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O INIMAGINÁVEL:

LEITURAS DOS CORPOS E DAS SUAS IMAGENS


REFLEXÕES EM TORNO DE QUATRO IMAGENS DISTANTES *

jorge leandro rosa

1 Durante muito tempo, as imagens tiveram uma autoridade paradoxal que


derivava da sua menoridade na constituição da vida. A imagem, em si,
não provinha da vida, o que lhe dava a fulgurância da presença enigmática
do representado. A imagem nunca estava dotada de ligação óbvia entre a
sua dimensão sensível e as operações de inteligibilidade que ela motivava,
mas o que ela oferecia era a possibilidade do salto para aquilo que vinha à
presença testemunhada, aquilo que permitia uma relação discursiva com
o próprio corpo. Em suma: a imagem dava-nos o sentimento da presença
constante do sentido na própria vida. A imagem estabilizava o sentimento
de si e essa era a sua virtus, a sua virtualidade essencial.
Mas a imagem era também, paradoxalmente, a possibilidade de
instabilizar essa mesma vida a partir de um ponto ixo. Aí, a vida volteava
em torno de um ponto que, sendo aparentemente pictórico, se tornava um
concentrado do ausente. Este aspecto, frequentemente na sombra, relem-
brava-nos, em certos momentos, o que há de inquietante na imagem.
A imagem aparecia, então, como aquilo que é desmentido pelo toque, pela
prova táctil de que cada contacto é já prova do irreconhecível.
A imagem ligava-se à vida suspeitada dos mortos. Nesse sentido, toda
a imagem era imaginária, toda a imagem apresentava um «lado de lá», não
como aquilo que nega a vida, mas antes como prolongamento enigmático
desta. A imagem estava entre nós como pequena prova de que a vida se
escoa para lugares mais enigmáticos do que a morte, que a vida se esconde
por detrás de uma suspensão icónica que seria a verdadeira morada dos
mortos. A imagem era o sinal de uma vida suspeitada, não da vida em si,
da vida que se apresenta como óbvia e determinada pelos acontecimentos.
A imagem era a possibilidade do regresso. Daí a sua ligação aos
mortos: que estes voltassem, que a sua vida suspeitada incluísse essa possi-
bilidade, era isso que as imagens nos lembravam. Observar uma imagem
era, então, lançar-se numa jornada de regresso, sem se saber para onde.
———————
* Versão modiicada de uma comunicação apresentada no Ciclo de conferências «Aproximações à
biopolítica», realizada no dia 15 de Março de 2008. Esta tinha o título «Os corpos inimagináveis».

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«Imagina-te num corpo». Quer dizer: ver o seu corpo é praticá-lo
enquanto imagem, é exercitar o «ser-enquanto-imagem» do corpo. Todo
e qualquer corpo recusa a presença simples das coisas que são puramente
vivas, quer dizer, que estão inseridas numa presença que seja pura carne.
Contudo a carne é, talvez, o pesadelo fundamental da nossa cultura: está
omnipresente mas é quase indetectável. A dimensão carnal interpõe-se
entre a imagem e o corpo, o que provoca um estremecimento simultâneo
da imagem e do eu, uma dúvida sobre a verdadeira situação do vivo.
Hipótese que aqui avançamos: o Holocausto terá sido uma maqui-
naria de marcação da omnipresença do carnal, uma espécie de chuva
política e escatológica que, ao avançar no centro e leste da Europa, avivava
a percepção da potência biológica, aniquilando, ao mesmo tempo, a velha
cultura imagética do corpo. Como uma chuva radioactiva que se deposita
na paisagem, há uma cinza viva que tudo recobre. Semeava-se, progres-
sivamente, uma cultura onde a carne passara a ser a combustão em que
ardiam as esperanças de que o regresso, essa ligação idealizada entre corpo
e imagem, seria ainda uma potencialidade estética e uma força política.
Permanece, portanto, a dúvida de que esse processo tenha sido encerrado
em 1945. E permanece, não tanto nos campos do ético ou do político, mas
nas práticas da imagem que são já sinal, como dirá Roberto Esposito, da
«experiência cada vez mais intensa da indistinção entre o político e a vida».1

