo Rodrigo que têm muitas semelhanças com as práticas deste grupo.

José G. P. Bastos et al. escreve: “O ritual do casamento cigano


materializa ritualmente o primado da «raça» sobre todos os seus membros, o
primado geracional dos mais velhos sobre os jovens e o primado dos homens
sobre as mulheres. A virgindade da noiva concentra todos estes modos de
hierarquização em que a moral pessoal das mulheres e a honra dos homens e
do grupo se jogam num momento sentido como crucial para o projecto de
persistência da identidade cigana como uma identidade separada e
moralmente superior, que produz e reintroduz o orgulho de ser cigano” (2006:
153)
O Luto

A morte de um indivíduo do grupo familiar atinge todos os elementos do


grupo. O luto é feito por todos eles, ainda que de diferentes formas pois
depende do grau de parentesco, do grau de proximidade e da idade do
enlutado. As crianças e os mais jovens (mesmo casados), por exemplo, não
vestem negro pois só põe luto quem sabe leva-lo”. O luto implica não apenas
trajar de negro mas também manter determinados comportamentos que
requerem maturidade, como veremos. No entanto, ainda que seja apenas uma
família enlutada no acampamento, todo o grupo age em conformidade não
colocando música, não celebrando nada nem demonstrando demasiada
alegria. Quando iniciei o trabalho de campo havia duas famílias em luto já
quase há um ano e só cerca de seis meses mais tarde é que ouvi pela,
primeira vez, música no acampamento.

Outras famílias sofreram perdas de familiares e portanto foram várias


as vezes em que todo o grupo se absteve da música e da dança em
solidariedade. Quando o Aguelito, ascendente directo de quase todos os
elementos do grupo, faleceu em Braga (depois de se ter despedido de todos
para ir morrer em casa) o luto envolveu todo o grupo e todos (menos alguns
casais mais jovens que ficaram com algumas das crianças) saíram
imediatamente em direcção a Braga. Contaram-me depois que quando
receberam a noticia, pelo telefone, todos começaram a gritar, a chorar e a
partir coisas. Eu nunca estive presente num destes momentos mas, pelo que
me contam, parece que este é o comportamento normal aquando uma noticia
destas: uma espécie de momento catártico onde o grupo como um todo chora
a perda de um elemento. Creio que nos funerais o comportamento é
semelhante, pelo que me contaram também, mas este é um assunto sensível
e que achei por bem respeitar portanto não inquiri sobre pormenores dos
funerais.

Em termos cerimoniais portanto não posso deixar aqui muita


informação. Estive alguma vezes no cemitério da Esgueira, em Aveiro, onde
estão sepultados alguns elementos da família alargada, como o pai do Tio J. e,
mais recentemente, alguns sobrinhos (primos ou irmãos de alguns indivíduos
do grupo da Baralha) e pude observar como as campas estão limpas e
ricamente decoradas com grandes vasos de louça e flores de plástico. O culto
dos antepassados que este grupo pratica reflecte-se na quantidade de adornos
e no respeito que têm pelas campas dos seus mortos. No dia de Todos-os-
Santos, é costume as famílias irem ao cemitério, como outras famílias
portuguesas. “Jurar os mortos” que significa maldizer ou desrespeitar os
antepassados de alguém,22 é uma das mais graves ofensas que se pode fazer
e é um motivo de conflito frequente entre duas pessoas.

A morte de um indivíduo implica que o seu nome deixe de ser


pronunciado. Qualquer referência a esta pessoa será então feita pelo grau de
parentesco, recorrendo muitas vezes a adjectivos elogiosos ou diminutivos (“o
meu rico irmão”, “o meu paizinho”, e é sempre acompanhada da expressão
“que Deus o tenha” ou “que Deus lhe perdoe”. Se uma outra pessoa, no
grupo, tem o mesmo nome do falecido, passará a ser tratado por uma
alcunha, diminutivo ou por um segundo nome. Os pertences do morto são
queimados. Não existem heranças portanto. Se o falecido deixa uma casa ou
um carro estes serão trocados e é comum recusarem-se pensões que
pertenciam ao falecido. Ouvi alguns casos, no entanto, em que a família
guardou objectos de recordação, como mantas.

A morte de um bebé não implica luto (“é um anjinho”) mas ainda assim
queimam-se as coisas dele. Neste grupo escondem-se ou queimam-se as
fotografias do falecido pois os indivíduos não querem voltar a vê-lo. Muitas
vezes os familiares directos mudam toda a disposição das coisas dentro de
casa.

Estar de luto significa uma morte simbólica do indivíduo. Assim, uma


pessoa de luto veste-se de preto, frequentemente com as bainhas descosidas
e a roupa rasgada, os homens desfazem os nós das gravatas e deixam crescer
a barba e as mulheres tapam a cabeça com um lenço. Um indivíduo de luto
deve aparentar desleixo, descuido, com a aparência e como tal não deve usar

22
“Me cago em tus mortos” é uma expressão frequente nas zangas mais graves e que resulta
num agravamento da situação. Todos concordam que é algo que não se deve fazer.
jóias23 ou andar muito limpo. Não deve ir a festas, ouvir música, dançar, ver
televisão ou beber álcool e deve abster-se de participar em discussões.

Como mencionei, há que “saber levar o luto”, portanto, este é vedado,


por exemplo, a pessoas doentes ou deficientes, a pessoas que bebam ou usem
drogas e, de uma forma geral, aos jovens e às crianças. Os mais novos, irão
adoptando os comportamentos adequados ao luto à medida que forem
amadurecendo. Alguns dos netos do Aguelito, por exemplo, com idades
próximas entre os 20 e os 30 anos, não usavam negro mas deixaram crescer a
barba e não se penteavam, usando roupa suja e rasgada. A duração do luto
não está rigidamente estabelecida. O que normalmente dizem é que a pessoa
deve tirar o luto quando sentir que o pode fazer. Depende portanto de como o
indivíduo gere a sua dor e do grau de proximidade, pois apesar de não haver
um tempo definido para manter o preto, todos comentam sobre o assunto
regulando socialmente os comportamentos. Depois de um funeral, por
exemplo, as mulheres comentavam quem levava luto e como o levava (o que
vestia, como se portava). A pessoa que “leva luto” é respeitada pelo seu
sofrimento e pelo respeito que “guarda” ao morto, assim como pelo seu
próprio sacrifício. “Parece um velhinho/a”, é uma expressão que se utiliza
frequentemente em relação às pessoas enlutadas.

A manutenção do luto é comentada e vigiada pelo grupo. Assim, por


exemplo, se um homem enlutado se embebeda ou pratica qualquer acto que
atente contra o luto que carrega, os homens mais velhos podem obrigá-lo a
tirar o luto. Mas o luto pode ser conspurcado por terceiros para além do
próprio: uma mulher que foi agredida pelo marido bêbedo quando estava de
luto, também foi obrigada a deixar o luto. Mas deixar o luto pode ser algo que
a família ajude o indivíduo a fazer, quando este se prolonga demasiado
causando sofrimento. Isto acontece frequentemente no caso de mortes
trágicas de filhos, por exemplo. Um dos irmãos do Tio J. (pai da nora P.) está
de luto há mais de três anos por um filho e são constantes as tentativas – sem
sucesso - dos filhos, irmãos e sobrinhos, para que corte a barba e o cabelo e
tire o luto. Muitas vezes são os próprios parentes a faze-lo por si, porque eles

23
Conheci uma cigana – familiar distante deste grupo – que estava de luto e tinha os brincos de
ouro tapados com fita-cola preta.
“não tem vontade”. Tirar o luto é portanto um assunto delicado,
principalmente quando o grau de proximidade é muito (tratando-se de um
filho o luto pode estender-se por toda a vida e estes casos são lamentados por
todos). Os episódios como o anterior, e outros, de situações semelhantes em
famílias próximas, são assunto de conversa e manifestações de pesar, apoio
ou critica. Se uma pessoa enlutada souber com certeza que um outro parente
vai morrer, deve tirar o luto para esperar a outra morte.

Relativamente à morte, percebi entre as crianças que os “defuntos”, ou


côcôs, são figuras do imaginário infantil que metem medo. Os adultos também
brincam com isso. Entre os adultos também se ouvem histórias de defuntos e
de aparições de fantasmas. As mulheres contam com respeito sonhos que
tiveram com determinados parentes mortos e estes sonhos trazem muitas
vezes alivio ao luto delas, ou doutros parentes do morto a quem contam, pois
é frequente nesses sonhos o falecido pedir para que parem de chorar por ele.

No terreno observei como unanimemente respeitam o luto dos


indivíduos ou famílias, abstendo-se de celebrações ou de ouvir música.
Quando se fez luto pelo Aguelito, ninguém festejou o natal. Num outro Natal
foi a família que estava de luto que saiu do acampamento para que os outros
celebrassem. A morte, a sua legitimação e celebração social, nomeadamente
através do luto, são um dos elementos fundamentais e estruturantes da vida e
identidade socioculturais do grupo.

Pela importância simbólica que carrega, a viuvez tem um


enquadramento definido e importante na dinâmica social. Existe apenas uma
pessoa viúva no acampamento mas, na família mais alargada, existem
inúmeros casos pelo que o aqui se regista foi o que me foi contado por várias
pessoas. Os viúvos devem “levar o luto” até ao fim da vida e portanto vestir
para sempre o preto, abster-se de se lavar e de participar na vida social. As
mulheres cortam o cabelo e tapam a cabeça com um lenço. Isto não é uma
regra absoluta e incontornável mas antes algo que pode ser gerido com
alguma flexibilidade, não sendo possível evitar por vezes implicações sociais
mais gravosas. São muitas as histórias de viúvos que voltaram a casar e com
quem as famílias cortaram relações, ou o grupo ostracizou. A tolerância ao fim
do luto por viuvez depende, claro, da idade dos viúvos e sobretudo das
características pessoais dos indivíduos directamente envolvidos. Por exemplo,
no caso de dois adultos, mais velhos, viúvos há muito tempo, com os filhos
todos casados, que decidem viver juntos, haverá com certeza uma tolerância
colectiva embora a critica social possa existir sub-repticiamente.

Mais uma vez é a mulher, a viúva, que encontra mais dificuldades no


que diz respeito a deixar o luto e voltar a casar (entenda-se viver junto, pois
nestes casos não são celebrados casamentos, creio que cada individuo só pode
celebrar o seu casamento uma vez). Se é jovem, os seus sogros quererão que
se mantenha com eles e que guarde o luto pelo seu filho. Se tiver filhos a
situação poderá complicar-se pois os seus sogros poderão querer cuidar deles.
No caso de voltar a casar muitas vezes o novo marido também não quer ficar
com os filhos do anterior casamento. Se for mais velha, poderá encontrar
resistência por parte dos seus filhos adultos ou mesmo dos filhos do seu novo
cônjuge. Muitas situações de conflito que me foram contadas e das quais
conheci alguns dos intervenientes, acabaram por resolver-se com o tempo,
trazendo esta a gradual aceitação pelos elementos da família e do grupo.

