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A (d)obra do espírito na era de sua reprodutibilidade técnica: fotografia e espiritismo numa

querela religiosa.

Bernardo Curvelano Freire


Doutorando PPAGS-IFCH/Unicamp

Resumo: A comunicação a ser apresentada tem como objetivo refletir sobre a


inclusão da fotografia como objeto técnico de investigação do campo moral
e religioso, particularmente na emergência do espiritismo francês no
século XIX. Pautado pelo problema de Walter Benjamim, a saber, sobre a
perda do halo das imagens passíveis de reprodução técnico-industrial, a
comunicação visa discutir algumas questões sobre a inclusão do arsenal
técnico-midiático da fotografia na apresentação de artefatos considerados
como religiosos. A fotografia espectral na qual o espírito de mortos ganha
visibilidade e tangibilidade, e assume ares de "evidência" é um dos
componentes polêmicos da querela espiritualista já nos anos 1870 e ganha
maior ênfase no processo criminal de 1875 em que kardecistas são
acusados de participarem de fraude ao divulgarem este tipo de prática por
via de seu periódico, a Revue Spirite. É a partir deste processo e de sua
abordagem por via do conceito de "índice de agência" formulado por Alfred
Gell que pretendo avaliar qual a configuração que a noção de "imagem
religiosa" assume ao sofrer manipulações de caráter artefatual a partir
dos "psychic studies" espíritas. Pretendo avaliar também algumas das
dimensões em que este caso pode ser enquadrado na história das religiões
naturais/civis, ou seja, na história de interpenetração entre a vida
religiosa e a emergência das ciências modernas e sua reflexão sobre a vida
moral "de um ponto de vista cosmopolita".

Introdução: frontispício como porta

Tudo o que evitarei aqui é abstrair todo um ambiente, as intenções e intensidades circulantes,
o ritmo dos movimentos, enfim, a forma pela qual circulam as pessoas presentes a partir de
apenas um documento. Digo, não tenho elementos documentais para uma reconstituição

1
verossímil do tema que me propus a abordar. Tenho em mãos só um pequeno amontoado de
informações tipográficas comumente encontrado nas folhas de jornal e nos contratos imobiliários,
típicos de início de pesquisa. É um caderno espiralado editado pela Federação Espírita Brasileira
(FEB) em 1975, cuja capa traz um desenho de um tribunal, com as bordas em rosa e as fontes do
título em azul. É uma segunda edição que em sua primeira página apresenta o título (Procés des
Spirites), um carimbo - definindo que o item está em promoção e não dá ao comprador direito à
troca. Constam também: uma gravura de Allan Kardec feita por J. Robert na página seguinte e,
seguindo na mesma ordem, Madame Allan Kardec, Pierre-Gaëtan Leymarie e Madame Marina
Leymarie. Esta assina a organização do volume pela qual é homenageada pela FEB, a esposa de
Pierre-Gaëtan, mãe de Paul e desencarnada em 1904.
Para fins de redação deste artigo toda a apresentação do texto em português, elaborado pela
Federação Espírita Brasileira será negligenciada. Ocupo-me somente do documento original
impresso fac-simile, cuja primeira publicação se deu em 1875. Em sua leitura, e conseqüente
apresentação, sugiro haver um problema relativo às imagens e aos objetos religiosos, sua
indefinição e sua situação num julgamento movido pela polícia correcional francesa no ano de
1874, período de forte repressão política por parte de um governo que ainda se recuperava dos
golpes desferidos pela guerra civil de 1871. De alguma forma, as imagens em questão surgem
como personagens de uma história civil da religião na França do século XIX, história que narra a
vida institucional dos riscos da vida religiosa.

“Procès des Spirites


edité par
Madame P.G. Leymarie
Paris
SE TROUVE
A LA LIBRARIE SPIRITE, 7, RUE DE LILLE
ET CHEZ TOUS LES LIBRAIRES
1875
Tous droits réservés. »

Esta é minha porta de entrada para saber, o que há no Procès sobre imagens, objetos e religiões.
Mas não fui muito claro sobre que documento é este que me serve de ponte. Trata-se de um
volume publicado no Brasil em 1975, comemorando o centenário do processo sofrido pelos
kardecistas na Paris da Terceira República, pouco tempo depois da guerra civil deflagrada em

2
1871. A porta de entrada, mais do que um registro tipográfico, identifica um produto do mercado
editorial, ponto arquimediano entre leitor, comprador e cidadão, exatamente onde se criará o
embaraço legal.

Procès des spirites, alors.


Sétima câmara da polícia correcional do Sena, ministério público contra os senhores Buguet,
Leymarie e Firman. A sessão é presidida por M. Millet, juiz que ao declará-la aberta – “La séance
est ouvert”1 – logo se queixa da quantidade de testemunhas a favor do réu Leymarie. Exige que
algo seja feito o que leva a Lachaud, defensor de Leymarie a sugerir uma triagem dos mesmos.
Millet parece estar apressado – o que está ligado ao fato de que a sentença foi emitida já no dia
seguinte. A séance está aberta, na quarta-feira 16 de junho, em 1875. Como espero poder
demonstrar, este artigo trabalha com uma sorte de embaralhamento de sinais de forma a se tornar
muito difícil, quando não impossível estabelecer fronteiras entre o que poderíamos chamar de
diferenças constituintes do campo religioso e seus opostos. A séance, ou sessão designa um
período, um corte temporal em que as pessoas se reúnem para fazer algo juntas. Nada demais
para definir a atividade de um tribunal, mas o mesmo termo define a atividade espírita por
excelência, inclusive na bibliografia em inglês2, mesmo quando sobre as sessões realizadas na
Inglaterra. Séance, que começa com a interrogação de Buguet3, o fotógrafo em questão. A
acusação:

“- Vous êtes prévenu d´avoir employés les manoeuvres frauduleuses indiquées dans l´art. 405 du
Códe pénal, dont je vais vous donner lecture. (Lecture de l´article4). Buguet, il résulte qu´en
1873 et 1874, surtout en 1874, vous vous êtes occupé de photographie spirite ; qui vous a mis sur
la voie de ces photographies. » (Leymarie, op.cit. :02)

