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O Golpe de 2016

Razões, Atores e Consequências


luiz antonio dias
rosemary segurado
organizadores

O Golpe de 2016
Razões, Atores e Consequências
Editora Intermeios
Rua Cunha Gago, 420 / casa 1 – Pinheiros
CEP 05421-001 – São Paulo – SP – Brasil
Fones: [11] 2365-0744 – 94898-0000 (Tim) – 99337-6186 (Claro)
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O GOLPE DE 2016: RAZÕES, ATORES E CONSEQUÊNCIAS

© Luiz Antonio Dias | Rosemary Segurado

1ª edição: dezembro de 2018



Editoração eletrônica, produção Intermeios – Casa de Artes e Livros
Capa Lívia Consentino Lopes Pereira
Revisão Luis Gonzaga Fragoso

CONSELHO EDITORIAL
Vincent M. Colapietro (Penn State University)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D’Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa Pires Ferreira (PUCSP)
Amálio Pinheiro (PUCSP)
Josette Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
Ilana Wainer (USP)
Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
Izabel Ramos de Abreu Kisil
Jacqueline Ramos (UFS)
Celso Cruz (UFS) – in memoriam
Alessandra Paola Caramori (UFBA)
Claudia Dornbusch (USP)
Barbara Arisi (Unila)
Nikita Paula (Ancine)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

D541     Dias, Luiz Antonio, Org.; Segurado, Rosemary, Org.

   O golpe de 2016: razões, atores e consequências / Organização de Luiz


Antonio Dias e Rosemary Segurado. Apresentação de Luis Felipe Miguel –
São Paulo: Intermeios; PUC-SP-PIPEq, 2018.
   238 p. ; 16 x 23 cm.
  ISBN 978-85-8499-143-3

   1. História. 2. História do Brasil. 3. História Social. 4. História Política. 5.


Golpe de Estado. 6. Golpe de 2016. 7. Sistema Político Brasileiro. 8. Governo
Lula. 9. Governo Dilma Rousseff. 10. Governo Temer. 11. Avaliação de
Gestão. I. Título. II. Dias, Luiz Antonio, Organizador. III. Segurado, Rosemary,
Organizadora. IV. Miguel, Luis Felipe. V. Chaia, Vera. VI. Sousa, Rafael Lopes
de. VII. Fonseca, Francisco. VIII. Lobo, Denis Carneiro. IX. Baptista, Dulce
Maria Tourinho. X. Arruda, Pedro Fassoni. XI. Abramides, Maria Beatriz
Costa. XII. Almeida, Lúcio Flávio de. XIII. Vecchiatti, Paulo Roberto Iotti. XIV.
Intermeios – Casa de Artes e Livros.
CDU 93(81)
CDD 98100
Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino
Sumário

11 Luis Felipe Miguel - Apresentação


Autor: Luis Felipe Miguel é professor titular livre do Instituto de Ciência
Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa
sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e pesquisador do CNPq.
É autor, entre outros, dos livros Democracia e representação: territórios
em disputa (Editora Unesp, 2014) e Dominação e resistência: desafios para
uma política emancipatória (Boitempo, 2018).

15 1.  Vera Chaia - O conservadorismo e a ascensão da Nova Direita


Autora: Vera Chaia (Depto. de Política PUC/SP). Mestre em Sociologia
pela USP, doutora em Ciência Política pela USP e Livre Docente em
Ciência Política pela Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP, professora
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, pesquisadora do
NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) da PUC/SP, do
CNPq e da FAPESP.

35
2.  Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes de Sousa - Golpes e narrativas:
a imprensa em 1964 e 2016
Autores: Luiz Antonio Dias (Depto. de História – PUC/SP). Doutor
em História UNESP/Assis, Pós-doutorado pela Universidad de Córdoba.
Professor do Programa de Pós-Graduação em História da PUC/SP,
professor do programa Interdisciplinar em Ciências Humanas (UNISA).
Pesquisador do Cehal (Centro de Estudos de História da América Latina);
Rafael Lopes de Sousa. Doutor em História UNICAMP/SP. Professor do
programa Interdisciplinar em Ciências Humanas (UNISA).
6 O Golpe de 2016

 61
3.  Francisco Fonseca - O processo de desestabilização política,
econômica e ideológica e seu desfecho
Autor: Francisco Fonseca (Depto. de Política PUC/SP). Bacharel em
Ciências Sociais pela PUC/SP, mestre em Ciência Política pela Unicamp
e doutor em História pela USP. Professor de Ciência Política da PUC/SP
e FGV/Eaesp.

  83
4.  Dênis Carneiro Lobo - A campanha pela deposição de Dilma: O
ódio nas redes sociais
Autor: Dênis Carneiro Lobo. Mestre em Ciências Sociais pela PUCSP.
Atua na área de Data Science, Mídia online e Business Intelligence.
Atualmente, desenvolve pesquisas na área de Comunicação e Política
- Ciberpolítica, atuando em diversas frentes, pesquisando o discurso de
ódio nas redes sociais no cenário de polarização partidária das eleições
de 2018.

109
5.  Rosemary Segurado - A corrupção entre o espetáculo e a
transparência das investigações: análise da atuação da mídia na prisão
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Autora: Rosemary Segurado. Profª. do Programa de Estudos Pós-
graduados em Ciências Sociais da PUC/SP e da Escola de Sociologia e
Política de São Paulo, pesquisadora do NEAMP (Núcleo de Estudos em
Arte, Mídia e Política da PUC/SP)

127
6.  Dulce Maria Tourinho Baptista - Governo ilegítimo, direitos
humanos e a nova Lei da Migração
Autora: Dulce Maria Tourinho Baptista (Prof ª. do Depto. de Sociologia
- PUC/SP)

147
7. Pedro Fassoni Arruda - O Golpe de 2016 e a contrarreforma
trabalhista
Autor: Pedro Fassoni Arruda (Depto. de Política PUC/SP). Advogado,
Mestre e Doutor em Ciências Sociais, Coordenador do Curso de Ciências
Sociais da PUC/SP.

163
8.  Maria Beatriz Costa Abramides - Desafios da resistência: As lutas
de enfrentamento da classe trabalhadora
Autora: Maria Beatriz Costa Abramides (Depto. de Fundamentos do
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 7

Serviço Social – PUC/SP). Doutora em Serviço Social pelo Programa


de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC/SP, professora do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC/SP, pesquisadora
e coordenadora do NEAM-Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Aprofundamento Marxista, da PUC/SP, do CNPq e do GTP ampliado-
Grupo de Trabalho e Pesquisa da Associação Brasileira de Ensino e
Pesquisa em Serviço Social-ABEPSS, diretora da APROPUCSP.

183 9.  Lúcio Flávio de Almeida - As relações de classe, a crise e o Golpe


Autor: Lúcio Flávio de Almeida. Doutor em Ciência Política. Professor
do Departamento de Política e do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Coordenador, na mesma universidade, do Núcleo de Estudos de
Ideologias e Lutas Sociais (NEILS). E-mail: luflavio40@gmail.com

207
10.  Paulo Roberto Iotti Vecchiatti - O Golpe e as minorias sexuais
e de gênero
Autor: Paulo Roberto Iotti Vecchiatti é Doutor em Direito Constitucional
pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru. Especialista em Direito
Constitucional pela PUC/SP. Especialista em Direito da Diversidade
Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor
Universitário. Diretor-Presidente do GADvS – Grupo de Advogados
pela Diversidade Sexual e de Gênero.
O Golpe de 2016: razões, atores e consequências

Orgs. Luiz Antonio Dias e Rosemary Segurado

O objetivo desse livro é promover uma reflexão interdisciplinar sobre os


eventos que levaram ao Golpe de 2016, suas razões, atores e consequências.
Compreendemos que, apesar do verniz de legalidade – conferido pelo Poder
Legislativo e pelo Poder Judiciário – e legitimidade – conferido pelos meios de
comunicação que se apresentaram como “porta-voz” da opinião pública – o
episódio de afastamento da presidenta Dilma Rousseff teve características de
um Golpe de Estado, envolvendo diversos atores da sociedade civil. A ideia
é refletir sobre esses atores – meios de comunicação, empresários, partidos
políticos, dentre outros – e seu papel na elaboração desse processo. Além disso,
propomos discutir as consequências nefastas advindas dessa ruptura abrupta,
dentre elas a Reforma Trabalhista; as propostas de Reforma Previdenciária;
retrocessos no campo dos Direitos Humanos. Assim, procuramos entender os
elementos de fragilidade do sistema político brasileiro que permitiram a ruptura
democrática de maio e agosto de 2016, com a deposição da presidenta Dilma
Rousseff. E também analisar o governo presidido por Michel Temer, investigar
o que sua agenda de retrocesso nos direitos e restrição às liberdades diz sobre a
relação entre as desigualdades sociais e o sistema político no Brasil e, finalmente,
perscrutar os desdobramentos da crise em curso e as possibilidades de reforço da
resistência popular e de restabelecimento do Estado de direito e da democracia
política no Brasil.
Apresentação

Luis Felipe Miguel

O Golpe de 2016 gerou um enorme conjunto de novos desafios para a


sociedade brasileira. Garantias que julgávamos assentadas tornaram-se incertas.
Direitos que configuravam nossa paisagem social, alguns deles por décadas, foram
abolidos. Os consensos forjados ao longo da luta pela superação da ditadura
militar (democracia eleitoral, Estado de direito, compromisso com a redução das
desigualdades) se revelaram bem mais frágeis do que se imaginava. Enfrentamos
um ambiente de discussão pública em que posições abertamente autoritárias se
manifestam com uma violência que muitos de nós julgávamos ultrapassada para
sempre. E as instituições que deviam proteger a Constituição de 1988 mostraram
que não cumprem seu papel.
Há novos desafios também para a academia. Sempre estamos às voltas com
a questão de saber como devolvemos à sociedade aquilo que ela nos dá – como
se paga o “privilégio injustificável” de ser intelectual, como dizia Pierre Bourdieu.
Afinal, enquanto nos dedicamos a pensar, outros garantem a nossa existência
material. Com o Golpe, porém, a necessidade de dar respostas à sociedade ganha
outra dimensão e outra urgência. O agravamento da crise atropela nossas agendas
de pesquisa, desorganiza o ritmo da produção intelectual. Mas as demandas
assim impostas não podem ser ignoradas por quem entende o compromisso que
mantém com a sociedade.
“Dar respostas”, claro, não significa apresentar soluções acabadas. Significa
contribuir com a construção de saídas, a partir de nossa posição específica, de
produtores de conhecimento, e em diálogo com a sociedade civil e os movimentos
sociais. É o que grande parte da academia brasileira vem fazendo, apesar das
condições adversas, das pressões, das tentativas até de censura por parte daqueles
12 O Golpe de 2016

que ocupam o poder. A face mais visível são os cursos sobre o Golpe, que têm
ocorrido em dezenas de instituições pelo país afora, como maneira de afirmar
que não abrimos mão da liberdade de cátedra e da autonomia universitária –
sem elas, está simplesmente sufocada a possibilidade de realizar plenamente o
trabalho de docência e de pesquisa no país.
O que os cursos apresentam é a reflexão em andamento sobre a realidade
atual, à luz dos saberes específicos de cada área de conhecimento, compondo um
mosaico de diferentes disciplinas, diferentes enfoques teórico-metodológicos e
também diferentes posições ético-políticas, que se complementam ou polemizam
entre si. Esta convivência plural é própria do debate científico. E é própria
também da democracia. Não por acaso, sem democracia a universidade nunca
se realiza por completo. As liberdades que o retrocesso de 2016 ameaça são vitais
para nossa existência não só como cidadãos, mas também como profissionais da
ciência e da educação.
O volume que a leitora ou leitor tem em mãos é um belo exemplo desta
reflexão. Fruto do esforço de pesquisadores da PUC/SP, apresenta um conjunto
multifacetado de estudos sobre o Brasil do Golpe. Trata-se de uma relevante
contribuição qualificada ao debate em andamento nas ciências humanas e na
sociedade, a partir de abordagens muito distintas. Esta diversidade de miradas
é essencial para a compreensão do fenômeno em tela. O Golpe de 2016, que
podemos dizer que ainda está em curso (pois a tomada da presidência da
República foi apenas o ponto de partida para a implementação de um ambicioso
programa de retrocessos), é um processo complexo, que não possui sequer um
protagonista ostensivo. Se podemos falar em golpe militar para descrever o que
ocorreu em 1964, a despeito da participação crucial de setores empresariais,
como descrevemos 2016? Foi um Golpe parlamentar, judiciário, midiático. A
coalizão golpista é mais complexa do que fora no passado e age num ambiente
em que o desprezo aberto às formalidades democráticas também é mais custoso.
Tudo isto torna a conjuntura ainda mais intrincada.
Os capítulos deste O Golpe de 2016 tratam da produção do ambiente social
que permitiu a ruptura da democracia, da deflagração do golpe propriamente
dito e de seus desdobramentos. Três grandes eixos de análise são privilegiados.
O primeiro deles diz respeito à produção do clima de opinião que permitiu o
Golpe. O avanço da direita na esfera pública, com um discurso renovado e
mais agressivo, é analisado sob o ângulo de sua presença no parlamento, nos
meios de comunicação de massa e nas redes sociais digitais. A disseminação do
ódio político, que abre as portas para a criminalização da esquerda e gera uma
esfera pública tóxica, foi um dos elementos centrais da preparação do Golpe e é
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também um dos mais sérios desafios a serem enfrentados. Os quatro capítulos que
abrem o livro, de autoria de Vera Chaia, Luiz Antonio Dias, Francisco Fonseca
e Dênis Carneiro Lobo, apresentam um panorama deste processo. O capítulo
seguinte, de Rosemary Segurado, completa o quadro, abordando a dobradinha
entre agentes do aparelho repressivo do Estado (no caso, a Polícia Federal) e
a mídia, que também foi essencial para fomentar o clima de opinião desejado.
O segundo eixo é o das relações de classe. Não há dúvida de que o Golpe
tem, como um de seus propósitos centrais, ampliar a vulnerabilidade do trabalho
face ao capital. Os capítulos de Pedro Fassoni Arruda, de Maria Beatriz Costa
Abramides e de Lúcio Flávio de Almeida analisam esse programa, as razões que
tornaram possível sua implantação na atual quadra histórica, suas implicações
para a democracia e as possibilidades de resistência da classe trabalhadora. Por
fim, o terceiro eixo trata dos direitos humanos, também duramente atingidos por
um governo que exibe sua total indiferença por eles – quando não a conivência
ativa com seus adversários. É o tema dos capítulos de Dulce Maria Tourinho
Baptista, focados nos retrocessos anunciados quanto à nova Lei de Migração, e
de Paulo Iotti, que discute as ameaças à agenda dos direitos das mulheres e da
população LGBT.
São dez capítulos de conhecimento engajado, no melhor sentido do termo.
Engajado não por paixão partidária, mas pelo compromisso com a sociedade à
qual pertencemos. E sabendo que a melhor maneira de honrar esse compromisso
é fazendo nosso trabalho com honestidade, com coragem e com rigor científico.
O conservadorismo e a ascensão da nova direita

Vera Chaia1

O presente artigo tem como objetivo analisar a nova onda conservadora


surgida no Brasil após os movimentos de 2013, bem como acompanhar a atuação
dos Movimentos Cívicos, como também da “Bancada da Bala” na última
legislatura do Congresso Nacional (2014-2018), considerada a mais conservadora
dos últimos tempos.
Conservadorismo
Muito se tem falado do conservadorismo que predomina no Congresso
Nacional e da importância das bancadas da Bíblia e da Bala. Mas o que é o
conservadorismo, quando surgiu e quais são suas características? Para esclarecer
o pensamento conservador, percorreremos as ideias de alguns autores que foram
fundamentais para a compreensão desse significado. Para tanto, iremos buscar a
origem do termo em Edmund Burke, um autor irlandês que viveu no século XVIII
e que criticou a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem.
Seus estudos influenciaram pensadores políticos brasileiros nos anos 20 e 30 do
século XX, mas também encontramos algumas ideias do conservadorismo na
atual conjuntura política brasileira.

1. Professora do Departamento de Política, do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências


Sociais, pesquisadora do NEAMP (Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política) da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo; pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa
do Ministério de Ciência e Tecnologia) e da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo). Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, com a
tese “A liderança política de Jânio Quadros – 1947 a 1990”. Título de Livre-Docência obtido
na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com a tese “Imprensa e Câmara Municipal
de São Paulo – 1989-1996”. Coordenadora do projeto temático “Lideranças políticas no Brasil:
características e questões institucionais”, com financiamento da Fapesp.
16 O Golpe de 2016

O conservadorismo pode ser compreendido como uma concepção de


mundo, em que aparecem ideias que norteiam a conduta dos indivíduos e
dos grupos sociais. Ele é produto de circunstâncias particulares. A conduta
conservadora é intencional, consciente e reflexiva, já que nasce como um
contramovimento em oposição consciente ao movimento “progressista”, muito
organizado e sistemático. O conservadorismo é o contraponto do progressismo;
é visto como negativo e confunde-se com o imobilismo. É produto de uma
oposição ao capitalismo burguês, contra o racionalismo, exaltando as forças
irracionais, antes reprimidas. Ele resgatou atitudes e modos religiosos que haviam
sido reprimidos com o advento do racionalismo capitalista.
O conservadorismo incorporou-se à tese do constante desenvolvimento da
humanidade, porém esse desenvolvimento se daria com um progresso evolutivo,
mediante a acumulação de conhecimento e de experiências, isto devido à
importância que esse pensamento atribui ao passado.
Tudo o que existe é resultado de um passado e, portanto, de um processo
lento e gradual altamente positivo; quer-se recuperar a tradição e as suas ideias.
O presente é o último momento do passado, e seu conceito de história está
mais voltado ao espaço do que ao tempo, pensando-se em coexistência e não
em sucessão.
O pensamento conservador é marcado pela aplicabilidade e pela realidade
e não se preocupa em teorizar. Tal pensamento parte do pressuposto de que os
seres humanos encaram “o ambiente como fazendo parte de uma ordenação
natural do mundo, que, em consequência, não apresenta problema algum”
(MANNHEIM, 1968, p. 253). Na avaliação de André Kaysel, Huntington
define o conservadorismo como uma “ideologia posicional”, ou seja, é definido
pela contraposição às investidas radicais, não tendo um conteúdo próprio
(HUNTINGTON, 1957, apud KAYSEL, 2015).
A mentalidade conservadora considera-se em harmonia com a realidade, a
partir do momento em que esta está sob seu domínio. Isto significa que tal tipo
de pensamento avalia o conhecimento como uma forma de se ter um controle
prático sobre a realidade.
A estrutura desse pensamento começa a ser questionada quando ocorre
um “contra-ataque” de classes oponentes, que rompem com o equilíbrio e com
a harmonia da ordem existente. Isto se deu, como exemplo, com a deflagração
da Revolução Francesa, pois a partir desse momento vários estudos surgiram e
questionaram a ruptura da “ordem” que existia até então na França. O opositor
que expressava o pensamento liberal suscitou o pensar do conservadorismo e o
desenvolvimento intelectual desse tipo de pensamento.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 17

Para essa corrente de pensamento, o homem não é absolutamente livre. Os


indivíduos são essencialmente desiguais tanto nas suas aptidões e talentos como
na constituição de seu ser. Isto significa que a liberdade existe como a habilidade
de cada homem para desenvolver-se sem obstáculos. A liberdade, como ideia
qualitativa, distingue-se do conceito igualitário revolucionário.
Seguindo essa linha de raciocínio, não se pode considerar que a sociedade
esteja passando por um processo semelhante, pois cada sociedade, cada época,
possui a sua “individualidade histórica”, o seu passado, as suas tradições, o espírito
de seu povo de maneira específica, não transferível.
Edmund Burke (1729-1797), irlandês, de religião protestante, foi um
dos membros mais atuantes da Câmara dos Comuns e foi representante do
pensamento conservador; criticou as ideias genéricas da Revolução Francesa
e a Declaração dos Direitos do Homem, como ideias que procuraram exportar
para todas as sociedades. Burke assumiu as posições da aristocracia, dos
proprietários, resguardando-os das classes mais pobres, incultas, despreparadas
e revolucionárias.
Esse autor escreveu um livro fundamental para compreendermos o
conservadorismo. Foi um dos primeiros a fazer uma avaliação crítica da Revolução
Francesa, no seu livro Reflexões sobre a Revolução Francesa, escrito em 1790
(BURKE, 1982). Karl Mannheim considera que esse livro é um panfleto escrito
para combater as sociedades e os clubes pré-Revolução Francesa que estavam
se formando na Inglaterra.
Burke criticou abertamente as doutrinas e os princípios adotados por essa
Revolução. A Declaração dos Direitos do Homem e a produção da Assembleia
Constituinte, segundo esse autor, estavam apoiadas sobre ideias teóricas sem
qualquer aplicabilidade com a prática. As reformas políticas poderiam ser o
resultado de uma maturidade política das próprias condições da sociedade e não
produtos de ideias genéricas e abstratas, que não possuíam nenhuma relação
com a realidade.
A representação política, para Burke, devia ser compreendida como a
representação de interesses que possuíam uma realidade objetiva. De um lado,
teríamos certos interesses que seriam fixos, limitados numericamente, claramente
definidos, sendo, na sua maior parte, interesses econômicos associados a
localidades particulares.
De outro lado, existiriam interesses que não se relacionariam com grupos
ou localidades, mas tratar-se-iam de interesses da nação como um todo.
O povo, como entende Burke, possui interesses objetivos, desejos, porém tais
interesses são frequentemente errados, pois somente o homem bem informado,
18 O Golpe de 2016

inteligente, deliberando, analisando e discutindo as questões, poderá detectar e


conhecer os verdadeiros interesses de um grupo, de uma localidade e da nação.
Partindo desse pressuposto, o autor considera que o corpo representativo
deve ser constituído de homens de sabedoria e virtude, de uma elite seleta, que
teria a capacidade de descobrir os interesses objetivos e verdadeiros.
Não existiria, portanto, uma igualdade entre os homens, pois o que
predomina é a desigualdade de fato, e esta geraria a necessidade de se
discriminarem os direitos. A política deveria ser restrita a um grupo de homens
formados a partir de uma genuína elite.
Os partidos políticos, na visão de Burke, quando bem utilizados, seriam
necessários e positivos. Na sua concepção: “O partido é um grupo de homens
unidos para a promoção, pelo seu esforço conjunto do interesse nacional com
base em algum princípio com o qual todos concordam” (SARTORI, 1982, p.
29).
O partido configura-se como um meio para se alcançar um fim,
diferentemente, portanto, de facção, que envolveria uma luta mesquinha por
cargos e recompensas.
Segundo Sartori, Burke compreendeu que o Parlamento não poderia ser
monolítico e que seria um órgão representativo, mas a representação de que
falava era mais “virtual” do que eleitoral. O representante, para Burke, não estava
atrelado às instituições de seus eleitores, ele não simpatizava com propostas de
disciplinas e instruções partidárias.
Representação, nesse ponto de vista, não tem relação alguma com a
ideia de mandato imperativo, de uma consulta às bases eleitorais. Os homens
estabeleceriam alianças só no nível do Parlamento, elas não ocorreriam fora de
seu âmbito.
Segundo Maria D’Alva Gil Kinzo (KINZO, 1978), Burke exerceu grande
influência durante sua própria época, assim como também em momentos
posteriores. No Brasil, inclusive, verifica-se a repercussão de suas ideias e de
questões levantadas pelo pensamento conservador a partir das décadas de 1920
e 1930, durante o período republicano.
Atualizando essa reflexão, podemos citar João Pereira Coutinho, pensador
português e um representante do conservadorismo na sociedade contemporânea,
que lançou um livro intitulado As ideias conservadoras explicadas a revolucionários
e reacionários. Nessa ocasião, ele deu uma entrevista à Folha de S. Paulo. Para ele,
“Todos somos, de certa forma, conservadores. Todos querem conservar a família,
amores, amigos” (FSP, 26/4/2014). Coutinho afirma: “No fundo, ser conservador
em política é afirmar: ‘eu não sou uma criança; não preciso que o Estado seja o
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 19

meu baby sitter; eu desejo que o Estado me deixe em paz para eu tentar, acertar
ou falhar por minha conta e risco’” (FSP, 26/4/2014).
Para ele, a ideologia conservadora é o modo de a sociedade preservar o
melhor que, com base na tradição democrática, ela criou para garantir a liberdade
das pessoas e o vigor das instituições (FSP, 26/4/2014).
O conservadorismo implica valorizar o indivíduo em detrimento das massas,
consideradas incapazes de raciocínio e de discernimento.

Direita e Esquerda

Se o conceito de Conservadorismo é polêmico, envolvendo imensas


discussões, os termos Direita e Esquerda também são controversos. As discussões
e as análises desses termos começaram também no século XVIII, ganharam maior
projeção no século XX e renasceram no século XXI.
A referência das discussões sobre essa temática é de Norberto Bobbio. Em seu
livro, Direita e Esquerda – Razões e significados de uma distinção política, reconstrói o
debate sobre esses conceitos e afirma que “[...] as expressões ‘direita’ e ‘esquerda’
continuam a ter pleno curso na linguagem política” (BOBBIO, 1995, p. 79).
Scheeffer, num paper sobre “Esquerda e direita: velhos e novos temas”,
objetivava atualizar tais conceitos, retomando os autores que se dedicaram ao
estudo dessa temática (SCHEEFFER, 2014).

A polarização política entre esquerda e direita é histórica, e tem ditado a


forma de fazer política ao longo dos tempos em praticamente todos os regimes
democráticos. A luta pelo poder democrático traz à tona os projetos de poder e
interesses individuais das pessoas, que se envolvem em um jogo de pensamentos
em massa, deixando-se influenciar pelo grupo de ideias que estejam do lado que
representa a sua declaração de interesse político. Esse posicionamento político
deriva da construção de ideologias, alimentadas por dispositivos subjetivadores
ou dessubjetivadores que viabilizam o desenvolvimento desses novos sujeitos
ideológicos (BRUGNAGO e CHAIA, 2015, p. 3).

No artigo de Sebastião Velasco e Cruz (in CRUZ, KAYSEL e CODAS,


2015), são apresentados vários momentos da história contemporânea em que
aparece o conceito de direita, não só no Brasil, mas na América Latina e em
outros países, como a França. Não é nosso objetivo, no presente artigo, fazer todas
as ponderações a respeito dessa díade direita e esquerda, portanto optamos por
utilizar o significado de Cruz para caracterizar a direita no Brasil nos dias atuais:
20 O Golpe de 2016

Direita? Como reconhecê-la? O que pretendemos nomear com esse vocábulo?


Em certo sentido, a resposta é óbvia: quando falamos em direita no Brasil hoje
pensamos imediatamente nos nostálgicos do regime militar; nos defensores da
maioridade penal e da fuga para frente repressiva como solução ao problema
da insegurança coletiva; nos intolerantes culturais e religiosos de todo tipo;
nos defensores das “soluções do mercado” para todos os problemas e todas as
áreas de políticas públicas; nos detratores dos programas de promoção social,
como o Bolsa Família; nos defensores radicais da austeridade fiscal, da política
de juros altos e da internacionalização sem peias da economia brasileira; nos
críticos da política externa, que denunciam os seus arroubos autonomistas e
defendem, em seu lugar, o retorno a uma política de subordinação aos Estado
Unidos; por fim, no conjunto dos inconformados com o funcionamento dos
mecanismos de escolha democrática, que nunca chegaram a aceitar a vitória,
no pleito de 2014, da presidenta Dilma (in CRUZ, KAYSEL e CODAS,
2015, p. 14).

Manifestações e o ressurgimento da direita

Agora, para compreender a crise política que enfrentamos, devemos


retroceder até as manifestações de junho de 2013. O marco divisório dessa
situação se deu com as jornadas de junho de 2013, conjuntura política
caracterizada pela eclosão de uma série de manifestações sociais: MPL
(Movimento do Passe Livre), Black Blocs, Movimentos dos Sem Teto, dentre
outros que questionavam as políticas públicas, a mobilidade urbana, além de
outros aspectos. Essas manifestações mobilizaram milhões de pessoas em todas
as capitais e em algumas cidades do país. Também devemos considerar as
manifestações que se aprofundaram, em 2014, com o posicionamento de vários
segmentos contrários à realização do Campeonato Mundial de Futebol no Brasil,
que aconteceu em junho daquele ano. Tais movimentos reivindicatórios foram
incorporados pelos setores conservadores, que ressurgiram com mais força na
conjuntura do processo eleitoral de 2014 (CHAIA, 2016, p. 49).

Esse pico de polarização entre esquerda e direita provou-se resistente e


conseguiu manter-se e desenvolver-se até as eleições nacionais de 2014.
A esquerda mobilizou-se contra o projeto neoliberal do PSDB, e a direita
conservadora desenvolveu sua ideologia em torno de um forte antipetismo
declarado antipartidário, com discussões radicalizadas para os extremos dos
valores considerados da direita (BRUGNAGO e CHAIA, 2015, p. 4).
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Manifestações contrárias à presidenta Dilma Rousseff e ao PT aconteceram


nos anos de 2015 e 2016, não só no Congresso Nacional, mas também por meio
de manifestações de setores da sociedade brasileira e de uma grande parte da
imprensa brasileira. A operação Lava Jato, ainda em andamento, provocou prisões
de empresários, de donos de empreiteiras e de políticos citados pelos ex-diretores
da Petrobras e por outros depoimentos que fizeram parte das delações premiadas.
A bancada conservadora do novo Congresso Nacional reflete a mudança
no eleitorado, pois mostra a fragilidade dos setores progressistas, já que houve um
refluxo nos movimentos sociais, ou seja, pouca representação política por parte
desses grupos. O então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (2014-2016),
“tirou da gaveta” projetos que interferiam na vida particular das pessoas, além
de privilegiar setores específicos. As políticas públicas, que abrangiam setores
mais amplos da sociedade, não entraram em pauta.
As manifestações de ruas de 2015 e 2016 abrangeram milhares de pessoas,
em várias cidades brasileiras, e tiveram seu foco de irradiação em São Paulo.
Esses manifestantes representam setores mais conservadores da sociedade
brasileira, gestados durante esse período. Podemos citar os seguintes movimentos:
“Vem pra rua”, “Movimento Brasil livre”, “Revoltados online”, “Movimento
endireita Brasil”, dentre outros. Esses movimentos foram essenciais para que as
manifestações a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, do PT, se
fortalecessem.

O radicalismo conservador da direita adquiriu elementos de ódio. A


campanha das eleições de 2014 foi muito tensa, elevando as provocações
entre partidários. Vários conflitos foram relatados em manifestações,
principalmente quando esquerda e direita se encontravam (BRUGNAGO
e CHAIA, 2015, p. 4).

Como aconteceu essa polarização? Tentaremos, principalmente, entendê-la


a partir do ressurgimento da militância conservadora, que encontrou nas mídias
sociais o encorajamento de que precisava para levantar suas bandeiras no mundo
virtual e nas ruas.

Movimentos cívicos

A ampla discussão política pela internet marcou, então, o reaparecimento de


um novo militante, o conservador de direita. Esse militante conservador ressurgiu
alimentando o debate político e desenvolvendo a polarização de ideologias
22 O Golpe de 2016

políticas no Brasil. Esse novo militante surgiu, porém, de uma base conservadora
e violenta da sociedade. Uma base que estava pronta para absorver ideologias.
E a ideologia da direita recriou-se alimentada pelo radicalismo aberto de novos
políticos conservadores e de uma sociedade de intolerâncias com o outro. A massa
uniforme conservadora uniu-se de forma muito rápida em torno de seus desejos
e perversões, e rapidamente conseguiu se radicalizar, levando a esse fenômeno
que tem acontecido em outra grande democracia mundial, a dos EUA.
O jornal Le Monde Diplomatique Brasil dedica sua edição de novembro de
2017 à discussão de “O jogo oculto da nova direita”. Segundo afirma Camila
Rocha, uma das autoras dessa edição,

a expressão ‘nova direita brasileira” costuma vir associada aos nomes dos
principais integrantes do Movimento Brasil livre, como Kim Kataguiri e
Fernando Holiday; de humoristas, como Danilo Gentili; de polemistas, como
o youtuber Arthur do Val, do canal Mamãe Falei; e de políticos da família
Bolsonaro2. No entanto, essas figuras representam apenas a ponta do iceberg
de uma rede mais ampla e capilarizada que reúne simpatizantes, militantes e
lideranças distribuídos por todo o território nacional (ROCHA, 2017, p. 6).

Para essa autora, a nova direita “foi formada política e ideologicamente a


partir da 2ª metade dos anos 2000” (p. 6). Também é desse período a criação de
vários institutos liberais, dentre os quais podemos citar a Casa das Garças, em
2003, no Rio de Janeiro; o Instituto Millenium, em 2005, também no Rio de
Janeiro; além de participação de intelectuais, como Olavo de Carvalho, Rodrigo
Constantino, dentre outros.
Segundo Brugnago e Chaia, para a nova militância da direita sair às ruas
foi uma grande novidade. Um sentimento inicial de prazer contagiou as pessoas
nos protestos, porém, ao ganhar gosto por esse poder de ir para as ruas, a direita
tentou impor suas ideias ao movimento. Essa imposição tomou aos poucos a
forma de radicalização, uma vez que ideias diferentes das colocadas por eles não
eram aceitas, impossibilitando a busca por pautas comuns com seus colegas de
manifestação. Como vimos, vários intelectuais de direita passaram a se manifestar
mais claramente nesse período.

2. Jair Bolsonaro, militar da reserva e deputado federal pelo PSL, exerceu sete mandatos na
Câmara dos Deputados, e foi eleito Presidente da República em 28 de outubro de 2018. Ver
site do deputado: <http://www2.camara.leg.br/deputados/pesquisa/layouts_deputados_
biografia?pk=74847> e site particular: <https://www.bolsonaro.com.br/>.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 23

Para Noam Chomsky, “Uma grande virtude da internet é que ela oferece
oportunidade para a livre expressão e para o debate. Essa liberdade permite o
discurso do ódio” (OESP, 7/1/2018).
Uma nova onda conservadora tomou conta do cenário político brasileiro.
Evangélicos e católicos, de matrizes conservadoras, têm ingressado na
esfera político-partidária e consolidado suas forças no cenário nacional. Os
representantes da indústria armamentista estão entre os parlamentares mais
votados no congresso mais conservador pós-1985. Atualmente, esses são
atores políticos relevantes que possuem poder para interferir nas decisões do
parlamento, não sendo mais possível ignorar sua presença no espaço público.
Além disso, movimentos sociais conservadores no aspecto moral e liberal no
aspecto econômico ganharam simpatia por parte da população brasileira.
Os movimentos “Movimento Brasil livre”, “Vem pra rua”, “Revoltados
online”, “Movimento endireita Brasil”, dentre outros, conseguiram mobilizar, por
meio das redes sociais, grandes manifestações anti-PT e articularam-se na defesa
de pautas morais, também trabalhando para o crescimento da representação
parlamentar conservadora na Câmara dos Deputados.
Criado em 2014, o MBL é caracterizado pela defesa do liberalismo e
do  republicanismo e da Escola sem Partido. Em 2016, combinou forças com
as bancadas  evangélica  e  ruralista  do Congresso por uma agenda de Estado
mínimo, reforma trabalhista, ajuste fiscal e redução da maioridade penal.  Kim
Kataguiri  e  Fernando Holiday, duas lideranças do movimento, foram recebidos
pela população participante como estrelas da política brasileira.
É esse movimento que mobilizou segmentos conservadores para se
posicionarem contra a exposição Queermuseu: cartografias da diferença na arte
brasileira, que estava acontecendo no Centro Cultural do Banco Santander, em
Porto Alegre, o que provocou o fechamento da exposição pelo Santander.
Nas últimas eleições para o Executivo municipal, de 2016, também
acompanhamos a ascensão de vários candidatos que não representavam partidos
políticos, que se colocavam acima destes e que faziam uso dos partidos somente
para alcançar o poder. João Dória é o representante dessa nova forma de atuação
política – ele conseguiu se eleger prefeito da cidade de São Paulo, apesar de os
cardeais do PSDB terem se manifestado contra a sua presença no partido. Ele
colocava-se como gestor e não como político.
Também destacamos a ação do grupo denominado ‘Brasil por Multiplicação’,
que se mobilizou contra o 35º Panorama da arte brasileira. A performance “La
Bête” – inspirada em um trabalho de Lygia Clark – de um artista nu, Wagner Schwartz,
no Museu de Arte Moderna (MAM), no Ibirapuera, zona Sul de São Paulo, gerou
24 O Golpe de 2016

polêmica nas redes sociais. A presença de uma mãe interagindo com o artista e sua
filha de quatro anos, que também interagiu tocando o pé do artista, gerou uma reação
por parte do MBL e de outros movimentos que chamaram esse gesto e a exposição de
defensores da pedofilia!
Também devemos nos lembrar da proibição da Justiça, em Jundiaí, que
retirou do teatro do SESC a peça O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu,
encenado por uma transexual. O SESC de São Paulo recorreu e resolveu apoiar
a peça, encenando-a numa de suas sedes.
O que vemos é uma presença muito grande da Bancada da Bíblia, com os
evangélicos. Exemplo disso é a vitória, na eleição municipal no Rio de Janeiro,
de Marcelo Crivella, evangélico da Igreja Universal do Reino de Deus, com
posturas muito radicais do ponto de vista político e moral. Esta é a tendência
que tem predominado na sociedade brasileira.
Os partidos políticos perderam a sua ideologia, penderam para o centro e
não estão representando ninguém. O que estamos vendo é uma luta política dos
partidos por cargos, por troca de favores entre o Legislativo e o Poder Executivo.
Atualmente, o que vemos avançar não é propriamente uma identificação
partidária, mas uma identificação por linhas extremadas de posições políticas.
Os partidos políticos, tanto o PT quanto o PSDB e o MDB, perderam a sua
identidade, e isso se comprova pela posição crítica da população brasileira ante
os partidos. Consideramos que o que estamos vivenciando mostra a necessidade
de se realizar uma reforma política ampla, com uma reforma partidária e eleitoral.
Não acompanhamos, até o presente momento, propostas políticas e
programas partidários. Portanto, estamos vivendo um período muito crítico em
relação ao sistema político, ao sistema partidário, e à legislação eleitoral também.
É nesse contexto político que vários movimentos cívicos se organizam
reivindicando uma nova atuação da classe política. Podemos citar os seguintes
movimentos:

1) Renova BR (http://renovabr.org/). Idealizado pelo empresário Eduardo


Mufarej.
2) Agora! (http://www.agoramovimento.com/) – movimento de ação
política de sociedade independente e sem vinculação partidária. Empresários:
Ademar Bueno e Alice Freitas.
3) Acredito (https://www.movimentoacredito.com/) – processo seletivo
de representantes cívicos.
4) Raps – Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (https://www.raps.
org.br/). Coordenador: empresário Guilherme Leal, um dos controladores da
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 25

Natura e que foi vice na chapa de Marina Silva (Rede) nas eleições presidenciais
de 2010.
5) MBL – Movimento Brasil livre (http://mbl.org.br/). Kim Kataguiri.
6) Frente favela Brasil (http://www.frentefavelabrasil.org.br/) – luta
pelo protagonismo e pelo reconhecimento da dignidade da pessoa negra, dos
moradores de favelas, dos pobres do campo e das periferias do Brasil.
7) Brasil 21 (https://www.facebook.com/mundobrasil21/) – movimento de
inovação política.
8) Frente pela renovação (http://www.frenterenovacao.org/) – Por uma
sociedade mais justa, íntegra, sustentável e democrática.
9) Vem pra rua (https://www.vemprarua.net/). Movimento de luta contra
a corrupção. Rogério Chequer.
10) Bancada ativista (http://www.bancadaativista.org/).
11) Movimento endireita Brasil (http://www.endireitabrasil.com.br/).
Ricardo Salles é o presidente.

Alguns membros dos movimentos cívicos participaram do processo


eleitoral de 2018, conforme relatado por vários de seus representantes. Podemos
destacar a filiação de alguns desses movimentos aos partidos políticos vigentes:
Os grupos de Renovação estão em 27 partidos políticos (OESP, 29/4/2018);
Rede e PSDB são os partidos mais procurados por “novatos” para concorrer nas
eleições; e há também filiações aos movimentos Raps (Rede de ação política
pela sustentabilidade) e o Renova BR.
Dos 559 membros do Raps, 307 são de alguma sigla e estava previsto que
concorreriam nas eleições de 2018.
Rede – 71 filiados do Raps; 28 filiados ao Renova Br (134 bolsistas);
Partido Novo – discurso antipolarização – 20 Raps e 16 Renova Br;
PT – 60 deputados federais e 5 do Raps;
MDB – 51 deputados federais, 7 do Raps e 2 do Renova Br;
PP – 51 deputados federais, 6 do Raps e 3 do Renova Br;
PPS – 8 deputados, 10 do Raps e 16 do Renova Br;
PSDB – 48 deputados, 9 do Renova Br e 49 do Raps.
As atuações cívicas desses novos movimentos pregam a renovação na
política, e seus militantes compreendem que existem limites para promover essa
renovação, pois a filiação nos partidos políticos existentes não significa que esses
novos filiados serão contemplados com financiamento de suas campanhas. Não
estranhamos a manchete do Estadão (21/5/2018), “Movimentos de renovação
esbarram na política ‘real’”, pois os membros desses movimentos cívicos não
26 O Golpe de 2016

acreditam mais em renovação expressiva, uma vez que prevalece o financiamento


dos candidatos, segundo os partidos e a existência de uma estrutura partidária
pouco flexível.
Eduardo Mufarej, do movimento Renova BR, é um dos articuladores
empenhados em criar condições para o aparecimento do Novo na política:

Estamos passando por um processo de tomada de consciência. As nossas


decisões e escolhas não estão nos levando para o lugar em que gostaríamos
de estar. Chegamos a um ponto onde não há escolha: a construção de um
país diferente exige um novo nível de engajamento e de representação”
(OESP, 25/12/2017).

Ricardo Salles, presidente do Movimento endireita Brasil, apresenta


algumas ideias: combate ao “gigantismo estatal”, à burocracia irracional, ao
excesso de regras que estrangula o empresário, à corrupção. Segundo ele, “O
governo é sempre problema, jamais a solução!”. Defende a “tolerância zero” com
o tamanho do Estado e a corrupção. Também defende o endurecimento das leis
penais e mudanças radiais no combate à criminalidade (anúncios pagos – OESP,
6/6/2018, 26/6/2018 e 27/6/2018).
O projeto temático “Lideranças políticas no Brasil: características e questões
institucionais”, financiado pela Fapesp, também acompanha o perfil dos políticos
e a atuação dos coletivos como novos protagonistas dos movimentos sociais.
Para esta pesquisa, entrevistamos algumas lideranças políticas e coletivos,
trabalhando com o perfil dessas lideranças. Para exemplificar esses movimentos
e suas concepções da política, selecionamos o vereador da Câmara Municipal
de São Paulo, eleito pelo DEM, Fernando Holiday, um dos líderes do MBL.3
Segundo o vereador, ele representa a direita que ressurge no Brasil.

É uma direita que procura a redução do Estado de uma forma geral, a redução
da máquina pública, e defende as liberdades individuais. É um público que
durante muito tempo ficou esquecido ou, digamos, silencioso. A partir das
manifestações, esse público veio às ruas, portanto a representação acabou
se tornando mais evidente.

Holiday defende que deve ocorrer uma renovação na política e um novo


jeito de fazê-la.

3. Entrevista concedida em 2017.


luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 27

O vereador defende a meritocracia, mas compreende que nem todos


são iguais. Nesse sentido, compreende que “O Estado precisa dar as mínimas
condições para que essas pessoas possam competir e alcançar o sucesso”.
Ele defende a Escola sem Partido, o cumprimento das penas dos prisioneiros
em regime fechado, a diminuição da maioridade penal e o pagamento das
mensalidades em universidades públicas pelos segmentos mais ricos.
Na página do vereador Holiday, na Câmara Municipal, ele se identifica
como:

Coordenador nacional do movimento e negro, Holiday também se destacou


na luta contra o racismo, sobretudo pela forma inovadora e corajosa de
apontar as cotas raciais como estimuladoras da segregação racial e do
vitimismo; ignorando o protagonismo, a igualdade e a autonomia cidadã.
Da mesma forma, não fez de sua homossexualidade uma bandeira, em
respeito às liberdades individuais (http://www.camara.sp.gov.br/vereador/
fernando-holiday/).

Na sua avaliação, o surgimento de novas lideranças será possível com a


ampliação da atuação nas redes sociais.
Entrevistamos também João Amoêdo,4 do Partido Novo, que relatou
o porquê da criação do Partido: “A política tem uma dinâmica que nós não
gostamos, é a dinâmica da perpetuação no poder, é a dinâmica dos interesses
privados acima dos interesses públicos, é a dinâmica dos cacifes”. Ele explica a
diferença entre os movimentos cívicos e o Partido Novo: “O Novo, na verdade,
já fez essa etapa de um movimento de renovação, mas, para o ciclo ser completo,
para você ser efetivo na mudança, você precisa ter instituições. É inerente a uma
democracia, e essa instituição é o partido político”.
Amoêdo também é contra o sistema de cotas: “Não gosto de separar a
sociedade”.
O Partido Novo recebeu indivíduos dos movimentos cívicos, dentre os quais
se destaca Rogério Chequer, do “Vem pra rua”, que foi candidato ao cargo de
governador do estado de São Paulo, nas eleições de 2018.

4. Entrevista concedida em 2018.


28 O Golpe de 2016

Bancada da Bala

Estamos acompanhando não só a emergência desses movimentos cívicos


que defendem o “novo” na política, mas também o aumento do número de ex-
policiais, militares, bombeiros e policiais federais participando de várias casas
legislativas e, inclusive, atuando em alguns cargos executivos. No presente
processo eleitoral de 2018, até o momento em que escrevemos este artigo,
há cerca de 70 candidatos militares. Segundo a matéria “Militares se unem
para lançar 71 candidatos” (OESP, 9/5/2018), o objetivo é eleger deputados e
governadores em 25 estados e no Distrito Federal. Os militares ficaram motivados
pelo desempenho do candidato do PSL, Jair Bolsonaro5, nas pesquisas eleitorais.
Quais são os projetos defendidos por esse segmento? Combate à corrupção;
direito dos militares de se candidatarem a cargos eletivos; defesa do princípio de
“honestidade” e dos interesses do país; redução da maioridade penal; defesa do
lobby das indústrias armamentistas e oposição ao Estatuto do Desarmamento;
resistências aos projetos de criminalização da homofobia e da inclusão de
discussões de gênero nas escolas (FAGANELLO, 2015). Nesse sentido
destacam-se os representantes da indústria armamentista, formada por alguns
dos parlamentares ligados aos setores militares.
O general do exército da reserva, Augusto Heleno, está sendo pressionado
para entrar para a política. Ele afirmou que Bolsonaro

não é o candidato dos seus sonhos, [mas que] é o único com possibilidade de
mudar o que está aí porque todos querem que se faça uma faxina no país [...]
Exigem o que nunca exigiram de outros candidatos. Querem que Bolsonaro
seja a mistura de Churchill, Margareth Thatcher, Ronald Reagan, o Papa
Pio XII. Essa cobrança nunca foi feita antes aos outros (OESP, 9/5/2018).

Cerca de 60 militares filiaram-se ao PSL por causa do Bolsonaro, candidato à


presidência da República neste processo eleitoral (2018); assim como também se
filiaram a outros partidos políticos: PSDB, PSC, PR, PEN, PRP, Novo, Patriotas,
DEM, PHS, Pros, PTB e PSD.

5. Nas eleições de 2018 foram eleitos 72 militares para as casas Legislativas - https://noticias.
uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/08/militares-eleitos-2018-camara-senado-
assembleia-legislativa.htm; foram eleitos três governadores do PSL ligados a Jair Bolsonaro:
Antônio Denarium, em Roraima; o Coronel Marcos Rocha, em Rondônia; o Comandante
Moisés, em Santa Catarina.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 29

Caso exemplar é o deputado capitão Augusto (PR-SP), que vai de farda


de ex-oficial da Polícia Militar. Ele quis criar o Partido Militar Brasileiro (PMB)
com bancada de 10 a 15 deputados, mas não o registrou porque já existia o PMB
(Partido da Mulher Brasileira): “É o primeiro partido assumidamente de direita”,
originário da antiga Arena. O deputado, inclusive, pensou em possíveis números
para registrar o partido: 18 – idade do alistamento militar obrigatório e idade da
maioridade penal que querem derrubar no Congresso Nacional; 38 – famoso 3
oitão (38), revólver mais usado pelas corporações militares; 64 – em homenagem
à revolução democrática; 99 – para ser diferente de tudo (http://www.camara.
leg.br/Internet/Deputado/dep_Detalhe.asp?id=178829 ).
Pesquisa realizada pela professora Esther Solano6, da Unifesp, sobre o
eleitorado de Jair Bolsonaro, do PSL, caracteriza tal eleitorado a partir de
certas propostas: individualiza a meritocracia; anticientificismo – Ciência como
braço/instrumento armado da esquerda; ciência é menosprezada; ausência
da temática da Segurança Pública pela esquerda; Escola sem Doutrinação
= Escola sem Partido; combate à corrupção – monopólio da direita, não é
trabalhado pela esquerda; Bolsonaro sabe conversar com os jovens e com
setores populares.
Complementando as informações sobre o perfil dos eleitores de Bolsonaro,
reproduzimos os itens coletados na pesquisa realizada pela FSP (2/1/2018): é
um político diferenciado; educação militar é valorizada – impor ordens e regras;
defende população mais bem armada; propõe castração química para estupro; não
defende direitos de minorias como os LGBTQ; imigração – é contra, dependendo
de quem for; estilo – bateu/levou.
O que prevalece no discurso do Jair Bolsonaro e que é aceito pelos setores
conservadores da sociedade brasileira: é misógino – contra/despreza as mulheres;
apresenta discurso do ódio; instrumenta o medo e a insegurança – projeto
autoritário; é contra a união homoafetiva; faz campanha pela Escola sem Partido.
Além disso, Segundo Pablo Ortellado, “o sentimento conservador de que
os pais estão perdendo o controle da formação moral dos filhos e de que a escola,
as artes e os meios de comunicação estão invadindo a competência da família e
da igreja e sabotando a ordem moral tradicional” (FSP, 2/1/2018).
A Bancada da Bala avalia que está ocorrendo uma percepção da insegurança
e desordem pública radical, portanto excesso de liberdade e perda de autoridade

6. Debate sobre o Conservadorismo e a Nova Direita no Brasil. Realizado pela Cedem/Unesp,


em 12/4/2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RsqywNAXjto&feat
ure=youtu.be> .
30 O Golpe de 2016

das instituições, incapacidade de as leis democráticas e do Estado de Direito


promoverem a ordem.
Na bancada dos militares em São Paulo, destacam-se: conde Lopes, vereador
do PTB; Paulo Tellada, vereador e deputado estadual do PSDB; major Olímpio
– deputado estadual e federal pelo PDT/Solidariedade; delegado Olin, da Polícia
Civil, deputado estadual pelo PP; coronel Álvaro Camilo, vereador e deputado
estadual pelo PSD, modelo de policiamento comunitário.
Entrevistamos três deputados federais que defendem propostas da Bancada
da Bala: delegado Waldir PSL- Goiás; deputado Onyx Lorenzoni – DEM-RS;
major Olímpio – PSL-SP. E, dessas entrevistas, realizadas na Câmara dos
Deputados, selecionamos algumas passagens.7
O delegado Waldir esclarece os projetos que apresentou para a área da
Segurança:

Fui o quarto parlamentar que mais apresentou projetos de segurança pública,


então isso tem chegado no eleitor, principalmente, através das redes sociais,
porque, numa recente pesquisa, meu nome chegou a aparecer, sem eu ser
candidato, ao governo do estado de Goiás; então a gente acaba tendo
coragem e, sem dúvida nenhuma, o reconhecimento, das ações que tenho
tomado. E tem muitos projetos na área de segurança, agravando a pena em
crimes, como formação de quadrilha, homicídio culposo no trânsito, daquele
motorista que bebe e dirige, em alta velocidade, embriagado, mata na faixa
de pedestre; até, recentemente, nós conseguimos aprovar o projeto de uma
deputada nessa linha, endurecendo a pena do motorista que dirige embriagado
e que mata e dirige, mas o meu aperfeiçoa essa linha. Tenho vários projetos
também, como aquele que impede o contato do preso com a família e com
advogado, exceto no parlatório. O Brasil é um dos únicos países do mundo
onde existe a visita íntima, então queremos avançar dentro do que já existe
fora do país. Sou também defensor da redução da maioridade penal, tem
um projeto nosso. Também adoto a linha americana e inglesa, segundo a
qual a partir do momento em que o adolescente tenha conhecimento do
caráter ilícito de uma conduta, ele tem que responder por ela. É claro que
separado, num local específico, com pessoas da sua idade, com uma estrutura
de Estado para educação, trabalho, lazer, mas tudo muito organizado. Tem
um projeto, também, em que a gente prevê que o preso pague pela estadia
dele em presídios, por quê? Hoje, se o criminoso mata alguém da minha

7. Entrevistas concedidas em Brasília, em dezembro de 2017.


luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 31

família, ou rouba o carro de vocês que estão nos assistindo, o que acontece,
na verdade, é que ele vai para o presídio, e nós temos que sustentar aquele
que praticou um crime contra nós. Em outros países do mundo também,
os mais modernos, o preso paga a estadia no presídio, paga pasta de dente,
paga produtos de higiene, paga alimentação, paga o vestuário, é essa a nossa
pretensão. Nós temos projetos nessa linha, de endurecimento da lei de
execução penal, para que a gente possa diminuir a sensação de impunidade
que nós temos no país hoje.

O major Olímpio defende a participação dos militares na política:

Olha, o que acontece é o seguinte, o militar ser militar, ser militar federal
ou militar de estado, como qualquer cidadão, ele pode participar e
nós acabamos descobrindo, como eu acabei descobrindo, um caminho
pela representatividade pelo campo democrático, pela manifestação da
credibilidade e confiança, e a insegurança do Brasil é tão grande por conta de
tudo que acontece, das omissões governamentais, na corrupção, nos desvios,
e nós não temos sequer regulamentado o papel da polícia brasileira que está
descrito na Constituição, e nós temos essas “meias” polícias aqui no Brasil,
sem ter um ciclo completo da polícia funcionando.

Ainda segundo o major Olímpio, a “Bancada da Bala” foi um apelido criado


pela mídia, como forma de enaltecer ou desmerecer. O deputado explica:

Se você pegar, dentro da estrutura da Câmara, as duas maiores bancadas


que tem hoje, ou frente parlamentar... tem uma frente parlamentar da
segurança que tem mais 300 e poucas pessoas, mas nunca tivemos, de fato,
uma reunião da frente parlamentar de segurança. Nem agora para escolher
os projetos que iam ser votados, se pautou o interesse de um, de duas pessoas
e acabou. Aí você fala: “mas é uma força, a Bancada da Bala”. Eu sempre
digo “prefiro ser da bancada da Bala a da Bancada da mala”, essa é a maior
aqui dentro do Congresso, sem a menor dúvida hoje. Eu sou da Bancada da
Bala que funciona porque eu fui dos proponentes, ou o proponente, numa
CPI para avaliar, justamente, a Taurus, que é o fabricante único das armas
no Brasil, que os governos dos estados compram e que o cidadão é obrigado
a comprar, tem um monopólio, tem uma proteção e um manto protetor do
próprio exército brasileiro, que é responsável por isso, e acabei me chocando
com a própria Bancada da Bala aqui dentro, por causa do lobby da Taurus.
32 O Golpe de 2016

Eles disseram “não pode ter uma CPI para isso, vai prejudicar a indústria
nacional”, e eu disse: ‘’não senhor, não podemos compactuar com safadeza,
quem está pagando isso é a população”. Então, se você disser que isso é uma
bancada, nós temos sete deputados que são militares, que foram eleitos
na última legislatura, acabou chamando atenção porque, em determinado
momento, não tinha, só por isso.

Ao ser perguntado sobre o crescimento desse segmento no Congresso


Nacional, o deputado respondeu:
E esse despertar de mais militares, principalmente de militares estaduais,
policiais militares e bombeiros, de disputarem eleições, isso tá crescendo
realmente, se despertando esse interesse [...] Olha, vamos pelo campo do voto
para tentar minimizar a nossa dor.

O deputado Onyx Lorenzoni é um dos defensores da revisão do Estatuto


do Desarmamento:

[...] o direito à legítima defesa. A sociedade brasileira pagou um referendo em


2005, que foi caro, 100 milhões de brasileiros votaram, e todos os governos
de lá pra cá desrespeitam absolutamente isso. A Declaração Internacional de
Direitos Humanos, da qual mais de 50 países são signatários, tá lá gravado: o
único momento que o ser humano está autorizado a tirar a vida de outro ser
humano é na defesa da própria vida, tá lá, esse direito ninguém pode tirar.
Esse é um dos direitos mais fundamentais, que é o direito de defesa à vida,
que hoje é literalmente roubado da população. E veja como é significativo.

Considerações finais

A crise política atual é grave, e mudanças mirabolantes e saídas políticas


que apontam para a “consolidação da democracia brasileira”, palavra de ordem
de muitos intelectuais que analisam a crise, não deverão alterar muita coisa. A
democracia no país é instável, com características peculiares, e vai continuar a
ser assim enquanto não mudar a cultura política da sociedade brasileira, marcada
por uma visão antipolítica e antipartidária. O comportamento de alguns setores
da nossa classe política também contribui para o questionamento das esferas
governamental e parlamentar, resultado de vários escândalos políticos produzidos
nos últimos anos. Essa crise parece, isto sim, indicar de forma contundente as
impossibilidades da política brasileira.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 33

Enfrentamos, sem dúvida nenhuma, uma crise de representação, uma


descrença nos partidos e políticos – 90% dos cidadãos não se sentem representados
por nenhum partido e 92% acreditam que todos ou quase todos os políticos são
ladrões (pesquisa José Álvaro Moisés – OESP, 1º/5/2017).
É nesse contexto de desconfiança e de descrença nas instituições políticas,
nos partidos e nos políticos, que são germinados os movimentos cívicos, que
defendem o “novo” baseado em ideias retrógradas e conservadoras, e no qual
encontramos também o aumento da participação dos militares na política.
Destacamos alguns posicionamentos políticos de setores da sociedade brasileira
identificados com estas posições: são contra o aborto; definem-se como
homofóbicos e contra o casamento homoafetivo; são machistas; defendem a
diminuição da maioridade penal; querem a revisão do Estatuto do Desarmamento;
são defensores da Escola sem Partido.

Referências

BOBBIO, N. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política.


São Paulo: Editora da Unesp, 1995.
BRUGNAGO, F. e CHAIA, V. “A nova polarização política nas eleições de 2014:
radicalização ideológica da direita no mundo contemporâneo do Facebook”.
Revista Aurora (PUCSP. Online), v. 7, pp. 99-129, São Paulo, 2015.
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Acesso em: 4 jun 2018.
Golpes e narrativas: a imprensa em 1964 e 20168

Luiz Antonio Dias e Rafael Lopes de Souza

O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio


exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão
em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
(Walter Benjamin)

Nesse capítulo pretendemos analisar a ação da imprensa – em especial dos


grandes jornais paulistanos (Folha de S. Paulo e Estadão) – no processo que levou
ao Golpe de 1964 contra o presidente João Goulart, comparando a atuação
desses periódicos no evento de 1964 com o período que antecedeu o Golpe de
2016 e levou à deposição da presidenta Dilma Rousseff. A despeito dos avanços
sociais ocorridos entre os anos de 2003 a 2014, é importante salientar que a
imprensa trabalhou na construção de um discurso alarmista, a fim de convencer
a população de que esse foi o “pior momento” da história do Brasil. Essa postura
negativista guarda semelhanças com o que a imprensa propalava em meados da
década de 1960, quando esmerou-se na construção de uma contranarrativa aos
programas de governo de Jango: “pior crise do país”, “governo mais corrupto da
história”, “iminência de um golpe comunista”. Esse discurso conseguiu capturar
amplos setores das camadas médias que, doravante, encorajadas por essas

8. Texto produzido a partir da aula de mesmo nome, proferida na APROPUC (Associação dos
Professores da PUC/SP) em 20/04/2018, dentro do curso “O Golpe de 2016 e o futuro da
democracia”. Parte da discussão sobre o Golpe Civil-Militar de 1964 e sua rememoração em
2014 amparou-se em artigo que publicamos em 2014: DIAS, L. A. e SOUSA, R. L. “Entre
a memória e o esquecimento 1964-2014: O Golpe ontem e hoje”. In Projeto História, São
Paulo, n. 50, pp. 171-201, Ago. 2014.
36 O Golpe de 2016

“verdades” ocuparam as ruas com a exigência de uma intervenção militar para


salvar o Brasil dos corruptos e dos comunistas. Processo semelhante será vivido
em 2016, quando setores majoritários das classes médias ocuparam novamente
as ruas exigindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
São muitos, pois, os elementos de aproximação entre os golpes 1964 e 2016;
uma diferença, contudo, salta aos olhos: em 2016 os militares não saíram da caserna,
daí a dificuldade de variados setores da sociedade civil em aceitar que houve golpe.
O fato é que, com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, a palavra golpe
e suas interpretações ganharam visibilidade nos debates públicos: do trabalhador
ao patrão, do estudante ao professor, do feirante ao consumidor, do jornalista ao
leitor, do pastor ao obreiro, do advogado ao cliente, enfim, em todos e em cada
um dos espaços da sociedade – seja ele público, seja ele privado, de letrados ou
semiletrados – a palavra golpe se fez presente e dividiu as opiniões dos brasileiros.
Apesar de não se apresentar em sua forma clássica, pois os tanques não saíram às
ruas para “caçar comunistas” e “impor a ordem pública”, é preciso lembrar que
outras características do golpe de 1964 foram mimetizadas e trabalhadas à exaustão
no Golpe de 2016 como, por exemplo, uma plataforma de “combate à corrupção”,
de redução dos “privilégios” e “impunidade” dos políticos e, por último, mas não
menos importante, a construção atemporal de perseguição aos comunistas que, aliás,
carregava um imenso apelo aglutinador das camadas médias urbanas e rurais contra
todas as demandas e políticas públicas elaboradas e criadas nos governos do PT.
Os golpes podem ser militares, civis, legislativos e até mesmo patrocinados
pelo Judiciário mas, independentemente da origem, todos têm no DNA uma
seiva comum, isto é, são financiados pelas grandes instituições financeiras
e corporações empresariais que, em conluio com as grandes empresas de
comunicação, trabalham para criar um clima alarmista que justifique o
rompimento institucional em uma determinada conjuntura. Esse roteiro de golpe
cercou a vida política de diversos países da América Latina na primeira década
do século XXI. Conforme podemos depreender nas análises de Ramos (2016),

Até o golpe de 2009, em Honduras, a despeito de ter havido quatro tentativas


golpistas – a remoção “legal” de Jamil Mahuad, no Equador, em 2000; a
tentativa de golpe institucional contra Hugo Chávez, em 2002; a “saída”
forçada de Jean-Bertrand Aristide, no Haiti, em 2004 –, a América Latina
vinha completando três décadas ininterruptas de democracia (a despeito,
ainda, da tentativa de golpe policial contra Rafael Correa, no Equador, em
2010) e a deposição de Zelaya Rosales marcou o início de um neogolpismo
na região, que se disfarça de institucional e se lança contra o Presidente da
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 37

República revestido de juízo político, mesmo modus operandi utilizado para


o afastamento de Fernando Lugo e, agora, na tentativa de impedimento da
presidenta Dilma Rousseff. (RAMOS, 2016, p. 6)

No Brasil, logo após a confirmação do Golpe, abriu-se uma disputa entre os


algozes e os apoiadores do governo Dilma. A disputa se deu em torno do uso e da
legitimidade do uso da palavra golpe para caracterizar os acontecimentos de 2016.
Os algozes do governo Dilma insistiam e insistem que não houve golpe, uma vez que
todos os trâmites legais para sua deposição foram respeitados e, ademais, o processo
foi referendado pela Suprema Corte. Os apoiadores do governo contra-argumentam
que o processo nasceu com um vício de origem, a saber: falta de tipificação de
crime de responsabilidade como determinado pela lei 1079/1950. Essa insegurança
jurídica contaminou as disputas políticas com manobras, direcionamento e controle
de pautas exercido pelo presidente da Câmara que facilitou, por exemplo, a adoção
de um calendário de “pautas bombas” cuja finalidade era a de fragilizar, vale dizer,
sabotar o governo e a governabilidade. Abria-se, assim, uma disputa pela construção
da narrativa dos acontecimentos de 2016 ou, dizendo de outro modo, uma disputa
pela narrativa da palavra golpe. Essa disputa trabalha com inúmeros lugares de
fala e constrói inúmeras maneiras de ver e perceber os acontecimentos da história.
Considerando que há diferentes narradores para um mesmo acontecimento, é
possível também considerar que há interesses divergentes nas diversas instâncias
de disputa do poder que consagrou o passado, controla o presente e anuncia as
possibilidades de futuro. Nesse sentido, e com o propósito de contribuir com o
debate, propomos uma discussão sobre o papel da grande imprensa paulistana nos
Golpes de 1964 e de 2016 e, uma vez que a disputa pelo poder não está presa ao
presente, nem é refém do passado, pretendemos avançar com nossas análises até o
ano 2018, quando há uma nova etapa do Golpe, isto é, com a perseguição judicial
contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em 2018 o Golpe expande suas pretensões intervencionistas e acelera os
processos para a inabilitação política do ex-presidente Lula, principalmente
depois de se constatar o potencial eleitoral que este demonstra nas pesquisas
de opinião. Situação semelhante foi também vivida por Juscelino Kubitschek
(1902-1976) e João Goulart (1919-1976) na década de 1960. Percebe-se,
assim, que, para além de sua finalidade precípua, a deposição da presidenta Dilma
– inclusive para “estancar a sangria”9 que se aproximava-se perigosamente de

9. Faz menção ao diálogo captado entre o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado e Senador
Romero Jucá (PMDB-RR). No diálogo, Machado alerta que as novas delações na Lava Jato
38 O Golpe de 2016

seus articuladores –, o Golpe tem também uma finalidade estratégica, a saber:


compromisso inarredável de levar adiante o desmonte e a interdição de todos
os avanços sociais alcançados nos governos do PT. Esse intento evidenciou-se
no açodamento em impor uma nova legislação trabalhista, nas mudanças nas
regras do Pré-Sal, nas mudanças nas diretrizes educacionais e em muitas outras
medidas que viriam a ter impacto direto na vida dos mais pobres, como é o caso
da redução do número de beneficiários do Bolsa Família em todas as regiões do
Brasil.
Se, por um lado, é possível dizer que os eventos e acontecimentos da história
nunca se repetem integralmente, em sentido oposto é possível afirmar que a
sensação de déjà vu é recorrente na história e nas experiências de vida de uma
mesma geração. Talvez por isso, quando olhamos para um período mais longo
essa sensação torna-se ainda mais intensa. Assim, não podemos ignorar o fato
de que os grupos envolvidos nos golpes e, em tentativas, nas últimas décadas
no Brasil, são os mesmos e com os mesmos agentes. Num extremo dessa prática
antidemocrática, temos o grupo dos patrocinadores, isto é, as grandes corporações
financeiras e industriais que garantem recursos aos intervencionistas; no outro
extremo, temos o grupo de apoiadores e divulgadores, quase que inalterados,
ou seja, são as mesmas famílias que na década de 1960 controlavam as grandes
empresas de comunicação do país. Além disso, quando ampliamos o campo de
análise, da esfera privada para a esfera pública, percebemos que a estrutura do
poder judiciário, nesse período, ficou praticamente inalterada, com um viés de
“proteção classista” quase estamental e, portanto, menos acessível do que os
outros dois poderes, o Executivo e o Legislativo. Nesse sentido, ainda que tenham
ocorrido mudanças no organograma dos grandes jornais e, o acesso ao poder
judiciário tenha melhorado, o fato é que a estrutura de informação e participação
política da nação permaneceu praticamente inalterada nos últimos cinquenta
anos – distante, portanto, das demandas e vontades populares.