Hoje em dia existem muitas raparigas muito jovens e já viúvas


(acidentes, droga, etc.). Nestes casos a Lei Cigana encontra-se em confronto
directo com a modernidade pois este é um cenário frequente que causa
fracturas sociais. Se antigamente seriam menos as viúvas de 16 anos, hoje
isto acontece com alguma frequência e, de certa forma, ninguém espera que
uma jovem desta idade mantenha o luto por toda a vida. No entanto, é
sempre apreciada e louvada uma viúva jovem que continue a “portar-se bem”.
Entende-se que algumas tirem o luto e fujam para casa das mães mas isto é
contado em tom de critica. Será porventura menos respeitada. Mas se é
novinha “já se sabe que não vão levar luto a vida toda”. A forma como será
tratada dependerá do grau de tolerância das pessoas em causa,
nomeadamente da família a que pertencem. A família do falecido marido
poderá rejeitá-la e expulsá-la e os sogros poderão ficar com os seus filhos, se
os houver. A sua própria família poderá não a aceitar de volta.
Uma investigação necessariamente mais longa, alargada e aprofundada,
sobre a experiencia sociocultural da morte neste grupo étnico específico,
resultaria certamente em informação riquíssima sobre a estrutura mais
alargada dos grupos familiares gitanos. Uma investigação que procurasse
documentar quem vai a que funerais e porquê, quem leva o luto e porquê,
quem controla esse luto e porque, seria fundamental para entender as
dinâmicas do parentesco tal como este se traduz na organização social do
grupo étnico. Isto porque os mortos que se choram são aqueles a quem se
pertence. Talvez mais do que no nascimento ou no casamento, a morte de um
elemento do grupo traz à superfície uma forte teia social – dispersa,
interrompida e recontinuada – que um grande número de indivíduos tece em
conjunto.

III EDUCAÇÃO E ESCOLARIZAÇÃO


A educação na Baralha

O tema da educação na cultura cigana tem felizmente despertado muito


interesse e empenho por parte dos investigadores portugueses e existem
trabalhos importantes e muito ricos sobre esta temática.24 A questão da
escolarização das crianças ciganas é um problema social para o qual se tem
buscado respostas na natureza sociocultural da educação tal como ela se
processa nos grupos de etnia cigana. Paralelamente tem-se questionado as
práticas sociais e educativas da própria escola.

Quando pergunto a um pai ou uma mãe, na Baralha, como é que educa


os seus filhos, como é que os ensina, comummente a resposta surge em
forma de um silêncio interrogativo. Os processos e práticas educativos não são
entendidos isoladamente mas antes integrados nas dinâmicas socioculturais. A
educação desenrola-se nas práticas quotidianas e a criança aprende com a sua
própria experiencia do universo social. Experiencia esta que é muito completa
pois a criança vive em contacto intenso e contínuo com os adultos. Neste
grupo, como noutros grupos ciganos, a criança participa em todos os
acontecimentos da vida social e não é, de uma forma geral, privada das
conversas entre os adultos. As crianças estão, desde muito cedo, envolvidas
mais ou menos participativamente – dependendo da sua idade e género - nas
actividades diárias. Esta participação é intensa e pedagogicamente
estimulante.

A aprendizagem destas crianças daquilo que são os conhecimentos,


valores e regras do grupo, processa-se então de uma forma contínua e
ininterrupta. Esta aprendizagem, não apenas da tradição e comportamentos
sociais, mas também das actividades domésticas e económicas, processa-se
essencialmente a um nível não oral. Aprende-se vendo, ouvindo,
experimentando, fazendo. Os mais velhos ensinam encorajando e reprovando,

24
Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Carlos Cardoso, Mariano Fernando Enguita, Luíza
Cortesão, Jean-Pierre Liégeois, Mirna Montenegro e Carlos Jorge Sousa, entre outros (ver
bibliografia).
mas sobretudo vivendo a vida próxima dos mais novos, à sua vista, mantendo
toda a informação ao seu alcance. As crianças não fazem perguntas com
frequência e normalmente, mantêm-se caladas quando os adultos conversam.
A criança na Baralha vive entre várias gerações que se entrecruzam
constantemente em laços de parentesco peculiares, numa rede intensa de
relações sociais e emocionais de que a criança é parte integrante e central.

Nunca lhes é pedida a opinião, mas não lhes é vedado o acesso aos
assuntos da família ou do grupo. São os “mais velhos” que opinam e decidem
mas crianças não são excluídas de nenhum assunto, de nenhuma área de
conhecimento doméstico, económico, social ou cultural, não são apartadas
nem espacialmente pois não existe um espaço que seja apenas delas. Não
obstante, como veremos adiante, a sua autonomia é valorizada, assim como a
sua capacidade de aprendizagem e maturidade.

Esta proximidade com todos os assuntos familiares e sociais confere às


crianças deste grupo, desde muito cedo, um entendimento das regras e dos
aspectos culturais que distinguem o grupo a que pertencem. A identidade
étnica é assumida precocemente dada a precoce interiorização das
características distintivas do grupo. Esta interiorização deve-se
nomeadamente à participação das crianças numa realidade social que é
comum ao grupo e não estratificada: não existe um espaço para as crianças,
um tempo que lhes seja dedicado só a elas. As crianças acompanham os
adultos em todas as vivências: na vida doméstica, nos negócios, nos
compromissos familiares, nas celebrações e, obviamente, no contacto com o
outro sejam eles os pajos ou outros ciganos.

Em todo o tempo que passei no acampamento nunca ouvi uma das


crianças fazer perguntas relativas a comportamentos, costumes ou regras.
Acima de tudo a criança participa, observa e ouve, interiorizando e
reproduzindo. De certa forma, neste grupo parece prevalecer o que num
contexto pedagógico se chama escuta activa. Ainda que possa haver temas
que os adultos prefiram não falar na frente das crianças – coisas sobre as
quais podem falar utilizando palavras que os mais novos não sabem e que são
também importantes precisamente para marcar uma fronteira entre o que
devem e não devem saber (ou pelo menos falar sobre) - estas crianças têm
acesso, desde sempre, ao mundo dos adultos o que, traduzindo na linguagem
local, significa o mundo dos casados ou dos mais velhos. Este acesso não é
contudo ilimitado porque existem restrições implícitas – tabus –
nomeadamente ligados a questões de género. Há assuntos sobre os quais não
se fala na frente de elementos do sexo masculino e isto pode implicar os
rapazes mais novos, dependendo da sua maturidade e discernimento.

Quando um rapaz incomoda uma conversa entre mulheres com barulho


ou brincadeiras, bastará mandá-lo embora dizendo que é assunto de mulheres
para que este desapareça por livre vontade. Ainda que não seja verdade, esta
é uma estratégia usada para ter um pouco de sossego. As meninas não são
privadas destas conversas entre adultas ainda que esta possa ser dissimulada.
Já vimos como a linguagem é adaptada ao contexto e esta interacção entre
crianças e adultos está directamente relacionada com isso. Sempre que
demonstro preocupação por, por exemplo, falar de assuntos femininos, com
crianças por perto, dizem-me que elas não entendem”. Estas conversas cheias
de omissões ou duplos sentidos, de certa forma codificadas entre os adultos
funcionam, parece-me como um elemento estimulador à curiosidade das
crianças incentivando-as a saber mais e a desenvolver estratégias para se
acercarem do conhecimento que os adultos têm. Saber mais vai depender da
sua própria vontade e perspicácia.

A participação na vida de todo o grupo, em interacção constante com


todas as gerações, coloca a criança num local de aprendizagem privilegiado e
estimulante. No dia-a-dia ouve-se frequentemente: “Quem educa são os pais”
– esta afirmação muitas vezes feita como crítica a determinado elemento pelo
seu papel como educador. Mas o que se observa é que a educação destas
crianças é feita colectivamente. Claro que é com os pais e dentro da sua casa
que a criança aprende, mas é também no grupo e com o grupo – que não se
abstém de comentar, incentivar, criticar ou castigar – que a criança aprende o
que fazer e como portar-se. O papel dos avós por exemplo é importantíssimo
na medida em que estes exercem autoridade sobre as crianças, aliás sobre o
grupo em geral. Os irmãos mais velhos – responsáveis por tomar conta dos
mais novos – são igualmente peças fundamentais na educação porque é
nestes que os pais relegam autoridade e responsabilidade de educar (na
linguagem local leia-se “tomar conta”) as crianças pequenas. Estes aprendem
e ensinam.

É sobre as mulheres que recai a função de tomar conta de uma forma


geral, ou seja, alimentar, vestir, ensinar e vigiar. Assim, todas as mulheres da
família, as irmãs mais velhas, as tias (que não raras vezes são da mesma
idade), as primas e as cunhadas, participam na educação das crianças pois
também elas tomam conta dos mais pequenos. São elas – especialmente a
mãe - quem normalmente repreende ou ralha quando necessário embora esta
atitude seja mais frequente com os meninos “mais desinquietos”. Em geral as
crianças pequenas são muito acarinhadas por todo o grupo. O pai ou os
irmãos podem ser chamados a intervir quando por exemplo se trata do mau
comportamento de um menino, que tendem a ser mais rebeldes do que as
meninas. De uma forma geral os pais são permissivos e não gostam de bater
nas crianças embora a sua autoridade seja respeitada pelas crianças. Os
meninos, à medida que crescem, tendem a respeitar e obedecer mais
facilmente às figuras masculinas. Os mais conflituosos são mais repreendidos
pelas mulheres e homens da família e, quando incomodam outros adultos, são
repreendidos por estes também. Por vezes, as mulheres apelam a um rapaz
mais velho ou a um homem para que venha aplicar uma bofetada que, na
maioria dos casos, não passa de uma ameaça. Bater nas crianças para
castigar o mau comportamento é normalmente relegado para as mulheres
embora não seja algo a evitar-se. Ouvi algumas vezes mulheres criticar outras
dizendo que “ bate nos filhos como uma paja” ou “não bate como mãe/pai”.

Os homens, se necessário, também se ocupam das crianças e na


maioria dos casos demonstram prazer em fazê-lo. Ora se o pai por exemplo
não está presente, um irmão destes, por exemplo, ainda que possa ser pouco
mais velho do que a criança, poderá ficar encarregado de tomar conta dele.
Estas tarefas são assumidas, por estes elementos mais novos – sejam eles
rapazes ou raparigas –, espontaneamente. A tarefa de cuidar e de educar os
mais novos é algo que cabe a toda a família e que todos têm prazer em
assumir. Ora estes elementos mais jovens representam um papel importante
neste processo de transmissão de conhecimentos pois também eles ainda são
crianças aos olhos dos grupos mas já são responsabilizados e olhados como
responsáveis quer pelos mais velhos, quer pelos mais novos de quem cuidam.
Eles ainda estão a aprender mas já ensinam. Todos os membros da família
estão inseridos num processo de transmissão de conhecimentos que é
contínuo e intergeracional. A participação neste processo enquanto “educador”
para além de “educando” depende, acima de tudo, da vontade da criança em
“fazer-se” mais responsável e participativo e é valorizada pelos adultos.
“Fazer-se mais mulher” ou “mais homem” é um conceito local de extrema
importância.