1
(Leymarie, 1975:01).
2
Vide Oppenheim (1985), Monroe (2008), Sharp (2006).
3
No texto estenografado o nome de Édouard Isidore Buguet está registrado como Jean Buguet. Não sei
indicar o porque deste desvio e tampouco a ausência da menção deste detalhe na historiografia, cujo valor eu
não sei medir.
4
« Quiconque, soit en faisant usage de faux noms ou de fausses qualités, soit en employant des manœuvres frauduleuses
pour persuader l'existence de fausses entreprises, d'un pouvoir ou d'un crédit imaginaire, ou pour faire naître l'espérance
ou la crainte d'un succès, d'un accident ou de tout autre événement chimérique, se sera fait remettre ou délivrer des
fonds, des meubles ou des obligations, dispositions, billets, promesses, quittances ou décharges, et aura, par un de ces
moyens, escroqué ou tenté d'escroquer la totalité ou partie de la fortune d'autrui, sera puni d'un emprisonnement d'un an
au moins et de cinq ans au plus, et d'une amende de cinquante francs au moins et de trois mille francs au plus.
Le coupable pourra être, en outre, à compter du jour oit il aura subi sa peine, interdit, pendant cinq ans au moins et dix
ans au plus, des droits mentionnés en l'article 42 du présent Code : le tout sauf les peines plus graves, s'il y a crime de
faux. ».

3
O enquadramento do caso no art. 405 do código penal de 1808 envolve uma guinada na
história do espiritismo kardecista diante da opinião pública francesa. Data do período após a
mrote de Allan Kardec, período no qual a propaganda kardecista fica mais agressiva. Novas
atividades são incorporadas às atividades comumente registradas, como séances, psicografias e
publicação da codificação mediúnica. As fotografias de entes queridos e falecidos, tiradas por
fotógrafos-médiuns havia se tornado uma realidade, além de um meio de vida para pessoas como
Édouard Buguet. É por adentrarem no circuito comercial que as fotos se enquadram como
extorsão; e é por atuar como médium-fotógrafo que Buguet adquire o que o código chama de
crédito imaginário, a partir da legitimação via publicação do artigo a seu respeito em janeiro de
1874 (Leymarie, 1874). As fotografias, como as publicações da Revue e mesmo do processo são
encontrados na Livraria Espírita, 7, rue de Lille; Paris.
Buguet relata ter descoberto, graças ao ator e amigo Scipion que esta modalidade de
fotografia era muito praticada na América. Por não parecer ser difícil sua prática, decidiu se
divertir com ela, o que não é atividade isolada no período. A experimentação das formas de
registro fotográfico é certamente a marca das primeiras décadas de vida da atividade fotográfica5.
Este é o começo do relato do réu, acusado de prática de extorsão pela polícia da ordem política da
Terceira República. Sua prisão fora realizada pelo oficial Guillaume Lombard que investigava as
conexões dos espíritas com os agitadores políticos que haviam tomado as ruas nas comunas de
1871. E logo no começo do processo Buguet já assume sua culpa. E de repente, não tenho mais
sobre o que falar. Será?
O depoimento de Buguet segue afirmando o começo de sua relação com a fotografia de
espíritos com o doutor Puel, que residia no número 73 do boulevard Beaumarchais. Fora este
senhor o responsável por apresentar Buguet a Pierre-Gaëtan Leymarie, na época o editor da
Revue Spirite, o principal veículo francês do argumento, da opinião e divulgação das pesquisas
espiritistas na França. Fundada por Allan Kardec, a revista cumpria a função de divulgar as boas
novas da doutrina em questão. As experiências de mediunidade e as cartas psicografadas
compunham parte do repertório da revista. O processo diz respeito exatamente a um destes casos
não repertoriado pelo periódico.

“D - Chez le docteur6, avez vous fait des expériences ?


R – Non, j´ai simplement assisté à des expériences.
D – C´est le docteur qui faisait les expériences ?

5
Vide Chéroux (2004); Fabris (2008).
6
O docteur ao qual se faz menção é Puel, supracitado.

4
R – C´etaient des phénomenes spirites ; il y avait des médiums qui ne fasait que des choses
fantasmagoriques.
D – N´avez-vous pas eu des réunions où se trouvaient Mm. Bertall, Flammarion, Maxwell et
autres ?
R – Oui, ces messieurs sont venu avec M. Leymarie pour faire des expériences ; c´est par amour-
propre de photographe que j´ai agi.
D – Quand vous avez fait ces expériences, M. Bertall vous a dit que c´était bien fait, avec
beaucoup d´esprit ... ?
R – C´est par amour-propre que je n´ais pas montré le truc.
D – Mais, est-ce que ces messieurs n´iont pas vu vos procédés naturels, artificiels, qu´ils
n´avaient rien de surnatural ?» (Leymarie, op.cit. :02. ênfase da edição do processo)
O interrogado (R=répondeur ; Édouard Buguet. D=demandeur) é o centro do processo dado
que é o vetor da contravenção que move a ação policial. Médium e fotógrafo. Buguet é a figura
em torno da qual as práticas de fotografias espectrais orbitam. O que há na passagem citada é que
o réu assume sua posição prioritariamente de fotógrafo, papel que diz ter assumido desde o
começo de seu flerte com o espiritismo. E que, orgulhoso de sua profissão e de sua posição
peculiar no campo fotográfico parisiense, preferiu aderir às teses da ação de fantasmas do que
revelar o truque. E é a força que esta figura tem que merece maior atenção, afinal o
interrogatório do processo é aberto com ele; o processo foi aberto a partir de um flagrante contra
ele; o mesmo Buguet que foi recurso estratégico para a busca da desmoralização de outra figura
importante, Pierre-Gaëtan Leymarie. E creio ser razoável voltarmos um pouco no tempo de forma
a entender a relação entre os três réus e o que a fotografia faz neste imbróglio.
É reconhecida na biografia de Kardec, ao menos na historiografia especializada (Monroe,
2008; Sharp, 2006; Aubrée & Laplantine, 1990) uma postura profundamente voltada para a
atividade científica, terreno no qual localiza o espiritismo doutrinário. Vale notar, e isto é
importante, que as fontes do espiritismo operam numa rede de confluências e dissonâncias
enormes que estão longe de se esgotarem, ou mesmo terem sua fundação nos escritos de Kardec.
Cada fonte da historiografia consegue privilegiar uma orientação que soa independente da outra.
A historiografia pioneira de Arthur Conan Doyle (2007), por exemplo, segue a linha das vidas
paralelas de Plutarco, ou modelo semelhante, no qual as grandes figuras que movimentam a
atividade espiritualista assumem seu lugar de destaque. Os feitos de fundação estão marcados em
capítulos sumários sobre a contribuição de cada homem, mulher ou criança, começando com
Emmanuel Swedenborg, pensador sueco do século XVIII cujos escritos sobre mineralogia
(terreno fértil para o desenvolvimento da história natural), filosofia e teologia são de suma