Como na campanha do início dos anos 1960, as famílias que controlam as


grandes mídias nacionais assumiram um protagonismo político decidido, sob
a liderança dos Marinho. Na televisão, foram sucessivas edições do Jornal
Nacional voltadas a destruir Lula – com o objetivo de criminalizá-lo a ponto

não deixariam “pedra sobre pedra”. Preocupado com os desdobramentos das investigações,
Jucá sinaliza o caminho a ser adotado pelo núcleo político a partir daquele momento: [...] “Se
é político, como é a política? Tem que resolver essa porra. Tem que mudar o governo para
estancar essa sangria”, diz Jucá, um dos articuladores do impeachment de Dilma. [destaque
nosso].
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 39

de impedir sua candidatura nas eleições de 2018, o PT e, finalmente, Dilma.


(LOPES, 2016, p. 102)

Com essa concentração e com o domínio familiar, a imprensa, na maioria


das vezes, acaba por reproduzir uma história que carrega prioritariamente
os sentimentos, desejos e interesses da linha editorial do jornal. Assim, para
entender a cobertura que a grande imprensa paulistana fez e continua a fazer
dos Golpes de 1964 e 2016, é necessário compreender mais detalhadamente
como se deu a formação e desenvolvimento dessas instituições empresariais na
sociedade brasileira.
O grupo Folhas começou a ser gestado em 1921. Desde sua fundação até
o início da década de 1930, todos os jornais que pertenciam a essa estrutura
empresarial tiveram a sua orientação editorial voltada, quase que integralmente,
para atender as demandas locais, sobretudo aquelas relacionadas às decisões
tomadas pela administração do município; essa característica marcou grande
parte da história do jornal. Em agosto de 1962, depois de várias mudanças, o
jornal passou à responsabilidade de Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira
Filho. Nesta mesma década os três jornais do grupo Folhas – Folha da Manhã,
Folha da Tarde e Folha da Noite – transformaram-se em um único jornal, conhecido
agora como Folha de S. Paulo, com três edições diárias. Ainda que tenham
ocorrido alterações desde 1962, em verdade, a linha editorial não se alterou
significativamente até os dias atuais.
O jornal O Estado de S. Paulo – fundado em 1875, como Província de S.
Paulo – nasceu norteado pelos princípios e projetos do pensamento liberal. Talvez
por isso, trazia já em seu nascedouro uma visão mais elitizada da sociedade que
se evidenciava na aberta e sistemática crítica que fazia aos movimentos sociais,
nem tanto contra a pertinência de suas causas, mas, sobretudo, pela forma de
atuação de seus membros. Ao longo de sua história esse periódico também pouco
mudou em sua visão de mundo; os dois veículos evidentemente acompanharam
as transformações ocorridas no mundo e no Brasil, mas mantiveram, em linhas
gerais, suas posições políticas ideológicas.
Apesar de representarem públicos diferentes e, por isso mesmo, apresentarem
algumas distinções pontuais acerca da missão jornalística, em linhas gerais os
jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo estavam de acordo em unir forças
para combater, ao menos nas décadas de 1950 e 1960, o inimigo comum da
sociedade brasileira, na visão desses periódicos: o comunismo. Essa situação sofreu
alterações com o processo de redemocratização. Nessa nova conjuntura, muitos
veículos de comunicação que apoiaram o Golpe apressaram-se em construir
40 O Golpe de 2016

e vender uma imagem de incondicionais defensores da democracia. Criando,


com essa atitude, a falsa, porém conveniente impressão, de que, ao longo de
todo o período ditatorial, essa posição da imprensa foi homogênea e constante.
Essa narrativa avançou ao longo do processo de redemocratização e, em 2014,
na rememoração do Golpe de 1964, fica evidente a tentativa de mostrar que a
atuação em 1964 representava uma luta pela democracia.
No período mais atual, verifica-se um antipetismo de forma mais velada
na Folha de S. Paulo e de forma mais aberta no O Estado de S. Paulo, ocupando,
assim, o espaço que já foi dedicado ao discurso “anticomunista”.
Jornais são empresas que, como outras, visam ao lucro, portanto, não
é improvável – apesar de condenável – que em alguns momentos se tornem
aliados de governos, ou políticos, que possam contribuir para o aumento desse
lucro. Não podemos esquecer que a estrutura de uma sociedade é formada por
uma rede de interesses políticos e econômicos, ou seja, o apoio dado por um
jornal a um político pode render verbas publicitárias a este jornal, ou mesmo
linhas de crédito mais acessíveis, portanto, na análise desses periódicos sempre
é importante:

[...] inquirir sobre suas ligações cotidianas com diferentes poderes e interesses
financeiros, aí incluídos os de caráter publicitário. Ou seja, à análise da
materialidade e do conteúdo é preciso acrescentar aspectos nem sempre
imediatos e necessariamente patentes nas páginas desses impressos (LUCA,
2006, p. 140).

Outro ponto relevante é o ideário político, as convicções pessoais do dono


do jornal e dos jornalistas. A imprensa – por meio dos proprietários, editores e
jornalistas – determina o que será “notícia” e como o episódio será noticiado.
Cabe ao historiador, a partir de instrumental teórico-metodológico, discutir e
problematizar essa narrativa, tentar entender o que tornou “notícia” esse ou
aquele episódio.
Utilizamos, também, como fontes primárias pesquisas de opinião pública,
com temas políticos. A primeira delas foi realizada às vésperas do Golpe de
1964, pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), cabendo
destacar que essa pesquisa não foi divulgada em 1964. Também apresentamos
e discutimos duas pesquisas mais recentes (2018) realizadas pelo Datafolha
(instituto de pesquisas ligado ao grupo Folhas), para, comparativamente,
problematizarmos a conjuntura política como um elemento detonador dos
golpes.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 41

Nossa hipótese é a de que, quando se trabalha com a história do tempo


presente, esse documento – a pesquisa de opinião – torna-se uma das mais
importantes fontes de investigação da realidade sociocultural de uma época.
É essa, precisamente essa, particularidade de se verificar o “imediato”, o “aqui
e agora” com dados estatísticos que permite ao historiador levantar múltiplas
abordagens interpretativas para um mesmo acontecimento, sem esquecer, como
ensinou Guinzburg (1989), que cada documento carrega sinais ocultos e vozes
muitas vezes silenciadas de seu tempo. O que estamos a dizer é que o material
aqui analisado não é um espelho irretocável da realidade. Em outras palavras,
as pesquisas de opinião não são neutras, elas carregam interesses, expectativas e
necessidades dos clientes, que podem demandar ou buscar necessidades ocultas
do pesquisado. Conforme salienta Bourdieu (2004):

[...] não medirá nada além do efeito exercido pelo instrumento de medida:
isso é o que acontece sempre que o pesquisador impõe aos entrevistados
uma problemática que não é a deles – o que não os impedirá de responder
a ela, apesar de tudo, por submissão, por indiferença ou por pretensão.
(BOURDIEU, 2004, p. 224).

Portanto, considerando todos os problemas e limitações que a nossa fonte


documental apresenta, ainda assim consideramos que ela pode nos ajudar a
perceber as similitudes entre os acontecimentos de 1964 e 2016.

1964 e a “construção” das crises

Ao assumir a defesa do governo militar, em 1964, a Folha de S. Paulo e O


Estado de S. Paulo fizeram ecoar o pensamento de variados setores da imprensa.
Para esses setores, a defesa da “Revolução Gloriosa” era o caminho mais seguro
para reencontrar a paz social e garantir os direitos básicos do cidadão, ameaçados,
naquele contexto, pela perigosa presença comunista no território brasileiro.
Estimulado por essa paranoia, o jornal Folha de S. Paulo afirmava em editorial,
intitulado “Em defesa da Lei”:

Não foi por falta de advertências que a situação nacional chegou ao estado
em que hoje se encontra (...). Ninguém por certo desejou tal situação,
excluídos certamente os elementos comunistas para os quais a situação
do país estará tanto melhor quanto pior em verdade for. Esses elementos,
infelizmente, vêm agindo há muito em altos cargos da administração
42 O Golpe de 2016

pública federal e, de certa maneira, orientando muitas ações do governo.


(1964, p. 4)

A sequência do editorial reforçava os argumentos de que o presidente


deposto, João Goulart, governava em conluio com os comunistas e, o que era
mais grave, violava constantemente a Constituição com tentativas inaceitáveis
de subordinar o Congresso aos interesses da ideologia comunista. Para fermentar
ainda mais a situação, ocorriam as greves que contavam com a “simpatia” do
presidente, paralisavam o país e provocavam uma aguda crise econômica.
Motivado por essa conjuntura adversa, o editorial não economizava argumentos
para convencer a população de que o golpe militar, antes de ser uma “rebelião
contra a lei”, era um ato de patriótica coragem dos militares em defesa da ordem:

Depois de lentamente tentar corromper o cerne das Forças Armadas mediante


a conhecida pregação falsamente reformista, surgia o golpe que deveria
prenunciar o fim da legalidade democrática: o assalto à própria organização
das Forças Armadas. E estas, em vários pontos do país, chefiadas por alguns
de seus chefes de maior respeitabilidade, se levantaram em defesa das
instituições ameaçadas. São claros os termos do manifesto do comandante
do II Exército. Não houve rebelião contra a lei, mas uma tomada de posição
em favor da lei. Na verdade, as Forças Armadas destinam-se a defender a
pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem (...). Resta-nos
esperar que os focos de resistência esboçados em raros pontos logo desfaçam,
para que a família brasileira reencontre no menor prazo possível a paz a qual
tanto aspirava o povo, livre da pregação e da ação dos comunistas que se
haviam infiltrado no governo, volte a ter o direito, que lhe haviam tirado,
de trabalhar em ordem e dentro da lei. (EM, 1964, p. 26. Destaque nosso.)

Pode-se dizer, então, que a Folha de S. Paulo, com o posicionamento


assumido em sua linha editorial, ajudou a construir um discurso de legalidade
à deposição do presidente João Goulart. De tal sorte que, nas páginas desse
periódico, o “golpe” tornava-se uma ação revolucionária para salvar o país das
mãos dos comunistas.

O regime político que irrompeu a partir de 1964 se debateu, desde seus


primeiros momentos, para atestar a legitimidade de seu poder de mando e
decisão. Para isso, ele lidou com dois desafios. O primeiro foi construir os
elementos que viessem a certificar, de imediato, que aquele movimento era
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 43

legítimo. O segundo se caracterizou pelo empenho do grupo de poder em


dar continuidade ao processo de construção da legitimidade no transcorrer
dos governos ditatoriais. (REZENDE, 2013, p. 41)

O jornal O Estado de S. Paulo, por sua vez, apresentou de forma ainda mais
intensa as suas convicções. Para esse periódico 1964 – e não 1945 – marcava
o “fim da ditadura no Brasil”. Essas convicções foram explicitadas, mais uma
vez, em 2 de abril de 1964 em editorial intitulado “O significado maior de uma
vitória”, no qual o jornal oferecia suas explicações para os acontecimentos que
precipitaram o golpe militar de 1964.

A grande vitória de ontem, conduzida pela mão segura do general Amaury


Kruel, à frente do II Exército, vem, como era inevitável, sendo interpretada
das mais diversas maneiras. Para os que tendem a encarar os acontecimentos
pelo seu lado superficial, ela surge como o epílogo dos fatos que tiveram início
na semana santa. Na realidade, porém, o significado do primeiro de abril é
muito mais profundo e complexo. Antes de mais nada, um triunfo alcançado
está a dizermos que, finalmente, a democracia brasileira venceu a ditadura
sobre cujas as estruturas a Nação vegetava. (1964, p.3)

Quando Castelo Branco assumiu o poder, a Folha de S. Paulo apressou-se em


publicar um editorial elogioso ao novo mandatário da nação com os seguintes
dizeres: “O presidente de Todos”. Para além da bajulação explícita desse editorial,
o que se buscava era conferir legitimidade ao novo governo que trazia para todos
os brasileiros a esperança de um novo tempo.

A nação ouviu ontem do presidente da República, na solenidade de sua posse,


as palavras que desejava ouvir (...). É com satisfação que registramos ter seu
discurso de posse reafirmado todas as nossas expectativas e revigorado a nossa
esperança de que uma nova fase realmente se descerrou para o Brasil. (1964, p. 4)

Os editoriais seguem doravante uma linha de apelo emocional sempre


convocando os cidadãos de “bem” a engajarem-se na construção desse novo Brasil
agora, finalmente, livre da contaminação comunista. O editorial “O sacrifício
necessário”, explicita esse urgente desejo:

Nossas palavras dirigem-se hoje, de maneira muito especial, a todos aqueles


que entendem, e com razão, que para a redenção da pátria se torna preciso
44 O Golpe de 2016

dar mais do que trabalho de todos os dias e a confiança, geradora de disciplina


(...). Dirigem-se aos que se acham dispostos ao sacrifício de interesses, de
bens, de direitos, para que a nação ressurja, quanto antes, plenamente
democratizada. (1964, p. 4. Grifos nossos)

Interessante notar que, antes da deposição de João Goulart, o jornal


considera que a convocação de um comício, aquele ocorrido na Central do
Brasil em 13/3/1964, era um ato atentatório à democracia. Foi assim, evocando
a defesa da lei, que a Folha de S. Paulo, no dia seguinte ao comício da Central do
Brasil, conclamava as Forças Armadas a resistir às pretensões inconstitucionais
do governo. Seu editorial destacava:

O comício de ontem, se não foi um comício de pré-ditadura, terá sido um


comício de lançamento de um espúrio movimento de reeleição do próprio
Sr. João Goulart. Resta saber se as Forças Armadas, peça fundamental para
qualquer mudança deste tipo, preferirão ficar com o Sr. João Goulart, traindo
a Constituição, a pátria e as instituições. Por sua tradição, elas não haverão
de permitir essa burla. (COMÍCIO, 1964, p. 4)

O jornal O Estado de S. Paulo foi ainda mais enfático na sua crítica a esse
episódio. No editorial “O presidente fora da lei”, de 13/3/64, o periódico acusava
o presidente de desrespeitar a lei e cobrava, novamente, uma ação das Forças
Armadas: “[...] é também o momento das Forças Armadas definirem, finalmente,
a sua atitude ambígua ante a sistemática destruição do regime pelo sr. João
Goulart, apoiado nos comunistas”. (p.3)
Nos dias seguintes, o jornal continuou acusando o governo de promover
a desordem e a baderna na Guanabara; além disso, criticava constantemente
as Reformas de Base, alegando que o “povo ordeiro” não apoiava tais medidas.
Uma acusação, recorrente no início de 1964, era que Goulart pretendia
manter-se no poder após o final de seu mandato, com alteração da Constituição
ou mesmo com um golpe de Estado. Segundo a Folha, o presidente da República
dava sinais inequívocos de sua pretensão de realizar uma revisão constitucional
para poder permanecer no poder, por meio de uma reeleição em 1965.

[...] tem bases inteiramente falsas e até impatrióticas o movimento a


que determinados setores da esquerda, ligados ao Sr. João Goulart, vêm
procurando dar consistência nos últimos dias: o de que a reeleição do atual
presidente, em 1965, representa uma ‘solução’ para os problemas eleitorais
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 45

das forças que a si se intitulam populistas progressistas [...]. (QUEREMISMO,


1964, P. 4)

Sobre essa situação é interessante observar que as pesquisas de opinião


realizadas às vésperas do Golpe, que se mantiveram escondidas por décadas,
mostravam justamente o contrário, ou seja, não eram “setores de esquerda” que
fomentavam o “queremismo”; havia sim um amplo apoio popular às medidas de
Goulart e também a uma possível candidatura à presidência em 1965.

TABELA I

Pergunta:
Se o Presidente João Goulart também pudesse candidatar-se à Presidência
Votariam nele Não Votariam Não Sabem
Fortaleza 57% 34% 9%
Recife 60% 28% 12%
Salvador 59% 32% 9%
Belo Horizonte 39% 56% 5%
Rio de Janeiro 51% 44% 5%
São Paulo 40% 52% 8%
Curitiba 41% 45% 14%
Porto Alegre 52% 44% 4%
AEL - IBOPE – Pesquisas Especiais. Notação PE 060 MR0277. Realizada em Fortaleza, Recife,
Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre, entre 9 e 26 de março
de 1964. Sem identificação de contratante. 500 entrevistados em São Paulo e Rio de Janeiro e
400 nas demais capitais. Tabela organizada pelo autor.

Esses índices, em muitas capitais superiores a 50%, indicavam uma clara


possibilidade de vitória de Goulart. Nessa mesma pesquisa foram realizadas
várias simulações para a eleição de 1965, todas sem Goulart. Para efeito de
comparação pode-se verificar a Tabela II, indicando que apenas em Fortaleza e
Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek supera Goulart. Como foram perguntas
distintas, essa comparação evidentemente apresenta alguns problemas, no
entanto apontam para chances reais para a eleição de João Goulart, caso fosse
possível sua candidatura.
46 O Golpe de 2016

TABELA II

Pergunta:
Para Presidente da República, dentre estes candidatos, votariam em :
Adhemar Carlos Juscelino Magalhães Em Não
de Barros Lacerda Kubitschek Pinto branco sabem
Fortaleza 5,0 16,5 60,2 3,0 6,3 9,0
Recife 5,8 19,2 45,2 4,5 6,3 19,0
Salvador 9,5 18,1 45,2 6,0 8,0 13,2
Belo Horizonte 6,1 18,8 54,0 9,5 5,8 5,8
Rio de Janeiro 8,5 34,3 35,6 5,7 7,3 8,6
São Paulo 10,4 21,6 31,8 8,3 15,1 12,8
Curitiba 10,8 19,1 35,8 1,5 7,0 25,8
Porto Alegre 16,5 24,2 25,2 13,1 10,5 10,5

AEL - IBOPE – Pesquisas Especiais. Notação PE 060 MR0277. Tabela organizada pelo autor.

Ainda sobre a possível candidatura de Goulart, é importante discutir outros


números dessa pesquisa, por exemplo, os índices de acordo com os grupos sociais
na cidade de São Paulo, nos quais se verificou que, se entre os pobres Goulart
receberia 56% dos votos, entre os mais ricos ele teria apenas 23%, além de uma
altíssima rejeição (72%).
Assim como a Folha de S. Paulo apresentava-se como porta-voz da opinião
pública e condenando o “queremismo”, o jornal O Estado de S. Paulo também
seguia caminho semelhante, publicando em 12/3/64 o editorial intitulado
“Unanimidade na repulsa”, no qual destacava o “[...] constante aprofundamento
do divórcio entre o governo da República e a opinião pública nacional.” (p.3).
Evidentemente nenhum dos dois veículos representava a “opinião pública” e
ainda assim agiram de forma intensa para descontruir e negar o apoio que João
Goulart possuía.
Dessa forma, não seria exagerado supor que o plano de desconstrução do
governo Goulart não tenha logrado o êxito esperado e, nesse caso – depois da
tentativa de impedimento da posse em 1961, do apoio financeiro à oposição nas
eleições de 1962 e da tentativa de impeachment em 1963 –, o próximo estágio
do golpe seria uma intervenção militar.
Os dois jornais analisados guardavam pequenas diferenças no apoio que
prestavam ao movimento golpista; essa diferença não estava, porém, localizada
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 47

no conteúdo e alinhamento pragmático, mas sim no tom e na forma da crítica que


cada periódico adotava em suas intervenções contra o governo de João Goulart.
Mais direta no caso d’O Estado de S. Paulo e mais implícita no caso da Folha de
S. Paulo. Com a tomada do poder pelos militares, os jornais adotam mudanças
na redação e alinham o discurso editorial aos interesses e decisões dos novos
mandatários da nação. É o que argumenta Aquino:

(...) acompanhando-se os editoriais de OESP no período que antecede


imediatamente ao golpe de 1964, observa-se o tom alarmista de crítica ao
governo de João Goulart, apontando para as possibilidades de continuísmo
presentes atrás de manobras do presidente; conclamando a sociedade civil
e as Forças Armadas na defesa do que consideram como interesses gerais e
direitos naturais dos homens e conspirando abertamente contra o governo
instituído. Na sequência, tomando os editoriais que sucedem o movimento
armado de derrubada do presidente, nota-se que OESP não somente apoia o
golpe, mas encara-o como viva aspiração nacional; além de aprovar a escolha
do nome do marechal Humberto de Alencar Castelo Branco para assumir a
presidência e de sustentar a tese da necessidade das arbitrariedades cometidas
pelo ato institucional nº 1, editado a 9 de abril de 1964. (1999, p. 40)

Pode-se dizer, então, que por ter uma natureza mais flexível do que as
fontes tradicionais, a escrita midiática da história desempenhou e continua a
desempenhar um papel de destaque no processo de reinterpretar e reescrever o
golpe civil-militar de 1964. Foi com esse propósito, por exemplo, que a escrita
midiática revisitou esses acontecimentos em sua efeméride de cinquenta anos.
No dia 30 de março de 2014, um domingo, a Folha de S. Paulo publica um
editorial intitulado “1964”. Neste texto procura justificar sua participação ou
omissão no episódio:

Aquela foi uma era de feroz confronto entre dois modelos de sociedade – o
socialismo revolucionário e a economia de mercado. (...) A direita e parte
dos liberais violaram a ordem constitucional em 1964 e impuseram um
governo ilegítimo (...) parte da esquerda forçou os limites da legalidade na
urgência de realizar, no começo dos anos 60, reformas que tinham muito de
demagógico (...). (2014, p.12. Grifos nossos)

De acordo com as análises desse periódico, foi a direita que violou a ordem e
impôs aos brasileiros um governo ilegítimo e entreguista. A estratégia de imputar
48 O Golpe de 2016

ao outro a responsabilidade pelos erros e mazelas do passado é conhecidamente


eficiente e tem como escopo principal deixar para as notas de rodapé da história
a participação dos derrotados nos combates da história. Daí a necessidade do
jornal de reafirmar em 2014 que nem todas as críticas à ditadura são justas e
fundamentadas. Justifica, assim, a sua posição de simpatia ao movimento militar
com a infalível apresentação de dados econômicos e sociais que confirmam o
crescimento da economia no período e a consequente melhoria na condição
de vida de todas as camadas sociais da nação. Assim, argumentam que, mesmo
que de forma desigual, houve melhorias na educação e na saúde públicas que
podem ser facilmente constatadas pelos dados “oficiais” do período. Reclamam
finalmente que não se pode cobrar “(...) desta Folha, ter apoiado a ditadura
durante a primeira metade de sua vigência, tornando-se um dos veículos mais
críticos na metade seguinte. Não há dúvida de que, aos olhos de hoje, aquele
apoio foi um erro” (2014, p.12. Grifos nossos).
Em meio às dificuldades em obter consenso em torno da história vivida,
o jornal adotou uma importante iniciativa de publicar um amplo material para
comemorar ou rememorar os eventos de 1964. Esse material traz diversas opiniões
e testemunhos de protagonistas e estudiosos do período, sistematizados em
material infográfico, em que os aspectos “positivos” e “negativos” da ditadura
são revelados.
O jornal O Estado de S. Paulo também publicou um mea culpa, no editorial
“Meio século depois” (2014, p.3), que intencionalmente reforça o mesmo
princípio defendido em 1964: “Ao completarem-se 50 anos do movimento
civil-militar [...]”. Nomeado como “movimento” – que não carregaria o mesmo
peso de ilegalidade de um “golpe” – ele é compreendido como necessário, pois:

[...] Goulart mobilizou sindicatos e lideranças radicais para impor as reformas


de base ‘na lei ou na marra’[...]. Assistiu-se então uma mistura explosiva de
avanço desses grupos para o controle do Estado e de desordem na economia
e na administração. [...] Leonel Brizola criou unidades paramilitares [...]. O
quadro se completa com a revolta dos sargentos [...] e com a dos marinheiros
[...]. (MEIO, 2014, p.3)

Seguindo essa lógica, o “movimento militar” pode, então, ser justificado


pela situação de caos e confronto que tomou conta da sociedade. De um lado,
estavam os defensores da ordem e da democracia mobilizados em torno do
lema: “família, Deus e liberdade”. Do outro lado, estavam os “outros”, isto é, os
inimigos da “pátria” e da “tradição” que ameaçavam os valores e costumes das
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 49

famílias brasileiras: os comunistas. O texto destaca, ademais, que João Goulart


buscava “Reformas de cunho socialista, embora não tivesse mandato popular
para isso [...]”, indicando que, se faltava legitimidade para alguém, seria para o
presidente João Goulart e não para os militares, pois esses foram aplaudidos por
“[...] 1 milhão de pessoas no Rio, no dia 2 de abril”.
Na sequência, mantendo o tom de grande parte da imprensa na
rememoração do período, o jornal destaca que:

Com base no Ato Institucional baixado pelos militares, o governo do marechal


Castelo Branco começou um bem-sucedido trabalho de saneamento das
finanças e reorganização político-administrativo do País. Na economia e
na modernização da administração, o regime obteve inegáveis êxitos. (MEIO,
2014, p.3. Grifos nossos)

O texto segue desvelando as mudanças de rumo do “movimento militar”,


motivo pelo qual critica suas decisões e a escalada de violência de seus agentes.
Afasta-se, pois, do “movimento”, a fim de se manter fiel ao seu projeto “original”.
Passados cinquenta anos desses acontecimentos, grande parte da imprensa não
fez autocrítica e permanece com o mesmo entendimento sobre aqueles tempos
sombrios, ou seja, segundo essa lógica, o golpe militar foi necessário, uma vez que
a situação era de caos e o presidente João Goulart, além de fraco, não possuía
legitimidade para governar.
A Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo continuam a sustentar que a
“era do feroz confronto” foi motivada por excessos cometidos pelos dois lados:
os militares são, assim, responsabilizados por tornar a tortura uma prática de
Estado e a esquerda, por fomentar o radicalismo inconsequente da luta armada.
Ou seja, o sequestro da normalidade constitucional praticada pelos usurpadores
do poder pode e deve, na visão dos jornais aqui pesquisados, ser equiparado à
disposição que os opositores encontraram para resistir. Temos aqui uma maneira
bem peculiar de escrever a história que leva o narrador a isentar os agentes do
passado de seus “erros”, a fim de construir os entendimentos do tempo presente.
Assim, ao legitimarem as ações do Estado Militar como necessárias para
conter os comunistas, o caos, a desordem, a crise econômica, os jornais igualam
agressores e vítimas. Defendem, pois, que o que foi feito no passado tinha a nobre
missão de assegurar um futuro luminoso para os brasileiros.
Os grandes veículos de comunicação buscaram em 2014 suavizar a história
do golpe civil militar de 1964 com a narrativa de que no Brasil os militares
não haviam sido tão cruéis como os governos militares dos países vizinhos.
50 O Golpe de 2016

Numa tentativa de reescrever e redirecionar a história recente do país insistem


que durante a ditadura militar não existia corrupção, que houve um grande
crescimento econômico e que a violência contra os opositores dos militares foi
episódica. Um desses veículos chegou ao cinismo de propor a substituição do
termo de ditadura para “ditabranda” para caracterizar parte do período.

2016, novas narrativas de velhas crises

O Golpe de 2016 começou a ser gestado pelo menos dois anos antes10.
Assim, do mesmo modo em 1964, o golpe foi planejadamente corroendo as bases
de sustentação dos governos petistas. Ao longo do ano de 2014, sobretudo na reta
final da campanha eleitoral, parte da grande imprensa ampliou os ataques ao PT,
a Dilma e a Lula. Trabalharam em uma estratégia que combinava “vazamentos
seletivos” da Operação Lava Jato, com uma desconstrução sistemática dos
programas sociais criados nos governos petistas. Insistiam, assim, que esses
programas comprometiam os investimentos e a economia brasileira. Nessa disputa
eleitoral a principal voz e símbolo da resistência golpista, o ex-presidente Lula,
foi sistematicamente acossado. No plano político, seus adversários trabalharam
incansavelmente a fim de engessar as suas atividades de articulação com outros
agentes e lideranças partidárias; no plano da imagem pessoal, usaram de todos
os recursos midiáticos para dinamitar a sua popularidade. Ressalte-se que o
movimento golpista só conseguiu vicejar após a neutralização política do ex-
presidente Lula.

[...] a operação foi politizada com vistas a influenciar o processo eleitoral sobre
a eventual participação da presidente e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva no esquema de corrupção [...] no caso da revista Veja [...] o destaque
real coube à famosa capa do final de semana do segundo turno, no qual foi
noticiada um suposto vazamento de uma delação premiada [...] uma delação
que se comprovou falsa [...]. no caso do juiz Sérgio Moro, impressiona que
ele não tenha feito qualquer esforço em desmentir a notícia, que ele sabia ser
falsa, e teve forte impacto eleitoral. (AVRITZER, 2016, 73-4. Grifos nossos)

10. Alguns pesquisadores e militantes, sobretudo ligados ao PT, defendem que o Golpe começou
a ser gestado com o “sequestro” das manifestações de 2013, quando manifestações de cunho
regional foram federalizadas.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 51

A edição 2397 da revista Veja, à qual o autor faz referência, traz estampada
em sua capa a imagem de Dilma e Lula com a emblemática frase “Eles sabiam
tudo”. Após ação do PT junto ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), cabe destacar
que esse tribunal considerou que a revista não teve cautela na divulgação de
suposições e concedeu direito de resposta à presidenta Dilma Rousseff, publicada
na edição seguinte. Tudo calculado, uma vez que um texto interno não teria o
mesmo alcance e impacto causado pela manchete da semana anterior. Nesse
sentido, o objetivo da revista – de propagar a suspeita de envolvimento da
presidenta em um esquema de corrupção – foi atingido.
Talvez por isso, as relações do novo governo com a oposição recrudesciam e
os novos inimigos surgiam dia após dia. Muitos desses inimigos foram construídos
com o apoio de uma campanha de ataques midiáticos contra o programa de
governo da chapa vitoriosa. Foi ainda mais fermentada quando o TSE levantou
suspeições de que a campanha havia sido fraudulenta, fato que deu margem para
o questionamento do pleito que deu a Dilma Rousseff 51,64% dos votos válidos
contra 48,36 obtidos pelo seu adversário Aécio Neves, do PSDB. O novo governo
já nascia fragilizado e com pouca margem para negociação. No início de 2015,
as primeiras manifestações começam a tomar as ruas com uma exigência ainda
genérica de afastamento da presidenta eleita. Assim, utilizando-se dos mesmos
artifícios utilizados em 1964, em 2015 os manifestantes saíram novamente às
ruas a fim de questionar a legitimidade e legalidade de uma presidenta eleita
democraticamente.

A forma menos violenta, se comparada com os golpes militares ou civil-


militares do passado, e a fictícia legalidade apresentada pelo Parlamento
e pelo Poder Judiciário no processo de impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, para dar aparência constitucional ao processo conspirativo, não
têm o condão de ocultar a perpetração de golpe midiático-parlamentar, com
os contornos do que a literatura política vem denominando neogolpe de
Estado. O figurino neogolpista se revela claramente, desde a proclamação
dos eleitos no pleito de 2014 e culminou com as lamentáveis sessões de 17
de abril, na Câmara dos Deputados, e de 12 de maio, no Senado Federal.
Merecem relevo, ainda, as diversas decisões do Supremo Tribunal Federal
sobre o tema. A mídia oligopolista sustenta a pauta do impeachment desde
antes da eleição presidencial. (MELO FILHO, 2016, p. 173)

A construção de uma narrativa de crise, corrupção e incompetência do novo


governo serviu para mobilizar amplos setores da sociedade civil, numa campanha
52 O Golpe de 2016

sem tréguas contra o novo governo. A participação popular seria fundamental


para conferir legitimidade ao Golpe e, assim como em 1964, a imprensa se portou
como porta-voz da opinião pública.

No Brasil de 1964, o engodo foi denominado de “revolução”. Nenhum


golpista admite que se denomine sua ação em português claro: golpe de
Estado. Em 2016 isso se repete no país. A presidenta legitimamente eleita
foi derrubada por um processo político baseado em leituras elásticas da
Constituição e artimanhas jurídicas de diversos matizes, que tentam mostrar
como lícito o conluio do Judiciário com um Parlamento em sua maior
parte corrupto e uma mídia corporativa a serviço das elites financeiras.
(JINKINGS, 2016, p. 12)

Pode-se dizer, então, que a fórmula utilizada em 1964, pelos veículos de


comunicação que deixaram a neutralidade de lado e convocaram os “brasileiros
de bem” para participar das “Marchas da Família” contra o governo Jango,
foi novamente mimetizada em 2015 com a partidarização dos veículos de
comunicação em uma cobertura parcial dos acontecimentos em favor do
candidato derrotado. Talvez, por isso, as manifestações a favor do impeachment
sempre foram superdimensionadas e as que ocorrem para defender o governo
sempre foram subestimadas. A Folha de S. Paulo do dia 13/3/2016, utilizando-
se de um método supostamente “científico” contabilizou 500 mil pessoas na
Avenida Paulista em São Paulo a favor do impeachment. Na semana seguinte,
em 18/3/2016, ocorreu a manifestação em defesa do governo, mas essa não
teve o mesmo espaço de divulgação nos meios de comunicação e, segundo o
mesmo método “científico” do jornal, alcançou um volume de 95 mil pessoas.
Número bem inferior, portanto, à manifestação contra o governo que ocorreu na
mesma avenida em favor do Golpe uma semana antes. Curiosamente, quando
observamos as fotos aéreas, contudo, não é possível identificar uma diferença
tão grande no volume de manifestantes.
Sobre as manifestações de 13/3/2016, em editorial intitulado “Chegou a
hora de dizer: basta!” – parafraseando o famoso editorial do jornal Correio da
Manhã, de 31/3/1964 – O Estado de S. Paulo assume o papel de porta-voz da
opinião pública e exige que:

[...] a petista Dilma Rousseff deixe a Presidência da República. [...] Chegou


a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente que não
honra o cargo que ocupa e que hoje é o principal entrave para a recuperação
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 53

nacional, dizerem em uma só voz, em alto e bom som: basta! (CHEGOU,


2016, p.3)

O editorial enfatiza que o Brasil vive sob o pesadelo de uma década perdida.
A exemplo do que ocorreu em 1964, a imprensa continua atuando como uma
das principais responsáveis na construção de um discurso que serviria de subsídio
para diversas ações detonadoras do Golpe de 2016. Seria, portanto, cômico, se
não fosse trágico, que o acúmulo de uma experiência política separada por um
hiato de mais de meio século, em nada tenha contribuído para a alteração da
pauta e atuação dos grandes meios de comunicação do Brasil. Em outras palavras,
com ações semelhantes àquelas adotadas em 1964, as famílias que controlam
a comunicação no Brasil alinham o discurso em favor do Golpe e repetem a
fórmula em 2016.

Quatro famílias decidiram: Basta! Fora! Os Marinho (Organizações Globo),


os Civita (Grupo Abril/Veja), os Frias (Grupo Folha) e os Mesquita (Grupo
Estado). A essas famílias somaram-se outras com mídias de segunda linha,
como os Alzugaray (Editora Três/Istoé) e os Saad (Rede Bandeirantes), ou
regionais, como os Sirotsky (RBS, influente no sul do país). Colocaram em
movimento uma máquina de propaganda incontrastável, sob o nome de
“imprensa”, para criar opinião e atmosfera para o golpe de Estado contra
o governo de Dilma Rousseff, eleito por 54 milhões de pessoas em 26 de
outubro de 2014. (LOPES, 2016, p. 101)

Consumado o Golpe, os jornais de grande circulação trabalham


incansavelmente para oferecer legalidade e construir a legitimidade dos novos
“donos do poder”. Começa, então, uma campanha de convencimento de que
o país está quebrado e a única alternativa para salvá-lo é a implementação das
reformas trabalhista e previdenciária, pois somente assim o país se recuperaria
da “grave crise causada pelos governos petistas”.
No contexto dos preparativos da construção da crise para o golpe de 1964,
o jornal O Globo, em tom alarmista, estampa em sua capa de 1962 a seguinte
manchete: “Considerado desastroso para o país um 13º mês de salário”. Mais
de meio século depois, o jornal Folha de S. Paulo oferece ao seu público leitor
uma manchete igualmente ameaçadora em 2016: “Sem reforma da Previdência,
país deve empobrecer”. É importante salientar que o objetivo dessa chamada de
capa bisa uma ideia que já vinha sendo trabalhada pelos articulistas do jornal,
a saber: do ponto de vista fiscal, os governos petistas haviam sido altamente
54 O Golpe de 2016

irresponsáveis, daí a urgente necessidade de promover uma reforma claramente


antipopular. Numa cobertura de pessimismo sem tréguas, o jornal digital desse
mesmo grupo de comunicação faz chegar aos seus leitores, em 7/10/2016, mais
uma manchete chantagista: “Se você é contra a PEC do Teto de Gastos Públicos,
você é contra o Brasil” e completa a chantagem oferecendo ao leitor um “selo”
de identificação e divulgação da causa “patriótica” com os dizeres, “PEC 241:
A favor do Brasil”.
As chantagens e ameaças não surtiram, todavia, as respostas esperadas.
Assim, apesar de todo o empenho dos meios de comunicação, a rejeição às
reformas e ao próprio governo Temer cresceu exponencialmente, na esteira do
aprofundamento da crise econômica. É o que deixa entrever a análise do professor
José Dari Krein, do Instituto de Economia da UNICAMP:

Impressiona a velocidade da deterioração dos indicadores do mercado de


trabalho no Brasil a partir de 2015, expressa especialmente no crescimento
do desemprego, na queda dos assalariados formais e da renda do trabalho.
O desemprego saltou de 6,5% no último trimestre de 2014 para 11,2%
em abril de 2016, com forte queda do nível do emprego em setores mais
estruturados da economia, tais como indústria, comunicação, informação,
finanças e construção civil, conforme dados do IBGE/ PNAD. A tendência
indica, dado o comportamento da economia e as proposições de ajustes em
curso para enfrentar a crise econômica e as mudanças estruturais do trabalho
no capitalismo contemporâneo, um forte incremento do desemprego, que
pode voltar a ser um problema estrutural no Brasil. Na mesma perspectiva,
há uma queda do número de ocupados protegidos pela seguridade social.
Por exemplo, somente em 2015, 1,8 milhão de assalariados deixaram de ter
carteira de trabalho assinada, segundo o Relatório Anual de Informações
Sociais (RAIS). A renda média dos ocupados caiu 3,3 entre abril de 2015 e
2016. (KREIN, 2016, p. 223-4)

Ainda que parte considerável dos meios de comunicação buscasse associar


a crise política, econômica e social aos governos petistas, um entrave para a
consolidação do movimento golpista persistia: mesmo depois de toda ofensiva
jurídica e midiática contra o legado político do ex-presidente Lula, a sua
popularidade permanecia praticamente inalterada, mantendo-se sempre à frente
de todos os candidatos nas pesquisas eleitorais à presidência. Uma vez que não
se logrou êxito nessa frente de combate, uma nova etapa do Golpe é iniciada
em 2016, agora com um cerco jurídico e midiático cada vez maior pela prisão
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 55

do ex-presidente Lula. Em janeiro de 2018, apesar de dois anos de ininterrupta


perseguição, ele continua a liderar as pesquisas de intenção de votos, conforme
pesquisa publicada na Folha de S. Paulo, em 31/1/2018, que o coloca em primeiro
lugar em todas as simulações (variando entre 34% e 37%) e ainda com pelo
menos o dobro de votos do segundo colocado.
A resiliência do ex-presidente obriga os agentes do Golpe a mesclar as
estratégias com alternância do lawfare e de uma campanha de desmoralização
de sua trajetória política, muito bem orquestrada pelos meios de comunicação. A
charge publicada na edição em que saiu a pesquisa acima citada (p. A2) ilumina
a argumentação aqui apresentada. Em poucas palavras, ela indica um destino
diferente – ao desejado pela população –, que os donos de jornais queriam para
Lula: “Uma trajetória: de torneiro mecânico à tornozeleira eletrônica”. Uma nova
rodada de pesquisa de opinião, do instituto Datafolha, só seria publicada após a
prisão de Lula, mas curiosamente não trazia grandes alterações: apresentava uma
oscilação para baixo que estava muito próxima da margem de erro. Ou seja, Lula
continuava em primeiro lugar, oscilando entre 30% e 31%, mas mantendo-se com
o dobro das intenções de votos do segundo colocado. Na manchete desse dia o
periódico reforça a sua campanha de desmoralização do político Lula: “Preso,
Lula perde votos; sem ele, Marina sobe e alcança Bolsonaro” (2018, p. 1). Assim,
na mesma manchete o jornal oferece para o leitor desatento a candidatura Lula
como um “problema” a ser superado e encontra espaço para apresentar Marina
como solução ao “anticandidato Bolsonaro”.
Apesar de toda destruição que impôs nos avanços e garantias sociais
que a nação havia alcançado na “Era PT”, o Golpe não está ainda totalmente
consolidado, principalmente porque a popularidade de Lula continua forte e sua
presença no cenário eleitoral gera muitas especulações e incertezas para a vida
política da nação. Se essa situação tem um lado positivo, que é o da resistência
popular, carrega outro negativo, com o recrudescimento das forças golpistas que
agem à luz do dia contra os apoiadores de Lula, como por exemplo, o uso do
chicote contra os manifestantes da Caravana da Cidadania que passava pelo
Rio Grande do Sul, o ataque com tiros nessa mesma Caravana ou ainda nos
tiros dados contra o Acampamento Marisa Letícia em Curitiba. Apesar de todos
esses episódios de violência contra os apoiadores de Lula e do PT, os principais
periódicos de São Paulo (Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) já apontavam
em 2016 os petistas como os únicos responsáveis pelo acirramento dos ânimos.
Neste ano, a Folha de S. Paulo publicou um editorial chamado “Fascistas à solta”,
no qual criticava os manifestantes contra o Golpe e comparava-os aos fanáticos
da República de Weimar:
56 O Golpe de 2016

[...] os delinquentes voltaram a agir em meio aos protestos contra o


impeachment [...]. Democracias incapazes de reprimir os fanáticos da
violência são candidatos a repetir a malfadada República de Weimar, na
Alemanha dos anos 1930, tragada pela violência de rua até dar lugar à pior
ditadura que jamais houve. (2016, p.4)

Esse editorial guarda muitas semelhanças com aquele publicado em 1964,


discutido anteriormente, que indicava que o Comício da Central do Brasil dava
força aos extremistas e que o discurso de João Goulart assemelhava-se ao discurso
de um “aspirante a ditador”.
O Estado de S. Paulo, por sua vez, evoca a tese já utilizada sobre o golpe de
1964, reforçada nos debates em torno da rememoração em 2014, de que foram
os extremistas de esquerda e de direita, pouco preocupados com a democracia,
que levaram à quebra institucional naquele momento. Em 1964, responsabilizava
o presidente ao afirmar: “[...] Goulart mobilizou sindicatos e lideranças radicais
para impor as reformas de base ‘na lei ou na marra” (MEIO, 2014, p.3). Em
2018, recupera o partidarismo e indica que a fratura do país, o “nós contra
eles”, é responsabilidade do “chefão petista Lula da Silva”, o único nomeado no
editorial que segue:

As manifestações políticas nas ruas são hoje marcadas pelo discurso do ódio,
seja por parte de quem se manifesta, seja por parte de quem a elas se opõe.
Os brasileiros passaram os últimos 30 anos sendo instigados ao confronto.
Não por acaso, esse período coincide com a formação e a consolidação
do Partido dos Trabalhadores, cuja aguerrida militância fez da raiva sua
principal ferramenta política, impossibilitando qualquer forma de diálogo
com quem não fosse petista [...].o famoso “nós contra eles” enunciado pelo
chefão petista Lula da Silva e adotado com igual vigor pelos grupelhos
de extrema direita. [...] Não há diferença essencial entre esses movimentos.
Todos eles se julgam moralmente superiores a seus antagonistas declarados,
a todos aqueles que ousam lhes dirigir críticas e também aos que lhes são
indiferentes. [...] Nesse clima apocalíptico, a campanha presidencial por
ora tem se limitado à especulação sobre quem, entre os candidatos, está
mais bem apetrechado para desbaratar o lulopetismo, o extremismo de
direita e/ou a corrupção em geral – a depender do freguês –, como se esses
fossem os aspectos fundamentais da disputa e, portanto, do futuro do País.
O Brasil que sairá das urnas em outubro dependerá muito do surgimento de
líderes políticos capazes de virar essa página e de propor outra agenda, com
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 57

as verdadeiras prioridades do País. Antes de mais nada, é preciso que haja


candidatos que demonstrem disposição de governar para todos, e não contra
quem quer que seja. Isso significa que o vencedor da próxima eleição não
pode tratar os adversários – nem muito menos os eleitores destes – como
inimigos. Ao contrário: o momento é, justamente, de conciliação. E por
conciliação não se entenda ausência de divergência, pois essa é justamente
a utopia dos autoritários que ora se digladiam pelo poder. Uma verdadeira
democracia, com o perdão do truísmo, se constrói com a participação ativa
de polos opostos. Por essa razão, que devia ser evidente para todos, é preciso
que haja maturidade suficiente dos atores políticos para aceitar, finalmente,
que política não é intimidação nem pensamento único, mas diálogo, aceitação
da alternância de poder e capacidade de fazer concessões. Fora disso, é a
barbárie. (A HORA da conciliação, 2018, p. A3. Destaques nossos)

Fica escancarada a partidarização do jornal que tenta transferir todas as


responsabilidades pelo atentado que os militantes contrários ao golpe e à prisão de
Lula sofreram em Curitiba na madrugada do dia 28/4/2018. Apesar da violência,
os grandes jornais de São Paulo Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo – assim
como a grande mídia em geral – deram pouco destaque a esse violento ataque
a tiros, com matérias de cerca de 1/4 de página.
Nesse momento, em busca de novos “pecados” para incriminar Lula e o
PT, os jornalões tentam aproximar as manifestações e a atuação dos militantes
e simpatizantes petistas ao tresloucado Bolsonaro. Vendem, assim, a ideia de
que para o país se livrar do “extremismo” de esquerda ou de direita a população
teria de optar pelo caminho do centro e da conciliação e declarar apoio os seus
representantes, Geraldo Alckmin, Marina Silva ou Joaquim Barbosa.
No mesmo momento em que o Golpe deitou raiz na sociedade, o campo
de oposição, resistência e denúncia às arbitrariedades perpetradas difundiu a
sua atuação em várias frentes do tecido social. Uma denúncia que incomodou
sobremaneira os golpistas foi a disciplina criada por Luís Felipe Miguel, “o Golpe
de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, na Universidade de Brasília (UnB).
Em um artigo intitulado “Golpe ou impeachment, ainda”, de 22/4/2018, Otávio
Frias Filho, diretor editorial da Folha de S. Paulo, em aberta defesa da narrativa de
impeachment, afirma: “A liberdade de cátedra é ampla o bastante para autorizar
muito disparate” sobre os cursos criados em todo o país e no exterior para discutir
o Golpe de 2016; o jornal sustenta a legalidade e legitimidade do processo
alegando que, “[...] antecessores praticaram pedaladas, mas as do governo
Dilma foram em escala ao menos dez vezes maior [...]. Do ângulo processual, a
58 O Golpe de 2016

deposição ocorreu de acordo com a lei. [...] o governo entrará em colapso [...]
reflexo da perda de sustentação da sociedade [...]”. (FRIAS FILHO, 2018, p. 79).
Essas justificativas não são muito diferentes daquelas oferecidas para legitimar
o golpe de 1964, quando esse periódico defendeu a ideia de que deveríamos
abrir mão dos nossos direitos para, paradoxalmente, garantir a democracia.
Outra semelhança de seu alinhamento com os golpistas da atualidade pode
ser encontrada na rememoração dos 50 anos do Golpe Civil Militar de 1964,
quando tentou humanizar o processo, alegando que tudo o que aconteceu foi
pela vontade da “opinião pública”. Enfim, as “batalhas sobre as memórias de
2016” já começaram e por isso gritamos, “Golpe”!

Referências

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FASCISTAS à solta. Folha de S. Paulo, p. 4, 2/9/2016
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GUINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:
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luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 59

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PRESO, Lula perde votos; sem ele, Marina sobe e alcança Bolsonaro. Folha de
S. Paulo, p. 1, 15/04/2018
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60 O Golpe de 2016

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SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado.
Rio de Janeiro: Leya, 2016.
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A desestabilização política e o Golpe: Atores e estratégias
do consórcio que golpeou a democracia em 2016

Francisco Fonseca11 

O contexto do Golpe de Estado, o processo de desestabilização e a formação do consórcio


golpista12

A crise que levou à queda da presidenta Dilma Rousseff foi essencialmente


artificial, isto é, criada com o fim específico de corroer de maneira vigorosa a
governabilidade de seu governo, com a criação de um ambiente – político/
ideológico, institucional e social – de caos político e econômico, de ausência
de capacidade de governar, de ilegitimidade e de corrupção. A narrativa que
predominou, igualmente criada de forma artificial, foi acidamente voltada
à criminalização não apenas de seu governo, mas também do Partido dos
Trabalhadores, de sua principal liderança (Lula), do pensamento à esquerda no
espectro, assim como da agenda que essas forças representavam.
Nesse sentido, o Golpe parlamentar efetivado em 12 de maio de 2016
(saída formalmente temporária da presidenta) e 31 de agosto do mesmo ano
(votação do impeachment, nome “institucional” dado para depor a presidenta) foi
o resultado de diversos fatores conjugados voltados à desestabilização: política,

11. Cientista político e professor de Ciência Política na PUC/SP e FGV/Eaesp.


12. Este capítulo é o resultado da fusão de partes de três artigos de minha autoria, aqui
atualizados, remodelados e complementados, tornando-se portanto outro texto: dois
publicados no Portal CartaMaior, onde sou articulista, intitulados respectivamente “A
desestabilização, o golpe e a ‘sociedade civil gelatinosa’ do golpismo” (em 9/9/2016) e “O
Poder Judiciário como partido político” (em 22/1/2017), e o último publicado no jornal Le
Monde Diplomatique Brasil, intitulado “Eleições em tempos de ditadura” (em 2/4/2018). As
próprias temporalidades distintas dos artigos, originalmente voltados ao debate público,
conferem fios condutores aos textos, aqui inteiramente retrabalhados.
62 O Golpe de 2016

institucional, social, informativa, ideológica e moral do Governo Dilma.  Abaixo


são analisados alguns dos principais fenômenos, fatores e personagens desse
processo de golpeamento da democracia e de incriminação protofascista de
um governo e de um partido político. Os aspectos aqui examinados não estão
elencados em ordem hierárquica ou cronológica, uma vez que vários deles
ocorreram simultaneamente e sobretudo se entrecruzaram:

–  A eleição à Câmara dos Deputados, em 2014, de cerca de 250 deputados


financiados por inúmeros setores empresariais voltados à defesa de interesses
do grande Capital, nacional e internacional. Setores como agronegócio,
segurança privada, medicina particular, negócios evangélicos, entre tantos
outros, financiaram candidatos ostensivamente vinculados a esses interesses.
Para tanto, Michel Temer e Eduardo Cunha – aliados de primeira hora – foram
os articuladores nacionais desse financiamento e, mais importante, os receptores
dos valores que seriam distribuídos aos candidatos representantes do capital
que, além do mais, foram escolhidos por sua posição relativamente consensual
a respeito da derrogação dos direitos sociais e trabalhistas, assim como da defesa
incondicional do Golpe a ser dado (em 2016) e do “governo” a ser instituído e
capitaneado por Temer13. Além do financiamento empresarial, a dupla Temer/
Cunha estava entranhada em diversos aparatos estatais, como a Caixa Econômica
Federal, e diversos ministérios, gerenciando propinas que seriam parcialmente
voltadas ao financiamento de campanhas.
–  Setores majoritários da Câmara dos Deputados, a partir da ascensão do
deputado Eduardo Cunha como presidente da Casa, que ostensivamente, por
meio das chamadas “pautas bombas” e do bloqueio político de todas as iniciativas
do Executivo, atuou no sentido de impedir toda e qualquer iniciativa política,
econômica e administrativa do Governo Dilma. O objetivo era claramente

13. Não é coincidência o número de parlamentares que impediram o prosseguimento de


processos contra Temer no Congresso a partir das duas denúncias da Procuradoria Geral
da República (PGR) sob Rodrigo Janot. Na primeira delas as provas materiais eram
incontestáveis, caso das denúncias de Joesley Batista e da mala com 500.000,00 reais em
posse do deputado Rocha Loures, braço direito de Temer. Ainda assim, Temer se livrou de
ambos os processos com votações confluentes ao número de parlamentares eleitos por meio
do financiamento sob sua coordenação, e a de Eduardo Campos. Entre as várias matérias
jornalísticas publicadas pela imprensa alternativa, ver: http://conexaoplanetaria.blogspot.
com/2017/10/delacao-de-doleiro-lucio-funaro-arrasa.html, http://www.contrapontoms.com.
br/geral/delacao-de-lucio-funaro-complica-temer-e-o-pmdb e https://www.brasil247.com/
pt/247/brasil/322444/V%C3%ADdeo-de-Funaro-comprova-dela%C3%A7%C3%A3o-de-
Joesley-e-complica-ainda-mais-Temer.htm
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 63

minar o Governo Dilma, erodindo inteiramente sua capacidade de governar. Tal


processo ocorreu com a total leniência do Supremo Tribunal Federal (STF) que,
embora já conhecedor dos extratos bancários de Cunha na Suíça resultantes
de propinas milionárias, esperou a finalização do processo de impeachment para
afastá-lo. 
–  O golpismo (desestabilizador, portanto) dos partidos políticos derrotados
– PSDB, DEM e PPS –, paulatinamente secundados pelo PSB e, mais adiante,
pelos pequenos e médios partidos de centro-direita reunidos em torno do
chamado “Centrão”, tendo como mote o não reconhecimento da derrota eleitoral
em 2014. O conjunto desses partidos – parte deles partícipes dos governos Lula
e Dilma – formou maioria sólida não apenas para desfechar o golpe parlamentar
do impeachment como para sustentar o sem-número de medidas antipopulares,
antissociais e antinacionais levadas a cabo pelo Executivo comandado por Temer.
Deve-se ressaltar o paralelismo temporal e político entre a desestabilização
institucional patrocinada pelo Congresso Nacional (majoritariamente) sob
Cunha e a desestabilização “jurídica” advinda da Operação Lava Jato: ambas
com a leniência do STF. Tal processo vinha sendo gestado e teve no programa
do PMDB, intitulado “Uma ponte para o futuro”, seu norte ideológico, assim
como um projeto supostamente “social”, intitulado “Travessia Social” 14: ambos
informados por instituições e think tanks neoliberais.
–  A conspiração de segmentos empresariais internacionais e nacionais
vinculados ao rentismo e a cadeias internacionais de produção, cujo objetivo era
a fragilização do G-20 – e consequentemente do banco e do fundo recentemente
criados – e a desestruturação do Mercosul, cujo vetor é a desconstrução da
política exterior Sul/Sul. Tais mudanças, entre tantas outras, implicariam o
reposicionamento do Brasil na arena internacional, destituindo-se inteiramente
sua liderança regional e seu protagonismo mundial. A velha ordem Norte/Sul
tem sido, portanto, restabelecida em diversos sentidos e direções, retornando o
país a importador de capitais e tecnologia, ampliando-se sua dependência aos
EUA, no contexto maior do G-7, em termos geopolíticos e geoeconômicos.
–  A quase totalidade dos empresários nacionais desejosos, desde sempre
– isto é, mesmo a burguesia nacional privilegiada pelos governos petistas –,
prioritariamente da derrogação dos direitos trabalhistas, mas também dos direitos
sociais, com vistas a estabelecer “ambiente de negócios” atrativo ao Capital:

14. Ver, respectivamente: https://www.fundacaoulysses.org.br/wp-content/uploads/2016/11/


UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf e https://complemento.veja.abril.com.br/pdf/
travessia%20social%20-%20pmdb_livreto_pnte_para_o_futuro.pdf
64 O Golpe de 2016

nacional e estrangeiro, cada vez mais interligados. Trata-se de agenda mínima


do Capital contra os trabalhadores e contra os beneficiários de programas sociais.
–  As classes médias superiores, composta por profissionais liberais,
pequenos burgueses, rentistas médios e todos aqueles que não vivem apenas
ou necessariamente de salários, uma vez que desgostosas com as políticas de
ascensão social promovidas pelos governos petistas. Trata-se de resistência à
percepção, mesmo que irreal, da perda de prestígio e privilégios, caso do acesso
à universidade e a bens de consumo e serviços aos pobres e particularmente aos
pobres negros. Além do mais, houve a percepção de que, sob o PT, a chamada
“classe média” tradicional fora inalijada ou negligenciada em favor dos pobres.
Essa “classe média” aparentemente é constituída por setores assalariados com
funções gerenciais e de confiança do Capital e por segmentos autônomos, isto
é, detentores do próprio negócio e prestadores de serviços para o Capital ou
para grupos de alta renda, entre outros. Sua percepção do mundo é fartamente
veiculada pela grande mídia.
–  Setores ascendentes das classes médias baixas – aquilo que se chamou,
não sem polêmica, de “a nova classe média” –, cuja ascensão se deu justamente
pelas políticas públicas inclusivas de Lula e Dilma, foram seduzidas pelo
discurso ideológico da “meritocracia individual”, pendendo ao conservadorismo.
Tal sedução se deu tanto pelo discurso midiático como pela propagação e
consolidação das diversas igrejas evangélicas pentecostais nas periferias e rincões
do país. Essas igrejas, notadamente neopentecostais, igualmente espraiam
mensagens ideológicas voltadas ao esforço individual, expressam aversão ao
conflito e negação à solidariedade política, em contraposição à solidariedade
familiar e sobretudo religiosa: aspectos confluentes à meritocracia individual, tão
ao gosto dos neoliberais. Também segmentos de “inocentes úteis” (trabalhadores
assalariados de baixa e média renda), que estão sendo fortemente penalizados
pela política econômica e antissocial de Temer, caíram na armadilha ardilosa
do discurso do “combate à corrupção” – verdadeira cortina de fumaça do Golpe
de 2016, aliás intentado em 2005 como o chamado “mensalão” – e passaram a
apoiar, mesmo que passivamente, a desestabilização.
–  A grande mídia comercial (emissoras de tv e rádios, jornais e revistas e
grandes portais da internet) que, aproveitando-se da mais completa desregulação
e desregulamentação do Estado brasileiro quanto à comunicação social, e
turbinada – curiosa e paradoxalmente – por polpudos recursos publicitários dos
governos petistas, lançou-se na lancinante campanha golpista. Sua atuação
desestabilizadora com vistas ao Golpe foi decisiva para criar e espraiar clima e
ambiente antigovernamental e antipetista. Deve-se ressaltar o papel decisivo e
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 65

primordial do Sistema Globo nesse processo, embora articulado com os outros


meios e veículos. Igualmente, embora voltado a setores minoritários, tanto
o mundo digital dos portais, sites, blogs como das redes sociais (Facebook e
Twitter) e também o WhatsApp, representaram campo de batalha significativa
entre dois segmentos opostos: os pró e os contra o impeachment. Esses canais
foram e são utilizados para expressar: pontos de vista alternativos aos da grande
mídia, desconstruindo suas meias verdades, mentiras e manipulações; a opinião
de grupos golpistas, que não apenas reforçaram a narrativa da grande imprensa
associada ao Poder Judiciário desestabilizador como também veicularam
imensidão de fake news, contribuindo para a criação da histeria coletiva, pois
municiada, reitere-se, pela grande mídia, por sua vez ancorada nos “fatos criados”
pela Operação Lava Jato/Ministérios Públicos/STF.
–  A ação inconstitucional – portanto fartamente ilegal –, seletiva,
persecutória e articulada à grande mídia comercial (nunca é demais ressaltar)
da Operação Lava Jato, cujo objetivo passou a ser fundamentalmente destruir
política e eleitoralmente o Governo Dilma, o PT e Lula. A Operação Lava Jato
atenta ostensiva e vigorosamente contra o Estado de Direito Democrático. O
discurso moralista do suposto combate à corrupção, catalisado pelo juiz Sérgio
Moro – cuja atuação é militantemente política e extralegal –, representou a porta
de entrada para todo tipo de oportunismo político: jurídico, político/eleitoral,
informacional, parlamentar, social e ideológico. A Lava Jato passou a funcionar
simultaneamente como “partido político” e como “agência de notícias políticas
enviesadas” (num claro atentado ao Estado de Direito), embora disfarçada de
“normas legais e impessoais”. Veremos mais abaixo esse aspecto.
–  A referida leniência do STF e da PGR ante os atentados ao Estado de
Direito Democrático, isto é, à Constituição Federal, ao Direito Penal, ao Código
de Processo Penal, às leis infraconstitucionais de grampo e vazamento, entre
inúmeros outros, desfechados pela Operação Lava Jato, isto é: a primeira instância
em Curitiba, o Ministério Público Federal e algumas seções estaduais, a Polícia
Federal e o Tribunal Regional Federal-4 (TRF-4) de Porto Alegre, onde se insere
a primeira instância de Curitiba. Logo, as instâncias superiores (STF e PGR,
mas também o Superior Tribunal de Justiça – STJ) tornaram-se consorciados à
Operação Lava Jato num complexo continuum. Também o próprio Tribunal de
Contas da União (TCU) foi peça fundamental ao desfecho do Golpe ao rejeitar
as contas do Governo Dilma pela utilização das – midiática e publicitariamente
intituladas – “pedaladas fiscais”15. Tais medidas expressaram a preocupação

15. “Pedaladas fiscais” são manobras contábeis vinculadas ao manejo orçamentário com
66 O Golpe de 2016

dos golpeadores em “legalizar” o Golpe por meio do cumprimento de ritos,


procedimentos e formas que, contudo, tinham por base um “não objeto”, isto é,
o não acometimento do crime de responsabilidade.
–  As ações da Polícia Federal (PF), componente da Operação Lava Jato,
com os mesmos propósitos desta, e sem que o Ministério da Justiça – ao qual está
submetida – no Governo Dilma, comandado por José Eduardo Martins Cardoso,
fizesse algo para contê-la no sentido de circunscrever sua atuação nos marcos
constitucionais e republicanos. Houve espécie de autonomia desregulada em que
delegados, investigadores e policiais sentiram-se inteiramente à vontade para:
produzir indícios sem vinculação com a realidade; vazar informações, muitas
vezes sigilosas; espetacularizar denúncias, operações e prisões, em detrimento
do “devido processo legal” e do “direito de defesa”; entre outros aspectos.
–  Os aludidos think tanks (tais como o Instituto Millenium), e seus
financiadores internacionais (irmãos Koch, por exemplo) e nacionais
(Fundação Lemann, Fiesp, entre tantos outros), voltados à propaganda
ideológica que instrumentalizou – e financiou – grupos como o Movimento
Brasil Livre, o Vem pra Rua e o Revoltados On Line, entre outros. Grupos
empresariais igualmente participaram dessa campanha ideológica (com
financiamento) antipetista, anti-governo, anti-Lula e anti-direitos sociais/
trabalhistas/políticos/civis. O papel do financiamento do Golpe é capítulo à
parte e merece mais estudos a respeito.
–  O Senado, na reta final do “processo” – no sentido kafkaniano – do
impeachment, passou a atuar ostensivamente de forma golpista, produzindo
verdadeira peça de ficção (supostamente jurídica) quanto ao suposto “crime de
responsabilidade” da presidenta Dilma. A peça acusatória não apenas não definiu
o crime da acusada como o que se chamou de “pedaladas fiscais” não se configura
como “crime de responsabilidade”, reitere-se. Deu sequência, portanto, à farsa
do impeachment, que havia começado na Câmara dos Deputados. É importante
ressaltar que o documentário “O Processo”, produzido pela diretora Maria
Augusta Ramos, retrata os bastidores do acelerado, forjado e inconstitucional

vistas a equilibrar situações de financiamento a políticas públicas – por razões distintas –


temporariamente desbalanceadas em razão de eventos os mais distintos, tais como quebras
de safra, aumento da inflação, choques econômicos externos, entre inúmeros outros fatores.
Têm sido prática de todos os ex-presidentes e inúmeros governadores e prefeitos que a
utilizaram e continuam utilizando como forma de financiar as políticas públicas em meio a
situações de desequilíbrio. Não implicam a criação de dívidas e muito menos são tipificadas
como “crime de responsabilidade”. É sintomático que o relator do processo de impeachment
no Senado, senador Antonio Anastasia, as tenha praticado quando governador do estado
de Minas Gerais.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 67

processo de cassação da presidenta legitimamente eleita, registrando assim uma


das maiores farsas da história política brasileira.
–  As debilidades do Governo Dilma, devido à incapacidade de controlar
republicanamente a PF, como se disse, assim como de escolher um Procurador
Geral da República defensor do Estado de Direito Democrático, sendo que a lista
tríplice se deu em 2015, em meio à crise, e cuja escolha recaiu na recondução de
Rodrigo Janot, que claramente voltara-se à desestabilização. Também a escolha do
ministro do STF, Luiz Fachin, se mostrou nula do ponto de vista de anteparos à
desestabilização. Em verdade, desde que assumiu a vaga no STF, Fachin tem sido
um dos ministros mais reacionários. Também um equívoco grave foi a escolha de
Joaquim Levy, um neoliberal histórico, como ministro da Fazenda, sinalizando
fragilidade perante o Capital, ao mesmo tempo que afastamento das demandas
populares. Esses, entre outros, são fatores essenciais à debilidade do Governo
Dilma, que contribuíram decisivamente para sua queda. Em meio a tudo isso, a
própria “personalidade política” da presidenta e de seu Governo – vistos, além
do mais, como arrogantes – contribuíram para a fragilização governamental,
tendo em vista certo isolamento; o distanciamento dos movimentos sociais; a
incapacidade sistêmica de articulação junto ao Congresso Nacional e a outros
atores relevantes; e mesmo o não enfrentamento – naquilo que poderia enfrentar
– de polos de poder, caso da mídia; entre outros. De toda forma, trata-se de um
fator explicativo secundário, uma vez que as forças golpistas intentariam o golpe
independentemente do perfil do governo.
–  A progressiva perda de hegemonia do PT, por sua vez destituído de um
projeto hegemônico, levou às seguintes rupturas: o desfazimento do amplo campo
de centro-esquerda, em que o PSB, o PDT e outros partidos menores ocupavam
papel importante na arena partidária e parlamentar; a saída da Força Sindical (de
centro-direita no espectro ideológico) e de outras centrais sindicais menores da
base de apoio social e governamental, tornando-se desestabilizadoras e portanto
golpistas (caso notório da Força Sindical e de seu líder maior, o deputado federal
Paulo Pereira da Silva); a ascensão da direita ideológica e raivosa em todos
os setores sociais – processo advindo desde junho de 2013 – que, “saindo do
armário”, passou a pautar e encurralar as ideias progressistas e de esquerda,
tendo encontrado farta recepção entre os meios de comunicação e entre partidos
que nasceram originalmente com bandeiras “modernas”: caso do PSDB, que se
tornou cada vez mais parecido com as velhas oligarquias (notadamente o PSD),
mesmo atuando nos grandes centros urbanos. A atuação do PSDB é marcada
pela corrupção endêmica, aparelhamento partidário sistêmico, autoritarismo
policial, políticas elitistas e neoliberais, opacidade quanto aos recursos públicos
68 O Golpe de 2016

e tantos outros atributos antidemocráticos, cujos exemplos notáveis foram os


governos estaduais comandados por Geraldo Alckmin (São Paulo) e Beto Richa
(Paraná), apenas para dar dois exemplos.
–  A crise econômica internacional, provinda do crash de 2008 e não
transformada estruturalmente até os dias de hoje, mas que fora postergada pelo
Governo Dilma – embora com doses por vezes acima do recomendável – por
meio das chamadas “políticas anticíclicas”. Tais políticas se esgotaram, uma
vez que têm validade limitada no capitalismo. Seu esgotamento contribuiu
fortemente para o fim da “aliança de classes” perseguida pelo Governo Lula
desde a “Carta ao Povo Brasileiro” e pelo híper realismo governamental dos
estrategistas dos governos petistas: o próprio Lula, conciliador desde sempre, José
Dirceu, José Genuíno, entre outros. Consequentemente ruiu o – tomado como
mantra – “presidencialismo de coalizão” sem que o governo e o PT conseguissem
minimamente rever suas estratégias perante a nova realidade. 
–  Finalmente, o modelo contemporâneo de acumulação capitalista (pós-
fordista), baseado na flexibilização do capital (combinação do capital produtivo
com o especulativo, com predominância deste), do consumo (obsolescência
programada, produção por lotes, just in time) – em pleno desenvolvimento no
Brasil –, e da força de trabalho. Quanto a esta, seus direitos foram derrogados
pela “reforma” trabalhista sob Temer. Isso tudo no contexto de profunda
interconexão internacional. Pode-se dizer que tais transformações são exigências
do modelo flexível de acumulação, isto é, a redução substantiva do “custo”
do trabalho – tratado ideologicamente de “custo Brasil” – e a criação de
“ambiente de negócios propício ao Capital internacional”, que supostamente
implicaria a vinda profusa do capital estrangeiro, com supostos “benefícios” a
países que, na divisão internacional do trabalho, não teriam como “competir”
pela produção tecnológica e pela exportação de produtos com valor agregado,
caso do Brasil: posição aliás demonstrada nos Governos FHC. O modelo de
acumulação capitalista, encarnado por capitalistas, ideólogos, think tanks, meios
de comunicação, financiadores e tantos outros é uma força internacional, com
conexões claras no Brasil. Os referidos programas do PMDB são fortemente
atinentes a essa concepção retrógrada, antissocial, afinada ao rentismo e à perda
da “soberania nacional”.