A participação das crianças nas actividades do grupo é cada vez mais


efectiva à medida que a criança vai crescendo e depende do seu género e da
sua maturidade. As meninas que acompanham a mãe e as outras mulheres da
família nas actividades domésticas vão-se envolvendo cada vez mais nestas e
passam de brincar a para fazer ou ajudar a fazer, inclusive tomar conta dos
irmãos mais novos. Se uma menina de 9 ou 10 anos demonstra especial
cuidado em aprender a “fazer as coisas”, se é reservada e obediente, se é
prestativa e solícita, estas qualidades vão merecer-lhe o elogio das outras
mulheres e do grupo em geral. Esta admiração não será demonstrada
verbalmente na sua frente mas será provavelmente apercebida por ela pela
forma como os adultos a tratam. Esta criança perceberá que ao “fazer-se mais
mulher” terá a admiração e o respeito dos “mais velhos”. Da mesma forma,
uma menina da mesma idade que não ajude a mãe sem ser obrigada, que não
dê atenção aos irmãos mais novos e que refile com os mais velhos, não será
poupada de criticas (verbalizadas) e de um comportamento diferencial. Os
rapazes – em geral mais barulhentos, rebeldes e desobedientes – podem,
ainda assim, demonstrar especial interesse em acompanhar o pai ou os tios a
apanhar sucata ou noutras actividades. Ainda que socialmente sejam menos
participativos, porque passam mais tempo entre si na brincadeira, sem
adultos, podem igualmente “fazer-se” mais crescidos pelo interesse e
participação na vida dos homens. Também o seu comportamento com as
crianças mais novas – irmãos ou sobrinhos – pode demonstrar a sua vontade
de ter mais maturidade. Um menino especialmente indisciplinado, mesmo com
os pais, pode demonstrar grande responsabilidade ao cuidar do irmão mais
novo.
Os bebés são o centro da atenção e a alegria de todos na família e do
grupo em geral. São muito acarinhados por todos, passam o dia de colo em
colo e tudo se faz para que não chorem. Todas as crianças disputam a atenção
dos bebés. Assim que começam a andar e a falar vão gradualmente adquirindo
mais autonomia e em geral encontram os seus desejos satisfeitos. Passam a
maior parte do tempo junta das mães e vão, gradualmente, largando as suas
sais. Se recusam um alimento25, ou o banho, ou uma peça de roupa, em geral
são atendidos. Brincam livremente com tudo o que seja inofensivo. A
linguagem é estimulada pois todos os elementos falam com as crianças a
encorajam as suas tentativas. A dança também é incentivada. A sua
determinação é admirada desde cedo. E a sua personalidade tende a ser
respeitada e posta à prova, isto é, são provocados com brincadeiras. Mesmo
com os bebés é costume importuná-los com caretas, puxando-lhe os pés ou o
nariz e mesmo provoca-los com ciúmes. “Para ficarem rijos”, dizem-me a rir.
As mães tendem a proteger os filhos destas brincadeiras. Atitudes de
irreverência tendem a ser motivo de orgulho pelos mais velhos, mesmo que
possam ser repreendidas na frente das crianças. Proezas arriscadas como
subir muros são vigiadas mas não desencorajadas. Os acidentes que resultam
em choro são menosprezados embora a criança seja confortada. Episódios de
birras e exigências são contados entre adultos entre risos e encarados com
naturalidade.

Até aos 7/8 anos as crianças crescem com grande liberdade e circulam
por todo o acampamento, entrando em qualquer casa, sob a vigilância de todo
o grupo. As meninas tendem a passar mais tempo dentro de casa com as
mães. A ocupar-se com brincadeiras que envolvam as actividades domésticas.
Os meninos, por sua vez, circulam mais pelo acampamento e aventuram-se
mais longe das mães acompanhados pelos outros. Falam frequentemente em
negócios nas suas brincadeiras, desde sucata a cavalos, o que demonstra que
estão atentes ao universo masculino. Correm e brincam em pequenos grupos
que muitas vezes vão incomodando os adultos de casa em casa, com barulho

25
Existe, como entre os não ciganos, o receio de que a criança ‘ougue’ os alimentos. Quando sai
para passear com umas miúdas, a mais nova do grupo, de 4 anos, foi a única a que os país
deram dinheiro para que comprasse o que quisesse.
e confusão, e vão sendo expulsos sob ameaças de vassouradas. Por vezes
acontecem desentendimentos entre os adultos – em regra as mulheres por
causa do comportamento das crianças. Se uma mulher bate ou repreende um
miúdo porque a insultou ou atirou pedras, a mãe destes pode ficar zangada e
por vezes gera-se uma discussão que acaba por envolver muita gente. Não
raras vezes, a ofendida chama a mãe do menino em causa para avisá-la que
vai bater-lhe (o que normalmente fica como ameaça) e porquê. No caso dos
meninos mais travessos as mães normalmente verbalizam impotência para os
controlar.

As crianças pequenas brincam entre si e mesmo quando se zangam ou


batem uns nos outros, os adultos só interferem se a situação se agravar. São
vigiadas e repreendidas mas em geral os elementos do grupo são muito
tolerantes com as crianças e o rebuliço que normalmente se instala à sua
volta. Até aos 7/8 anos, de facto, não se observam diferenças muito grandes
no tratamento entre meninas e meninos, embora alguns aspectos possam ser
considerados fundamentais. Noto, por exemplo, que há uma tendência das
mulheres para mandar fazer coisas às meninas, como ir buscar algo ou dar um
recado, enquanto que aos meninos nada é requisitado. Meninas e meninos
crescem e brincam com grande liberdade. Não têm responsabilidades nem
obrigações embora gostem de acompanhar os adultos do seu sexo assim como
partilhar as suas tarefas. Os adultos demonstram grande tolerância pelos seus
desejos e caprichos. Contudo, as crianças melhor comportadas e mais bem
cuidadas pelos pais são mais acarinhadas pelo grupo o que implica que desde
cedo se exercem sobre os indivíduos mecanismos socioculturais de aprovação
e reprovação em resposta à sua autonomia e liberdade de escolha.

À medida que se vão aproximando dos 9/10 anos, o grau de mimo e


atenção que recebem vai diminuindo e proporcionalmente vai aumentando o
grau de exigências. Por volta dos 10 anos as diferenças entre géneros são
muito demarcadas e visíveis. As raparigas devem ajudar em casa com as
tarefas e as crianças pequenas e já não brincam com os rapazes. Tem a
obrigação de ajudar a mãe a lavar a roupa, fazer a comida, ir buscar água,
etc. as meninas que vão fazendo tudo isto por sua iniciativa são valorizadas
pelo grupo, como já mencionei. Também se espera que tenha um
comportamento adequado ao seu género o que implica, por exemplo, decoro
no relacionamento com o sexo oposto. Uma menina desta idade já não se
relaciona com os rapazes, excepto os irmãos e tios. Uma vez que os
casamentos tendem a ser precoces, na sua maioria quando as meninas têm
entre 13 e 15 anos, por volta dos dez anos uma rapariga já é vista como uma
solteirinha, isto é, uma mulher que se aproxima da idade casadoira.

Dentro do grupo o seu papel e tarefas estão bem definidos. São


solicitadas por todos – especialmente pelas mulheres – para ajudar em
tarefas, dar recados, olhar pelas crianças. Também se interessam pelo que se
passa entre os adultos, dependendo do grau de maturidade, as meninas desta
idade já percebem as dinâmicas sociais do grupo, quem se dá com quem,
quem está zangado, quem está onde. Porque passam muito tempo entre
mulheres, estão familiarizadas com todos os assuntos de que estas se
ocupam, nomeadamente estas questões sociais. Contudo, é-lhes apreciado o
recato e a obediência pelo que não devem interferir nos assuntos dos mais
velhos. São criticadas as meninas que “respondem às casadas”. Este é um
traço de temperamento que não é apreciado pois uma solteirinha não deve
responder à provocação ou ser mal-educada com uma casada. Como
mencionei, o casamento traça a fronteira – mais ou menos permeável – entre
a infância e a maioridade. Uma mulher contava-me que ensinou à filha a quem
devia ou não responder quando, e se, a insultassem.

O comportamento das meninas nesta altura é vigiado e criticado por


todos. A limpeza, o cuidado com os irmãos e a casa, o respeito pelos pais e
pelos mais velhos, a sociabilidade, são aspectos que o grupo valoriza e que
não deixam de ser verbalizados pelas mulheres – especialmente se foram
negativos. As outras mulheres com quem convivem diariamente, como as tias,
vão comentando o seu comportamento assim como dando ordens e
instruções. Na casa da Tia C. por exemplo, avó das meninas, é comum ouvi-la
mandar uma das meninas ir ajudar a mãe ou tratar dos irmãos, se estiver a
incomodar ou se desobedecer à mãe. O grau de obediência, mesmo para as
meninas mais rebeldes, depende da posição hierárquica da mulher que dá a
ordem. Poderá obedecer à avó mas dizer que não a uma irmã mais velha.
Ainda que se espere que exerça determinado papel na ordem doméstica, não
lhes é impedido que brinquem até que deixem de querer faze-lo.

À medida que se vão “fazendo mais mulheres”, as meninas tendem a


participar mais activa e espontaneamente na vida doméstica da família e o seu
comportamento no grupo tende a ser mais silencioso. Poderá até participar
nas conversas e brincadeiras das mais velhas, se tiver discernimento para tal
e provavelmente passará a acatar as ordens das mais velhas sem resistência.
Uma vez que deixa de brincar e de se comportar como uma criança, vai
adquirindo o seu espaço entre os adultos a quem deve respeito e obediência.
Deixará por exemplo, à medida que se vai inteirado da complexidade das
relações sociais, de entrar em qualquer barraca. Poderá evitar a companhia
dos elementos do grupo com quem por exemplo a mãe se dá menos, ou, se a
sua família for do culto, evitar estar com elementos do grupo que não
frequentem a igreja. Deixará de andar com as mais novas a passear
livremente pelo acampamento e passará mais tempo em casa, junto da mãe,
ou a tomar conta dos irmãos sobre quem tem alguma autoridade.

A liberdade concedida pela infância dá lugar uma condição sujeita a um


controlo social apertado e desprovida de autoridade, autoridade esta que
apenas poderá ganhar com a idade. Com o casamento e com o nascimento do
primeiro filho o seu estatuto mudará pois aos olhos do grupo será vista como
as outras mulheres casadas de quem, independentemente da idade, se espera
que trate convenientemente do marido e dos filhos e se comporte
honradamente.

A liberdade que é dada aos meninos pequenos aumenta à medida que


crescem. Tal como as meninas vão-se gradualmente interessando mais pelos
assuntos que dizem respeito ao seu género e vão-se gradualmente integrando
nestas actividades com os seus pais, irmãos e tios. Naturalmente mais
desafiadores e desobedientes, os rapazes vão, mais lentamente do que as
meninas, adquirindo o comportamento dos homens adultos e envolvendo-se
nas suas actividades. Enquanto que um rapaz de 13 anos pode ainda passar o
dia a brincar com os outros, a passear livremente sem ter de dar justificações,
este comportamento já não se adequa, como vimos a uma menina da mesma
idade.

Ao contrário das meninas também, os rapazes interferem nas conversas


dos mais velhos, as vezes apenas para brincar e desestabilizar e podem ser
muito provocadores. Embora socialmente possam comportar-se de forma
muito infantil, os rapazes começam a ter vontade de acompanhar os pais nas
suas actividades. È frequente ajudarem os pais a tratar dos cavalos, se os
tiverem, ou a ir apanhar sucata. È frequente inclusive, durante viagens de
carro comigo, por exemplo, estarem todo o caminho com atenção as bermas
da estrada na esperança de avistar algo que possa ser utilizado. Falam
constantemente de negócios e de fazer dinheiro. À medida que vão
amadurecendo vão aprendendo a comportarem-se mais tranquilamente em
grupo, ouvindo primeiro os mais velhos mas não deixando de dar a sua
opinião. São frequentemente chamados para ajudar a controlar os meninos
pequenos nas suas travessuras. Em geral, como veremos adiante, não querem
frequentar a escola e os pais não podem fazer muito acerca disso pois são
muito independentes desde cedo uma vez que não existe muito controlo sobre
o seu comportamento. A liberdade de movimentos que têm na infância
prolonga-se pela vida. Apesar de estarem, tal como as raparigas, sujeitos ao
controlo do grupo que valoriza ou descrimina os seus comportamentos, este
controlo é muito mais condescendente pois a liberdade do sexo masculino é
valorizada. Por isso, os jovens passam muito tempo com os outros da mesma
idade, fora do acampamento. Não são particularmente obedientes mas na
realidade não é costume receberem ordens. Costumam casar entre os 16 e os
18 anos.

