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Teologia Pública

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ
Vice-reitor
Aloysio Bohnen, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ
Diretora adjunta
Hiliana Reis

Gerente administrativo
Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação


Ano 2 – Nº 8 – 2006
ISSN 1807-7862

Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorial
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos
Prof. MS Dárnis Corbellini – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos
Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos
MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos
Esp. Susana Rocca – Unisinos
Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos
Conselho científico
Prof. Dr. Gilberto Dupas – USP - Notório Saber em Economia e Sociologia
Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia
Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais
Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História
Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação
Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia
Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS - Doutor em Psicologia Social e Comunicação
Responsável técnico
Laurício Neumann

Revisão
Mardilê Friedrich Fabre

Secretaria
Camila Padilha da Silva

Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Impressão
Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos Sinos


Instituto Humanitas Unisinos
Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467
www.unisinos.br/ihu

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Sumário

O que a teologia pública traz de novo


Entrevista com José Roque Junges........................................................................................ 5

Teologia e pós-modernidade
Entrevista com Bruno Forte .................................................................................................. 9

Teologia e teoria social. Para além da razão pós-moderna


Entrevista com John Milbank ................................................................................................ 12

Uma teologia que ajuda a entender o envolvimento de Deus na história do mundo


Entrevista com Rosino Gibellini............................................................................................. 15

Culturas e religiões estão dialogando constantemente


Entrevista com Michael Amaladoss........................................................................................ 18

A Igreja e a revolução cultural de 1968


Com Giancarlo Zizola ........................................................................................................... 20

Teologia, pós-modernidade e universidade


Entrevista com João Batista Libânio, David Tracy, Michael Amaladoss, Lúcia Weiler, 24
Andrés Torres Queiruga e Luiz Carlos Susin.........................................................................

É necessário desbloquear a experiência de Deus


Entrevista com Maria Clara Lucchetti Bingemer .................................................................... 37

A possibilidade da fé e da teologia, hoje


Entrevista com Johan Maria Herman Josef Konings.............................................................. 42

O cristianismo tem algo a dizer para a contemporaneidade?


Entrevista com Nélio Schneider............................................................................................. 47

A teologia e a idéia de desenvolvimento nacional


Entrevista com Rubens Ricupero........................................................................................... 49

Literatura como lugar da teologia


Entrevista com Geraldo Luiz De Mori ................................................................................... 54

“As forças vivas da Igreja sentem a necessidade de um oxigênio participativo”


Entrevista com Clodovis Boff ................................................................................................ 57

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

A Igreja vestida somente de Evangelho e sandálias


Entrevista com Jose Ignácio González Faus........................................................................... 62

Refundando a teologia da libertação


Entrevista com Juan José Tamayo-Acosta ............................................................................. 66

O temor do reconhecimento da alteridade


Por Fausto Teixeira ............................................................................................................... 74

A paixão de Cristo: Por uma sociedade sem vítimas


Entrevista com Jürgen Moltmann.......................................................................................... 78

Karl Rahner: abertura para os “sinais dos tempos” na teologia, na Igreja e na sociedade
Entrevista com Albert Raffelt ................................................................................................. 83

A relação entre a teologia cristã e o pluralismo cultural


Por Rosino Gibellini .............................................................................................................. 88

A imaginação analógica da teologia cristã


Entrevista com David Tracy................................................................................................... 90

Um pontificado aberto ao exterior e fechado ao interior da Igreja


Entrevista com Paul Valadier................................................................................................. 92

Os desafios da Igreja no século XXI


Entrevista com Aloísio Lorscheider........................................................................................ 95

Queria uma Igreja semelhante à Igreja anterior ao Concílio Vaticano II


Entrevista com teólogo estadunidense ................................................................................... 100

O próximo pontificado será um tempo de transição significativo


Entrevista com Pedro Casaldáliga ......................................................................................... 103

Uma maior flexibilidade dogmática e ritual


Entrevista com Walter Altmann ............................................................................................. 106