Esses fenômenos, fatores e atores constituíram-se, portanto, num consórcio


desestabilizador que foi se formando ao longo dos governos petistas, e que teve nos
seguintes momentos pontos de agudização, numa espécie de continuum corrosivo
ao Governo Dilma e às regras democráticas: em 2005, o chamado “mensalão” –
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 69

terminologia rapidamente tomada e alardeada pela grande mídia – representou a


primeira tentativa de desestabilização institucional, tendo o STF papel crucial16;
em 2012, a postura crítica do Governo Dilma e da própria presidenta quanto às
altas taxas de juros praticadas no Brasil pelos bancos teve como resposta oposição
sorrateira do rentismo; em 2013, manifestações polifônicas de descontentamento
quanto às políticas públicas diversas com progressiva predominância dos grupos
neoliberais/conservadores; em 2014, manifestações distintas contra a Copa do
Mundo no Brasil e vaia à presidenta na abertura da Copa, cujo simbolismo é
marcante devido ao perfil dos pagantes; e 2015, massivas manifestações de grupos
conservadores, muitos deles financiados, com o objetivo explícito de depor a
presidenta Dilma do poder. Vistos em perspectiva, esses fenômenos formam
uma cadeia articulada que, embora com muitos atores que não necessariamente
representem as mesmas frações de classe, tiveram unidade suficiente para
derrubar o governo legítimo.
Especificamente quanto à cisão aberta pelo rentismo, trata-se possivelmente
do mais expressivo abalo na grande coalizão de classes articulada desde o Governo
Lula, uma vez que esse capital e sua cadeia especulativa – então presente no
pacto interclasses – paulatinamente se distanciaram dessa aliança, financiando
e atuando em prol do Golpe. Do ponto de vista politológico, possivelmente esse
foi um dos fatores detonadores do Golpe, uma vez que se trata de articulação de
forças internacionais e transnacionalizadas, por sua vez mancomunadas com o
governo dos Estados Unidos. Não se trata aqui de “teoria conspirativa”, e sim
de conspiração, que tem nome e suas estratégias aos poucos têm vindo à tona:
o chamado Plano Atlanta17.
Portanto, os diversos atores presentes nesse conjunto de manifestações – do
jogo internacional aos bastidores e às ruas –, embora não tivessem previamente
um centro articulador vertical, tiveram/têm na Operação Lava Jato, com
suporte do STF e articulação com a grande mídia, o aparato com capacidade
de direção que deu musculatura ao golpe parlamentar formal, encurralando
setores progressistas nas ruas e nas instituições. Nessas últimas, a submissão de
ministros progressistas e “liberais” do STF – caso simbólico de Marco Aurélio

16. Segundo certa linha interpretativa, tratou-se de teste de cunho jurídico/político/institucional/


midiático que, ao intentar a queda do presidente Lula, recuou inicialmente para repensar
táticas e estratégias, culminando na Operação Lava Jato. Ter-se-ia tratado, portanto,
do primeiro ensaio golpista que, embora derrotado, acumulou forças para, na primeira
oportunidade, desbancar os governos petistas.
17. Notícias importantes sobre o Plano Atlanta podem ser vistas na mídia alternativa, caso
da seguinte reportagem, entre outras: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/07/
plano-atlanta-golpe-judicial-midiatico-america-latina.html
70 O Golpe de 2016

Mello e Ricardo Levandowski – a “ministros” militantes e retrógrados, como


Gilmar Mendes (embora, este, com inúmeras contradições) e Luís Fux, trouxe
grande parte de ministros do “centro” para a anuência à conspiração e ao Golpe.
Mesmo Rodrigo Janot fez forte guinada na direção da desestabilização e passou
a atuar em conjunto com Sérgio Moro, tal como demonstrou o jornalista Luís
Nassif em suas análises sobre os vários jogos de “xadrez” da crise política18.
Dessa forma o Golpe foi desfechado. Seus elementos simbólicos combinam
processo kafkaniano com ópera bufa, num ambiente nonsense e bizarro: a
figura gangsteriana de Eduardo Cunha; o show de horrores da “bandidagem”
parlamentar, como seu viu na votação do impeachment na Câmara de Deputados;
a histeria bizarra de Janaína Paschoal; a fragilidade (supostamente) jurídica
da “peça” acusatória; o assim chamado “machistério” (neologismo criado em
razão da nula presença feminina na primeira nomeação ministerial) de Temer;
o apoio ao Golpe, de figuras conhecidas típicas da ignorância nacional, caso
de Alexandre Frota, entre outros; a imagem modorrenta de Michel Temer,
cuja trajetória política se fez nas sombras e subiu à ribalta, tal como Eduardo
Cunha, desempenhando papeis (ambos) que jamais estiveram à altura19; as
nomeações e “des”nomeações de ministros e auxiliares, as idas e vindas políticas e
administrativas, típicas de fim de governo mas que se apresentaram nos primeiros
dias do “novo” governo, confirmando à exaustão o caráter bizarro do Golpe,
assim como a desconexão dos grupos à direita no espectro, que ascenderam ao
poder pela via do Golpe, com a chamada “sociedade civil”.
É oportuno esclarecer que se entende aqui “sociedade civil” na perspectiva
gramsciana, isto é, como o conjunto de organizações que conflitam de forma
orgânica e representativa nas arenas política, intelectual/ideológica, jurídica/
institucional e outras, e que, dessa forma, representam grupos, classes e frações,
opiniões e interesses. Pois bem, a forma e o conteúdo do Golpe e do “governo”
Temer, dadas suas ilegalidades, ilegitimidades e simbologias negativas os
distanciam vigorosamente de segmentos sociais, grupos, classes e frações de
classes sociais as mais distintas: da direita liberal civilizada à esquerda, o que
implica a perda substantiva do que se chama de centro. 

18. Ver as colunas de Luís Nassif sobre o xadrez do golpe em www.jornalggn.com.br.


19. É muito significativo que a escola de samba Paraíso Tuiuti, que empolgou o país no Carnaval
de 2018 por ter feito crítica síntese ao passado e ao presente do Brasil (da escravidão histórica
às modernas formas de escravidão), tenha apresentado a figura de Temer como “vampiro
neoliberalista”, isto é, associou sua imagem a três sentidos: sua aparência física geradora de
temor, próxima da imagem de um vampiro; o caráter neoliberal e golpista de seu “governo”.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 71

Isso significa que a sustentação ideológica do “governo” Temer se dá


fundamentalmente por duas camadas sociais: as classes médias superiores e
parte significativa do Capital (nacional e internacionalizado), ambas camadas
absolutamente minoritárias; e politicamente pela institucionalidade do Congresso
Nacional, por meio de maioria – instável – na Câmara e no Senado, mas com
inúmeras contradições, como se viu na não cassação dos direitos políticos da
presidenta Dilma e na não aprovação da reforma da Previdência. 
Portanto, o pós-Golpe se sustenta numa maioria parlamentar, na leniência
do Poder Judiciário, no apoio da grande mídia carcomida e, mais recentemente,
pela interferência militar, cujos bastidores e desdobramentos não são inteiramente
conhecidos.

O PODER JUDICIÁRIO NO GOLPE DE 2016: PARTÍCIPE DO CONSÓRCIO GOLPISTA E


ATUAÇÃO COMO “PARTIDO POLÍTICO”

Antonio Gramsci foi um dos principais pensadores da política intitulada


“moderna” ao analisar suas formas sofisticadas de operar, sua complexidade
quanto à representação e seu papel tanto nas conjunturas como nas estruturas
de poder. Observou, argutamente, que certas instituições políticas sediadas
na chamada “sociedade civil” por vezes fariam a função e o papel dos partidos
políticos formais como “intelectuais orgânicos” de determinadas classes ou frações
de classes sociais. Deve-se notar que, para Gramsci, o Estado é “ampliado”, no
sentido de articulação entre os aparatos do Estado – como o Poder Judiciário e
os aparelhos repressivos – e as organizações da “sociedade civil”. Esta que, como
referida, na concepção de Gramsci em nada se parece com o postulado liberal,
uma vez que se manifesta por meio dos “aparelhos privados de hegemonia”.
Dada essa perspectiva, em determinadas conjunturas, notadamente
naquelas em que os representantes tradicionais e oficiais das classes e/ou frações se
encontram em crise de representação e de hegemonia – no sentido mais profundo
dessas expressões –, outras entidades, formais ou informais, na “sociedade civil”
ou mesmo dos aparatos do Estado, assumem o papel de “organização política da
sociedade” e de “direção político/ideológica”, notadamente por meio de grupos
específicos, como foi o caso da maçonaria na Itália na década de 1930.
A chamada “judicialização da política” (que inclui políticas públicas e os
mais diversos conflitos, incluindo-se os havidos entre os poderes) é um fenômeno
internacional que tem vicejado no Brasil desde a Constituição de 1988, com
efeitos controversos. O Poder Judiciário vem, desde então, ampliando seus
poderes, competências e privilégios, mantendo, além do mais, os que detinha
72 O Golpe de 2016

antes da redemocratização. Tem sido uma espécie de protopartido, um ensaio de


“partido político” no sentido de cumprir essa função, embora seja uma instituição
do Estado20.
De forma incremental, desde 1988, com a promulgação da nova
Constituição, o Poder Judiciário vem se transformando em verdadeiro partido
político no sentido de dar direção político/ideológica/moral ao conservadorismo –
em suas diversas acepções – e aos grupos de direita, em suas diversas tonalidades.
Superou, portanto, em muito o conhecido processo de “judicialização da política”,
que afeta as mais diversas demandas contenciosas. A aliança com a grande mídia
é, nesse sentido, crucial ao êxito do golpismo.
Desde 2005, com o julgamento do chamado “mensalão”, o Partido do Poder
Judiciário (que poderia ser chamado de PPJ na linguagem partidária), e seus
subprodutos (ou siglas “partidárias”), entre os quais o mais famoso, o Partido
da Lava Jato (PLJ), coligados por sua vez ao conhecido Partido da Imprensa
Golpista (PIG), a setores empresariais (notadamente o rentismo e interesses
nacionais e estrangeiros vinculados ao grande capital) e às classes médias
tradicionais (historicamente conservadoras), intercedem na vida política a ponto
de dominarem a vida política.
Funcionam como porta-vozes e “organizadores político/ideológicos” de
interesses do Capital Global, do rentismo, e das classes médias conservadoras. Em
última instância, o “Partido do Judiciário” requer recolocar a sociedade brasileira
em patamares sociais hierárquicos cujos elementos fundantes são a distinção social,
a imagem conservadora da “ordem” e a meritocracia individualista. Daí tanto a
participação ativa de setores do Judiciário na elaboração do golpe de Estado como
de sua “legalização”: Tribunal de Contas da União (TCU), Ministério Público
Federal e Ministérios Públicos Estaduais (MPEs) e Supremo Tribunal Federal.
Igualmente, aparatos de Estado, como a PF e a Receita Federal do Brasil (RFB),
tornaram-se fortemente instrumentalizados. O caso da “reforma” trabalhista, que
entrou em vigor em novembro de 2017 e praticamente derroga a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), permitindo que mulheres grávidas trabalhem em
ambientes insalubres se um perito do INSS assim o permitir, não teve no STF e
nos Ministérios Públicos reação garantista no sentido de impedir tal aberração.
Em outras palavras, não asseguraram a ordem jurídica e a sociedade de direitos, tal

20. Em verdade, o Poder Judiciário mantém privilégios históricos, assim como é o poder
incontestavelmente mais opaco dos poderes. A “República dos bacharéis” mantém
seus legados até os dias de hoje por diversos meios, entre os quais o controle seletivo
e discricionário do ingresso nas carreiras jurídicas com vistas à proteção das elites e a
criminalização dos pobres.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 73

como estipulada na Constituição de 1988 e nos inúmeros acordos sobre Direitos


Humanos dos quais o Brasil é signatário. Portanto, o Poder Judiciário, ao não
cumprir as garantias constitucionais nos mais diversos aspectos aqui apontados,
tornou-se membro ativo do golpismo e da representação das elites.
Portanto, a fragilidade dos partidos políticos – em sentido estrito –, como
o PSDB, o DEM e o PTB, por exemplo, sem contar o imenso “centrão”, todos
golpistas de primeira hora e decadentes no jogo político/eleitoral antes das
perseguições seletivas da Lava Jato, tem como contrapartida a proeminência
do Poder Judiciário como representante desses partidos políticos “sem voto” e
perdedores de eleições, caso notório do PSDB.
Logo, reitere-se, o Poder Judiciário, notadamente o vinculado à Lava Jato
(juizado de primeira instância de Curitiba e MPF, associados à PF) + o Tribunal
Regional Federal 4 + o Tribunal Superior de Justiça + a Procuradoria Geral da
Justiça + o Supremo Tribunal Federal (esse, decisivamente) têm atuado, todos,
não sem contradições, como “partidos políticos informais” que representam as
elites e, consequentemente, parte importante do Golpe.
É nesse sentido que um “novo/velho” Brasil está sendo moldado desde que o
impeachment foi desfechado. Com ele, como referido, estão sendo desestruturados:
o pacto político formulado pela redemocratização que resultou na Constituição
de 1988; o Estado de Direito Democrático; o Estado de Bem-Estar Social; os
direitos trabalhistas; a soberania nacional; os direitos civis, notadamente das
minorias; entre inúmeros outros.
O discurso e a narrativa justificadores dessa interrupção democrática –
também “novo/velho” – se fundam na imagem rósea da “modernização”, que
implicaria a “abertura do mercado” com vistas à vinda supostamente “ilimitada”
de capitais exteriores; a redução do “custo Brasil” por meio da severa restrição
orçamentária aos pobres; a valorização da “meritocracia” individual sem qualquer
consideração quanto às históricas injustiças estruturais; a retomada da “estática
divisão internacional do trabalho”, na qual Sérgio Moro, José Serra e Aloysio
Nunes Ferreira (os dois últimos ministros golpistas das Relações Exteriores de
Temer), por exemplo, parecem se inspirar; entre outras questões advindas dessa
tentativa de justificação do Golpe.
Um tal poder com “funções partidárias” (as referidas organização política
e direção ideológica) faz com que as ações do “Partido do Poder Judiciário”
sejam ou omissas, ou lenientes, ou ativas no ataque às garantias constitucionais,
a ponto de a defesa do ex-presidente Lula ter conseguido aceitação da ONU
quanto ao processo que lhe é movido pela Operação Lava Jato, cujos elementos
anti-jurídicos saltam aos olhos, simbolizados na figura do promotor Delton
74 O Golpe de 2016

Dallagnol, notabilizado por expressar convicções acusatórias sem provas em


forma de power points.
Esses “partidos do Judiciário” tem ou realizado (Partido da Lava Jato,
TCU, MPEs), ou permitido (STF), um sem-número de aberrações ilegais contra
determinados políticos de um mesmo partido político (o PT), como se sabe,
e parcialmente ao PP (Partido Popular que, embora conservador, participou
da aliança nos governos petistas). Muito já se falou dos grampos ilegais e dos
vazamentos aos meios de comunicação (ao PIG), das conduções coercitivas, das
prisões ilegais e estendidas como forma de pressão, das pressões inconstitucionais
às delações premiadas, da supressão do “devido processo legal”, da permissão
inconstitucional da “prisão em segunda instância”, da interpretação do processo
penal e do código do processo penal de forma inteiramente “particular” sem que
nenhuma dessas aberrações jurídicas tivesse o devido “peso e contrapeso” do que
se pode chamar de Justiça: a omissão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e
do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) diante dessas aberrações
os torna igualmente lenientes ao golpe de Estado. Tudo isso no contexto da
enorme seletividade investigativa21.
Devido a esse processo que destitui a Política como esfera legítima de
conflito e negociação, a mesma não mais é discutida no Brasil sem que haja
menções explícitas e predominantes a membros do Poder Judiciário (como
Sérgio Moro, Gilmar Mendes, Carmen Lúcia, Rodrigo Janot (e, desde 2017,
Raquel Dodge), entre inúmeros outros. Mesmo a morte do ministro do STF,
Teori Zavascki, tem permitido um sem-número de versões sobre um possível
atentado, tendo em vista a conveniência política para o consórcio golpista indicar
seu substituto (uma vez que Zavascki foi relator da Lava Jato num momento
de homologação de importantíssimas delações premiadas) consonante à ala do
STF voltada à criminalização de políticos do PT e de parte do PMDB, sem que
nada tenha ocorrido ao PSDB e ao núcleo golpista do PMDB, cujos principais
nomes estão envolvidos profundamente em denúncias e sobretudo em evidências.

21. As denúncias do ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Duran – que está exilado na
Espanha –, a respeito da compra e venda de delações premiadas pela Operação Lava Jato,
constituindo-se espécie de “mercado das delações”, assim com o envolvimento de pessoas
muito próximas a Sérgio Moro, como Carlos Zucolotto Jr., nesse mercado, criam espesso
véu de opacidade acerca dos interesses da Operação Lava Jato que, a rigor, ancora-se
ostensivamente no Direito estadunidense. Não bastasse isso, grande parte da equipe da Lava
Jato foi treinada pelo departamento de Estado dos EUA, como é sobejamente conhecido.
Por fim, denúncias de manipulação de provas com vistas a forjar evidências colocam a
Operação Lava Jato como um todo sob forte suspeição da comunidade jurídica nacional e
internacional.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 75

Ao se partidarizar, o Poder Judiciário, com honrosas exceções, exime-se


de julgar o “mérito” dos processos e sim personaliza o suposto criminoso: alguns
devem ser investigados (os do PT), e outros (os do PSDB), não. Tal seletividade
se tornou marcante, inclusive simbolicamente, devido aos reiterados encontros
entre Moro/Gilmar e figuras com claros indícios de cometimento de crimes,
casos de Aécio, Alckmin, Temer, Dória e tantos outros, num teatro em que se
encontram acusadores e acusados, cujos papeis se confundem.
Igualmente, os Ministérios Públicos estaduais têm agido de forma facciosa,
partidária, caso do Ministério Público de São Paulo (MPSP), que há vinte anos
vem blindando os sucessivos governos do PSDB do estado de um sem-número
de evidências que deveriam ser investigadas, casos: da intransparência sistêmica
governamental; da corrupção, como se verifica nos casos Alstom e da quebra de
consórcios que construiriam linhas de metrô, dos desvios da merenda escolar,
entre inúmeros outros. Além disso, omite-se de cumprir sua competência
constitucional de acompanhar e impedir a violência policial exacerbada, e
coordenada politicamente pelo governo estadual; omite-se igualmente de
analisar a irresponsabilidade administrativa do governo do estado nos casos da
crise hídrica e da “reorganização” das escolas estaduais. Também não há sinais
de investigações quanto: ao aparelhamento político/partidário dos aparatos do
Estado; às privatizações, concessões e contratualizações onerosas à sociedade
e irresponsáveis administrativamente; entre muitos outros. Tudo isso tornou o
estado de São Paulo, sob o PSDB, o estado mais autoritário, intransparente e
incompetente para resolver problemas estruturais, inversamente à proteção e
blindagem dos aparatos judiciários estaduais, tais como o Tribunal de Justiça,
do MPSP e mais recentemente da Defensoria Pública.
Por outro lado, a perseguição de promotores paulistas a Lula é típica de
ópera bufa, contrariamente à intocabilidade dos governos tucanos, a despeito
dos referidos descalabros que promovem no estado de São Paulo. Igualmente,
o Ministério Público do Distrito Federal (MPDF), entre outros, tem assumido
postura antipetista e particularmente persecutória a Lula, a ponto de indiciá-lo
sem qualquer evidência e muito menos provas. São, portanto, “seções regionais”
do PPJ, espécie de partidos políticos regionais da Velha República, redivivo nos
dias de hoje pela via do Judiciário.
O Partido do Poder Judiciário se protege com o argumento de que “apenas
cumpre a lei” quando, em verdade, a interpreta ao seu bel-prazer e de acordo com
as circunstâncias políticas, conjugando ações da Lava Jato com o STF, a PGR
e Ministérios Públicos estaduais, embora haja conflitos e dissintonias também
entre essas instituições, similar ao que ocorre nas alianças entre os partidos
76 O Golpe de 2016

políticos formais. Reitere-se que a aceitação da ONU à queixa de perseguição


ao ex-presidente Lula pela Lava Jato, particularmente por Moro, evidencia
vigorosamente esse manancial de ilegalidades.
Já o apontado “messianismo” de Moro (que, tudo indica, colabora com
o Poder Judiciário dos EUA), Dallagnol e outros membros da Lava Jato, que
supostamente estariam numa cruzada cívica contra a corrupção, pode ser até
verdadeira do ponto de vista de suas crenças individuais, embora altamente
questionável dada a seletividade com que atuam. Contudo, o mais importante
é observar os aspectos sistêmicos do que está em jogo no Brasil por meio da
atuação política do Poder Judiciário como “partido político”.
Dessa forma, sem que se enfrente e se desestruture o poder faccioso desse
“partido político”, impondo-lhe conduta republicana, transparente, equânime e
democrática, o Brasil aprofundará a “ditadura judicial” presente nesse momento,
tornando o Estado de Exceção moldura da vida política nacional.
A excepcionalidade forjada pelo Poder Judiciário se sustenta, como se
procurou demonstrar acima, devido à profunda – e promíscua – relação com a
grande mídia. Segundo o jornalista Paulo Moreira Leite:

“O trabalho do oligopólio dos grandes meios de comunicação foi facilitado


pela formação de uma força tarefa sob comando de Deltan Dallagnol, que
permitiu ao Ministério Público assumir o controle das informações essenciais
sobre a Lava Jato. A operação passou a obedecer a um comando único,
centralizado e disciplinado, ao contrário do que ocorre em casos comuns, nos
quais procuradores, subprocuradores e policiais atuam de forma dispersa e
autônoma, o que pode gerar pontos de vista diferentes sobre um mesmo fato.

A Lava Jato e sua força-tarefa protagonizaram um ritual mais centralizado e


eficaz do ponto de vista da propaganda, pois a mesma máquina que gera os fatos
também mantém controle absoluto sobre as versões que serão publicadas, sem
espaço para a crítica nem contestação real. (LEITE, P. M. in ALVES, G. et. al.
(orgs.), 2018:19 e 20, ênfases nossas).

A análise do arguto jornalista, não por acaso vinculado à mídia


alternativa, demonstra com clareza o modus operandi da Estado de Exceção
instaurado particularmente desde 2016, uma vez que a Operação Lava Jato
se transformou simultaneamente em produtora, distribuidora e controladora
(com total apoio da grande mídia) de “notícias políticas” de grande repercussão
vigorosamente enquadráveis no conceito de fake news. Nesse sentido, omissões,
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 77

descontextualizações, inversões, meias verdades, mentiras, retórica unidirecional


e ausência de contraditos estabelecem o predomínio de dois partidos informais
– espécie de donos do poder formal por meio de dinâmicas informais – como
representantes das elites sem voto: o Partido do Poder Judiciário e o Partido da
Imprensa Golpista!
À guisa de conclusão: Desdobramentos e consequências do Golpe de 2016
Para além dos desdobramentos já apontados, deve-se ressaltar que, em
consonância com a partidarização do Poder Judiciário e das instituições, uma das
consequências cruciais do Golpe de Estado refere-se ao Sistema Político, uma
vez que marcado pelo paradoxo e pela dualidade. Em outras palavras, de um
lado está o que se entende, em tempos de “normalidade” constitucional, por
“política”: o universo da representação e da articulação políticas, que tem como
atores centrais os partidos políticos e suas lógicas, entre as quais as eleitorais;
os militantes e a sociedade politicamente organizada, marcada por interesses
contrapostos e assimétricos; as instituições “representativas”, oriundas do voto
popular, tais como os parlamentos e os executivos, e um conjunto de regras
e normatizações vinculadas à representação legítima. Esses atores e lógicas
estiveram em plena movimentação com vistas às eleições de 2016 e 2018.
Deve-se relembrar o que ocorreu nas eleições municipais de 2016, em que a
Operação Lava Jato – sempre coligada aos grandes meios de comunicação –
foi a grande responsável pela derrota dos partidos e candidatos à esquerda,
contribuindo fundamentalmente para a vitória de partidos como o PSDB e
o DEM – partidos do Golpe –, fortemente decadentes em termos eleitorais.
Contudo, de outro lado se encontra a ditadura velada, embora cada vez
mais ostensiva, provinda do Golpe. É nesse âmbito que vicejam instituições
“sem voto” que, contudo, fazem política ostensivamente, mas ocultada pela
proteção institucional dos cargos que ocupam, como vimos acima: da Operação
Lava Jato, passando por setores da Polícia Federal, chegando-se às mais altas
cortes, tais como o Supremo Tribunal Federal, entre outros. Em outras palavras,
representam interesses ocultados, as diversas frações da plutocracia e, em
especial, o capital transnacional e o rentista; as classes médias superiores; e
determinados partidos políticos representantes das elites e atuantes no sistema
político “normal” e que deram o golpe de Estado: PSDB e PMDB.
A partidarização do Poder Judiciário implica brutal discricionariedade que
tem chegado ao dia a dia do cidadão comum tendo em vista os “exemplos que
vêm de cima”, com a consequente percepção de “autonomia” dos “burocratas
do nível da rua”: aqueles que, funcionários ou representantes do Estado,
lidam diariamente, nas mais diversas funções, com os cidadãos. Os exemplos
78 O Golpe de 2016

são abundantes e podem ser sintetizados na figura do reitor da Universidade


Federal de Santa Catarina, que, humilhado por forças judiciárias e policiais
acusatórias e persecutórias, e sem o “devido processo legal”, se suicidou. Portanto,
o cotidiano do país e do sistema político vinculado ao espectro da esquerda
(partidos, notadamente o PT, e movimentos sociais), nas mais diversas situações,
tem sido marcado pela ausência de garantias constitucionais, que implicam
seletividade, discricionariedade e arbítrio. Logo, as instituições do Estado, que
constitucionalmente deveriam ser as garantidoras da ordem jurídica democrática,
atuam fortemente como agentes de instabilidade política e consequentemente
têm levado o país a um verdadeiro Estado de Exceção, como apontado.
Outra importante consequência refere-se às reformas neoliberais, levadas
a cabo pelo consórcio golpista, por serem conservadoras e antinacionais –
fracassadas no mundo todo e espécie de fantasma que se está ressuscitando –, e,
em razão disso, terem sido rejeitadas pela população nas últimas quatro eleições
presidenciais. Tais reformas beneficiam, se tanto, 10% dos brasileiros, e impõem
aos grupos mais visíveis que tomaram o poder o ônus da brutal impopularidade
e rejeição. Daí a clareza, para o consórcio golpista, de que somente pela via do
golpe chegaria ao poder, com vistas a aplicar a agenda neoliberal rejeitada pelos
brasileiros.
Dessa forma, no contexto da desmontagem e desestruturação do Estado
garantidor de direitos (sociais e trabalhistas) que estava se consolidando, deve-se
destacar a aprovação da Emenda Constitucional 95, que congela gastos sociais por
20 anos nas áreas de Assistência Social, Educação e Saúde; a aludida “reforma”
da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT); e a brutal desarticulação/extinção
de programas, projetos e financiamentos nas mais distintas áreas sociais. Do
ponto de vista econômico, a privatização acelerada de várias empresas estatais,
a terceirização e concessão da gestão pública/políticas públicas e a destruição
do setor de infraestrutura público e privado, com respectivamente Petrobras e
Odebrecht à frente, sintetizam os objetivos e as razões pelos quais o Golpe foi
desferido.
Mais especificamente quanto à arena econômica, o modelo
neodesenvolvimentista dos governos petistas está sendo inteiramente
desestruturado sem discussões, o que vem implicando a derrogação dos ativos
e empresas públicos, a capacidade de financiamento e de indução do Estado e
a desnacionalização de setores estratégicos nacionais. Altera-se, dessa forma,
o modelo de desenvolvimento vitorioso nas urnas, fazendo com que o país
retroceda à histórica e trágica relação Norte/Sul subalterna, tendo como
premissa preparar o país para receber o capital internacional, competindo com
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 79

países similares por ele, reinstaurando assim a clássica divisão internacional


do trabalho entre os países.
Por fim, causa e consequência se encontram quando se observa que o
Golpe no Brasil faz parte de um movimento internacional. É nesse sentido
que o ponto nodal do Golpe brasileiro está vinculado a estruturas de poder
do capital transnacional, notadamente o rentista, ao qual o grande capital
nacional se associa (exemplo claro da Fiesp) e que encontra representação
política nos três poderes, como vimos, neste momento histórico. Dessa forma,
a atual lógica do capitalismo contemporâneo (modelo de acumulação flexível/
precarizante e receituário neoliberal aos pobres) despreza cada vez mais os padrões
democráticos: foi chamado acertadamente por Naomi Klein de “doutrina do
choque”22. Daí a necessidade de destruir a infraestrutura nacional, pública e
privada, isto é, a Petrobras e toda a cadeia de petróleo nacional, notadamente o
Pré-sal, a Eletrobras e tantas outras, de um lado, e a Odebrecht, OAS, Camargo
Correa etc, com toda sua cadeia produtiva nacional, de outro. Nesse particular,
o trabalho da Operação Lava Jato tem sido primoroso, com, além do mais, sua
completa adesão a padrões norte-americanos do direito penal, assim como a
cooperação (legal e ilegal) com o governo dos Estados Unidos, como aludido, em
franca contraposição à Constituição Federal e aos acordos de direitos humanos
assinados pelo Brasil: isso tudo sob o olhar complacente do STF.
O Golpe de 2016 demonstrou seu enorme potencial destrutivo e disruptivo e
está em processo. As instituições políticas, notadamente judiciais, ao participarem
do consórcio que golpeou a democracia e ao manterem o país em Estado de
Exceção demonstram que a luta política é cada vez menos institucional e
muito mais vinculada às mobilizações sociais públicas, às ocupações de espaços
públicos e privados, às diversas formas de resistência e de denúncia (nacional
e internacional), à irrupção de greves e paralisações e às formas variadas de
desobediência civil. Aparentemente só a presença popular ostensiva é que
poderá abrir flancos no jogo marcado das instituições, responsável por acobertar a
deposição de uma presidenta legitimamente eleita e a prisão de um ex-presidente
da República: em ambos os casos sem provas nem evidências23!

22. O filme de Naomi Klein, baseado no livro do mesmo nome (A doutrina do choque:
a ascensão do capitalismo de desastre), está disponível em: www.youtube.com/
watch?v=KRyJDTdBmCI&t=487s. As denúncias de Snowden e Assange apenas
corroboram o desprezo pela democracia do grande capital. No caso brasileiro, tanto o
Governo dos EUA como o grande capital a ele articulado, sabiam das potencialidades do
Pré-sal e dos planos geopolíticos e geoeconômicos em razão da espionagem nas mensagens
e telefones das autoridades brasileiras.
23. Finalizamos com breve nota sobre a “vitória” de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, pois esta
80 O Golpe de 2016

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. (2004). Estado de exceção. São Paulo: Boitempo


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sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo.
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representou mais uma etapa do Golpe de 2016, isto é, a continuidade extremada (“fascismo
neoliberal”) de Temer e resultante de ilegalidades cometidas pelo consórcio golpista. Mas
que contou também com outra forma de fraude, não punida pelas instituições: o disparo
profissional e maciço, com financiamento milionário ilegal, via WhatsApp, de mensagens
mentirosas sobre os adversários de Bolsonaro, especialmente o PT e seu candidato,
Fernando Haddad – uma ação coordenada por Steve Bannon. Ver denúncia à Justiça feita
pela candidatura Haddad: https://www.brasil247.com/pt/247/poder/372457/Haddad-pede-
%C3%A0-PF-que-apure-usina-de-fake-news-da-campanha-Bolsonaro.htm
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 81

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Cartamaior: www.cartamaior.com.br
Diário do Centro do Mundo: www.diariodocentrodomundo.com.br
Jornal GGN: www.jornalggn.com.br
Jornal Le Monde Diplomatique Brasil: diplomatique.org.br
A campanha pela deposição de Dilma:
O ódio na política e a política do ódio

Dênis Carneiro Lobo

Introdução

Continuum - O Golpe Parlamentar Institucional de 2016 como um processo

Dilma Rousseff foi a primeira mulher eleita – e reeleita – presidenta de


um país em que os números de participação feminina na política são irrisórios.
Muito já se escreveu e se escreverá sobre as implicações machistas do golpe que
derrubou uma mulher da presidência da República no Brasil em 2016. Havia
ódio partidário-ideológico contra Dilma Rousseff, mas também componentes
claríssimos de misoginia, de ódio de gênero.
A aversão que parte das elites brasileiras carrega contra o direito das
mulheres, pobres e contra as políticas sociais dos governos petistas que
beneficiaram os menos favorecidos foi sendo exposta de forma maciça nas Redes
Sociais Digitais (RSDs), em especial no Twitter e no Facebook, desde o pleito
eleitoral de 2014 e até antes, se intensificando após a eleição e se concretizando
com o golpe parlamentar que destituiu a presidenta eleita Dilma Rousseff (PT).
O Golpe é classista porque tenta bloquear os avanços sociais realizados
na última década. O Golpe é sexista porque não consegue fazer críticas à
administração de Dilma sem recair em ataques de conotação sexual.
O Golpe começou misógino, com ataques constantes à figura de Dilma,
desde seu primeiro mandato, durante o qual ela teve de conviver com as ofensas
e xingamentos machistas, as especulações acerca da sua sexualidade, com a
finalidade de não abordar questões referentes a seu desempenho como chefe de
Estado e, em vez disso, tratar de questões referentes à sua vida íntima. Em seu
84 O Golpe de 2016

segundo mandato, os ataques sexistas continuaram e a crítica ao seu governo


assume um segundo plano nas manifestações reacionárias, já que seu programa
se equiparou muito ao de seu opositor eleitoral, Aécio Neves (PSDB), assumindo
um caráter austero, ainda que não tenha retrocedido nas conquistas sociais.
A crítica da oposição não encontrou fundamento e se voltou novamente
aos ataques misóginos e ao golpe baixo das acusações criminais. Vale lembrarmos
de atrocidades como a sugestão da revista Isto É de que Dilma se encontra em
estado de histeria24 e do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) homenageando
o fascista Comandante do Exército Brilhante Ustra25, que estuprou e torturou
Dilma e outras mulheres da esquerda presas pela repressão da ditadura militar.
A cereja fálica do bolo se dá quando Dilma é afastada e o interino Michel Temer
compõe um governo exclusivamente com homens, brancos, cisgênero, da elite
política e econômica.
Pelo ódio sexista, ataca-se a dignidade de mulheres de muitos modos, seja
inventando uma essência para elas, seja ocultando as heterodenominações que
pesam sobre elas, seja criando e intensificando as ideologias femininas por meio
de formações discursivas heteronormativamente orientadas, tais como a ideologia
da maternidade, da juventude, da sensualidade, todas essas que fazem parte do
sistema do machismo estrutural. Todo esse sistema ideológico não prevê mulheres
no poder. Porque o poder é coisa que os homens reivindicam para si próprios,
única e exclusivamente.
Em pesquisa que realizei em 201426, durante o pleito eleitoral daquele ano
e tendo como objeto de estudo o ódio nos discursos dos seguidores das páginas
públicas no Facebook de Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), já fica
fortemente evidenciado como o ódio foi um componente estratégico numa
eleição marcada pela intolerância.
Intolerância essa que se estendeu no período pós-eleitoral e se intensificou,
num continuum que culminou no Golpe de 2016 e que se prolonga posteriormente
com a imposição de uma agenda política derrotada nas urnas, com um governo
para o salvamento do establishment – corrupto e denunciado em diversas
operações deflagradas ao longo dos últimos anos – e com a judicialização seletiva

24. Para mais esclarecimentos, ver: https://istoe.com.br/450027_UMA+PRESIDENTE


+FORA+DE+SI/
25. Para mais esclarecimentos, ver: http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/11/bolsonaro-diz-
no-conselho-de-etica-que-coronel-ustra-e-heroi-brasileiro.html
26. LOBO, D. A. C. Bolhas de ódio: O ódio como componente político nas dinâmicas interacionais
societárias mediadas por Tecnologias de Comunicação Instantâneas (TCIs); Dissertação de
Mestrado defendida em março/2018 junto ao Programa de Estudos Pós-Graduados em
Ciências Sociais (PEPGCS-PUC/SP).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 85

e organizada no sentido de garantia de uma nova onda liberal, pautada na


austeridade em relação ao que é política social, apenas.
Um “golpe de estado” (seja ele inicialmente institucional ou militar) não
é um ato único, mas um processo, como mostrou Marx em O 18 Brumário de
Luís Bonaparte27. Da mesma forma, o Golpe parlamentar Institucional de 2016
também pode e vem sido encarado como um processo. Basta lembrarmos da
célebre frase proferida na ocasião do processo do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff por um Senador da República, flagrado em uma gravação autorizada
pela PF em uma de suas operações: “[…] um grande acordo Nacional, com o
Supremo, com tudo […]”.
Dilma Rousseff, presidenta eleita e deposta pelo Golpe, afirmou em discurso
em Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, durante a caravana de
Lula na região, que “o impeachment foi apenas o primeiro passo do Golpe, que
é um processo político-midiático com apoio de setores do empresariado e do
judiciário». «O Golpe continua», destacou28.
Todo esse processo foi permeado pelo ódio. Seja ele de classe, partidário-
ideológico, racial, religioso ou sexista, o ódio, seja ele a nível discursivo, simbólico
ou efetivado em violência e agressão física, funcionou como um importante
componente político estratégico, utilizado racionalmente com o intuito de
interferir nos mecanismos políticos. E, para uma análise mais fidedigna desse
processo, precisamos entender duas maneiras de esse fenômeno se apresentar:
sua dimensão fatídica e jurídica e sua dimensão simbólica e política.

27. Fonte: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2804654/mod_resource/content/0/


Marx%20-%20O%2018%20Brum%C3%A1rio%20de%20Lu%C3%ADs%20Bonaparte%20
%28Boitempo%29.pdf
28. Fonte: https://www.brasil247.com/pt/247/rs247/347568/Dilma-o-golpe-politicamente-deu-
errado-Ele-suscitou-o-%C3%B3dio.htm
86 O Golpe de 2016

O discurso de ódio e o ódio político

As TCIs29 modificaram drasticamente as percepções relativas a tempo e espaço,


e revolucionaram as maneiras de comunicação na sociedade atual. Essas TCIs, em
especial as redes sociais digitais, cujo diferencial é a extrema rapidez e alcance de
suas operações, permitem ao homem externar seus pensamentos, suas opiniões,
suas escolhas, externar a si próprio das mais variadas formas e a um largo espectro
de outros homens que, como ele, também se projetam no ciberespaço. Dadas
as múltiplas possibilidades de compartilhamento informacional entre diferentes
pessoas, oriundas de diferentes culturas e conhecedoras de diferentes áreas do
saber, através da rede, o homem também comete atos ilícitos, propaga mensagens
de conteúdo prejudicial e viola direitos fundamentais dos demais usuários.
Essa problematização, que não é essencialmente nova, porém mais complexa
e potencializada por uma roupagem tecnológica, coloca o discurso no cerne
da questão, já que essas redes podem revelar-se ferramentas facilitadoras de
propagação de mensagens odientas e de incitação de violência contra pessoas e
grupos sociais, sobretudo através da chamada dinâmica de member get member30
, pela qual as interações nessas redes sociais estão estruturadas e, também,
e sobretudo, a partir da relevância algorítmica que rege as interações, o que
potencializa, a partir de padrões e características de hábitos de navegação e
consumo digital, o encontro e disseminação desses tipos de mensagens e seus
potenciais enunciatários engajados.

29. As Tecnologias de Comunicação Instantânea (TCIs) se diferenciam das TICs (Tecnologias de


Informação e Comunicação), amplamente trabalhada nas Ciências Sociais por autores como
Manuel Castells, Jesús Martín-Barbero, entre outros, pois, as Tecnologias de Comunicação
Instantâneas (TCIs) se constituem como um tipo particular de TICs, em que a construção,
promoção e circulação da comunicação se dá de forma instantânea entre os usuários da rede
através ou a partir da mediação tecnológica, como acontece, por exemplo, nos aplicativos de
instant messenger como WhatsApp, ICQ, MSN Messenger, ou mesmo nas Mensagens Diretas
(DM) das redes Facebook e Twitter. Além disso, as dinâmicas de interação dos usuários
via posts, comments e shares, como ocorre no YouTube, Twitter e Facebook, também podem
ser consideradas dentro dessa conceituação à medida que trabalham com uma dimensão
instantânea da informação e da interação intersubjetiva, a partir do efeito de produção de
presença. Essa alteração no espaço-tempo proporcionada por meio da produção de presença
ocasionada pelo uso dessas tecnologias de comunicação instantâneas é também expressão
da instantaneidade das relações e das dinâmicas comunicacionais que se desenvolvem nas
redes.
30. O Member Get Member é uma estratégia de marketing baseada em indicações, na qual a
empresa ganha novos clientes e o cliente que faz a indicação ganha normalmente alguma
recompensa por isso; pode ser um brinde da marca, um desconto, acesso exclusivo a algum
evento, entre outros.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 87

Essa dinâmica denominada member get member, como a tradução do termo


em inglês sugere, “usuário captura usuário”, consiste basicamente em construções
de redes sociais com interação baseada na captura (por meio de convites e
aceites) de usuários para essas redes pelos próprios usuários com perfil cadastrado,
por meio de identificação com o conteúdo postado, por um comentário, uma
curtida etc. Em sua origem, a ideia de “comunidade”, originária no antigo
Orkut, partiu desse fundamento para a construção de enormes comunidades de
interesse. Atualmente, as redes sociais se diferenciam, justamente, pelo avanço
e capacidade tecnológica desses algoritmos para exploração comercial dos dados
dos usuários em rede.
Esse interesse é identificado, classificado e manipulado por meio de
programações computacionais – os “algoritmos” capazes de codificar essas
“afinidades” – lidas por meio de interesse no consumo de conteúdos em
determinados sites, as redes de “likes”, “comments” e “shares” de cada usuário em
sua própria rede, e, também, nos hábitos de consumo e navegação dos “amigos”
com maior frequência de interação etc, que formarão os clusters. Em seu princípio
computacional, os clusters são caracterizados como sendo os agrupamentos de
computadores, fracamente ou fortemente ligados, que trabalham em conjunto, de
modo que, em muitos aspectos, podem ser considerados como um único sistema31.
Para efeitos conceituais nas Ciências Sociais, expandiremos essa definição,
também, aos componentes relativos à identificação societária, como classe social,
dados demográficos, interesses de consumo de conteúdo nas redes etc.
Tais aspectos, somados à ainda incipiente produção científica brasileira
sobre o discurso de ódio sob a óptica sociopolítica, nos direcionam no sentido de
estabelecimento de um debate político entre discurso, tecnologia e democracia,
tentando estabelecer uma ponte entre esse mecanismo privilegiado de projeção
do ser humano e os aspectos pouco promissores da realidade palpável na qual
estamos inseridos.
Primeiramente, é preciso delimitar o Discurso de Ódio enquanto figura
jurídica. Em uma revisão bibliográfica sobre o objeto do Discurso de Ódio e sua
jurisprudência, observa-se que a definição conceitual mais recorrida do fenômeno
do discurso de ódio é retirada do trabalho de Winfried Brugger, que considera o
Discurso de Ódio como a utilização de palavras que “tendem a insultar, intimidar
ou assediar pessoas, ou que têm a capacidade de instigar a violência, ódio ou
discriminação contra tais pessoas.”. (BRUGGER, 2007, p. 115).

31. Para maior aprofundamento no conceito, verificar, por exemplo: https://canaltech.com.br/


hardware/O-que-e- um-cluster/
88 O Golpe de 2016

Genericamente, o discurso de ódio se caracteriza por incitar a discriminação


e a violência física ou simbólica contra pessoas que partilham de uma
característica identitária comum, como a cor da pele, o gênero, a opção sexual,
a nacionalidade e a religião, entre outros atributos. Aqui insistimos na evidência
da violência simbólica enquanto constituinte desse tipo de discurso. Esse ponto
é importante quando examinamos o assunto, principalmente em relação à sua
constituição e efetivação em espaços ou ambientes digitais.
Os estudos da área jurídica, principalmente em referência à jurisprudência
americana sobre o tema – dentre os quais alguns serão analisados nesta parte
da pesquisa – consideram que o discurso de ódio se constitui apenas quando o
pensamento se externaliza em discurso, e somente se há a promoção de atos de
agressão física à(s) vítima(s) decorridos desse tipo de discurso.
Isso varia, conforme veremos, de acordo com as concepções de restrição
em relação aos direitos universais de liberdade (principalmente, o que se refere à
liberdade de expressão e direito à dignidade humana).
Em um primeiro momento é importante evidenciarmos duas características
fundamentais desse fenômeno: trata-se de discurso que ocorre quando o
pensamento ultrapassa os limites do indivíduo e se materializa. O discurso existe,
é materialidade expressa, está ao alcance daqueles a quem busca denegrir e
daqueles a quem busca incitar contra os denegridos, e está apto a produzir seus
efeitos nocivos, quais sejam: as violações a direitos fundamentais e o ataque à
dignidade de seres humanos. Segundo, no que concerne à violação provocada,
embora esse ponto já tenha sido tocado nesta discussão, faz-se necessário
esclarecer: trata-se de ódio, sentimento que fere a dignidade da pessoa humana,
característica essencial do homem individual e coletivamente considerado, física,
moral e humanamente.
Observa-se que tal discurso apresenta como elemento central a expressão do
comportamento e a externalização de pensamentos que desqualificam, humilham
e inferiorizam indivíduos e grupos sociais. Esse tipo de discurso tem por objetivo
propagar a discriminação desrespeitosa para com todo aquele que possa ser
considerado “diferente”, quer em razão de sua etnia, sua opção sexual, religiosa,
sua condição econômica ou seu gênero, para promover a sua exclusão social.
Conforme salientam alguns autores do campo do Direito, como Riva
Sobrado de Freitas32, é possível observar – a partir das avaliações empíricas que

32. FREITAS, S. R. “Liberdade de expressão e discurso do ódio: um exame sobre as possíveis


limitações à liberdade de expressão”. IN: Revista Sequência, número 66, Florianópolis,
Julho de 2013. Fonte: http://dx.doi.org/10.5007/2177- 7055.2013v34n66p327-352
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 89

ele realizou sobre o material jurídico relativo aos casos de discurso de ódio na
jurisprudência brasileira – que tal discriminação indica não apenas uma diferença,
mas uma assimetria entre duas classes, entre duas posições: uma supostamente
superior, indicando aquele que expressa o ódio; e outra inferior, indicando aquele
contra o qual a rejeição é dirigida. “O objetivo pretendido é humilhar para
amedrontar pessoas ou grupos sociais evidenciando que, por suas características
específicas, eles não são dignos da mesma participação política. Calar, excluir e
alijar são propósitos da manifestação do ódio.” (FREITAS, 2013, s/p).
Apesar de muito se debater no campo jurídico sobre o que se constituiria o
discurso do ódio, a questão sempre esbarra justamente em seu aspecto político: a
constituição das democracias liberais burguesas atuais. Conforme muitos autores
da área do direito argumentam, as democracias liberais burguesas atuais partem
da premissa da livre manifestação, da liberdade de expressão enquanto base das
relações institucionais e enquanto constituinte da representatividade do povo
em sociedades com regimes representativos. Alijar a livre expressão aparece
como totalitário para seus pares, e não democrático.
A liberdade de expressão foi uma conquista histórica das democracias
liberais burguesas modernas contra a tirania dos governos despóticos que
dominaram o mundo velho até o século XVII. E, em razão desse fato, o tratamento
jurídico referente ao discurso do ódio vai variar de acordo com a constituição
sociopolítica de cada um desses Estados33. Nos Estados Unidos, por exemplo, a
primeira emenda da sua Constituição apresenta vedação expressa ao Congresso,
no que se refere à atividade legislativa, destinada a opor limites à liberdade de
expressão, bem como à liberdade de imprensa. Com isso, “a Suprema Corte
estadunidense tem sistematicamente protegido o discurso do ódio como forma
de garantir a liberdade de expressão, inclusive desprestigiando outros valores”
(FREITAS, 2013, s/p). Houve momentos em que prevaleceu o entendimento
de que a liberdade de expressão deveria sofrer restrições. Essa situação ocorreu,
por exemplo, como relata o autor, quando se pretendeu a supressão do Partido
Comunista nos Estados Unidos, sob a justificativa da necessidade de inviabilizar
a propagação do stalinismo34. Mas, via de regra, a Suprema Corte estadunidense
adota a concepção de que o ato violento seja necessariamente expresso por meio
da agressão física.

33. Nesse sentido, além do trabalho citado anteriormente de FREITAS, S. R., ver também:
SILVA, L. Rosane; “Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira”; Rev.
direito GV vol.7 n. 2 São Paulo, Julho/Dec. 2011. fonte: http://dx.doi.org/10.1590/S1808-
24322011000200004
34. IBID.
90 O Golpe de 2016

Em sua análise sobre o hate speech (tradução inglesa para “discurso de ódio”)
nos casos julgados emblemáticos realizados pela Suprema Corte estadunidense,
Daniel Sarmento destaca que as limitações no campo da liberdade de expressão
somente ocorrem se há incitação para a prática de atos violentos, o que aponta
para uma concepção muito formal da liberdade, a qual ignora a força silenciadora
que o discurso opressivo dos intolerantes pode provocar sobre os seus alvos
(SARMENTO, 2006, p. 63).
Em países como a Alemanha, especialmente após a Segunda Guerra
Mundial, observa- se preocupação clara com a regulação da liberdade de
expressão e a repercussão do discurso do ódio.

Sem dúvida, a liberdade de expressão constitui direito fundamental, mas


convive com o princípio da dignidade humana a lhe opor limites. É importante
ressaltar também que o princípio da dignidade humana adquire valor máximo
de hierarquia no ordenamento jurídico alemão consagrado no artigo 1º da
Lei Fundamental, Constituição promulgada no pós-guerra conhecida como
a “Lei Fundamental de Bonn”. Dessa forma, haverá sempre a ponderação
entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais. Para os casos
de violação de um direito constitucional, a solução se dará pelo princípio
da proporcionalidade, com base em uma análise multinível. (FREITAS,
2013, s/p).

Com relação ao sistema jurídico brasileiro, os autores nos mostram que a


liberdade de expressão é constitucionalmente prevista como direito fundamental
(art. 5o, IV, da Constituição Federal de 1988).

Sua tutela consiste na consagração da plena autonomia para o seu exercício,


vedando apenas o anonimato como forma de evitar a verbalização do discurso
sem a devida responsabilidade. Entretanto, é importante ressaltar que essa
liberdade, como as demais, não é de fruição ilimitada. Ela está referida no
sistema constitucional pelo princípio da legalidade. Assim, consoante do
artigo 5º, II da CF/88, a possibilidade de escolha estará sempre limitada pela
integralidade do ordenamento jurídico; a) em normas constitucionais, quando
terá que conviver com outros valores também prestigiados pela Constituição,
como a dignidade humana, direitos de personalidade etc.; b) pelas normas
infraconstitucionais que tipificam condutas ilícitas, determinadas pelo código
penal e outros dispositivos, como a Lei n. 7.716/89, que aponta os crimes de
preconceito em razão de raça, cor, etnia, religião etc. (FREITAS, 2013, s/p).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 91

Portanto, o que se pode depreender é que a liberdade de expressão, em terras


brasileiras, não é absoluta, nem é um direito fundamental de hierarquia maior,
aos moldes da tutela estadunidense. Essa liberdade terá que ser compatibilizada
com outros direitos fundamentais, em respeito ao sistema constitucional em vigor.
Ponderar entre dois direitos fundamentais não é tarefa das mais fáceis, pois eles
não são hierarquizáveis. A liberdade de expressão é um direito assegurado em
inúmeros tratados internacionais, entre eles a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (ONU, 1948), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(OEA, 1969) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU,
1966), dos quais o Brasil é signatário (RIVA, 2013, s/p). O direito à liberdade de
expressão aparece nesses documentos como um direito negativo, ou seja, ele não
é provido pelo Estado, mas deve ser garantido por este. No fundamento dessas
ordenações está a premissa de que a garantia dessa liberdade deve favorecer
os mais fracos. Isso quer dizer que ela deve garantir as vozes dissonantes, a
multiplicidade de pensamentos, independentemente do establishment e das forças
que operam o Estado (RIVA, 2013; SILVA, 2011; et al).
Ocorre que, no Brasil, tal premissa tem sido diariamente vilipendiada para
garantir justamente o contrário: o desvirtuamento do conceito parte, justamente,
dos representantes do poder público e da mídia oligárquica. Em outras palavras,
são justamente os conglomerados de mídia e a elite política que mais têm se
utilizado do direito à liberdade de expressão para garantir seus próprios interesses
e para garantir a manutenção de sua própria ordem. Não só a grande mídia –
oligárquica – domina as redes de informação em nível nacional, como também,
uma cepa bastante variada de políticos e homens públicos que viram nesse direito
fundamental de liberdade de expressão o bode expiatório ideal para enquadrar
seus discursos inflamados de ódio e infâmia contra minorias, ideais e debates,
seja lá de qual natureza for o debate35.

35. Esse desvirtuamento do conceito de liberdade de expressão pela ordem do discurso dominante
pode ser facilmente verificado, por exemplo, nos últimos acontecimentos no Brasil relativos
aos episódios de censura à arte e aos artistas velados pela bandeira da “preservação da família
tradicional brasileira”. O exemplo da censura promovida por setores organizados da sociedade
civil, mídia e políticos altamente regressistas e conservadores, à exposição “Queermuseu”,
uma exposição que debatia a questão de gênero nas obras de arte, ocorrida em Porto Alegre,
em setembro de 2017, ilustra perfeitamente o caso. Para mais esclarecimentos consultar, por
exemplo: https://diplomatique.org.br/queermuseu-a-apropriacao-que-acabou-em-censura/
; https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/14/politica/1505394738_622278.html ; https://
g1.globo.com/pop-arte/noticia/famosos-fazem-campanha-contra-censura-apos-polemica-
com-a-mostra-queermuseu-e-a- performance-com-nu-no-mam.ghtml .
92 O Golpe de 2016

De toda forma, o que é importante depreender da constituição jurídica do


discurso de ódio é a sua composição altamente engessada no que concerne à
sua constituição em materialidade jurídica: em algumas jurisprudências, como
vimos, é necessária a efetivação da violência ou a agressão física do(s) indivíduos
para a caracterização desse crime. Não basta a sua publicização.
É neste ponto que chamamos a atenção, novamente, para a necessidade de
se pensar o fenômeno em questão, levando em consideração sua manifestação nas
dinâmicas interacionais societárias mediadas por TCIs: considerando o aspecto
simbólico dessa violência, que não necessariamente chegará a se externalizar em
práticas de violência ou agressão física, mas que alija a participação política de
determinados grupos por meio desses discursos, negando aos mesmos condição
e posicionamento de fala.
Como veremos nas redes sociais digitais, o pensamento se externaliza
em discursos. Mais do que isso, em discursividades, considerando as diversas
linguagens online para expressar os mesmos: linguagem memética, linguagem
audiovisual, linguagem imagética, verbo-textual etc; espaço no qual esses tipos
de discursos não chegam a externalizar-se em atos de agressão física, como
sugerem alguns estudiosos do Direito; porém, há externalização de discursividades
diversas que incitam esse mesmo tipo de núcleos de sentido odientos e ferem
através do simbólico.
São esses pontos que trazem dificuldades jurídicas para a caracterização
desses delitos, porém, não podemos deixar de evidenciar o ódio enquanto
componente político simbólico, que não se externaria em agressões físicas, mas
também aparece como instrumento político de intimidação e coação social.
Dessa forma, pretendemos trazer a esse debate a questão do discurso de ódio
de uma ótica eminentemente jurídica para uma análise de seus componentes
sociopolíticos e suas implicações nas reproduções societárias cotidianas por meio
do discurso, por seu viés político e simbólico. Para isso, vale trazermos para o
debate os dois componentes analíticos que são objetos desse estudo para que
possamos situá-los analiticamente dentro das Ciências Sociais: o discurso, o qual
já abordamos ao longo deste excerto analítico; e o ódio.
Passemos ao segundo componente analítico, o ódio. Apesar de inúmeros
trabalhos dentro das Ciências Sociais tratarem da questão do ódio enquanto
componente das chamadas “fobias sociais”, como as discriminações raciais,
étnicas, a misoginia, a homofobia, entre outros, o ódio não aparece enquanto
componente político, mas enquanto componente de ordem psíquica desses
fenômenos. Nem mesmo no dicionário de política mais reconhecido atualmente
no Brasil, o “Dicionário de Política”, de Norberto Bobbio, encontramos uma
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 93

definição política para o ódio ou para o discurso de ódio. No entanto, o ódio


aparece como componente central em todos os tipos de fobias e preconceitos
sociais que compõem o referido dicionário.
O ódio (do latim odiu), também chamado de execração, raiva, rancor e
ira, é um sentimento intenso de raiva e aversão motivado pelo medo. Traduz-se
na forma de antipatia, aversão, desgosto, rancor, inimizade ou repulsa contra
uma pessoa ou algo, assim como o desejo de evitar, limitar ou destruir o seu
objetivo. O ódio pode se basear no medo, justificado ou não. Ou seja, a partir
dessa definição comum do ódio, é visível a influência de componentes sociais
na estruturação do fenômeno.
Para o filósofo francês André Glucksmann, “o ódio nada mais é do que o
resultado deteriorado da ausência de educação” (GLUCKSMANN, 2007, p.11).
Para ele, o ódio existe em escala microscópica nos indivíduos e também nas
coletividades, sendo que a razão para sua existência é a vontade de destruir por
destruir. Isso significa que é não apenas um discurso, mas também um sentimento
inócuo e desprovido de razão de ser.

O ódio acusa sem saber. O ódio julga sem ouvir. O ódio condena a seu
bel-prazer. Nada respeita e acredita encontrar-se diante de algum complô
universal. Esgotado, recoberto de ressentimento, dilacera tudo com seu golpe
arbitrário e poderoso. Odeio, logo existo. (GLUCKSMANN, 2007, p.12).