Também para eles o casamento é um marco, uma fronteira que separa


as crianças dos adultos, dos casados. Não obstante, quando se casam dois
jovens é costume ouvir sublinhar a sua tenra idade. “São crianças” – ouço
sempre. E muitas vezes como justificação para o casamento em si. Como na
grande maioria dos casos os casamentos ocorrem porque os jovens decidem
fugir juntos, as mulheres afirmam que eles casam porque querem, porque
“são crianças”. A imaturidade do comportamento leva-os, no entanto, a um
compromisso muito sério que o grupo assume que eles vão respeitar. É uma
escolha que fazem, tão cedo quão precoce for a sua vontade de iniciar a sua
vida adulta. Normalmente o casal jovem fica a viver sob a autoridade dos pais
do jovem, muitas vezes na sua casa, e assim continuam a ser acompanhados
e a aprender. As suas responsabilidades e as expectativas do grupo aumentam
mas a mudança de estatuto é integrada na dinâmica familiar e, embora
casados, os jovens continuam a aprender com os mais velhos.

“As crianças são criadas a brincar” – dizia muitas vezes o Aguelito. Na


verdade é assim que são educadas: participam a brincar num processo de
socialização intenso e estimulante, continuo e intergeracional, onde vão
aprendendo qual o seu papel no grupo e como podem obter o respeito deste.
Aparentemente sem regras, estas crianças aprendem muito rapidamente
aquilo que é fundamental para o grupo: o respeito pelos mais velhos e pela Lei
Cigana, a manutenção e defesa da identidade étnica do grupo e a manutenção
das relações sociais e hierárquicas. Das crianças espera-se e elogia-se a
esperteza, o desenrasque, a autonomia e a iniciativa. Leia-se, a este respeito,
Jean-Pierre Liégois: “trata-se de uma educação para a independência e não
um “deixar andar”, no interior de uma comunidade educativa que canaliza os
comportamentos com vista à aquisição de autonomia, dentro do respeito pelo
grupo e pelos seus valores”(2001:69).
A escolarização

Se a criança na Baralha cresce num ambiente de muita liberdade e


autonomia em que os seus desejos são respeitados, na escola, por sua vez, as
regras são diferentes. Idealmente a escola representaria o local onde crianças
de diferentes culturas aprendem a conhecer-se e a respeitar-se, aprendendo
também uma linguagem e um conhecimento comuns que as equipasse a lidar
com a sociedade. Esta não é a realidade para a maioria das crianças. Para as
crianças da Baralha são muitas as dificuldades: a hierarquia (de género e de
idade) que conhecem não o se coaduna com as regras da instituição escolar, e
o simples facto de estar fechado numa sala, sentado, durante muito tempo é
algo a que as crianças da Baralha tem dificuldade em adaptar-se. Ao
confrontar o sistema educativo em vigor na escola e no grupo étnico a que
estas crianças pertencem, deparamo-nos com dois sistemas distintos cuja
coexistência pode tornar-se conflituosa. Durante o projecto estive também em
contacto com as escolas básica e secundária que as crianças da Baralha
frequentam e conheci os seus professores (principalmente os escola primária),
o que me permitiu observar de perto a realidade destas crianças em contexto
escolar. De uma forma geral as crianças são desinteressadas, indisciplinadas e
conflituosas quando estão em grupo, e tímidas e envergonhadas quando
estão, por exemplo, a sós com os professores.

A escolarização das crianças da Baralha, talvez das crianças ciganas em


geral, pelo menos daquelas cujo grupo a que pertencem ainda se mantém
resistente (ou desconfiado) quanto à sua escolarização, é um problema cuja
resolução implica olhar para a própria instituição escolar e questionar os
alicerces em que esta assenta. A postura da escola perante crianças que
pertencem a minorias étnicas tem de continuar a ser analisada e trabalhada
porque a escola é um espaço de contacto privilegiado e portanto o espaço
escolar deve ser um espaço de possibilidades: possibilidades de encontro de
culturas, de aprendizagem mútua e de criação de uma plataforma de partilha
cultural. Para os ciganos da Baralha, a escola é essencialmente território do
outro, do não cigano. Idealmente, a escola seria terra de ninguém.
Este não é o espaço para me alongar sobre a problemática da escola.
Aqui interessa-me particularmente demonstrar como a escola é encarada na
Baralha, por adultos e crianças. Interessa-me reproduzir as práticas
discursivas sobre a escola, descrever a forma como a rotina diária das famílias
se adapta as rotinas escolares e entender qual o significado que a instituição
escolar tem de facto, dentro deste grupo.

Antes de mais é importante notar que o discurso sobre a escola, quando


dirigido aos pajos, independentemente da familiaridade que este possa ter, é
geralmente um discurso estratégico no sentido em que tende a reproduzir o
discurso oficial sobre as vantagens e a importância da escola, menorizando os
baixos níveis de frequência. Devo ainda acrescentar que, estando a
escolarização – nomeadamente a obrigatoriedade de frequência relacionada
com a atribuição do rendimento social de inserção, este é um assunto
encarado defensivamente. O valor atribuído a escola na sociedade não cigana
está implícito e por isso também, noto um esforço por não menosprezar ou
desvalorizar a instituição escolar quando o assunto é a escola. Não obstante, o
discurso que predomina é um discurso estrategicamente defensivo e
adaptativo que deve ser enquadrado e legitimado dentro de um contexto
histórico social mais alargado.

Isto não significa que a escola e a escolarização não sejam entendidas


como coisas boas para as crianças da Baralha, ou não sejam desejadas pelos
pais, mas antes que os moldes em que a instituição escolar funciona estão
muitas vezes desenquadrados das vivencias quotidianas, das rotinas e mesmo
dos costumes deste grupo social. Embora o conceito insucesso escolar não
possua na Baralha a carga pejorativa que o discurso oficial transporta, as
vantagens da escolarização não são questionadas pelos pais. È antes a
inflexibilidade e o rigidez do sistema escolar que são constantemente postos
em causa.

Assim o discurso que predomina é que aprender é importante e ir à


escola é bom. Os pais dizem – na sua maioria – que os filhos deviam ir
sempre, aliás, vão quase sempre, afirmam. As faltas são encaradas como
coisas pontuais, sempre justificadas e sempre legítimas. Na verdade as faltas
podem acontecer por falta de roupa, por falta de lanche, por falta de vontade,
por falta de boleia, por doença, porque chove, porque têm de tomar conta dos
irmãos ou ajudar as mães (as meninas). As crianças querem faltar muitas
vezes porque “são canalha”. E, segundo os próprios, porque não querem ir
sozinhos (quando outros faltam ou quando, por exemplo, são os únicas
crianças ciganas na sala de aula).

Os adultos verbalizam que a escola é importante, que gostariam que os


seus filhos tivessem estudos embora achem que as meninas devam fazer
apenas até à quarta classe, ou antes, até aos 12, 13 anos – idade com que em
muitos casos acabam precisamente a quarta classe. Porque depois “há muita
maldade” – o que demonstra a preocupação em proteger as meninas que se
aproximam da idade de casar do contacto com elementos do sexo masculino,
nomeadamente não ciganos. Também ouço muitas vezes, principalmente os
homens, dizer que “os ciganos vão até à quarta classe porque depois aprende-
se demais”. Estes dois argumentos mostram, por um lado, a preocupação em
proteger os elementos do sexo feminino, de que, em grande medida depende
a honra da família, e também de reproduzir e manter um discurso legitimado
sobre a própria etnia definindo à partida a quantidade de saber que os ciganos
têm para que fique estabelecido um grau de igualdade entre os ciganos que ao
mesmo tempo funcione como elemento diferenciador dos pajos.

São os motivos que justificam a ausência da sala de aulas – ou as


muitas ausências, em muitos casos - que nos deixam ver o que a escola
significa e como são vivenciadas as experiencias de escolarização neste grupo.
Ora não querer ir ou estar sozinho na escola é algo que crianças e adultos
verbalizam e que é culturalmente legítimo num grupo étnico onde grande
parte das tarefas quotidianas, assim como as deslocações para fora do
acampamento, são feitas em grupo. As mulheres nunca andam sozinhas e
mesmo os homens costumam andar com a família ou com outros homens. O
facto das crianças terem de deslocar-se e permanecer sozinhas num ambiente
que não é o seu, constitui uma ruptura agressiva com regras e
comportamentos culturais específicos. Para estas crianças e para os seus pais,
o tempo que estão sozinhos na escola representa, muitas vezes, motivo de
ansiedade. No recreio da escola primária as crianças que estão separadas
durante as aulas tendem a agrupar-se por género e mantêm-se na
generalidade separadas das outras crianças. Existem, entre os rapazes e as
raparigas, muitos conflitos com as crianças não ciganas. As crianças ciganas
mais velhas preocupam-se sempre em proteger os irmãos ou sobrinhos mais
novos.

Quando se trata das meninas o assunto agrava-se pois as questões de


género são da maior importância. O prolongamento da escolarização para
além do 12, 13 anos, e a saída da escola primaria para a escola secundária
que implica convivência com jovens mais velhos, levanta problemas para as
famílias que embora não estejam dispostos a discutir com os pajos, causam
muita ansiedade às famílias.26 O facto de uma menina de 12 anos poder ter de
estar e deslocar-se sozinha, é realmente problemático. Uma solteira tem um
papel social específico com que a escola interfere, nomeadamente na
aprendizagem e participação nas rotinas domésticas. Por outro lado, as mães
muitas vezes precisam da ajuda das meninas mais velhas para lavar a roupa
de toda a família, tomar conta dos irmãos ou ir as compras. Quando uma mãe
tem de se deslocar para fora do acampamento, se não tiver outra pessoa para
a acompanhar, o que acontece na maior parte dos casos é que a filha falta à
escola para acompanhar a mãe. Estas são prioridade que se impõem à escola.

Por outro lado, as questões de género também estão envolvidas com


questões de autoridade no ambiente escolar. Para estas crianças a autoridade
das professoras (na sua maioria mulheres e em alguns casos muito jovens)
pode ser difícil de entender e aceitar pois estes não são elementos com poder
social e autoridade no seu grupo familiar. Também para os adultos,
nomeadamente homens, pode ser uma questão difícil aceitar a autoridade dos
professores, representantes da instituição escolar.

Embora a atitude das famílias da Baralha perante a escola não seja


uniforme pois há quem valorize a escola e quem a desvalorize por completo,
nota-se de facto uma resistência na aceitação dos professores enquanto

26
No âmbito do projecto tentou-se prolongar a permanência das meninas na escola para além
da quarta classe através da criação de turmas em que estas estivessem juntas entre si e com
os primos. Esta medida teve um excelente acolhimento por parte da população e reduziu
drasticamente o absentismo escolar.
educadores. Não apenas por questões de género mas também por questões
étnicas. O confronto com o outro não cigano, no espaço escolar, assenta na
autoridade e na validade das regras desse outro e implica, inevitavelmente,
uma submissão. Não respeitar no absoluto as regras da instituição escolar e a
autoridade dos professores faz parte do processo de renegociação constante
desse contacto. Implicitamente a resistência sublinha a identidade étnica dos
indivíduos pois sublinha diferença.