2 Digamo-lo claramente: há um conhecimento possível do Holocausto se


por tal entendermos que alguns dos seus subsistemas podem ser reconsti-
tuídos. A rede de transporte, a triagem à chegada ao campo, as câmaras de
gás e os crematórios, as estruturas psicológicas e sociais da sobrevivência,
por exemplo, oferecem-se a esse tipo de análise. Mas o Holocausto não é
um mundo de coisas, é antes um mundo de acontecimentos. De um tipo
de acontecimento que não possui, na sua vinda, na sua aproximação, nada
em comum com a nossa experiência do acontecimento. Todo o juízo sobre
estes acontecimentos é simultaneamente necessário e absurdo.
O que é o acontecimento no Holocausto? Tentar responder a esta
pergunta coloca-nos no embaraço de começarmos a falar de uma escala
abstracta do «acontecido», como se se compreendesse a natureza deste
acontecimento a partir da sua ordem de grandeza. Será preciso dizer que
essa escala é o que melhor favorece as condições da sua negação? Sabemos
hoje bastante sobre o projecto do extermínio do povo judeu, sobre as fases
da sua planiicação, sobre as modiicações do processo, a sua adaptação a
uma escala que não tinha sido plenamente compreendida pelos próprios
carrascos. Esses são aspectos do acontecimento previsto, projectado e
executado. Nessa perspectiva, o acontecimento seria aqui objecto de um
discurso que tomasse em conta, em primeiro lugar, coisas organizacionais
———————
1 esposito (2004), p. xv.

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e sistémicas e, em segundo, coisas éticas e intersubjectivas. Queremos,
então, partir, não desse sentido do acontecimento já decorrido, mas antes
do acontecimento que só ocorreu porque, no seu interior, o Holocausto
abriu clareiras libertas de toda a previsão, de toda a espera, de toda a apre-
ensão e refractárias a todo o sentido retrospectivo.
Na temporalidade do acontecimento, podemos ser afectados porque
este se faz anunciar, porque dele temos sinais prévios ou porque se
desdobra suicientemente para que possamos, a partir de uma conlu-
ência de sinais, ter subitamente a percepção, a partir do seu interior, do
que acontece. Mas também podemos, após um acontecimento fulgurante
ou demasiado traumático, constituí-lo e experimentá-lo retrospectiva-
mente, ou seja, viver o acontecimento temporalizado a partir do passado.
Em qualquer dos casos, a temporalidade do acontecimento é paradoxal: o
acontecimento é o que amadurece, psicológica ou historicamente, mas,
ao mesmo tempo, é o que aparece de súbito, lançando-nos na perturbação.
O acontecimento não está inteiro no mundo (o Holocausto nunca o estará),
mas também não se situa fora deste. A sua abertura abre um lugar sem
situação. O Holocausto faz-se holocausto de todos os dias.
Repugna-nos, sabemo-lo, retirar algum sentido exemplar do Holo-
causto, algum sentido que o coloque numa escala comparativa, que o rela-
tivize. Mas, a partir de um plano fenomenológico, que não é o do sentido
relexivo, mas o da constituição da experiência, o Holocausto é um aconte-
cimento que expõe o próprio acontecer na sua regularidade mais nua:
a O acontecimento é, aí, uma mudança projectada, mas tudo nele se imobi-
liza porque a única mudança é o próprio acontecer, que tudo absorve.
b O acontecimento constitui uma novidade, mas, a partir do seu interior, o
novo dilui-se.
c O acontecimento é possível, mas as condições da sua possibilidade
parecem nunca ter sido reunidas.
d O acontecimento dá-se num mundo, mas, ao dar-se, o mundo cessa
naquilo que se abre aí, e que não é já o mundo.

Estes são traços do Holocausto, mas não na medida em que visem uma
qualquer precisão da cena da Shoah ou forneçam uma qualquer interpre-
tação a partir de um hipotético distanciamento. Vejamos: o cerne do que
acontece aí tem a ver com a entrada num mundo de extermínio incomen-
surável que seria errado ler como o im do mundo, já que nunca se mostra
escatologicamente caracterizado. Na Shoah, tudo o que sustenta o mundo
é destruído, mas nada inaliza esse mundo, nada aponta uma escatologia.
O mundo transforma-se em despojo, deixa de sustentar qualquer partici-
pação, em sentido clássico, nos acontecimentos. Libertados os campos, há
aí prisioneiros vivos, mas não há sobreviventes do que aconteceu. Este acon-
tecimento liberta-se de toda a crença interna de que ainda hajam sujeitos do