5
importância. E é o mesmo Doyle que, ao comentar sua prática como primeiro médium moderno –
ouvia as vozes dos anjos – acaba por estabelecer uma forma crítica que desenha o passo no qual o
espiritualismo em geral procurava dar: “as coisas grandes são simples e compreensíveis. A
teologia de Swedernborg nem é simples nem inteligível. E isto representa a sua condenação.”
(op.cit.:35).
O privilégio concedido às verdades que se prestam à clareza opera um regime de
enunciados em forte disputa desde o século XVII e que tem no Iluminismo francês sua maior rede
de entusiastas. Clareza não se presta somente à limpeza demonstrativa, mas também à
simplicidade em sua compreensão, a versão editorial-enciclopedista das idéias claras de distintas
de René Descartes. Não à toa, dentre os trunfos do trabalho de Monroe (2008) está o paralelo
entre a literatura fornecida pela codificação de Kardec e o desenvolvimento dos livros de auto-
ajuda7.
O apelo à clareza, assim como com a relação específica com as formas simbólicas de
evidência – longe do hermetismo de Swedenborg – tem outras conseqüências que não somente
uma forma de compreensão. Está implicado nisso o papel público dos agentes em questão, e na
forma como a ciência moderna conflui com diversas formas de atividade política e práticas
ocultas com vistas na instrução do grande público. Tinha-se em vista a regeneração do tecido
social, ou mais, no melhoramento progressivo que caracteriza a história humana. Ao menos do
ponto de vista de sua iluminação progressiva, a mesma que serve de contraponto para o medievo,
a Idade das Trevas.
Tudo isto começa a fazer mais sentido quando entendemos quem é Pierre-Gaëtan Leymarie.
Afinal foi ele quem assumiu a edição da Revue Spirite após a passagem (morte) de Kardec em
1869. Se o caráter de instrução das publicações na Revue era o objetivo primário, a atuação de
Hyppolite Jean Denizard Rivail (o pedagogo discípulo de Pestalozzi, nome do alcunhado Allan
Kardec), sob a regência de Leymarie o foco era sem dúvida o grande público, este cujas marés
empossam e derrubam tiranos e movimentam a vida da moderna política de massas.

7
“Readers not educated enough to maintain the “concentration” necessary for the absorption of a more
recondite philosophical work could navigate the Livre des esprits quite confortably. Kardec´s book, then,
was not simply a text to be read once and put aside; it was a collection of short, freestanding moral essays to
be referred to repeatedly in times of need. In this respect, it stood between the new literature of self-help and
older tradition of devotional texts.” (op.cit.:104). Vale lembrar que a condução da escrita em pílulas, sendo
por via de aforismos ou parágrafos temáticos tem profunda conexão com a literatura moral e com os manuais
de civilidade os quais não posso abordar aqui. Vale contudo lembrar da influência que a obra de La
Rochefoucauld exerce na França desde meados do século XVII, em especial após a publicação das Reflexões
ou sentenças e máximas morais, em 1664. Este aparte é só para evidenciar que, mesmo quando não
tematizado, tendo a dizer que a história do espiritismo é paralela à história da educação civil mediada pelo
Estado moderno, ou civilidade, e que tem na publicação desta modalidade de textos uma de suas tecnologias
políticas primeiras. Para uma abordagem contemporânea do tema da auto-ajuda relacionada ao espiritismo,
vide Stoll (2000). Sobre a relação entre o espiritismo e o projeto de uma religião civil, vide Sharp (op.cit.)

6
Leymarie nasceu em 1827, em uma família grande na cidade industrial de Tulle. Na
adolescência foi aprendiz de alfaiate em Paris onde se envolveu com organizações democráticas
de esquerda ativas nos levantes de 1848. Obrigado a fugir do país após o golpe de Louis
Bonaparte, Leymarie permaneceu exilado até 1859, quando o imperador proclamou a anistia aos
revolucionários de então. Nesta data Leymarie abriu sua alfaiataria chegando à bancarrota em
1871, comprovando ser espiritual e politicamente influente, mas um fracasso financeiro – detalhe
importante para seu enquadramento na acusação a partir dos dispositivos do artigo 405. Oferece
motivação para o crime de extorsão.
Quando sob orientação de Kardec as atividades da Revue Spirite atinham-se
fundamentalmente na investigação do fenômeno espírita, na divulgação de pesquisas e na
publicação de cartas descrevendo experiências ou mesmo psicografias. Posto ser o período de
desenvolvimento do kardecismo ao mesmo tempo em que se dava uma relativa estabilidade
política na França após o golpe bonapartista de 1851, a relação entre a postura pedagógica com a
distância dos olhos policiais faziam das atividades espíritas matéria de polêmica religiosa ou, com
maior freqüência de curiosidades. (Monroe; op.cit.). A tensão evidente entre Kardec e Leymarie,
quando da direção que cada um deu para a Revue marca a precaução e a militância de sua
orientação, respectivamente. E há uma forma muito clara de apresentar a diferença de disposição
entre ambos, uma vez que ambas convergem para o processo: o juízo emitido por cada um, cada
qual em seu tempo, acerca da prática de fotografias espectrais, as fotografias de fantasma.

Revue Spirite: fotografias e espectros de Kardec e de Leymarie.