As regras escolares são então renegociadas conforme a necessidade. De


certa forma, a perspectiva que as famílias têm da escola é uma perspectiva
utilitária e paradigmática pois esta serve os seus propósitos (escolarização/
RSI/ ocupação das crianças) e é passível de negociação. Isto é, na prática, no
dia-a-dia, as regras são contornáveis. Distintas e potencialmente em confronto
com as suas rotinas quotidianas, as regras escolares vão sendo adaptadas às
necessidades e circunstâncias do momento.

Os horários escolares, por exemplo, não são, regra geral, respeitados


na totalidade mas antes adaptados ao dia-a-dia da família. São frequentes as
queixas dos professores por causa dos atrasos. O mesmo se passa com a
assiduidade. Como já vimos, muitas causas podem justificar a falta às aulas.
Se, por exemplo, os pais passam o dia fora ou tem de se ausentar por algum
tempo, as crianças acompanharão os pais ou saíram mais cedo da escola. A
frequência da escola dependente de muitos factores e não é algo
inquestionável. As crianças vão quando podem ir. Na Baralha não se faz as
mesmas coisas todos os dias às mesmas horas, existe uma rotina flexível e,
portanto, a escola é encaixada nesta construção diária de actividades.

O caso do material escolar, por exemplo, é paradigmático do


relacionamento escola-acampamento. Os professores insistem na necessidade
de ter o material escolar, de o manter conservado e de o trazer para a sala de
aulas. Ora isto é um desafio para muitas das crianças pois, para além de não
terem um espaço seu para guardar as coisas, ou mesmo um espaço destinado
ao estudo, os irmãos mais novos e outras crianças pequenas estragam ou
perdem frequentemente o seu material escolar. Muitas crianças não tem
simplesmente o hábito de possuir coisas suas, mantê-las e guardá-las. O
pouco valor dado aos objectos, em geral, é bem visível na forma como as
crianças tratam os brinquedos ou o material escolar. Quando se discute a
necessidade de comprar livros escolares, muitas mães questionam essa
necessidade, dizendo que isso não vale a pena porque eles rasgam ou perdem
os livros e que “eles aprendem na mesma” sem eles.

O facto de os próprios pais terem um nível muito baixo de


escolarização, a maioria lendo com muita dificuldade, contribui para este
distanciamento das necessidades escolares e resulta num não prolongamento
dessas actividades em casa. Não há no acampamento um tempo ou um
espaço dedicado ao estudo. Quando chegam da escola as crianças regressam
às suas tarefas e rotinas habituais. Ajudam as mães ou os pais, tratam da
casa e dos irmãos, passam o tempo em grupo com os outros adultos e
crianças. Não existe uma continuidade nos processos de escolarização nem se
discute o que aconteceu na escola. A maioria dos pais não acompanha o
progresso escolar dos filhos. Muitos pais, por exemplo, não sabem que ano os
filhos frequentam. Não existe a preocupação pelo que eles vão aprendendo ou
pelo tempo que eles dedicam às matérias escolares. Este alheamento contribui
para que as próprias crianças questionem e resistam às regras escolares e o
processo de escolarização.

É valorizado que as crianças saibam ler e escrever sem que importe


muito o tempo que levam a fazê-lo ou a forma como o fazem. A noção de
insucesso escolar não tem relevância pois o sucesso escolar não é sinónimo de
sucesso económico ou social. As ambições e expectativas económico-sociais
culturalmente especificas que os indivíduos têm não implicam a obtenção de
capital escolar. A escola é um aspecto secundário no processo de educação e
socialização destas crianças. Observa-se uma apropriação estratégica da
instituição escolar que possibilita uma aceitação negociada de regras não
ciganas, possibilita uma aproximação ao outro sem implicar um compromisso
da sua identidade étnica, dos seus hábitos e costumes.

Neste grupo, a criança cresce dentro de um grupo social coeso e


familiar cujos limites estão bem definidos. A sua educação acontece dentro
deste grupo onde os papéis de cada indivíduo estão igualmente definidos.
Ceder algum deste tempo crucial de socialização no grupo não é algo inócuo.
A escola continua a ser um espaço do outro, do não cigano e, portanto, um
ambiente potencialmente hostil. As vantagens da escolarização são
reconhecidas e aceites mas não são absolutas nem se sobrepõem aos valores,
costumes e identidade dos indivíduos enquanto ciganos.

Mas não é só o alheamento do grupo que condiciona a experiencia da


escola por parte das crianças. A escola também está alheada do que é a
realidade destas crianças. A maioria dos professores que conheci desconhece a
cultura destas crianças e desvaloriza os seus conhecimentos. Desconhece
também as questões linguísticas que dificultam a aprendizagem formal do
português (que não é a sua língua materna) e, dessa forma, desvalorizam o
bilinguismo destas crianças. Este encontro escola-crianças ciganas põe em
confronto duas culturas distintas27, ambas resistentes à mudança, mas cria
também um espaço cheio de potencialidades que deve ser aproveitado de
forma a dotar, estas e outras crianças de minorias étnicas, com aquilo a que
Luiza Cortesão chama de bilinguismo cultural: capacidade de, sem abdicar da
sua cultura e identidade étnica, obter e gerir as ferramentas socioculturais que
lhes permitam um exercício pleno da sua cidadania.

27
Veja-se a distinção estabelecida por Mirna Montenegro entre a cultura cigana enquanto uma
cultura policroma e a cultura escolar enquanto uma cultura monocroma (Montegro, 1999: 20,
21)
IV HISTÓRIAS DE VIDA

As histórias de vida permitem-nos aceder à construção narrativa da


identidade étnica e individual através de processos contínuos e flexíveis de
construção do eu e do outro. As histórias de vida de que deixo aqui
testemunho pertencem à Tia C., com cerca de 63 anos, e ao Aguelito, o seu
pai, falecido em 2007, com 87 anos. As idades nem sempre são fáceis de
calcular pois, no caso dos mais velhos, o que está no bilhete de identidade não
corresponde à idade real. Vários adultos foram registados alguns anos após o
nascimento com a data e o local da altura. A Tia. C. acredita ter mais 3 ou 4
anos e conta que foi registada pelos seus sogros, já depois de casada, como
filha deles. O local de nascimento que consta no seu bilhete de identidade é o
local onde vivia com os seus sogros na altura do registo (Esgueira, Aveiro) e
não o local onde nasceu (Vila Real).

Tia C.

Apesar de os seus pais terem uma vida mais sedentarizado do que


teriam a maior parte dos ciganos de então – isto segundo o Aguelito, como
veremos – a Tia C. casou com 12 anos e portanto quando fala da sua infância
fala sobretudo da vida nómada com os seus sogros e marido. Quando fala do
passado fala sobre a sua vida adulta, sobre o nascimento dos filhos e sobre
como garantiam a subsistência. Fala ainda, muitas vezes, sobre
relacionamentos mais próximos que teve com pajos. Uma vez que era a mim
que contava as histórias e que tinha consciência de que elas seriam ouvidas
ou lidas por outros, é possível que essas memórias tenham sido resgatadas
precisamente para demonstrar bons exemplos de convivência, entreajuda e
caridade.

Nota-se ainda, na sua narrativa, um reforço da identidade da


integridade identitária da família como resposta a um estigma social: são
constantes as referências à limpeza da família – frases como “sempre fomos
muito limpinhos”, “os meninos sempre arranjados e bem vestidos”, são uma
constante. São frequentes também as referências a episódios em que as suas
“boas falas” evitaram problemas com os não ciganos. A Tia C. escolheu não
me contar histórias de conflito com ciganos e com não ciganos. Escolheu não
me contar episódios menos felizes da sua vida por isso o que fica aqui é
somente o que ela escolheu contar quando o gravador estava ligado.

Dependendo dos dias e do seu estado de espírito, a Tia C. contou como


foi feliz com os seus filhos, sempre a cantar, de terra em terra, e também
como eram duros esses tempos difíceis. Encontramos dois eixos centrais na
sua narrativa, linhas orientadoras através das quais guia as suas memórias: a
itinerância (tenta sempre lembrar-se onde estava ou para onde ia em
determinada altura), e o nascimento dos 10 filhos, marcos incontornáveis.

Antes de casar, a primeira vez que me lembro morávamos em


Chaves e havia lá um senhor, chamavam-lhe o Fundão, tinha um
armazém muito grande de panos, pronto, e antes eles pegavam e
traziam uns retalhos para vender, e esse Sr. Fundão, deixava-lhe, ó
meu pai.….cortava assim bocados grandes para fazer umas calças ou
uma saia e ele [o pai] vendia. Ia vender e depois entregava-lhe o
dinheiro, [o Sr. Fundão] punha-lhe um preço depois o que passasse
daqueles ganhos era dele [do pai]. Ora bem, a gente moramos lá
muitos anos, em Chaves, numa casa pequenina… (…) o meu pai atão
tinha-nos sempre, toda a vida…vivíamos sempre muito limpinhos, o
meu pai não queria que vivêssemos…não queria nos criar assim neste
andamento [refere-se à vida nómada]. Não, vivíamos muito limpinhos,
sem passar fome….e a minha mãezinha, que Deus tem, vamos supor,
na maré da Páscoa ia com a minha mãe à Praça, comprava sempre
cabrito para fazer a Páscoa…sempre calçadinhos. Dali pegamos fomos
para a régua, arranjámos lá uma casinha, pagava 30 escudos naquela
ocasião, você veja os anos! E depois… daí…sei lá, não sei quantos
meses também estivemos, depois viemos para Espinho. Aí estivemos
uns anitos, num barraquinho, todos solteiros [os irmãos todos].
Vivíamos lá assim num bairro que era… à beira da tourada, vivíamos lá
com …sem ser ciganos.
Casou aos 12 anos com um primo em 2º grau (os pais de ambos eram
primos direitos, tendo depois ficado a viver junto dos sogros, sobre quem diz:
“os meus sogros faça de conta que eram meus pais, eram muito meus
amigos, tanto ele como ela”. Sublinha sempre a sua idade precoce na altura
do casamento: “ele era mais velho, eu tinha os peitinhos colados às costas,
inda nem era assistida.” Conta muitas vezes, entre risos, episódios dessa
altura:

Fomos na companhia do meu sogro que Deus tem, e……e eu não


sabia o que era governar a vida e atão eu ficava em casa, a minha
sogra é que sabia governar a vida, eu ficava em casa e punha-me a
brincar com as minhas cunhadas, punha-me a brincar com ela as
bonecas, ele atão vinha, ele ia buscar vime para fazer cestos para nos
manter, quando ele vinha encontrava-me ali junto das minhas cunhadas
a brincar às bonecas, ele atão vinha e muitas vezes ralhava comigo
“então tu não tens vergonha de estar ai a brincar com a canalha?” Quer
se dizer, a canalha…pelo menos a mais velha era mais ou menos da
minha idade, a mais nova não, era solteira. Como era casada ele achava
que não estava bem eu brincar com elas “vai fazer a tua vida” e eu atão
tinha medo e saía, eu fazia as minhas coisinhas bem, não precisava de
ninguém.