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Holocausto, quer aqueles que voltariam a lançar-se como Dasein no mundo,
justiceiros da História, quer aqueles que icam para, em voz apenas, enun-
ciar o im, justiceiros do Celeste. Libertados os campos, o mundo liberta-se
da caracterização daqueles que a ele pretendem voltar como dotados de
uma intencionalidade que lhe seja anterior e adquirida nesse não mundo,
nesse «imundo». Em última análise, o Holocausto enterra o mundo exterior
dentro de si, convoca-o no pressuposto da alienação irrevogável de tudo o
que é exterior. Desta forma, o Holocausto é a imagem perfeita. A imagem a
que nada pode escapar, o sol negro da modernidade.
Todos, algozes e vítimas, se dedicavam, no período da húbris inal, a
enterrar os testemunhos possíveis. As fotograias do Sonderkommando2
pertencem, precisamente, a esse excesso no próprio reino do exces-
sivo. A pressão faz-se sentir com o recuo da frente leste e com a chegada
maciça dos judeus húngaros. Nesse período, todos parecem produzir
uma Auschwitz ctónica, enterrada, mas sempre a querer vir à superfície.
O facto de que uns o façam para ocultar os seus crimes e os outros para os
denunciar não é o mais signiicativo: a convicção de que o mundo exterior
nunca poderia acreditar ou compreender o que ali sucedia é partilhada por
ambos os grupos. Nesse sentido, a divisa colocada no acesso ao campo «o
trabalho liberta» não é apenas cínica: todo o campo converge nessa liber-
tação da referencialidade da experiência.
O trabalho é imenso, organizado e sistémico, simultaneamente
weberiano e sadiano. O que esse trabalho faz é devorar o seu material, a sua
techné e o seu télos. Talvez aqui, e não tanto numa suposta adesão espiritual
ao Nazismo, o pensamento heideggeriano encontre a sua concretização:
este é um mundo onde trabalhar signiica abolir toda a distinção entre a
teoria e a prática. Como lembra Michel Henry, teoria signiica «ver a coisa
no seu aparecer, ver o próprio aparecer»3. Ora a produção do campo, a sua
prática, não visa uma divergência criativa entre prática e teoria, mas cons-
titui antes a in-produtiva desaparição do mundo manifestada através do
apagamento para o mundo daqueles que nele entram. Mas de que mundo
falamos? Não se substitui o campo ao mundo? O campo é um mundo em
perda de existências, «estado de excepção», como é bem conhecido.
———————
2 Em Agosto de 1944, alguns membros do Sonderkommando, judeus constituídos em equipas
especiais encarregadas de manusear os corpos, os pertences, os dejectos e o sangue dos
executados, conseguem fotografar clandestinamente algumas fases do seu trabalho. Estas
fotograias são extremamente raras e as que sobreviveram resumem-se, praticamente, às
quatro aqui apresentadas. São imagens roubadas ao medo, ao escrúpulo e à urgência. Apa-
rentemente, tal bastou para que fossem quase sempre consideradas como documentalmente
inúteis. ¶ Quando, em 2000, o ilósofo Georges Didi-Huberman publica um texto sobre estas
imagens e, sobretudo, sobre a sua natureza de imagens, com um duplo regime histórico
e estético, abre-se imediatamente uma polémica com autores como Gérard Wajcman e
Elisabeth Pagnoux. Em 2003, surgirá um livro híbrido de Didi-Huberman, simultaneamente
relexivo e de ataque, intitulado Images Malgré Tout.
3 henry, Michel (1975), O Conceito de Ser enquanto produção, in Phainomenon, 13, p. 194.

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Mas isso não explica por que razão o campo se transforma, no último
ano do seu funcionamento, num lugar prioritário na rede de comunicações
alemã, um destino prioritário para os caminhos-de-ferro do Reich. O campo
é como um poço que serve quase toda a Europa, diriam alguns que é como
o seu buraco negro, se quiséssemos dar-lhe algo do enigma prestigioso da
cosmologia. Ora, nada há aí de enigmático: trata-se apenas de evacuação.
O campo é a Europa que evacua. Fenómeno pouco visível, mas que impõe
a sua força a toda a nova Europa. «O campo devora corpos?», perguntarí-
amos, se ainda estivéssemos na lógica mítico-mágica da manducação. Não
exactamente: o campo é, corporalmente, a função escatológica da Europa.
Ele fecha-se naquilo que é um sinal da sua genealogia moderna ou, como
escreve Bauman, «é tanto um produto como um fracasso»4 da Modernidade.