Allan Kardec era temerário com relação às fotografias espectrais. Diria até com as fotografias
em geral. Que temerário não implique em imputar descrença ou coisa parecida, mas a cautela
característica de Kardec perdura em seu juízo sobre os artefatos produzidos pelo espiritismo,
especialmente sobre sua utilização em pesquisas espíritas. Na edição de março de 1863 da Revue
Spirite, Kardec publicou um artigo sobre o tema, exatamente no calor da hora. O Correio do
Baixo-Reno publicara uma notícia fantástica sobre William Mumler, o americano de Boston
pioneiro na arte-técnica da fotografia espectral. No artigo temos citado um trecho considerável do
artigo alemão sobre o norte-americano, o mesmo que cita um trecho da fala do próprio Mumler
sobre a atividade recém-descoberta:

“Há algum tempo – é ele próprio que conta – eu experimentava em meu laboratório um novo
aparelho fotográfico, fazendo a minha própria fotografia. De repente senti uma certa pressão
que se exercia sobre o meu braço direito e uma lassidão geral em todo o corpo. Mas quem

7
descreveria o meu espanto quando vi meu retrato reproduzido e, à direita, a imagem de uma
segunda pessoa, que não era outra senão minha falecida prima? A semelhança do retrato, no
dizer dos que conheceram aquela senhora, nada deixa a desejar.” (op.cit.:134)

E a fundação da fotografia espectral vinha marcada pela obra de um espírito que havia
tomado posse do braço de um corpo já lascivo e, eis a ponte encoberta como que por
prestidigitação, fez aparecer o fantasma na máquina. Sem evidenciar o mecanismo pelo qual tal
ocorrência se deu o espírito, respeitando a etimologia do termo fantasma, se fez aparecer
fotogravado sem, contudo se fazer visível a olho nu. Para ver um fantasma, e logo volto a isto,
somente com os olhos vestidos ou, mais, sem olhos quaisquer. Uma superfície com cristais de
prata são bons substitutos dos órgãos humanos. Substitutos melhores, até. E este é o ponto em
que a produção de artefatos se encontra com a pulsão moderna por evidências na colonização
experimental do sobrenatural (Daston, 1994; Daston & Galison, 2007).
Não é a fotografia como tecnologia que Kardec porá em questão. Nem poderia. A química
elementar como disciplina científica caminhava muito bem, assim como o desenvolvimento
politécnico que gerara o daguerrótipo pouco mais de três décadas antes. O problema, diz Kardec,
são os americanos:

“Semelhante descoberta, caso fosse real, por certo teria imensas conseqüências e seria um
dos fatos de manifestações mais notáveis. Não obstante, exortamos a sua acolhida com prudente
reserva. Os americanos que, no dizer do articulista, nos ultrapassam em tantas coisas,
ensinaram que também nos distanciaram na invenção de mentiras.” (Kardec, op. cit.:135)

Como disse, a fotografia funcionava bem. O problema é que por vezes funcionava bem
demais. O artigo cuida de narrar uma história bastante anti-climática para esta pesquisa,
fundamentando uma sorte de ceticismo sobre a prática de fotografias espectrais. Fala de um
jovem Lorde que havia perdido sua irmã, amada, e que após anos de sofrimento traduzido em
kilômetros de viagens e anos de ausência, retornou à residência. Já um experiente fotógrafo,
decidiu fotografar o jazigo da irmã e ao revelar a fotogravura viu impressa a imagem de sua irmã,
tal como se estivera viva. Imaginando estar diante de um milagre, logo o dispositivo fotográfico
mostrou-se excessivamente eficaz. O artefato com excesso de reagentes químicos. A caixa-escura
que condiciona o modo pela qual a luz entra em contato com o papel-fotográfico tem as lentes
embebidas em uma gelatina de brometo de prata, cuja função é queimar na medida certa de forma
a se constituir como imagem a ser registrada no papel. Contudo, uma lente já utilizada e não

8
devidamente limpa conserva imagens de fotografias anteriores. O mesmo pode ser relatado a
partir da seguinte carta, remetida a um periódico dedicado à fotografia, o Le Progès
photographique:

“Ao Editor em Chefe


Do Le Progés photographique

Senhor,
Tendo adotado como passatempo a mania de preparar meus próprios discos de vidro com
gelatina de brometo de prata, também utilizei negativos de prata de retratos falhos, ou daqueles
com interesse insuficiente para preservá-los. Por vezes, mesmo após empregar os meios mais
enérgicos e os mais poderosos reagentes para limpar os discos velhos, em alguns deles encontrei
partes de paisagens e retratos... Diante da impossibilidade de remover os traços de retratos
velhos, decidi cobrir os discos de vidro com emulsão, convencido que as imagens parcamente
percebidas não comprometeriam impressões futuras. Quão errado estava! Ao invés de
permanecerem escondidas e invisíveis sob a nova cobertura, a imagem que resistiu a todo tipo
de limpeza apareceu muito mais claramente, junto a uma nova paisagem, de forma que meu
retrato parecesse uma gaiola de fantasmas!” (Chéroux, op.cit: 45).

A abertura do artigo de Kardec diz exatamente que para um conhecedor das atividades do
perispírito, tal artimanha anímica é virtualmente impossível. E isso, em tese, encerraria este
problema e, por conseguinte, impediria este trabalho. Bem, nem uma coisa, nem outra. O
falecimento de Kardec e a ascensão de Leymarie ao posto de editor da Revue Spirite, como
vimos, alterou a forma de trabalhar sua edição e assim, se permitiu uma mudança de tom. Menos
precavido e mais inflamado na exposição do espiritismo, assim como na busca de encravar o
kardecismo na vida parisiense, Leymarie absorve a fotografia espectral de outra forma. Se os
EUA tinham William Mumler, a França veio a ter Édouard Isidore Buguet.
Entre 1873 e 1874, a editoração de Leymarie publicou seis artigos a respeito de teses e
experimentações com fotografias espectrais, procurando nas bases do kardecismo pontes que
explicassem a manipulação da matéria por parte do perispírito desencarnado. Não são poucas as
passagens do Livro dos Espíritos de Kardec que falam sobre isso e que, dada a tradição francesa
nos debates sobre a conexão entre corpo e espírito por via da glândula pineal, alguns saltos
lógicos não são exatamente novidade. De certa forma, a investigação espírita está diretamente