Quando me casei era muito nova, não sabia…. tive três anos
sem….eu não sabia o que era o mundo, o que era a vida de casada, sei
lá, não sabia… e atão fomos para esses lados….inda outro dia
disse…Moncorvo, e eu tinha pena dos meus pais, eu alembrava-me dos
meus irmãos, era canalha, e eu chorava por eles, tinha saudades dos
meus irmãos. E atão fomos…fomos para esses lados [para onde
estavam os pais]… e a minha mãe, que Deus tem, ficou com uma
alegria! Estive lá numa casinha alugada.
Eu tinha duas cunhadas, uma morreu coitadinha, eram
pequenas, a mais velha era quase da minha idade, mas elas brincavam
e atão eu brincava também com elas. Depois vinha o meu marido que ia
buscar vimes, vinha ele e já começava a ralhar comigo por estar a
brincar às loucinhas e às bonecas, ainda não era assistida, depois
comecei a mentalizar, a mentalizar a minha cabeça….E depois, quando
fui menstruada, comecei a chorar a chamar a minha mãezinha, tinha
muitas dores, ninguém me ensinava, não é como agora, agora as
professoras ensinam, depois a minha sogra ria-se muito e disse-me
“olha, tu não te preocupes, é assim, assim, assim…”depois dali a três
anos tive o meu F., o mais velho, já tinha mais juizinho”.

O nascimento do primeiro filho marca um acréscimo de maturidade.


Conta sobre a primeira gravidez:

A primeira vez…sentia-me assim mais forte mais gorda, e sentia-


me mais diferente. E eu atão, como não sabia, deram-me as dores,
naquela ocasião a gente não ia o hospital nem ia a saber….nem a fazer
as [eco]grafias, nem nada, eu não sabia, sentia-me assim gorda . Mas a
minha sogra, que Deus tem, desconfiava, claro. Sentia-me diferente, e
ela atão disse “pronto,… sei que andas de bebé”, mas não íamos ao
hospital nem nada. Despois… quando foi para nascer, aí é que foi
engraçado! A gente fomos vender uns cestinhos e havia uma figueira. E
nós todos passámos por aquela figueira e eu comecei a comer figos. A
noite deu-me aquelas dores e eu julgava que era dos figos [risos], é
verdade [risos]. Depois quando comecei fui ao hospital da Anadia, tive
lá, nasceu lá, depois viemos para este lado, foi quando, depois dois
anos e meio, nasceu a P. em Estarreja. Depois de Estarreja fomos para
Viana, tive o meu J., depois dali fomos para Ílhavo, tive o Ls., e fui
tendo…um nasceu aqui, outro nasceu acolá… mas a minha vida foi
muito………muito complicada.

A Tia C. marca a diferença entre aqueles tempos, de vida nómada e


dificuldades, e hoje em dia. A religião é recorrentemente um elemento
diferenciador:

Nos princípios levávamos a cumpanha do meu


sogro…acampávamos hoje aqui, depois dali a quinze dias íamos
acampar para outro lado, eles [os homens] iam aos vimes, faziam
cestinhos, a gente íamos vender, trazíamos comidinha para a canalha,
[do dinheiro] daqueles cestinhos, fazíamos as barraquinhas….e vivíamos
muito alegres, sempre a cantar e a dançar… era sempre, andamos
sempre a cantar e a dançar, nunca vivemos triste, … agora não, agora
cantamos para deus…

A minha vida era essa, a gente pegávamos acampávamos num


lugar, acampávamos nos montes, muitas vezes num terreno que nos
deixassem estar, depois a gente pegava ia vender uns cestinhos,
dormíamos no chão, depois de manhã a gente nos levantávamos,
arranjávamos e íamos à nossa vidinha com os cestos, vendíamos os
cestos, trazíamos… qualquer coisa que a gente arranjava… os homens
tinham a panela cheia de caracóis a cozer, a gente quando vinha já
trazia vinagre, aquelas coisas para fazer os caracóis, para gente comer.
Muitas vezes os filhos, criados aqui, criados acolá, agente não tínhamos
onde dormir, passávamos frio, muitas vezes fome, sabe deus o que a
gente passávamos…mas hoje já não, hoje graças a Deus já estamos
melhor…sabe que agora a vida…. do 25 Abril para cá a vida mudou,
mudou tudo, tudo! Depois atão …eu ia…ia a minha vida, ia ler a sina,
ganhava dinheiro, ganhava para comer, ele fazia cestinhos, eu atão lia
a sina, também arranjava algumas croinhas….trazia, mas, pronto,
vivíamos…com dificuldades. A gente quando estávamos em Estarreja
[antes do 25 de Abril] só estávamos lá dois dias, que a policia se
soubesse, a GNR, já vinha lá e tirava as coisas das barracas para a
gente ir embora, nunca estávamos descansados.

Quanto aos caracóis:

Os caracóis vinham em cima das folhas das couves, ou nas ervas,


mas limpinhos, ou nas paredes, fora das casas e tudo. A gente íamos
para longe…trazíamos aquelas panelas cheias de caracóis, a gente
botava-lhes sal, de um dia para o outro (…) para tirar aquela porcaria
toda, a gente botava-lhe sal, muito sal, de um dia para o outro, depois
no outro dia pegávamos, lavávamos com muita água, a gente lavava
aqueles caracóis… pegávamos, cozíamos, cozinhávamos… cozidos, bem
cozidos, depois tirávamos a água fora, cozinhávamos as batatas, muitas
vezes fazíamos as batatas juntas, outras vezes as batatas de lado,
fazíamos um molho de….de que é que a gente fazia molho?[pergunta
às noras]. Botava nabos …. em cima…muitos botavam colorau e aquilo
era, olhe… fazia tão bem, por demais!, a gente sabia-nos aquilo como
se fosse hoje, sei lá, presunto!

Os cestos, feitos pelos homens e vendidos pelas mulheres, assim como


a leitura da sina por estas, eram a principal forma de subsistência. As
mulheres também recorriam à mendicidade embora este seja um aspecto que
menciona poucas vezes. Não obstante, as dificuldades eram muitas e só mais
tarde, como veremos, a Tia C. começou a recorrer a algum tipo de assistência
social:

Depois atão, a nossa vida era muito triste. Por um lado era triste,
a vida sabe como é, era nosso pão cada dia, mas vivíamos muito
alegres, muito alegres, tínhamos 10 filhos, eu e ele 12, mas eu sempre
arranjava de comer. Eu ia ler a sina, ganhava qualquer coisa e
comprava comer, havia para fazer o comer, e eu atão fazia uma panela
de sopa, chamava uns, chamava outros, os que me pertencessem, as
minhas cunhadas, os meus sobrinhos, chamava para lhes dar de comer.
Mas, quer se dizer, eu vivi sempre muito alegre….eu ia com a minha
sogra que Deus tem, naquela ocasião ia com ela, ia atrás dela, ela ia
com os cestinhos e eu também levava os meus cestinhos, ela ia a andar
à minha frente, ela ia às casas e eu atão punha-me a acantar “lá lá
lá”[canta], sempre estava a cantar, estava a lavar a louça, estava a
cozinhar, elas [as noras, que escutam] que digam, já tinha os meus
filhos todos casados e eu vivia muito alegre, agora é que não….não dá
para estar alegre…. Muito alegre, pobrezinha mas muito alegre. A gente
acampava nos montes mas muitas vezes não tinha para comer, a
verdade é uma, não tinha comer, muitas vezes alevantavamos, íamos
vender os cestinhos e não trazíamos para comer nem nada, é triste
também, mas tínhamos saúde, éramos saudáveis, eu não sei como era
antigamente que não havia estas doenças, você não acredita mas… eu
agora adoeci, para aí há dez anos…mas eu quando vivia ali em S. João
da Madeira, havia lá uma zona… chamavam-lhe a zona industrial,
vivíamos num barraquinho assim e depois atão havia ali um rio e eu
lavava. Sabe o que é lavar a roupa de dez pessoas, comigo e o meu
homem 12, mesmo no Inverno….na maré do Natal…eu ia sempre lavar
para aquele rio metia-me dentro de água, a água chegava-me por aqui
assim [aponta por cima dos joelhos], chegava a uma certa altura as
pernas já não as sentia. Passavam lá aquelas mulheres da fábrica “ó
mulher que você morre!”, “não, eu sou muita rija, as ciganas são muito
rijas!”, “um dia você vai senti-las”, e foi verdade, tenho má circulação e
agora os ossos… ui meu deus!

A ida para São João da Madeira, com os filhos pequenos, parece ter
marcado alguma melhoria:

Depois que eu tive os filhos eu vivi em muitos lados, em


Estarreja, na Anadia, em Oliveira de Azeméis, em Lourosa…Depois
viemos, já tinha todos, só tirando o D., para São João da Madeira, como
eu contei [um senhor deixava-os ficar no seu terreno em troca de o
vigiarem], a gente acampava lá. Depois eu ai tinha muitas conhecidas,
já era muito esperta, era muito esperta, ele [o filho Ls.] vinha comigo,
ele fazia uns cestinhos pequenininhos e vendia aquilo a 25 tostões, fazia
e dava-me a mim:” olha tu vendes os cestinhos e eu vou lá acima” que
era uma senhora que tinha um comércio de roupas feitas, dessas
coisinhas de lã e assim, e uma carrinha vinha para descarregar lá no
armazém dela e o meu Ls. costumava lá ir e ela disse assim “ó Ls. olha
anda cá , vais-me descarregar a carrinha que eu depois dou-te alguma
coisa”, e ele “pronto, então tá bem”. Então ele descarregava a carrinha.
Depois, ao fim, a senhora arranjava-lhe assim um fardo de várias
coisas….casaquinhos de lã…coisinhas…amostras… apanhava aquilo e
vinha às peixeiras, lá em São João da Madeira, lá na Praça, e vendia
aquilo. As peixeiras eram muito amigas dele. Vendia uma por, sei lá, 5
escudos, vendia outra por 10, olha, arranjava lá umas croinhas e dava-
me, às vezes em troca davam-lhe peixe…Elas diziam ”ó Ls.” – na
brincadeira com ele –“onde foste roubar isto?” “atão, não foi roubado,
foi a senhora fulano ( que ele sabia o nome dela) que me deu para eu
vender, também ajudei-lhe a trabalhar, eu descarreguei a carrinha,
trabalhei para ela e depois ela deu-me isto”.
A minha vida foi muito pobrezinha, foi, mas muito alegre, de uns
anitos para cá é que estou triste por causa do meu homem, mas vivi
muito alegre. Eu em São João da Madeira tinha muitas ajudas, tinha
muitas amigas, tive lá tantos anos….a gente nem sabia o que era a
assistente [social] nem nada, as mulheres de lá é que me diziam: “ó D.
C. você vá …(não era assistente, era outra coisa que lhe
chamavam….Cruz Vermelha!), “você vá ás senhoras da Cruz Vermelha
que elas ajudam”, e eu atão uma vez fui lá, subi as escadas, com receio
(a gente temos de ter respeito), mas pronto subi as escadas e bati à
porta, saiu uma senhora velhinha, muito engraçada, “o que é que você
deseja minha senhora?”, “olhe, eu já moro cá há tantos anos e nunca
tivemos ajuda de nada, só as pessoas de cá é que nos ajudam e eu
queria saber, disseram-me que você costumava ajudar”, “sim senhor,
quem precisar eu ajudo com qualquer coisa, posso ajudá-la, o que é
que você precisa?”. Sabia lá o que precisava, precisava de muita coisa,
precisava de tudo e eu disse-lhe: “ó minha senhora você ajude-me com
aquilo que você puder, porque diz que o pobre nunca escolhe, aceita o
que lhe derem e fica agradecido”, “pronto, olhe, você tem boas falas”, e
eu por acaso sempre fui muito educada para as pessoas, e depois atão:
“olhe, você venha (em tal dia, não me lembro que dia foi) que eu vou-
lhe arranjar alguma coisa”,e atão eu fui naquele dia que ela me mandou
e ela arranjou-me duas sacas de mercearias, muita coisa, não me
lembro o que foi mas coisas que eu precisava, que eu gastava. “Depois
venha sempre todos os meses que eu vou arranjando alguma coisinha”,
eu ia lá e arranjava-nos. Depois o meu homem precisava muito das
pomadas e eu não tinha dinheiro para comprar…arranjava alguma
coisinha e era para comer. Depois eu bati à porta de uma senhora que
já me tinham falado, também uma senhora velhinha, e eu disse assim,
contei-lhe – já estávamos aqui na Vergada – era a D. Carmina, mais ou
menos com 60 anos, não era velha, era uma senhora que não tinha
homem e criou duas filhas e um filho mas tinha muitos netos que
trabalhava, depois atão eu ia lá sempre, essa senhora fazia comer para
fora, bolos. E aquela senhora sobrava a clara do ovo e guardava para os
pobres, para quem precisasse, então uma vez fui e bati a essa porta, e
eu pedi-lhe, pronto, “olhe você não tem alguma coisinha para me dar?”.
Eu andava a vender cestinhos, andava de esmolas para criar os filhos,
depois atão: “olhe eu tenho qualquer coisa para você, você aceita coisas
da arca?”, “aceito sim senhora”, ela matava galinhas grandes e deixava
aquela…. a carcaça, chamada carcaça, e deu-me uma saca cheia de
carcaças, deu-me uns frascos de clara de ovos…dava-me muita coisa.
Depois de apanhar a confiança com essa senhora eu ia lá de vez quando
e a mulherzinha atão apanhou amizade, porque eu era muito bem
educada e eu contei-lhe a minha situação, o que eu era e onde estava e
tudo mais, e ela foi apanhando confiança comigo e eu com ela:”olhe
quando você precisar você venha que eu vou ajudá-la”. Eu ia lá de vez
quando, todos os dias tinha vergonha, eu precisava todos os dias, não
é? mas eu ia só de vez em quando. Depois chegou uma certa altura, o
meu homem já era doente desse mal de pele, e eu disse-lhe assim:
“olhe, eu precisava para fazer um barraquinho que eu não tenho para
fazer um barraquinho, pode arranjar alguma coisa?”. Iam pessoas lá
comer e ela falava com aquelas pessoas: “olhe, tenho uma amiga minha
que ela precisa, é pobrezinha é isto e aquilo…o que vocês puderem
ajudar.” Davam-lhe …o que calhava…5 escudos naquela ocasião, já há
tantos anos, uns 30 anos ou mais vá, ou mais… e então, vamos supor,
5 escudos, ela vai e apontava, vinha outro deixava mais alguma
coisinha, ela ia apontando...pronto, chegou a uma certa altura (ela não
dizia me dizia nada), chegou uma certa altura que deu-me um bocado
de dinheiro, um bocado de dinheiro bom. Eu apanhei aquele dinheiro
comprei umas madeiras para fazer o barraco e fizemos um barraco.
Depois eu eu ia lá e ela atão tinha louça suja, dos clientes dela e de
fazer ovos e assim, e eu atão pegava na loiça e lavava-lhe a loiça “ó D.
Carmina, vou-lhe ajudar,” “deixe lá D. C. que você também não pode”,
“ não, eu vou-lhe ajudar”, e eu atão pegava na louça, abria a torneira
da banca e lavava-lhe a louça, “ó D.C. já que você…[des]casque-me
aquelas batatas, bata-me aqueles ovos,…” -mandava-me. Eu ia ao
mercado vender os cestinhos e ela vai: “olhe ó D. C. você vai ao
mercado, você passa lá?”, eu atão trazia o que ela queria. Depois
morreu, tive tanta pena dela, até sonhei com ela. Tinha um filho da
idade do meu L., não, um neto, um neto da idade do meu L. Depois eu
atão lá abaixo, em São João da Madeira, apanhei confiança também
com essas raparigas, que eram da catequese, da Juventude,
chamavam-lhe a Juventude…, eu ia lá para a escola…e depois elas
vinham e eu estava a cozinhar: “ó D. C. que cheirinho!, deixe-me
provar”, para dizer que tinham confiança com nós, ela atão apanhava a
sopa, provava: “ai que boa!” Depois eu andava de bebé do meu T. e a
Lurditas, que era uma rapariga nova de lá, “olhe você anda de bebé que
eu já sei, eu vou ser a madrinha, você aceita?”, “aceito sim senhora,
com muito gosto, e o padrinho?” O padrinho… tinha um namorado que
era o Adriano mas depois o Adriano tinha vergonha então foi o
cunhado.

O envolvimento das crianças na economia doméstica é bem ilustrado


nas memórias da Tia C.. Quando perguntei como criou os 10 filhos, disse-me
“olhe, com uma panela de sopa”, e conta que os meninos ficavam com o pai a
fazer os cestos e as meninas ficavam em casa a fazer as coisas e iam buscar
água. Temos o exemplo da própria Tia C. que começou por ficar em casa com
as cunhadas para mais tarde começar a acompanhar a sogra levando os
cestos que o marido fazia para vender e, depois, a ler a sina. Ler a sina é uma
actividade muito associada às ciganas. A Tia C. conta que deixou de o fazer
quando percebeu que era pecado mas que durante muitos anos teve de o
fazer. Perguntei-lhe como aprendeu:

Sei lá, de cor e salteado……aprendi. As ciganas liam a sina de cor,


ninguém adivinha, só Deus é que adivinha….mas nalguma coisa
tínhamos que trabalhar para ter pão, agora nenhuma cigana lê a
sina….antes éramos obrigados pronto, e éramos! Porque não
recebíamos de nenhum lado e andávamos pelas portas e escorraçados
muitas vezes, eu não graças a Deus, mas muitas……
Eu sabia que elas queriam a sina… e pronto, dizia coisas da
minha cabeça…e atão lia a sina e ganhava algumas croinhas. Eu pegava
na mão duma pessoas, eu já via: “ olha esta vai cair no papo” [risos].
Ela atão dava-me 10 tostões e eu sabia que ela tinha para me dar 25
tostões: ”olha, agora vou-te ler na outra mão e vais me dar 25 tostões”,
“tá bem, tá bem”, ela caía. Eu muitas vezes lia a sina e adivinhava! Eu
dizia que tinha um rapaz que gostava muito dela e chamava-se fulano,
e outro fulano …um ou outro tinha que ser! [risos].”Ai, adivinhou!” E ela
ficava toda contente e chamava as outras: ”olha, anda cá que aquela
senhora sabe ler a sina e adivinha, ela adivinha com tudo!” Pronto, eu
dizia coisinhas lindas, em vez de dizer coisas feias, dizia coisinhas lindas
que era para elas ficar mais contentes, e atão…dava para o meu
comer…Depois ele atão disse-me, já foi aqui [na Baralha], “tá bem que
a gente…isto não é roubar, quem dá por a mão é de ser a vontade
dele… mas diz que isto de ler a sina, de dizer mentiras, é pecado, se a
gente vamos mentir é um pecado.” Eu disse:”ó meu Deus, isto….eu já
não quero mais mentir”. Depois da gente vir para aqui…inda também li
umas sinas, as pessoas vinham aqui, depois mais tarde disse: ”olhe, já
não quero mais ler a sina, já não quero mentir mais, eu preciso mas
Deus vai me ajudar, não quero ler a sina, quero viver honesta”. Depois
vinham aqui as pessoas e eu dizia: “olhe, desculpe mas eu já desisti”.
Ficavam com pena, vieram umas poucas aqui e eu disse-lhes “olhe
desculpe eu prometi que nunca mais lia a sina”, elas assim: “atão
porque?”, “olhe, pronto, cansei, mudei de ideia”. Eu não dizia que era
mentira porque elas iam ficar triste…
Houve aqui uma ocasião, eu estava ali naquele barraquinho
[aponta], que aquele barraco era meu, e elas vinham por trás, e havia
uma rapariga que tinha duas filhas, já era casada e já estava fora do
homem e atão namorava para um rapaz e ela gostava muito dele e ele
também gostava dela, mas outra meteu-se com ele, outra rapariga, e
ele deixou de gostar daquela que tinha duas filhas, mas era muito linda
ela. Depois ela vinha aqui por causa disso, para que eu lhe lesse a sina,
e eu atão li-lhe a sina, disse-lhe: “olhe, você um dia vai ajuntar-se com
ele, você não acredita que vai ficar com ele?.....você vai outra vez se
juntar com ele, ele vai largar a outra e vai se juntar consigo”. Depois
mais tarde ela veio outra vez, veio com a mãe dele que gostava muito
da rapariga…veio a mãe e veio ela e ela disse: “olhe ele esta assim,
assim…”, “você vai ver que ele vai ficar consigo”. Casou-se com ele.
Depois ela andava de bebe e ela veio aqui e eu disse-lhe, inda não se
percebia, disse-lhe “você anda de bebé” e foi a verdade...eram muito
boas pessoas…sentavam-se, conversavam comigo, eu conversava com
elas...tinham muito pouquinho dinheiro mas “pronto, eu aceito” e eu
adivinhava! Depois disse: “vocês não venham mais porque eu já
desisti.”

Relembrar as dificuldades não é incompatível com uma certa romantização do


passado:

Passei muito, sabe Deus, dormia em barraquinhas, dormia no


chão, tinha muitos filhos, andava com os meus cestinhos…mas vivia
muito séria…mas pronto, a gente vivemos muito pobrezinhas, muito
sérias graças a Deus. Criei os meus filhos, fazia uma panela de sopa e
chamava as minhas cunhadas e os meus sobrinhos e atão repartia com
todos, os ciganos são assim, se eu tiver arreparto, um dia que eu não
tenho também eles arrepartem comigo, é assim, e assentava os meus
filhos todos assentadinhos, punha-lhes um prato de sopa a cada um e
pão… e vivi sempre muito alegre…..Agora é que estou a viver mais
triste….mas eu antes….eu, olhe, eu ia, nos lugares, pelas casas, e eu ia
“lá lá lá”[canta], só ia a cantar ….estava a lavar a louça estava a
cantar, ia lavar, estava a cantar, era muito alegre…

Eu gostava [da vida nómada]. Para estar assim da maneira que a


gente estamos mais valia uma barraquinha hoje aqui, amanhã acolá…
uns dias num lado, outros dias noutro….e vivíamos sempre muito
alegres porque eu tinha os meus filhos todos às minha volta, tinha
saúde, o meu homem não tinha muita saúde mas ele nem pensava na
doença que tinha, aquele mal de pele que já tem há 30 anos…nem
pensava nisso, nem pensava ao ponto que ele chegou, nem eu pensava
nisso, só pensávamos em coisas, pronto, coisas boas.