Na sua relação com a intolerância entendida como manifestação de algo, ou


seja, se constituindo enquanto discurso de ódio, ele sai da esfera do pensamento
e ganha o espaço comportamental na forma de violência física: “se atinge não
importa quem e massacra seres inocentes ao acaso, isso prova que sua ação
obteve sucesso, não porque induziu a pensar, mas, ao contrário, porque impediu
que se pensasse sobre ela” (GLUCKSMANN, 2007, p. 16). E é dessa forma,
“sem lei e sem rei”, (GLUCKSMANN, 2007), que o ódio mostra que não possui
limite geográfico, político, moral ou ideológico, no momento em que demonstra
que um indivíduo ou grupo quer permanecer senhor e não escravo, mas numa
construção monolítica que lhe extrai os escrúpulos.
O ódio não distingue laços fraternais de nenhuma espécie, nem mesmo
sociais, ele ataca a todos, sem distinção e independente de ideologias. Sendo
assim, podemos dividir o discurso de ódio em dois componentes principais
no que concerne à sua constituição ético-moral: o insulto e a instigação. O
primeiro diz respeito diretamente à vítima, consistindo na agressão à dignidade
de determinado grupo de pessoas em razão de um traço por elas partilhado.
94 O Golpe de 2016

O segundo é voltado a possíveis “outros”, leitores da manifestação e não


identificados como suas vítimas, os quais são chamados a participar desse ato
discriminatório, ampliar seu raio de abrangência e fomentá- lo. Como vimos,
é assim que se constitui o discurso e isso fica potencialmente elevado quando
considerada a dinâmica de member get member dessas redes a partir de relevância
algorítmica do conteúdo.
O mais recente trabalho do filósofo francês, aluno e colaborador de Louis
Althusser (1918-1990), Jacques Rancière (1940), também aborda esse tema
em “O ódio à democracia”. Nesse trabalho, Rancière aponta contradições de
estados liberais democráticos quanto à ideia de um regime político de equidade
de relações com a lei e de liberdade no uso da palavra, como, por exemplo, a
questão das oligarquias que se revezam no poder em oposição a demandas por
representação popular, ou a questão da constituição da sociedade judaica e seu
status como não- Estado na visão das elites que compõem a União Europeia.
O ódio, então, surge como resposta à existência de pessoas que não são iguais
dentro do sistema democrático.
Na visão de Jacques Rancière, a essência da democracia é a pressuposição
da igualdade, atributo a partir do qual se desdobram as mais ferrenhas reações de
seus adversários. Longe de ser uma idiossincrasia restrita à contemporaneidade,
o ódio à democracia é um fenômeno que se inscreve na longa duração, haja
vista que os setores privilegiados da sociedade nunca aceitaram de bom grado
a principal implicação prática do regime democrático na esfera da política: a
ausência de títulos para ingressar nas classes dirigentes.
Seu intuito é questionar os princípios do modelo democrático representativo,
invenção moderna que se vale de uma nomenclatura considerada paradoxal
pelo autor, haja vista seu distanciamento em relação à democracia dos antigos
gregos. O sistema assentado na representação nada mais seria do que um
regime de funcionamento do Estado com base parlamentar-constitucional, mas
fundamentado primordialmente no privilégio das elites que temiam o “governo
da multidão” e pretendiam governar em nome do povo, mas sem a participação
direta deste. “A representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o
impacto do crescimento das populações, mas sim para assegurar aos privilegiados
os mais altos graus de representatividade” (RANCIÈRE, 2014, p. 69). Ele é
enfático ao afirmar que os pais da Revolução Francesa e Norte-Americana
sabiam exatamente o que estavam fazendo.
Dessa forma, vemos que a democracia, para o autor, não é uma forma de
Estado, mas um fundamento de natureza igualitária, apropriado pela burguesia
e transformado em regime de natureza mista (público-privada) no intuito de
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 95

despolitizar a população e na manutenção do status quo de dominação. O


ceticismo de Rancière se traduz na afirmação de que vivemos em “Estados de
direito oligárquicos”, nos quais predomina uma aliança entre a oligarquia estatal
e a econômica.
Além disso, o enfraquecimento do Estado-nação, em face da contingência
histórica do capitalismo liberal, seria apenas um mito. Ocorre, de fato, um recuo
das ações sociais nos Estados-nação, no entanto, especialmente no que tange ao
desmonte das políticas e conquistas sociais. Por outro lado, há um fortalecimento
de outras instâncias estatais que beneficiam as oligarquias que se apossam do
poder.
De toda forma, desse ponto em diante, continua Rancière, intensifica-se
a crítica ao excesso de democracia ao estilo ocidental. As recentes ondas de
conservadorismo que vieram à tona em muitos países, como nos Estados Unidos,36
reafirmando uma suposta “supremacia branca” – uma forma eufemística de falar
racismo – e as recentes manifestações conservadoras no Brasil no ano de 201737,
por exemplo, se pautaram, basicamente, no argumento do “excesso de liberdade”
e o “desvirtuamento” de “valores” sociais, excessivamente tradicionalistas, tudo
com um discurso velado de “adequação e modernização democrática”.
Como podemos perceber, o filósofo já trata de um fenômeno que podemos
denominar de Ódio Político. Difere da figura jurídica do discurso de ódio,
bastante engessada no intuito de se manter a materialidade criminal dos atos
criminosos em questão, justamente por sua materialidade capilar, rizomática e,
muitas vezes, subliminar, por estar estruturalmente instaurada na sociabilidade
moderna. No entanto, é potencialmente danosa aos intuitos democráticos de
qualquer sociedade.
Com isso, pretendemos extrapolar a definição jurídica institucionalizada
sobre o discurso de ódio, que tende a considerá-lo apenas em sua manifestação
em violência física, resultando em ameaças ou agressões físicas ou à vida dos
atingidos por esses tipos de discurso. O discurso de ódio, em seus diferentes
tipos, tem como objetivo principal alijar a participação política dos que são alvos
desses discursos. A violência simbólica vastamente empregada tem claramente

36. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2017/08/1909433-extrema-direita-e-grupos-


anti-racismo-se- enfrentam-em-confronto-nos-eua.shtml
37. Podemos citar como exemplo a mudança na jurisprudência em relação à liberação de
aplicação de tratamentos para “reversão de orientação sexual”, a chamada “cura gay” que,
apesar de proibidos pela Federação Nacional de Psicologia há décadas por ineficiência
científica comprovada, recebe aval da Justiça para a permissão e regulação da prática aos
psicólogos. Fonte: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/juiz-concede-liminar-
que- permite-aplicacao-de-cura-gay-por-psicologos/
96 O Golpe de 2016

esse intuito: calar, reduzir a participação política do cidadão e de seu respectivo


grupo atingido com esse discurso.
Por isso a questão do ódio aos judeus (na sua forma de antissemitismo e,
também, o antisionismo) aparece com maior frequência nos trabalhos sobre
o discurso de ódio quando realizamos uma consulta referencial bibliográfica:
pela materialidade da violência física infringida a esse grupo minoritário. Após
os horrores presenciados no Holocausto, a necessidade de se falar sobre esse
ódio ao povo semita tornou-se sobressalente. Como exemplo, podemos citar o
estudo já mencionado anteriormente, do filósofo francês André Glucksmann,
O Discurso do Ódio, de 200738.
Recentemente, excertos do documentário “O guia pervertido da ideologia”,
de Sophie Fiennes, foram resgatados no intuito justamente de chamar a atenção
para esse fenômeno mais capilar do ódio de natureza política, extrapolando
as definições jurídicas do mesmo para entender os atuais acontecimentos em
nível global em que aparentemente há o crescimento de um conservadorismo
extremamente moralista e democraticamente ceifador. O trecho do documentário
no qual o filósofo, sociólogo, teórico crítico e cientista social esloveno Slavoj
Žižek (1949) expõe sua teoria da ideologia foi utilizado para discutir os episódios
de ódio observados sobretudo no segundo turno das eleições de 2014, em que a
disputa entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) ficou mais polarizada.
Apesar de não ter trabalhado o conceito de “ideologia do ódio” propriamente
dito em suas obras até o momento, Žižek construiu ao longo de sua carreira na
filosofia e psicanálise um vasto estudo sobre as ideologias. Em seu trabalho
intitulado “Um mapa da ideologia” (1996), o autor busca explorar o conceito
de ideologia nas mais diversas matrizes de pensamento na história da filosofia
e ciências sociais.
O conceito de ideologia estabelece alguns problemas em relação aos seus
usos ao longo da história do pensamento ocidental: primeiro, as diferentes
visões que dele derivam; segundo, o fato de que a crítica da ideologia e dos
processos identificados como ideológicos torna-se circular, ou seja, o próprio
ato de denunciar uma atitude como sendo ideológica acaba nos mandando de
volta à ideologia39.

38. Para mais aprofundamentos, consultar: LOBO, D. A. C. Bolhas de ódio: O ódio como
componente político nas dinâmicas interacionais societárias mediadas por Tecnologias de
Comunicação Instantâneas (TCIs); Dissertação de Mestrado defendida em março/2018 junto
ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (PEPGCS-PUC/SP).
39. Sobre esse ponto, vale trazermos para o debate os recentes acontecimentos ocorridos no
Brasil, onde um grupo de políticos, apoiados por setores da sociedade civil, estão tentando
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 97

O que nos interessa especificamente é tratar do referido conceito de


ideologia através da noção althusseriana de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE),
fazendo uma simples exposição de sua constituição social a partir da análise
elaborada por Žižek. Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) é a denominação
criada por Louis Althusser (1918 - 1990) para designar os instrumentos pelos
quais o ideal de uma certa classe é propagado. Estes instrumentos são necessários,
segundo Althusser, e apropriando-se de Marx, pois uma formação social, para
sobreviver, precisa reproduzir seus meios de produção; para tanto, a necessidade
de reprodução não consiste apenas na reprodução das ferramentas utilizadas
na produção material – maquinário, matéria prima etc. –, mas também na
reprodução da força de trabalho, sustentáculo de toda sociedade. Contudo, a
reprodução da força de trabalho não está somente ligada às suas necessidades
básicas de sobrevivência, as quais são providas com o pagamento de salários;
faz-se necessário, também, a aceitação de todo o sistema produtivo e exploratório
por parte da classe que lhe serve de sustentáculo – os trabalhadores –, sendo essa
uma das condições primordiais da reprodução de um ordenamento político-social
(ŽIŽEK, 1996, p. 72 e 73).
Fica clara, então, a necessidade de promover o falseamento da real
estrutura na qual os trabalhadores estão inseridos, da total alienação da realidade
objetiva, na qual os trabalhadores assimilam e passam a ser e reproduzir esta
falsa consciência. E é aí que reside a importância da análise dos AIE, em tornar
o sujeito parte de uma falsa consciência.

A fé religiosa, por exemplo, não é apenas nem primordialmente uma


convicção interna, mas é a igreja como instituição e seus rituais (orações,
batismo, crisma, confissão etc), os quais, longe de serem uma simples
externalização secundária da crença íntima, representam os próprios
mecanismos que a geram. Quando Althusser repete, seguindo Pascal, “aja
como se acreditasse, reze, ajoelhe-se, e você acreditará, a fé chegará por si”,
ele delineia um complexo mecanismo reflexo de fundação “autopoiética”

implementar o que chamam de “Escola sem Partido” por meio de projetos de leis ou liminares
judiciais que tramitam nas diversas instâncias dos Poderes. Apoiados no discurso de que,
ao longo dos 14 anos de governos petistas, os professores e alunos teriam sido doutrinados
por “ideologia de esquerda”, “comunista” e contrária aos preceitos morais do que chama de
“Tradicional Família Brasileira”. Boa parte dos parlamentares que apoiam essa iniciativa estão
ligados a setores conservadores e à chamada “Bancada da Bíblia”, composta por pastores
e líderes religiosos (cristãos), em uma tentativa assumida de “moralização da política”.
Observa-se, claramente, que o projeto tem o intuito claro de alijar única e exclusivamente
as ideologias ligadas a propostas mais progressistas em relação a avanços sociais.
98 O Golpe de 2016

retroativa que excede em muito a afirmação reducionista da dependência da


crença interna em relação ao comportamento externo (ŽIŽEK, 1996, p. 74).

Assim, podemos definir os AIE como um mecanismo muito sofisticado


de dominação ideológica institucionalizado, no qual uma ideologia se propaga
através de instrumentos institucionais formalmente constituídos, induzindo,
assim, a adesão da sociedade às teses da ideologia dominante por um mecanismo
relacionado à ação subjetiva dos sujeitos. Ou seja, os AIE disseminam a ideologia
ao determinarem “como” as pessoas devem se comportar, através de mecanismos
simbólicos, e isso se dá com a criação de rituais que são praticados pelos sujeitos,
então, inserindo a crença nos sujeitos de forma retroativa e em um movimento
de retroalimentação.
Retomando o documentário em que o filósofo expõe seu conceito de
ideologia do ódio e baseado nessa conceituação dos AIE e seus mecanismos de
coação social, segundo sua visão apresentada, reações violentas são como um
sinal de insatisfação que não se consegue expressar com palavras. “Mesmo a
mais brutal violência é a encenação de um certo impasse simbólico” (ŽIŽEK,
2015, s/p). O autor fala do medo unificado em um único objeto, como uma
maneira de simplificar a experiência das pessoas com a realidade e de induzir a
comportamentos políticos desejáveis para as elites e seu projeto de manutenção
do poder por meio dos AIE. Muito mais capilares do que o apresentado em relação
ao povo semita ou a um grupo de refugiados (“escravos modernos”), os ódios
assumem discursos distintos, mas que apresentam um único intuito e se utilizam
de um único aparato político para esse intuito: utilizar-se do medo enquanto
técnica política. Técnicas essas que têm o intento claro de induzir politicamente
e, em alguns casos, coagir ou até mesmo ceifar a participação política das pessoas.
A desumanização simbólica é o elemento fundamental para que tenhamos
uma sociedade violenta que anula o outro na condição de diferença. Todo
processo de morte e de violência literal é precedido por um processo de morte e
de violência simbólica. Antes dos negros sofrerem com os grilhões da escravidão,
eles foram desumanizados. Antes dos judeus serem colocados nas câmaras de
gás, eles tiveram a sua condição humana negada e vilipendiada.
Ninguém provoca, machuca, humilha, anula e fere alguém que considera
igual a si mesmo. Ao desumanizar negros, mulheres, indígenas, LGBTs e outras
minorias da sociedade, o pensamento fundamentalista cria o precedente
para que essas pessoas se tornem vítimas da violência e da morte visível. No
entanto, para a ideologia do ódio, o outro diferente de mim não existe, existe
apenas o eu.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 99

Medo e ódio estão intrinsecamente relacionados. A cultura do medo e


do terror pode jogar a humanidade em um Estado de Ódio sem precedentes na
história humana. E as Tecnologias de Comunicação Instantânea (TCIs) vêm
ganhando papel de destaque quando o assunto é a proliferação desses tipos de
discursos de ódio.

Dilma Rousseff e o ódio nas redes - Os tipos de ódio político

O ódio enquanto componente sociopolítico nunca foi tão presente quanto


na sociedade atual, na qual a liberdade de expressão assume contornos nem
sempre esperados por um Estado Democrático de Direito. O anonimato também é
mais uma questão recorrente e que serviu de fomento para o exercício do discurso
do ódio, pois estimula uma realidade de impunidade, tendo em vista a dificuldade
de efetivamente se descobrir num curto espaço de tempo a real identidade de
quem produziu algum insulto considerado como exercício do discurso do ódio.
As redes sociais diminuem distâncias, facilitam comunicação, estimulam
liberdade de expressão, mas também individualizam, fomentam diferenças, geram
ansiedade e comportamentos irrefletidos em razão de uma constante velocidade
e mutabilidade. Nas redes sociais as condutas preconceituosas e discriminatórias
encontram terreno fértil para o seu desenvolvimento. Aliás, é justamente o
preconceito a característica una desses crimes de ódio. Segundo Bobbio40, o
preconceito é um juízo de valor criado sem razão objetiva e que se manifesta
por meio da intolerância. Ele pode envolver a condição social, a nacionalidade,
a etnia, a maneira de falar ou de se vestir, entre outros. O preconceito surge por
meio das diferenças entre as pessoas e as opiniões que cada um sustenta.
Trata-se de um pré-julgamento, surge de ideias pré-concebidas em que
o conhecimento ou reflexão sobre um fenômeno, grupo ou pessoa é muito
superficial, sem que haja fundamentação para tal reflexão. Ou seja, o preconceito
é criado a partir de crenças e superstições que sustentam o ódio ou repúdio
a determinado grupo. Sendo o preconceito um tipo de juízo de valor moral
concebido sem grande fundamentação, a discriminação se apresenta como a
maneira em que ele é manifestado. Ou seja, o preconceito é manifestado através
de atos discriminatórios.
Bobbio trabalha com os preconceitos que ele denomina como preconceito
nacional e o preconceito social, mais comum em nossa cultura. Quando olhamos

40. BOBBIO, N. Elogio da serenidade e outros escritos morais. Tradução de Marco Aurélio Nogueira;
UNESP: São Paulo, 2002.
100 O Golpe de 2016

em nível geopolítico, não há nação que não nutra sentimento de diversidade


em relação a outra. Em sua maioria degringolam em sua forma máxima de
violência e discurso de ódio: a xenofobia. A xenofobia é conceituada como um
tipo de preconceito caracterizado pela aversão, hostilidade, repúdio ou ódio
aos estrangeiros, que pode estar fundamentado em diversos fatores históricos,
culturais, religiosos, dentre outros. Ela corresponde a um problema social baseado
na intolerância e/ou discriminação social, frente a determinadas nacionalidades
ou culturas. Gera violência entre as nações do mundo, tudo promovido,
principalmente, pela não aceitação das diferentes identidades culturais.
A xenofobia está relacionada com diversos tipos de conceitos que englobam
a discriminação, formada pelo sentimento de superioridade entre os seres
humanos. Dessa forma, o etnocentrismo e o racismo são dois conceitos associados
a determinados tipos de discriminações.
Já o preconceito social tem como fundamento questões socioeconômicas,
ou seja, o conflito se dá entre a classe que tem o domínio dos bens e meios
de produção e a classe que não tem bens ou apenas é explorada em sua força
de trabalho. No entanto, analisando os preconceitos abordados por Bobbio e
pensando na atual conjuntura do Brasil apresentada aqui, podemos pensar o
segundo caso chamando-o de preconceito de classe, uma vez que é associado
à classe social e definido pelo status social de determinados indivíduos. Já no
primeiro caso, precisamos chamar a atenção, também, para o que chamamos
de preconceito cultural, que se dá dentro da própria “nação”, uma vez que
este é associado às diferenças culturais existentes. É o caso, por exemplo, do
etnocentrismo. O etnocentrismo define as atitudes de certos indivíduos que
consideram seus hábitos e condutas como superiores aos de outras culturas. Por
sua vez, a xenofobia determina a aversão às culturas estrangeiras.
Esse preconceito cultural é de fundamental importância no contexto do
presente trabalho por discriminar um tipo de incitação ao ódio bastante comum
nas interações monitoradas: o comumente chamado de “bairrismo”. Se pensarmos
que o país possui dimensões continentais, o sentimento de superioridade
ocorre entre as diversas regiões do país. É possível, por exemplo, que sulistas se
considerem superiores aos nordestinos, por estes apresentarem maior população
negra, condições mais precárias de vida ou maior dificuldade ao acesso aos
temas básicos de saúde, cultura, educação. Condições sociais que, é preciso
ressaltar, foram consequência direta de um planejamento político fortemente
concentrado na região Sudeste e dirigido pela elite econômica e política dessas
mesmas regiões na história recente do Brasil. É possível, também, que até mesmo
o voto e a participação política desses cidadãos nordestinos sejam questionados
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 101

em sua validade por mera prepotência sociopolítica, incitando ódio ao simples


pronunciamento dos mesmos no debate, retirando do processo democrático a
necessária isogoria.
Somando a esses, poderíamos incluir os preconceitos linguístico, racial,
sexual e o religioso. Esses dois últimos, inclusive, também se mostraram muito
efetivos nas interações monitoradas na pesquisa realizada por ocasião das eleições
de 201441. Todos esses tipos de preconceito estão diretamente relacionados e são
as bases constituintes, morais e jurídicas, dos crimes de incitação ao ódio que
a eles correspondem. Sempre, conforme dissemos anteriormente, tendo como
parâmetro as demais tutelas e jurisprudências, além da forma de tratamento do
Estado em relação às designações de liberdades individuais.
O ódio enquanto componente sociopolítico nunca foi tão presente quanto
na sociedade atual, em que a liberdade de expressão assume contornos nem
sempre esperados por um Estado Democrático de Direito, contribuição esta
derivada da internacionalização e popularização do acesso à informação. Na
já referida pesquisa que realizei em 2014 sobre o ódio enquanto componente
político nas interações dos usuários nas RSDs, após análise de mais de 11 mil
comentários feitos por esses usuários nas postagens das páginas públicas de
Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), foi possível identificar e trabalhar
com a tipologia de seis diferentes expressões do ódio, considerando as formações
discursivas42 analisadas.
Misoginia, ódio racial, ódio religioso, de classe e o preconceito nacional
(ódio cultural), como já dissemos, são discursos de ódio bastante recorrentes nas
amostras analisadas. Mas também tivemos um outro fenômeno ligado à incitação
ao ódio: o ódio ideológico-partidário, ódio por quem expressa determinada
preferência político-partidária ou ideológica. O antipetismo aparece como
expressão máxima desse movimento.

41. Para mais esclarecimentos, consultar: LOBO, D. A. C. Bolhas de Ódio: O ódio como componente
político nas dinâmicas interacionais societárias mediadas por Tecnologias de Comunicação
Instantâneas (TCIs); Dissertação de Mestrado defendida em março/2018 junto ao Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (PEPGCS-PUC/SP).
42. Para a análise qualitativa em profundidade dos mais de 11 mil comentários coletados,
prosseguimos com metodologia da Análise Crítica do Discurso (ACD), amplamente
trabalhada nas Ciências Políticas na atualidade. Dessa forma, é na identificação com dada
formação discursiva (FD) que o indivíduo se constitui enquanto sujeito, e cada FD reflete
ideologias dessas sociedades divididas em classes. Para esta linha da ACD em questão, a
ideologia é um conjunto de representações dominantes em uma determinada classe dentro
da sociedade. Como existem várias classes, várias ideologias estão permanentemente em
confronto na sociedade. A ideologia é, pois, a visão de mundo de determinada classe, a
maneira como ela representa a ordem social.
102 O Golpe de 2016

O discurso de ódio político, conforme procuramos conceituar até aqui,


se estrutura em duas frentes: no ato discriminatório, ou seja, na manifestação
segregacionista baseada na ideia preconceituosa de que o autor do discurso é
superior à pessoa atingida ou alvo do ódio; e na externalidade, na publicização
do ódio com a finalidade de alijar a participação política de determinado grupo,
incitar e conquistar adeptos.
Esse ódio, que já está presente na sociedade, ganha visibilidade e
ressonância nas redes sociais, o que amplia sua força e reprodutibilidade. O
fato de os comentários se concretizarem no espaço virtual, sem a dimensão face
a face da interação, também pode implicar uma aceleração da hostilidade em
determinadas situações, pois o leitor, ao se sentir distante dos demais participantes
da conversação e da própria presidenta, que é o foco principal da interação no
nosso caso analisado, não receia em expor o que pensa.
Os modos de desqualificar ou criticar o trabalho de uma mulher que ocupa
posição de poder, neste caso a candidata à Presidência da República, retratam
uma face permeada por construções históricas e culturais relativas ao gênero. Em
artigo intitulado “Uma questão de gênero: ofensas de leitores a Dilma Rousseff
no Facebook da Folha”43, as pesquisadoras Pâmela Caroline Stocker (UFRGS) e
Silvana Copetti Dalmaso (UFRGS) nos lembram que as adjetivações discursivas
diferenciadas atribuídas aos sujeitos femininos e masculinos não servem apenas
para transmitir e expressar relações de poder, mas também ajudam na produção
e instituição do domínio machista, considerando o discurso como um caminho
profícuo para compreender como o masculino e o feminino são dotados de
sentidos e como seus reflexos cristalizam e reiteram determinadas relações de
poder e saber na sociedade (STOCKER & DALMASO, 2016, p. 344).
Vivemos em uma sociedade patriarcal e culturalmente machista, onde
algumas questões de gênero estão tão enraizadas e naturalizadas que muitas vezes
não são percebidas, entendidas e assumidas como uma forma de preconceito. O
machismo aparece, então, como um aparelho ideológico que oferece modelos de
identidade e comportamentos, tanto para o sexo masculino quanto para o sexo
feminino, mediado pela dominação masculina. Durante séculos o patriarcalismo
foi construído e enraizado em nossa sociedade, abrindo espaço para a aceitação da
ideia do ser masculino como dominante. Os papéis sociais, tanto femininos quanto
masculinos, são fruto dessa construção. Segundo essa ideologia, o homem deve

43. STOCKER, P. C.; DALMASO, S. C. “Uma questão de gênero: ofensas de leitores a Dilma
Rousseff no Facebook da Folha”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 343:398,
setembro-dezembro/2016.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 103

obter sucesso profissional e liderar a família, tomando as decisões importantes. A


mulher, por sua vez, sempre foi vista como um objeto a ser desejado pelos homens
e como um ser inferior, mais delicado e também mais fraco. Historicamente,
era comum que não exercesse os mesmos direitos que o homem. Tinha o seu
comportamento, suas vestimentas e tudo na sua vida controlado; era proibida de
estudar e trabalhar – seu único trabalho era cuidar da casa e dos filhos. Toda a
estruturação social, política e econômica segue essa lógica patriarcalista.
Anos de luta foram necessários para que as mulheres – ou boa parte delas,
principalmente no Ocidente – alcançassem uma maior igualdade entre os
gêneros. Mas não total. Hoje, a mulher vive de uma maneira que até algumas
décadas atrás seria impensável – possui participação política, estuda, trabalha
e exerce uma liberdade muito maior. Todavia, o machismo, mesmo que muitas
vezes apresentado de modos diferentes, persiste até hoje. As crianças ainda são
criadas sob a lógica do “isto é para meninos” e “isto é para meninas”; desde cedo
aprendem que meninos podem brincar na rua, jogar futebol e falar palavrão, mas
uma menina deve ser comportada, educada e delicada. A desproporcionalidade
de salário entre os gêneros, mesmo quando ocupantes de mesma posição no
mercado de trabalho, ainda é brutal.
A mídia aparece como uma grande contribuidora na reprodução de ideias
machistas, incentivando assim uma idealização da mulher: a mulher como dona
de casa, como se vê nas propagandas de eletrodomésticos e afins, nas quais o
discurso é dirigido em sua maioria apenas ao público feminino; e também a
mulher como símbolo sexual, percebido claramente em comerciais como os de
cerveja e programas de televisão que exibem mulheres seminuas para manter
audiência. Outro meio altamente propício para a disseminação do machismo é
o meio digital, o ciberespaço. O diferencial é que, nesse espaço, cria-se a ilusão
de que se pode falar tudo o que quer com a segurança de quem não será punido.
Há uma grande onda de discursos na rede que abordam tantas outras questões
do universo feminino de uma maneira extremamente sexista. Esses enunciados
são cada vez mais propagados nas mais diversas plataformas, dificultando a
desconstrução dessa estrutura machista presente na sociedade.
A dinâmica interacional online parece favorecer essa proliferação. Conforme
dissemos anteriormente, a relevância algorítmica considera, entre outros fatores,
a receptividade do conteúdo pelos clusters nas redes. Dessa forma um comentário
que recebe um grande volume de interações do tipo “curtidas”, por exemplo,
tende a ficar em um posicionamento melhor, com maior visibilidade no intuito de
fomentar mais interações com as postagens. Isso tudo intensificado pela ação das
bolhas de filtro que retroalimentam usuários e discursos com incitação ao ódio.
104 O Golpe de 2016

Mais uma vez aqui, o endosso social e a dinâmica de construção de redes


a partir do que chamamos de member get member, além de fatores como o
anonimato, a interação não presencial, e a suposta impunidade nesses meios,
acabam por favorecer a proliferação desses tipos de discursos.
Nos comentários analisados na referida pesquisa, a incitação ao ódio sexista
foi o tipo de incitação ao ódio mais recorrente, representando cerca de 34% das
FDs com incitação ao ódio encontradas na amostra. A misoginia em suas mais
diversas variações é a mais recorrente; no entanto, também temos exemplos de
ódio sexistas em relação aos grupos LGBTQ+. Abaixo, vamos listar, a título de
exemplificação, as dez interações textuais com FDs contendo incitação ao ódio
sexista que obtiveram maior volume de curtidas na amostra pesquisada.
Muito do discurso sexista analisado está ligado diretamente à capacidade
administrativa da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em uma alusão clara à sua
capacidade enquanto mulher de ocupar um cargo de alta confiança como o de
presidente da República. Esse tipo de comentário ficou muito evidente, tanto na
página da candidata Dilma Rousseff quanto na de seu adversário, Aécio Neves.
O comentário: “Caro Aécio, não é hora para mostrar ELEGÂNCIA, o povo precisa
de um CABRA-MACHO para defendê-lo e mostrar toda a INDIGNAÇÃO que
está sentindo frente ao DESCALABRO que foi o governo dessa VACA. Seja DURO,
INCISIVO e fale a LÍNGUA DO POVO (seja o oposto do foi o candidato JOSÉ
SERRA, caso contrário, a vaca vai para o BREJO).44”, publicado no dia 18/8/2015,
por um seguidor da página de Aécio, ilustra bem as FDs que compõem esse bloco
analítico. Ou então o comentário: “O Brasil precisa de pulso firme de homem na
política, Aécio é a mudança!!! #MudaBrasil #EuVouDeAecio #EuVotoAecio4545.”,
também publicado na página de Aécio Neves no dia 27/9/2014, torna claro o
teor misógino, que garante a avaliação de incompetência administrativa da
candidata Dilma Rousseff perante seu concorrente, no caso, representante do
sexo masculino.
Outro tipo de FD bastante recorrente referente à incitação ao ódio
sexista misógino diz respeito a uma suposta imoralidade feminina, geralmente
relacionada a um comportamento promíscuo. Apesar de seu significado original,
entretanto, os termos adquiriram um sentido banal de utilização, tornando-
se uma ofensa padrão na cultura machista quando se trata de uma mulher.

44 Para mais esclarecimentos, consultar: LOBO, D. A. C. Bolhas de ódio: O ódio como componente
político nas dinâmicas interacionais societárias mediadas por Tecnologias de Comunicação
Instantâneas (TCIs); Dissertação de Mestrado defendida em março/2018 junto ao Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (PEPGCS-PUC/SP).
45. IBID.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 105

Comentários como: “#vagabunda”, postados na página de Dilma Rousseff no dia


12/9/201446; ou então “A cadela late e a caravana petista passa”, também postado
na página da petista, no dia 27/9/201447; “Dilma e Marina: duas vadias”, postado
no dia 2/10/201748, também na página da candidata; ou “sua puta”, comentado
no dia 26/10/201449; ou o “espero que o avião com essa vaca caia”, também incluído
em postagem na página da candidata petista, no dia 19/9/201450, ilustram de
forma fidedigna esse comportamento.
Termos como “vaca”, “cadela”, “vagabunda”, “puta”, nos remetem
precisamente à cristalização comportamental relativa ao sexo esperada nessa
ideologia machista. Vaca e cadela aparecem como animais reprodutores e são
frequentemente utilizados por machistas para caracterizar mulheres que, em
sua visão, são promíscuas em relação às práticas sexuais. O mesmo ocorre com
os termos vagabunda e puta, frequentemente utilizados para designar mulheres
que têm o sexo como profissão.
Como podemos ver, o fato também se repete em relação à candidata Marina
Silva (PSB), adversária política de Dilma Rousseff e Aécio Neves, indicando,
nesse caso, inclusive, que a misoginia está acima de preferência político-partidária
ou ideologia política.
Vale ressaltar que a presença de tais comentários se justifica, principalmente,
por serem direcionados a uma mulher. Quando dirigidas aos homens, as críticas
dificilmente fundamentam-se numa questão de reprodução sexual ou no ato
sexual em si, a não ser quando o alvo em questão é, por exemplo, um homem
que se enquadre em uma das categorias LGBTQ+.
Nesse ponto, o ódio sexista também se fez evidente. Comentários como
“Só viado vota no pt”, publicado na página de Dilma Rousseff no dia 23/9/201451,
ou então “Grande MULHER? Como povo Brasileiro é alienado mesmo, só falta
eleger essa SAPATONA novamente.”, também publicado na página de Dilma no
dia 13/8/2014, ou “Dilma sapatão.”, postado no dia 9/9/201452, mostra em que
medida o sexismo se fez presente na proliferação desses tipos de discurso e o
quão endossado socialmente se mostrou nessas redes.

46. IBID.
47. IBID.
48. IBID.
49. IBID.
50. IBID.
51. IBID.
52. IBID.
106 O Golpe de 2016

Esses são exemplos claros de misoginia e ódio sexista que saltam aos
olhos. Como é sabido, faz parte da ideologia machista negar a existência de
tal fenômeno. A literatura sobre Feminismo e Teorias de Gênero, atualmente,
também classifica comportamentos e discursos misóginos mais sutis, subliminares,
que convivem ocultos nas relações sociais cotidianas sob esta égide. As
pesquisadoras que citamos no início deste item, Stocker & Dalmaso, por exemplo,
se utilizam das categorias Gaslighting, Mansplaining e Bropriating, que somados ao
Manterrupting53, aparecem como subcategorias desse sexismo, utilizados como
estratégia interacionais, impostas no sentido de manutenção dos papéis sociais
pré-estabelecidos aos sexos.

Referências

BOBBIO, N. & MATTEUCCI, N. & PASQUINO, G. Dicionário de Política.


Editora UNB: Brasília, 1998, 11ª edição.
BRUGGER, W. “Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações
sobre o direito alemão e o americano”. Revista de Direito Público, v.15. Brasília,
2007.
FREITAS, S. R. “Liberdade de expressão e discurso do ódio: um exame
sobre as possíveis limitações à liberdade de expressão”. Revista Sequência,
n.66, Florianópolis, Julho de 2013. Fonte: http://dx.doi.org/10.5007/2177-
7055.2013v34n66p327-352
GLUCKSMANN, A. O discurso do ódio; Ed. Difel: Brasil, 2007.
LOBO, D. A. C. Bolhas de ódio: O ódio como componente político nas dinâmicas
interacionais societárias mediadas por Tecnologias de Comunicação Instantâneas
(TCIs); Dissertação de Mestrado defendida em março/2018 junto ao Programa
de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais (PEPGCS-PUC/SP).
RANCIÈRE, J. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar, Ed. Boitempo: São
Paulo, 2014.
SARMENTO, D. “A liberdade de expressão e o problema do hate speech”. Revista
de Direito do Estado, Rio de Janeiro, ano 1, n. 4, out./dez. 2006. Disponível
em: https://www.yumpu.com/pt/document/view/12839939/a- liberdade-de-

53. Para mais esclarecimentos, consultar o trabalho feito pelo coletivo THINK OLGA. “O
machismo também mora nos detalhes”. In: http://thinkolga.com/. Disponível em: http://
thinkolga.com/2015/04/09/o-machismotambem-mora-nos-detalhes/
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 107

expressao-eo-problema-do-hate-daniel-sarmento.
SILVA, L. R. “Discursos de ódio em redes sociais: jurisprudência brasileira”. Rev.
direito GV vol.7 n.2 São Paulo July/Dec. 2011. fonte: http://dx.doi.org/10.1590/
S1808-24322011000200004
STOCKER, P. C.; DALMASO, S. C. “Uma questão de gênero: ofensas de
leitores a Dilma Rousseff no Facebook da Folha”. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, 343:398, setembro-dezembro/2016.
ŽIŽEK, S. “‘A ideologia do ódio’ explicada por Slavoj Žižek”. YouTube, 26/10/2015.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x2l_41ScP68 ; Acesso em
23/10/2017.
ŽIŽEK, S. Um mapa da ideologia. Editora Contraponto: Rio de Janeiro, 1996.
A corrupção entre o espetáculo e a transparência das
investigações: análise da atuação da mídia na prisão
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Rosemary Segurado

O presente artigo tem como objetivo principal abordar o processo de


espetacularização do combate à corrupção por meio da análise da prisão do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Acreditamos que seja de suma importância
compreender a especificidade do papel da mídia na produção e disseminação de
imagens, formas discursivas e narrativas que contribuem para a configuração da
opinião pública brasileira em torno dessa prisão.
Para a presente análise utilizaremos centralmente o conceito de
espetacularização desenvolvido pelo filósofo francês Guy Debord, em sua obra
publicada em 1968 intitulada A sociedade do espetáculo, considerada fundamental
para compreender o papel que a imagem passa a adquirir na contemporaneidade.
A reflexão é ainda bastante atual, tendo em vista que as redes digitais reforçam
ainda mais o caráter imagético da vida social.
É importante destacarmos que, para Debord, o conceito de sociedade
do espetáculo deve ser definido, entre outros aspectos, como um conjunto de
relações sociais mediadas pela imagem, tendo em vista que é impossível distinguir
essas relações daquelas que envolvem a produção e o consumo de mercadorias
na nossa sociedade. No estágio atual da sociedade capitalista, o processo de
acumulação de riquezas é indissociável da produção de imagens que estimulam
as dinâmicas de consumo, incluindo o consumo de informações.
O papel dos grandes meios de comunicação na produção e disseminação de
imagens é fundamental em um momento que vivemos uma era extremamente
imagética, em que a valorização da dimensão visual da comunicação ocupa a
centralidade do processo comunicativo. Segundo Coelho,
110 O Golpe de 2016

A análise feita por Debord em 1968 a respeito do poder espetacular


corresponde ao momento do triunfo do neoliberalismo em escala mundial.
O neoliberalismo, com a defesa da liberdade de atuação para os grandes
conglomerados empresariais, significou um retrocesso nas conquistas sociais
dos trabalhadores, causando o avanço do desemprego, da precarização das
condições de trabalho, e o enfraquecimento dos sindicatos, movimentos
sociais e partidos de esquerda. (COELHO, 2011: 59)

Em sua obra, Debord se deteve na análise do espetáculo moderno,


reconhecendo tanto a existência de formas de espetáculo em outros períodos
históricos, mas, principalmente, as diferenças da espetacularização na sociedade
atual. O autor articula sua reflexão em teses e desde a primeira já deixa claro
o papel do espetáculo na sociedade moderna: “Toda vida da sociedade na qual
reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa
acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça
da representação” (DEBORD, 1997, p.13).
Para Debord, existem diversas formas nas quais a realidade pode se
constituir de espetáculos com o objetivo de serem usados nas dimensões cultural,
econômica, social ou política, contribuindo significativamente para construir uma
representação da realidade. Através da representação é possível se configurar
um relato sobre a realidade, tendo em vista o papel das imagens nas relações
sociais e, especialmente, considerando que diversos aspectos da vida cotidiana
se fundem com o espetáculo, embaralhando a percepção que os indivíduos
passam a ter do real.
Na contemporaneidade as imagens são transformadas em realidade social e o
“parecer ser” se torna essencial para a dinâmica do sistema econômico. Portanto,
a propaganda, a publicidade e o entretenimento ganham ampla dimensão e o
espetáculo passa a ser a forma privilegiada de consumo, visando o benefício da
ordem capitalista.
Na esteira do pensamento de Debord, poderíamos dizer que, para o sistema
capitalista, é fundamental falsificar a vida do homem comum através da imposição de
modelos sociais, de formas de vida baseadas na constante aquisição de mercadorias
e principalmente na produção de aparências. Nesse sentido, o papel da imagem
passa a ser central, considerando sua capacidade de influenciar na construção de
subjetividades, cada vez mais dominadas por ícones de consumo. Para o autor, o
que é real deixa de existir, cedendo lugar a um mundo falso que passa a ser visto
como verdadeiro. O espetáculo seria, portanto, a aparência de tudo aquilo que
falta na vida real, exercendo uma espécie de poder hipnótico sobre os indivíduos.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 111

A cobertura jornalística da política atua com base na produção espetacular,


tanto quando enaltece determinados fatos quanto no momento em que os
invisibiliza. Há determinados atores políticos que estão sempre expostos nas
mídias, cuja imagem é ininterruptamente exibida, mas será que isso significa
necessariamente dar transparência e às ações desse ator? Nem sempre isso
depende da forma como a cobertura jornalística apresenta o ator político. A
representação da política e dos políticos pela mídia está permeada pelo projeto
político editorial adotado por cada empresa midiática. Como diz Azevedo, “é
difícil sustentar as premissas teóricas, e nenhum estudioso bem informado sobre
o funcionamento da mídia na vida real o fará, que o jornalismo é ou deve ser
‘literalmente neutro’”(Azevedo, 2017, p.41).
Quando o enquadramento54 da cobertura é frequentemente negativo, isso
significa que recorrentemente será disseminada uma imagem, que muitas vezes
pode não expressar mais que a opinião de um meio de comunicação e de algumas
forças políticas da sociedade, considerando que não partimos da perspectiva
da possibilidade de existir uma mídia neutra ou imparcial, mesmo que ela se
autodefina como tal.
No caso do ex-presidente Lula, verifica-se de longa data o tipo de
enquadramento negativo por parte da mídia e, no período histórico recente,
esse tipo de cobertura se intensificou ainda mais, basicamente após o processo
de impeachment que concluiu com o Golpe contra a ex-presidenta Dilma
Rousseff (PT).
Após longo processo de construção da criminalização do Partido dos
Trabalhadores, no qual a mídia tem um grande papel, nota-se a grande articulação
das empresas de comunicação com o Poder Judiciário, que se associou na
empreitada de construir uma imagem do ex-presidente Lula como o chefe da
quadrilha que comanda o processo de corrupção no país. A partir da construção
dessa imagem foi conduzido o processo judicial no âmbito da chamada Operação
Lava Jato, cuja ênfase sempre foi a prisão do ex-presidente, prisão diversas vezes
anunciada pela imprensa.

54. Há vasta literatura que aborda o conceito de enquadramento para definir a cobertura
jornalística. De forma geral vamos trabalhar com a noção de enquadramento considerando
que a mídia utiliza certas palavras, expressões e adjetivos que moldam o acontecimento,
privilegiando determinados aspectos em detrimento de outros.
112 O Golpe de 2016

#lulanacadeia

A prisão do ex-presidente Lula em 7.4.2018 se insere num contexto mais


amplo, à medida que ele representa um campo político identificado com a defesa
dos direitos dos trabalhadores, e que seu governo, apesar das limitações e de
um conjunto de críticas, significou para uma parcela expressiva da população a
melhoria de suas precárias condições de vida.
Não é objetivo deste artigo fazer um balanço da chamada “era Lula”, mas
é necessário pontuar brevemente a clara distinção que é feita por parte tanto
do Poder Judiciário quanto dos meios de comunicação quando abordam a figura
do ex-presidente. Na condução do processo judicial, a superexposição de sua
imagem de forma negativa vem sendo alvo dos meios de comunicação com o
objetivo de retirar esta liderança da vida política do país.
Nesse sentido, tratamos a mídia como um ator político que, juntamente
com o Poder Judiciário, vem atuando de forma sistemática para que a prisão
do ex-presidente Lula ocorra a tempo de evitar sua participação nas eleições
presidenciais de 2018, principalmente se considerarmos que é o candidato com
maior intenção de votos, segundo as pesquisas de opinião pública até o presente
momento55.
A produção de espetáculos em torno da vida social – e mais especificamente
no momento – visava legitimar frente à população a necessidade de se punir o
ex-presidente corrupto, sob a alegação que teria se apropriado ilicitamente de
recursos públicos para beneficiar a si e seus correligionários, entre outros crimes.

O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de


fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências
desta aparência organizada socialmente, que deve, ela própria, ser
reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios
termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida
humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a
verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma
negação da vida que se tornou visível (DEBORD, 1997, p. 16)

55. Finalizamos esse artigo em 30.6.2018 e, até este momento, as pesquisas dos grandes institutos
brasileiros colocam Lula em primeiro lugar tanto no primeiro quanto no segundo turno das
eleições presidenciais de 2018. Quando Lula é tirado da sondagem vemos que aumenta
expressivamente o número de votos brancos e nulos.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 113

Nesse sentido, poderíamos dizer que houve uma espécie de consenso


fabricado pelos diferentes conglomerados midiáticos brasileiros, impedindo
o contraditório ou a expressão de outras perspectivas de se abordar os fatos
políticos, para criar o consentimento da opinião pública frente à prisão do ex-
presidente.

Embora o governo Lula não possa ser considerado um governo que rompeu
com o neoliberalismo, só o fato de ele ter sido um líder operário eleito pelo
partido que se afirma como defensor dos trabalhadores e com um passado
político vinculado à defesa de posições de esquerda já foi suficiente para
gerar uma forte onda conservadora na grande mídia, especialmente na mídia
impressa. Se esta onda conservadora não foi capaz de superar a imagem
positiva de Lula trazida principalmente pela retomada do crescimento
econômico acontecida em seu governo, não se pode ignorar a força desta
onda na campanha eleitoral de 2010, principalmente em torno da questão
do aborto (COELHO, 2011: 60).

Passaremos a elencar alguns aspectos da decretação da prisão de Lula


para compreender como esse processo foi construído pelos grandes meios de
comunicação e também pelas redes digitais. Em 5.4.2018 o juiz Sergio Moro56,
responsável pelas investigações da Operação Lava Jato, decretou a prisão do ex-
presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em seu despacho, Moro determinou que
Lula deveria se apresentar à Superintendência da Polícia Federal no Paraná, em
Curitiba, até as 17h do dia 6.4.2018. Lula foi condenado a 12 anos e 1 mês de
prisão pelo TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região) sob a alegação de
crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no chamado caso do “tríplex
do Guarujá (SP)”57

56. A Operação Lava Jato é um conjunto de investigações em andamento pela Polícia Federal,
responsável pelo cumprimento de mandados de busca e apreensão, de prisão temporária,
prisão preventiva e condução coercitiva para apurar lavagem de dinheiro e pagamento
de propina. Iniciada em 17 de março de 2014, a operação ganhou amplo espaço na mídia
nacional e internacional, com ampla cobertura midiática de suas ações, tendo colocado
o combate à corrupção no centro da cobertura jornalística do país, principalmente pelo
fato de as averiguações envolverem importantes lideranças políticas do país, dirigentes de
grandes construtoras e outros empresários. As investigações realizadas são objeto de política
no campo jurídico e político, tanto pelos procedimentos adotados pelos juízes, quanto pela
espetacularização de políticos e empresários.
57. Trata-se de apartamento que supostamente havia sido adquirido pelo ex-presidente Lula em
troca de favores à empreiteira OAS. Em meados de maio de 2018, o apartamento foi leiloado
pela própria empreiteira, deixando claro que o ex-presidente não era o proprietário do imóvel.
114 O Golpe de 2016

Como era de se esperar, a ordem de prisão do ex-presidente Lula foi um dos


dez assuntos mais comentados pela mídia, noticiado pelos portais jornalísticos,
telejornais e redes digitais. É importante também lembrar da repercussão na
mídia estrangeira, devido à popularidade do ex-presidente conquistada durante
o período do seu governo, a partir do qual passou a ser considerado uma das
lideranças políticas mais importantes no plano internacional.
Era o início da disputa pela narrativa que iria construir o significado da
prisão do ex-presidente Lula, que girava em torno da imagem que seria registrada
sobre esse momento. Qual imagem ficaria para a história sobre esse momento
político tão importante da história do país? Esse aspecto é muito relevante, se
considerarmos algumas publicações da grande mídia em anos anteriores. Essa
prisão foi anunciada muitas vezes com o objetivo de construir um contexto
que, pouco a pouco, foi criando e disseminando o antilulismo e o antipetismo
na opinião pública.
O antipetismo vem sendo construído pela mídia há muito tempo, com a
constante produção de escândalos midiáticos em torno da figura do ex-presidente
e de seu partido. Os escândalos políticos construídos e disseminados pelos
principais jornais do país demonstram o papel da mídia nesse processo. Somente
no ano de 2014, o número de capas sobre escândalos políticos dos jornais O Estado
de São Paulo (OESP), Folha de São Paulo (FSP) e O Globo mostra a diferença
de tratamento da cobertura jornalística dos dois principais partidos políticos do
país - Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido da Social-Democracia Brasileira
(PSDB). Foram 688 capas sobre o PT e 299 sobre o PSDB. Segundo Azevedo,
autor do estudo,

Os dados da nossa pesquisa confirmam que a imagem e a representação na


mídia do petismo e dos governos petistas foram não só negativas (...), ao
longo dos anos, como foram objetos de pacotes interpretativos distintos,
usados de acordo com a conjuntura. Estes pacotes interpretativos reproduzem
essencialmente os mesmos acionados no contexto dos anos 1950 e 1960 para
enquadrar o varguismo e o governo Jango: populismo e/ou radicalismo político
(ambos definidos como atributos negativos) e corrupção. No caso do PT,
com o partido atuando na oposição desde 2001, nesta fase, a representação
do petismo foi o seu esquerdismo – usualmente definido como radical e/
ou populista. Com o partido no poder e depois do Mensalão, o pacote
prevalecente foi o da corrupção, sendo o partido enquadrado como uma
organização corrompida e/ou criminosa (AZEVEDO, 2017, p. 187).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 115

O anúncio da prisão foi transmitido em primeira mão pela rede Globo, que
entrou com seu plantão apresentando a clássica música e imagem de microfones,
anunciando que algo relevante está ocorrendo para interromper a programação
e fazer o seguinte anúncio: “O juiz Sérgio Moro acaba de determinar a prisão do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”.
Na mesma noite, na edição do Jornal Nacional, a cobertura foi repleta de
imagens e de comentaristas explicando os detalhes da ordem de prisão, e com
duração maior do que as edições diárias. Houve ênfase no despacho do juiz,
que determinou a proibição do uso de algemas, seguindo a orientação da mais
alta corte do país. O juiz Moro quis transmitir a imagem de respeito aos direitos
humanos, em consonância com o parecer do Instituto Brasiliense de Direito
Público (IDP), que considera o uso de algemas para esse tipo de prisão uma
exposição desnecessária.
Naturalmente, esse tipo de proibição frustrou as expectativas de setores
da sociedade, de adversários políticos do ex-presidente e também de parte da
mídia. Ficava claro que Moro queria passar a imagem de juiz sóbrio, imparcial
e respeitoso à biografia do ex-presidente. Na verdade, não era necessário o uso
de algemas para que o juiz conseguisse se notabilizar por ter conseguido o que
muitos opositores de Lula tentavam havia tanto tempo: tirá-lo de circulação e
impedi-lo de participar das eleições presidenciais de 2018.
Vale destacar que, concomitantemente ao Jornal Nacional, Band News
e Globo News (canais fechados) exibiram em sua cobertura imagens de
helicópteros utilizados para acompanhar cada instante da chegada do ex-
presidente Lula ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, no ABC paulista,
onde se encontraria com as lideranças políticas que o aguardavam. Parte da
espetacularização é para mostrar todos os instantes do processo de prisão, tal qual
na condução coercitiva do ex-presidente,58 quando a mídia foi avisada e já estava
a postos para acompanhar todos os momentos do depoimento do ex-presidente.
Alguns comentaristas políticos da Globo News formaram um espetáculo
à parte, buscando desconstruir o argumento de prisão política e reafirmando
que Lula era preso comum porque sua prisão ocorria por crime de corrupção.
Tentou-se mostrar que não havia nenhuma comoção nacional contra a prisão

58. Em 4.3.2016 o juiz Sergio Moro autorizou a condução coercitiva do ex-presidente Lula, que
foi levado para depor na sede da Polícia Federal, no aeroporto de Congonhas. O episódio
gerou grande polêmica, tendo em vista que essa medida judicial é uma forma impositiva
de levar acusados em um processo, independentemente de sua vontade, à presença de
autoridades judiciárias ou policiais. Em 14.6.2018, o Supremo Tribunal Federal proibiu o
uso de condução coercitiva.
116 O Golpe de 2016

do ex-presidente Lula, indicando não haver resistência por parte da população.


A edição do Jornal Nacional teve duração de aproximadamente uma hora,
mostrando detalhes do processo, reconstruindo os principais aspectos jurídicos,
recuperando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que havia negado
no dia anterior o habeas corpus59.
Em nenhum momento foi veiculada qualquer declaração de Lula no
telejornal. A emissora não teve a mesma preocupação de recuperar declarações
anteriores e apresentou somente os trechos de notas dos advogados do ex-
presidente. Apenas a presidente do Partido dos Trabalhadores, a senadora
Gleisi Hoffmann, apareceu durante 10 segundos para declarar que a prisão era
política, diferentemente da versão amplamente divulgada pela mídia, na qual
se afirmava que o ex-presidente é preso comum. As imagens de apoiadores do
ex-presidente chegando ao Sindicato dos Metalúrgicos não eram veiculadas
pelos grandes meios, embora nas redes digitais já circulassem fotos e vídeos da
aglomeração que se formava ao redor do prédio. No dia seguinte, quando não
era mais possível esconder a presença de centenas de pessoas ocupando as ruas
em torno da sede, começavam a aparecer as manchetes da Folha de São Paulo,
O Estado de São Paulo e O Globo, conforme podemos ver abaixo:

Fonte: https://www.vercapas.com.br/capa/folha-de-s-paulo/2018-04-06.html

59. Trata-se de uma ação judicial com o objetivo de proteger o direito de liberdade, o direito
de ir e vir de quem se sente lesado ou ameaçado por ato abusivo de autoridade.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 117

Fonte: https://www.vercapas.com.br/capa/o-estado-de-sao-paulo/2018-04-06.html

Fonte: https://www.vercapas.com.br/edicao/capa/o-globo/2018-04-06.html
118 O Golpe de 2016

Fonte: https://veja.abril.com.br/politica/lula-o-corrupto-encarcerado/

As capas acima, dos principais veículos impressos do país, expressam que a


disputa da narrativa em torno da prisão do ex-presidente Lula era fundamental
para o momento pós-prisão. O que fica no imaginário da população sobre esse
período? Quais os desdobramentos dessa prisão no cenário político e eleitoral?
Durante os dias 6 e 7 de abril de 2018, o ex-presidente permaneceu na sede
do Sindicato dos Metalúrgicos de SBC, cercado de apoiadores e lideranças de
diversos partidos políticos e movimentos sociais, decidindo como seria sua entrega
à Polícia Federal. Momentos de alta tensão, alguns apoiadores não queriam
que Lula se entregasse, desejando que ele resistisse, outros usando argumentos
jurídicos de que essa era a melhor solução.
No dia 7, era aniversário de Marisa Letícia, esposa de Lula falecida em
fevereiro de 2017. Foi realizado um ato ecumênico com a presença com milhares
de participantes, além de importantes lideranças políticas do país. Nesse cenário,
foi feita a foto que sintetiza o momento e viralizou60 mundo afora, transmitida
pela agência Reuters:

60. Termo utilizado quando uma ação na internet se espalha rapidamente, semelhante ao efeito
viral.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 119

Fonte: https://exame.abril.com.br/brasil/o-que-dilma-alckmin-doria-e-bolsonaro-
disseram-sobre-a-prisao-de-lula/

Lula carregado nos braços do povo e uma das frases de seu último discurso
público: “Se não me deixarem caminhar, caminharei pelas pernas de vocês”61. Não
era exatamente essa a imagem que mídia e Judiciário queriam eternizar. O
ex-presidente decide se entregar no final da tarde e, mais uma vez, a Polícia
Federal tenta impedir uma imagem da resistência dos apoiadores de Lula que
se aglutinavam no aeroporto de Congonhas, na zona sul da cidade de São
Paulo, considerando que informações oficiais, veiculadas pela grande imprensa,
afirmavam que ele embarcaria em um avião da Força Área Brasileira (FAB) rumo
à sede da PF em Curitiba.
Manifestantes tentaram impedir que Lula se entregasse, mesmo que essa
tivesse sido sua decisão em conjunto com lideranças políticas, mas o desejo do
povo era impedir a prisão. Na primeira tentativa de saída da sede do sindicato,
os manifestantes conseguem impedi-lo, mas, logo em seguida, ele sai num carro
escoltado pela polícia.
As emissoras Globo News e Band News transmitiram ao vivo todos os passos
de Lula, desde a saída do sindicato, acompanhando o trajeto com helicópteros,

61. Discurso realizado pelo ex-presidente Lula em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo no dia em que se entregou à Polícia Federal, cumprindo ordem do juiz
Sergio Moro; https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/leia-a-integra-do-discurso-do-
ex-presidente-lula-antes-de-se-entregar-a-pf.shtml.
120 O Golpe de 2016

com cenas exclusivas, mas Lula passa em frente ao aeroporto do Congonhas e


segue para a sede da Polícia Federal no bairro da Lapa, zona oeste da cidade de
São Paulo. Chegando lá, alguns poucos apoiadores o esperavam, mas não havia
povo, como no aeroporto de Congonhas e a partir desse momento, todo contato
direto de Lula foi feito por via aérea até a chegada à Curitiba.
Os helicópteros permanecem sobrevoando o local, buscando imagens de
Lula dentro da sede, na qual realizou-se o exame de corpo de delito, com Lula
acompanhado de seu advogado. Após o exame, Lula entra em um helicóptero
e segue para o aeroporto onde embarca em uma aeronave para o aeroporto de
Curitiba. Ao chegar ao aeroporto de Curitiba, Lula embarca novamente em um
helicóptero, que o leva à sede da Polícia Federal, onde permanece preso até o
presente momento.
Esse breve relato das 48 horas desde que o juiz Moro decretou a prisão de
Lula até sua entrega foi composto por uma disputa de imagens, uma guerra de
informação e contrainformação hegemônica.
Curiosamente, a espetacularização se articula perfeitamente ao processo
de judicialização da política, fenômeno cada vez mais presente, que vem
proporcionando a ampliação do Poder Judiciário sobre os demais poderes e
impactando na institucionalidade democrática.
De forma genérica, a judicialização da política pode ser entendida a partir,
em primeiro lugar, do aumento dos impactos das decisões judiciais em questões
sociais e políticas, podendo ocorrer em momentos em que os conflitos políticos
são encaminhados ao Judiciário, que deve dar algum tipo de resolução. É
importante ressaltar que o uso crescente do Poder Judiciário para a solução de
caráter social ou político gera um cenário muitas vezes questionável pelo aumento
do protagonismo dos tribunais e juízes, cada vez mais atuantes no jogo político
e, em muitos casos, configurando clara invasão de competência entre poderes,
mas também nítida dificuldade dos poderes em atuar em suas prerrogativas.
Em 2008 escrevi: “As relações entre o sistema judicial e o sistema político
atravessam um momento de tensão sem precedentes cuja natureza se pode
resumir numa frase: a judicialização da política conduz à politização da Justiça”.
O site CONSULTOR JURIDICO publicou o artigo em 26 de setembro de 2008.
Mantenho minha opinião e de lá para cá várias colisões ocorreram e penso
que quem perdeu foi a democracia, pois quando está presente a judicialização da
política o desempenho normal das suas funções dos tribunais torna-se anormal
e afeta, de modo significativo, as condições da ação política e as questões que
originariamente deveriam ser resolvidas na arena política e não nos tribunais
(MACIEL NETO, 2013).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 121

Corroborando essa abordagem, vemos que a espetacularização do Poder


Judiciário é cada vez mais frequente também em outros países. Não se trata de
fenômeno exclusivamente brasileiro, o que torna a questão ainda mais preocupante,
tendo em vista que significa um processo internacional de impactos ao que estava
aparentemente consolidado, que é a institucionalidade construída pela democracia
liberal. Nesse sentido, verifica-se que é fundamental prestar atenção nesse processo,
tendo em vista que não se trata de tratá-los como fato isolado, mas como uma
mudança no que se refere às prerrogativas do Poder Judiciário.
Outro dado a se considerar é que mesmo que a espetacularização de
grandes julgamentos não seja um fenômeno exclusivamente nacional, mas
uma prática igualmente observada em outros países, ele não corresponde a
uma melhoria da prática jurídica ou do grau de democracia real da sociedade.
Significa, tão somente, que com a adoção da pena de prisão, a execução
numa cela [encarceramento] tornou-se uma rotina sem apelo jornalístico. O
espetáculo desloucou-se para a investigação e o julgamento. O excesso dessa
espetacularização alcançou uma tal dimensão que, várias partes do mundo, da
Europa aos Estados Unidos, a tendência tem sido a criminalização do que Nilo
Batista denomina de “publicidade opressiva” (FONTES; LESSA, 2018).
Abordando especificamente o caso brasileiro, verificamos que juízes,
promotores e policiais ligados à Operação Lava Jato se tornaram verdadeiras
celebridades devido à espetacularização das suas ações, do envolvimento em
depoimentos e divulgação de sentenças dos condenados na investigação. Essas
autoridades passaram a ocupar as páginas dos jornais de maior circulação do país,
a estar diariamente nos telejornais e em emissoras de rádio, colunas sociais, além
de frequentar programas de variedades. São tratados como pop stars da Justiça,
fato questionado por autoridades internacionais que consideram esse tipo de
superexposição perigosa para o desenvolvimento das investigações, além de
reforçar a preocupação com o processo de judicialização da política.
Em determinado momento, o juiz passa a ocupar-se da imagem que transmite
de si mesmo, no decorrer de um dado julgamento. Ciente da repercussão que sua
atuação terá – não apenas em relação às partes ou aos demais atores institucionais
(como, p.ex., os legisladores) –, o juiz cuida de sua própria performance, do modo
como se porta (gestos, entonação de voz) ao transmitir suas ideias etc. Há o risco,
assim, de preponderar, na atuação do magistrado, uma maior preocupação com a
imagem que é transmitida de si mesmo que com a substância do que está sendo
julgado (MEDINA, 2014).
A princípio, poderíamos pensar que a cobertura realizada pelos grandes
meios de comunicação garante a transparência das investigações, permitindo à
122 O Golpe de 2016

opinião pública o acompanhamento cotidiano de uma das mais emblemáticas


ações de investigação de autoridades públicas, políticos, empreiteiros envolvidos
nos escândalos de corrupção. Mas será que é a transparência que norteia a
cobertura da operação? A partir desse questionamento, levantaremos alguns
aspectos para um debate sobre os efeitos da cobertura midiática da Operação
Lava Jato.
Dentro do próprio Poder Judiciário existe um conjunto de juízes que
questiona o excesso de exposição de magistrados nas investigações, tendo em
vista que, em muitos casos, os julgamentos são mais definidos pela opinião pública
do que por critérios jurídicos. Nesse sentido, juízes ignoram os elementos básicos
de uma investigação sólida, o que seria, no mínimo, preocupante, conforme
podemos observar na declaração abaixo:

O que não parece adequado é utilizar as constatações do constitucionalismo


democrático (de que o Poder Judiciário normalmente é sensível às demandas
políticas) como parâmetro normativo das decisões judiciais (no sentido de
que o Poder Judiciário deve ser sensível às demandas políticas). Os juízes não
devem julgar de acordo com a opinião pública, mas com base em critérios
jurídicos (MEDINA, 2014).

Observamos que a relação estabelecida pelo Judiciário com a mídia por


meio da divulgação de informações é mais baseada em estereótipos do que
fundamentada em argumentos jurídicos. Sem falar no chamado vazamento
seletivo de informações consideradas sigilosas para não atrapalhar as investigações
em andamento. Embora as informações tenham caráter confidencial e devam
ser mantidas em segredo de justiça, é comum o vazamento para a mídia, gerando
mais espetacularização das informações e alimentando a construção da opinião
pública em relação às ações da Justiça.
Frequentemente observarmos nos telejornais o uso de linguagens que se
distanciam dos termos do Direito, mas que conduzem o telespectador por meio
de áudios e imagens a formar uma opinião sobre os envolvidos nas denúncias,
criando uma espécie de processo de condenação midiática que atinge reputações
a partir da produção de escândalos políticos.
Segundo Thompson,

o escândalo se refere a ações ou acontecimentos que implicam certos tipos de


transgressões que se tornam conhecidos de outros e que são suficientemente
sérios para provocar resposta pública (...) 1) sua ocorrência ou existência
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 123

implica a transgressão de certos valores, normas ou códigos morais; 2) sua


ocorrência ou existência envolve um elemento de segredo ou ocultação,
mas elas são conhecidas ou firmemente cridas como existentes por outros
indivíduos não envolvidos (chamaria a esses indivíduos de não participantes;
3) alguns não-participantes desaprovam as ações ou acontecimentos e podem
sentir-se ofendidos pela transgressão; 4) alguns não participantes expressam
sua desaprovação denunciando publicamente as ações ou acontecimentos;
5) a revelação e condenação das ações e acontecimentos podem prejudicar a
reputação dos indivíduos responsáveis por eles. (THOMPSON, 2002, p. 40)

O processo de divulgação das informações da Lava Jato segue um roteiro


com elementos que conjugam espetacularização da corrupção e criminalização
da política, resultando num descrédito da população em relação à política
e, consequentemente, no afastamento dos cidadãos num cenário em que se
aprofunda o desinteresse pela política.
Thompson diz:

Vimos que a corrupção implica a infração de regras, convenções ou leis


referentes ao exercício correto das obrigações públicas: um escândalo irá
surgir apenas se as regras, convenções ou leis possuírem um certo grau de
obrigatoriedade moral e somente se a infração for vista por outros como
suficientemente séria e importante para provocar uma manifestação vigorosa
de desaprovação (THOMPSON, 2002, p. 57).

Um dos impactos dessa dinâmica pôde ser verificado nas eleições


municipais de 2016, com o surgimento de diversos candidatos com um discurso
de criminalização da política e apresentando-se como não políticos, mas como
gestores e empresários. Discursos apartidários passam a fazer parte não somente do
processo eleitoral, mas também do debate de outras temáticas, enfraquecendo os
partidos políticos e tornando-os ainda mais fisiológicos e legendas sem compromisso
ideológico, aprofundando os inúmeros problemas da democracia representativa.
No passado, os partidos propunham aos eleitores um programa político
que se comprometiam a cumprir, caso chegassem ao poder. Hoje, a estratégia
eleitoral dos candidatos e dos partidos repousa, em vez disso, na construção de
imagens vagas que projetam a personalidade dos líderes. As preferências dos
cidadãos acerca de questões políticas expressam-se cada vez mais frequentemente
por intermédio das pesquisas de opinião e das organizações que visam fomentar
um objetivo particular, mas não têm a intenção de se tornar governo. A eleição
124 O Golpe de 2016

de representantes já não parece um meio pelo qual os cidadãos indicam as


políticas que desejam ver executadas. Por último, a arena política vem sendo
progressivamente dominada por fatores técnicos que os cidadãos não dominam.
Os políticos chegam ao poder por causa de suas aptidões e de sua experiência
no uso dos meios de comunicação de massa, não porque estejam próximos ou
se assemelhem aos seus eleitores. O abismo entre o governo e a sociedade, entre
representantes e representados, parece estar aumentando. (MANIN, 1997) 
A criminalização da política e dos políticos, processo crescente não somente
no Brasil, é verificável em escala global e coloca na agenda a necessidade de
se abordar esse fenômeno, considerando que juntamente com o descrédito na
política podemos observar o crescimento de ideias conservadoras, de intolerância
com posicionamentos políticos mais inovadores etc.
Nesse sentido, é fundamental refletirmos sobre a espetacularização do
combate à corrupção, que talvez tenha menos efeitos concretos de impedir a ação
inescrupulosa de políticos e empresários que se utilizam desse mecanismo para
extrair benefícios próprios e, concretamente, pensar como ações espetaculares
de combate à corrupção podem encobrir as práticas de corruptos e corruptores.
A exposição midiática atua com um roteiro definido pelos investigadores
de forma geralmente seletiva e com tratamento diferenciado, dependendo do
investigado, sua orientação ideológica ou partidária. A construção de uma narrativa
sobre os investigados não obedece às regras da transparência, mas antes de mais nada
está direcionada a criar um julgamento da opinião pública que, via de regra, pode
interferir na investigação, à medida que se transmite informações que contaminam
a investigação. A investigação se transforma em julgamento-espetáculo:

O julgamento-espetáculo, portanto, visa agradar ao espectador-ator social que


assiste/atua condicionado por essa tradição autoritária (não por acaso, atores
sociais autoritários são frequentemente elevados à condição de “heróis” e/
ou “salvadores da pátria”). Nessa toada, os direitos e garantias fundamentais
passam a ser percebidos como obstáculos que devem ser afastados em nome
dos desejos de punição e da eficiência do mercado. Em outras palavras, no
processo penal do espetáculo, os fins justificam os meios (não causam surpresa,
portanto, os ataques de parcela da magistratura ao princípio da presunção de
inocência, apontado como uma das causas da impunidade (CASARA, 2016).

A condução da investigação de denúncias de corrupção obedece a roteiro


com ênfase na estetização do processo penal, quando o juiz assume o lócus único
da verdade, a partir do qual coloca
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 125

preconceitos do público, marketing, lazer, perversões, tudo se mistura na


criação e desenvolvimento do caso penal: a lógica espetacular passa a definir
como o processo é conduzido. Se a audiência do espetáculo cai, e com ela o
apoio popular construído em torno do caso penal, sempre é possível recorrer
a uma prisão espetacular (CASARA, 2016).