3 Situemo-nos, por alguns momentos, neste lugar preciso: na interrogação


sobre o acontecimento próprio ao campo de extermínio, suspendendo
qualquer outro juízo sobre o pensamento e a praxis do extermínio. Sendo
aquilo que se derrama sobre um ente, o acontecimento não pode ser
reconstituído. Podemos, contudo, perceber melhor a singularidade da
aproximação que é o acontecimento na estrutura-mundo que foi o campo
de extermínio. O que é o acontecimento? De um modo simples, trata-se de
uma reconiguração impessoal do ente e do mundo que abre uma falha nas
possibilidades que até aí se apresentavam. No acontecimento, o decisivo
não é o que aparece, mas antes o que desaparece, o que é eliminado e que só
faz sentido no instante em que um «eu» deixa de contar com «isso» para a
sua auto-interpretação. Neste sentido, não há holocausto enquanto experi-
ência de seis milhões de seres. Não há holocausto em geral ou axiomatica-
mente tomado. E se julgamos possível realizar um exercício de observação
capaz de recorrer ao trabalho supletivo do imaginário, diremos que um tal
trabalho está necessariamente destinado a fracassar se não tomar em conta
que uma tal observação deve aceder em regime de perda, e não de aquisição,
a um tal conjunto de imagens. Perante estes corpos, tão diferentes daqueles
captados na libertação do campo como despojos indiciadores, torna-se
necessário um olhar em perda, um olhar capaz de seguir as dinâmicas da
carne ali visíveis, que constantemente impedem a síntese do corpo.
Sendo a História um terreno necessário, mas insuiciente e heuristica-
mente frágil no nosso tempo, o Holocausto é um acontecimento à beira da
não-existência e, portanto, sempre um acontecimento cuja permanência
entre nós exige um trabalho. Mais difícil será determinar a natureza desse
trabalho e a quem ele incumbe, inseri-lo na grelha tardo-moderna dos
actos de signiicação. A arte não está na condição ideal, já que ela, sendo
hoje destruição da tópica da memória, parte daí para a construção de
———————
4 esposito (2004), p. xv.

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Cremação de corpos nas fossas de incineração face à câmara de gás do crematório V de Auschwitz,
Agosto de 1944, Oswiecim, Museu de Estado de Auschwitz-Birkenau, negativo 280. Por membro
anónimo do Sonderkommando de Auschwitz.

adequações protésicas, ou seja, para a remediação e mesmo a ultrapas-


sagem do corpo-que-é-memória em favor de um corpo generativo, corpo
vindo de todo o lado enquanto corpo que inventa a sua iliação.
Em nossa opinião, o corpo generativo e virtualizado é um obstáculo
à compreensão do que é um corpo em situação de extermínio. No Holo-
causto, os corpos são destruídos porque se recusaram ou não puderam
reinventar o corpo. Dito de outro modo, a salvação biopolítica consistiria
em dar-se um outro nome um pouco mais cedo, dar-se um outro corpo que
izesse esquecer a carne. Sabemo-lo bem, por exemplo, através da relexão
de um Emil Fackenheim: o carácter único do Holocausto prende-se com
o facto da maioria das suas vítimas serem homens e mulheres modernos.
Homens e mulheres que foram expostos em algo que não chega neles
a fazer um corpo, muito menos uma identidade, mas que é certamente
da ordem do que se traz oculto: a carne. Teria bastado que muitos aban-
donassem o nome judaico quatro gerações antes para que pudessem ter
prosseguido as suas vidas no Reich.
Nesse contexto, a utilização artística do material remanescente da
Shoah abre uma iliação impensada com o extermínio, não no sentido,
tão glosado, de uma profanação da sacralidade dessa memória, mas antes
porque o que importa é trabalhar o Holocausto a partir da constante issu-
ração da representação que este já era e que estas fotograias assinalam.
Para o campo partiram corpos, em grande parte ainda transportados pela
icção do nome. Nestas fotograias, o que vemos já não são exactamente

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Cremação de corpos nas fossas de incineração face à câmara de gás do crematório V de Auschwitz,
Agosto de 1944, Oswiecim, Museu de Estado de Auschwitz-Birkenau, negativos 281. Por membro
anónimo do Sonderkommando de Auschwitz.

esses corpos: vemos o que se move a partir do processo de despojamento.