A opinião de alguns teólogos brasileiros sobre o encontro de Bento XVI com Hans Küng
Por José Oscar Beozzo, Luiz Carlos Susin e Faustino Teixeira .............................................. 109

A teologia feminista e o Deus de muitos nomes


Entrevista com Wanda Deifelt................................................................................................ 111

À meia luz: a emergência de uma teologia gay. Seus dilemas e possibilidades


Por André Sidnei Musskopf................................................................................................... 114

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O que a teologia pública traz de novo

Entrevista com José Roque Junges, SJ

Ante a crise paradigmática que vivemos, mui- IHU On-Line – Por que a necessidade de
tos estudiosos (filósofos, cientistas, sociólogos, teó- pensar a teologia dentro da universidade?
logos etc.) apostam na necessidade de recuperar e Roque Junges – Hoje, fora algumas universida-
aprofundar as grandes intuições presentes nas des católicas, cujos cursos de Teologia visam à for-
grandes religiões como capazes de apontar saídas mação de seminaristas e pessoas da Igreja, as uni-
para o século XXI. É esta a intuição que move mui- versidades em geral, muito menos as estatais, não
tas iniciativas no mundo, hoje. A busca de um pro- têm teologia. Esse fato deve-se, em parte, ao pro-
jeto ético mundial, planetário, capaz de forjar um cesso de laicização próprio de quase todos os paí-
novo contrato social universal, pode ser impulsio- ses do mundo. Os países germânicos e anglo-sa-
nado e dinamizado pelas grandes religiões, nas xões, países mais protestantes, muitas vezes, in-
quais se inclui, evidentemente, o cristianismo com cluem a teologia nas universidades laicas e estatais.
a sua teologia e a sua espiritualidade. Contribuir Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a teologia foi
na busca de saídas para os grandes desafios que a assumindo a forma de ciência da religião. Talvez
humanidade enfrenta é também o serviço que o foi a única maneira de a teologia encontrar o seu
Instituto Humanitas Unisinos quer prestar por lugar em universidades não-confessionais e numa
meio do grupo temático Teologia Pública. cultura pluralista. Na Alemanha, ao contrário, as
Para compreender o conceito de Teologia universidades estatais continuam a ter teologia
Pública, IHU On-Line conversou com o Prof. Dr. propriamente dita. Hoje, no Brasil, a teologia é
José Roque Junges, professor no PPG em Saúde uma subárea de conhecimento, reconhecida pelo
Coletiva da Unisinos e participante do grupo te- CNPq. Para o teólogo luterano Jürgen Moltmann,
mático Teologia do Instituto Humanitas Unisinos. o conceito de teologia pública responde à
Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade pergunta sobre o papel da teologia numa universi-
Gregoriana, PUG, Itália, mestre em Teologia pela dade que precisa lidar com os desafios contemporâ-
Pontifícia Universidade Católica do Chile, UC, es- neos (J. Moltmann, Dio nel Progetto del mondo
pecialista em História pela Unisinos e graduado moderno: Contributi per una rilevanza pubblica
em Filosofia pela PUCRS. Junges é autor dos se- della Teologia. Brescia: Queriniana, 1999).
guintes livros: Ecologia e criação – Resposta
Cristã à crise ambiental. São Paulo: Loyola, IHU On-Line – A teologia, então, poderia ter
2001; Evento Cristo e Ação Humana: Temas um outro viés que não seja o de formar qua-
fundamentais da Ética teológica. São Leopol- dros eclesiásticos?
do: Ed. Unisinos, 2001; Bioética: perspectivas Roque Junges – Geralmente, quando se fala em
e desafios. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. teologia, imediatamente se associa com duas idéias