Para finalizar, é importante ressaltar que não se trata de ser contra qualquer
tipo de investigação dos processos de corrupção no Brasil, mas é fundamental
analisar as ações do Poder Judiciário e a divulgação por parte da mídia. É de
extrema relevância que todas as denúncias sejam investigadas e que sejam
divulgadas pela mídia, não de forma seletiva, dependendo do ator político que
está em evidência. Desse modo, concordamos com a frase do último discurso
do ex-presidente Lula:

Não pense que eu sou contra a Lava Jato, não. A Lava Jato, se pegar bandido, tem
que pegar bandido mesmo que roubou e prender. Todos nós queremos isso. Todos
nós a vida inteira dizíamos: “A Justiça só prende pobre, não prende rico”. Todos
nós dizíamos. E eu quero que continue prendendo rico. Eu quero. Agora qual é o
problema? É que você não pode fazer julgamento subordinado à imprensa. Porque
no fundo, no fundo, você destrói as pessoas na sociedade, na imagem das pessoas e
depois os juízes vão julgar e vão dizer “eu não posso ir contra, a opinião pública tá
pedindo pra caçar”. Quem quiser votar com base na opinião pública largue a toga
e vá ser candidato a deputado, escolha um partido político e vá ser candidato. Ora,
a toga, ela é o emprego vitalício. O cidadão tem que votar apenas com base nos
autos do processo, aliás eu acho que Ministro da Suprema Corte não deveria dar
declaração de como vai votar. Nos EUA, termina a votação e você não sabe em quem
o cidadão votou, exatamente para que ele não seja vítima de pressão (SILVA, 2018).

Referências

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Carlos: EDUFSCAR, 2017
CASARA, Rubens R.R., “A espetacularização do processo penal” IN: Revista
Brasileira de Ciências Criminais, RBCCRIM VOL. 122 (AGOSTO 2016),
Disponível em http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_
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bol_2006/122.12.PDF, acesso em 12.6.2018
126 O Golpe de 2016

CHAIA, Vera e TEIXEIRA. Marco A. “Democracia e escândalos políticos”,


disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0102-88392001000400008 acesso 12.6.2018
COELHO, Cláudio Novaes Pinto, “Mídia e Poder na Sociedade do Espetáculo”,
Revista Cult, São Paulo, p. 59 - 61, 8 fev. 2011.
DEBORD, Guy, - A sociedade do espetáculo – Comentários sobre a sociedade do
espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 1997.
FIGUEIREDO, João Gabriel, “Mídia, crime e castigo” in: Morais, Wilma (org.)
Comunicação & corrupção, Editora Universitária da UFPE, 2011
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GALVÃO, José Octávio Lavocat. “Juízes não devem julgar de acordo com a
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com.br/2014-ago-30/observatorio-constitucional-juizes-nao-julgar-acordo-
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MACIEL NETO, Pedro Benedito, “A judicialização da política e a politização da
Justiça, 2018”, Disponível em https://jornalggn.com.br/noticia/a-judicializacao-
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MANIN, Bernand, “As metamorfoses do governo representativo”, Disponível
em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_29/rbcs29_01.htm,
acesso em 28 de junho de 2018
MEDINA, José M.G., “Juízes do Supremo Tribunal são midiáticos”, Disponível
em https://www.conjur.com.br/2014-jan-27/jose-miguel-medina-juizes-supremo-
sao-midiaticos, acesso em 28.6. 2018
SILVA, Luiz Inácio Lula da, “A íntegra do último discurso de Lula”, disponível
em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/04/ultimo-discurso-de-lula.
html, acesso em 28.6.2018.
THOMPSON, John B. O escândalo político - Poder e visibilidade na era da mídia,
Petrópolis: Vozes, 2002
Governo ilegítimo, Direitos Humanos e a
nova Lei de Migração

Dulce Tourinho Baptista

A questão levantada neste artigo integra o tema do livro sobre o Golpe de


2016 e o Futuro da Democracia. O artigo analisa, na perspectiva interdisciplinar,
o governo golpista e busca elucidar os elementos de fragilidade do sistema político
brasileiro que permitiram a ruptura democrática, sua agenda de retrocesso nos
direitos, restrição às liberdades e o consequente aumento das desigualdades
sociais no país. Ainda evidencia os desdobramentos da crise em curso e as
possibilidades de reforço da resistência popular tendo em vista o restabelecimento
do Estado de direito e da democracia política no Brasil.
O texto apresentado tem como foco os Direitos Humanos do migrante62 e
está estruturado em três grandes eixos articulados, que refletem sobre os cenários
do Golpe, algumas aproximações sobre migrações no contexto atual e a nova
Lei de Migração.

1 - Contexto do Golpe: algumas reflexões

O Brasil é um país com resquícios coloniais da escravidão no seu cotidiano.


O seu projeto de desenvolvimento esteve, historicamente, voltado
para a defesa de interesses externos, em conluio com o capital internacional
que, em aliança com uma elite patrimonial local, tem governado o Brasil
com a implementação de projetos e programas que não são voltados para os

62. Conceitualmente, os imigrantes e emigrantes são os mesmos atores sociais migrantes. Nos
processos migratórios considera-se imigrante aquele migrante que chega (se insere) no
local de destino. O emigrante é aquele migrante que sai (emigra) do seu local de origem.
Os refugiados integram hoje, com expressiva representatividade, o rol de migrantes.
128 O Golpe de 2016

interesses e direitos da sua população, mas para favorecimentos privados e


internacionais.
O Golpe de 2016 revela este cenário no qual é possível perceber, em pouco
tempo, a redução dos avanços alcançados no processo de redemocratização do
país e de agendas voltadas para interesses internos, decorrentes da participação
da sociedade civil que, com muita luta política, vinha buscando assegurar a
construção dos Direitos Humanos e da cidadania no Brasil. O Golpe de 2016
interrompe este processo e o país retorna ao seu curso original, voltando a
ser “uma colônia do capitalismo neoliberal hegemônico. Nunca tão poucos
espoliaram tantos em tão pouco tempo” (ALVES, Giovanni, 2017, p.10).
O processo de retomada de uma política conservadora pelos “donos
do poder” (FAORO, 1987) foi arquitetado com a mobilização de segmentos
estratégicos na correlação de forças nas dimensões internas – nacional – e
externas – internacional.
O processo do Golpe teve o trabalho de convencimento massivo e articulação
da derrubada da presidenta com a mediação dos meios de comunicação cooptados
por interesses privados e imperialistas, personificados na figura da Rede Globo, dos
grupos econômicos vinculados ao capitalismo internacional – principalmente a
fração rentista e financeira, do Poder Judiciário, da Lava Jato, das representações
políticas conservadoras, dentre outros atores sociais que protagonizaram o
processo do Golpe, objetivando a destruição do governo eleito democraticamente,
vinculado à sociedade civil e aos movimentos populares.
Desse modo, o Estado de Exceção liquida o Estado democrático
constitucional de direito, coopta a classe média que, com o seu falso moralismo
conservador, aprofunda na sociedade uma mistura de medo e raiva em relação
aos pobres e passa a defender de forma acrítica os interesses dos donos do poder,
perpetuando uma sociedade cruel forjada na escravidão, conforme analisa Jessé
de Souza (2017).
Constata-se ainda, no contexto do Golpe, o uso da tática conflituosa do
lawfare, na qual o Direito é utilizado como arma contra um inimigo específico,
ou seja, o uso de leis e sistemas jurídicos para atingir fins políticos previamente
direcionados. Foi o que ocorreu com a Operação Lava Jato, intervenção já usada
em outras experiências internacionais, engendrada para fragilizar o sistema
econômico e os partidos políticos vinculados ao pensamento democrático de
esquerda.
As fake news, notícias falsas e mentiras deliberadas, passam a ser produzidas
– especialmente na internet – com a função de enganar e confundir a sociedade
brasileira no desencadear do Golpe.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 129

O Estado de Exceção é implementado, levando ao esvaziamento e à


banalização dos Direitos Humanos no sentido constitucional, de garantias
fundamentais.
Verifica-se o movimento do grande capital, uma maior concentração de
renda na oligarquia burguesa dominante com hegemonia da fração rentista e
do agronegócio, na exportação de commodities, com desdobramentos perversos
no meio ambiente, no estrangulamento da produção industrial nacional e na
distribuição de renda.
Desencadeia-se a implantação de uma política pública de falsa austeridade
seletiva, ditada pelo mercado, com o congelamento de despesas sociais destinadas
aos mais pobres.
A Emenda Constitucional 95/201663 e a Reforma Trabalhista provocam a
reversão das políticas distributivas, o aumento da desigualdade e a transferência
de renda da base para o topo da pirâmide, como pode ser observado nos dados
da renda média por quintil no 1º trimestre de 2017 e 2018, que evidenciam um
Brasil mais desigual:

Renda média em reais por quintil64

Ricos /pobres Quintil 1º tri 2017 2º tri 2018 Variação %


Mais rico 1º quintil 5.534,27 6.130,58 10,8
Mais rico 2º quintil 1.808,65 2.006,94 11,8
Médio 3º quintil 1254,77 1.308,61 4,3
Mais pobre 4º quintil 962,63 454,04 -1,8
Mais pobre 5º quintil 400,08 380,11 - 5,0

Fonte: IBGE, 2018. Elaboração Daniel Duque in: Gazeta Mercantil, maio 2018.

Reforçando os dados da tabela apresentada, o índice Gini também evidencia


o aumento da desigualdade: em 2016, foi de 0,5515, de 0,5648 em 2017, e em
2018 alcança o patamar de 0,5684.
Em relação ao trabalho, a taxa de desocupação cresceu de 6,7 milhões em
2014 para 13,2 milhões em março de 2018 (IBGE). A transição de desocupados

63. A EC 95 é a medida de austeridade perversa, adotada no país, que atinge os direitos


humanos dos grupos mais vulneráveis e não permite a proteção mínima devido aos cortes
orçamentários no novo regime fiscal, colocando em risco os direitos sociais e econômicos
como saúde, educação, alimentação, assistência social, gerando o aumento das desigualdades.
64. Cada quintil equivale a 20% da população brasileira.
130 O Golpe de 2016

para ocupados se concentra na informalidade, sem carteira assinada, com


trabalhadores por conta própria e empregadores que não contribuem para a
Seguridade Social. Grande parte da totalidade das novas vagas criadas são
informais, dado que indica um país estagnado, em recessão, em grave crise
econômica, social e institucional. O investimento social visto como motor de
crescimento, com a Emenda Constitucional 95/2016, é inviabilizado e a agenda
neoliberal institucionalizada pelo Golpe leva o país a retroceder “20 anos em 2”
(Le Monde Diplomatique, jun 2018).
As medidas de austeridade no Brasil desrespeitaram as normas internacionais
de direitos humanos, haja vista que a EC 95 descumpriu os seus princípios,
conforme analisa David (2018, p. 07):

(...) em vez de ser temporária, tem previsão de 20 anos de duração; é


desproporcional por limitar apenas despesas primárias e deixar livres as
financeiras; é discriminatória, por atingir mais intensamente os grupos mais
vulneráveis da população brasileira e mais dependentes das políticas públicas;
não permite a proteção do conteúdo mínimo dos direitos humanos por causa
dos excessivos cortes orçamentários e as reformas liberalizantes propostas,
como a trabalhista e a previdenciária; e por fim foi adotada sem avaliação
prévia dos impactos que teria nos direitos humanos e sem a participação dos
afetados na tomada de decisão.

Outros indicadores complementam os dados apontados no crescimento


da desigualdade nos dois últimos anos pós-Golpe: o Brasil tem hoje 13 milhões
de desempregados, dívidas com o SUS, crescimento da mortalidade infantil;
mais de 170 mil alunos entre 19 e 25 anos abandonaram a graduação em 2017;
IDH estagnado e queda no salário mínimo, uma vez que o reajuste foi inferior
à inflação, dentre outras variáveis.
O Golpe entrega as riquezas “nacionais” à rapina estrangeira, fazendo
concessões ao capital internacional. Como exemplo ressalta-se a exploração do
sub-solo para privatizações que, com a aprovação da lei nº 13.365 de 29/11/2016,
tira a condição da Petrobras como operadora única do Pré-sal, com perda do
controle nacional sobre as reservas petrolíferas, e sua exploração passa a ser ditada
pelos interesses privados das grandes petroleiras internacionais, inviabilizando a
indústria nacional. A Petrobras passa a ter só o “direito de preferência”, o que é
um disfarce pois “nenhuma empresa petrolífera do mundo, estatal ou não, abriria
mão das ricas reservas que ela descobriu e desenvolveu com tecnologia própria
para explorá-las…” (BERCOVICI, 2017, p.191).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 131

A reversão do rumo da política brasileira deu-se conforme analisa Chomsky


(2018): “Lula está sendo punido pelas políticas reformistas que deram apoio à
população reprimida. Essa gente ter voz nos rumos do governo não é admitido
pela classe dominante, os donos do poder patriarcal brasileiro”.
Este contexto de Golpe é analisado por muitos estudiosos. Vladimir Safatle
(2018), numa entrevista sobre o Brasil, em Paris, diz:

O que nós vivemos agora é um momento de degradação institucional dos


atores políticos e de brutalização dos conflitos sociais, que tendem a piorar
(...) O Poder Judiciário no Brasil é a gesticulação do Golpe, é um poder
monárquico, é o único que opera sem nenhum tipo de intervenção da
população.

Assim sendo, os grandes conglomerados econômicos que compõem o


complexo financeiro-empresarial, passam a comandar o país. Participam do
exercício “invisível” do poder, utilizando recursos e estratégias golpistas na
formação de consciência e opinião pública. As falsas ideias passam a existir para
alimentar a alienação das pessoas e legitimar o ataque à sociedade brasileira.
Constata-se a construção planejada de uma narrativa dissimulada, com
aparência de realidade, para criar a falsa sensação de participação consciente e
cidadã para os que se informam pelos meios de comunicação tradicionais.
O Golpe de 2016 está entregando o patrimônio nacional, destruindo
direitos, ampliando as diferenças entre as classes e comprometendo o futuro das
próximas gerações brasileiras.
Com sabedoria, o Papa Francisco (2018) explica o Golpe no Brasil, e em
poucas palavras diz: “A mídia começa a falar mal das pessoas, dos dirigentes, e
com a calúnia e a difamação essas pessoas ficam manchadas. Depois chega a
Justiça, as condena e, no final, se faz um golpe de Estado”.
O momento perverso que vive o Brasil em decorrência do Golpe já é, no
entanto, percebido cada vez mais por segmentos insatisfeitos da população que
diagnosticam a perversidade e o conservadorismo dos novos rumos da sociedade
brasileira65. As pesquisas de opinião pública avaliam o atual governo do Brasil

65. Segue diálogo veiculado nas redes sociais, capaz de ilustrar a percepção popular: “Se vocês
soltarem o Lula, nós vamos criar uma pequena guerra, aí mesmo nessa bagunça de país sem exército
e depois, para garantir a democracia, vamos dar uma invadida básica pra organizar as coisas.
Já dissemos que só queremos o petróleo, as matrizes energéticas, o aquífero e o enfraquecimento
industrial de vocês. Se seguirem nossas normas mercantilistas, nada vai acontecer, e vocês continuam
na vidinha de sempre... futebol, carnaval, novelas e esse sorriso acolhedor que só vocês têm.
132 O Golpe de 2016

como o mais impopular da história brasileira, com 87% de desaprovação do


governo golpista (IBOPE abr. 2018), sendo que após a intervenção militar no
Rio chegou a 94% de desaprovação (IPSOS/Estadão, mar 2018).

2 - Migrações no contexto atual

Neste contexto perverso, no âmbito nacional e também mundial, emerge


a questão migratória, que revela o migrante como o ator social capaz de indicar
a vulnerabilidade e inviabilização do sistema-mundo capitalista.
Percebe-se que o pseudo“desenvolvimento” mundial está acoplado ao
progresso técnico da economia global, interconectado ao crescimento econômico
corporativo na busca compulsiva do lucro, com desdobramentos perversos para
a sociedade civil.
Na figura do migrante está evidenciada a crescente brutalidade pela qual
passa a população e a crescente inviabilidade da construção de um projeto de
vida para grande parte da população migrante, tanto no seu local de origem
como no de destino.
Constata-se a violação diária e massiva dos Direitos Humanos com o
envolvimento e o endosso de países onde esses direitos nasceram e foram
instituídos. Os compromissos assumidos pela ONU existem no âmbito do Direito,
mas não na prática.
O aviltamento dos Direitos Humanos, o enfraquecimento da democracia
e a deflagração de conflitos acontecem com a paralela e acelerada expulsão de
pessoas do seu local de origem.

- Mas e os outros candidatos, senhor? Os da esquerda...


- Que esquerda? Não me faça rir, my dear!! Esquerda era Hugo Chaves, Fidel Castro e os outros
moreninhos. Já derrubamos a Venezuela, estamos derrubando a Argentina e o resto não existe.
- Mas o Lula também fez acordos com setores conservadores...
- Exatamente por isso deve seguir preso. Ele é esperto, sabe fazer política. Com essas conversinhas,
ele fez negócios com a China, Rússia, África do Sul, Índia e até com o Irã. Ele aumentou o poder
aquisitivo dos escravos, promoveu programas contra a fome e, o que é pior, estava investindo em
energia nuclear, enriquecimento de urânio a baixíssimo custo, construindo submarinos e comprando
caças de guerra com direito à transferência de tecnologia! Quem ele pensa que é? Será que ele
achou que ia conseguir aparelhar o Estado para defender o petróleo? E ainda por cima criou o
BRICS junto com a corja dos chineses, russos e outros emergentes.
- Mas e o povo? O povo está do lado dele!
- Don’t be ridiculous! [Não seja ridículo!] Vocês têm a Rede Globo, a Folha, o Estadão, a Veja...
Basta um acordo com eles, com os abutres do Congresso, com tudo... O povo é fácil de manipular,
ainda mais esse povinho daí, pacífico... Tem Copa esse ano, tudo será esquecido. Mantenham o
metalúrgico insolente na cadeia!
- Yes, Sir! [Sim, senhor!] ( Nivaldo Tavares)
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 133

As tendências globais migratórias hoje têm o foco sobre os refugiados,


deslocados, aumentando os movimentos populacionais entre países. São 68,5
milhões de pessoas (ACNUR, 2017) que se movem no mundo forçadas a se
deslocarem de seus lares – inclusive dentro de seu próprio país – em razão de
perseguições, conflitos, violência, violação dos direitos humanos etc.
Destes 68,5 milhões, 85% vivem em países em desenvolvimento, 68%
são de apenas 5 países, nos quais o percentual de crianças desacompanhadas
é altíssimo. Os dados do ACNUR (2017) revelam a dimensão da maior crise
humanitária em curso desde a Segunda Guerra Mundial. Os países que mais
geraram refugiados no mundo (2017), em ordem decrescente, foram Síria,
Afeganistão, Sudão do Sul, Mianmar, Somália, Sudão, Congo, República Centro
Africana, Eritreia e Burundi. Isso equivale dizer que, a cada minuto, 31 pessoas
sofrem com deslocamentos forçados no mundo. Essa realidade não é exclusiva
de países que vivem em guerra, como é o caso da Síria, mas também integra a
realidade de países que passaram por graves violações de direitos humanos ou
conflitos armados internos, como é o caso da Colômbia, onde 7,7 milhões de
pessoas foram obrigadas a mudar de localidade por conta do conflito que se
arrastou a partir da década de 1970.
O deslocamento forçado causado por guerras, violência e perseguições
atingiu pessoas que foram obrigadas a deixar seus locais de origem por diferentes
tipos de conflito. Em um mundo conturbado, o imigrante emerge como um dos
atores sociais mais vulneráveis.
Analisando o sistema-mundo capitalista, Wallerstein (2000, p. 248) diz
que hoje, na geopolítica internacional, o imigrante revela ser o que o operário
foi no século XIX.

Se ao mesmo tempo o papel do Estado diminuir – isto servirá também para


permitir o aumento do número de migrantes – a integração econômica
desses imigrantes será limitada. Se a oposição política não conseguir refrear
a entrada, provavelmente conseguirá limitar os direitos políticos e sociais
dos imigrantes (...) Voltaremos à situação da Grã-Bretanha e da França
na primeira metade do século XIX, aquela de proletários que são classes
perigosas.

A economia mundial não está sendo capaz de absorver plenamente a massa


dessa população imigrante, passando a concentrar uma força de trabalho interna
e estrangeira excedente, ou empregada no mercado de trabalho informal, em
condições de grande precariedade. A crise econômica e o desemprego crescente
134 O Golpe de 2016

das populações permitem o crescimento da pobreza e violência. Com isso,


cresce o sentimento xenófobo nas populações nativas, especialmente dirigido
aos migrantes, junto à população trabalhadora precarizada pelas novas relações
de trabalho.
Conforme observa Sassen (2016, p.74): “(...) dinâmicas globais de pobreza
extrema, deslocamento em massa, desastres ambientais e conflitos armados
criaram níveis de expulsão social nunca vistos antes, sobretudo no Sul global”.
Esses imigrantes são vistos por Bauman (2017, p.23) como “estranhos à
nossa porta” e “personificações do colapso da ordem”. Decorrente desse contexto,
a estratégia utilizada na geopolítica tem sido:

(...) separação mútua e de manter distância, com a construção de muros


em vez de pontes, contentando-se com “câmaras de eco” à prova de som,
em vez de linhas diretas para uma comunicação sem distorções (e, tudo
considerado, lavando as mãos e manifestando indiferença sob o disfarce da
tolerância) só leva à desolação da desconfiança mútua, do estranhamento e
da exacerbação. Enganosamente reconfortantes a curto prazo (por colocarem
o desafio fora da vista), essas políticas suicidas armazenam explosivos para
uma detonação futura.

As transformações e turbulências que vêm ocorrendo no mundo são


essencialmente as ditadas pelo capital financeiro e imobiliário, gerando uma classe
trabalhadora precarizada pelas novas relações desencadeadas pelo capitalismo
neoliberal, conforme analisa Harvey (2018). Com esta situação cresce a
intolerância das populações nativas, especialmente dirigida aos imigrantes. Tem-
se que culpar alguém. “A perda de empregos tem que parar e para isso tem que se
impedir a entrada dos imigrantes”. Já que os Estados nacionais não têm mais força
para interferir nas diretrizes econômicas mundiais, passam a almejar exercer a
sua autoridade no âmbito das pessoas, fazendo da questão migratória o bastião
da soberania estatal, já que diante das finanças não há enfrentamentos. E as
políticas xenófobas contra os imigrantes emergem no contexto global.
Os emigrantes saem de seus locais de origem por condições adversas.
São migrantes ambientais, econômicos, muitos deles refugiados com temor de
perseguição, que buscam um espaço para sobreviver.
A intensificação de instabilidades políticas, de conflitos armados e a
perseguição a grupos étnicos, políticos, religiosos e culturais seguem produzindo
movimentos de refugiados, aos quais também se impõem as restrições crescentes
à entrada, a exemplo dos acontecimentos recentes na União Europeia e nos
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 135

Estados Unidos, que optam continuamente pelo fechamento de suas fronteiras,


construção de muros, deportações etc., como políticas restritivas adotadas em
relação à migração e ao refúgio.
O que se verifica no contexto das migrações são precárias condições de
vida dos que se deslocam. Os desequilíbrios incidem sobre as suas vidas em
habitações precárias e insuficientes, juntamente com o desemprego, miséria e
políticas sociais ineficazes. O espaço ocupado pelos imigrantes é de precariedade,
situação de informalidade no trabalho e ausência de moradia digna.
Atribui-se aos imigrantes todos os males que não provocaram, como o
desemprego, redução salarial e sucateamento dos serviços sociais que são, na
verdade, decorrência de uma economia globalizada que exclui cada vez mais nessa
nova fase perversa de acumulação do capital. Os que fogem são, na realidade,
produtos da desigualdade e uma reação aos seus efeitos. Em vez de se construir
pontes, hoje opta-se pela construção de muros!
O Brasil tem se consolidado, nos últimos quatro anos, como destino para
imigrantes internacionais e refugiados. Passou a ser polo de atração, visto de
fora como um país rico em oportunidades, seguro, emergente, sede da Copa e
das Olimpíadas, o que atraiu muitos imigrantes que para cá vieram à procura
de uma vida próspera e melhor, no entanto encontraram desigualdade, pobreza,
racismo, falta de trabalho e moradia precária.
O capital financeiro cria polos de atração que produzem espaços e
centralidades de atração para a população imigrante precarizada, que passa a se
incluir na sociedade de modo perverso e, por consequência, a integrar a população
nativa pobre, que já não é mais beneficiária dos programas de bem-estar social,
passando a ser alvo da lógica perversa da brutalidade do capital financeiro e
imobiliário que cerceia os Direitos Humanos.
Em 2006, a Polícia Federal tinha 45.124 registros de entrada de imigrantes
no Brasil. Em 2015 passam a ser 117.745. Representam cerca de 1% da população
nacional66. Os fluxos mais antigos são de peruanos e bolivianos, seguidos pelos
refugiados sírios e fluxos africanos de Moçambique, Angola, Congo, Gana e
Senegal, além de imigrantes de países americanos como Haiti, Colômbia e
Venezuela.
Para os imigrantes estão sempre reservadas condições precárias de inserção.
Verifica-se o constatado por Sayad (1998), quando diz que a política social

66. A Polícia Federal registra que em 2015 o Brasil abrigava cerca de 1,8 milhão de imigrantes,
o que representa menos de 1% da população total. Por outro lado, o Ministério das Relações
Exteriores estima que três milhões de brasileiros vivam no exterior, num movimento que
supera a entrada de pessoas de outros países no território brasileiro.
136 O Golpe de 2016

voltada ao imigrante é o registro da não política e, quando ela existe, oferece


programas de segunda categoria.
O imigrante encontra-se na condição de provisório definitivo, pois o espaço
da imigração, embora tenha “definido para o trabalhador imigrante um estatuto
que o instala na provisoriedade enquanto estrangeiro (...), nega-lhe todo o direito
a uma presença reconhecida como permanente” (SAYAD, 1998, p. 45).
Cabe então ao próprio imigrante buscar os seus direitos e condições para
sobreviver. Ele vai encontrar o apoio de que necessita, não nas políticas públicas
pouco efetivas, mas nas redes sociais territorializantes que o inserem no destino.
O imigrante é ainda estigmatizado, visto como incapaz e sem mérito.
Incorporando esse preconceito o imigrante torna-se dissociado, compromete a
sua condição de sujeito, que tem “direito a ter direitos” (ARENDT, 1993).

3 - A nova Lei de Migração

A nova Lei da Migração vem sendo discutida no Brasil em um longo


processo junto às representações da sociedade civil engajadas na luta para
inserir na nova lei os Direitos Humanos dos migrantes. A documentação para
o migrante é um aspecto crucial na sua vida, daí a importância de uma lei que
esteja voltada para a sua integração na sociedade de destino.
A Lei veio para adequar-se às novas realidades migratórias e ordenamentos
internacionais e tem a sua construção baseada nos Direitos Humanos, em
substituição ao Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/1980), antiga lei autoritária
que carrega a visão do imigrante perpassada pela ideologia da segurança nacional,
que o tratava como estranho, com desconfiança, e não como sujeito de direitos,
inclusive o direito de migrar.
O Estatuto do Estrangeiro entrava em conflito com a Constituição de 1988,
especificamente no art. 95, que determina: “o estrangeiro residente no Brasil goza
de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros, nos termos da Constituição e das leis”.
Há que se ressaltar que a legislação brasileira tem outras leis relacionadas
a tal questão, como a Lei de Refúgio (9474 de 22/07/1997) e a Lei do Tráfico de
Pessoas (2016), que são mais adequadas que o Estatuto do Estrangeiro. Desse
modo, os imigrantes começaram a se amparar na Lei de Refúgio para entrar no país.
Devido ao anacronismo do Estatuto do Estrangeiro, houve uma ampla
mobilização da sociedade civil no Brasil na construção da nova lei migratória,
no sentido de assegurar os Direitos Humanos dos migrantes.
Inicia-se com a criação de comissão pelo Ministério da Justiça em 2013;
participaram do processo de discussão e elaboração diversas cidades do Brasil com
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 137

o engajamento de especialistas, órgãos do governo, instituições internacionais,


parlamentares, acadêmicos, associações de migrantes, COMIGRAR (Conferência
Nacional sobre Migrações e Refúgio), Missão Paz, Instituto Migrações e Direitos
Humanos, Conectas, Cáritas, dentre outras representações e militantes da causa
migratória, envolvendo também os próprios migrantes. Uma primeira versão
desse projeto decorrente dessa ampla participação da sociedade civil passou a
abordar a migração a partir da perspectiva dos Direitos Humanos.
Entretanto, na tramitação, o anteprojeto original, fruto dessa mobilização,
foi substituído pelo projeto de lei do senador Aloysio Nunes, ex-exilado e atual
ministro das Relações Exteriores (PSDB-SP).
Quando o projeto de lei chegou para votação, predominava o espectro
da crise na política nacional e pautava-se uma conjuntura internacional de
securitização, em função do aumento dos refugiados em busca de acolhida e
fechamento de fronteiras devido ao medo do terrorismo.
Enfrentou-se ainda a xenofobia contra imigrantes e refugiados por parte de
conservadores locais que buscavam conter os avanços da nova lei, com o pedido
de veto total; consideravam que a nova Lei contribuiria para a diminuição do
controle migratório e para a vulnerabilidade na vigilância das fronteiras, abrindo
brechas para o ingresso de traficantes e terroristas.
Apesar de toda essa correlação de forças, depois de 37 anos de vigência do
antigo Estatuto do Estrangeiro, a nova Lei de Migração (13.445/2017) é aprovada,
sob forte pressão e tensão, em 24 de maio de 2017. A nova Lei substitui veículos
normativos da Lei n. 818, de 18/09/1949, do Estatuto Estrangeiro – Lei 6815/1980 e
revoga o Decreto n. 86.715, de 10 /12/1981. Entretanto, a nova Lei por si só não basta,
pois contém muitos artigos que demandam regulamentação. As suas novas regras
deveriam marcar o início de uma era de direitos, segurança jurídica, transparência
e desburocratização da política migratória para o Brasil. No entanto, a nova Lei, de
início, já se vê ameaçada na sua tramitação, haja vista que foi sancionada com 20
vetos presidenciais que comprometem os avanços discutidos e propostos, fazendo
com que seja desfigurada. Estes vetos atingem sobretudo os aspectos relacionados
aos direitos humanos, situação que passa dar um caráter policialesco à nova Lei,
comprometendo que se assegure os direitos humanos dos imigrantes na legislação.
Os vetos mais significativos atingem os povos indígenas, nega anistia aos
migrantes que se encontram em situação irregular, altera a conceituação de
“migrante”, dentre outros retrocessos em tramitação na sua regulamentação.
Os vetos, segundo Vedovato, (2018, p. 605) indicam que
Há o distanciamento da interpretação conforme o que se procurou assegurar
em relação aos Direitos Humanos. Demonstra que tais Direitos poderão não ser
138 O Golpe de 2016

o parâmetro para a norma regulamentadora, importante num dispositivo que


contém vários artigos que exigem regulamentação. A ausência do parâmetro de
Direitos Humanos poderá contaminar a regulamentação da lei comprometendo
a proteção ao migrante, fazendo o cenário retroagir a um contexto do migrante
como desafio à segurança nacional.
Neste sentido, os dispositivos que exigem regulamentação na Lei, conforme
Vedovato (2018, p. 605), referem-se aos: 1. Vistos humanitários; 2. Migrantes
fronteiriços; 3. Concessão e manutenção de asilo; 4. Proteção aos apátridas;
5. Cumprimento de pena e transferências de presos; 6. Devido processo legal
(repatriação, expulsão e infrações administrativas); 7. Prazos e procedimentos.
Além dos vetos que já alteram o teor original da Lei, assegurar a presença de
uma visão de Direitos Humanos torna-se indispensável na sua regulamentação,
no sentido de assegurar a proteção ao migrante.
Analisamos a seguir alguns dos vetos que implicam à configuração de uma
lei diferente do que se pretendia na sua implementação, no projeto original:

3.1 - Vetos à Nova Lei de Migração

3.1.1 - Conceito de migrante

No projeto original, no Artigo 1º o conceito de migrante estava assim


definido: “pessoa que se desloca de país ou região geográfica ao território de outro
país ou região geográfica, incluindo o imigrante, o emigrante, o residente fronteiriço e
o apátrida”. Pretendia-se trazer uma nova noção de migrante para substituir a
noção de estrangeiro, permitindo um conceito mais amplo de mobilidade
O veto presidencial do governo golpista na lei sancionada conta apenas com
as definições de imigrante, emigrante, residente fronteiriço, visitante e apátrida.
O veto expressa a persistência em querer situar o migrante mais próximo do
estranho e do estrangeiro, em vez de incorporar a nova percepção proposta sobre
o mesmo como um sujeito em mobilidade no mundo contemporâneo.

3.1.2 - Direito aos povos originários e das populações tradicionais

Um outro veto ao projeto original refere-se ao artigo 1º § 2º, que garantia


o direito aos povos originários e às populações tradicionais de livre circulação
em terras tradicionalmente ocupadas.
O veto expressa a não compreensão dos modos de vida das populações
indígenas e a persistência lógica da segurança nacional e da tutela contra essas
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 139

populações. O veto também é contrário ao estabelecido na Constituição, artigo


231, que trata dos direitos dos povos indígenas, e também é contrário às normas
internacionais que estabelecem e regulam a livre circulação de populações
tradicionais por meio de fronteiras. A ONG Conectas diz em relação a esse
veto: “vemos mais uma vez o governo Temer atacando frontalmente o direito
das comunidades de usufruir de seus territórios tradicionais. É lamentável que
o Executivo tenha cedido a pressões escusas e infundadas”.

3.1.3 – Veto em relação ao trabalho

Um outro veto ao projeto original refere-se aos parágrafos §§ 2º e


3º do art. 4º e aliínea do inciso II do art. 30 § 2, que diz: “ao imigrante é
permitido exercer cargo, emprego e função pública, conforme definido em
edital, excetuados aqueles reservados para brasileiros natos, nos termos da
Constituição Federal”.
Neste veto, embora tenha sido reconhecido o direito de associação e de
filiação sindical, o que é uma conquista importante para os migrantes, não lhes
está sendo permitido o exercício de cargo ou função pública, o que é considerada
uma restrição ao acesso à cidadania para os imigrantes.

3.1.4- Veto da Anistia

Outro veto ao projeto original refere-se ao Artigo 118 que tratava da


anistia aos imigrantes que tivessem ingressado no território nacional até julho
de 2016.
No entanto, houve um veto de caráter antidemocrático, pois este é um
procedimento usual adotado no momento de implantação de uma lei, o de
conceder anistia àqueles que já residiam no país, para possibilitar a regularização
de imigrantes não documentados. Para remediar o veto presidencial do governo
golpista e tentar garantir a anistia aos imigrantes, foi encaminhado por Orlando
Silva (Deputado Federal/PCdoB-SP) o PL7876/2017, em tramitação.

3.2 – Avanços da nova Lei de Migração

No entanto, não se pode deixar de considerar alguns avanços conquistados,


que precisam ser preservados, apesar dos vetos presidenciais do governo golpista.
São considerados conquistas da nova Lei, no contexto da sua tramitação, segundo
Assis (2018, p. 619), os seguintes aspectos:
140 O Golpe de 2016

A abordagem da migração a partir da noção de direitos humanos; a não


criminalização das migrações e o combate à xenofobia; a nova lei facilitou
o processo de obtenção de documentos para legalizar a permanência do
imigrante no Brasil, bem como o acesso ao mercado de trabalho regular
e serviços públicos; os imigrantes não podem mais ser presos por estarem
de modo irregular no país; permite aos imigrantes que se manifestem
politicamente, para fins pacíficos, associando-se a reuniões políticas e
sindicatos. Como se trata de uma lei de migração, a lei aborda também os
brasileiros que vivem no exterior, essa é uma conquista importante para
os brasileiros que vivem fora do pais. A nova lei é muito clara no repúdio
expresso à discriminação e à xenofobia. A política de vistos humanitários foi
institucionalizada, dessa forma se consolida o visto humanitário (diferente
de refúgio), que atualmente só é dado de forma extraordinária a haitianos
e venezuelanos.
Entretanto, os avanços obtidos e propostos se veem ameaçados na tramitação
da Lei, principalmente no que se refere ao seu Decreto de regulamentação.

3.3 - Decreto 9.199 de 20/11/2017 que regulamenta a Nova Lei de Migração


de 24/5/2017

Apesar de o intuito da Lei de Migração ratificar a Constituição Brasileira de


1988, o Decreto 9.199 de 20/11/2017, que regulamenta a Nova Lei de Migração
13.445 de 24/05/2017, criou restrições à garantia dos mesmos direitos a nacionais
brasileiros e imigrantes, além de ter aspectos no Decreto contrários à própria lei.
O Decreto, assinado pelo presidente Michel Temer, desconsidera críticas e
recomendações da sociedade civil e desvirtua as conquistas da Lei de Migração.
Além de manter termos como “imigrante clandestino”, o decreto prevê em
seu Art. 211 a possibilidade de prisão para migrantes em situação irregular
por solicitação da Polícia Federal. Essa medida contraria frontalmente a Lei de
Migração, que determina que “ninguém será privado de sua liberdade por razões
migratórias” (Art. 123). Para Asano, assistente da Conectas, “o decreto coloca
abaixo pontos amplamente negociados e aprovados de modo suprapartidário e
participativo pelo Congresso”. Ainda diz: “estamos diante de um governo que não
entende que um ato normativo como um decreto não pode contrariar uma lei”.
O Decreto também torna mais rígidas as regras para visto de trabalho
e cria uma seletividade que contraria o princípio de acolhimento igualitário
aos migrantes. Se, por um lado, a Lei de Migração previa visto temporário ao
imigrante que viesse ao Brasil com o intuito de estabelecer residência, por outro
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 141

lado o decreto determina condicionantes que dificultam o acesso a esse direito,


como a comprovação da oferta de trabalho no país ou alguns tipos específicos
de trabalho.
O Decreto foi implementado sem incorporar nenhuma recomendação da
sociedade. A consulta pública aberta foi mais um monólogo do governo do que
uma possibilidade de participação, pois as várias propostas apresentadas, tanto
na plataforma online quanto na audiência pública, não foram acatadas. Segundo
Asano, assessora da Conectas, a sociedade civil deve se organizar para questionar
a legalidade de diversos pontos do Decreto e trabalhar para a regulamentação
de partes importantes da Lei, como o visto humanitário. Nesse sentido, a
sociedade civil, por meio da representação de 47 entidades especialistas no tema,
questionando o Decreto e defendendo a necessidade da participação social no
processo de regulamentação da nova Lei de Migração, assinou uma “Carta aberta
sobre o processo de participação social na regulamentação da Lei 13.455/17 e pontos
preocupantes na minuta do decreto da nova Lei de Migração”. A Carta67 resgata
a  participação e contribuição da sociedade civil no processo de construção da
Lei de Migração, que é uma conquista fruto de anos de trabalho e articulação
das organizações da sociedade civil e coletivos de migrantes, com o ambiente
acadêmico, organismos internacionais, órgãos governamentais e parlamentares,
inspirada nas reformas pioneiras e no desenho de uma política de Estado para
as migrações que abandone o paradigma da segurança nacional e promova uma
série de princípios de Direitos Humanos, adequando-se à Constituição Federal
de 1988, orientando-se pelo princípio da igualdade e não pela discriminação.
Tal caráter é essencial para a salvaguarda dos Direitos Humanos, patamar básico
para o respeito à dignidade de toda a pessoa humana. Assim sendo, providências
devem ser tomadas contra os trechos do decreto que contrariam a nova Lei.
A representação da sociedade diz em relação ao Decreto: “ manteremos uma
vigília incansável por uma regulamentação coerente dos trechos ainda não
contemplados pelo Decreto”.

3.3 – Um ano da nova Lei de Migração no governo ilegítimo

Neste primeiro ano de vigência da nova Lei de Migração que pretendia


avançar na pauta dos Direitos Humanos dos migrantes, verifica-se a
implementação de medidas retrógradas do governo ilegítimo, gerando intensa

67. Ver carta pública “Carta aberta sobre o processo de participação social na regulamentação da
Lei 13.455/17 e pontos preocupantes na minuta do decreto da nova Lei de Migração”.
142 O Golpe de 2016

reação e a posterior correlação de forças do governo ilegítimo versus sociedade


civil, no sentido de barrar a ação governamental de criminalização dos migrantes.
A Presidência da República vem atuando no sentido da militarização no
atendimento aos migrantes.
Militarismo é uma lógica de nacionalismo, não de integração. Essas diretrizes
seguidas estão indo na contramão da Nova Lei de Migração (13.445/2017), que
preconiza a substituição do paradigma da segurança nacional pela lógica dos
Direitos Humanos.
Ressalta-se ainda, com um ano de implementação da Nova Lei que
a primeira atuação do governo já na vigência da Lei, com os imigrantes
venezuelanos, demonstra a militarização da ação humanitária brasileira junto
aos abrigos de imigrantes, como o Pintolândia, existente desde 2016, voltado
para os imigrantes indígenas Warao e E’Nñepa, em Boa Vista, Roraima. A ação
governamental vem preocupando os movimentos em prol dos Direitos Humanos
aos migrantes. Antes os abrigos eram administrados por entidades e organizações
da sociedade civil. O Exército brasileiro assumiu a condução da ação humanitária,
o que é incompatível, pois funciona sob outra lógica sistemática de atuação,
conforme pronunciamento da irmã Valdizia Carvalho, da Pastoral dos Migrantes
(2018). Os indígenas estão submetidos a uma vigilância extrema, intimidados
por funcionários sem preparo para lidar com indígenas e estrangeiros, o que
vai de encontro ao proposto pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos
(CNDH)68, conforme divulgado no “Relatório das Violações de Direitos contra
Imigrantes Venezuelanos no Brasil, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos”,
em missão realizada no mês de janeiro de 2018, que diz:

“O CNDH vê com preocupação a militarização da resposta humanitária


ao fluxo de venezuelanos. O Decreto nº 9.286/2018 define o Ministério
da Defesa como Secretaria Executiva do “Comitê Federal de Assistência
Emergencial para acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade
decorrente de fluxo migratório provocado por crise humanitária” (…),
recomenda que o Presidente da República: a) Reavalie sua decisão pela
militarização da resposta humanitária à chegada de venezuelanos, posto que
ela vai na contramão do que a Nova Lei de Migração (Lei nº 13.445/17)
e preconiza a substituição do paradigma da segurança nacional pela lógica

68. O CNDH é composto por representantes do Ministério Público, Defensoria Pública da


União e outros órgãos públicos, além de organizações da sociedade civil que apuram as
condutas utilizadas contrárias aos direitos humanos.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 143

dos direitos humanos. A adequada acolhida de migrantes envolve aspectos


de documentação, abrigamento e acesso a direitos, competências que
fogem ao escopo constitucional das funções das Forças Armadas; b) Preste
esclarecimento sobre as funções atuais do Exército dentro dos abrigos e que
a gestão destes locais seja transferida o quanto antes para órgãos públicos
civis responsáveis pela assistência social”. (p. 36, 37)

O relatório, explicitado na nota pública, constata uma total desarticulação


entre os governos municipal, estadual e federal, com ausência de diálogo e
acusações recíprocas.
Em relação à ação humanitária para com os venezuelanos, o relatório da
CNDH (2018) destaca ainda que o atendimento deveria estar ao cargo dos
Ministérios de Justiça, Desenvolvimento Social e Saúde e não sob o encargo
do Ministério da Defesa, com a Polícia Federal – Medida Provisória 820 de
15/02/2018, limitando no Brasil o direito humano do migrante e refugiado de ir
e vir, criando uma barreira sanitária na fronteira.
Registra-se, ainda, que essas ações do governo ilegítimo na implementação
da nova Lei de Migração no Brasil estão em consonância com políticas
conservadoras, direitistas e discriminatórias, desencadeadas internacionalmente,
como a “política de tolerância zero” dos EUA com imigrantes ilegais que cruzam
a fronteira dos EUA e México, além das desenvolvidas em outros países,
como Hungria, Itália, Reino Unido (Brexit), Turquia e Grécia, que lideram a
criminalização da migração.

Algumas considerações

Migrar é um direito humano!


Apesar dos retrocessos na nova Lei de Migração implementados pelo
governo golpista, todo o processo de sua criação, liderado pelos movimentos
sociais dos migrantes e de entidades da sociedade civil organizadas para abolir
o Estatuto do Estrangeiro e assegurar os Direitos Humanos aos migrantes, não
foi esquecido.
Continua viva na sociedade civil a mobilização em prol da luta para
assegurar os DIREITOS HUMANOS dos MIGRANTES, que têm “DIREITO
A TER DIREITOS”. Nenhum governo ilegítimo apagará esse compromisso.
“VIVEREMOS69”.

69. A música “Viverei”, de Ana Cañas (2018), expressa este processo: “Mesmo que me falte o
144 O Golpe de 2016

Referências

ALVES, Giovanni. “Pequena enciclopédia da miséria brasileira”. In: ALVES,


Giovanni et al. (org.) Enciclopédia do golpe I. Bauru: Canal 6, 2017.
ANUNCIAÇÃO, Clodoaldo Silva. “A necessidade de reestruturar as agendas
dos Ministérios Públicos Estaduais para dar efetividade à Nova Lei de Migração”.
In: BAENINGER, Rosana et al. (org) Migrações sul-sul. Campinas, SP: Núcleo
de Estudos de População ―Elza Berquó‖ – Nepo/Unicamp, 2018 (2ª.edição).
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
ASSIS, Gláucia de Oliveira. “Nova Lei de Migração no Brasil: avanços e desafios”.
In: BAENINGER, Rosana et al. (org.) Migrações sul-sul. Campinas, SP: Núcleo
de Estudos de População ―Elza Berquó‖ – Nepo/Unicamp, 2018 (2ª edição).
BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017, p.23
BERCOVICI, Gilberto. “A política recente do petróleo no Brasil”. In: ALVES,
Giovanni et al. (org.) Enciclopédia do golpe I. Bauru: Canal 6, 2017.
Carta aberta sobre o processo de participação social na regulamentação da Lei
13.455/17 e pontos preocupantes na minuta do decreto da nova Lei de Migração.
http://desacato.info/militarizacao-dos–abrigos-para-imigrantes-indigenas-em-
roraima-preocupa-entidades-e-organizacoes-da-sociedade-civil/
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FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.
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ar/ Não me calarei/ Mesmo que tirem o chão/ Em pé ainda estarei/ A luta é coração que sangra/
Bate forte a esperança/ De um povo que quer o seu direito/ Todo respeito/ E eu só lhe tenho
amor/ Podem me julgar além da lei/ Podem me prender, eu andarei/ Podem inventar o que nem
sei/ Podem me matar, eu viverei/ A igualdade é uma ideia/ Que nunca se aprisiona/ Tem a veia
aberta/ Da gente que sonha/ A liberdade é a glória/ Da nossa imensa voz/ Guarda na memória/
É a história/ Eles e nós...”
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 145

HARVEY, David As cidades e a alienação universal. Disponível em: www.


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O Golpe de 2016 e a contrarreforma trabalhista

Pedro Fassoni Arruda70

1. O princípio da “liberdade contratual” nas relações entre capital e trabalho

Todos os sindicatos patronais do Brasil71 apoiaram o Golpe de 2016, da


mesma maneira que apoiaram o golpe de 1964. De fato, a burguesia brasileira,
que sempre atuou em sinergia com os oligopólios midiáticos (encarados aqui
como aparelhos privados de hegemonia) e o capital estrangeiro, foi uma ferrenha
opositora de todos os governos trabalhistas do Brasil. Ao longo da história, essa
mesma burguesia moveu campanhas sistemáticas de desestabilização e tentativas
– algumas consumadas – de deposição de presidentes que contrariaram, ainda
que minimamente, seus interesses de classe.
Nessa luta contra os governos de esquerda ou de centro-esquerda (Getúlio
Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Lula da Silva e Dilma Rousseff), um
denominador comum era a crítica à intervenção estatal no domínio econômico,
sobretudo nas relações entre capital e trabalho. Reivindicando o princípio da
“liberdade contratual”, a burguesia brasileira sempre manifestou repúdio à
legislação trabalhista, alegando que essa “intromissão” do Estado representava

70. Advogado. Mestre e doutor em Ciências Sociais. Professor do Departamento de Política da


PUC/SP.
71. Os que mais se envolveram na trama golpista foram: FIESP (Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo), CNI (Confederação Nacional da Indústria), FENABAN (Federação
Nacional dos Bancos) e CNA (Confederação Nacional da Agricultura). Também
participaram diversas outras associações comerciais e de representantes do latifúndio, da
indústria, do capital bancário e financeiro e da burguesia de serviços.
148 O Golpe de 2016

um verdadeiro atentado ao direito de propriedade, que deveria – segundo tal


entendimento – ser ilimitado.
A ideologia burguesa apresenta trabalhadores assalariados e capitalistas
como indivíduos livres, dotados de autonomia de vontade e portadores,
enquanto cidadãos de um Estado “neutro e imparcial”, dos mesmos direitos e
obrigações. Mas afinal, o que existe por trás desse discurso? Marx forneceu a
chave explicativa, que revela as entranhas da relação entre capital e trabalho
na sociedade burguesa:

Dinheiro e mercadoria, desde o princípio, são tão pouco capital quanto os


meios de produção e de subsistência. Eles requerem a sua transformação em
capital. Mas essa transformação mesma só pode realizar-se em determinadas
circunstâncias, que se reduzem ao seguinte: duas espécies bem diferentes de
possuidores de mercadorias têm de defrontar-se e entrar em contato; de um
lado, possuidores de dinheiro, meios de produção e meios de subsistência,
que se propõem a valorizar a soma-valor que possuem mediante compra de
força de trabalho alheia; do outro, trabalhadores livres, vendedores da própria
força de trabalho e, portanto, vendedores de trabalho. Trabalhadores livres
no duplo sentido, porque não pertencem diretamente aos meios de produção,
como os escravos, os servos etc., nem os meios de produção lhe pertencem,
como, por exemplo, o camponês economicamente autônomo etc., estando,
pelo contrário, livres, soltos e desprovidos deles. Com essa polarização do
mercado estão dadas as condições fundamentais da produção capitalista. A
relação capital-trabalho pressupõe a separação entre os trabalhadores e a
propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção
capitalista se apoie sobre seus próprios pés, não apenas conserva aquela
separação, mas a reproduz em escala sempre crescente (MARX, 1984, p. 262).

Nestes termos, a “liberdade” dos membros da classe trabalhadora, no


contexto da sociedade burguesa, diz respeito à inexistência de violência física
como instrumento de apropriação do sobretrabalho. Mas como bem explicou
Décio Saes, as liberdades civis de que a classe trabalhadora desfruta (como a
liberdade de celebrar contratos, o direito de ir e vir, de manifestar a sua vontade
e de reivindicar a propriedade) assumem uma aparência universalista e igualitária
na formulação estatal. Trata-se de uma igualdade meramente jurídica, que entra
em flagrante contradição com as profundas desigualdades socioeconômicas. A
questão é que o contrato celebrado entre capitalistas e assalariados não é uma
relação de equivalência, e sim uma relação entre possuidores e despossuídos,
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 149

entre os membros de uma classe dominante e os membros da classe dominada,


ou seja, explorada (SAES, 2001).
O princípio da “liberdade contratual”, assim como as liberdades políticas
(sufrágio universal, igualdade perante a lei, liberdade de manifestação do
pensamento etc.), parte de falsas premissas. A emancipação política não torna
livre o cidadão: “O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente
no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se
liberte realmente, o fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o
homem seja um homem livre” (MARX, 1991, p. 23). Mas a questão é que a
ideologia burguesa, que representa realmente algo sem representar algo real,
produz efeitos reais: ao fazer com que os integrantes das classes subalternas
internalizem tal discurso, as ideias dominantes acabam legitimando as relações de
poder, possibilitando que a burguesia consiga impor os seus interesses particulares
sobre o conjunto da sociedade.
No caso específico da “liberdade contratual”, o que constatamos é a
ausência de freios para a exploração desenfreada da força de trabalho pelo capital.
Esse princípio foi a regra nas relações de trabalho nos primórdios da primeira
Revolução Industrial inglesa. O assim chamado “capitalismo manchesteriano”,
livre de regras, impunha aos trabalhadores e às trabalhadoras as mais terríveis
condições de vida e de trabalho: jornadas extenuantes que chegavam a 16 horas
diárias, sem descanso semanal ou férias, salários miseráveis, ausência de qualquer
regulamentação do trabalho de menores ou das mulheres, não reconhecimento
da liberdade de associação sindical ou do direito de greve etc. Os trabalhadores
eram livres, mas livres de qualquer propriedade...
Friedrich Engels escreveu em 1845 uma obra-prima sobre o assunto, A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra. No capítulo sobre “A atitude da
burguesia em face do proletariado”, Engels descreveu uma situação que encontra
paralelos na atuação da burguesia brasileira neste começo de século XXI. O
neoliberalismo, enquanto ideologia que busca resgatar alguns dos princípios
do liberalismo clássico, implica não a “modernização” das relações de trabalho,
como alegam as diversas frações da burguesia e seus porta-vozes muito bem
remunerados, e sim um tremendo retrocesso. Engels já constatou, ainda na
primeira metade do século XIX, que

A livre concorrência não quer limites, nem controle do Estado; todo o


Estado a estorva, o seu maior desejo seria existir num regime completamente
desprovido de Estado, onde cada um poderia explorar alegremente o próximo,
como na sociedade do nosso amigo Stirner, por exemplo. Mas como a
150 O Golpe de 2016

burguesia não pode dispensar o Estado, pois necessita dele para conter o
proletariado, utiliza o primeiro contra o segundo e procura manter o Estado
o mais afastado possível naquilo que lhe diz respeito (ENGELS, 1985, p. 313).

Para “manter o Estado o mais afastado possível naquilo que lhe diz respeito”,
a burguesia repudiou o reconhecimento de quaisquer direitos para a classe
trabalhadora, como a regulamentação da jornada de trabalho, a fixação de
um salário mínimo legal ou a obrigação de garantir condições de segurança ou
higiene no ambiente da fábrica. A legislação trabalhista – que avançou à medida
que o liberalismo manchesteriano perdia espaço para o Estado-Providência –
representou uma conquista importante para a classe trabalhadora, ainda que
numa perspectiva reformista que não chegou a abalar os alicerces da economia
capitalista. E foi somente no final da Segunda Guerra Mundial, com o esforço
de reconstrução das economias destruídas pelo conflito, que o assim chamado
Welfare State tornou-se uma realidade no conjunto dos países capitalistas centrais.
Mas não se deve jamais ignorar que as leis trabalhistas não foram o resultado de
uma outorga generosa do Estado burguês, e sim das lutas do movimento operário
em todo o mundo.
Na sua obra Da grande noite à alternativa – o movimento operário europeu
em crise – o sociólogo e filósofo francês Alain Bihr analisou a relação entre o
esgotamento do paradigma fordista de acumulação e o desencadeamento de
uma grande ofensiva dos representantes do capital para desmantelar, a partir do
começo da década de 1980, o Estado-Providência e as políticas sociais que lhe
deram legitimidade. O propósito dos capitalistas, ao romperem com o chamado
compromisso fordista, era fazer os trabalhadores pagarem a conta da crise (uma
crise até certo ponto forjada).72 Constatando que “o medo do desemprego
permite restabelecer progressivamente a disciplina do trabalho”, Bihr mostrou
que o abandono das políticas anticíclicas de inspiração keynesiana (sobretudo
o compromisso com o pleno emprego) foi a saída encontrada pelos capitalistas
para recompor as suas taxas de lucro, que tinham sido reduzidas drasticamente
a partir do primeiro choque do petróleo em 1973 (BIHR, 1999, pp. 75-80).
Os sindicatos de trabalhadores não conseguiram impedir tais retrocessos,
por não apresentarem uma alternativa diferente da antiga “aliança” com o
capital. Bihr observou que “a defesa dos benefícios e direitos adquiridos leva,
com frequência, a defender apenas aqueles que deles se beneficiam, praticamente

72. Como foi o caso do aumento deliberado do desemprego no Reino Unido durante o governo
Thatcher, como forma de enfraquecer o poder dos sindicatos de trabalhadores.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 151

abandonando aqueles que não se beneficiaram ou se beneficiaram pouco e,


sobretudo, aqueles que não se beneficiam mais”. E foi além: “Enfim, e acima
de tudo, essa estratégia simplesmente esquece que, para elaborar, ampliar ou
manter um compromisso, é preciso haver pelo menos dois interessados, e que
atualmente a classe capitalista não quer mais esse compromisso porque ela não
pode mais pagar seu preço” (id. ibid, pp. 75-80).
Essa luta de classes “de cima para baixo” foi reconhecida até mesmo por
um dos homens mais ricos do mundo, o megainvestidor e especulador Warren
Buffett. O bilionário – paradoxalmente, um defensor da tributação progressiva
e dos impostos sobre grandes fortunas – afirmou que a tendência de redução
dos impostos para os ricos é um componente da luta de classes travada nas três
últimas décadas. Em entrevista concedida à rede de televisão CNN em 2011,
Buffett afirmou que “na verdade aconteceu uma guerra de classes nos últimos
20 anos e minha classe venceu. Nossas alíquotas de impostos foram reduzidas
drasticamente”.73 Importante levar em consideração que essas mudanças
tributárias estão diretamente identificadas com o receituário neoliberal e
tiveram como consequência o aumento das desigualdades socioeconômicas em
praticamente todos os países que a adotaram.
Essa ofensiva do capital sobre o trabalho foi consagrada com as vitórias
eleitorais de Margaret Thatcher no Reino Unido em 1979 e de Ronald Reagan
nos EUA em 1980. A defesa do Estado mínimo, a propagação da ideologia
meritocrática, a tentativa de deslegitimar os sindicatos de trabalhadores, o ajuste
fiscal “duro” e o ataque aos direitos sociais foram definidos como prioridades.
A eliminação de direitos foi justificada como sinônimo de “modernidade”, e a
proteção do mercado de trabalho como sinônimo de “atraso” e “obstáculo” à
retomada do crescimento econômico, que restringiria até mesmo a liberdade
humana. As teorias neoliberais de Milton Friedman e de F. A. Hayek foram
ganhando cada vez mais prestígio entre os governos de direita, e avançaram
ainda mais rapidamente após a queda do Muro de Berlim e o fim das experiências
socialistas na URSS e no Leste Europeu.

73. “Actually, there’s been class warfare going on for the last 20 years, and my class has won.
We’re the ones that have gotten our tax rates reduced dramatically”. Disponível em https://
www.washingtonpost.com/blogs/plum-line/post/theres-been-class-warfare-for-the-last-20-
years-and-my-class-has-won/2011/03/03/gIQApaFbAL_blog.html?noredirect=on&utm_
term=.696a90dce85f
152 O Golpe de 2016

2. Neoliberalismo, o Golpe de 2016 e a contrarreforma trabalhista

O direito trabalhista tem como fundamento o “princípio da proteção do


hipossuficiente”, que não reconhece a liberdade contratual como ilimitada.
Assim, patrões e empregados só podem negociar as condições do contrato dentro
de certos limites, definidos em lei. Afinal, na luta puramente econômica entre capital
e trabalho (como no capitalismo manchesteriano), o primeiro conta com a garantia
do monopólio da propriedade e possui um poder de barganha imensamente
superior. Os trabalhadores não possuem qualquer outra mercadoria além da sua
própria força de trabalho. Neste contexto, a aplicação do princípio da proteção ao
hipossuficiente é uma forma de reconhecimento da desigualdade socioeconômica
existente nas relações de trabalho, que deve ser contrabalanceada por uma
desigualdade jurídica que forneça alguma garantia aos trabalhadores. A fixação
de limites legais para a duração da jornada e o pagamento de uma remuneração
que não pode ser inferior ao mínimo definido em lei são exemplos de obrigações
que os capitalistas devem respeitar, e às quais os próprios trabalhadores não
podem renunciar.
Os apontamentos encontrados nos manuais de Direito do Trabalho, em
relação à desigualdade entre patrões e empregados, são parecidos com aqueles
já comentados por Marx e Engels. Mas as soluções são bem diferentes. Os
direitos da classe trabalhadora na sociedade capitalista foram reconhecidos numa
perspectiva reformista (não revolucionária), que mantém intactos os pilares da
reprodução ampliada do capital. No caso brasileiro, a CLT foi outorgada em 1943
(ditadura do Estado Novo) e apresentada por Getúlio Vargas e seus ideólogos
numa perspectiva de tutela da classe trabalhadora. Na “Exposição de motivos”
da CLT, o então ministro do Trabalho Alexandre Marcondes Filho afirmou: “o
contrato individual do trabalho pressupõe a regulamentação legal de tutela do
empregado, não lhe podendo ser adversa”. Para não deixar margem a dúvidas
que o legislado deveria prevalecer sobre o negociado (exatamente o contrário
do que propõe o governo Temer), o ministro completou:

Em relação aos contratos de trabalho, cumpre esclarecer que a precedência das


“normas” de tutela sobre os “contratos” acentuou que a ordem institucional
ou estatutária prevalece sobre a concepção contratualista (...). A análise do
conteúdo da nossa legislação social provava exuberantemente a primazia do
caráter institucional sobre o efeito do contrato, restrito este à objetivação do
ajuste, à determinação do salário e à estipulação da natureza dos serviços e
isso mesmo dentro de standards e sob condições preestabelecidas na lei (...).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 153

Ressaltar essa expressão peculiar constituiria certamente uma conformação


com a realidade e com a filosofia do novo Direito, justificandose assim a
ênfase inicial atribuída à enumeração das normas de proteção ao trabalho,
para somente em seguida [destacado por mim, PFA] ser referido o contrato
individual (BRASIL, 1943).