Vemos, e isso é extremamente raro, o io que leva do corpo enquanto
experiência de si à carne enquanto surpresa de si. Nenhum gesto artístico
pode surpreender este puro acontecer que não é uma metamorfose nem
uma relação de causa e efeito, mas uma linha destacada milagrosamente a
partir da eclosão da violência. A arte pode, é certo, desenhar-lhe o vestígio,
mas uma arte do traço é o que mais escasseia no nosso tempo. Aqui, o traço
é, talvez, mais importante que o testemunho. O testemunho abre uma
coincidência provisória para aquilo que ele não é, uma coincidência entre
o vivido e o enunciado, por si mesma insustentável na medida em que o
impossível readquire os seus direitos quase de imediato (relembro que
Agamben deiniu Auschwitz como a experiência em que «o impossível é
introduzido pela força no real»5).
O que aqui está em questão não são as imagens, nem, propriamente, os
corpos. A pergunta, então, será: o que podemos fazer que não passe apenas
pela alternativa entre o relato de uma rememoração que fala in absentia
em relação a um corpo e o estudo de imagens tomadas como testemunho
in praesentia? Na verdade, o ilme de Lanzman, Shoah, opta pela primeira
opção, propondo uma aproximação na ausência e pertencendo à voz o poder
de assinalar essa ausência na própria recusa de uma presença (a imagem
é presença) que seria sempre imprópria. Ao contrário, e como segunda
———————
5 agamben (1998), p. 194.

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Mulheres conduzidas para a câmara de gás do crematório V de Auschwitz, Agosto de 1944, Oswiecim,
Museu de Estado de Auschwitz-Birkenau, negativo 282. Por membro anónimo do Sonderkommando de
Auschwitz.

opção, sabemos que grande parte do trabalho documental e histórico


sobre o material ilmado e fotografado após a libertação dos campos se
dedicou a expurgar estes materiais das suas imperfeições. Do seu silêncio,
acrescentaremos. Isto é particularmente verdade quando nos referimos às
quatro fotograias captadas por Alex (nome suposto) naquele Verão de 1944.
Reenquadradas, retocadas sucessivamente ao longo do tempo, elas foram
sendo retiradas a qualquer coisa que nelas não é um simples olhar da vítima
apostada em dar-lhes um uso instrumental. Estas são imagens da evidência,
é necessário dizê-lo, mas captadas na vertigem que faz enigmático aquilo que
se apresenta evidente em sentido vital e moral. Torna-se, então, essencial que
o enigma nunca abandone a violência do seu encontro com a evidência. Este
é um domínio directamente exposto ao olhar pornográico. Como escreveu
Frederic Jameson, «o que é visual é essencialmente pornográico, o que signi-
ica que está destinado a ser controlado por um fascínio em bruto». Ora, todo
o fascínio que se manifesta nas fotograias daquele dia é inteiramente oftál-
mico, quer dizer, ligado à luz que invade a cena, melhor dizendo, próprio
da luz e não submetido a esta. Nada há, aí, da intensiicação dramática que
o enquadramento permite: estes corpos não se destacam dos elementos
que aí relectem a luz, a refractam, a desviam. O trabalho decorre aí de um
modo fenomenalmente desdobrado, isento de qualquer ênfase. As iguras
que correm fazem-no na relação complexa com o mundo em que se situam.
Sabemos que foram enganosamente informadas que devem dirigir-se para
um duche. Mas o que acontece liga-se àqueles corpos por linhas muito mais
complexas do que qualquer consideração ética poderia relectir.
E há a questão daquilo que podemos designar como a paisagem.
Estes corpos (e o corpo do fotógrafo também) perdem-se na paisagem por
diversas razões. Perder-se na paisagem é perder a própria qualidade da
presença, já que a paisagem é presença sem nunca ser outra coisa, senão