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

específicas. A primeira, uma teologia mais ecle- universidade confessional cristã. No Brasil, não
siástica, visando à formação de quadros para a existe algo nessa linha. Moltmann defende enfati-
Igreja. Em segundo lugar, uma teologia com um camente essa presença, não transformando a teo-
controle externo, pois, na definição da teologia logia nem em filosofia da religião nem em ciências
eclesiástica, o bispo tem um papel fundamental. da religião. Essas formas podem ser válidas, mas
Daí a importância, segundo Moltmann, de distin- não podem querer substituir a teologia. No mun-
guir entre teologia eclesiástica, que forma quadros do pluralista, as ciências da religião têm seu valor
para a Igreja, e teologia pública, que quer ser uma como incentivo para o diálogo inter-religioso.
presença no mundo acadêmico. Para não cair, porém, num puro irenismo e desen-
volver um verdadeiro diálogo inter-religioso, a
IHU On-Line – E qual seria a especificidade identidade religiosa de quem entra no diálogo
da teologia pública? precisa ser consistente, para poder dialogar de co-
Roque Junges – Teologia pública seria a presen- ração aberto e sem temores. Para isso a teologia
ça da fé cristã, dentro da universidade, em dois ajuda. O desafio é não mercantilizar a religião. A
sentidos. Por um lado, uma teologia que se deixe sociedade tende a mercantilizar tudo, transfor-
questionar pelos desafios da ciência, pois a uni- mando até a religião num supermercado de dife-
versidade é o lugar por excelência para deixar-se rentes produtos à escolha. Moltmann critica essa
questionar por esses desafios, como, por exemplo, mercantilização presente na tendência pós-mo-
os lançados pela biologia, pela genética etc. Para derna de colocar a teologia de escanteio. Sem es-
discutir essas questões, ela necessita de liberdade tatuto acadêmico, possibilitado pela teologia, a fé
acadêmica. Não pode simplesmente repetir o que cristã torna-se obsoleta, porque não tem nada a
sempre foi dito, mas tentar novas compreensões e dizer sobre os desafios enfrentados dentro da uni-
interpretações. É claro que ela precisa seguir o es- versidade, transformando a religião e a fé em algo
tatuto epistemológico próprio da teologia, tendo exótico a ser apenas estudado.
como ponto de partida a revelação e a tradição,
mas com uma abertura para repensar esses dados IHU On-Line – O que a teologia pública tra-
na resposta aos desafios atuais. Um segundo sen- ria de novo para o próprio cristianismo?
tido dessa presença da teologia pública é que ela Roque Junge – Ela ajuda a repensar o papel do
seja uma presença crítica. Uma visão humanista cristianismo na sociedade atual e aprofundar a
que enfrente criticamente os pressupostos do pa- identidade cristã em novos moldes. Nas universi-
radigma da modernidade presente na ciência e na dades, existem pessoas que convivem e acompa-
sociedade. Portanto, a teologia pública, por um nham diariamente os desafios da ciência, mas não
lado, deixa-se desafiar pelas ciências atuais e, por aprofundam a sua fé cristã diante desses desafios.
outro, também desafia criticamente as ciências em Elas estão avançadas em relação à ciência, por
seus pressupostos. A teologia, nesse sentido, é pú- meio de pesquisas, leituras, especialização, douto-
blica por querer marcar presença no espaço públi- rado etc., mas na sua fé pararam na catequese da
co; em outro sentido, ela é eclesiástica por ser rea- vovó. É compreensível que considerem os conteú-
lizada no espaço da Igreja. dos aprendidos, quando crianças, como algo infan-
til e ultrapassado diante dos conhecimentos cientí-
IHU On-Line – Por que a teologia nas univer- ficos adquiridos. O problema é que a concepção da
sidades tende a diluir-se em outras discipli- fé não se reduz ao que viram como crianças. A
nas como ciências da religião, por exemplo? compreensão intelectual da fé não acompanhou o
Roque Junges – A teologia pública, ou seja, a crescimento da compreensão cientifica. Esse desní-
presença da teologia cristã no espaço público da vel esvazia a fé de seu significado. O problema é
universidade é algo novo, necessita de coragem e como dar aos intelectuais de inspiração cristã uma
criatividade, por isso é mais difícil, mas muito mais visão mais adulta e consistente de sua fé. A teolo-