9
inscrita na história da psicologia8. Mas o destaque dado pelas matérias é o nível da manipulação
perispiritual num momento em que a atividade científica chafurdava na lama química elementar,
em que as reações químicas se situavam no nível da molécula. E é neste nível da manipulação
perispiritual que o novo jogo da fotografia espectral toma forma.
As alterações no que significa um dado empírico, assim como as formas de apreensão do que
é visível dá novo fôlego às investigações psíquicas. E não são poucas as alterações. Se há algo
que o século XIX está recheado é de novas formas de tornar o invisível, visível. E a fotografia,
aliada à microscopia é somente esta. Arrisco em dizer que o surgimento de relatos de vida
microscópica em alguma forma participa do desafio que a fotografia espectral fornece.
O que parece animar a divulgação da fotografia de fantasmas, junto à reconhecida militância
de Leymarie junto ao socialismo científico dos seguidores de Fourier e Saint –Simon, é a
exploração da relação entre a definição do morto como ser-vivo junto à manipulação da matéria
por via da existência sutil perispiritual. Ora, é este princípio que opera a relação de possessão
entre o médium e o espírito. Apoiado na premissa do senso comum que fundamenta a
universalidade da constatação da vida inteligente extra-corpórea, e que vez e outra é chamada de
animismo, Kardec no Livro dos Médiuns se confronta com a explicação da ação dos espíritos
sobre a matéria (s/d:50-55). O fenômeno espírita, tal como sintetizado no capítulo em questão,
afirma que 1) a alma é o princípio inteligência de residência da moral; 2) o corpo é matéria
grosseira que abriga o espírito, matéria sutil e; 3) o perispírito é o envólucro fluido que conecta
corpo e espírito. O que importa é a definição de Kardec ao informar que a invisibilidade dos
Espíritos não é absoluta quando desencarnados. E é então que a hidráulica, assim como a
nascente mecânica dos fluidos toma posse do argumento:

“Perguntarão, talvez, como o Espírito, com a ajuda de uma matéria sutil, pode agir nos
corpos pesados e compactos, erguer mesas, etc. Seguramente não seria um homem de ciência
que poderia fazer semelhante objeção; porque, sem falarmos das propriedades desconhecidas
que pode ter este novo agente, não temos sob nossos olhos exemplos análogos? Não é nos gases
mais rarefeitos, nos fluidos imponderáveis que a indústria tem seus mais possantes motores?”
(op.cit.:54-55)
8
Vide Monroe (2008); Sharp (2006); Oppenheim (1985). Em seu livro Monroe escreve todo um capítulo
sobre o que chama multivalent self (op.cit: 199-250) no qual elementos da investigação psicológica são
cruzadas com a história do espiritismo francês. Já o livro de Lynn Sharp é mais explícito na conexão,
fornecendo um entrecruzamento mais focado nas doutrinas de metempsicose que tingem a paisagem das
pesquisas em psicologia. Janet Oppenheim, por sua vez faz uma pesquisa mais vigorosa ao reconstituir os
interesses de diversos agentes da empreitada espírita, fazendo da curta biografia de personagens suas redes
de relação. Os capítulos sobre cientistas envolvidos na pesquisa psíquica servem ao mesmo tempo de
panóptico e estudo de caso.

10
A codificação kardecista da experiência mediúnica segue este caminho. Lembremos que o
que está em questão, e isso nos permite voltar ao ambiente do processo, é a ação do perispírito,
ou mesmo de fantasmas na voz do presidente da corte, enquanto ente fotogravável. O poder de
agência do espírito, ou da pessoa não lhe é negado senão sob uma ou outra forma específica.
Kardec na passagem em que comenta a fotografia de Mumler suspeita, não que um fotógrafo
possa ser possuído no ato fotográfico. O que está em questão é o espírito como tal ser
fotogravável. E é disso que se trata o artigo do médium Céphas, publicado por Leymarie em
1874. E sua hipótese não deixa de ser interessante.
Céphas escreve que é tempo em que o esforço de aproximação junto aos fenômenos espíritos
está em bons termos. As experiências que a investigação espírita produzem atingiram um nível
em que a evidência de que a vida após a morte ocorre tal como na codificação kardecista está
diante dos olhos. Ora, isso porque a fotografia é um meio que está à disposição dos Espíritos. A
fotografia produz provas irrefutáveis da existência dos mesmos, escreveu Céphas.

“Les Esprits ont deux moyens à leur disposition lorsqu´ils veulent se rendre visibles à un
incarné : ou bien ils peuvent reconstituer le rayon lumineux, tel qui´ls l´avaient reçu, et le
projeter ainsi vers l´organe visuel de l´incarné où il va porter l´image de l`Esprit dont il émane :
ou bien, ils se content de lancer ce même rayon dans son périsprit, et alors il s´y combine, comme
il a éte dit ci-dessus et se mêlant aus autres atomes spiritualisés, aprés s´être dépouillé du
phosphore qui l´accompagnait, il leur apporte l´impression du fluide qu ´il vient quitter. »
(Leymaire, 1874 :127-128)

A diferença de tratamento deste artigo, em relação do artigo que mostramos escrito por
Allan Kardec é brutal. Aqui a fotografia espectral é tomada como evidência empírica consolidada
– o que não é um despropósito, dado o sem número de baterias de testes sofridos por fotógrafos-
médiuns nas mãos de cientistas e incrédulos. Até mesmo com sucesso significativo, como no
caso do próprio Édouard Buguet9. Contamos aqui dois níveis de invisibilidade (o espiritual e o
microscópico) articulados como campo evidenciário da doutrina espírita em ação. Mas apesar de
meu interesse em adentrar no universo técnico de produção destas fotos, assim como dos
desdobramentos do campo semântico da mediação tal como articulado no período, não é este o
ponto fundamental. Ainda não, e não neste estágio de pesquisa. É preciso dar um passo atrás e

9
Vide Monroe (2008:166-167).

11
perguntar sobre o que é uma fotografia, o que está em questão e porque este caso, o do processo,
foi enquadrado no artigo 405 do código penal.