Mas o fato é que a burguesia brasileira jamais engoliu a CLT. O próprio


Getúlio Vargas teve dificuldade em convencer empresários industriais, banqueiros
e comerciantes acerca da necessidade de celebrar algum tipo de aliança com
a classe trabalhadora. Em 1935, o presidente Vargas promoveu um jantar com
empresários industriais do Rio de Janeiro (então capital federal) para lhes
apresentar uma proposta: que eles concordassem em reconhecer alguns direitos
aos trabalhadores, visando cooptá-los para uma aliança de classes e assim
construir uma grande frente na luta contra a “ameaça comunista”. Esse episódio,
bastante conhecido pelos historiadores do período, ficou marcado pela recusa
dos empresários à proposta e principalmente pelo desabafo do então presidente
aos seus interlocutores mais próximos: “Eu estou tentando salvar esses burgueses
burros e eles não entendem”. Não foi à toa que Fernando Henrique Cardoso,
algumas décadas depois, pronunciou um discurso antes de ser empossado como
presidente da República e prometeu enterrar definitivamente o legado da Era
Vargas – que “retarda o avanço da sociedade com seu modelo de desenvolvimento
autárquico e ao seu Estado intervencionista” (CARDOSO, 1995). A mesma
burguesia que conspirou contra Getúlio até a sua morte foi a que aplaudiu com
entusiasmo as iniciativas de FHC no terreno da flexibilização trabalhista...
Os alvos do governo FHC, com apoio da direita mais conservadora
dentro e fora do Congresso Nacional, eram a CLT e a Constituição de 1988.
O neoliberalismo avançou com força nos seus oito anos de governo: foram
aprovadas emendas à Constituição que quebraram o monopólio estatal em
setores estratégicos (como petróleo e telecomunicações), aprofundou-se a
abertura comercial iniciada no governo Collor, privatizaram-se empresas estatais,
foi realizada uma contrarreforma da Previdência e foram concedidos inúmeros
privilégios à burguesia brasileira. No entanto, FHC não conseguiu realizar
a reforma trabalhista por falta de apoio de sua própria base de sustentação
parlamentar. Até mesmo o então deputado federal Michel Temer votou à época
(dezembro de 2001) contra as mudanças na CLT propostas pelo governo.
Os 13 anos de governos petistas (2003-2016) representaram uma mudança
na política social. Embora Lula e Dilma tenham mantido o tripé de sustentação
da macroeconomia (câmbio flutuante, superávit primário e metas inflacionárias),
154 O Golpe de 2016

na tentativa de tranquilizar o “mercado” e mostrar credibilidade aos investidores


locais e estrangeiros, o fato é que não houve nenhuma grande mudança no
campo da legislação trabalhista. Nos oito anos de governo Lula, as medidas
anticíclicas de ativação do mercado consumidor interno, combinadas com o
boom das commodities, promoveram o crescimento da economia acima da média
histórica e foi possível garantir um jogo de “ganha-ganha”, favorecendo tanto a
classe trabalhadora quanto as diversas frações da burguesia brasileira.
Mas como sabemos, os governos petistas não promoveram nenhuma reforma
estrutural. Com o esgotamento daquele ciclo de acumulação, aumentaram as
pressões do grande capital sobre o governo Dilma: a burguesia brasileira passou
a exigir que a conta da crise fosse paga pela classe trabalhadora, na forma de
um ajuste fiscal duro, reforma da Previdência, flexibilização trabalhista, corte de
investimentos em saúde e educação etc. Além da crise econômica, a presidenta
Dilma Rousseff enfrentou muitas dificuldades dentro do Congresso Nacional,
especialmente no seu segundo mandato. Como bem apontou um estudo do
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap, 2014), houve uma
mudança na correlação de forças dentro do Congresso como resultado das eleições
em 2014, com um recuo das bancadas consideradas de esquerda e progressistas
e um considerável crescimento das bancadas de direita e conservadoras. O
afastamento do PMDB foi sendo gradativamente consumado ao longo de
2015, com o anúncio do rompimento de Eduardo Cunha (então presidente
da Câmara dos Deputados) com o governo, em julho, com a apresentação do
documento “Uma ponte para o futuro”, em outubro, e o acolhimento do pedido
de impeachment em dezembro.
O afastamento de Dilma Rousseff representou também a eliminação de um
obstáculo à implantação da contrarreforma trabalhista:

Ronaldo Nogueira, ministro do Trabalho nomeado por Michel Temer, declarou


no começo de setembro de 2016 que até o final do ano o governo encaminharia
ao Congresso a sua proposta de reforma trabalhista. Entre as propostas
defendidas pelo ministro, foi incluída a flexibilização da jornada de trabalho,
que poderia atingir até 12 horas diárias. Essa proposta, feita em nome do próprio
governo Temer, já vinha sendo abertamente defendida pelos dirigentes de
associações patronais: em julho, o presidente da CNI (Confederação Nacional
da Indústria), Robson Braga de Andrade, teve um encontro com o presidente
Michel Temer (que ainda era interino, pois Dilma ainda não tinha sido
condenada pelo Senado), e após o encontro passou a defender publicamente a
jornada de até 12 horas diárias e 80 horas semanais (ARRUDA, 2016, p. 163).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 155

Dirigentes de outros sindicatos patronais uniram-se em torno dessas


propostas. De acordo com Paulo Skaf, presidente da FIESP, o país já não poderia
mais aceitar uma legislação “completamente ultrapassada, feita há 70 anos”. A
flexibilização das regras, de acordo com ele, representa um grande passo rumo
à “modernidade”.74 Dirigentes da FecomércioSP (Federação do Comércio de
Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo) e da Fenaban (Federação
Nacional dos Bancos) realizaram um seminário para discutir a “segurança
jurídica” proporcionada pelas novas regras trabalhistas, que foram muito
elogiadas.75 Benjamin Steinbruch, vice-presidente da FIESP e diretor-presidente
da Companhia Siderúrgica Nacional, chegou a questionar até mesmo o direito
a um horário de refeição para os trabalhadores:

Não precisa uma hora do almoço (…). Você vai nos Estados Unidos, você vê
o cara almoçando, comendo o sanduíche com a mão esquerda, e operando a
máquina com a direita. Tem 15 minutos para o almoço, entendeu? Por que
a lei obriga que tenha que ter esse tempo?76

Com forte adesão dentro do Congresso e também de praticamente todos


os sindicatos patronais, a contrarreforma trabalhista apresentada pelo governo
trazia as seguintes mudanças:
Mudança nas regras de negociação: antes, as alterações nas cláusulas do
contrato só poderiam ser feitas se garantissem aos trabalhadores mais direitos do
que aqueles já previstos em lei. A mudança (na verdade, um enorme retrocesso)
foi introduzida no artigo 611-A da CLT, que autoriza a restrição ou até mesmo
a supressão de algumas garantias para os trabalhadores. Assim, as convenções
e acordos coletivos de trabalho têm prevalência sobre a lei nos seguintes casos:
jornada de trabalho, banco de horas anual, intervalo intrajornada, representação
dos trabalhadores no local de trabalho, remuneração por produtividade, mudança
do dia de feriado, enquadramento do grau de insalubridade, prorrogação
de jornada em ambientes insalubres (“sem licença prévia das autoridades
competentes do Ministério do Trabalho”!), entre outras garantias que na prática
tendem a desaparecer;

74. https://extra.globo.com/noticias/economia/cni-fiesp-veem-avanco-na-aprovacao-da-
reforma-trabalhista-21582001.html
75. http://www.fecomercio.com.br/noticia/fecomerciosp-e-fenaban-realizam-seminario-sobre-
a-nova-legislacao-trabalhista
76. https://jornalggn.com.br/noticia/para-presidente-da-csn-funcionarios-podem-ter-15-
minutos-de-almoco
156 O Golpe de 2016

A jornada de trabalho, de acordo com a nova redação do art. 59-A da


CLT, poderá alcançar até 12 horas diárias (neste caso, com 36 horas de descanso
entre uma jornada e outra). A regra anterior estabelecia o limite de até 8 horas
diárias, com a possibilidade de no máximo 2 horas extras por dia. Mas permanece
o mesmo limite de 44 horas semanais e 220 horas mensais;
O trabalho intermitente, modalidade introduzida na contrarreforma de
2017 com a nova redação do artigo 443, §3º, acarreta enorme insegurança e
imprevisibilidade para os trabalhadores: “Considera-se como intermitente o
contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é
contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de
inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo
de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos
por legislação própria.” Neste caso, um empregado pode trabalhar poucas horas
por dia, em períodos alternados, não tendo direito à remuneração nos períodos
em que estiver aguardando ordens para executar tarefas;
Mediante “negociação”, as férias anuais de 30 dias podem ser divididas
em três períodos (sendo que um deles deve ser de pelo menos 14 dias corridos),
nos termos da nova redação do art. 134, §1º. A regra anterior permitia o
fracionamento das férias em apenas duas partes, não sendo possível que uma
delas fosse inferior a 10 dias;
Uma das mudanças mais nocivas para o trabalhador foi a que alterou o
critério de tempo de permanência na empresa para fins de remuneração. A CLT
estabelecia expressamente que todo o período em que o empregado estivesse
à disposição do patrão (mesmo que aguardando ordens, sem executá-las) seria
considerado como serviço efetivo. Com a contrarreforma (art. 4º, §2º), as
seguintes atividades deixam de ser computadas como período extraordinário,
quando excederem a jornada normal: alimentação, descanso, estudo, troca de
uniforme e até mesmo cuidados com higiene pessoal!
Houve também uma redução do período de descanso e alimentação. A
regra anterior garantia aos trabalhadores um intervalo de uma a duas horas
para descanso e alimentação (no caso da jornada de 8 horas diárias). Agora esse
tempo poderá ser “negociado” e reduzido para até 30 minutos;
Sobre a remuneração por produtividade (como as gorjetas e a remuneração
por desempenho individual): como se trata de uma remuneração variável, a regra
anterior – que visava dar um mínimo de garantia para os trabalhadores – obrigava
os patrões a pagarem uma remuneração nunca inferior à diária correspondente
ao piso da categoria ou ao salário mínimo fixado em lei. A contrarreforma
prejudicou sobremaneira os trabalhadores: nos termos do artigo 611-A, X da
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 157

CLT, o pagamento do piso da categoria ou o pagamento do salário mínimo já


não são mais obrigatórios para os patrões. Além disso, todas as modalidades de
remuneração podem ser negociadas, e não integram necessariamente o salário (o
que pode prejudicar os trabalhadores para fins de cálculo das verbas rescisórias);
Transporte até o trabalho. A regra anterior determinava que o tempo gasto
pelos trabalhadores no transporte fornecido pela empresa (para ir ao trabalho e
voltar para sua residência), seria contabilizado como parte integrante da jornada
de trabalho. A nova regra (art. 58, §2º) trouxe mais um grande prejuízo para
os trabalhadores: “O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência
até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando
ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador,
não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do
empregador”;
Fim da contribuição sindical obrigatória para as entidades sindicais. O
art. 579 da CLT agora estabelece que “o desconto da contribuição sindical está
condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma
determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal,
em favor do sindicato representativo da mesma categoria ou profissão.”
O projeto de reforma trabalhista foi enviado pelo governo Temer ao
Congresso Nacional ainda em 2016, logo após o Golpe. Na Câmara dos
Deputados, o projeto acabou sendo aprovado em abril de 2017, com 296 votos
favoráveis e 177 contrários. Todos os deputados do DEM votaram a favor; no
PSDB, apenas uma deputada foi contra. A maioria absoluta dos deputados
do PMDB, do PSD, do PRB e do PP votou a favor da lei e contra a classe
trabalhadora. As lideranças de PT, PSB, PDT, Solidariedade, PCdoB, PSOL,
Rede e PMB orientaram os membros de suas bancadas a votarem contra o
retrocesso. No Senado Federal, a votação foi realizada em julho de 2017; foram
50 votos favoráveis ao projeto e 26 contrários, com os partidos de direita e de
esquerda mantendo as mesmas posições já manifestadas anteriormente. Tal como
na Câmara, os votos favoráveis à reforma vieram dos partidos que apoiaram o
Golpe; os votos contrários, dos partidos que não apoiaram.
As Centrais Sindicais77 e diversos movimentos sociais organizaram
jornadas de protestos contra a reforma trabalhista nas maiores cidades do país.
Em 28 de abril de 2017, cerca de 35 milhões de trabalhadores paralisaram

77. CUT (Central Única dos Trabalhadores), CTB (Central dos Trabalhadores do Brasil),
CSP-Conlutas (Central Sindical Popular), UGT (União Geral dos Trabalhadores) e Força
Sindical.
158 O Golpe de 2016

as atividades naquela que foi a maior greve geral da história do país (evento
solenemente ignorado pelos oligopólios midiáticos que apoiaram o Golpe). No
dia 10 de novembro de 2017, um dia antes de as novas regras entrarem em
vigor, foram realizadas manifestações em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília
e diversas outras grandes cidades. Nos carros de som, os dirigentes sindicais e
lideranças de movimentos sociais denunciavam a inconstitucionalidade da lei, os
retrocessos que implicaria, os interesses inconfessáveis dos sindicatos patronais,
a contrarreforma da Previdência, a privatização de empresas, a “PEC do fim
do mundo”78, a mudança na política de reajuste do salário mínimo e a política
econômica do governo Temer.
Pouco antes da votação do projeto na Câmara, Marcelo Boulos, integrante
da Frente Povo sem Medo, participou de uma audiência com diversos
deputados do Parlamento Europeu para denunciar os perigos de retrocesso.
Boulos enfatizou o caráter antinacional e impopular do projeto de um governo
“ilegítimo, desmoralizado e selvagem”.79 Marcelo Rodrigues, presidente da
CUT/RJ, comparou a contrarreforma trabalhista com a volta da escravidão.
Vagner Freitas, presidente da CUT nacional, lembrou da grande greve nacional
de abril, e prometeu muita resistência para tentar barrar a reforma. Ricardo
Patah, presidente da UGT, apontou o fato de a reforma só trazer benefícios
para os empresários, e nenhum para os trabalhadores por não haver nenhuma
preocupação com a questão social ou o reconhecimento do papel dos sindicatos
como interlocutores legítimos da classe trabalhadora.80 E até mesmo a Força
Sindical, a central mais à direita do sindicalismo brasileiro, divulgou uma nota
condenando duramente a reforma trabalhista.81

78. Proposta de Emenda Constitucional que “congela” por 20 anos os investimentos sociais.
79. https://www.brasildefato.com.br/2017/07/10/frente-povo-sem-medo-denuncia-violacoes-
da-reforma-trabalhista-no-parlamento-europeu/ (acesso em 5/6/2018).
80. “Centrais sindicais fazem protesto contra a reforma trabalhista”. http://agenciabrasil.ebc.
com.br/geral/noticia/2017-11/centrais-sindicais-fazem-protestos-contra-reforma-trabalhista
(acesso em 5/6/2018).
81. “Com a aprovação da reforma trabalhista no dia de ontem [11/7/2017], o Senado Federal
consumou um grave atentado contra direitos dos trabalhadores conquistados em décadas
de lutas trabalhistas e sindicais. Esta ofensiva enquadra-se na perspectiva dos rentistas e da
elite mais retrógrada do país, de jogar exclusivamente nas costas do povo trabalhador o preço
dos ajustes e da política econômica que tem levado a Nação à pauperização, à paralisia, ao
desemprego e à desindustrialização. Os objetivos da reforma trabalhista aprovada ontem,
que segue para a sanção do presidente da República, são evidentes: reduzir o custo da mão
de obra, vulnerabilizar o sistema de proteção ao trabalho, atingir e restringir a capacidade
de mobilização, de resistência e de negociação dos trabalhadores e seus sindicatos num
cenário econômico extremamente adverso”. Nota da Força Sindical sobre a aprovação da
reforma trabalhista pelo Senado Federal, disponível em http://www.fsindical.org.br/forca/
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 159

A luta contra a flexibilização trabalhista não se esgota na mobilização


popular e nos protestos de rua. Existe também uma luta nos tribunais para
anular as medidas aprovadas, por serem inconstitucionais. Dezenas de ações
diretas de inconstitucionalidade já foram apresentadas ao STF, questionando
total ou parcialmente a lei 13.467/2017. A maioria das ações foram apresentadas
por federações ou confederações de trabalhadores alegando que o fim do
imposto sindical obrigatório é inconstitucional. E existem outras ações de
inconstitucionalidade, como as apresentadas pela ANAMATRA (Associação
Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), em defesa da gratuidade do
acesso à Justiça e questionando as regras para correção de depósitos e os limites
das indenizações. Até mesmo a Procuradoria-Geral da República ingressou
com uma ADI questionando trechos da reforma trabalhista. E a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) colocou o Brasil numa lista de violações de
convenções internacionais sobre direito do trabalho.82
Enquanto o STF não julga as ações de inconstitucionalidade, as novas
regras continuam sendo aplicadas pelos empresários. Mas o fato é que, seis
meses depois de entrar em vigor, os efeitos das novas regras mostraram-se
extremamente prejudiciais para a classe trabalhadora. O argumento do governo
para flexibilizar as regras trabalhistas é que tal medida geraria mais empregos (ao
reduzir os “encargos” das empresas), aumentaria os investimentos produtivos
e tornaria a indústria nacional mais competitiva no mercado internacional.
Estudos recentes demonstram exatamente o contrário: que muitos contratos de
trabalho fraudulentos, celebrados antes da entrada em vigor das novas regras,
agora contam com o amparo da lei; não houve sequer maior segurança jurídica
para os empresários, que continuam enfrentando diversos problemas na Justiça
do Trabalho por conta das controvérsias geradas a respeito da interpretação
da nova lei; a taxa de desemprego aumentou, em vez de diminuir; o aumento
dos investimentos na indústria também não aconteceu, justamente por conta
de uma crise que tem relação direta com a redução do poder de consumo da
classe trabalhadora; e a indústria continua pouco competitiva para enfrentar
os produtos importados (e não mostra nenhum sinal de reestruturação num
futuro próximo).

nota-da-forca-sindical-sobre-a-aprovacao-da-reforma-trabalhista-pelo-senado-federal
(acesso em 6/7/2018).
82. https://www.conjur.com.br/2018-mai-29/brasil-entra-lista-suja-oit-causa-reforma-trabalhista
160 O Golpe de 2016

3. Considerações finais

A contrarreforma trabalhista é um aspecto da luta de classes no Brasil. Os


direitos da classe trabalhadora, conquistados ao longo de décadas de lutas, são
tratados pelos empresários como encargos e até mesmo privilégios que devem
ser abolidos, em nome de uma modernização que só contempla os interesses
do capital. Os argumentos em favor da “flexibilização” (um eufemismo para a
precarização das condições de vida e trabalho) não resistem a uma investigação
histórica, uma vez que as novas regras produzem um tremendo retrocesso,
restabelecendo algumas práticas de exploração que muitos já consideravam
superadas. Essa reforma só foi possível como desdobramento de um Golpe de
Estado, no qual a palavra impeachment foi utilizada para dar uma aparência de
legalidade à destituição de uma presidenta sem crime de responsabilidade. De
fato, nenhum candidato à presidência seria eleito pelo voto popular apresentando
uma proposta de retrocesso como essa. As medidas são claramente impopulares
e só foram aprovadas no Congresso porque os próprios representantes eleitos
– latifundiários, comerciantes, industriais, barões da mídia, coronéis ou seus
lacaios – agiram em nome de seus interesses particulares, legislando em causa
própria. Logo após a nova lei entrar em vigor, uma pesquisa revelou que 81%
da população brasileira era contrária à reforma, e apenas 6% a aprovavam. A
experiência brasileira mostra que a história não é linear, e que as conquistas da
classe trabalhadora podem ser suprimidas no contexto de uma onda conservadora
com tonalidades fascistas e autoritárias. Só a luta muda a vida, e os trabalhadores
e trabalhadoras hão de reconquistar seus direitos. O futuro está em aberto...

Referências

ARRUDA, Pedro Fassoni (2016). “Ponte para o futuro: uma avaliação das
propostas políticas do governo Temer”. In: RESENDE, Paulo Edgar R. e DE
ANGELO, Vitor (orgs.): A crise brasileira em perspectiva (Coleção Debate Social
v. 03). Florianópolis: Insular.
BIHR, Alain (1999). Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu
em crise. São Paulo: Boitempo.
BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a consolidação
das leis do trabalho. Lex: coletânea de legislação: edição federal, São Paulo, v.
7, 1943. Suplemento.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 161

CARDOSO, Fernando Henrique (1995). Discurso de despedida do Senado Federal


– Filosofia e diretrizes de governo. Brasília: Presidência da República, Secretaria
de Comunicação Social.
DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (2014).
Radiografia do novo Congresso: legislatura 2015-2019. Brasília: DIAP.
ENGELS, Friedrich (1985). A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São
Paulo: Global.
MARX, Karl (1984). O Capital. Crítica da economia política. Volume I, Livro
Primeiro, Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural.
__________ (1991). A questão judaica. São Paulo: Editora Moraes.
SAES, Décio Azevedo Marques. “A questão da evolução da cidadania política
no Brasil”, in: Revista Estudos Avançados 15 (42), 2001. Disponível em http://
www.scielo.br/pdf/ea/v15n42/v15n42a21.pdf
Desafios da resistência – As lutas de enfrentamento
da classe trabalhadora no Brasil

Maria Beatriz Costa Abramides

INTRODUÇÃO

O capitalismo vivencia internacionalmente, no século XXI, um processo


em que de forças produtivas materiais entram em contradição com as relações
sociais de produção, etapa identificada por Marx em Para a crítica da Economia
Política como o momento de uma possibilidade histórica de revolução social (MARX,
1974:136). As condições objetivas de decomposição do capitalismo estão
postas com alta destruição de forças produtivas, porém as condições subjetivas
ainda estão por vir. Vivenciamos, no plano internacional, a crise estrutural do
capitalismo, e em seu interior, a crise do Estado de Bem-Estar Social; a crise dos
países do chamado “socialismo real” que apesar de terem realizado a vitoriosa
revolução proletária da Rússia em 1917, e formado a URSS- União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, em seu processo de implantação de uma nova sociabilidade,
estabeleceram: o estado e o partido fusionados; a estatização da política e da
economia e a não socialização dos meios de produção e do Estado; a concepção
do socialismo em um só país; abdicaram da perspectiva do internacionalismo
revolucionário e da revolução permanente. A partir dos anos 1930, com a
burocratização e autocracia stalinista que se distanciou do marxismo-leninismo
que eclodira na revolução social, os estados soviéticos e do leste europeu entraram
em uma crise profunda que os colapsou e culminou com a regressão capitalista
nesses países a partir de 1989. Com essa derrocada no plano internacional, o
capitalismo se torna cada vez mais hegemônico para dar continuidade à sua
lógica destrutiva de acumulação que amplia a exploração e dominação sobre a
classe trabalhadora e avança na retirada de direitos sociais e trabalhistas, fruto
164 O Golpe de 2016

de conquistas históricas dos trabalhadores. Decorrente de todo esse processo


se estabelece ainda uma crise no campo da esquerda, em que antigos marxistas
migraram para a social democracia e adotaram uma política ascendente de
conciliação de classes. No âmbito sindical também muitas organizações classistas
passaram a se conformar nos marcos institucionais e romperam com a autonomia
e independência de classe. Essa situação se agudizou com a crise internacional
de 2008, revigorada em 2011, e novas e drásticas medidas de cortes vão se
sucedendo. Essa quadra histórica apresenta novos e prementes desafios a serem
enfrentados na perspectiva do projeto socialista. Com o avanço da ofensiva do
capital, nos marcos das crises ocorridas, a classe trabalhadora sofre derrotas e
se vê atada à imediaticidade, em lutas de resistência para que não perca direitos
conquistados. No plano internacional, mediante o recuo de muitos setores da
esquerda, ocorre ainda uma crise de direção no âmbito revolucionário, e esse
conjunto de fatores expressa a ausência das condições subjetivas necessárias ao
processo revolucionário.
O capitalismo, é bom reafirmar, a partir de suas leis gerais, apresenta um
conjunto de crises cíclicas e periódicas que o conformam. A cada crise o capital
busca novas estratégias para retomar suas taxas de lucro e o padrão de acumulação
de capitais. Sua estratégia é a produção permanente de valor e mais valor sob
a exploração do trabalho, portanto a desigualdade é constitutiva desse modo
de produção destrutivo, em um antagonismo entre capital e trabalho; ilusório,
portanto, pensar que o capitalismo possa ser humanizado, posto que sua lógica
é avassaladora para a humanidade. A luta é por uma sociedade sem exploração
de classe, e qualquer tipo de opressão social, de gênero, raça, etnia, orientação
sexual, na perspectiva libertária, igualitária. Portanto a luta é anti-imperialista,
anticapitalista, socialista, na direção de uma sociedade comum a todos, a que
Marx e Engels denominaram comunista.

O comunismo não é para nós um estado de coisas que deva ser estabelecido,
um ideal pelo qual a realidade [terá] de se regular. Chamamos comunismo
ao movimento real que supera o atual estado de coisas. As condições desse
movimento resultam do pressuposto atualmente existente (MARX, ENGELS,
52:2009).

O capitalismo, desde sua gênese, apresentou fases diferenciadas de


crescimento e retração da economia, e a cada crise corresponde uma nova
ofensiva contra a classe trabalhadora. A partir de 1973, no plano internacional,
o capitalismo vive, porém, não mais uma crise cíclica, mas uma crise sistêmica,
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 165

estrutural, metabólica de superprodução e queda tendencial da taxa de lucro, que


o impulsiona a estabelecer uma nova gestão nas esferas produtiva, da reprodução
social e da cultura. Durante seu período de crescimento econômico, de 1945
a 1973, a gestão da força de trabalho era organizada pelo fordismo-taylorismo,
em que a produção ocorria em série e em massa sob controle de tempos e
movimentos; na esfera da política se desenvolvia o chamado Estado de Bem-Estar
Social, com programas sociais necessários ao processo de reprodução que, ao
mesmo tempo, incorporava reivindicações históricas advindas dos trabalhadores
em luta. Porém, esse sistema não ocorreu nos países periféricos como os da
América Latina, Ásia e África, subordinados ao epicentro do capitalismo, no
processo de desenvolvimento desigual e combinado entre centro e periferia.
De outro lado, mesmo nos países centrais, as políticas sociais eram voltadas
fundamentalmente à população economicamente ativa, inscrita na divisão
sociotécnica do trabalho em condição de assalariamento. Os trabalhadores
informais, mais empobrecidos e sem carteira assinada, usufruíam de programas
assistenciais desvinculados de políticas estruturantes como as de emprego. Essa
é a lógica do capitalismo, posto que aos trabalhadores empregados é necessário
que se estabeleçam as condições mínimas para reproduzir a força de trabalho
aos padrões de acumulação e à população sobrante meios elementares para a
parca sobrevivência.
A partir da crise estrutural sistêmica do capitalismo há uma alteração
estratégica para retomar o padrão de acumulação capitalista, e a gestão da força
de trabalho passa a ser organizada pelo processo de reestruturação produtiva pela
acumulação flexível, com a produção de acordo com a demanda, na flexibilização
das relações de trabalho de ampliação do desemprego estrutural, trabalho precário,
temporário, intermitente, sem carteira assinada, terceirizações, contratação
por pessoa jurídica, em uma avalanche de desregulamentação das relações de
trabalho. Na esfera do Estado para o capitalismo, há o esgotamento do Estado
de Bem-Estar Social, que não mais lhe interessa para a acumulação. Implanta-se
o neoliberalismo, com a orientação do Estado máximo para o capital e mínimo
para os trabalhadores com contrarreformas do Estado, da Previdência Social,
trabalhista, do ensino superior, privatização das estatais rentáveis, desmonte
do fundo público para pagamento da dívida pública, financeirização, existência
do capital volátil, de concentração de capitais, em que o trabalho produtivo
de extração de mais valor permanece ampliado para que o capital recupere
suas taxas de lucro, explorando intensamente a força de trabalho humano.
Na esfera da cultura a ofensiva do capital se norteia na ótica da denominada
“pós-modernidade”, de negação das teorias estruturantes, de ideologização do
166 O Golpe de 2016

capitalismo triunfante na prevalência do presentismo, do irracionalismo, de


estímulo à competitividade e ao individualismo. Essa lógica societal destrutiva,
avassaladora e internacional, se expande para todo o planeta. Na América Latina
o neoliberalismo, como resposta do capital à sua crise estrutural, implanta-se
por intermédio do Consenso de Washington, em 1989, como programática do
Banco Mundial, do FMI, do BIRD, da OMC para os países periféricos.
No Brasil sua gênese se estabelece com o governo Collor de Mello,
expressa sua continuidade no governo Itamar Franco e se aprofunda de forma
estruturante nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, em que são
fincadas a contrarreforma do Estado, as privatizações, a política de entrega dos
monopólios estatais, as contrarreformas sindical, trabalhista, da Previdência
Social e do ensino superior, cujos ajustes fiscais implicam diretamente em cortes
na saúde, na educação, na habitação, na reforma agrária, na Previdência e na
pouca demarcação das terras indígenas e dos quilombos com dívida histórica
às populações originárias. A privatização das estatais e a mercantilização se
constituem metas em que o fundo público se desloca para a iniciativa privada
em detrimento dos serviços públicos e políticas universais. Na sequência, os dois
governos de Lula da Silva e um mandato e meio de Dilma Rousseff, do Partido
dos Trabalhadores, estabeleceram uma política social desenvolvimentista com
programas sociais compensatórios voltados à população mais empobrecida, porém
desvinculados de políticas estruturantes, como as de emprego, na continuidade
da dependência aos ditames do grande capital internacional de mundialização
e financeirização da economia.
O capitalismo na fase dos monopólios, de dominação imperialista,
mantém os países dependentes sob sua lógica de dominação, portanto o social
desenvolvimentismo apresenta-se como uma outra face do neoliberalismo. A
classe trabalhadora encontra-se mais precarizada, com perdas sucessivas de postos
de trabalhos, com redução do operariado fabril estável, aumento no número de
trabalhadores terceirizados, com ampliação da taxa de desemprego, perda de
postos de trabalho em que as chamadas medidas de austeridade destroem cada
vez mais as conquistas da classe trabalhadora.

II – DESENVOLVIMENTO

1 - Observações preliminares

Esse texto se propõe a resgatar os desafios postos à classe trabalhadora na


reconfiguração do capitalismo contemporâneo e das lutas sociais no Brasil, a
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 167

partir de 2013, período de mobilizações explosivas de massas, até as lutas vividas


nos anos de 2016 a 2018, período em que se instaurou a ditadura civil no país,
com o Golpe de direita ocorrido em 2016. Se nos anos 1960 o imperialismo
estadunidense, para estabelecer seu poder de dominação e hegemonia nos
países latino-americanos, patrocinava ditaduras militares-empresariais, como
se estabeleceu no Brasil, de 1964 a 1984; na segunda década dos anos 2000,
patrocina golpes parlamentares, como os impostos em Honduras, no Paraguai e no
Brasil. No interior das instituições estatais coexiste um mecanismo institucional
de que se lança mão para depor presidentes eleitos quando não mais interessam
ao grande capital, o chamado impeachment, que sem crime de responsabilidade
escancara o golpe parlamentar.
No caso brasileiro, mediante o desgaste e baixa popularidade do governo
Dilma Rousseff em 2016, que chega a 65% de reprovação, por suas medidas
antipopulares de ajuste fiscal e quebra de direitos, a direita encontra um solo
propício para dar o golpe parlamentar que destrói a soberania das urnas que
elegeu a presidenta Dilma Rousseff, com 54 milhões de votos, que é deposta sem
crime de responsabilidade. O Golpe é também midiático, em consonância com os
banqueiros, com a FIESP, sob a égide do imperialismo norte-americano. Embora
em oposição ao governo de conciliação de classes do PT, pela continuidade de sua
política a serviço do capital, nos posicionamos contra o Golpe em razão de este
passar por cima da democracia e legitimidade das urnas. É necessário avançar
na luta contra o governo golpista que somente poderá vir abaixo mediante a
luta autônoma classista dos trabalhadores com movimento grevista, que pare
a produção e a circulação. Michel Temer, partícipe do golpe e vice-presidente,
assumiu a presidência da república com a função de implantar, com celeridade,
o ajuste fiscal e as medidas de destruição das políticas sociais que não foram
suficientemente desenvolvidas pelo governo Dilma segundo a lógica do capital.

2 - Antecedentes

Analisar o período entre 2013 e os primeiros seis meses de 2018 pressupõe,


do ponto de vista da classe, apreender a ação defensiva dos trabalhadores a partir
de 1989, com a avalanche neoliberal no Brasil nos anos 90, e sua evolução até os
dezoito primeiros anos do século XXI. Se os anos 1980 expressaram uma vigorosa
e combativa luta sindical e popular classista, autônoma e independente, com a
fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 1983, e do Movimento
dos Trabalhadores sem Terra (MST), em 1984, a perspectiva sindical se altera
nos anos posteriores.
168 O Golpe de 2016

Nos anos 1990, mediante a ofensiva do capital, com a desregulamentação


das relações de trabalho e implantação do neoliberalismo, o movimento sindical
estabeleceu uma ação defensiva em relação a luta pela manutenção dos direitos
que vão sendo destroçados. De outro lado, a CUT, classista dos anos 80, apresentou
um giro determinante na direção da social democracia, com filiação à Central
Sindical Internacional Social Democrata-CIOLS, que fez com que sua prática
sindical se mantivesse nos marcos de negociações institucionais que prescindiram
das grandes mobilizações e greves massivas anteriormente desencadeadas. Um
outro elemento, não menos importante, foi a ilusão disseminada nos anos 90,
de que a participação popular nos canais institucionais incentivados pelo “modo
petista de governar” seria o suficiente, em detrimento das greves, do movimento
autônomo dos trabalhadores pela ação direta.
A partir de 2003, no primeiro governo Lula, a CUT e o Movimento dos
Trabalhadores sem Terra, em suas posições hegemônicas se tornaram base de
sustentação dos governos do Partido dos Trabalhadores. Os dois movimentos
de base proletária, operária e de trabalhadores sem terra mais expressivos,
que imprimiram lutas e conquistas significativas anteriores, ao abdicarem
da autonomia e independência de classe, se tornaram obstáculos para a luta
autônoma dos trabalhadores com ilusão em um projeto de conciliação de classes.
Um dos desafios atuais é o de que os movimentos sociais de outrora voltem
a se colocar no patamar de autonomia e independência de classe e rompam
com sua concepção politicista e governista, importante para alavancar a luta de
classes em um momento de decomposição mas com hegemonia mundialmente
esmagadora do capitalismo.

3 - A conjuntura do país de 2013 a 2016: As mobilizações sociais e greves

A conjuntura nacional, desde 2013, apresentou um quadro de grandes


mobilizações sociais frente aos ataques do capital, com a perda de direitos e
ampliação da precarização do trabalho. O segundo governo Dilma foi mais
incisivo que os governos anteriores do PT e os ajustes fiscais, de 2015 e 2016,
recaíram sobre cortes nos programas sociais de saúde, educação, habitação, no
reajuste de servidores federais, de subvenção agrícola, suspensão de concursos
públicos, ampliação da idade para aposentadoria, eliminação do abono
permanência para garantir a meta do superávit primário de 0,7% do PIB em
2016; com ataques à classe trabalhadora e sem a taxação das grandes empresas.
Acrescenta-se o Programa de Proteção ao Emprego- PPE, com menor número
de horas trabalhadas com redução de salários e a promulgação dos Decretos
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 169

664 e 665, que diminuíram o auxílio-pensão por morte a 50% de seu valor; o
seguro desemprego estipulado após seis meses trabalhados ampliou-se para um
ano – com o aumento da rotatividade no emprego, inviabiliza-se esse seguro;
a retirada de programas sociais como o Bolsa Família por ocasião do seguro
defeso, atribuído aos pescadores profissionais que exercem suas funções de forma
artesanal, que paralisam suas atividades no período determinado para preservação
da espécie. Esse conjunto de medidas recaiu sobre a classe trabalhadora, que
estabeleceu um conjunto de mobilizações. A CUT negociou com o governo o
PPE, diferentemente da CONLUTAS e da Intersindical, que se opuseram a essa
medida, na prática de proteção aos empresários.
As lutas de resistência da classe trabalhadora e da juventude, por meio de
greves, mobilizações de rua, ocupação de terras, fábricas e escolas, se mostraram
intensas contra a exploração econômica, dominação política e opressão social.
Essas lutas se espraiaram por vários estados e tiveram enfrentamento com os
governos conservadores e reacionários, sob do Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB) e do Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), este último com aliança em todos os governos, incluindo os do PT. A
criminalização dos movimentos sociais se ampliou pela aprovação da lei antiterror,
sancionada em 2016, pela presidenta Dilma Rousseff.
Em junho de 2013, impulsionadas pela juventude, se desencadearam
grandes mobilizações de massa, que tomaram as ruas do país na luta pela
redução da tarifa dos transportes, a partir do Movimento Passe Livre-MPL,
e na sequência se ampliaram com jovens vindos das periferias dos centros
urbanos que se expressaram na luta contra o alto custo de vida e a ausência
e/ou precarização do trabalho, de serviços de educação, saúde e habitação. A
polícia agiu com a truculência da ditadura militar, nos governos do PSDB e do
PMDB, nos estados, e o PT fez coro ao autoritarismo. Entre 13 de junho e 20 de
junho de 2013 cerca de 12 prefeitos de capitais e cidades do interior reduziram
o preço do transporte, e jovens e trabalhadores de mais de 100 cidades em todo
o país fizeram grandes mobilizações, bloqueio de estradas, com quase um milhão
de pessoas de norte a sul do país nas ruas em sucessivos dias de mobilização de
massas. A rede Globo e grande parte da imprensa foram ao ar para enfatizar que
as mobilizações deveriam ser apartidárias para minar, neutralizar a possibilidade
de politização dos manifestantes para a luta anticapitalista. O movimento de
massas foi heterogêneo, difuso, mas havia um sentimento generalizado de
descontentamento com a precarização das condições de vida e de trabalho e
um descrédito significativo com todos os partidos da oficialidade; inúmeras
vezes, durante as mobilizações chegaram a negar as bandeiras vermelhas dos
170 O Golpe de 2016

partidos e organizações de esquerda por identificá-los com o PT, como partido


governamental. Os gastos com a Copa do Mundo, de 28 bilhões de reais, em
detrimento dos recursos com educação, saúde, transporte, habitação, reforma
agrária foram denunciados e geraram grandes mobilizações em 2014, com forte
repressão e a criminalização aos movimentos sociais.
A partir de 2012 se deflagraram greves contra as demissões, precarização do
trabalho e as contrarreformas que superaram as greves dos anos 90. Consideradas
como as greves mais expressivas, qualitativa e quantitativamente, em setores
da produção e reprodução social, em vários estados da federação, em serviços
de educação, saúde, limpeza, a saber: os trabalhadores metalúrgicos, garis, da
construção civil, das universidades e serviços públicos municipais, estaduais
e federais, petroleiros, bancários, terceirizados, professores das universidades
públicas federais e estaduais. Muitas categorias passaram por cima das direções
pelegas (como as dos sindicatos de terceirizados) e da CUT (petroleiros) e
se organizaram para fazer greves econômicas e políticas. Em todo período as
ocupações de terras, mobilizações por moradia e ocupação de fábricas falidas
pelos operários com auto-organização expressaram o caráter explosivo das lutas.
Os indígenas e quilombolas deram continuidade às reivindicações pela
demarcação de áreas sob forte repressão advinda de fazendeiros, do agronegócio,
das mineradoras. Movimentos contra a privatização da saúde, pelos direitos LGBT,
contra o racismo e genocídio da população negra e pobre dos morros e periferias
das cidades, movimento e luta das mulheres, em mobilizações generalizadas se
sucederam. Em 2015 e 2016 expandiu-se um grande movimento de estudantes
secundaristas, com ocupação das escolas em defesa da educação pública e
da merenda escolar. No caso do estado de São Paulo contra a reorganização
educacional imposta pelo governo Alckmin, do PSDB, que precarizou ainda mais
o ensino. Essas ocupações em defesa do ensino de qualidade e contra a reforma
do ensino médio ocorreram em vários estados como São Paulo, Rio de Janeiro,
Goiás, Paraná, Pará, Ceará, Minas Gerais, com ocupações e auto-organização
de estudantes, o que demonstrou, de um lado, a capacidade de organização e
luta, e de outro, a constituição de frentes de apoio e solidariedade ativa às lutas
e ocupações.

4 - O contexto do Golpe em 2016

O Congresso Nacional instaurado em 2014 é considerado o mais reacionário


dos últimos cinquenta anos e imperam, massivamente, as votações contra os
trabalhadores. Essa ambiência congressual propiciou o Golpe de direita impetrado
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 171

em 2016 e que fora impulsionado, entre outros, pelo deputado líder da Câmara
Eduardo Cunha, do PMDB, que somente foi afastado do cargo em 5/5/2016,
por corrupções anteriores, o que lhe permitiu presidir a famigerada sessão do dia
17/4/2016, de abertura do processo de impeachment contra a presidenta Dilma
Rousseff.
O golpe institucional parlamentar estava em curso desde dezembro de 2015,
e atendeu aos interesses da burguesia, do grande empresariado, da Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo-FIESP, da oposição de direita representada pelo
PSDB, e PMDB, sendo o último, até as vésperas do Golpe, coligado ao governo
Dilma; de partidos menores de direita a eles aliados, da grande mídia, da rede
Globo, dos jornais e revistas de grande circulação, do agronegócio, da Polícia
Federal, do Ministério Público, da OAB, do Movimento Brasil Livre-MBL – de
direita e sustentado pelos institutos liberais internacionais –, que, frente a um
governo enfraquecido, articularam-se interna e externamente para manter-se
no poder em defesa de seus interesses de classe a serviço do capital nacional e
internacional, agora sob a direção da direita via “golpe institucional”. O PSDB, não
satisfeito por ter perdido a eleição presidencial, articulou o impeachment a partir de
uma manobra de Eduardo Cunha e Michel Temer, vice-presidente da República,
ambos do PMDB, partido presente em todos os governos com seu oportunismo
e fisiologismo. Importante destacar que 70% dos parlamentares que aprovaram
a admissibilidade do impedimento, sem crime de responsabilidade, estão
altamente comprometidos com corrupção. Na tarde e noite de 17/4/2016 a farsa
se concretizou por meio das intervenções dos(as) deputados(as) agradecendo à
família, à religião, à Deus, à maçonaria, aos evangélicos em um obscurantismo
absoluto. Os parlamentares mais reacionários prestaram suas homenagens à
ditadura militar e aos torturadores, além das críticas homofóbicas ao direito
da livre orientação sexual, e sequer apresentaram argumentação referente à
pauta, de existência ou não de crime de responsabilidade. Presenciamos “um
filme de horror” instaurado sob a égide do cretinismo parlamentar, como nos
alertava Lenin. Votaram pelo impeachment 367 deputados de partidos de direita –
PMDB, PSDB, PPS, DEM, PP, DEM, PSB, PTB, PV –, além de partidos menores
fisiologistas de direita, e da Rede de Marina Silva. Vale notar que grande parte
desses partidos foram base de apoio e coligação do governo Dilma, até selar o
compromisso com o Golpe de Estado. Votaram contra o golpe 137 deputados(as)
do PT, PCdoB, PSOL, PDT, e PR (parte) além de um ou outro voto desgarrado
do partido, com sete abstenções e duas ausências. O processo de admissibilidade
foi aberto e seguiu para o Senado, que em 31/8/2016, por 61 votos a favor e
20 contrários, na mesma base da composição política da câmara, afastou a
172 O Golpe de 2016

presidenta Dilma Rousseff. Assume a presidência o golpista usurpador Michel


Temer, instaurando-se uma ditadura civil no país.

5. O Governo golpista de Michel Temer - 2016 a 2018

Michel Temer assumiu a presidência da república e com celeridade


encaminhou ao Congresso Nacional medidas de destruição brutal das conquistas
trabalhistas, como a terceirização e a contrarreforma trabalhista já aprovadas;
a da Previdência em tramitação no Congresso Nacional, além de acelerar a
tramitação de 55 projetos de lei contra os trabalhadores. A denominada “ponte
para o futuro” propagada por Michel Temer vem se confirmando como “ponte
para o abismo”. Em dois anos de seu desgoverno o país retrocedeu às medidas
anteriores à aprovação da Consolidação das Leis Trabalhistas-CLT, dos anos
1930, que haviam sido ampliadas com a Constituição de 1988 e se encontram
agora em terra arrasada. A PEC 95, conhecida como PEC da morte, virou lei e
congelou por vinte anos o orçamento para áreas sociais como saúde, educação
e assistência social para o pagamento da dívida pública contraída pela classe
dominante e que foi retirada do direito da população, que contribuiu com
impostos para o atendimento de serviços públicos essenciais.

5.1- Contrarreforma trabalhista

Essa contrarreforma estabeleceu os pilares da destruição das conquistas dos


trabalhadores e encontra-se transformada em lei com os seguintes elementos:
a) prevalência do negociado sobre o legislado; b) terceirização irrestrita, em que
todas as atividades, meio e fim, poderão ser terceirizadas; c) trabalho intermitente,
que amplia a precarização do trabalho pelo contrato sem garantia de salário fixo;
d) rescisão de contrato de trabalho retirando a exigência de que a homologação
seja feita pelo sindicato ou na delegacia regional do trabalho, o que permite
ampliar abusos e onão pagamento de direitos; d) jornada 12x36, que estabelece
12 horas de trabalho seguida de 36 horas de descanso, o que contraria totalmente
a Constituição, posto que a partir da 8ª hora o trabalhador não recebe hora extra,
alegando-se que ele será recompensado com o descanso posterior; f) justiça do
trabalho em que são dificultadas as entradas de ações trabalhistas; g) acordos
individuais a serem realizados sobre parcelamento de férias, banco de horas,
jornada de trabalho e jornada em escala (12x36), quebrando acordos coletivos,
o que amplia o assédio no trabalho, o constrangimento, a insegurança, a total
desregulamentação das relações de trabalho; h) trabalho home office, que se refere
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 173

à remuneração do trabalho feito em casa; i) representação: os trabalhadores não


precisam ser sindicalizados.
Uma das medidas mais destruidoras das relações de trabalho é a da
terceirização, sendo cada vez mais dramática a situação dos trabalhadores
terceirizados no Brasil. Em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso,
havia 1,8 milhão de trabalhadores terceirizados; em 2005, no segundo ano do
primeiro Governo Lula havia 4,1 milhões de terceirizados, o que significou 127% de
aumento e em 2013, no primeiro governo de Dilma Rousseff, os dados são de 12,7
milhões, o que corresponde a um aumento de 217%; no governo Temer já atinge
13,4 milhões. Essa lógica é parte das medidas internacionais do grande capital sobre
o trabalho, que os empresários seguem à risca para continuar acumulando capital.
Em 2016, dos 45 milhões de trabalhadores assalariados existentes, 12,7 milhões
eram terceirizados e a proposta, com a terceirização aprovada, é de transformar
mais 32,3 milhões contratados também em terceirizados. De acordo com os
índices do Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos-DIEESE, os
trabalhadores terceirizados recebem 24,7% a menos que os contratados; trabalham
em média 47 horas semanais, 7,5% a mais do que os contratados; permanecem
menos tempo no emprego, 2,7 anos contra 5,8 anos dos contratados; a média
de rotatividade dos terceirizados é de 64,4% contra 33,0% dos contratados, o
que significa o dobro de rotatividade; 90% dos trabalhos análogos à escravidão
os envolvem; a maioria dos trabalhadores terceirizados é composta por jovens,
negros, mulheres, por pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros,
transexuais- LGBT, e por pessoas aposentadas que tentam complementar suas
pequenas aposentadorias; entre os trabalhadores que exercem a mesma função,
as mulheres percebem melhores salários que os homens, e as mulheres negras
são as últimas na escala salarial; de 10 trabalhadores que sofrem acidentes de
trabalho, oito são terceirizados. Em 2014, 2.794 pessoas morreram por acidente de
trabalho; 14.837 se tornaram incapacitadas para o trabalho e ocorreram 737.378
acidentes de trabalho; destes, 90% dos trabalhadores eram terceirizados. O projeto
aprovado da terceirização ainda prevê a perda ou redução de direitos como a
licença maternidade, a licença paternidade e o abono assiduidade. Em relação à
população jovem, 50% dos terceirizados são jovens; em janeiro de 2016, 19,8%
da população se encontrava desocupada e 20% desempregada, o que expressa
um quadro avassalador. Em 2018 o número de desempregados é de 13,4 milhões,
número que pode ser superior se acrescido dos desalentados que deixaram de
procurar trabalho. A previsão com a lei da terceirização aprovada em 2017 é que,
em 2022, 75% dos trabalhadores serão terceirizados, em uma situação destrutiva
crescente e desoladora para o conjunto da classe trabalhadora.
174 O Golpe de 2016

O sindicalismo classista, expresso na Coordenação Nacional de Lutas


(CONLUTAS) e na INTERSINDICAL se contrapôs a todas as formas de
terceirização, nas atividades meios e nas atividades fins. A CUT e a Central de
Trabalhadoras e Trabalhadores do Brasil (CTTB) são contrárias às terceirizações
das atividades fins mas apoiam as medidas de regulamentar as terceirizações
das atividades meio. O projeto aprovado em 2017, no governo Temer, pretende
terceirizar todas as esferas da economia, setor público e privado, o que colocará
toda a classe trabalhadora no processo demolidor das relações de trabalho.

5.2- Contrarreforma previdenciária

A contrarreforma previdenciária do Governo de Michel Temer, em


tramitação no Congresso Nacional, é mais um ataque brutal à classe trabalhadora.
Sob o argumento falacioso do déficit da Previdência, impõe aos trabalhadores
o ônus da crise do capital. A Previdência teve em 2015 um superávit de 11,2
bilhões de reais, seguida de anos anteriores também de superávit e fruto da
contribuição compulsória de 8% mensal de recolhimento dos trabalhadores
assalariados ou autônomos que recolhem para a Previdência. As empresas e
bancos, porém, acumularam uma dívida com a União ao não repassarem a
porcentagem do que lhes é devida; de outro lado o Estado nas várias esferas
(municipal, estadual e federal) também não recolheu, em grande parte, o que é
de sua responsabilidade; assim, o déficit público é causado pelo Estado, empresas
e bancos que não repassam o recurso à Previdência.
Os governos anteriores de FHC, Lula e Dilma fizeram contrarreformas da
previdência pública e desde os anos 1990 vem sendo retirados dos trabalhadores
direitos previdenciários, a saber: o aumento do tempo de contribuição e da idade
para a aposentadoria, a restrição de benefícios especiais adquiridos, e praticamente
inviabilizaram a aposentadoria integral. A atual contrarreforma em tramitação
amplia ainda mais a destruição de direitos ao colocar milhões de trabalhadores
com cobertura mínima e outros tantos sem cobertura alguma face à ampliação
do desemprego estrutural, da avassaladora ameaça da terceirização generalizada
e o forte avanço da previdência privada, que venderá seus planos privados aos
trabalhadores. Para obter sua aposentadoria integral o(a) trabalhador(a) deverá
recolher para a Previdência durante 49 anos com o tempo mínimo de 65 anos
para se aposentar, com um mínimo de 25 anos de contribuição na aposentadoria
proporcional. No setor privado há casos em que é possível o trabalhador se
aposentar aos 60 anos, no caso dos homens, e 55 no caso das mulheres, desde
que o tempo de contribuição atinja 30 anos para as mulheres e 35 anos para os
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 175

homens. Se for aprovada essa contrarreforma haverá uma idade mínima de 65


anos chegando a 70 anos para futuras gerações. A situação das mulheres é ainda
mais alarmante; o governo ignora a realidade da grande maioria das mulheres
que possuem duplas ou triplas jornadas de trabalho. Essa situação torna-se
mais dramática para as mulheres negras, que se encontram na base da pirâmide
social, com piores salários e muitas vezes sem direitos trabalhistas garantidos;
e para os deficientes, que terão maiores restrições do que as atuais. As pensões
serão reduzidas para 50% com acréscimo de 10% por dependente até o limite
de cinco filhos, para todos os segurados (INSS e serviço público), não podendo
acumular outra aposentadoria ou pensão. Em relação aos benefícios assistenciais
de prestação continuada –BPC, hoje voltados às pessoas com pouca renda, com
deficiências ou idosos serão reajustados apenas pela inflação desvinculando-os
do reajuste do salário mínimo. Os servidores públicos que hoje possuem regras
próprias para a aposentadoria seguirão as mesmas regras gerais.

5.3 - Projetos de lei, decretos lei e ajuste fiscal de ataque aos trabalhadores

De acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar-


DIAP, tramitam no Congresso Nacional 55 projetos de destruição dos direitos
e conquistas históricas dos trabalhadores, e desses, 25 estão em andamento
desde 2013, ou seja, em torno de quase 50%, e os outros em torno de 50% dos
períodos anteriores. As ameaças desses projetos se referem à regulamentação de
leis e emendas já aprovadas e outras a serem aprovadas, como: regulamentação
da terceirização para atividades meio e fim; retirada do direito de greve do
trabalhador em serviço público; alteração da CLT com a prevalência do
“negociado sobre o legislado”; redução da jornada de trabalho com redução de
salário; redução da idade de 16 para 14 anos para inserção em regime parcial
no trabalho; inviabilizar que o trabalhador demitido reclame direitos na Justiça
do trabalho; trabalho intermitente por dia e hora com prestação de serviços
descontínua; extinção da multa por demissão sem justa causa; regulamentação
do conceito análogo ao trabalho escravo; implementação do contrato de trabalho
de curta duração; ampliação da jornada aos trabalhadores rurais para 12 horas
com a possibilidade de mais duas horas extras, sendo que atualmente já se
contabilizam 10 horas; suspensão do contrato de trabalho; estabelecimento do
Simples Trabalhista ao criar outra categoria de trabalhador com menos direitos;
deslocamento e retorno do empregado até o local de trabalho não integrará a
jornada de trabalho, logo, se houver acidente no percurso, ou morte estarão
descobertos de direitos; extinção do abono permanência. Outras medidas de
176 O Golpe de 2016

avanço da privatização e interferência em direitos sociais, de gênero, etnia e


orientação sexual também estão previstos nesses ataques como: restrição na
demarcação das terras indígenas; alteração do Código Penal sobre a questão
do aborto, criminalizando ainda mais as mulheres e profissionais da saúde;
instituição do Estatuto da Família; retrocesso para LGBTs e mulheres, pelo não
reconhecimento desses grupos como família, o que os deixará fora do alcance
das políticas do Estado; instituição do Estatuto do Nascituro, que ameaça os
direitos reprodutivos das mulheres inviabilizando inclusive o aborto previsto
no Código Penal; aumento do tempo de internação de adolescentes no sistema
socioeducativo; retirada do termo gênero do texto das políticas públicas; fim da
exclusividade da Petrobras na exploração do Pré-sal e que seja feita sob o regime
de concessão. Esse conjunto de medidas destrói conquistas, direitos sociais e
trabalhistas e amplia a subordinação ao capital internacional na perspectiva
privatista e mercantil.
Cabe ainda registrar a avalanche de privatizações do governo Temer, que
em 2018 apresentou 75 projetos em um verdadeiro leilão entreguista, entre esses:
terminais portuários, ferrovias, aeroportos, energia, a maior delas a Eletrobrás,
estatais, Casa da Moeda, loterias, em uma submissão desenfreada ao capital
internacional.

5.4- As lutas de resistência contra o Governo Temer

A resposta da classe trabalhadora frente a esses ataques se materializou por


mobilizações e cortes de ruas, barricadas, com paralisação de trabalhadores de
várias categorias em 15/3/2017 e 31/3/2017, e com a deflagração da greve geral
em 28/4/2017, que se constituiu na maior greve, qualitativa e quantitativamente,
já ocorrida no país, com a paralisação de 35 milhões de trabalhadores, organizada
por sete centrais sindicais, interferindo na produção e na circulação; porém, uma
greve de um dia não seria suficiente para pôr abaixo o Governo Temer e suas
contrarreformas. Em 24/5/2017, 150 mil trabalhadores de todo o país estiveram
presentes no “Ocupa Brasília” na luta contra as contrarreformas e o governo
ilegítimo de Temer. A manifestação sofreu forte repressão policial com prisões,
pessoas feridas, se assemelhando à repressão estabelecida no período da ditadura
militar. Como se não bastasse, o presidente golpista assinou um decreto que
colocava as forças armadas em prontidão até 31/5/2017 em um verdadeiro estado
de sítio. No dia 25/5/2017, mediante muita pressão de todos os lados, acabou
por retirar o decreto. As centrais sindicais aprovaram uma nova greve geral para
30/6/2017, porém esta greve foi bem menor que a de 28/4/2017, pelo fato de
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 177

a maioria das centrais sindicais pelegas, em particular a Força Sindical, terem


feito acordo com o governo na tentativa de manutenção do imposto sindical.
Por outro lado, a CUT, com sua concepção politicista e se organizando para o
apoio a Lula, em 2018, para a presidência, não impulsionou a greve, uma vez
que se voltou centralmente para o processo eleitoral. Essa concepção politicista
com ilusões na institucionalidade, na política de conciliação de classes, embora
implique no esgotamento do reformismo, esteve presente entre os movimentos
sociais com direções petistas. Segundo esta concepção, bastavam mobilizações
e pressão junto ao parlamento para evitar o impeachment, bem como para evitar
as contrarreformas, não centraram forças na mobilização com greves massivas.
A maioria dos sindicatos de trabalhadores proletários encontra-se filiada
à CUT ou à Força Sindical. A segunda, como sabemos, é uma central sindical
que sempre fez acordo com todos os governos neoliberais, e aliou-se ao governo
golpista. Depois da greve de 28/4/2017 a Força Sindical e a União Geral dos
Trabalhadores (UGT), também de apoio ao governo situacionista, passaram a
colaborar com Temer, na esperança de obter uma concessão quanto ao imposto
sindical ameaçado. A CUT e a CTTB são oposicionistas ao governo Temer, mas
jogaram suas táticas na pressão junto ao parlamento e acabaram desmarcando a
greve geral prevista para 5/12/2017 contra a reforma da Previdência. A avaliação
dessas centrais parte da premissa de que Temer não teria base para aprovar a
reforma da Previdência, posto que os parlamentares estavam de olho nas eleições
de 2018. O fato de essa manobra ocorrer não poderia desmobilizar a classe e seu
potencial de luta demonstrado fortemente na greve geral de 28/4/2017. Essas
concepções hegemônicas do movimento sindical do adiamento da reforma da
Previdência apresentam a ilusão de que um “governo legítimo” em 2018 mudará o
rumo dessa contrarreforma. Basta lembrar que as contrarreformas da Previdência
já ocorreram nos governos de FHC, Lula e Dilma e a contrarreforma de Temer,
ainda mais drástica, está em curso.
Somente a classe em luta, com ação direta, em greves gerais, poderá barrar e
derrubar as contrarreformas. O dia 5/12/2017 foi marcado por protestos e algumas
categorias grevistas, independentemente das centrais sindicais majoritárias.
Temer contou, de um lado, com a disposição da Força Sindical e da UGT de
negociar a reforma trabalhista e de outro com a preocupação da CUT em levantar
o PT como oposição; ambas as ações se constituíram em uma trava ao levante das
massas contra o governo isolado, que já é considerado o governo mais impopular
da república, obtendo em junho de 2018 uma reprovação de 82%.
Os setores de classe média que se colocaram favoravelmente ao impeachment
devido à propaganda avassaladora da direita contra o governo Dilma, para dar o
178 O Golpe de 2016

golpe, se veem hoje desacreditados do governo Temer. Também têm sofrido com
a alta do custo de vida, perda de postos de trabalho, desemprego e se encontram
paralisados até uma nova investida da direita que os convença, posto que são
altamente influenciados pela ideologia dominante, burguesa pela propaganda,
meios de comunicação a serviço do capital. “Assim como o Estado é o Estado
da classe dominante, as ideias da classe dominante são as ideias dominantes em
cada época. (MARX e ENGELS, 1989:27)”. A vinculação dos setores médios
ao programa revolucionário do proletariado é uma possibilidade histórica a ser
alcançada no processo da luta de classes.
As grandes mobilizações e a disposição de luta da classe trabalhadora
demonstrada na greve geral possibilitaram a presença da classe operária e
de outras categorias de trabalhadores contra as medidas antipopulares e
antinacionais do Governo Temer. Esses dois anos de golpe significaram um
tormento para os explorados, mas, de outro lado, a perspectiva de conciliação de
classes dos governos do PT também tem se constituído em freio para a luta de
classes. O processo de ruptura com a ordem capitalista destrutiva e devastadora
de direitos conquistados e de superexploração da força de trabalho dependerá da
organização consciente do proletariado mediante um programa revolucionário,
de sua experiência e práxis no patamar de autonomia e independência de classe.
A chave dessa perspectiva passa pela organização de partidos revolucionários.
A corrupção, característica do capitalismo, vem à tona nesses dois anos de
golpe da direita, desnuda grandes grupos empresariais, banqueiros, parlamentares
e governantes nos diferentes partidos de direita, marcadamente PMDB e PSDB e
seus satélites, e de oposição, na política de conciliação de classes, do PT – partidos
que se alternam no poder estatal desde 1989. Há uma descrença generalizada
nas instituições burguesas em decomposição, porém o campo de esquerda, na
perspectiva de autonomia e independência de classe, não conseguiu se construir
como uma frente classista, para impor um programa anticapitalista, que dispute a
consciência das massas mediante ação direta na perspectiva de que os explorados
e oprimidos tomem para si a luta contra a burguesia e ditadura civil entreguista.
A intervenção militar no Rio de Janeiro e a suspensão da votação da reforma
da Previdência, em 2018, demarcaram uma mudança na situação política. O
governo usurpador de Temer avança na militarização e centralização autoritária,
cria o Ministério Extraordinário da Segurança Pública que amplia a intervenção
do Estado na vida social; na militarização da política e no fortalecimento do
Estado-policial que refletem a brutal polarização social entre a minoria burguesa
e a ampla maioria oprimida. É fundamental denunciar e rechaçar a intervenção
militar no Rio de Janeiro. De outro lado, no momento em que escrevemos este
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 179

texto, Temer e seus aliados se preparam para as eleições de 2018. Sabemos que
a corrupção não será combatida pela Lava Jato, um instrumento básico da classe
dominante, em que a prisão do ex-presidente Lula é meramente política. Nesse
sentido nos colocamos na defesa da libertação imediata de Lula. Era necessário
organizar a resistência, porém mais uma vez o PT e seus aliados depositaram
confiança no Judiciário quando este já estava decidido pela prisão de Lula, como
evidenciou a sessão do Supremo Tribunal Federal que votou contra o pedido de
habeas corpus. O destino de Lula, portanto, depende da Justiça burguesa e de suas
divisões internas. Rechaçar a prisão de Lula não significa se alinhar à política do
PT e sim lutar pela democracia política. As massas ainda não concluíram sua
experiência política com o PT, e Lula terminou seu segundo mandato com 80%
de aprovação. A situação econômica mais favorável em seu governo, a volta
dos empregos, os reajustes de salário mínimo acima da inflação, os programas
sociais Bolsa Família e ProUni deram uma fisionomia a seu governo distinta dos
demais governos burgueses. A caça da Lava Jato ao PT se traduz na seletividade
dos processos para eliminar Lula. A ordem do capital financeiro é a de que as
eleições devem ser controladas, o PT deve ser anulado, e aí na figura de Lula,
seu expoente máximo, com chances absolutas de vencer as eleições de 2018.
Ao capital, nessa etapa de desenvolvimento histórico do capitalismo, interessa
investir na direção de um futuro governo de continuidade da programática
instaurada pela ditadura civil do governo Temer. Por outro lado, a onda eleitoral
tende a crescer e uma frente de esquerda para combater as tendências fascistas
centrada e comprometida com a corrida eleitoral, distancia-se da soltura de
Lula, e aprofunda a política de conciliação de classes. Predomina o caráter
antidemocrático das eleições presidenciais e as grandes massas recuadas diante
dessa conjuntura vilipendiadora e sem uma direção clara de oposição ao capital
e à barbárie.
Em 2018 continuam as lutas e ocupações de terra, greves por categorias,
entre elas a dos caminhoneiros, que se chocou com as medidas econômicas
do Governo Temer da alta do preço do diesel. Em que pese o caráter híbrido
de interesses dos proprietários de transportes, há um conjunto de pequenos
proprietários caminhoneiros que podem chegar à penúria e recorreram ao
bloqueio das estradas, para a redução imediata do preço do diesel, gasolina e gás
de cozinha, e a eles se juntaram mobilizações de apoio; acrescida da greve dos
petroleiros, que foi ameaçada com o pagamento de multas altíssimas.
É necessário avançar para um patamar superior de organização e lutas
a ser preparado desde a base, nos locais de trabalho, nos comitês nos bairros,
nas fábricas, nas escolas, nos movimentos populares. Dar continuidade à luta
180 O Golpe de 2016

pela construção de uma frente única anti-imperialista, anticapitalista, classista,


com autonomia e independência de classe sob as seguintes bandeiras: abaixo a
contrarreforma da previdência; revogação da lei da contrarreforma trabalhista,
da terceirização, da lei do congelamento dos gastos públicos; reestatização das
empresas privatizadas, nenhum direito a menos. Abaixo o governo burguês,
golpista, corrupto, antinacional e antipopular de Michel Temer. Que a classe
trabalhadora tome em suas mãos a luta contra essa destruição da vida na
perspectiva da conquista de uma sociedade emancipada.

III - CONCLUSÃO

A conjuntura do país encontra-se em uma crise política profunda


diretamente vinculada à crise econômica nacional e do capital no plano
internacional. As medidas de ataques e de destruição de direitos e conquistas
são avassaladoras, e têm levado a um retrocesso brutal em relação aos direitos
trabalhistas, que têm retornado a patamares da fase pré-capitalista, além de
medidas moralizantes em curso pautadas por orientações fundamentalistas
presentes no Congresso Nacional. Há uma falácia dos governos de conciliação de
classes em toda América Latina, que se autodesignaram “democrático-populares”,
mas que com maior ou menor adesão, cumpriram a programática neoliberal,
com contrarreformas, decretos, privatizações, ajustes fiscais com cortes nas
áreas sociais, desconsiderando as grandes reivindicações e conquistas da classe
trabalhadora que os elegeu, embora mantendo programas assistenciais que os
diferenciaram dos governos neoliberais, com uma face social desenvolvimentista.
De outro lado há o avanço da direita em todo o continente e no Brasil, agravado
em nosso país por um Golpe institucional que se configurou em uma ditadura
civil a serviço do capital internacional de financeirização da economia. É preciso
ampliar o combate contra o governo usurpador de Michel Temer, continuar na
luta para a revogação da terceirização da contrarreforma trabalhista, da PEC da
morte, dos ajustes fiscais, dos projetos contra os trabalhadores que tramitam no
Congresso Nacional, das privatizações que se expandem a toque de caixa em um
verdadeiro leilão das estatais; na luta pelo fim da intervenção militar no Rio de
Janeiro, lutar pelos empregos e salários.
A construção de uma frente de esquerda classista, anticapitalista, anti-
imperialista, socialista pautada nas lutas da classe operária, dos trabalhadores
rurais e urbanos, da juventude, das mulheres, dos indígenas, dos sem terra,
dos sem teto, dos negros e negras, e todos e todas as trabalhadoras que sofrem
exploração, dominação e opressão social de classe, gênero, raça, etnia e orientação
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 181

sexual, é uma necessidade imediata. No processo de decomposição do capitalismo


a consigna socialismo ou barbárie, que nos legou Rosa Luxemburgo, é atual e
premente na luta emancipatória. E, lembrando Marx, a possibilidade histórica
da revolução social está posta mediante as condições objetivas de decomposição
do capitalismo; a perspectiva de criar as condições subjetivas de construção
de um programa e práxis revolucionários é a via para o combate às tendências
ditatoriais da burguesia, potenciando os métodos da luta de classes, e dando
passos concretos para a independência política do proletariado na direção da
sociabilidade emancipatória.

Referências

ABRAMIDES, Maria Beatriz Costa. O projeto ético-político do Serviço Social


brasileiro. Tese de doutorado em Serviço Social, Programa de Estudos Pós-
Graduados em Serviço Social – PUC/SP, 2006.
_____________. “Democracia blindada: Como demoli-la?” In Revista
Argumentum. Disponível em periodicos.ufes.br/argumentum/article/
download/17067/11891.
MARX, Karl- Os pensadores- XXXV-1974- Victor Civita, Editora Abril Cultural
____________e ENGELS, F. A ideologia alemã. Editora Martins Fontes, 1989.

Sites consultados

BLOG da Boitempo
Blogdaboitempo.com.br/category/colunas/Jorge-luiz-souto-maior-colunas
Blogdaboitempo.com.br artigos sobre a conjuntura: IASI, Mauro, SOUTO ,
Maior Jorge Luiz;
CSPCONLUTAS: Shttp://www.adufmat.org.br/2015/index.php/comunicacao/
noticias/item/1325- SPTA
http://www.adufmat.org.br/2015/relatorio-do-seminario-nacional-da-csp-
conlutas-sobre-terceirizacao
ESQUERDA DIÁRIO - http://www.esquerdadiario.com.br/Mundo-Operario
NOS - Nova Organização Socialista https://mail.google.com/mail/
u/0/?shva=1#label/Conjuntura/1549a87b7a202c88
182 O Golpe de 2016

POR - Massas http://pormassas.org/- artigos sobre o Golpe e organização


autônoma dos trabalhadores-números 556, 558, 560, 561,563, 565,566.
SINDICATO DOS BANCÁRIOS
http://www.sindbancarios.org.br/diap-aponta-55-projetos-que-ameacam direitos-
em-tramitação-no-congresso-nacional/
As relações de classes, a crise, o golpe

Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida83

Algumas observações teóricas

A abordagem do contexto do Golpe em curso passa pela análise da crise


ocorrida na virada da primeira para a segunda década deste século no Brasil.
Tarefa difícil, pois é crise de algo que se procura apreender por meio de múltiplos
conceitos: “neodesenvolvimentismo”, “pós-neoliberalismo”, “social-liberalismo”,
“neonacional-desenvolvimentismo” e até “neodesenvolvimentismo às avessas”.
Obviamente, cada um desses conceitos sinaliza um tipo de análise que privilegia
certos aspectos em detrimento de outros, o que passa por distintas posições
teórico-políticas.
Aliás, é o caso de se explicitar o que se entende por crise. Com este objetivo,
recorro sinteticamente às formulações de Althusser (2015)) sobre a complexidade
das formações sociais. Estas jamais se estruturam em torno de uma contradição
simples, mas como totalidades complexas de contradições que se desenvolvem
desigualmente, o que nos obriga não apenas a detectar, em cada conjuntura,
a contradição principal, o aspecto principal de cada contradição, os diferentes
ritmos de cada uma e os seus momentos de fusão. Estas formulações nos alertam
para evitarmos o fácil caminho da análise de uma conjuntura pretensamente
determinada por uma única contradição, aquela entre capital e trabalho e, mais
ainda, aquela em que o polo do trabalho sempre é o elemento principal.