interessante. Isso vale principalmente para uma gia tem um papel relevante nessa tarefa.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – E o que traria de novo para a a teoria evolucionista, que é retomada em Deus
sociedade civil? após Darwin, mas ele tem uma visão teleológica
Roque Junges – Sendo pública, a teologia esta- de Cristo. Para ele, tudo foi criado por causa de
ria interessada nas esferas política, social, cultural, Cristo Ressuscitado. Outro teólogo que é retoma-
econômica, ecológica de uma sociedade, pois ne- do no livro é Jurgen Moltmann. Ele foi um pouco
las vai acontecendo o Reino de Deus. Portanto, o mais adiante. Moltmann aceita esse surgimento
ponto de referência da teologia pública, segundo da criação por acaso, com momentos de saltos
Moltmann, não é a Igreja, mas o Reino de Deus. qualitativos que seriam explícita intervenção de
Assim ela tenta assumir uma perspectiva profética Deus, como, por exemplo, o surgimento da vida
na sociedade. Para Moltmann, a teologia pode inanimada, animada e do ser humano.
contribuir com três tarefas: interessar-se e desper-
tar o senso do bem comum na sociedade; analisar IHU On-Line – De que maneira o autor ex-
criticamente os valores religiosos presentes na so- plica isso?
ciedade; interessar-se pelos valores morais do Roque Junges – O autor, junto com Moltmann,
ethos social. retoma a teoria da criação na mística judaica da
Cabala. Essa mística afirma que, no princípio, só
existia Deus, e ele ocupava tudo. Para a criação,
A evolução não é um problema para a Deus se retirou, dando lugar ao nada e permitindo
teologia que as coisas surgissem. Dessa forma, foi surgindo
a criação.
IHU On-Line – Qual a novidade teológica
que o livro Deus após Darwin. Uma teologia IHU On-Line – Essa teoria estabeleceria
evolucionista (de John F. Haught, Rio de Ja- uma relação entre a forma como Deus cria e
neiro: José Olympio, 2002) traz para nós a forma como Ele salva, ambas as ações
hoje? mostram um ato de esvaziamento por parte
Roque Junges – O livro é uma tentativa de levar de Deus?
a sério as contribuições de Darwin e repensar a Roque Junges – Dessa forma, a criação não se-
doutrina da criação. Hoje, para a teologia, não é ria um sinal da onipotência de Deus, e sim da auto-
problema aceitar a evolução na criação. Já os limitação. Deus se autolimitou para deixar surgir o
Santos Padres falavam da criação como sementes mundo e o homem, alguém que pode se opor a
que se foram desenvolvendo. O problema maior Ele. O esvaziamento de Cristo na Cruz já está na
está em outro ponto. Darwin e a biologia afirmam criação. Dividir o Deus da Criação e da Salvação
que não existe direcionalidade nas coisas, ou seja, não é possível. Tudo aquilo que afirmamos de Cris-
um encaminhamento de todas as coisas em um to, podemos afirmar também de Deus na Criação.
sentido mais perfeito. As coisas existem por acaso.
John F. Haught se pergunta como poder aceitar IHU On-Line – De alguma maneira a teoria
essa teoria em harmonia com a doutrina de um está explicando também a existência do
Deus Criador. mal no mundo?
Roque Junges – Isso ajuda para entender a ques-
IHU On-Line – Que linhas teológicas já exis- tão do mal, não o mal moral, e sim o que está rela-
tentes são usadas pelo autor? cionado à natureza, como doenças ou catástrofes
Roque Junges – Muitos teólogos vivem como se naturais. O mal surge. Faz parte do desenvolvimen-
Darwin não tivesse existido. Muitos biólogos colo- to da natureza. Deus ao autolimitar-se não interfere
cam em Darwin uma negação de Deus criador. nas leis da natureza. Muitas vezes, diante do mal,
Acho que nenhuma das duas versões expressam o as pessoas se perguntam: “Deus quis?” Mas não foi
pensamento darwiniano. Teilhard de Chardin, Deus que quis. É uma dinâmica da natureza. Deus
por exemplo, fez uma grande tentativa de aceitar sempre quer o bem para a pessoa.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Deus então não está dirigin- sua força e sua paz no coração da pessoa, e isso
do a criação a um estado específico nem cria dinâmicas interiores no ser humano que po-
provoca os desvios da natureza. De que for- dem levar, inclusive, a superar doenças. Uma
ma está agindo? doença atravessa o corpo, a mente e o espírito, e
Roque Junges – Deus não está inerte. Age no a dinâmica criada pela presença de Deus no inte-
coração do homem, não intervém diretamente so- rior dessa pessoa o transforma em todo seu ser
bre as leis da natureza, mas age com seu amor, humano. Assim eram os milagres de Jesus.