Fotogravar e comprovação: o mundo objetivo, o mundo da vida


Na Pequena história da fotografia (1994 [1931]) de Walter Benjamim, encontra-se um jogo
que ressoa mais adiante, no pequeno ensaio chamado A doutrina da semelhança, de 1933 e que
permite que se desenhe que sorte de embaraço a fotografia propicia ao ser incorporada no arsenal
dos artefatos religiosos – para que, peço atenção ao desmembramento arte-fato. Seguindo
Benjamim temos o problema de como fixar as imagens de uma câmara obscura renascentista.
Seria esta a obsessão média dos artífices envolvidos com as tecnologias de fotogravura.

“A literatura recente deu-se conta da circunstância importante de que o apogeu da fotografia


– a época de Hill e Cameron, de Hugo e Nadar – ocorreu no primeiro decênio que precede sua
industrialização. Isso não significa que desde aquela época charlatães e aproveitadores não se
tivessem apoderado da nova técnica, com fins lucrativos; ao contrário, eles o fizeram
maciçamente. Porém tais atividades estavam mais próximos das artes de feira, com que a
fotografia até hoje tem afinidades, que da indústria.” (op.cit.:92)

O que desencadeia a partir dos escritos de Benjamim sobre a vida da imagem – termo tão
delicado quando remetido à noção de bildung – é o tema do sacrilégio da fotografia enquanto tal.
Trata-se de um artifício que ousa simular a percepção humana, diz o jornal da época Leipzig
Anzeiger, que viola a ascendência do homem, imagem e semelhança de Deus, transmissor
aurático de seus desígnios. As cartas de visita10 tal como fotografias humanas blasfemam contra a
sagrada aliança. Do homem só um homem poderia fazer imagem, doutrina das imagens que
reclama um princípio autoral em que a autoria opera como causa final ou causa eficiente.
Este princípio autoral, relata Benjamim, fora derrubado pela nova ordem do instrumento a
partir da qual se origina uma série de descobertas: fotografam-se estrelas, uma gota de leite, os
hieróglifos egípcios. Faz-se astronomia, com este instrumento. Física11. Estuda-se filologia. Da
fotografia se precipita uma série histórica que começa derrubando o complexo autoral que tinha
no uso do nankim, grafite e pincel, extensões da mão que toca o dedo de Deus a marca indelével

10
Na verdade, cartes de visite; termo francês que designa a pose de retrato praticado pelos fotógrafos,e
especialmente no que Benjamim considera ser l´Age d´Or da fotografia, a saber da aplicação do daguerrótipo
como main technology. Isso dura até por volta de 1870. Não por acaso, as cartes de visites são o protótipo de
fotografia espectral, a pose privilegiada pelos veículos espíritas kardecistas. Vide Monroe (2003, 2008).
11
Vide Daston & Galison (2007), sobre Sir Arthur Worthinghton e a apresentação imagética de problemas
de mecânica de fluidos.

12
da autoria primeira. De Pai para seus filhos, sua imagem e semelhança, promovendo imagens e
semelhanças dos seres de igual ou menor dignidade12. Com a fotografia a série autoral das
imagens é interrompida13. E é isto que me interessa nos estudos de Benjamim sobre arte,
semelhança e fotografia que, ainda mais importante, estão embebidos de vida parisiense que mal
comecei a investigar.
Não obstante a interrupção, a fotografia retira do plano arquetípico a definição formal do
invisível e faz aparecer o que outrora não estava lá, dispondo novos padrões de regularidade em
um novo modo de visão: a objetiva que, não por acaso é nome de uma curvatura de lente que
aproxima o que está demasiado distante na simulação perspectiva dentro da câmara escura. O que
é peculiar é que no arranjo que Walter Benjamim faz, o mesmo tribunal destituído é por fim
reconstituído como um parlamento secreto. Para dizer que é outra natureza que se precipita na
fotografia, ou outra ordem de determinações, Benjamim recorre à descrição da cadeia produtiva
da fotogravura, sua historicidade e à especificidade singular do produto final. Mas a interrupção
da série autoral se dá em outro lugar, pois o que rege a constituição das imagens é o plano do
inconsciente ótico, cuja participação no impulso da dissolução do sujeito transcendental é
decisiva. Não é o desenho e a reflexão modelar sobre a arquitetura da imagem que está em
questão, mas o aparelho como uma “câmera lenta” e “ampliação” ocorridas por um disparo, por
um movimento de um dedo, e não mais de meses de estudo e dedicação na longa série de
esforços que culminariam em um quadro, afresco ou coisa semelhante. A série interrompida
começa a agir em segredo, todavia, quando Benjamim fala sobre revelação fotográfica14, cuja
ambigüidade gostaria de ressaltar:

12
Vale notar ter sido a igualdade, embora a de valor geométrico um dos problemas da representação pictural
em arte, a partir da homogeneização do espaço que, na disposição no espaço virtual da tela passa a distribuir
unidades de medida homogêneas entre homens, em tese, fortemente diferenciados pela hierarquia cuja
medida extrema de manipulação pode ser abstraída de Las Meninas, de Velázquez, no qual o rei retratado
mal aparece no jogo de luz e sombra.
13
“(...) foi com esse conceito fetichista de arte, fundamentalmente antitécnico, que se debateram os teóricos
da fotografia durante quase cem anos, naturalmente sem chegar a qualquer resultado. Porque tentaram
justificar a fotografia diante do mesmo tribunal que ela havia derrubado.” (op.cit.:92)
14
Sobre o conceito de imagem latente ou imaginária, Philippe Dubois escreve as seguintes palavras: “Na
espera da “Revelação”, seu espírito sente-se tomado por temores e angústias – pouco importa se estes são
fundamentados ou puramente fantasmáticos: neste momento você ainda não pode sabê-los, você está
necessariamente na fantasia. E suas hesitações não são simplesmente técnicas (gênero: “Será que
enquadrei como devia? Será que não me mexi? Será que captei bem aquele momento expressivo de um
rosto? Será que a revelação vai dar certo, era que vou arranhar o negativo ou até destruí-lo por
acidente?”). São flutuações mais essenciais que comprometem a questão da identidade. Você se diz: a
imagem latente está de fato ali (que se leia a esse respeito muito perturbadora da “imagem fantasma”, de
Hervé Guibert)? Não houve de minha parte visão imaginária, sonho acordado? E principalmente: será que
o que vai ser revelado não será uma coisa bem diferente da que eu acreditava que seria?” (1999:91).