Eu ia governar a minha vida, depois eu ganhava um dinheirinho e


guardava e tinha sempre dinheiro, agora não, vamos gastando, não
vamos escorraçados – eu não graças a Deus nunca fui escorraçada
porque sempre fui boa pessoa, muito educada, mas muitas não…não dá
hoje amanhã pode me dar, mas muitas não, tratavam mal as pessoas e
era por isso que eram escorraçadas...por causa delas diziam: ”as
ciganas são muito mal criadas”. E agora não, a gente arrecebemos o
rendimento, temos direito a receber a reforma. Eu recebo o rendimento,
o meu marido recebe a reforma dele e a gente vamos tentando fazer a
nossa vidinha….Dantes não….estávamos aqui um dia, éramos
escorraçadas, vinha a policia….mesmo que não fizéssemos nada os
donos do mato telefonavam á policia e a policia julgava que a gente
estávamos a fazer mal e escorraçavam-nos de lá e a gente saíamos.
Agora estamos melhor …mas podíamos estar melhor do que o que
estamos porque o dinheiro não traz felicidade nenhuma, mas pão cada
dia, estar sossegadinhos que é o que eu quero.

El Aguelito

Apesar da idade já atraiçoar a memória deste bisavó, na altura com 87


anos, e do cansaço muitas vezes condicionar as nossas conversas, foi com o
Aguelito que aprendi a maior parte das palavras em romanó. Sempre que lhe
pedi que me falasse do passado, da vida antigamente, falou longamente sobre
os tempos de perseguição de uma forma bastante crítica e bastante sentida.
Apesar disso, o seu era um discurso de grande tolerância e respeito. Falou
muitas vezes sobre o medo que os não ciganos sentiam dos ciganos devido à
fama que estes tinham. Quando lhe perguntei se os ciganos também tinham
medo dos não ciganos, respondeu: “Não, não! Os ciganos nunca tiveram
medo, nunca!” A defesa da honestidade e seriedade dos ciganos, mas também
a apologia da sua coragem, eram elementos constantes nas suas histórias.

O Aguelito ao contar a sua história de vida, fala sobretudo destes


tempos de antigamente sublinhando, no entanto, que a sua vida foi diferente
porque sempre teve os filhos “debaixo de telha”, optando por viver, primeiro,
da venda, de porta em porta, de tecidos contrabandeados e depois das feiras.
Os pais eram espanhóis e vieram para Portugal novos, a mãe lia a sina e o pai
fazia contrabando. Quando estava bem disposto, contava muitos episódios
sobre “a vida do negócio para ganhar para comer e beber”, nomeadamente
sobre alguns embustes que ajudavam a vender a mercadoria, como esconder
plástico por entre o tecido para provar que este não rasgava. Infelizmente
muita da informação transmitida pelo Aguelito não ficou registada. De
qualquer forma, o Aguelito deixou-nos, nas suas palavras, informação muito
interessante e relevante sobre a sua vida, em particular, e sobre a vida dos
ciganos antigamente.

Eu nasci em Portugal, na Anadia. Só há nove, dez anos para cá é


que conheci a Espanha, não conhecia a Espanha mas tirei o passaporte
e fui passear! Visitar a família. Nós temos família em Espanha. Eu
gostava muito de conhecer a família nova. E eles também gostavam
muito de nos conhecer.

Os meus pais eram espanhóis…o meu pai era de …esquece-me o


nome…daqui da Galiza….a minha mãe era castelhana, depois vieram
para cá [Portugal]. Vieram para cá novinhos, tive uma irmã que já
morreu, que já tinha agora 90 e tal anos, que já foi aqui
nascida……Quando casaram, se não me engano o meu pai tinha 15 ou
16 anos, a minha mãe tinha 12 ou 13 anos, eram crianças ainda…A
minha mãe, que Deus tem, lia as sinas, ganhava naquele tempo 5
tostões, para ler a sina, depois passou para 10. Dava para comprar
carne de porco, feijões, batatas…

Eu casei com tinha 16 anos, mas não cheguei a casar, foi assim:
fugi com ela, éramos crianças…mesmo eles não queriam…mas, por
graça, gostava daquela rapariga,…então eu, sei lá,… fugi com ela. Já
fazia muito escuro e fomos a uma casa para dormir, e eles viram-nos: “
vocês são casados?”, “semos”, “ quando é que se casaram?” e nós
dissemos que tínhamos casado. Despois o meu pai e o meu sogro
andavam à nossa procura e veio então o dono da casa e contou tudo e
lá fomos para casa. Foi assim, pronto. Tive 9 filhos. Quatro filhas e
cinco filhos.

Viveu em várias terras também, embora mantivesse a família em casas


alugadas. Vendia tecidos e roupas de porta em porta e mais tarde, dedicou-se
ás feiras: “Despois meti-me nas feiras, comecei a fazer feiras, andar pelas
portas a vender colchas e fatos e assim, nesse negócio, estive uns 30 anos,
nas feiras uns 35 anos.” Relativamente à educação dos filhos conta que os
meteu todos na escola, embora a Tia C. não se tenha referido a alguma vez
ter frequentado a escola em criança. Aliás ele menciona ter, ele próprio
frequentado a escola em criança.

Meti-os todo na escola. Eu fui o único – o único não, vá, deve


haver mais – mas eu fui o único que meteu os filhos na escola, os
meninos e as meninas. A s meninas aprenderam qualquer coisa …depois
censuravam [os ciganos], algumas estiveram dois anos. Os meus filhos
todos eles têm a quarta classe, graças a Deus. Eu próprio estive na
escola…só que eu era um vadio, sabe? Porque se eu fizesse caso dos
meus pais…mas eu punha-me a brincar ao pião, com outros rapazes,
ciganos e não ciganos, muitas vezes não ia…

Quanto à vida dos ciganos antigamente:

Os ciganos, isso é que é verdade, tudo verdade, eram piores


vistos naquele tempo que os cães, os ciganos mesmo que quisessem ter
vida não podiam, a verdade é uma, não tome a mal isto que vou dizer,
Portugal é gente muito estúpida e muito atrasada, isto é que é verdade,
porque os ciganos mesmo que quisessem ter vida não a tinham pela
gente….A gente toda censuravam os ciganos sem ter por donde, eles é
que aumentavam as coisas da cabeça deles, mentiras… sei lá,
aumentavam coisas da cabeça deles, nem que não vissem nada diziam
“em tal parte fulano de tal…”, inventavam o nome da gente, “ fulano de
tal desapareceu-lhe um filho e foram os ciganos que o agarraram para
come-lo…os ciganos comem gente e tal.

Depois os ciganos, aqueles que eram…porque claro,


verdadeiramente, bem bem, só eram meia dúzia deles, aqueles que
tinham sorte, por exemplo, a mim, graças a Deus estou a contar isto,
mas eu por mim nunca me passou essas coisas porque eu morei em
boas casas alugadas, claro, não eram minhas. Eu andava ao meu
negócio, pelas portas, de vender tecidos e colchas e andava
honestamente e ganhava honestamente o meu dinheiro…para a minha
vida, para comer e beber não era para outra coisa! Para comer e para
beber e ter os meus filhos debaixo de telha. Tinha os meus filhos
debaixo de telha, foram criados todos debaixo de telha graças a Deus!
Mas…também passei delas, também passei delas, poucas, poucas! A
verdade é uma! Mas também passei…

Mas a maior parte, em Portugal – muitos, como eu, passavam


bem, passavam regularmente, mas mesmo assim sempre tinham as
suas tricas com as autoridades – mas a maior parte andavam com um
burrito, um cavalo, acampavam em qualquer lado, chegavam aqui, por
exemplo, com ideias de ir vender qualquer coisinha, não tinham bens
não tinham nada, nem tinham sossego, o povo: “eles estão chegando,
são ciganos e tal, são ladrões, são isto e são aquilo…”, vinha a guarda:
”tem um quarto de hora para sair daqui”. Agarram e lá iam para outro
destino. A maior parte era assim, era muito raro estar dois dias num
acampamento. Passava alguém e dizia que viam os ciganos matar um
velho para comer – levavam fama os ciganos que matavam os velhos
para comer – mas a guarda via que era mentira e mandavam-nos
embora. Houve uma altura em que havia os registos dos ciganos. Eram
obrigados a ir aos postos e dizer quantos eram, de onde tinham vindo e
para onde é que eles iam e mandavam-nos embora.
Eles não tinham paz, eles queriam ganhar alguma coisa, mas o trabalho
era palha. Era muito raro. Era muito raro os ciganos trabalhar. Não
tinham nada, não podiam…há uns 25 a 30 anos….eles mesmo
aumentavam as coisas, diziam que nós comíamos os velhos, outros
diziam que nós comíamos as crianças.

Havia ladrões ciganos que roubavam os cavalos, e os burros,


havia de tudo, mas a maior parte não, a maior parte dos ciganos eram
sérios, levavam era fama. E tantos comiam os que eram sérios como os
que não eram. Havia ciganos muito honrados, compravam vimes e
vendiam cestos, esses ciganos eram muito, muito honrados, aqueles
que andavam no negócio também, eram muito honrados, não faziam
mal a ninguém…mas tinham a mesma vida, alguns até... um dois ou
três, muitas vezes viravam-se [à guarda], os ciganos tem muita
coragem.
Havia meia dúzia deles que viviam em casas…grandes quintas,
grandes manadas de cavalos, -cavalos da tropa, eram caríssimos, que
os ciganos compravam mais barato…lá descobriam… – compravam
porcos, borregos…e governavam-se, porque tinham as suas casas e
podiam trabalhar… agora aqueles que andavam de saltimbanco não
tinham terrenos, não tinham casas, eram pobrezinhos, coitados…outros,
como eu, já viviam de outra maneira, vendiam colchas, fatos…iam
buscar a Espanha, de contrabando. Iam a Espanha e traziam xailes,
novas e velhas, todas usavam xaile antigamente… ganhavam algum,
não era que ganhassem tanto, foram sempre pobres,…. os ciganos
coitados passaram muito…

Deus criou o cigano e criou os outros, mas Deus não disse quem
é que eram ciganos, Deus pôs todos igual... depois a ideia do povo é
que…há o cigano, o latoeiro, o amolador, …o homem era português,
espanhol, inglês..mas não era raça cigana…não compreendo, é como
digo, [por causa da] a má fama do cigano antes e já o povo não se dava
com os ciganos, fugia dos ciganos…por isso é que não tem havido
amizade…mas os ciganos e os que não são ciganos já se estão unindo…
se fosse antigamente não passavam por aqui, e agora já passam… Os
ciganos são iguais aos outros, se nos respeitam, respeitamos, agora se
não nos respeitam, claro...o povo português agora já compreende, já
compreende… O povo português tem sido muito atrasado e muito tolo,
agora estamos na alegria maior do mundo, do 25 de Abril para cá é a
maior alegria do mundo……

O Sr. António, como eu o tratava, faleceu em Prado, Braga, aos 87 anos


de idade, a 30 de Novembro de 2007. Que Deus o tenha.
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El caló, una lengua en diáspora (http:// www.picodeoro.com)

El flamenco: fuente de léxico caló (http://usuarios.lycos.es/caló/fla.htm)

Gramática caló ( http://usuarios lycos.es/calo/grã.htm)

Idioma y diccionario gitano (http://www.andalucia.cc/comunidadegitana/idioma.html)

Términos derivados del Caló y del language de germanias incorporados al cante


flamenco ( http://flun.cica.cs/mundo_flamenco/terminos.html)

Sites com informação e bibliografia fundamental:

Ciga-nos! (http://www.ciga-nos.pt/)

Romani Studies (http://romanistudies.lupjournals.org)

The Romani Archive and Documentation Center (http://www.radoc.net)

The Romani Project (http://www.llc.manchester.ac.uk/Research/Projects/romani)

Union Romani de Espana (http://www.unionromani.org)

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