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Teologia e pós-modernidade

Entrevista com Bruno Forte

Bruno Forte é teólogo italiano, consultor do realidade deve inclinar-se sob o poder do pensa-
Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos e mento: o abraço total da razão converte-se, assim,
membro da Comissão Teológica Internacional. em totalitarismo. Se a razão iluminada pretende
Teólogo de grande fama, celebrado escritor, o explicar tudo, a pós-modernidade se oferece
professor Bruno Forte ministra cursos e conferên- como o tempo que está para além da totalidade
cias em muitas universidades européias, america- luminosa da ideologia, tempo pós-ideológico ou
nas e asiáticas. É doutor em Teologia e em Filoso- do longo adeus, tempo do abandono da violência
fia. Professor ordinário de teologia dogmática na totalizante da idéia e do declínio das suas preten-
Pontifícia Faculdade de Teologia da Itália Meridio- sões. Se para a razão adulta tudo tinha sentido,
nal, localizada em Nápoles, colabora também em para o pensamento débil da condição pós-moder-
numerosas revistas européias. Autor de inúmeros na já nada mais parece ter sentido. É tempo de
livros, sendo sua obra mais recente A essência naufrágio e de queda. A crise do sentido passa a
do cristianismo. Petrópolis: Vozes, 2003. Publi- ser a característica peculiar da inquietação pós-
cou pela Editora Paulus os livros: Introdução à moderna. Neste tempo, de pobreza, que – como
fé: aproximação ao mistério de Deus; Na observa Martin Heidegger – é “noite no mundo”,
memória do Salvador; Teologia da História: não por causa da falta de Deus, mas porque os ho-
Ensaio sobre a revelação. Pelas Edições Loyo- mens já não sofrem com essa falta, a doença mor-
la, publicou, em 2002, o livro Teologia em Diá- tal é a indiferença, a perda do gosto por procurar
logo. Para quem quer e para quem não quer as razões últimas pelas quais valha a pena viver e
saber nada disso. morrer, a falta de “paixão pela verdade”, como
afirma a Fides et Ratio.
IHU On-Line – Segundo a sua opinião, o que
mais caracteriza a pós-modernidade? IHU On-Line – O que nesse tempo mais di-
Bruno Forte – A parábola da época moderna – ficulta e o que mais ajuda a viver o cris-
da qual todos somos herdeiros – coincide com o tianismo?
processo que vai do triunfo da “razão adulta”, ca- Bruno Forte – A cultura pós-ideológica se apre-
racterizada pelas maiores ambições, à experiência senta pobre de esperança e de grandes razões:
difusa da fragmentação e do sem-sentido que se onde falta a paixão pela verdade, tudo é possível e
seguiu à queda dos fortes horizontes da ideologia. finalmente até a solidariedade se pode unir a cál-
O sonho que inspira os grandes processos de culos vulgares. Esta análise da parábola da mo-
emancipação da época moderna – daqueles dos dernidade que, da embriaguez das visões ideoló-
países do assim chamado Terceiro Mundo àque- gicas leva à indiferença própria do tempo pós-
les das classes exploradas e das raças oprimidas, e moderno, não exclui sinais de luz e de esperança.
aos da mulher na variedade dos contextos cultu- Existe uma “nostalgia duma perfeita e consumada
rais e sociais – empurra o homem “moderno” a justiça” (Max Horkheimer), que se deixa reconhe-
querer uma realidade totalmente iluminada pelo cer nas inquietações do presente: é como uma es-
conceito, na qual se expresse o poder da razão. A pécie de procura do sentido perdido. Não se