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Árvores perto do crematório V de Auschwitz, Agosto de 1944, Oswiecim, Museu de Estado de
Auschwitz-Birkenau, negativo 283. Por membro anónimo do Sonderkommando de Auschwitz.

no artifício da representação. Ora, o que caracteriza um corpo é que este é


sempre qualquer coisa sem nunca chegar a estar puramente presente.
Só a carne pode ser como a paisagem, só a carne pode chegar como a
paisagem ao mundo sem nunca nele ter estado verdadeiramente e sem
nele marcar um lugar preciso. Sem qualquer pretensão sobre o sentido, a
paisagem cresce tanto mais na consciência pictórica europeia quanto esta
deixa de ser uma consciência enraizada naquilo que faz sentido. Como
lembra Jean-Luc Nancy, a paisagem «é o lugar da estranheza e da desapa-
rição dos deuses»6. Há paisagens com horizonte, que são aquelas que reen-
viam para a imprecisão ininita do próprio limite do olhar, e há paisagens
sem horizonte, mas que o substituem por linhas de fumo, por grupos de
árvores, pela luz solar em frente do observador. Temo-las aqui. Essas são
as paisagens que, de alguma forma, izeram o mundo inútil, já que toda a
observação a paisagística no sentido de ser injustiicável.
Este tipo de paisagem integra as quatro fotograias realizadas em
Auschwitz. Antes do mais visavam seres humanos, vivos e mortos. Contudo,
tudo o que ali aparecia eram os processos fundamentais dos corpos em
geral: o peso, a cinética. Finalmente, o que as imagens mostram é a paisagem
que toma conta de tudo. Tal signiica que estas imagens não possuem uma
pré-concepção do ininito, que é, paradoxalmente, aquilo que aí vemos.
Sabemos alguma coisa sobre as motivações que levaram alguns membros do
Sonderkommando a tomar o risco mortal de efectuarem estas fotograias.
Mas há nelas um traço do ininito que não pode ter sido esperado
mas que lá está. E esse ininito pertence ao horror que sabemos lá estar
e à sua modernidade. Mas este ininito, não-conceptual nem teológico,
é o que se transforma à frente do nosso olhar através da perda. E a perda
———————
6 nancy (2003), p. 117.

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é o que cresce pela força da nossa interpelação. Os topoi da paisagem
dominam as imagens, mas exactamente como o traço que é lá deixado sem
intenção. Ou melhor, que «é intencionalmente rasurado», como é próprio
da paisagem na pintura moderna. Paisagem e ausência encontram a sua
ininita reverberação. Algo de uma ética levinasiana ecoa aqui: o traço
faz-se notar como perturbação da ordem do mundo. Perturbação que nos
reenvia para um passado inalcançável onde nada disto teria sido possível.
Sem essa procedência do «absolutamente ausente», que é a solicitação
pós-teológica do Holocausto inscrita no acontecer, seríamos levados a
concordar com Wajcman quando este diz que «toda a imagem é airmativa
e não pode mostrar o ausente». Contudo, há lacunas do corpo que se abrem
na imagem. Sucintamente, há isso no corpo que recusa ser imagem, e há
êxtases do corpo que tendem para a imagem.
Esse pressuposto exigiria que aqui efectuássemos aqui uma operação
complexa em torno da cisão soma / eikon, para a qual não temos o espaço
necessário. Diremos simplesmente que estes corpos só chegam a nós
através de imagens sobreviventes, eles que são quase nada, vultos anónimos,
rasurados, fora de enquadramento, fantasmáticos. Estas imagens, após
um longo silenciamento, têm vindo a adquirir um estatuto nas ambíguas
querelas éticas e estéticas do nosso tempo, assim como, acima de tudo, no
iconoclasmo tardo-moderno.
A tradição iconoclástica temia a sensualidade e a carnalidade das
imagens. Temia-se, ainal, que a encarnação se ixasse em janelas pictó-
ricas que passariam a ixar-nos com um olhar feito de carne, dessa carne
do mundo tão mais difícil de circunscrever que a do corpo. Se o olho vê o
mundo, é o olho que é ameaçado em primeiro lugar pelo mundo. Sendo o
olho um dispositivo orgânico da distância, ele é, contudo, sede de uma ferida
e, consequentemente, operador de tentativas de sutura da falha, sede, ainal
de contas, da «pulsão escópica». Estas imagens revestem-se desse qualidade
de um relance que nos sobressalta, só comparável à visão do sexo materno
naquilo que este reveste de inquietante cruzamento entre consciência de si
e acesso ao mundo num corpo inconsciente. A comparação é violenta, bem
sabemos, mas impõe-se, precisamente, porque, desde o Holocausto, adqui-
rimos a consciência de que partes do mundo se fecharam para sempre a um
olhar directo, curioso, simplesmente humano, simplesmente ético.
Os iconoclastas do Holocausto, que falam a partir de mundo de imagens,
só podem agora exercer a sua interdição sobre imagens que eles próprios
colocam no estado de excepção. As quatro fotograias do Sonderkommando,
sendo imagens extremas, viram a sua excepcionalidade aprofundar-se desde
o dia em que saíram de Auschwitz-Birkenau. Lanzman e outros decretaram
que «não há imagens da Shoah». O que querem dizer, já que conhecem estes
documentos, é que «não há imagem verdadeira da Shoah». O que querem
dizer é que não há imagem nenhuma que possa desfazer esse nó terrível