83. Doutor em Ciência Política. Professor do Departamento de Política e do Programa de


Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Coordenador, na mesma universidade, do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas
Sociais (NEILS). E-mail: luflavio40@gmail.com
184 O Golpe de 2016

Por motivo de espaço e tempo, recorremos a um texto de Poulantzas (1977)


apenas para destacar explicitamente dois aspectos, embora vários deles estejam
presentes ao longo deste texto. O primeiro é a crítica aos que se apegam à tese da
“crise geral do capitalismo”, correndo o risco de banalização do próprio conceito
de crise. Segundo este autor, embora “os elementos genéricos de crise” sempre
estejam presentes, mais ainda “na fase atual do capitalismo”84 , convém reservar
o conceito de crise para “uma situação particular de condensação das contradições”
(POULANTZAS, 1977: 6, grifos dele).
Em segundo lugar, retomando observações de outros autores de diferentes
filiações ao marxismo, Poulantzas (id., p. 4-5) critica a concepção de crise como
uma patologia ou disfunção social. Esta noção é portadora de uma forte carga
ideológica que mais oculta do que explica a natureza do objeto, quase sempre
aludindo à presença indevida (à “infiltração”) de algum elemento externo em
um “organismo” social que, em si, é saudável e intrinsecamente harmônico.
É óbvio que as formações sociais se reproduzem, o que supõe estruturas
e práticas que operam neste sentido. Portanto, as Ciências Sociais em sentido
amplo não devem ficar indiferentes aos processos de reprodução. Todavia, o
seu indispensável estudo não significa estar desatento às contradições reais e
potenciais intrínsecas a estas formações. Até porque é para a neutralização delas
que se ocupa grande parte dos próprios processos de reprodução.
Tais considerações são importantes para o estudo das crises, pois mesmo
estas, na maioria das vezes, em particular no que se refere à dimensão econômica
das formações sociais capitalistas, são funcionais para o processo de reprodução
ampliada do próprio sistema. Algumas, no entanto, ao se politizarem, podem se
tornar portadoras de grande potencialidade disruptiva.
O escrito acima permite sinalizar algumas distinções importantes para
nossa análise e que nem sempre são levadas em conta pelas forças voltadas para
a transformação social. A primeira delas se refere não apenas à distinção entre
crise econômica e crise política, mas também às diferentes relações entre ambas.
Nem toda crise econômica se politiza. Pode resultar, quase sempre por meio de
processos que penalizam, por maior ou menor tempo e amplitude, trabalhadores,
trabalhadoras e povos, em nova fase de reprodução ampliada do sistema85. E,
quando se politiza, nem sempre adquire um caráter de crise revolucionária.

84. Observe-se que o texto já completou quatro décadas.


85. Tampouco existe uma rígida sequência cronológica entre crise econômica e crise política.
Pode ocorrer que esta preceda aquela. Como observa Poulantzas (1977:11), foi o que ocorreu
em 1968 em diversos países imperialistas onde ainda ocorria o boom de desenvolvimento
capitalista do pós-Segunda Guerra Mundial.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 185

Pode, ao contrário, desembocar em contrarrevolução, inclusive fascismo. Que


forças políticas procurem o tempo todo os indícios reais ou potenciais de uma
revolução é mais do que compreensível. Porém, se considerarem que toda crise
econômica é o prenúncio de uma transformação social, podem cometer erros
de análise de conjuntura com resultados práticos catastróficos.

Não é para principiantes

No Brasil, ocorre uma crise política marcada por situações peculiares.


Em sintonia com manifestações de milhões de pessoas, foram aprisionados,
sob a chancela do Judiciário, inúmeros burgueses, algo antes impensável em
países capitalistas, exceto em momentos de guerra civil e/ou fortes conflitos
étnicos e/ou religiosos. No entanto, durante esta mesma crise se impõem
pesados danos às forças populares, inclusive proletárias, sem que estas tenham
conseguido, até o momento, realizar grandes mobilizações. E, pela segunda vez,
as esquerdas se preparam para jogar quase todas as fichas na disputa eleitoral.
Independentemente de isto significar um erro ou acerto, vale a pena lembrar a
observação de um especialista em transformação social, capaz de intuir, com vinte
anos de antecedência, a eclosão de um processo revolucionário no então distante
Império Tzarista (ENGELS, 2007 [1885])86. Em livro escrito um ano antes, ele
considerou que, enquanto a classe oprimida no capitalismo não está “madura para
promover ela mesma a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera
a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda
da classe capitalista, sua ala da extrema esquerda”. Por outro lado, quando “o
termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de
ebulição, eles saberão – tanto quanto os capitalistas – o que lhes cabe fazer.”
(ENGELS, 1974 [1884]: 195). Ao que tudo indica, ainda estamos no primeiro
momento assinalado pelo autor.
Portanto, não se trata de uma revolução nem de um movimento, mesmo
que reformista, marcado pela forte presença política das classes populares.
Mas, do outro lado, a começar pelos grandes órgãos de comunicação de
massa, pode-se perceber que ocorrem conflitos de forte intensidade, inclusive
marcados pela intervenção de aparatos voltados para uso da coerção física. Estes
conflitos estão centrados no âmbito da classe dominante. Estaríamos às voltas
com uma “revolução pelo alto”, como a prussiana liderada pelos Junkers, na
Alemanha? Para o bem ou para o mal, o Brasil já teve, há mais de um século,

86. Refiro-me à Revolução de 1905, o “ensaio geral” da de 1917.


186 O Golpe de 2016

sua revolução política burguesa (SAES, 1985), com a única semelhança de que,
também aqui, o papel da burguesia não foi de grande destaque. Os conflitos
que entusiasmam ou afligem boa parte da população brasileira e levaram, entre
outras coisas, à deposição da presidenta da República, transcorrem mais na
órbita da reprodução do que na da transformação social. Longe de expressarem
diretamente o antagonismo político entre burguesia e proletariado, envolvem
fundamentalmente contradições entre as frações da classe dominante, ou seja,
no interior do bloco no poder.
Por que estas contradições se intensificaram a ponto de levarem à deposição
da presidenta, encerrando o maior ciclo, desde a República Velha, de vitórias
eleitorais (quatro!) lideradas por um partido político, o Partido dos Trabalhadores?
Como sabemos, apesar do nome deste partido, não estava em curso uma revolução
proletária. Ao contrário, a própria oposição, liderada pelo candidato derrotado,
Aécio Neves, atribuía a Dilma Rousseff prática de “estelionato eleitoral”. Esta
acusação, feita logo em seguida a um pleito disputadíssimo, expressou e, ao mesmo
tempo, ocultou limites de uma determinada política de Estado que, tendo feito
as glórias dos governos petistas, parecia se envolver em sérias contradições.
Já dispomos de elementos para conceituar golpe de Estado, no que
recorremos a duas importantes contribuições para o estudo do tema: a de Bianchi
(2016), que atualiza a contribuição de autores clássicos; e a de Martuscelli
(2018), que articula a esta contribuição aportes poulantzanos fundamentais.
Nesta perspectiva, o golpe de Estado tem sempre uma dimensão institucional, ou
seja, uma alteração forçada na hierarquia dos ramos do aparelho estatal (o que
é mais observado), mas esta ação usurpadora se vincula a conflitos de classes e,
mais especificamente, entre frações da classe dominante no sentido de redefinir
ou reforçar a hegemonia política exercida por uma delas87.

Nas origens do neonacional-desenvolvimentismo

A atual crise política brasileira, cuja explicitação remonta a meados de


2013, adquiriu tamanha duração e profundidade que parece encerrar o ciclo
iniciado pela chamada Nova República, com a eleição indireta, em 1985, da
chapa Tancredo Neves e José Sarney, pondo fim a 21 anos de ditadura militar no
país. A rigor, a transição política se consolidaria com a aprovação da Constituição
de 1988, que oficialmente ainda vigora no país.

87. Talvez se possa acrescentar a superação de uma crise de hegemonia no interior do bloco no
poder.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 187

A habilidade com que a transição de regime foi dirigida pelas forças


burguesas (NERY, 2015) não deve ocultar que os anos de 1980 foram marcados
por fortes lutas de massas, como, no caso da Grande São Paulo, os movimentos
por moradia, contra o custo de vida, e as oposições sindicais (DOIMO, 1995).
Mas o papel decisivo seria desempenhado pelas históricas greves operárias que se
propagaram na região da Grande São Paulo, com início na fábrica da Scania em
1978 (ANTUNES:1988; GIANNOTTI, 2007). Já em 1980, foi fundado o Partido
dos Trabalhadores. E, três anos depois, a Central Única dos Trabalhadores,
compondo-se uma versão tardia da clássica dupla Partido-Sindicato, típica de
fortes movimentos operários europeus desde o final do século XIX sob a égide
da II Internacional e, em outros termos, a partir da Revolução Bolchevique,
da III Internacional. De um modo mais discreto, foi criado o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST), em 1984.
Portanto, o que se convencionou chamar “a década perdida”, dada a
persistente crise econômica que pôs fim a cerca de 50 anos de crescimento
praticamente contínuo do PIB brasileiro, foi um período de grande ascensão
das lutas de massas no Brasil, as quais, se desenrolando nos planos intra e
extrainstitucionais, chegariam ao ápice político com as primeiras eleições diretas
no período posterior à ditadura militar. Em 1989, ano de forte perplexidade
das esquerdas em todo o mundo, dois candidatos de esquerda disputaram a
oportunidade de enfrentar, no segundo turno, a candidatura conservadora de
Fernando Collor de Mello: Leonel Brizola, nacionalista de sólido passado político
ligado ao trabalhismo; e Luiz Inácio Lula da Silva, o principal líder das históricas
greves do ABC paulista e do Partido dos Trabalhadores. O segundo venceu por
uma pequena margem de votos e, enfrentando um festival de expedientes de
baixíssimo nível utilizado pela campanha de Collor de Mello, o ungido pelo
conjunto da burguesia e dos grandes meios de comunicação fez uma campanha
histórica.
O curto governo Collor foi substituído pelo vice-presidente Itamar Franco,
cujo ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, seria eleito e reeleito em
1994 e 1998, estabilizando as políticas neoliberais no Brasil. Aliás, uma de suas
primeiras medidas foi desafiar thatcherianamente, em 1995, os petroleiros para
uma longa greve geral (SOUSA, 2001) cuja derrota política iniciaria um longo
refluxo, ainda não encerrado, do movimento operário brasileiro, processo que
seria reforçado pelas privatizações e pela nova onda de restruturação produtiva
capitalista. O próprio PT, a cada candidatura de Lula (1994 e 1998), aumentava
as inflexões programáticas e, sobretudo, práticas, aderindo crescentemente a uma
perspectiva neonacional-desenvolvimentista (LOPES, 2016). As lutas de massa
188 O Golpe de 2016

refluíram no espaço urbano, mas se deslocaram para o campo e, sob a hegemonia


do MST, adquiriram características em grande parte imprevistas.
Desvinculados de relações formais de trabalho, subproletários do MST
desfrutavam de grande liberdade para se organizarem. Não estavam sujeitos às
limitações da vida sindical, usavam a ocupação de terras como principal forma de
luta, o que os obrigava a lançar mão de embates institucionais e não institucionais
(ALMEIDA e SÁNCHEZ, 1998); implementavam fortes modificações no
modo de vida com inovações na divisão de tarefas entre homens e mulheres e
educação alternativa das crianças, as quais participavam do cotidiano das lutas
nos acampamentos (GONÇALVES, 2005). Diferentemente do PT, que tendia a
se acomodar cada vez mais à política institucional e ao fechamento dos debates
internos (MAROSSI, 2000), o MST exercia forte atração sobre intelectuais
(muitos destes desanimados com os rumos seguidos pelo partido), praticava uma
política que articulava a questão nacional ao internacionalismo (ALMEIDA,
2009) e promovia cursos e debates nos quais, de Marx a Celso Furtado, de Lenin
a Gilberto Freyre, eram estudados os clássicos do marxismo juntamente com o
pensamento social brasileiro88.
Em 1996, um ano após a derrota da greve dos petroleiros, acampados do
MST foram massacrados pela Polícia Militar do estado do Pará, em Eldorado
dos Carajás, no sul da Amazônia. No ano seguinte, o Movimento deu a resposta
por meio de uma invasão simbólica a Brasília, partindo de três pontos diferentes.
Ao longo de dois meses, a Marcha Nacional por Emprego, Justiça e Reforma
Agrária adquiriu grande simpatia por onde passou e teve ampla cobertura da
grande imprensa. Apesar dos vaticínios altamente pessimistas, chegou a Brasília,
ocupou a Praça dos Três Poderes e foi recebida pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso. Esta foi a primeira vitória sobre o neoliberalismo no Brasil
(ALMEIDA e SÁNCHEZ, 1998)
O MST atuava em sintonia nem sempre explícita com uma miríade de lutas
rurais em diversas partes do mundo, o que incluía as de composição indígena na
América Latina, e movimentos chamados altermundialistas nos Estados Unidos
da América e da Europa Ocidental. Ou seja, era o que de melhor havia, no Brasil
da época, em matéria de internacionalismo, inclusive rearticulando o marxismo
clássico a uma temática pouco usual, a ecológica, e, como já observado acima,
atualizando as relações entre questões de classe e de gênero.
Detalhe importante que permanece à espera de pesquisas mais acuradas:

88. Por outro lado, independentemente das direções (e também a exemplo de boa parte delas),
sempre foi grande o fascínio que o PT, especialmente Lula, exercia sobre as bases do MST.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 189

embora atuassem de modos bastante distintos e seguissem rotas divergentes,


as bases do MST eram tremendamente fascinadas pelo PT e por Lula, o que,
objetivamente, impedia as direções do movimento de se distanciarem do partido
e de seu principal líder. O PT, já em processo de forte burocratização, fechamento
dos espaços de debates e com uma grande parte dos quadros dirigentes em
acelerado processo de reinserção social, adquiria grande legitimidade destes
vínculos com o MST, o núcleo dinâmico das lutas sociais no Brasil durante os
anos 90. Enquanto não poucas vezes o MST encarava a questão nacional de
um ponto de vista anti-imperialista (ALMEIDA, 2009), o PT partia na direção
do neonacional-desenvolvimentismo (ALMEIDA, 2012a), o que implicava a
perspectiva de fortes vínculos com diversas frações burguesas, especialmente
setores da grande burguesia interna deste país.
Por outro lado, governos petistas tiveram grande habilidade em também
articularem suas gestões aos movimentos altermundialistas. Porto Alegre,
capital do estado do Rio Grande do Sul, tornou-se referência mundial destes
movimentos, especialmente ao sediar as três primeiras edições do Fórum Social
Mundial (2001, 2002 e 2003). Em um país carente de grandes manifestações
internacionalistas, em 2002 ocorreu a Marcha contra a Guerra ao Iraque e ao
Afeganistão e pela paz na Colômbia; no ano seguinte, ocorreram a Marcha
contra a Alca e a Organização Mundial do Comércio, com a participação de
cerca de 70 mil pessoas89. Na 5ª edição do Fórum, também em Porto Alegre, no
Ginásio do Gigantinho, em um ambiente francamente hostil a Luís Marinho,
presidente da CUT, Hugo Chávez foi entusiasticamente aplaudido ao longo
de seu discurso, tomando, inclusive, o cuidado de abafar as vaias a Lula, cuja
política já sofria fortes críticas de jovens petistas, até porque o presidente se
preparava para ir a Davos, com vistas a construir uma impossível ponte entre os
dois fóruns, o de Porto Alegre e o dos grandes detentores do capital planetário
(Sul21, 28/11/2005). O presidente da República tropeçava em sua política
internacionalista.
Já durante a campanha eleitoral, Lula e seus próximos não se contentaram
com mudanças discursivas que sequer faziam parte dos programas escritos em
Encontros e Congressos do PT. Lula foi além e convidou para candidato a
vice-presidente um político fisiológico, o empresário industrial José de Alencar,
membro de um partido que era uma verdadeira legenda de aluguel, o Partido

89. O extraordinário Plebiscito da (contra a) ALCA, em 2002, ponto culminante de


extraordinária campanha popular, foi precedido pelo da dívida externa, realizado de 2 a 7
de setembro de 2000.
190 O Golpe de 2016

Liberal (SECCO, 2011:205). Mas o importante era atestar que o PT amadurecera


e, em nome da governabilidade, procurava governar com o “capital produtivo”.
Mesmo este ficou, no início, a ver navios, pois a candidatura petista entrara em
contato com a grande finança, o que gerou a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, na
qual o PT tranquilizava o capital rentista e o agronegócio, comprometendo-se em
“manter o equilíbrio fiscal e o superávit primário”, ou seja, reservar recursos para
o pagamento da rolagem da dívida pública, “o que implicava controle do gasto
público” Segundo Delfim Netto, ex-ministro da ditadura militar, esta foi “causa
da vitória de Lula”, o que o historiador Lincoln Secco considera reducionismo,
pois o partido já vinha nesta trajetória de moderação ao longo dos anos 90
(SECCO: 2011:203) .O jornal Folha de S. Paulo de 19/10/2017 apresenta novos
relatos sobre a elaboração do texto, tarefa que mobilizou, em ritmo de urgência,
os principais membros da cúpula do partido, e calcularam palavra por palavra
no sentido de evitar qualquer dúvida quanto ao compromisso da candidatura
com os interesses da grande finança. Segundo o jornal, André Singer, estudioso
do tema, considera que a carta “é um marco do lulismo, definido por ele como
“o conceito de reduzir a pobreza sem confrontar o capital”90.
Uma das determinações desta falta de vontade de “enfrentar o capital”
se relaciona com algo mais objetivo: o que alguns autores chamam de processo
de “financeirização do partido e da central”. A este respeito, Chico de Oliveira
(2003), entre uma e outra provocação brilhante, observou um aspecto
fundamental: círculos dirigentes do PT se inseriam em novos ramos de atividade,
como cargos de chefia de fundos de pensão e ocupavam postos elevados no
interior do aparelho de Estado. Neste caso, havia bloqueios muito objetivos a
qualquer apetite para enfrentar o capital, o que se expressava em mudanças nas
práticas e padrões de organização do partido, com séria redução de seu potencial
de mobilização de massas.

Aspectos gerais do neonacional-desenvolvimentismo



Este arranjo político, que desembocaria no que alguns importantes autores
chamam de Frente Neodesenvolvimentista, produziu resultados imprevistos que
ainda geram grande perplexidade entre analistas críticos e contribuem para uma
permanente profusão de textos aos quais este se junta.

90. Por outro lado, a proposta do documento esteve longe de obter unanimidade no Diretório
Nacional do PT.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 191

Sem questionamento da hegemonia da grande finança no interior do bloco


no poder, alterou-se para melhor a posição da burguesia interna. Isto guarda
estreita relação com a sobrevivência de grandes conglomerados bancários
brasileiros; a expansão das empresas voltadas para construção civil no bojo de
grandes obras ligadas ao setor de energia elétrica, a indústria naval, ao complexo
de empresas que operavam em torno da Petrobras, ao formidável apoio à expansão
do agronegócio que passou a exportar para diversos países do planeta; o suporte
à presença direta de empresas brasileiras no exterior, especialmente na América
do Sul, África e Caribe. Tudo isso requereu uma política externa mais agressiva,
com o significativo aumento do número de embaixadas, maior dinamização
do Mercosul, perda de importância da OEA e, com isto, maior autonomia em
relação aos Estados Unidos da América, o que se expressou na criação da CELAC
(Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Enfim, a tentativa
de atingir um objetivo estratégico: conquistar assento permanente no Conselho
de Segurança da ONU, o que não foi conseguido (BERRINGER, 2015).
A política internacional, além de ser um dos pontos altos do governo Lula,
pode servir de parâmetro para um balanço mais objetivo das gestões petistas.
Brilhantemente executada sob a batuta do ministro Celso Amorim, teve
como seu principal arquiteto o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que,
além de grande intelectual nacionalista, percorreu longa e profícua trajetória
no interior da burocracia do Estado brasileiro. Sua obra, Quinhentos anos de
periferia (GUIMARÃES, 2001), anterior ao governo petista, deixa claro que,
no que se refere ao fundamental, havia uma estratégia de atuação muito séria,
cuja execução gerou tensões no interior do Ministério das Relações Exteriores.
Em 2006, Guimarães publicou um livro no qual definiu com bastante precisão
os objetivos a serem perseguidos, no curto e médio prazo, para que o Brasil
mudasse sua inserção no contexto internacional (GUIMARÃES, 2006). No
final do segundo governo, o próprio Lula o nomeou para a Secretaria de Estudos
Estratégicos (SAE), um órgão de menor importância que o embaixador tentou
fazer com que correspondesse ao nome e a partir do qual tentou elaborar um
plano que, no fundo, era um esforço de prospectiva de como estaria o Brasil no
ano em que se comemorariam seus dois séculos de independência.
O objetivo era que a elaboração do Plano Brasil 2022 contasse
com a colaboração de entidades da chamada sociedade civil e dos diversos
órgãos governamentais, a começar pelos ministérios. As duas primeiras partes
do texto preparatório (“O mundo em 2022” e “A América do Sul em 2022”)
são bastante significativas do projeto nacionalista que o embaixador tinha para
o Brasil e também ajudam a entender os rumos imprimidos até então à política
192 O Golpe de 2016

externa deste país. Por outro lado, a última parte, justamente a intitulada “O
Brasil em 2022”, contém pouquíssima análise, constituindo-se basicamente
em um conjunto de objetivos quantificados sem grande fundamentação. Não
apenas faltou a colaboração de outros órgãos governamentais, a começar pelos
ministérios econômicos e o Banco Central, como o documento se revelou, pelo
menos até a presente crise, inteiramente irrealista (SAE, 2002; ALMEIDA,
2012b; AMORIM, 2016)91.
Esta nova configuração do bloco no poder abriu espaço para a implementação
de um extraordinário aumento do número de empregos de baixa renda; a elevação
substancial do salário mínimo e, desta forma, da aposentaria do qual ele era o
piso. Políticas sociais afirmativas como o Bolsa Família, assistência às populações
quilombolas, bolsas para os estudantes universitários da rede privada (ProUni),
expansão da rede universitária pública e gratuita, aprofundamento da política de
cotas raciais, facilidade de empréstimos consignados aos aposentados, expansão da
rede elétrica e do abastecimento de água, resultaram em significativas melhorias
para os segmentos mais pobres e marginalizados da sociedade brasileira92. E –
outra política que teve um extraordinário aspecto simbólico – os governos petistas
ensaiaram medidas no sentido de formalizar a relação de emprego doméstico
em um país onde as sequelas da escravidão são muito presentes e se articulam
às tendências à contração da cidadania típicas da atual fase do imperialismo.
No seu conjunto, a política de Estado durante os governos petistas,
especialmente de 2003 a 2012, contribuiu para uma extraordinária expansão
das relações sociais capitalistas, a começar pelas de produção, na formação social
brasileira (ALMEIDA, 2015). Neste sentido, teve um caráter inegavelmente
desenvolvimentista, desde que não se faça uso apologético desta noção.
Nenhuma política implementada pelos governos petistas teve caráter
anticapitalista, mesmo quando atendeu inegavelmente a necessidades materiais
gravíssimas dos milhões de condenados da terra neste país. Isto não é tudo.
Alimentar-se regularmente, ter as crianças na escola, ter renda que possibilite
receber e se divertir com familiares e amigos, utilizar eletrodomésticos, viajar

91. Não encontrei o Plano Brasil 2022 na página da atual Secretaria Especial de Assuntos
Estratégicos (http://www2.planalto.gov.br/presidencia/ministros/secretaria-especial-de-
assuntos-estrategicos-da-presidencia-da-republica), mas, assim como diversas pessoas, eu
o tenho arquivado em pdf.
92. Dois aspectos a serem destacados: a dinamização das pequenas economias regionais e o
significativo aumento de greves vitoriosas, especialmente a partir de 2004. Greves que, em
sua esmagadora maioria, não ultrapassaram o âmbito econômico-corporativo. A respeito
dessas greves, consultar os relatórios Estudos e Pesquisas do DIEESE (Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 193

de avião pela primeira vez... tudo isso possibilitou importantíssimas mudanças


nos padrões de sociabilidade, aumentando a autoestima individual e coletiva.
Este desenvolvimentismo teve um caráter nacionalista, atualizando, em
novos termos, o processo de inserção, de amplos contingentes demográficos –
e não apenas no sentido econômico – no capitalismo dependente brasileiro.
Embora não se trate de mera repetição, até porque o contexto era outro, vale
a pena fazer um cotejo deste processo com o ocorrido durante o governo de
Juscelino Kubitschek, ou seja, no auge do chamado desenvolvimentismo, na
segunda metade dos anos 1950.
O nacional-desenvolvimentismo transcorreu intimamente vinculado a
cerca de três décadas de crise de hegemonia no interior do bloco no poder; foi
marcado por uma fortíssima presença da burocracia de Estado na definição e
implementação de políticas relacionadas não apenas com a economia, mas com
o conjunto das relações sociais; sofreu ferrenha oposição da burguesia mercantil-
bancária, cujos representantes conseguiriam se vincular organicamente à grande
burguesia associada; foi impulsionado por uma ideologia que apresentava
a industrialização como condição da emancipação nacional, o que, apesar
dos aspectos progressistas, ocultava o caráter capitalista e dependente deste
desenvolvimento; obteve forte capacidade de mobilização, na maioria das vezes
controlada, das massas urbanas (operariado e baixa classe média), sem incluir as
rurais; o regime político era uma democracia liberal de massas restrita, a começar
pelo sistema partidário que excluía partidos comunistas e o voto dos analfabetos;
o movimento operário e popular estava em ascensão, inclusive no campo, com a
realização de greves políticas, as quais se expandiriam durante o governo Goulart,
contribuindo para forte polarização político-ideológica; contexto internacional
marcado por uma bipolaridade flexível e crescente presença do bloco dos não-
alinhados; em aparente paradoxo, a América Latina, com exceção de Cuba a
partir de 1959, estava fortemente alinhada com os EUA; permanente presença
das Forças Armadas, divididas sob o impacto da Guerra Fria, na vida política
brasileira; o presidente Kubitschek, apesar de sua grande popularidade difusa,
não tinha interesse em eleger seu sucessor e se desgastou junto ao próprio partido
(PSD), que, apesar de majoritário, perdia peso em razão das profundas mudanças
sociopolíticas em curso; esta crise foi um prenúncio da crise do próprio sistema
partidário (ALMEIDA, 2012a).
Já o neonacional-desenvolvimentismo transcorreu sob a hegemonia da
grande finança, em um período no qual, com o triunfo do neoliberalismo, duas
pontas do tripé (o capital estatal e, mais ainda, o capital privado nacional)
tinham perdido grande importância relativa; a democracia liberal de massas
194 O Golpe de 2016

estava bem mais ampliada, com o direito de voto dos analfabetos e diversos
partidos que se proclamam revolucionários participando do jogo eleitoral; em
aparente paradoxo, o principal partido ligado à grande finança (o PSDB) estava
na oposição e ocorreu melhor inserção da burguesia interna no bloco no poder,
com o decorrente deslanche de atividades mais voltadas para a produção;
estreitos vínculos orgânicos do PT com a burguesia interna e com a burocracia
de Estado; alianças do PT com partidos que representavam interesses opostos aos
dos principais movimentos de massas; considerando-se a imensa desigualdade
existente na formação social brasileira, importantes ações “inclusivas”, mas que
não mobilizaram seus beneficiários para a luta política; incremento e politização
do preconceito social das classes dominantes e, mais ainda, de segmentos da
alta classe média; grande influência de intelectuais orgânicos da grande finança
que participam de think tanks fortemente inseridos nas malhas da atual fase do
imperialismo; redefinição do sindicato de Estado, com a criação de novas centrais
nacionais e a extensão ao campo, mas perda de grande parte de sua capacidade
de atuação política, para o que contribuíram as reestruturações produtivas de
caráter neoliberal; forte hegemonia burguesa no conjunto das relações sociais;
presença, até o momento, mais discreta das Forças Armadas na vida política,
papel que, desta vez, foi exercido crescentemente por um outro ramo do aparelho
estatal: o Judiciário; política internacional mais criativa e ousada, com relativa
independência em relação aos EUA, o que não necessariamente significou
confrontar a principal potência imperialista do planeta em um momento de
desgaste da tentativa de construção de uma ordem unipolar93; grande prestígio
do presidente Lula ao concluir seu segundo mandato, o que possibilitou a vitória
de Dilma Rousseff, embora colocasse ambos em divergência quando a presidenta
reivindicou a candidatura para um segundo mandado94.
Diversos autores críticos insistem, com razão, no adjetivo “fraco” para
se referirem ao reformismo dos governos petistas (ARCARY, 2011). Todavia,
não é o caso de subestimar a importância de políticas que, por diversos
meios, contribuíram para tirar da miséria amplos contingentes populacionais
e praticamente estabeleceram o pleno emprego. Em janeiro-março de 2017,

93. A derrota da insistente tentativa do governo brasileiro em defender o presidente Zelaya


revelou os claros limites desta autonomia. Já o comando da Minustah, que tem muito a ver
com experiências para controle de movimentos de massas populares nos grandes centros
urbanos, contribuiu para legitimar a intervenção imperialista nos assuntos internos do Haiti.
94. Aqui atualizo de modo sintético considerações apresentadas cinco anos atrás (ALMEIDA,
2012a).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 195

o número de desempregados chegou a quase 14 milhões (FSP, 17/5/2018)95.


Relatórios da ONU destacam a contribuição do Bolsa Família, do Fome Zero
e de outras políticas que levaram ao aumento da renda dos 20% mais pobres e
foram decisivas para a retirada do Brasil do Mapa da Fome em 2014, ao qual o
país corre o risco de regressar.
Os estreitos vínculos entre as transformações do aparelho partidário-
governamental e sua inserção na nova correlação de forças impediam, de fato,
qualquer reforma em sentido forte. Como estancar a sangria produzida pela dívida
pública sem questionar a hegemonia da grande finança? Como realizar reforma
agrária ou mesmo combater os transgênicos sem romper com a grande burguesia
agrária, cujos representantes Lula chamou de “heróis”, até porque a exportação
de produtos agropecuários é vital para abastecer as reservas indispensáveis aos
interesses da fração hegemônica e, com ela, do imperialismo? Como aprofundar a
campanha contra a ALCA sem desatender aos interesses das empresas “campeãs
nacionais” que se espalhavam por toda a América do Sul? Como defender
os ambientalistas, alguns barbaramente assassinados, se o governo protegia a
atividade de empresas como a Vale S. A. e, mais uma vez, de diversos segmentos
da burguesia agrária? Como realizar reforma política se as negociatas brotavam
com os partidos mais conservadores e fisiológicos, ao ponto em que, após uma
sucessão de fracassos petistas, a estabilidade do apoio no Congresso Nacional
ficou nas mãos de políticos como José Sarney, ex-presidente do PDS, partido
da ditadura militar? Como contribuir para a politização das lutas sem quebrar o
antipopular oligopólio dos meios de comunicação?
Além da paralisia produzida por este leque de alianças que os governos
petistas justificavam em nome da “governabilidade”, o futuro mostraria o
peso de condicionantes mais duros, como a subordinação a frações burguesas,
especialmente a burguesia interna, e nichos da burocracia de Estado. Um dos
resultados deste transformismo foi que quem estava na faixa dos dez anos em
2003, quando se iniciaram os governos petistas, chegou a 2013 sem passar por
qualquer grande contato com a política, a não ser no plano institucional, e
tendendo a manter em relação a ela, no mínimo, uma atitude de desprezo96.

95. Também recorrendo a dados do IBGE, o jornal informa que a taxa de subutilização da
força de trabalho (desempregados, gente que gostaria de trabalhar mais e quem desistiu de
procurar emprego) chegou a 27,7 milhões de pessoas.
96. A não ser que vislumbrasse nela uma via de ascensão social, pois, no fundo, foi esta, em um
plano mais explícito, a principal interpelação ideológica que os governos petistas reforçaram.
196 O Golpe de 2016

Razões da crise

Quando se trata de apresentar alguns elementos de explicação da atual


crise política brasileira, especialmente no que se refere ao processo de construção
nacional-popular, o principal desafio consiste em superar duas respostas
estereotipadas que, no geral, se referem à: 1) traição do PT; 2) tradicional inércia
das massas populares.
Da mesma forma que, no período 2003-2014, foram implementadas políticas
desenvolvimentistas imprevisíveis e difíceis de analisar, a crise do Partido dos
Trabalhadores, que se desdobrou em uma crise do governo Dilma e, em seguida,
na deposição da presidenta, ainda requer discussões mais aprofundadas.
Para importantes autores, tratava-se de uma crise anunciada, até porque
passaram todo o período petista anunciando a crise. Em geral, insistem na tese
de que, na atual fase do imperialismo, formações dependentes como a brasileira
possuem escassa ou nula margem de manobra para se autodeterminarem.
Na ausência de uma revolução socialista, estas formações passaram por uma
séria reversão colonial ou semicolonial, com o aprofundamento de profundas
desigualdades internas. Neste caso, o chamado neodesenvolvimentismo teria
um caráter fundamentalmente ideológico, reforçando o mencionado processo
de reversão. O parque industrial, cada vez mais desarticulado, involuiria, dando
margem a uma economia voltada para a exportação de bens primários e ao
aprofundamento das desigualdades sociais97.
Estas análises, apesar de seus méritos inegáveis, contêm alguns problemas.
Herdeiras de uma perspectiva que opõe colônia à nação, associando esta última
ao desenvolvimento do capitalismo, talvez não confiram o peso adequado às
diferenças entre as relações de produção pré-capitalistas que se constituíram
durante o período colonial e a expansão do capitalismo, inclusive no mundo
rural brasileiro, durante os governos petistas (para nos limitarmos a este período).
Em segundo lugar, talvez subestimem o razoável nível de estruturação Estado
nacional brasileiro, bem como a capacidade que este revelou para implementar
políticas relevantes.
Formação social capitalista dependente, sim; colonial, não, ao menos por
enquanto. Quanto mais predatórias em relação aos dispositivos de intervenção
do Estado brasileiro nos diversos domínios da vida social (da participação
econômica direta à dinamização de atividades culturais), mais as iniciativas do

97. Existem versões menos radicalizadas desta abordagem, as quais, por questão de espaço e
tempo, não abordo aqui.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 197

governo Temer revelam o quanto este aparelho estatal tinha (e tem) para ser
desativado. Todavia, a crise chegou e estas análises proporcionaram importantes
contribuições para explicá-la. Mesmo assim, resta um problema que requer
exame mais concreto.
A atual crise não se circunscreve à formação social brasileira e sequer
começou aí. Trata-se da maior crise da história do capitalismo e, aliás, está
longe de se encerrar. Na escala temporal, o que particulariza o neonacional-
desenvolvimentismo brasileiro não é que tenha chegado a uma crise profunda,
mas o quanto ele durou: se contarmos os oito anos dos governos Lula e o período
“glorioso” do primeiro governo Dilma Rousseff (até 2013), uma década, ou seja, o
dobro dos “anos dourados” do governo Kubitschek (1956-1961). Por outro lado,
em diversos países que também haviam se beneficiado do boom das commodities
não se implementaram políticas que, ao mesmo tempo em que incentivaram
extraordinário crescimento da indústria automobilística (toda de capitais
estrangeiros), contribuíram para que a proporção de pobres caísse de 23,4% em
2002 (final do governo Cardoso), para 7% em 2014, ano em que o Brasil, como
foi referido, saiu do Mapa da Fome (O Estado de S. Paulo, 12/5/2016)98.
O grande problema com o qual se deparou Dilma Rousseff foi sua tentativa
de reativar o arranjo neonacional-desenvolvimentista por meio de uma ofensiva
contra a fração hegemônica no interior do bloco no poder: a grande burguesia
rentista, estreitamente ligada ao imperialismo. Esta ofensiva se deu em “duas
frentes”. A primeira foi mais abrangente, com a articulação do que André Singer
(2013:12-13) chama de coalizão produtivista, composta pelo governo, as duas
maiores centrais sindicais (CUT e Força Sindical) e a poderosa Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), com vistas a uma reindustrialização
com crescimento e distribuição de renda (id., p. 13.). A segunda frente consistiu
na pressão explícita para a queda da taxa de juros. Como observa André Nassif
(2015: 433), “entre setembro de 2011 e abril de 2013, a SELIC foi reduzida de
12% a.a. para 7,25% a.a., correspondendo a uma queda na taxa de juros real
básica de curto prazo (ex-post) de 5,2% a.a. para 1,3% a.a. no mesmo período”.
Esta subestimação da capacidade hegemônica da fração rentista foi alvo
de uma ferrenha contraofensiva em mais de “duas frentes”. Se mesmo a grande
burguesia interna, em razão de seu envolvimento nas malhas da corrente

98. Em números absolutos, são 26,3 milhões de pessoas a menos vivendo abaixo da linha de
pobreza – uma redução de 40,5 milhões de pobres para 14,2 milhões em 12 anos. (Id.). Em
2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome, com a taxa de desnutrição caindo, segundo relatório
elaborado pela FAO, pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e pelo
Programa Mundial de Alimentos (PMA), para menos de 5% (Revista Exame, 16/9/2014).
198 O Golpe de 2016

imperialista, é heterogênea, contraditória, mutante e, portanto, extremamente


vulnerável, em especial quando se trata de uma formação social dependente,
a grande finança tem uma ligação direta com o imperialismo, o qual não se
reduz, de forma alguma, a um processo econômico nem se apresenta como
puramente externo à formação social. Temos insistido em o Estado burguês
dependente está às voltas com a “sobrecarga” de integrar, de algum modo,
ao bloco no poder frações de classes que guardam estreitas vinculações com
o imperialismo, ao mesmo tempo em que ele se apresenta como a expressão
maior do interesse nacional” (ALMEIDA, 2004), o que resulta em distintas
modalidades de nacionalismo dotadas de maior, menor ou mesmo nulo conteúdo
anti-imperialista. Diversos autores, como Dowbor (2017:223), observam que os
governos Lula e Dilma99, durante o momento virtuoso de suas políticas, perderam
a extraordinária oportunidade de realizar reformas de base que atingissem,
inclusive, o sistema financeiro no Brasil.
Em suma, levanto a hipótese de que ocorreu uma confusão entre
nacionalismo e anti-imperialismo, o que produziu resultados político-ideológicos
catastróficos. Longe de medidas “gerenciais” adotadas por uma presidenta
“decidida”, o desafio era de uma profunda mobilização política para uma luta
nos planos interno e internacional. O que jamais passou pelos planos de quem
pretendia impulsionar em novos termos o neonacional-desenvolvimentismo. Este
é um limite que nem os governos Lula ousaram transpor. Como observou Singer,
“o subproletariado e a nova classe trabalhadora que surgiu com a expansão do
emprego, sobretudo entre os jovens de baixa renda cuja escolaridade cresceu nos
últimos 13 anos, não foram politizados durante o processo. Isso foi o resultado
das características desmobilizadoras e despolitizadoras do lulismo” (SINGER,
2016: 154).
A contraofensiva da fração rentista fragmentou amplos segmentos da
burguesia interna, minando o apetite desta por um novo “salto produtivo”.
Amplos setores do Judiciário entraram em campo. O governo Dilma ficou na
defensiva.
Uma esperança de recuperação surgiu quando, enfim, ocorreram
manifestações de massas, especialmente em São Paulo, onde o Movimento do
Passe Livre (MPL) se levantou contra a elevação das tarifas de transporte coletivo
autorizadas pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB) e pelo prefeito petista
Fernando Haddad. As três primeiras manifestações (6, 7 e 11 de junho de 2013)
tiveram de enfrentar repressão brutal da Polícia Militar, apoiada pelos grandes

99. Creio que a afirmação se aplica mais aos primeiros, ou seja, aos dois mandatos de Lula.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 199

meios de comunicação, que chamavam os manifestantes de vândalos. Em 13 de


junho, o influente jornal Folha de S. Paulo publicou editorial intitulado “Retomar
a Paulista” (principal avenida da cidade de São Paulo). Exigia um ponto final
nas manifestações e afirmava que, “no que toca ao vandalismo, só há um meio
de combatê-lo: a força da lei” (FSP, 13/06/2013).
Dois dias depois, a mesma Folha publicou novo editorial intitulado “Agente
do caos”, só que, desta vez, simpático às manifestações e criticando a truculência
dos policiais, estes sim, os verdadeiros vândalos (FSP, 15/06/2013). Longe de
ocasional, a mudança de posição da Folha de S. Paulo foi acompanhada pelo
conjunto dos grandes meios de comunicação, que, aliás, começaram a pautar
o movimento, conferindo ênfase à luta contra a corrupção. A presidenta
Dilma Rousseff, ainda confiante em sua popularidade, chegou a propor, num
extraordinário equívoco de avaliação política, a realização de uma Assembleia
Constituinte. A direita não se entusiasmou com a ideia e preferiu engrossar as
manifestações de massa, que rapidamente passaram a ser enxertadas por jovens
vestidos com as cores da bandeira nacional e cada vez mais irritadiços com o
tom de vermelho. Logo o movimento se propagou por boa parte do território
brasileiro, em muitos casos com vaias à presidenta.
Em 19 de junho, 13 dias após o início das manifestações, Alckmin e Haddad
comunicam que o aumento seria cancelado100. O MPL, dirigido informalmente
por setores autonomistas, convocou para o dia seguinte a marcha da vitória, a
se realizar na Avenida Paulista. A ela compareceram representantes de diversas
organizações de esquerda que, aliás, tinham histórico de participação nas lutas
pelo direito ao transporte coletivo. O problema é que a direita conseguiu liderar
um maior número de manifestantes, cercou a marcha dos vitoriosos por todos
os lados, acabou com a manifestação e fez um espetáculo de destruição de
bandeiras vermelhas.
A partir deste momento, o MPL decidiu suspender as convocações para
novas passeatas, ao mesmo tempo em que a direita, tendo aprendido a realizar
manifestações de rua, passou a organizar marchas cada vez mais numerosas, nas
quais entoava o hino nacional e acusava as esquerdas (Dilma Rousseff inclusa)
de traidoras da pátria, até porque profundamente envolvidas com práticas de
corrupção. Dois dos lemas preferidos eram “Quero meu país de volta” e “Vá

100. Pelo visto, o prefeito também “detestava o conflito”, sempre atuando em conjunto com
um governador conhecido pela truculência com que lida com os movimentos sociais. O
problema é que, em uma sociedade “conflituosa”, a harmonia com uns implica rudeza com
outros. O prefeito de um partido que antes defendia a estatização dos meios de transporte
coletivo, fez questão de advertir que a anulação do aumento das tarifas “teria custos”.
200 O Golpe de 2016

para Cuba”. Contra um frágil nacionalismo sem anti-imperialismo, ensaios


de um nacionalismo pró-imperialista que não conseguia ocultar seu ódio de
classe: uma das ofensas mais frequentes dirigidas a quem identificavam como
de esquerda era “Dá uma mortadela que ele(a) muda de opinião”. O petisco
barato simbolizava o efeito de políticas sociais sobre a massa que, por definição,
é “politicamente despreparada”.
Foi o começo do fim do governo Dilma Rousseff. A base parlamentar
se deslocou cada vez mais para a oposição; amplos contingentes da direita,
especialmente de alta classe média, engrossaram as manifestações de rua; as
denúncias de corrupção, especialmente por parte da Operação Lava Jato,
atingiram o núcleo do Executivo; mesmo aparições da presidenta na televisão
eram alvo de panelaços por todo o país; e, em 17 de abril de 2016, um domingo, a
plenária da Câmara dos Deputados, em histórica reunião presidida pelo deputado
Eduardo Cunha101 e transmitida nacionalmente pela TV, aprovou o início do
processo de impeachment. O desfecho viria em 31 de agosto, com a sessão do
Senado, coordenada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal.
Estas práticas desses segmentos da alta classe média têm convergido
objetivamente com os interesses da grande finança, que reafirmou sua hegemonia
e atraiu para seu lado praticamente todos os segmentos da burguesia interna,
a qual, até o momento, perdeu sua capacidade de atuação como força social
distinta. Amplos setores estratégicos para a soberania nacional, como o sistema
constituído em torno da Petrobras e a indústria naval, são desativados, o que abre
espaço para a atuação de novos grupos empresariais vinculados mais diretamente
ao capital imperialista.
O problema é que a fração hegemônica no interior no bloco do poder sempre
teve enorme dificuldade para se fazer representar na cena política, especialmente
no Congresso Nacional. Ou seja, é fração hegemônica, porém não reinante e
depende do governo Temer, notoriamente envolvido em manobras de corrupção,
para aprovar reformas profundamente antipopulares. Já conseguiu várias, como
a aprovação da PEC 241/55/2016, proposta de emenda constitucional que limita
por 20 anos o gasto público no Brasil, e a reforma trabalhista, que desativa direitos
históricos e aprofunda o processo de precarização das relações de trabalho102.
Estas mudanças atendem parcialmente, de modo diferenciado, aos interesses das

101. Após seu momento de paladino da luta contra a corrupção, quando as massas gritavam
“Somos milhões de Cunhas”, o ex-deputado perdeu: foi pego pela Lava Jato e condenado
a 15 anos de prisão.
102. Em razão de portaria publicada em 17/10/2017, por Michel Temer, a OIT deixou de considerar
o Brasil referência no combate ao trabalho escravo (Jornal do Brasil (17/10/2017).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 201

demais frações burguesas e provocam desgastes em grande parte dos congressistas,


os quais exigem contrapartidas cada vez mais custosas ao governo. Isto incomoda
a fração hegemônica: além de custoso, expõe negociatas, o que piora a avaliação
de um governo que se instalou graças a um movimento cujo discurso se centrava
na luta contra a corrupção.
Ainda falta uma reforma que a grande finança considera fundamental,
pois contribui para assegurar recursos destinados ao pagamento da dívida
pública: a reforma da Previdência Social. Esta tentativa não é fácil, pois, com a
vertical queda de popularidade do governo Temer, a maioria dos aliados exigirá
compensações ainda maiores, o que significa repasse de recursos que podem
afetar o núcleo da política de “austeridade”.
Este desgaste do governo Temer e dos principais dirigentes políticos do
movimento que levou à deposição de Dilma Rousseff (vários deles réus em
processos contra a corrupção) deixa os porta-vozes da grande finança numa
posição ziguezagueante. Querem, de uma vez por todas, descartar a hipótese da
candidatura de Lula – o primeiro colocado nas pesquisas de opinião, no momento
em que escrevemos este artigo – à Presidência da República em 2018. Mas o
segundo colocado nestas mesmas pesquisas é um deputado federal fascista, o
militar da reserva Jair Bolsonaro, com alto teor de imprevisibilidade. Expressando
este temor, a revista Veja (11/10/2017), ela própria identificada como de extrema-
direita e talvez a maior e mais persistente expressão do antilulismo na imprensa
brasileira, publicou virulenta matéria de capa contra Bolsonaro. Ocorre uma
forte onda conservadora, a direita cresceu enormemente (GOMES E SILVA,
2016; DELCOURT, 2016; BARBOSA, 2016), mas está dividida.

Depois da queda

As resistências de rua ao Golpe, que no momento arrefecem, foi realizada,


até agora, também principalmente por setores da classe média, especialmente
os ligados ao mundo das atividades culturais: teatro, cinema, universidade e
escolas de ensino médio. Neste último caso, adquirem destaque jovens de famílias
proletárias e de baixa classe média. Fora destes círculos, destacam-se a Frente
Povo Sem-Medo, liderada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto),
e a Frente Brasil Popular, dirigida por centrais sindicais, e especialmente a CUT,
e o MST, dotado de um grande e diversificado histórico de combatividade que
remonta à década de 1980 e se implantou nacionalmente.
Já foi mencionada a extraordinária capacidade do lulismo para fazer arranjos
políticos, o que limita o leque de mobilização e politização de massas. Este perfil
202 O Golpe de 2016

se acentuou desdobrando-se em forte institucionalismo no atual contexto da


crise. Os senadores petistas permaneceram até o final da sessão de julgamento da
presidenta Dilma Rousseff, inclusive depois que esta foi proibida pelo presidente
dos trabalhos, o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, de chamar o processo
de Golpe; o PT participou da eleição de Rodrigo Maia, do DEM (partido golpista
de primeira hora, aliás, originário do antigo PDS, braço partidário da ditadura
militar), para presidente da Câmara dos Deputados, quando poderia ter apoiado,
com chances de vitória, um candidato mais à esquerda; nas eleições municipais
(para prefeitos e vereadores), realizadas em 2016, o PT fez coligações com partidos
que apoiaram o impeachment da presidenta; em suas caravanas pelo Nordeste
brasileiro, Lula se deixa abraçar pelo senador Renan Calheiros, que, quando
presidente do Senado, votou pelo impeachment. Por outro lado, destoando da
quase totalidade dos empresários e políticos que foram processados pela Operação
Lava Jato, comandada pelo juiz Sérgio Moro, Lula, até o presente momento,
inclusive na prisão, tem se portado com grande altivez e combatividade, deixando
claro o caráter politicamente seletivo do processo a que é submetido.
O paradoxo é aparente. Como não se trata, assumidamente, de um
revolucionário, este extraordinário líder de massas procura mobilizá-las com vistas
a reconquistar o governo pela via eleitoral. E, neste sentido, não pode ser visto
por elas como o que seus adversários insistem em apresentá-lo: alguém fora da
lei. Segundo ele mesmo disse, não gostou de um cartaz onde estava escrito “Não
à prisão de Lula”. Preferia “Lula é inocente”, pois, se fosse culpado, “teria que
ser preso”. Perguntado se “acredita em Justiça”, responde: “Se não acreditasse na
Justiça, eu não teria proposto a criação de um partido político, eu ia propor uma
revolução” (Lula da Silva, 2018). Ou seja, explicita que não propõe revolução
e, dotado de extraordinária inteligência política, aparenta ignorar que muitos,
exatamente com objetivos revolucionários, fundaram partidos. Lula insiste em
que se propague que, acima de tudo, ele é inocente e para que as injustiças que
lhe fizeram sejam reparadas.
Este padrão de comportamento tem rendido frutos. Apesar do cotidiano
bombardeio midiático, o ex-presidente cresce em todas as principais pesquisas de
intenção de voto para as possíveis eleições presidenciais de 2018 (mas também
é o mais rejeitado). E o PT, sistematicamente associado à corrupção, volta a
crescer na preferência do eleitorado.
A tentativa de recompor o arranjo neonacional-desenvolvimentista
impacienta grande parte das organizações de esquerda103, as quais, todavia, de tão

103. A importante exceção é o PC do B, tradicional aliado do PT e primeiro partido que se


luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 203

isoladas das massas populares, não conseguiram criar uma alternativa ao lulismo
ou ao PT. Todavia, mais do que impaciência, é provável que muita serenidade e
capacidade de analisar criativamente a correlação de forças serão necessárias aos
coletivos de esquerda socialista que se empenharem efetivamente na inserção
na luta política sem perder o norte estratégico104.
.
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das origens)”. In: Por Marx. Campinas: Editora da UNICAMP.

proclama comunista a ter um de seus quadros como governador de um estado brasileiro, o


Maranhão.
104. O grande historiador e ativista político Jacob Gorender refletiu profundamente, nos poucos
parágrafos do final de seu livro de memórias, sobre o que as esquerdas de inspiração marxista
podem ou não podem fazer quando isoladas dos movimentos de massas (GORENDER,
1998: 284-7). Embora não traga a verdade à luz, a leitura desse capítulo é indispensável
para quem se preocupa com a ação coletiva de massas em tempos de isolamento de novo
tipo.
204 O Golpe de 2016

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206 O Golpe de 2016

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2) Jornais e revistas

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terras-a-indigenas-e-o-menor-desde-fhc.shtml
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Folha de S. Paulo (15/5/2013). “Agente do caos”. https://www1.folha.uol.com.br/
opiniao/2013/06/1295534-editorial-agentes-do-caos.shtml
Folha de S. Paulo (17/5/2018). “Falta trabalho para 27,7 milhões de pessoas, diz
IBGE”. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/falta-trabalho-para-
277-milhoes-de-pessoas-diz-ibge.shtml.
Jornal do Brasil, 17/10/2017. “OIT alerta que Brasil deixa de ser referência no
combate ao trabalho escravo e vira exemplo negativo”. http://www.jb.com.br/pais/
noticias/2017/10/17/oit-alerta-que-brasil-deixa-de-ser-referencia-no-combate-
ao-trabalho-escravo-e-vira-exemplo-negativo/
O Estado de S. Paulo, 12/5/2016. “Combate à pobreza foi o maior feito do PT”.
http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,combate-a-pobreza-foi-o-maior-
feito-do-pt,10000050641
Sul21, 28/11/2005. “FSM 2005: o ano em que Chávez foi ovacionado”.
https://www.sul21.com.br/jornal/especial-fsm-2005-o-ano-em-que-chavez-foi-
ovacionado/
Veja, 11/10/2017. “A ameaça Bolsonaro”.
https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-ameaca-bolsonaro-2/
O Golpe na perspectiva das
minorias sexuais e de gênero

Paulo Roberto Iotti Vecchiatti105

1. Introdução. Por que gritamos Golpe?

Sempre que se fala sobre o Golpe de 2016, muitos costumam estranhar, pelo
fato de ter sido praticado pelo Congresso Nacional, de forma pública, mediante
debate democrático. Para o aparente senso comum, isso seria suficiente. Mas
essa visão ignora que o impeachment é um processo jurídico-político, no qual
a deliberação política de destituição presidencial só será válida se atendidos
os pressupostos jurídicos – os quais não foram atendidos. Por isso gritamos
Golpe – porque os requisitos constitucionais e legais para um impeachment
juridicamente válido não foram atendidos. Com efeito, o art. 85, parágrafo único,
da Constituição Federal exige que a lei defina as hipóteses caracterizadoras de
crimes de responsabilidade, únicas situações nas quais um impeachment pode ser
decretado. A palavra “defina” tem um sentido muito específico no Direito Penal
e no Direito Sancionatório não-penal, pois implica na necessidade de respeito
ao princípio da taxatividade, que demanda que a lei estabeleça uma hipótese clara
e específica em que a punição será aplicada. Uma lei punitiva excessivamente
vaga é inconstitucional, porque exige-se que a pessoa saiba com segurança que
condutas podem gerar sua punição. Isso se aplica tanto ao Direito Penal quanto
ao Direito Sancionatório não-penal, reitere-se. Então, como primeira conclusão
relevante, nenhuma maioria do Congresso Nacional, nem sua unanimidade, pode

105. Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru. Especialista


em Direito Constitucional pela PUC/SP. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de
Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente
do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero.
208 O Golpe de 2016

decretar um “impeachment” fora das taxativas hipóteses legais, por mais “graves” que
considere os fatos praticados pelo(a) integrante da Presidência da República.
Especificamente no que tange à denúncia aceita pelo então presidente
da Câmara dos Deputados contra a presidenta Dilma Rousseff (e usa-se
deliberadamente o termo “presidenta”, tanto por ser o da preferência dela quanto por ser
uma das questões que deixam claro como o machismo influenciou em sua destituição),
é preciso ficar claro que somente dois fatos estavam em julgamento. Primeiro, as
chamadas “pedaladas fiscais”; segundo, a suposta violação da Lei Orçamentária
pelos “créditos extraordinários” aprovados por decreto, sem prévia autorização do
Congresso Nacional. Nenhum outro fato estava sob julgamento: violação da Lei de
Responsabilidade Fiscal não é causa de impeachment (não existe a figura do “crime
de responsabilidade fiscal”, atecnicamente invocada por muitas pessoas que defendem
a destituição de Dilma Rousseff; e se o fato constitui crime comum, o órgão competente
para julgamento seria o Supremo Tribunal Federal, não o Congresso Nacional. Logo,
outros fatos que não os dois apontados não servem de legitimação da destituição
de Dilma Rousseff da Presidência da República.
As chamadas “pedaladas fiscais” eram, na verdade, atrasos de pagamento
do Governo Federal à instituição financeira que adiantava esses pagamentos.
Essa situação foi considerada como “equivalente” a “operações de crédito”
pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Isso é muito questionável, já que
as chamadas “pedaladas fiscais” configuram-se como mera mora contratual,
ou seja, atraso de pagamento de obrigação assumida pelo Governo Federal. Se
isso for considerado como “operação de crédito”, então sempre que um(a)
sublocatário(a) atrasar o pagamento de aluguel a um(a) locatário(a), então
estará necessariamente em uma “operação de crédito”, visto que este(a) terá que
pagar o valor para o(a) locador(a). A toda evidência, é uma forma teratológica
(extremamente absurda, donde ilegal) de se analisar juridicamente a questão.
Mas, além disso, note-se que o TCU falou em situação equivalente a operação de
crédito. “Equivalente” é palavra que se refere a analogia, ou seja, uma situação
diferente, mas que se considera “idêntica no essencial”. E aqui a questão é que
crimes de responsabilidade sempre foram considerados, pela jurisprudência do STF,
como crimes. A doutrina jurídica é muito crítica a isso, e há Ministros(as) do STF
que não aceitam essa exegese. Mas além de haver jurisprudência consolidada nesse
sentido do STF106, nada impede entender os crimes de responsabilidade como

106. A Súmula 722 do STF afirma que crimes de responsabilidade são de competência
exclusiva da União, sendo assim inconstitucionais leis estaduais e municipais que
estabeleçam hipóteses de crimes de responsabilidade. A questão está na fundamentação
dos precedentes que geraram essa posição, os quais isto concluíram por entenderem que os
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 209

crimes próprios, ou seja, crimes que só podem ser cometidos por determinadas
classes de pessoas (por exemplo, peculato é um crime que só pode ser cometido
por funcionários/as públicos/as; nessa lógica, crime de responsabilidade é um crime
que só pode ser cometido por quem ocupe Presidência da República, Governo
de Estado ou Prefeitura Municipal). Ao passo que, ainda que assim não se
entenda e se desconsidere a jurisprudência do STF sobre o tema, é inegável
que o impeachment é uma “sanção”, ou seja, uma punição – logo, incidiria aqui
a lógica do Direito Sancionatório não-Penal, ou seja, a aplicação das sanções
não criminais, no caso, à pessoa que ocupa a Presidência da República. De uma
forma ou de outra, não cabe punição por analogia, a chamada “analogia in malam
partem” – nem no Direito Penal, nem no Direito Sancionatório não-Penal. Logo,
o raciocínio analógico do TCU é constitucionalmente e legalmente intolerável.
Sem falar que é violador do princípio da segurança jurídica.
Sobre a alegada violação da Lei Orçamentária, além de isso ser questionável,
visto que a situação de cumprimento ou não dela era sempre aferida apenas ao
final do ano orçamentário, não durante ele (logo, nova violação ao princípio
da segurança jurídica, na mudança do trato da questão pelo Congresso
Nacional), foco-me em outra situação. A Lei Orçamentária foi alterada pelo
Congresso Nacional, para nela incluir os créditos extraordinários em questão. Ou
seja, o Congresso Nacional convalidou referidos créditos107 extraordinários. Nesse

crimes de responsabilidade se referem a matéria de Direito Penal, visto que apontaram que
eles se relacionam à matéria descrita no art. 22, I, da Constituição Federal, o qual trata de
competência exclusiva da União, entre outros, para legislar sobre Direito Penal (cf. STF, ADI
2592, 1901, 1879-MC, ADI-MC 2220 e ADI-MC 1628). Como este livro não é destinado
a profissionais do Direito, esclareço que uma súmula se refere à conclusão de um Tribunal
após reiterados precedentes no mesmo sentido, logo, em razão de uma jurisprudência consolidada
em determinado sentido. Daí eu falar que se tratava de tema consolidado na jurisprudência
do STF o entendimento de crimes de responsabilidade como “crimes [penais]”.
107. Isso porque o citado entendimento do TCU foi uma notória mudança de jurisprudência, que
nunca considerou as chamadas “pedaladas fiscais” como crime de responsabilidade até então.
Nesses casos, aplicação da técnica do pure prospective overruling, ou seja, a superação puramente
prospectiva de jurisprudência, para somente se aplicar o novo entendimento para casos futuros, e
não no caso que gerou essa mudança. O STF isso aplicou expressamente quando julgou (o tucano)
Eduardo Azeredo (STF, AP 536 QO). O Ministro Roberto Barroso bem lembrou que a norma
jurídica é fruto da interpretação de textos normativos, de sorte que o Judiciário cria normas jurídicas,
tendo apenas que respeitar os limites semânticos do(s) texto(s) normativo(s) interpretado(s).
Assim, entendeu o Ministro que a mudança de jurisprudência implica em mudança das normas
jurídicas vigentes no país, o que só poderia ser aplicado em casos futuros, não no caso presente.
O Ministro Fux expressamente apontou a necessidade de um pure prospective overruling para tais
situações. Logo, a mesma lógica deveria ser aplicada para o novo entendimento do TCU sobre
“pedaladas fiscais” como “crimes de responsabilidade”, de sorte que a punição da presidenta
Dilma Rousseff por isso é inconstitucional, por violação do princípio da segurança jurídica.
210 O Golpe de 2016

sentido, é simplesmente teratológico afirmar que a Lei Orçamentária teria sido


violada por créditos extraordinários que ela própria referendou. A situação se
aproxima daquela do abolitio criminis, pelo qual uma lei deixa de considerar uma
situação como “crime” e, assim, pessoas presas por ele são soltas e processos
existentes sobre o tema são extintos. Não se deixou de considerar a situação
de “violação da Lei Orçamentária” como crime de responsabilidade, o que (nós
que gritamos Golpe) afirmamos é que os créditos extraordinários em questão, se
eventualmente fossem considerados como violadores da Lei Orçamentária, então
já não poderiam mais sê-lo, por essa lei posterior os positivar na lei orçamentária
e, assim, os convalidar.
Essas situações estavam provadas no processo de impeachment. São
objetivamente aferíveis. O que Câmara dos Deputados e Senado Federal
fizeram foi, portanto, um julgamento manifestamente contrário à prova dos autos,
ao entenderem existente “crime de responsabilidade” que, de forma objetiva,
manifestamente não ocorreu. Parlamentares assumem a condição de juízes(as)
no processo de impeachment, e a Lei de Impeachment afirma aplicar-se o Código
de Processo Penal nesse julgamento (arts. 3º e 38), o qual afirma que são nulos
julgamentos de juris quando manifestamente contrários à prova dos autos (CPP,
593, III, “d”). Logo, o STF tinha a obrigação de anular o “impeachment” de Dilma
Rousseff, visto que estava manifestamente fora das taxativas hipóteses de seu
cabimento, à luz da denúncia do caso concreto.
Aqui cabe uma dura crítica ao STF. Se é errado dizer que ele convalidou
o impeachment ao decidir sobre o seu rito (ADPF 378), visto que tratava-se de
ação de controle concentrado de constitucionalidade, para julgar a lei em tese, cujo
objeto era somente a definição do rito de processos de impeachment em geral (o
STF não poderia barrar o impeachment da presidenta Dilma nem que quisesse
naquele julgamento), fato é que o STF tem se omitido de forma injustificável ao
não apreciar as duas ações judiciais movidas por Dilma Rousseff, para anular
o impeachment (STF, MS 34.371 e 34.441). Postura contrária àquela adotada
durante a Presidência do STF pelo Ministro Lewandowski, quando as ações sobre
o impeachment tiveram absoluta prioridade. O Relator original era o Ministro Teori
Zavascki, que negou medida liminar para suspender os efeitos do impeachment
(essas decisões individuais de Zavascki são as únicas em que se pode dizer que
o STF, embora em cognição sumária, não definitiva, convalidou a destituição
de Dilma Rousseff). Com a morte do Ministro Teori, as ações passaram a seu
sucessor, o Ministro Alexandre de Moraes (ex-integrante do ilegítimo governo
de Michel Temer). Mesmo com pareceres da Procuradoria-Geral da República
sobre o tema, o Ministro ainda não liberou o processo para julgamento, o que
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 211

significa que não elaborou o seu voto. Então, pode-se dizer que o STF age com
negligência, por injustificável omissão, ao não julgar as ações de Dilma Rousseff para
anular o impeachment contra ela decretado. Mesmo que o Tribunal eventualmente
entenda que não teria “competência” (atribuição constitucional) para reavaliar
a situação (algo que, como exposto acima, estaria errado, já que incumbe a
ele impor limites constitucionais à atuação do Legislativo, como é basilar em
qualquer Estado Constitucional de Direito), ele deveria julgar os processos e julgá-
los extintos, sem apreciação de seu mérito. Aparentemente, o STF não quer se
comprometer politicamente com nenhum resultado, o que é lamentável e implica
em postura que contraria seu dever de julgamentos jurídicos, jamais políticos.
Essas são as razões pelas quais podemos considerar a destituição de Dilma
Rousseff da Presidência da República um Golpe Jurídico. Pode-se, ainda, falar-
se em Golpe Político, na medida em que as medidas tomadas pelo governo
constitucionalmente ilegítimo de Michel Temer incorporam uma agenda neoliberal
derrotada nas quatro últimas eleições presidenciais, tomadas precisamente porque ele
não tinha responsabilidade eleitoral, já que não foi eleito Presidente da República.
Sob a réplica tradicional de que “quem votou em Dilma votou também em
Temer” (sic), trata-se de novo simplismo acrítico que é muito bem rebatido
pelo professor Alexandre Bahia, também Doutor em Direito Constitucional.
Alexandre bem diz que “votou-se em um projeto de governo” apresentado pela
chapa Dilma/Temer, um projeto de centro-esquerda (social-democrata), não um
projeto neoliberal. Entendo que houve estelionato eleitoral de Dilma Rousseff, de
fazer uma campanha de reeleição à esquerda e adotar uma política econômica
de direita assim que reeleita. Mas embora estelionato eleitoral (infelizmente)
não seja hipótese de crime de responsabilidade, deveria enquadrar-se como
hipótese de inconstitucionalidade de leis e políticas públicas nesse sentido, por
flagrante violação do princípio democrático, visto que se elege uma pessoa por
seu programa, de sorte que a traição a este programa viola a própria noção de
democracia representativa. De qualquer forma, o Governo Dilma ainda focava
na ampliação dos programas sociais, ao passo que o governo ilegítimo de Michel
Temer tomou medidas neoliberais nunca antes vistas neste país, pelo menos em
termos de sua velocidade, como a deforma trabalhista, o congelamento de gastos
com direitos sociais (mas jamais para pagar a dívida pública, sacrificando-se o povo
em benefício de banqueiros, portanto), entre outras. Então, pode-se facilmente
entender que se trata de um Golpe, por visar agilizar a aplicação da agenda
neoliberal, sem necessidade de sua passagem.
Passemos, agora, ao tema específico deste artigo, a saber, os efeitos do Golpe
Parlamentar de 2016 sobre as minorias sexuais e de gênero – embora apresentemos,
212 O Golpe de 2016

primeiro, definições conceituais necessárias acerca do tema, valendo partir da


lição de Jessé Souza:

Como em toda a história republicana brasileira, o mote da corrupção é sempre


usado como arma letal para o inimigo de classe da elite e seus aliados. Isso
sempre ocorre quando existem políticas que envolvam inclusão dos setores
marginalizados – que implicam menor participação no orçamento dos
endinheirados e aumento do salário relativo dos trabalhadores, o que também
não lhes interessa – ou condução pelo Estado de políticas de desenvolvimento
de longo prazo. A ideia é que a riqueza do país já tem dono, ou seja, ela é
privada e deve ser privatizada. São esses os dois crimes que estão sempre
verdadeiramente por trás de toda manipulação da corrupção brasileira. Ao
se ‘fulanizar’ a corrupção, nunca se atinge o objetivo de seu real combate,
mas apenas consegue-se derrotar o inimigo de classe. Como o combate à
desigualdade é um valor universal, que não se pode atacar em público sem
causar forte reação, tem-se que combater essa bandeira inatacável com outra
bandeira inatacável. No Brasil, o suposto combate à corrupção sempre foi essa
muleta usada de modo manipulador e falso. Como no caso recente do golpe
de abril de 2016, desde que se elimine o inimigo político tudo voltará a ser
como antes, sem qualquer debate real e sem nenhuma mudança estrutural.
Não interessa sequer aos devotados moralistas de ocasião qualquer mudança
efetiva. Como poderiam, afinal, eliminar os inimigos que virão no futuro?
Quer seja mecanismo consciente e cínico, quer seja pura ingenuidade de
alguns manipulados, o resultado é o mesmo: a ‘fulanização’ da corrupção só
serve à sua continuidade. O falso combate à corrupção surge, assim, no Brasil
como o testa de ferro universal de todos os interesses inconfessáveis que não
podem se assumir enquanto tais. [...] Até bem pouco tempo atrás apenas o
funcionário público podia ser corrupto segundo a letra da lei. Os donos do
mercado, como dissemos anteriormente, compraram a elite intelectual para
a confecção e propagação dessa verdadeira fraude com o prestígio de ciência.
A definição de ‘corrupção’ prova-se, portanto, arbitrária e variável, mudando
conforme o interesse de quem manda na sociedade. Ao conseguir incutir na
sociedade que corrupção é apenas aquilo que o funcionário do Estado faz, os
donos do mercado podem cometer abusos legais e ilegais de todo tipo sem que
nem a legalidade nem, muito menos, a legitimidade de seus atos seja posta em
xeque. Esse é o real poder por trás da infantilização proposital da sociedade
como um todo pelo engodo da manipulação do mote da corrupção. Como
vimos anteriormente, não ‘deveria’ ser considerado corrupção impor uma
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 213

taxa arbitrária – no caso, a maior do mundo – acoplada a todos os preços que


pagamos no mercado que drena o produto do trabalho de todos para o bolso
de uma meia dúzia de privilegiados? É isso que, basicamente, a taxa de juros
faz. Não é percebida porque os financistas têm um exército de jornalistas e
articulistas que defendem que a taxa de juro alta serve não para encher o
bolso de meia dúzia de privilegiados, mas para proteger a nós todos contra
a inflação. Como isso é dito em todos os jornais e em todas as televisões, os
não especialistas, sem armas para se defender, acabam acreditando. (SOUZA,
2016, pp. 112-113)

2. As minorias sexuais e de gênero

As minorias sexuais são aquelas que são discriminadas social e/ou


juridicamente em razão de sua orientação sexual ou de práticas sexuais
dissonantes daquelas aceitas pelo moralismo majoritário, desde que consensuais/
não opressoras a terceiros e entre pessoas maiores e capazes (ou entre adolescentes
de equivalente capacidade civil108). As tradicionais minorias sexuais, em termos
identitários, são formadas por homossexuais (lésbicas e gays), bissexuais,
pansexuais109 e assexuais110. Heterossexuais configuram-se como a maioria sexual.