13
“(...) a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens
habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e significativas para encontrarem
um refúgio nos sonhos diurnos, e que agora, tornando-se grandes e formuláveis, mostram que a
diferença entre técnica e a magia é uma variável totalmente histórica.” (op.cit.:95)

O que surge aqui é uma espécie de posto de observação da religiosidade moderna que se
pauta na tensão entre o mágico e o religioso, de alguma forma ressonante com a chave maussiana.
Assim, o religioso é o plano no qual é possível estabelecer alguma conciliação entre os termos e
as pessoas, tecendo a trama da ordem social num contrato com valor de transcendência (Mauss,
2002). Já a magia, assumindo como ato eficaz (Mauss, 1909) visando fins de intervenção e efeito
ocorre de interromper a ordem ao atravessar caminhos na forma de um trickster ou um bug. Ao
sugerir haver entre a magia e a técnica apenas uma variável histórica, Benjamim afirma que o
tribunal de conciliação de outrora, que se pauta no princípio autoral de todas as coisas não tem
jurisprudência no âmbito da fotografia. Não há aí, contudo elementos suficientes para declarar
sua extinção. Ao contrário. O que temos por fim é a perturbação de uma ordem específica.
O único trecho da estenografia do processo que citei até agora diz respeito ao começo do
interrogatório de Buguet, o primeiro réu a ser inquirido. Não demora e o mesmo declara
abertamente que, por amor-próprio não havia mostrado o truque de sua atividade como médium-
fotógrafo. Mas se há algo que está em questão no processo, e não somente nele, é outra coisa.

Religião indefinida e a política do processo


O caminho pouco convencional que escolhi trilhar diz respeito sobre um certo nível, que me
parece ser tanto histórico-institucional quanto lógico. E evoca a absorção específica que a vida
moderna faz do universo religioso no que tange a experiência religiosa que passa a ser, senão
legislada, resolvida como assunto de polícia. Não obstante, como questão científica em que as
práticas envolvidas estão sob escrutínio da evidência e da comprovação, ressonando o antigo
projeto de avanço do conhecimento de um Francis Bacon, ou mesmo promovendo o progresso da
humanidade, na sintonia peculiar que o kardecismo tem com a teleologia comteana. Assim, na
investigação de Guillaume Lombard e nas atividades de Leymarie, a prática doutrinária
kardecista é política, e se resolve no-mundo. A definição do espírito como matéria sutil não é
outra coisa senão a desarticulação do sobrenatural com vistas em novos padrões de natureza,
sujeita a investigação empírica. E basta prosseguirmos mais alguns passos no processo para que
se torne visível o grau de desarticulação, e articulação subseqüente para o qual pretendo apontar,

14
a saber que na laicização opera um desentendimento prioritário da experiência religiosa,
justamente para que se possa tratá-la em termos objetivos e, mais, legisláveis.
Interrompi a narrativa do processo quando Buguet havia assumido que sua atividade não
senão fruto de um fotógrafo orgulhoso. O que ocorre é que no prosseguimento do interrogatório
do réu o juiz Millet se foca na tese de que as fotografias não tem nada de sobrenatural; que a
questão do sobrenatural nunca se põe, e que a fotografia espectral é retirada tal como se tira uma
foto ordinária. Nesse registro não imagino que o cotejo com a codificação kardecista esteja em
desacordo. O problema é que a ordem dos fenômenos morais onde o kardecismo situa a vida
religiosa participa fortemente do movimento das ciências naturais de colonização da esfera
preternatural que, por sua vez dissolve uma série de investigações de sobrenatureza. Aquilo que
parecia aos olhos uma monstruosidade ou mesmo um milagre não passava de ineficiência
humana, então perfectibilizada por instrumentos (Daston & Galison, 2007). Outra natureza a
partir de outra lógica da visibilização, mediada não por um humano, seja padre ou artista, mas por
uma câmara de condicionamento fotoquímico que faz o mundo se mostrar segundo leis que não
regem a percepção, falha, do corpo humano e sua matéria rude. Ver melhor implica em
aprimoramento: técnico ou moral.
O prosseguimento do processo é ainda mais instrutivo. Não tenho espaço ou tempo para
abordar os depoimentos de Leymarie e Firman, que adicionam outros termos que desviariam por
demais minha atenção – problemas de ordem política e descrição de procedimentos técnicos da
fotografia espectral, incluindo a possessão. Mas cabe mencionar aqueles que foram, segundo a
justiça francesa, os lesados pelo comércio de fotografias de parentes desencarnados, pois são os
mesmos que durante o processo se recusaram a aceitar os critérios de falsificação fornecidos pelo
juiz. E aqui é preciso anotar duas coisas: a primeira é que a justiça francesa só viria a absorver um
corpo pericial em 1880 (Phéline, 1985; Harris, 1991). A segunda, é que o juiz, dentro do tribunal
é a estância soberana. Independente do andamento do processo, é a sua decisão a voz que, ao
mesmo tempo em que aplica a lei, acaba por legislar15. Independente do depoimento dado, os
poderes do presidente do tribunal lhe outorgam definir o processo segundo suas próprias
diretrizes. Mas a raiz do desacordo, a dificuldade de conciliar os diferentes diagnósticos das
imagens fotografadas é patente. Aquilo que comprova a má-fé de Buguet e Leymarie perante a
justiça fora um serviço bem-feito segundo a clientela. E aí entramos no delicado terreno dos
poderes de um objeto falso. Afinal, é disso que o processo trata formalmente.