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entre o mal radical e a mais desconcertante banalidade. Didi-Huberman, por
seu lado, é inutilmente professoral quando qualiica de trivialidade a air-
mação de que «nem todo o real é solúvel na imagem»7. Enquanto Lanzman
e outros absolutizam o real, Didi-Huberman absolutiza o acesso noético ao
Holocausto, o acto de consciência dirigido a este.

4 Os corpos que vemos nessa sequência de fotograias estão expostos.


Expostos, certamente, à iniquidade, ao mal. Essa exposição, de que temos
um conhecimento prévio, um pré-conceito, não podemos compreendê-la
inteiramente, o que não signiica que não saibamos o que é o iníquo ou
que não tenhamos dele uma imagética. Aliás, «saber» do mal, atribuir-
lhe iguras, imaginá-lo, colá-lo a uma ideologia ou a um discurso preciso,
parece-nos ser aquilo que se interpõe entre nós e a experiência do mal:
quando o Holocausto ocupou um lugar na nossa percepção histórica, esse
lugar, embora espectacular, era necessariamente magro e caricatural,
asixiado por um excesso de igurações que enxameavam a consciência
daqueles que conheceram a guerra e o século xx, mas não os campos.
Este regime derivado do imaginário, esta questão da iguração do que
ocorreu na Shoah, é o problema que tem acompanhado todo o projecto da
sua representação nos últimos 63 anos. Não que não possamos construir
icções que nos parecem razoavelmente adequadas ou úteis: apenas não
podemos imaginar o que é ter o corpo circunscrito pela espacialidade do
mal, estar em corpo num espaço que é fenomenologicamente malévolo.
Dito de outro modo, num mundo dedicado ao mal como é o campo de
extermínio, nem tudo é o mal. O mal é uma categoria ontológica apenas no
domínio do horizonte. Se não o fosse, se se apresentasse facticamente aqui
e agora, a arquitectura do mundo teria sempre uma topograia que o assi-
nalasse. Ora, essa topograia prima pela ausência. Quando o campo se fecha
em torno dos condenados, existe o estupor, a incompreensão, que é sempre
um aviso tardio e inútil, que é sempre sinal da constitutiva impreparação
para o mal. O mal é a antecipação de fenómenos que chegam sempre tarde
e que, consequentemente, não têm um horizonte de resolução. Foi Kafka
quem nos disse para não «deixarmos o mal convencer-nos de que seja
possível ocultar-lhe alguma coisa»8. O mal essa estrutura de desocultação
escancarada, um lugar despojado do segredo. A chave do funcionamento
do campo, que vislumbramos nestas fotograias, e que Hannah Arendt
designou como «banalidade do mal», reside, ainal, num alívio terrível
que aí acompanha cada gesto: no campo, o esplendor da vida (vejam-se as
fotograias das mulheres e as árvores em fundo) reaparece quando já não
pode ser invocado, quando já não há forças para o desejo, quando a vida,
enquanto contínua expulsão do paraíso, parece ter sido consumada e o que
———————
7 didi-huberman (2003), Images Malgré Tout, p. 78.
8 kafka, Franz, The Zürau Aphorisms, p. 19.