108. É preciso reconhecer a existência e a necessidade de proteção das crianças e adolescentes não-
heterossexuais cisgêneras. Existem crianças LGBTI+ – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Intersexos. Evidentemente, a criança não possui esse vocabulário, mas da
mesma forma que a sociedade acha natural um menino namorar uma menina, dentro da
lógica de afeto lúdico que consideramos normal em crianças e adolescentes (andar de mãos
dadas, dar um beijinho no rosto etc), há meninos que querem namorar com meninos e
meninas com meninas. Da mesma forma, há crianças e adolescentes que os pais e a sociedade
consideram “meninos”, mas se entendem como “meninas” e vice-versa. Diversas reportagens
e estudos já atestaram isto inúmeras vezes. Logo, age com ideologia de gênero quem nega esta
realidade objetiva. E o que existe no Brasil e no mundo é uma ideologia de gênero heterossexista
e cissexista, que exige a heterossexualidade e a cisgeneridade compulsórias, discriminando
as identidades não-heterossexuais e não-cisgêneras.
109. Recentemente, pessoas que se autodeclaram pansexuais têm defendido que a bissexualidade
estaria limitada ao binarismo de gêneros (homens e mulheres), enquanto a pansexualidade
se referiria à atração erótico-afetiva independente de gêneros (logo, por exemplo, também
a travestis e pessoas transgênero em geral). Há bissexuais que contestam isto, afirmando
que o prefixo “bi” se refere a “mais de um”, não necessariamente a “dois”. De qualquer
forma, respeita-se aqui a autoidentificação das pessoas que preferem ser identificadas como
pansexuais, sem discutir se isso é ou não uma injustiça conceitual com a bissexualidade.
110. Importante consignar que a pessoa assexual não o é, necessariamente, por conta de algum
trauma psicológico. Há pessoas que, simplesmente, não sentem atração sexual por outras,
embora possam manter relações afetivo-conjugais (não-sexuais) com outras.
214 O Golpe de 2016

As minorias de gênero são aquelas que são discriminadas social e/ou


juridicamente em razão de sua identidade de gênero dissonante da cisgeneridade,
ou em razão de hierarquias sociais que privilegiam um gênero em detrimento do(s)
outro(s). Gênero se refere ao conjunto de características socialmente atribuídas
e esperadas de uma pessoa em razão de seu genital, ao nascer. No binarismo
de gêneros culturalmente hegemônico, refere-se à dicotomia masculinidade/
feminilidade. Então, a identidade de gênero se refere à autopercepção de uma
pessoa enquanto pertencente a um gênero. Transgênera é a pessoa que não se
identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer (em razão de seu genital,
nas culturas ocidentais). Cisgênera é a pessoa que se identifica com o gênero
que lhe foi atribuído ao nascer (é a pessoa que não é trans, para simplificar).
Então, as tradicionais minorias de gênero são as mulheres cisgênero111 e as pessoas
transgênero – travestis, mulheres transexuais e homens trans112. Cisgêneros
configuram-se como a maioria de gênero.

3. O Golpe sob a perspectiva de gênero

Não obstante as análises hegemônicas sobre a destituição de Dilma


Rousseff da Presidência da República foquem-se apenas em aspectos políticos
e econômicos, o tema merece ser analisado também pela ótica de gênero, na
medida em que tivemos situações gritantes de discriminação por gênero contra
a presidenta Dilma Rousseff, desde seu primeiro mandato, as quais certamente
influenciaram a opinião pública machista a apoiar a destituição, via impeachment,
quando surgiu uma oportunidade, por mais juridicamente questionável que fosse.

Sobre o tema, são indispensáveis as considerações de Claudia Leitão:

111. Embora adote-se a dicotomia minorias e grupos vulneráveis, para que grupos majoritários em
situação de vulnerabilidade social se enquadrem neste segundo conceito, obviamente o texto
usou o conceito sociológico de minoria, enquanto grupo social em posição de não-dominância,
logo, de vulnerabilidade social.
112. Trata-se da tricotomia identitária preferida no Brasil pela ANTRA – Associação Nacional
de Travestis e Transexuais e pelo IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades.
A ANTRA ainda recusa o uso do termo “transgênero”, por entender que ele apaga as
especificidades de travestis e homens trans. A crítica está correta no geral, pelo termo
remeter, no senso comum, à mulher transexual. Mas, para o Direito, é importante termos
um tal “termo guarda-chuva” para demandas de todas as identidades trans – como mudança
de nome e gênero no registro civil independentemente de cirurgia, laudos e ação judicial,
objeto da decisão do STF na ADI 4275 (cf. item 2.2).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 215

As análises relativas a esse processo, quase sempre de natureza econômica


e política, vêm subestimando outras dimensões que podem emprestar uma
maior complexidade ao fenômeno de sua deposição”, como os “estudos de
gênero. [...] A imagem do trabalho no Brasil é especialmente significativa
para as análises de gênero, especialmente, para os estudos do imaginário do
poder. Afinal, a divisão do trabalho moderno segundo o sexo, destinado
a estimular relações de dependência entre homens e mulheres, é fruto de
uma sociedade prometeica, que encontrará sua anima na representação
da mulher enquanto ‘esposa-dona de casa-mãe de família’, oferecendo-
lhe o lugar da vigília, dos afazeres domésticos e dos cuidados familiares”.
Tarefa de “chão de fábrica” à mulher operária. Construção de um “modelo
de mulher simbolizado pela mãe devotada ao sacrifício, [com] completa
desvalorização profissional, política e intelectual. O campo profissional da
mulher, nas sociedades industrializadas é, portanto, reduzido e subalterno,
pois representa a antítese do lar. A elas são interditados cargos de chefia e
os processos decisórios. Para o imaginário operário, a mulher simbolizará a
fragilidade, assim como a figura vítima da exploração do sistema capitalista,
enquanto a maternidade lhe garantirá a simbologia de guardiã do lar e de
instrumento da procriação”. Mito do amor materno. Limites da atuação
feminina no mercado de trabalho. “‘normal’ [será] a mulher que demonstrar
o sentimento [dito] inato, puro e sagrado da maternidade, sentimento este
considerado natural e, por isso, presente em todas as fêmeas do planeta.
[...] A presidenta da República Dilma Rousseff será, ao mesmo tempo,
simbolizada pelo arquétipo da mãe (quando seu antecessor a nomeia como a
‘Mãe do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC’), ao mesmo tempo
em que é desqualificada pelos seus opositores por meio de uma retórica
sexista e homofóbica [Bolsonaro, sobre o por ele nominado “kit gay”, que, na
verdade, era cartilha contra preconceitos sexuais e de gênero, a ser usada por
professores/as e não distribuídas indistintamente a alunos/as]: “a presidente
deve parar de mentir. Se gosta de homossexual que assuma. Se o teu negócio
é amor com homossexual assuma...”]. “Se a imagem da pureza, associada à
mulher, não encontra respaldo na atividade política, a mulher que exerce o
cargo político carrega consigo o peso da mulher sem princípios, da mulher
vadia, da mulher da rua e não da casa” – Vereador José Crespo (DEM):
“RENUNCIA, VAGABUNDA”. [...] “Nas análises acerca da personalidade
da presidenta, por exemplo, as críticas ao seu estilo de governar sempre
foram abundantes, especialmente, nas classes médias e altas, entre homens
e mulheres. De um lado, o público masculino denunciava sua incapacidade
216 O Golpe de 2016

de ‘negociar’ e sua falta de apetite em urdir acordos políticos – um talento


considerado ‘masculino’ – de outro, segmentos de mulheres observavam que o
seu modo de ser – de vestir-se, de portar-se – estava distante das expectativas
acerca de um certo ethos feminino. [...] Afinal, no imaginário brasileiro, a
imagem da mulher na política é o da companheira abnegada, da esposa
amantíssima, da confidente e cúmplice, sempre solidária às ambições,
às agruras e aos desafios de seus maridos. [...] no imaginário brasileiro,
a ação política feminina encontra-se historicamente marcada, ora pelo
altruísmo, solidão, culpa e desamparo, ora pelo mundanismo, futilidade,
superficialidade e fragilidade e, por fim, pelas imagens de insensibilidade
e dureza, ou seja, pela masculinização. (LEITÃO, 2018, pp. 52, 54-57 e
59. Grifos nossos)

É inconteste a misoginia das críticas à atuação da presidenta Dilma Rousseff


desde seu primeiro mandato, em razão de ela não personificar nos estereótipos de
gênero socialmente hegemônicos, que exigem, da mulher, docilidade, sensibilidade,
vocação à maternidade e ao lar, submissão ao homem e comedimento. Houve,
inclusive, por parte da mídia, apagamento da importância simbólica da primeira
mulher presidenta, no dia da posse de Dilma em seu primeiro mandato, pelo foco
na esposa do vice-presidente, muito mais enquadrada nos citados estereótipos de
gênero (as normas de gênero) já citada. Afinal, Marcela Temer foi desde sempre
entendida enquanto mulher “bela, recatada e do lar”, conforme expressão usada
em capa da Revista Veja, logo após o afastamento de Dilma Rousseff (é inconteste
a velada, embora mal disfarçada, crítica de gênero da referida revista à pessoa de
Dilma Rousseff com esta capa).

Segundo Marielle Franco113:

O Golpe no Brasil, e não estou falando de 1964, foi uma ação autoritária,
feita com a utilização do arcabouço legal brasileiro em pleno século XXI.
Os principais atores desse cenário? De um lado a presidenta, mulher, vista
por parcela da população como de esquerda. De outro lado, um homem,
branco, visto por parcela expressiva das pessoas como de direita e socialmente
inserido nas classes dominantes. Essa conjuntura do golpe, marcada pela
alteração da correção de forças políticas, também cravou alterações sociais

113. Como se sabe, Marielle Franco foi assassinada no início de 2018, em circunstâncias ainda
não devidamente esclarecidas.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 217

significativas na esfera do poder do Estado e no imaginário popular. Trata-se


de um período histórico em que se ampliam as desigualdades, pelas retiradas
de direitos de um lado e, por outro, a discriminação e a criminalização de
jovens pobres e das mulheres, principalmente as mais pobres. (FRANCO,
2018, p. 118. Grifos nossos)

Ademais, cobrando uma necessária autocrítica a parte das esquerdas, que


sempre menosprezam lutas de minorias e grupos vulneráveis como supostamente
“desagregadoras” da “grande luta proletária”, que fecham os olhos ao fato de
que isso acaba priorizando a identidade do “proletário [homem] branco”, valem
as considerações de Mary Garcia Castro:

O processo de analfabetismo político contou com a omissão de uma esquerda


arrogante que, para garantir poder formal na política por representatividade
e um projeto de desenvolvimento econômico competitivo e de integração
na ordem econômica mundial, deixou campo aberto para tal escalada
político-econômica de direita, já que as pugnas pelo reconhecimento e
distribuição de bens e oportunidades que focalizam categorias como gênero,
raça/etnicidade, sexualidade e geração, assim como orientadas por vetores
como sustentabilidade ecológica, dignidade e do bem viver seriam em tal
projeto marginalizadas como políticas identitárias, desviantes da unidade
necessária entre trabalhadores/trabalhadoras para a luta de classe, concebida
como restrita ao campo das relações econômicas, ou, no caso da esquerda
liberal ou social-democrática, contradições que se resolveriam por injunções
pontuais. Mas gênero e raça/etnicidade são processos organizatórios que
sustentam uma formação capitalista-patriarcal-racista, não somente
inscrições individualizadas no corpo, cujas colonialidades e subordinações
terminariam contempladas com políticas e programas compensatórios para
algumas mulheres, alguns negros, alguns indígenas, alguns dos tidos como
pessoas LGBTT”, alguns jovens e alguns velhos. Se o ataque mais direto a
direitos humanos das mulheres se dá no governo Temer, há que ter claro que
o processo de subalternidade da trabalhadora, principalmente negra, no
terreno da economia, não é novo, mas em muito se agudizará, no projeto
neoliberal em curso. [...] Nós, ativistas em movimentos sociais, curtimos por
algum tempo a euforia que tínhamos, estávamos no poder e dessa posição
poderíamos avançar alguma emancipação política. Contávamos com cargos,
maquinarias para direitos humanos, conquistamos leis avançadas contra
violências nas relações sociais entre os sexos, contra discriminações raciais
218 O Golpe de 2016

e de proteção a vulnerabilizadxs. Estávamos institucionalizadxs. Óbvio que


tal reflexão não é uma hipérbole, a realidade é mais complexa e na correlação
de forças não éramos poder. Tal apelação retórica é mais para sublinhar a
importância da educação formal e aquela que, por diversos meios, apela para
o combate ao analfabetismo político e em especial sobre as potencialidades
do ativismo/consciência em gênero e raça/etnicidade para ‘cidadanias
insurgentes’ (HOLSTON, 2013) tanto contra violências sexualizadas ou
baseadas em estereótipos sobre sexo/gênero como para um pensamento
crítico sobre o sistema como um todo. Haveria que ter investido mais
na perspectiva da interseccionalidade – destacada contribuição do
FEMINISMO NEGRO – mas não só de inscrições individualizadas, e sim
como enlace de processos simbólicos e materiais que fortalecem classes de
subordinações e se rebelem contra um estado de exceção, como o vigente no
Brasil e que ironicamente, mas não acidentalmente, derrubou uma mulher
da presidência e vem minando conquistas de várixs subalternizadxs. [...]
‘Segundo Ieda Castro, feminista, ex-gestora do governo Dilma: ‘Faltou
às gestões anteriores investir na educação política. Queríamos tanto que as
políticas acontecessem que não fizemos a educação política. Agora é hora
de conquistar corações e mentes para a luta geral’, completou Ieda [8 de
março como espaço de luta e defesa de direitos]. (CASTRO, 2018, pp. 129-
131. Grifos nossos)

Outro ponto que deixa clara a existência de machismo nas críticas à


presidenta Dilma Rousseff refere-se às acusações de falta de controle emocional
e falta de habilidade negocial – jamais usadas contra homens em situações
equivalentes. Nesse sentido, são pertinentes as considerações de Flávia Biroli:

Em revistas semanais, a estigmatização de Rousseff como incompetente


politicamente se deu no recurso a estereótipos convencionais de gênero,
nos quais a mulher é associada ao destempero emocional. Em jornais
diários, a construção da presidenta eleita em imagens que de certo modo
anunciavam sua deposição dentro de um ambiente político no qual diferentes
tipos de violência ganhavam legitimidade antecipava um ambiente político
em que posições de recusa aos direitos humanos ganhariam maior espaço.
A ideia de que se tratava de uma mulher perdendo o controle, incapaz de
reagir com sensatez à crise política, atravessou todos os registros e esteve
presente em maior medida do que outras abordagens na mídia empresarial.
O conteúdo sexualmente violento ganhava espaço na internet ao mesmo
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 219

tempo em que a violência de gênero se expressava na mídia empresarial pela


estigmatização de Rousseff e das mulheres como não capazes de atuação
na política, sobretudo em contexto de crise. Nas redes sociais, as imagens
que circularam em memes confirmavam que o espectro dos estereótipos
aceitáveis se alargava. Ao mesmo tempo, nos espaços institucionais, a
presença massivamente masculina dava seu recado com o slogan ‘Tchau,
querida!’, utilizado por partidos e parlamentares que se articularam para a
suspensão do mandato de Rousseff. A ironia presente no ‘Tchau, querida!
se completava nos corpos. Nas imagens da votação, televisionada e teatrizada,
ternos e termos utilizados pelos parlamentares – 90 homens para cada
dez mulheres nessa legislatura – ao votarem pela deposição de Rousseff e
comemorarem o afastamento sem provas da primeira mulher a chegar à
presidência da República no Brasil apresentaram uma gramática de gênero
bastante evidentes. Ao manifestarem seu voto, os parlamentares favoráveis
à deposição defenderam repetidamente a ‘família tradicional’, modo de
organização de relações historicamente desvantajoso para as mulheres. O
modelo de família que, para os parlamentares, permitiria um retorno a uma
ordem desejada tem sido historicamente reduto de violência e exploração,
expondo as perspectivas de gênero em jogo. O discurso de ódio também
esteve presente na homenagem de um deputado ao torturador de Rousseff,
que foi prisioneira política durante a ditadura de 1964. Dois conjuntos de
problemas precisam ser destacados, no meu entendimento. Um deles é o modo
como o sexismo e a misoginia desempenharam um papel na caracterização
de Rousseff como incompetente e indesejável à frente do Executivo,
definindo uma abordagem no processo de legitimação do impeachment sem
crime de responsabilidade. Poderiam ter sido outros os registros, mas foram,
em abundância, organizados por estereótipos de gênero. O segundo conjunto
de problemas diz respeito à ofensiva conservadora em curso no Brasil e
na América Latina no que diz respeito ao papel social das mulheres e os
direitos conquistados nas últimas décadas. Convergem as ofensivas contra
os direitos de trabalhadoras e trabalhadores e o ataque frontal ao que vem
sendo definido como ‘ideologia de gênero’, que corresponde ao conjunto
de conquistas e conhecimento acadêmico referenciado pela igualdade de
gênero. Mais uma vez, o apelo à neutralidade é uma forma de naturalizar
perspectivas machistas. (BIROLI, 2018, pp. 79-81. Grifos nossos)

Socialmente, as classes sociais opositoras à presidenta Dilma Rousseff


nunca deixaram de esconder a misoginia inerente a suas críticas – o que não se
220 O Golpe de 2016

apaga por muitas mulheres terem assim agido, pois, pelo fenômeno do preconceito
internalizado, é lamentavelmente muito comum vermos mulheres machistas (como
negros racistas, gays homofóbicos etc), fenômeno que decorre da internalização de
preconceitos como parte normal da vida social, dada a ausência de senso crítico
sobre o tema. Xingamentos e o uso de vocabulário chulo, sempre relacionados
à sexualidade da mulher; o horrendo caso do adesivo que mostrava Dilma
Rousseff de pernas abertas, na entrada de gasolina, na época dos aumentos de
combustíveis... Nada disso foi feito contra Michel Temer (mesmo o país tendo
enfrentado crise muito maior, no caso dos combustíveis, sem que nada do gênero
fosse feito contra ele – nunca deveria sê-lo com ninguém, mas fato é que foi
feito contra uma mulher e não contra um homem, algo revelador do machismo
social sobre o tema).

Nesse sentido, analisando os protestos de junho/2013, valem as


considerações de Eleonora Menicucci:

Esse período ficou marcado por manifestações de rua que bradavam contra
a corrupção – embora até os adversários reconhecessem que Dilma não era
corrupta. E, ainda, com slogans nitidamente fascistas, racistas e misóginos.
Ainda provoca imensa indignação, por exemplo, a lembrança de adesivos
fartamente distribuídos mostrando Dilma com as pernas abertas para serem
colados nos tanques de gasolina nos veículos. Quando tal tipo de agressão
seria cometida contra um homem? (MENICUCCI, 2018, p. 68. Grifo nosso)

Não se pode esquecer da absurda apologia ao torturador Brilhante Ustra,


durante a Ditadura Militar, feita pelo deputado Jair Bolsonaro, durante a votação
do impeachment na Câmara dos Deputados, algo em muito agravado pelo fato
de Ustra ter torturado Dilma Rousseff, o que certamente influiu na menção do
caso pelo citado parlamentar, um notório apologista do governo militar golpista
de 1964. Aliás, o verdadeiro circo de horrores da votação do impeachment na
Câmara dos Deputados, “em nome da Família, de Deus...” etc, e não com crimes
de responsabilidade, mostra como a “tradicional família brasileira” (patriarcal,
machista, homotransfóbica etc) repudiava a presidenta Dilma Rousseff.

Sobre o tema, valem novamente as considerações de Eleonora Menicucci:

Ainda causa vergonha e revolta nas pessoas sérias, ainda que de oposição
ao governo Dilma, a sessão da Câmara dos Deputados que autorizou o
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 221

afastamento da presidenta. Nesta sessão um deputado, no momento em que


votava, homenageia um dos maiores torturadores de nosso país. Foi muito
mais uma sessão de horrores e deboches, quando deputados e deputadas se
manifestaram pelo ‘sim’ em nome da família, da propriedade, da pátria e da
tortura. A maioria deles e delas notoriamente corruptos e de passado pouco
recomendável. Interessante notar que nenhum apresentou argumentos
que comprovassem as acusações que pesavam contra a presidenta. Tal
demonstração de baixeza e falta de decoro político seria o suficiente para
anular o resultado da sessão. O que não ocorreu, porque o golpe já estava
em processo, independentemente de comprovação das acusações, pois elas
interessavam muito pouco. (MENICUCCI, 2018, p. 68. Grifo nosso)

No mesmo sentido, afirma Renan Quinalha:

Não à toa, nota-se que tais justificativas de voto, apesar de tão recentes, já
começaram a cobrança de sua fatura do governo interino de Michel Temer:
fim do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos;
Secretaria de Direitos Humanos dissolvida na enorme estrutura do
Ministério da Justiça, que tem outras prioridades e diversas outras
atribuições; nomeação para a Secretaria de Mulheres, agora subordinada
também ao Ministério da Justiça, de uma deputada que já presidiu a
Frente Parlamentar Evangélica e é abertamente contrária ao direito ao
aborto; extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (Secadi) no âmbito do Ministério da Educação;
escolha de ministros exclusivamente homens e brancos para todos os
postos do primeiro escalão do governo; encontro de Temer com o pastor
Silas Malafaia para ‘receber benção’ e seu discurso oficial de posse
enquanto presidente interino prometendo fazer um ‘ato religioso’ com
o Brasil: ‘Quando você é religioso você está fazendo uma religação. O que
queremos agora com o Brasil é um ato religioso, um ato de religação de toda
a sociedade brasileira com os valores fundamentais de nosso país’. É verdade
que Deus sempre frequentou o discurso dos políticos brasileiros. Também é
fato que a bancada religiosa já ocupava um espaço significativo nos governos
anteriores. No entanto, com o Golpe, esses discursos e medidas iniciais são, do
ponto de vista simbólico e prático, ainda mais marcantes para compreender
a relevância do conservadorismo moral terá nas políticas de governo. O que
antes parecia ser uma agenda oculta agora escancara seus interesses e projetos
com um braço forte no Executivo. (QUINALHA, 2016, p. 132. Grifo nosso)
222 O Golpe de 2016

Note-se, ainda, a absurda implicância generalizada por pessoas opositoras


do Governo Dilma com o termo presidenta – utilizado desde o início por Dilma
Rousseff como uma espécie de ação afirmativa, para destacar que a Presidência
da República estava, pela primeira vez, sendo ocupada por uma mulher. Trata-
se de palavra que efetivamente existe nos dicionários, de sorte a ser ignorância
conceitual afirmar sua “incorreção” – e, nos dicionários até 1940, a palavra
“presidente” era considerada inerentemente masculina, sendo considerado correto
falar-se em “a presidenta” quando uma mulher ocupava o cargo114. Por outro lado,
embora Gramática e Linguística tenham lógicas diferentes e se possa afirmar que
a palavra presidenta estava em desuso (por processo de neutralização de gênero),
nada impedia o seu uso por Dilma Rousseff. Mas rotineiramente, quando alguma
crítica era feita a seu governo, lembrava-se dessa situação, para defender Dilma
como uma pessoa “iletrada”, “ignorante” ou algo do gênero. Todavia, ignorante é
quem entendia que a Gramática não permitia o uso da palavra, como, inclusive,
explicado pelo midiaticamente festejado professor Pasquale115. Sendo que, como
bem aponta Marcia Tiburi, esse ódio “à presidenta” (e não “à presidente”) se
reforçou porque Dilma, “ao dizer-se ‘presidenta’, causou mal-estar ao machismo.
Interrompeu, talvez sem perceber, o jogo de linguagem machista da história política
no Brasil”, bem como por contrariar “a ideologia patriarcal que constrói a ideologia
da maternidade, a ideologia da sensualidade e a ideologia da beleza”, em suma,
porque estava “longe de ser a ‘bela, recatada e do lar’” que as normas de gênero
socialmente hegemônicas impõem à mulher (TIBURI, 2018, pp. 108 e 113).

4. As consequências do Golpe para as minorias sexuais e de gênero

Houve consequências tanto simbólicas quanto materiais para as minorias


sexuais e de gênero em razão do Golpe Parlamentar de 2016.
Simbolicamente, tivemos imediatos marcos paradigmáticos de machismo
social após a ascensão ilegítima de Michel Temer à Presidência da República.
O primeiro, e mais famoso, foi o Ministério de homens, brancos, heterossexuais
e cisgêneros, representantes dos tradicionais “donos do poder”. “Homens de
pele branca, de idade avançada, oriundos da mesma classe social reuniam-se para

114. Para fotos comprobatórias disto, anteriormente à neutralização de gênero da palavra


“presidente”, vide: <https://dicionarioegramatica.com.br/2016/05/02/presidenta-e-mais-
antigo-e-tradicional-em-portugues-do-que-a-presidente/>. Último acesso em 30.6.2018
(matéria de 2.5.2016).
115. Cf. <https://www.revistaforum.com.br/professor-pasquale-corrige-carmen-lucia-presidenta-
esta-correto/>. Último acesso em 30.6.2018.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 223

ritualizar a volta daqueles que nunca saíram do poder”, bem atestou Claudia Leitão
(LEITÃO, 2018, p. 61). Em nenhum país do mundo civilizado se concebe
que os principais postos de poder de um Governo não tenham mulheres deles
fazendo parte. Ao receber essas críticas, Michel Temer tentou se safar, dizendo
que iria nomear mulheres para importantes Secretarias (sem status de Ministérios)
de seu Governo. Mas a emenda até agravou o soneto, pois as Secretarias são
vinculadas/subordinadas a Ministérios, logo, Temer implicitamente (e talvez
inconscientemente) deixou claro que, em sua visão inicial de Governo, só
vislumbrava mulheres subordinadas a homens, visto que só atribuiria a elas cargos
subordinados a Ministérios, então dominados apenas por homens. Como se
sabe, depois de generalizadas críticas, Temer começou, em claro agir estratégico, a
convidar mulheres para assumir cargos de destaque em seu Governo, inicialmente
no Ministério da Cultura, o qual ele havia extinto, mas recriou apenas após forte
pressão social. Sobre o tema, anota Claudia Leitão:

Instalado o governo Temer, seu primeiro ato foi o de extinguir o MinC. O


clamor das classes artísticas e culturais, no entanto, o obrigaram a devolver
a institucionalidade ao Ministério. Nesse ínterim, o presidente compreende
a importância estratégica de convidar algumas mulheres para compor o seu
governo, na tentativa de aplacar as reações contra a legitimidade de seu
mandato, Afinal, oferecer a uma mulher o cargo maior de uma pasta periférica
seria convincente e oportuno. Dessa forma, mulheres passaram a ser
convidadas e a declinarem do convite. (LEITÃO, 2018, p. 62. Grifos nossos)

Felizmente, muitas mulheres de peso recusaram-se a fazer parte deste


Governo ilegítimo, mas, de qualquer forma, há mulheres de direita que apoiaram
o Golpe de 2016 e que, por isso, desde o início dele participariam de bom grado.
Mas o machismo institucional do Governo Temer não percebeu isto. Esclareço
que imagino tratar-se de machismo internalizado, no sentido de que não penso
que Temer deseje, por decisão deliberada, inferiorizar mulheres – penso que
ele, um homem de seu tempo, acaba achando natural que homens estejam em
posições de comando e mulheres não, ou que estejam em posições secundárias,
subordinadas a homens.

Nesse sentido, segundo Eleonora Menicucci:

Esse retrocesso, no plano político, é representado, por exemplo, pelo número


irrisório de ministras (apenas duas em 27 ministérios). E no desmonte
224 O Golpe de 2016

de programas que garantiram a emancipação e a igualdade de gênero. No


aspecto referente à mulher na sociedade, o símbolo é a exaltação da primeira
dama como exemplo de mulher ‘bela, recatada e do lar’, em clara oposição
à imagem da presidenta Dilma. (MENICUCCI, 2018, p. 72. Grifos nossos)
[abaixo, explicamos os desmontes mencionados pela autora]

Ainda no plano simbólico, tivemos a ainda mais desastrosa fala de Michel


Temer no Dia Internacional de Mulher (8 de março) de 2017, ao colocar a mulher
como mera “rainha do lar” e gerente da “economia doméstica”. As simbologias
de referido discurso têm peso inconteste, como bem lembra Eleonora Menicucci:

Ainda nesse campo, o pronunciamento de Michel Temer na solenidade


em homenagem à mulher no dia 8 de março foi elucidativo, particularmente
quando enalteceu o que vê como qualidades e responsabilidades das
mulheres: educação das crianças e pelo bem-estar da família. E culminou com
a lembrança de que elas podem ter grande participação na economia, porque
‘ninguém é mais capaz de indicar os desajustes de preços no supermercado do
que a mulher’ (AMARAL, 2017). [Logo, tratou-se de] Um Golpe patriarcal,
machista, sexista, capitalista financeiro, fundamentalista, midiático e
parlamentar”. (MENICUCCI, 2018, p. 72. Grifos nossos)

Até aqui, o(a) leitor(a) pode entender que estaríamos apenas no plano
do discurso, sem consequências reais concretas aos direitos das mulheres.
Abstraída a relevante questão de que os discursos de Chefes de Governo e da
mídia hegemônica têm efetiva importância social, já que ajudam a moldar o
pensamento de um povo ou, ao menos, apontam quais os valores defendidos
pela política e mídia hegemônicas, agora serão apontados os retrocessos materiais
concretos, prejudicando os direitos das minorias sexuais e de gênero, decorrentes
do Golpe Parlamentar de 2016.
Houve relevante diminuição de investimentos em áreas relacionadas aos
direitos das mulheres, com queda de orçamentos respectivos (redução de 61% em
2017 para investimento com atendimento à mulher em situação de violência, e de 54% para
investimento para políticas de autonomias das mulheres – cf. CASTRO, 2018, p. 136).
Além de rebaixamento da Secretaria da Mulher – retirada de seu status de Ministério,
subordinando-a a outra pasta (chefiada por um homem). Segundo Flávia Biroli:

Desde a deposição de Rousseff, acelerou-se um ajuste fiscal que restringe


equipamentos públicos, responsabilidades do Estado e ações para a
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 225

retirada de direitos e garantias sociais. As reações são, assim, às mulheres


na política e a uma condição de maior participação na vida pública. Em
conjunto, reconfiguram a participação social das mulheres e colocam em
risco a posição em que a ofensiva conservadora e o governo pós-deposição
querem colocá-las, a de sujeitos na vida doméstica, mas não na vida
pública; em outras palavras, a de indivíduos domesticados. De muitas
localizações sociais emergem vozes que deixam claro que as mulheres não
aceitam essa restrição à sua condição de cidadãs. Os golpes que se recolocam
desde a deposição se dão em meio a conflitos, o jogo continua a ser jogado.
(BIROLI, 2018, p. 81. Grifos nossos)

Ademais, segundo Eleonora Menicucci:

Em momentos de crise, Simone de Beauvoir já disse que os cortes


acontecem primeiro nas ações voltadas para a vida das mulheres. Isso
porque o patriarcado é o sustentáculo do capitalismo, o sustentáculo
das políticas neoliberais. Estamos vivendo, portanto, muitos retrocessos e
perdas de direitos. Se a reforma da Previdência Social (que regula a pensão
e aposentadoria de todas as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros) for
aprovada, será a mais cruel e mais trágica para toda a população, mas
sobretudo para as mulheres. Do ponto de vista do ensino, a aprovação da
reforma do Ensino Médio com a inclusão na base nacional do currículo da
perspectiva da Escola sem Partido, sem as disciplinas críticas, a exemplo
[de] sociologia, filosofia e educação física, o objetivo é formar cidadãos e
cidadãs adestradas. São impactos que provocam retrocessos e colocam as
mulheres em lugares dos quais já saíram, que são o tanque, a cozinha e o
fogão, século XX. É muito retrocesso e muita perda de direito, isso não pode
ser aceito. (MENICUCCI, 2018, p. 71. Grifos nossos)

E continua a autora:

Na verdade, as mulheres experimentaram. durante os governos Lula e


Dilma, conquistas importantíssimas com a implementação de políticas
sociais, que beneficiaram e beneficiam a população mais pobre do nosso
país116. E quem são os pobres? A população negra e a população feminina.

116. Para Flávia Biroli: “Houve, de fato, uma agenda de gênero incorporada às políticas de
Estado nas áreas de saúde, educação, assistência social, em políticas para o empoderamento
226 O Golpe de 2016

Foram tirados 40 milhões de pessoas da pobreza. O Bolsa Família passa a


ser visto pelas mulheres como um acesso à cidadania, porque o cartão
para saque do benefício estava em seu nome; a entrega de mais de 1
milhão de documentos de identidade a trabalhadoras rurais, até então
sem qualquer registro civil, as cisternas para trazer água para as casas da
região Nordeste do país, constantemente assolada pela seca. Nesse caso,
a principal beneficiada é a mulher, porque tradicionalmente cabia a elas
andar quilômetros para buscar água que abastecesse a casa e a família.
Em outros programas importantes, como o ‘Minha Casa, Minha Vida’,
que beneficiou milhares de famílias pobres. A titularidade é, em muitos
casos, para as mulheres, porque, em casos de separação conjugal, quando
elas ficam com a responsabilidade pelos filhos, é importante garantir a
moradia à família. No Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico
e Emprego (Pronatec) elas responderam pela maioria das matrículas. O
interessante é a mudança do perfil de frequência aos cursos. Elas optaram,
em grande número, não por conhecidos cursos para as mulheres – manicure,
cabeleireira, costureira – e sim pelas profissões que lhes permitiriam trabalhar
nas plataformas de petróleo, na direção de veículos pesados, mecânicas,
eletricistas, em profissões na construção civil e no conserto de produtos da
indústria branca (geladeiras, máquinas). A Secretaria de Políticas para
as Mulheres com status de Ministério, criada no governo Lula, avançou
demais no governo da Dilma, nas políticas de enfrentamento à violência,
com programas importantíssimos, como o Mulher Sem Violência no valor de
360 milhões de reais, com seis ações para o enfrentamento à violência contra
as mulheres: construção de 27 casas da Mulher Brasileira, uma em cada
estado para reunir, em um só espaço físico, todos os serviços necessários para
acabar com a via sacra das mulheres que foram agredidas e estupradas.
Inauguramos três casas (Campo Grande, Brasília e Curitiba) e deixamos em
processo de construção mais seis (São Paulo, Salvador, Fortaleza, São Luiz,
Boa Vista e Porto Velho). Hoje é lamentável que as três que já existiam
não estejam mais funcionando. A de São Paulo, que foi entregue no final
de 2016, encontra-se fechada envolta pelo mato, sem nenhuma satisfação
da informação sobre o que foi feito com os recursos públicos repassados.
Também foram entregues 54 ônibus para percorrerem áreas rurais levando

econômico das mulheres e profissionalização das mulheres negras, em políticas desenhadas


para ampliar o acesso das meninas a carreiras em que os homens predominam, em
um conjunto robusto de medidas para tornar efetivo o combate à violência contra as
mulheres”. (BIROLI, 2018, p. 77).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 227

atendimento às mulheres vítimas de violência; o disque 180, os barcos


onde estão? Este é um dos maiores exemplos do desmonte das políticas para
as mulheres. [...] Na área da Saúde, a presidenta sancionou uma portaria
para universalizar o atendimento às mulheres em situação de violência e de
estupro, com oferta da contracepção de emergência e aborto, nos casos
previstos em lei. (MENICUCCI, 2018, pp. 69-71. Grifos nossos)

Em suma, segundo a mesma autora:

O golpe parlamentar que retirou do poder a presidenta Dilma Rousseff em


maio de 2016, para além de ter sido um movimento visando interromper um
processo de mudanças sociais no Brasil, tem também um componente forte
de discriminação de gênero. Dilma foi a primeira mulher eleita presidenta
em um país de cultura marcadamente patriarcal. Assumindo o governo,
não apenas continuou o programa de inclusão social iniciado pelo presidente
Lula em 2003, mas aprofundou-o em muitos de seus aspectos, principalmente
em relação às políticas para as mulheres. [...] Em menos de um ano, com
uma voracidade jamais vista, desmontaram as políticas sociais que sustentam
a vida cotidiana, eliminam direitos civis, sociais e trabalhistas que garantem
a cidadania e privatizam bens públicos. [...] São retrocessos decorrentes da
implantação de políticas em que o foco não é a inclusão social e de garantia
dos direitos humanos fundamentais. [...] Esse conjunto de ‘reformas’, com
ingredientes de ordem política e social, se assenta em especial nas mudanças
da política econômica, com forte desregulamentação e orientação para
os interesses do mercado. O foco está em arrecadar mais recursos para o
pagamento dos juros exorbitantes da crescente dívida pública. Ou seja, parte
do orçamento da União é voltada para os rentistas, isto é o que se chama
economia rentista. O capital financeiro agradece e aplaude. Enquanto a
maioria da população brasileira, pobre, é retirada do orçamento da União.
(MENICUCCI, 2018, pp. 65-67. Grifos nossos)

Relativamente à população LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,


Transexuais e Intersexos), cabe destacar que, como minorias e grupos vulneráveis
em geral (pessoas negras, pessoas com deficiência, mulheres cisgênero etc), são
pessoas já estruturalmente discriminadas e marginalizadas socialmente. De sorte a
que a precarização trabalhista efetivada e a precarização previdenciária pretendida
acabam, indiretamente mas efetivamente, prejudicando referidas populações.
Pessoas não-heterossexuais e não-cisgêneras são relevadas às vagas mais precárias
228 O Golpe de 2016

do mercado de trabalho, normalmente como trabalhadoras terceirizadas,


que, mesmo com carteira assinada, recebem remuneração inferior a pessoas
trabalhadoras não-terceirizadas e realizam trabalhos de maiores riscos, com
maiores acidentes do trabalho. O horrendo trabalho intermitente, que permite a
legalização do bico, permitindo que se pague apenas pelo valor da “hora do salário
mínimo”, vai incidir diretamente contra essa população117. Logo, há um impacto
desproporcional sobre as minorias sexuais e de gênero das deformações trabalhistas
efetivadas e previdenciárias pretendidas pela ideologia neoliberal ilegitimamente
assumida pelo Governo Golpista (ilegitimamente tanto sob o aspecto jurídico,
explicado no item 1, quanto por ser uma agenda política derrotada nas últimas
quatro eleições presidenciais). Isso inclusive sobre as mulheres cisgênero, as quais,
notoriamente, contrariamente a proibições constitucional e legal, recebem
remuneração menor que aquela paga a homens cisgênero, pela prática do mesmo
serviço, com mesma experiência e qualificação. Sendo que algo não tão notório
é que homens negros recebem remuneração menor até mesmo que a de mulheres
brancas, e mulheres negras recebem menos que todos os grupos – fenômenos da
interseccionalidade e multidimensionalidade das discriminações (“minorias
dentro de minorias”, discriminadas por suas múltiplas identidades), que aqui

117 Esperemos que, pelo menos isso, o Supremo Tribunal Federal, eventualmente, declare
inconstitucional, visto que a Constituição notoriamente exige o pagamento de um salário
mínimo que, a toda evidência, tem que ser mensal, jamais uma mera “hora de salário mínimo”,
além de exigir a valorização do trabalho humano, de sorte que esse horrendo regime jurídico
viola frontalmente os arts. 7º, IV, e 170 da Constituição Federal. Para uma relação das ações
em trâmite no STF contra a deforma(ção) trabalhista efetivada por Michel Temer, vide:
<https://www.conjur.com.br/2018-mar-12/supremo-soma-20-acoes-mudancas-reforma-
trabalhista> (acesso em 12.3.2018). As ações contra o fim da contribuição sindical foram
julgadas improcedentes (em absurda incoerência, de entender que “o negociado prevalece
sobre o legislado” em acordos e convenções coletivas, mas tirando imediatamente a receita
de sindicatos, precarizando-os no curto prazo, donde pelo menos um período de transição
deveria ter sido reconhecido), cf.: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=382819> (acesso em 29.06.2018). Ademais, antes da temerária deforma
trabalhista, o STF já havia afirmado a citada “prevalência do negociado sobre o legislado”
em pelo menos dois julgados, cf.: <https://www.conjur.com.br/2016-set-20/gustavo-garcia-
negociado-legislado-atual-jurisprudencia-stf> (acesso em 20.09.2016). Por fim, de maneira
lamentável e desconsiderando notórios estudos de sociologia do trabalho sobre a precarização
de trabalhadores(as) em tais situações, o STF declarou constitucional a terceirização da
atividade-fim das empresas, cf.: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.
asp?idConteudo=388429> (acesso em 30.8.2018). Daí eu já ter afirmado que o STF parece
um Tribunal amigo “apenas” de liberdades individuais de autonomia privada (não obstante
a enorme importância destas, cuja proteção merece ser sempre louvada), cf.: <http://www.
justificando.com/2016/10/28/stf-um-tribunal-amigo-apenas-de-liberdades-individuais-de-
autonomia-privada/> (acesso em 28.10.2016). :
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 229

não será possível desenvolver.

Nesse sentido, segundo Marielle Franco:

Num país com alarmantes desigualdades de gênero que temos, local onde
as mulheres recebem salários menores, as mulheres têm mais dificuldade
de serem empregadas em trabalhos formais, sofrem mais com o desemprego
e ainda são sobrecarregadas com a dupla ou tripla jornada, as superações
e conquistas são desafios diários. Se já é difícil para as trabalhadoras
domésticas atingirem os 15 anos de contribuição previdenciária, imagina
para alcançar os 25 anos propostos no projeto de lei enviado ao Congresso? O
Golpe atinge social e simbolicamente a maioria da população, mas chega
com força destruidora para todas nós, mulheres. A repercussão dessa onda
toma todo o país em nível nacional, nas unidades federativas e nos municípios,
com grande impacto nas cidades. Antes mesmo do impeachment, os protestos
da Primavera das Mulheres chamaram a atenção para o absurdo projeto de
lei que dificultava o acesso ao aborto nos casos já permitidos legalmente. As
Marchas das Margaridas e das Mulheres Negras, em Brasília, mostraram a
força do nosso movimento e transversalidade das nossas pautas. No último
8 de março, uma aliança internacional levou milhares de mulheres às ruas
contra as reformas trabalhista e da Previdência. (FRANCO, 2018, pp.
119-120. Grifos nossos)

Em tema diretamente relativo à população não-heterossexual e não-


cisgênera (LGBTI+), tivemos gravíssimo retrocesso nas Diretrizes Curriculares
Nacionais da educação escolar, com a retirada da preocupação estatal com as
questões de gênero, identidade de gênero e orientação sexual nas escolas. Isso
após retirada idêntica, no final de 2014, do Projeto de Lei que gerou o atual
Plano Nacional de Educação (PNE). Segundo Eleonora Menicucci, “a nova
versão do governo golpista eliminou as referências a gênero e orientação sexual. Um
retrocesso enorme nos direitos humanos, que visa atender os setores mais conservadores
e fundamentalistas da sociedade” (MENICUCCI, 2018, p. 67). Outrossim, segundo
Flávia Birolli:

A reação em curso contra os direitos das mulheres se tornou mais aguda, no


Brasil, a partir de 2015. Os dois anos de intensa campanha contra Rousseff e
de tramitação do golpe parlamentar foram também aqueles em que a noção
de ‘ideologia de gênero’ foi mobilizada para se restringir o debate sobre
230 O Golpe de 2016

gênero nas escolas e a agenda de igualdade e diversidade nas políticas


públicas. Não se trata de uma história que tenha se iniciado em 2015, mas
foi em maio daquele ano que o debate sobre gênero foi retirado do Plano
Nacional de Educação (PNE) e reações semelhantes pipocam em todo o
país. Multiplicam-se ações contra os direitos das mulheres, sobretudo os
direitos sexuais e reprodutivos (BIROLE, 2016a). O sexismo atravessa quase
todas as relações em uma sociedade como a nossa, mas os estereótipos mais
extremos, que negavam às mulheres competência para atuação política,
vinham se tornando mais fracos e mesmo ausentes do jornalismo empresarial
e do debate nas arenas formais. (Grifos nossos)

No mesmo sentido, aponta Marielle Franco:

Como feminista, é um desafio ter, pela primeira vez, um prefeito que é bispo,
ligado a uma das maiores igrejas do país, com o risco de construir, na cidade,
uma estética mais pigmentada pela conduta religiosa que pela postura laica.
Nossa primeira prova de fogo no mandato foi a audiência pública do Plano
Municipal de Educação que, apesar da sua importância e amplitude, foi
marcada pelo debate sobre ‘ideologia de gênero’ e ‘Escola sem Partido’.
Como acontece no âmbito nacional, há um discurso organizado que dizima
as propostas em prol de uma educação mais diversa e inclusiva. Reduz as
nossas necessidades da pauta – que são muitas, a um debate vazio. (FRANCO,
2018, p. 123. Grifos nossos)

Também são pertinentes as considerações de Mary Garcia Castro:

[...] o Golpe instalado no Brasil com o impeachment da presidenta Dilma é


mais uma troca de guarda, ou uma mudança de projetos econômicos liberais e
tanto se interessa por minar direitos conquistados por trabalhadorxs, negrxs
e pessoas LGBTTQ. Em outro texto desenvolvo mais a ideia de que gênero
se alinha a um paradigma de conhecimento modelado na complexidade
(CASTRO, 2012), o que pede a constante crítica a princípios universais,
uma vez que, ao se focalizar tanto reprodução como sexualidade, há que
decolar principalmente do território corpo, das vivências e produções de
representações sobre este. Então, corpos negros, corpos transexuais pedem
modelações próprias não somente em termos de considerar violências,
discriminações, subalternidades, mas também desejos, criatividade e o
questionamento de conceitos já que abarcam uma pluralidade de vivências,
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 231

de relações, de subjetividades. Rebatendo a censura a gênero nas escolas


estimulada pela aliança golpe e fundamentalismos religiosos, insisto que
gênero não é uma ideologia, se entendido como uma ‘falsa consciência
de materialidades vividas’, já o que fundamentalistas chamam de
‘ideologia de gênero’ para combater perspectiva de gênero nas escolas
é sim parte de um paradigma sexista, um paradigma da simplicidade
que dicotomiza e hierarquiza o mundo das relações sociais e sexuais. É
um gênero de ideologia que há muito é defendido por dogmas religiosos,
como o ‘parirás com dor’, associação de prazer a pecado, estigmatizar a
mulher como amiga da serpente que trouxe vários males ao mundo; reduzir
a mulher à reprodutora; considerar família como uma instituição que
deve ser sustentada pela autoridade do pai/marido e formatar Igrejas como
organizações masculinas. Um pensamento que está de acordo com a ideologia
da submissão que pauta o Golpe de estado no Brasil hoje. O desafio quanto
à reivindicação de autonomia das mulheres e dos pejorativamente tidos
como ‘mulherzinhas’. (CASTRO, 2018, pp. 134-135. Grifos nossos)

No mesmo sentido, aponta Djamila Ribeiro:

As questões que assolam o país nos últimos tempos revelam um quadro


nebuloso e de retrocessos. O impedimento da presidenta e a ilegalidade
que o cerca demonstram uma falência ética e moral de nossas instituições.
Porém, para além dessas arbitrariedades, os resultados práticos disso afetarão
de modo concreto a vida da população, principalmente a dos grupos
historicamente discriminados. [...] Em relação às mulheres, por exemplo,
os números são altamente alarmantes. Segundo dados da Unicef na pesquisa
Violência Sexual, o perfil das mulheres e meninas exploradas sexualmente
aponta para a exclusão social desse grupo. A maioria é de afrodescendentes,
vem de classes populares, tem baixa escolaridade e habita espaços urbanos
periféricos ou municípios de baixo desenvolvimento socioeconômico. Muitas
desses adolescentes já sofreram inclusive algum tipo de violência (intrafamiliar
ou extrafamiliar). No Brasil, 61% dos óbitos foram de mulheres negras, que
foram as principais vítimas em todas as regiões, à exceção da Sul. Merece
destaque a elevada proporção de óbitos de mulheres negras nas regiões
Nordeste (87%), Norte (83%) e Centro-Oeste (68%). De acordo com dados
do último Relatório anual socioeconômico da mulher elaborado pelo Governo
Federal, 62,8% das mortes decorrentes de gravidez atingem mulheres negras
e 35,6%, mulheres brancas. Porém, nos últimos anos, podemos observar
232 O Golpe de 2016

avanços em algumas áreas. Por exemplo, o aumento da população negra


no ensino superior foi de 31% para 44% entre 2001 e 2014. Segundo
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2013, a
porcentagem de brancos cursando o ensino superior na faixa etária de 18 a
24 anos era de 79%, enquanto a de negros atingia 21%. Apesar de a imensa
maioria que frequenta a universidade ainda ser branca, se for comparado com
os anos 1990, é perceptível a inserção dos negros no mundo acadêmico.
Em 1997, apenas 2,2% de partos e 1,8% de negros entre jovens de 18 e 24
anos cursavam ou tinham concluído um curso de graduação no Brasil. Parte
do aumento desse número é resultado de políticas públicas inclusivas, como
a Lei de Cota para Negros e o ProUni. A erradicação da fome e políticas
sociais como o programa Bolsa Família foram importantes para atenuar as
disparidades. Com o atual quadro, que já aponta para a redução desses
direitos, a situação dessas populações será ainda mais difícil. Nesse sentido,
a organização política desses movimentos se mostra imprescindível. O
feminismo negro, por exemplo, vem historicamente pautando a importância
e a necessidade de um olhar interseccional das opressões, ou seja, de nos
organizarmos de modo a interligar nossas lutas e perceber que existem grupos
que, por combinar opressões, ocupam um lugar de maior vulnerabilidade
social.[...] Posicionar-se contra esse processo ilegítimo de impedimento, para
muitas de nós, mostra-se como uma atitude necessária. Se com nossa frágil
e falha democracia a situação ainda era desfavorável, sem ela não é possível
seguir lutando pela ampliação dos direitos já conquistados. (RIBEIRO, 2016,
pp. 127-129. Grifos nossos)

Igualmente, valem as considerações de Renan Quinalha:

[...] sobretudo desde os trabalhos de Foucault, o poder deixa de ser visto


apenas como interdição para ser entendido também como algo positivo
e produtivo. Em outras palavras, o poder não apenas reprime e silencia,
mas estimula e até compele a profusão de determinados discursos sobre a
sexualidade, pautando padrões de normalidade e, portanto, de exclusão, ainda
mais quando o poder político é menos compartilhado democraticamente.
O governo interino Temer, ainda que não seja uma ditadura ou um regime
totalitário, tem sua origem em um golpe parlamentar e não em eleições
diretas. Assim, de partida, ele perde em pluralidade e é destituído de uma
tensão salutar entre as instituições, marcando um alinhamento ímpar
entre Executivo e Legislativo que reforça as agendas conservadoras com
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 233

essa aprofundação institucional. Ao assumir, desde o Estado, um discurso


religioso e com sua base de sustentação parlamentar nitidamente vinculada
a setores fundamentalistas, esse governo interino toma o poder como um
lugar de irradiação de discursos sobre gênero e sexualidade que colocam
em risco conquistas de décadas, pois diversos projetos de lei em trâmite,
de autoria de parlamentares fundamentalistas, terão agora mais chances de
serem aprovados no Legislativo e sancionados pelo Executivo. No governo
de Dilma, em que, embora tenha sido péssimo do ponto de vista da
promoção dos direitos LGBTs, ao menos não havia esse alinhamento
claro entre instituições. Além, contava-se com militantes comprometidos
com os direitos humanos dentro da estrutura do Estado, dialogando
com os movimentos e resistindo aos retrocessos. Com esse golpe contra a
democracia e os direitos humanos, pode-se dizer que chega à Presidência, por
um atalho, uma moral sexual retrógrada, centrada em um modelo único
de família como célula elementar da sociedade, contra o que chamam
de ‘ideologia de gênero’, prestigiando o matrimônio exclusivamente
entre pessoas de sexos opostos e com papéis de gênero complementares,
cabendo às mulheres serem ‘belas, recatadas e do lar’. Esse governo
interino, portanto, é uma bomba-relógio que precisa ser desativada o quanto
antes, para que o golpe contra as diversidades não se consume. (QUINALHA,
2016, pp. 136-137. Grifos nossos)

Dessa forma, não se pode deixar de considerar como direitos conquistados a


despeito do Golpe (e não em razão do governo ilegítimo) as vitórias pela cidadania
de transexuais e travestis perante o STF (ADI 4275) e o TSE, que garantiram,
respectivamente: (i) direito de transgêneros mudarem nome e gênero no registro
civil independente de cirurgia, laudos e ação judicial, com base em seu direito
humano e fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade; e (ii) direito de
mulheres transexuais e travestis integrarem a cota destinada ao “sexo feminino”
de candidaturas, por se tratar de ação afirmativa voltada à identidade de gênero
feminina, não ao “sexo biológico feminino” (do contrário, homens trans, que se
portam socialmente como homens, se enquadrariam nas referidas cotas, algo
absurdo, já que se trata de defesa da mulher, de determinada biologia). Trata-se
de decisões judiciais, não políticas, pautadas no Direito, logo, sem nenhuma relação
com o governo de Michel Temer.
De qualquer forma, como pontos fora da curva, cabe citar a decisão do
Ministério da Educação do Governo Temer, em prol do respeito do nome social
234 O Golpe de 2016

de alunas(os) transgênero nas escolas (Parecer CNE 17/2017118 e respectiva


Resolução CNE/CP 01/2018119), cujo art. 1º afirma o “objetivo de combater
quaisquer formas de discriminação em função de orientação sexual e identidade
de gênero de estudantes, professores, gestores, funcionários e respectivos
familiares”. Bem como cabe citar a possibilidade de respeito ao nome social na
nova identificação civil nacional (ICN), nos termos do art. 8º, XI, do Decreto
Federal nº 9.278/2018, que trouxe nova regulamentação à Lei Federal nº
7.116/1983. Todo Governo tem contradições e pessoas neoliberais na economia
muitas vezes são “progressistas nos costumes” – como, aliás, qualquer liberalismo,
levado a sério, deveria ser, já que é incoerente ser “liberal na economia, mas
conservador nos costumes”, visto que esse conservadorismo demanda atuação
estatal na área “dos costumes”, algo contraditório com a premissa liberal de
não-intervenção do Estado na vida dos indivíduos em tudo aquilo que não seja
essencial à vida social, logo, não-intervenção estatal sempre que a conduta
individual não prejudique terceiros(as). É preciso elogiar os avanços, quando vêm,
além de criticar os retrocessos. É a postura que adoto como princípio.

5. Conclusão

Gritamos Golpe porque o impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi ilegal


e inconstitucional, ante o fato de as “pedaladas fiscais” não serem “operações de
crédito” e, consequentemente, não se enquadrarem no crime de responsabilidade
respectivo, bem como pela Lei Orçamentária ter convalidado os créditos
extraordinários que se alega que a teriam violado, de sorte a não se poder falar,
também aqui, em incidência no crime de responsabilidade respectivo. Somente
estes fatos estavam em julgamento pelo Congresso Nacional, segundo os termos
da decisão de recebimento da denúncia pelo então presidente da Câmara, donde
ilegal e inconstitucional a destituição da presidenta Dilma Rousseff, ante o fato
de o art. 85, par. único, da Constituição Federal exigir crime de responsabilidade
previamente previsto em lei que descreva taxativamente a conduta para que
possa ocorrer um impeachment juridicamente válido no Brasil.

118. Parecer publicado no Diário Oficial da União de 18.2.2018. Íntegra em: <http://portal.
mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=72921-pcp014-17-
pdf&category_slug=setembro-2017-pdf&Itemid=30192>.
119. Ele se encontra contido ao final do parecer mencionado na nota anterior. Íntegra
(autônoma) disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_
docman&view=download&alias=81001-rcp001-18-pdf&category_slug=janeiro-2018-
pdf&Itemid=30192> (acesso em 30.6.2018).
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 235

Diversas manifestações de machismo acompanharam as críticas à presidenta


Dilma Rousseff enquanto ocupou a Presidência da República. Persistências nas
críticas a seu modo de ser, não compatível com as normas de gênero e respectivos
estereótipos de gênero daquilo que a ideologia de gênero machista, heterossexista e
cissexista impõe às mulheres (basicamente, por ela não se enquadrar no modelo
de “bela, recatada e do lar”, que a revista Veja tanto elogiou em famosa capa,
logo após o afastamento de Dilma pela Câmara dos Deputados). O Ministério
masculino, heterossexual, cisgênero dos tradicionais “donos do poder” que Michel
Temer indicou tão logo assumiu a presidência da República deixa claro um
machismo internalizado por ele, tendo em vista que pretendia, inicialmente, que
mulheres ocupassem apenas cargos secundários, por serem vinculados a cargos
ocupados por homens, algo que só mudou após as fortes críticas sociais contra
isso. Mesmo assim, há número muito menor de mulheres em cargos de primeiro
escalão atualmente. O discurso de Temer, no Dia Internacional da Mulher de
2017, colocando-a basicamente como “rainha do lar” e vocacionada à economia
doméstica, só desvela ainda mais as pré-compreensões machistas do ilegítimo
Governo Temer, que se presume internalizadas (“não-intencionais”, mas por ele
naturalizadas, por ser um homem de seu tempo).
Por outro lado, houve retrocessos materiais a direitos das mulheres, com
orçamentos menores para áreas destinadas ao enfrentamento do machismo
social. Houve, ainda, a retirada da preocupação estatal com gênero, identidade
de gênero e orientação sexual das Diretrizes Curriculares Nacionais, o que denota
total ausência de preocupação, da parte do Congresso Nacional, com o machismo,
a homofobia e a transfobia que assolam as escolas, ao que não se opôs o referido
Governo. Isso não obstante direitos conquistados a despeito do Golpe, via STF e
TSE em favor da população transgênero, e pontos fora da curva, como o decreto
que determina o respeito ao nome social de alunas travestis e transexuais e
alunos homens trans. Algo, em tese, compatível com o neoliberalismo, visto
que pautado na não-intervenção estatal em áreas não essenciais à vida social,
de sorte isso permitir que mesmo governos que prejudicam os direitos sociais
(como o Governo Temer) não visem discriminar diretamente minorias e grupos
vulneráveis e lhes garantam, inclusive, algum respeito a seu direito à diferença.
Até porque é profundamente contraditório a pessoa ser “liberal na economia,
mas conservadora nos costumes”, visto que esse conservadorismo demanda
atuação estatal na área “dos costumes”, algo contraditório com a premissa liberal
de não-intervenção do Estado na vida dos indivíduos em tudo aquilo que não
seja essencial à vida social, logo, não-intervenção estatal sempre que a conduta
individual não prejudique terceiros(as).
236 O Golpe de 2016

Por fim, note-se que neste artigo fiz questão de transcrever as posições
de várias mulheres porque, afinal, trata-se de um artigo sobre gênero, no qual o
lugar de fala das mulheres precisa ser respeitado. Como homem gay, posso bem
representar o lugar de fala das minorias sexuais e de gênero. Então, embora não seja
um conceito focado necessariamente em qualquer integrante do grupo, mas em
discursos a partir da vivência coletiva do grupo social em questão (o lugar social de
que seus integrantes em geral partem, enfatizando não experiências individuais,
mas experiências comuns resultantes desse lugar social, exceções individuais à parte
– cf. RIBEIRO, 2017, pp. 55 e 59-63), de sorte que terceiros podem respeitar o
lugar de fala de outros grupos ao defender as demandas destes, achei por bem,
em um artigo sobre gênero, trazer a fala de mulheres com relevantes contribuições
sobre o tema.

Referências

CASTRO, Mary Garcia. “O Golpe de 2016 e a demonização de gênero”. In:


RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (org.). O Golpe na perspectiva de gênero,
Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 127-145.
FRANCO, Marielle. “Mulher, negra, favelada e parlamentar: resistir é
pleonasmo”. In: RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (org.). O Golpe na
perspectiva de gênero, Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 117-126.
LEITÃO, Claudia. “Imaginário, Mulher e Poder no Brasil: reflexões acerca do
impeachment de Dilma Rousseff”. In: RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (org.).
O Golpe na perspectiva de gênero, Salvador: EDUFBA, 2018.
MENUCUCCI, Eleonora. “O Golpe e as perdas de direitos para as mulheres”.
In: RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (org.). O Golpe na perspectiva de gênero,
Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 65-73.
QUINALHA, Renan. “Em nome de Deus e da família”: um golpe contra a
diversidade. In: JINKINGS, Ivana. DORIA, Kim. CLETO, Ivana (org.). Por
que gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil, São
Paulo: Ed. Boitempo, 2016, pp. 131-137.
RIBEIRO, Djamila. “Avalanche de retrocessos: uma perspectiva feminista negra
sobre o impeachment”. In: JINKINGS, Ivana. DORIA, Kim. CLETO, Ivana (org.).
Por que gritamos Golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil,
São Paulo: Ed. Boitempo, 2016, pp. 127-130.
luiz antonio dias | rosemary segurado (orgs.) 237

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? São Paulo: Ed. Letramento, 2017.
SOUZA, Jessé. A radiografia do Golpe, São Paulo: Leya Ed., 2016.
TIBURI, Márcia. “A máquina misógina e o fator Dilma Rousseff na política
brasileira”. In: RUBIM, Linda. ARGOLO, Fernanda (org.). O Golpe na perspectiva
de gênero, Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 105-116.
TOSTE, Verônica. De Dilma Rousseff a Marcela Temer: Gênero como categoria para
a análise política. Disponível em: https://partidanet.wordpress.com/2017/04/17/
de-dilma-rousseff-a-marcela-temer-genero-como-categoria-para-a-analise-
politica/ (acesso em 30.6.2018).

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