15
Ao inquirir a testemunha Maxwell, quarenta e sete anos, químico: “Vous êtes photographe; vous savez
bien que eê soleil ne peut agir que sur des corps; comment reproduirait-il des Esprits? Vou puvez vous
retirer ». (Leymarie, 1975 :44). Fotografia impossível pois o objeto é impossível.

15
O que entra em pauta no curto-circuito promovido pela confecção de objetos falsos,
ou postos severamente sob esta acusação é um tipo de semelhança perigosa, cuja articulação
embaraça a percepção ordinária dos saberes e dos poderes envolvidos. No caso, a semelhança
física dos modelos fotografados com parentes mortos de clientes, cujo deslize semiótico que
identifica ser um boneco ludibriador ou a manifestação do espírito correspondente à forma é
exatamente o ponto de desacordo. Sendo o risco mais evidente o de desfazer alguns dos sistemas
de transmissão regulares no estabelecimento das relações de dívida e crédito16, interrompendo
relações modelares entre pessoas, o segundo risco é o da transmissão de elementos de
reconhecimento e identificação estéticos do objeto falso. Em outras palavras, ao ocorrer
identificação de um similar radical de um objeto, a falsificação como magia/técnica põe em
questão alguns dos aspectos singularizantes e distintivos que, em tese, conferem ao regime de
trocas sua legitimidade por via da autenticidade dos termos de troca. Este regime, contudo,
facilmente se vincula à troça, à brincadeira e ao engodo.
Seguindo os ensinamentos de Mauss, o espírito da coisa dada na troca (Ensaio
sobre a dádiva; Mauss, 2003:197), quando falsa, é de um como se fosse de outro. Pensa-se
receber de A quando se recebe, em verdade, de B, o que altera as propriedades do objeto
recebido. Não por acaso a fotografia como técnica sofreu um tipo de acusação semelhante às
acusações sofridas pela fotografia espírita (Benjamim, 1996:92): a imagem humana divina,
aurática, não poderia ser capturada por um objeto produzido por um artifício mecânico. Somente
a inspiração poderia fazê-lo. No entanto, lá está a figura. E é o que pretende o médium-fotógrafo
que canaliza pessoalidade transmissível do corpo fluídico dos espíritos para a impregnação
imagética na fotografia, variação interessante para investigações sobre índices de agência de
pessoa (Gell, 1998). Conduz como verdade mundana àquilo que se oferece como inspiração,
como no caso dos milagres.
Michael Taussig (1993), ao assimilar problemas da doutrina sobre o similar e
questões sobre arte e reprodução, aponta desdobramentos sobre a relação entre o medium e o
semelhante que, dada eficácia da relação, um se converte no outro sem eliminar, contudo e
paradoxalmente, sua distinção. É ao distinguir a negociação econômica que estabelece um termo
médio entre dois objetos distintos a serem trocados, da imitação que oferece uma
correspondência na distinção17 entre os objetos, que vemos o risco que a falsificação oferece às

16
Que pode ser tomado como sinônimo de crença; vide Benveniste, (1995:171-178), Pouillon, (1979).
17
Taussig (1993:92-93)

16
formas de conciliação que, em tese, vigem nessas diferenças fixadas em códigos18. Há na
possibilidade de indistinção de alguns dos termos de relação uma economia política dos sentidos
que aponta para a ambigüidade das imagens (transmissoras de duas fontes de agência ao mesmo
tempo: do falsificador e do Espírito) e implicam sujeitos e objetos entre si, pondo em perigo sua
estabilidade e arriscando as relações e termos de troca. É aí que Buguet figura exemplarmente,
atendendo às duas requisições ao mesmo tempo, dos kardecistas e dos agentes do Estado, mesmo
quando desmascarado.
Prosseguindo com Mauss, ao diferenciar o ato jurídico do rito mágico atingimos o que
interessa, pois o primeiro, consoante à vida religiosa, se atém à conciliação próprias à regulação
legislativa, o que ambos, o estado policial e a doutrina espírita, pretendem dispor. O ato mágico, a
contrapelo, visa produzir efeitos, nem sempre respeitando os interditos constituintes da vida sob a
mesma conciliação. Não é sem surpresa que, na sutil identificação que proponho entre a figura do
mágico/técnico e a do falsário, eu leio na teoria maussiana uma nova definição: o mágico é o
senhor de sua possessão (2003:76). Se num plano da sociologia comparativa Mauss aponta para
o caminho dos espíritos possessores, sua pessoa implicada, o caso da posse burguesa e a sua
relação com o trabalho autoral19 levam a uma outra direção.
O falsário é, aqui, o senhor da possessão, pois consegue não só possuir objetos, pela aquisição
por troca mercantil, como consegue possuir a agência de outrem, o que configura como princípio
de seu delito na falsificação de documentos ou de assinaturas, por exemplo, mas o faz igualmente
na psicografia uma vez que não é bem a pessoa morta que escreve, mas é como se fosse, dado que
mesmo que possuindo o corpo de quem escreve ela está morta. Ele rouba índices de agência, ou é
tomado por eles, (Gell, 1998) ao assumir a autoria de outra pessoa – física, espírita ou jurídica -
ao marcar o objeto falsificado. Em outros casos, elimina os índices relevantes para sua própria
identificação como autor, roubando sua própria autoria, elemento fundamental para a articulação
em casos processuais das formas públicas de verificação e controle.
De alguma forma esta correlação é autorizada em profundidade pela seguinte passagem de
Mauss que afirma que, “enquanto mágico20, ele não é ele próprio. Quando reflete sobre seu
estado, chega a dizer-se que seu poder mágico lhe é alheio, provém de outra parte, ele sendo
apenas o depositário. Ora, sem poder, sua ciência de indivíduo é vã.” (op.cit.:71). Não
surpreendente, a definição de falsário como mágico ou técnico também serve, aos poucos, para o

18
.“Os ritos mágicos e a magia como um todo, são, em primeiro lugar, fatos de tradição. Atos que não se
repetem não são mágicos” (Mauss & Hubert, op.cit: 55).
19
Vide Freire, (2008).
20
Que aqui se lê também “falsário”.

17
médium possuído, que se encontram numa mesma tensão intermediária, entre dois mundos, entre
duas formas de ordem, e nunca nem um, nem outro.

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