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ica de um tal processo é o esplendor incompreensível das coisas. Os muros
do campo e o arame farpado não conservam o esplendor das coisas no seu
exterior. Pelo contrário: é lá dentro que ele se manifesta, brutalmente.
Com a brutalidade das coisas que não precisam de ser chamadas, que não
reconhecem nenhum nome. O negativo daquilo que Kafka disse ser «o
esplendor da vida que nos cerca sempre e completamente, mas oculto atrás
da superfície, invisível, longínquo. Se o chamarmos pelo nome adequado,
ele virá». No campo, e estas fotograias mostram-no, a vida está inteira,
mas sem nome a que possa responder.
O campo de extermínio, enquanto experiência vivida, tem, assim, essa
singular capacidade de minar por dentro toda a narrativa do Holocausto
até hoje tentada. O processo de emergência das narrativas sobre o Holo-
causto não será tão diferente de outros processos eventualmente próximos.
Na verdade, ele parece ser acompanhado, como se de uma face obscura se
tratasse, pela questão da representação do Gulag, menos enraizada meta-
isicamente, mas profundamente cínica e complexa. Jorge Semprun, no
prefácio que escreveu para a recolha de fotograias do Gulag publicada
por Tomasz Kizny, escreve explicitamente: «Parece-me que a comparação
objectiva, documentalmente fundada, entre os dois sistemas totalitá-
rios, será a última etapa que nos resta percorrer a im de pormos um im
à cegueira ocidental perante o Gulag»9. A polémica em torno do texto de
Didi-Huberman parece-me, pelo contrário, ser um indicador seguro de
que não nos aproximámos de uma capacidade signiicativamente mais
profunda de estarmos perante as imagens do Gulag e, por outro lado, que as
condições para começarmos a pensar (ou sequer a procurar) uma icono-
graia do Gulag têm vindo a degradar-se nos últimos anos.

5 Mas, através dessas imagens, vemos também que os corpos representados


estão expostos a outra coisa, a uma outra coisa a que os nossos corpos
também se expõem na simples medida em que são corpos no mundo. Toda
a didáctica da imagem esquece isto: transportado para a imagem, um
corpo entra num regime de carência do mundo e deve, por conseguinte,
ser olhado no interior desse regime. Não nos enganemos: o mundo está lá,
na própria medida em que é possibilidade da representação, mas está na
medida em que aí é operada uma deslocação da própria ininidade aberta na
relação entre o mundo e aqueles que são aí representados. Olhando estas
imagens, o que vemos não é a verdade do horror (neste ponto Lanzmann
tem razão): o que vemos é a intencionalidade radical que aí reside. Como
escreveu Lévinas, «a intencionalidade que anima a ideia de ininidade não
é comparável com nenhuma outra. Visa o que não pode abraçar e é, nesse
sentido, o próprio ininito».10
———————
9 in kizny (2003), Goulag, le livre de la mémoire.

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Neste ininito, não podemos associar um sujeito ético ou teológico
nem dele fazer um princípio. Pelo contrário, o que aqui temos é a exigência
de uma resistência ética. Mas, ao contrário de Lanzmann, acrescentare-
mos que não se trata aqui de resistência à exposição destas imagens, à sua
leitura em provocação ao ininito silêncio que Auschwitz foi. Todo o debate
em torno da adopção testemunhal destas fotograias depara necessa-
riamente com uma resistência fenoménica que nelas habita. O que aqui
acontece é a ininitude associada ao traço, conceito levinasiano da própria
ausência radical de um Ininito qualiicado ontoteologicamente. Enquanto
traço, estas imagens mostram-se como interpelação que reside na sua pró-
pria resistência à apropriação.
Entrar nestas imagens, olhá-las, supor que o olhar deste Sonderkom-
mando se prendia melhor àquele mundo que as suas próprias mãos, suadas
e com grande diiculdade em ixar a máquina, é penetrar num mundo que,
tendo abandonado todo o projecto, ainda assim liberta as sombras dos
projectos, deixando-os correr por ali. Nesse mundo, ser projecto humano,
projecto-de-si, já não se refere ao futuro, que foi eliminado, mas aparece
antes como incontrolável mobilidade das representações do futuro, que
são aí as únicas representações internas.
———————
10 lévinas, Collected Philosophical Papers, p. 54.

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