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

trata d’une recherche du temps perdu, de uma acontecimento real em que é colocada: precisa-
operação da saudade, mas de um esforço de reen- mente assim, esta se abrirá a reconhecer e acolher
contrar o sentido para além do naufrágio, de reco- docilmente a ação do Espírito que no “hoje” dos
nhecer um horizonte último sobre o qual medir o homens faz presente o “hoje” de Deus. No encon-
caminho daquilo que é penúltimo. É possível assi- tro entre a história e a Palavra, o discernimento
nalar algumas expressões desta procura do senti- abre-se a propostas provisórias e credíveis. Lendo
do perdido: em primeiro lugar, a redescoberta do a história no Evangelho, o discernimento teológi-
outro. O próximo, pelo simples fato de existir, é co lê analogamente o Evangelho na história. Des-
razão do viver e do viver juntos, porque é desafio se modo é possível conceber a presença da teolo-
a sair de si, a viver o êxodo sem retorno do com- gia no diálogo com as ciências e concretamente
promisso pelos outros, do amor. Em segundo lu- na reflexão crítica de uma universidade.
gar, é de assinalar uma renovada “nostalgia do to-
talmente Outro” (Max Horkheimer), uma espécie IHU On-Line – Em tempos de guerra, se tem
de redescoberta do Último: desperta-se uma ne- falado muito do silêncio de Deus. Como o
cessidade, que genericamente se poderia definir senhor vê isso?
como religiosa, necessidade de alicerces, de senti- Bruno Forte – A liberdade convida Deus e o ser
do, de horizontes últimos, de uma pátria final que humano para um encontro inelutável, o encontro
não seja aquela sedutora, manipuladora e violen- do universo opaco do silêncio. É no risco da liber-
ta da ideologia. Reacende-se a sede de um hori- dade que se joga a vida de todo ser humano dian-
zonte de sentido pessoal, capaz de fundar a rela- te do tempo e do eterno: quem não busca em
ção ética como uma relação de amor. O Outro – Deus seguranças fáceis, mas a rocha nua da ver-
fundamento último das razões do viver e do viver dade, sabe que o bem deve ser feito também
juntos – é a pergunta aberta da crise do nosso pre- quando aparece improdutivo e perdedor. Diante
sente, a nostalgia da dor do tempo em que nos foi do silêncio de Deus e da sua inquietante ambigüi-
dado viver... dade, o essencial é a semeadura, o ato que se
cumpre na obediência a Ele, deixando o futuro in-
IHU On-Line – Qual é o lugar da teologia na teiramente em suas mãos: “O essencial, escreve
universidade? ainda Neher, não é a colheita, o essencial é a se-
Bruno Forte – O reconhecimento dos sinais do meadura, no risco, nas lágrimas. A esperança não
Espírito no tempo presente exige que a teologia está no riso e na plenitude. A esperança está nas
faça uma atenta obra de discernimento, que abar- lágrimas, no risco e no seu silêncio. Ao silêncio de
que inseparavelmente três momentos; o assumir a Deus só pode corresponder um ato de amor gra-
complexidade; o confronto com a Palavra; a indi- tuito e total que leva a arriscar tudo apenas para
cação de pistas provisórias e credíveis. Assumir a agradar a Ele e construir a vida e o mundo segun-
complexidade significa reconhecer a realidade do do sua vontade. Trata-se de jogar tudo na convic-
mundo com todo o jogo inabarcável das relações ção de que a paz é obra da justiça e que sem justi-
históricas que a caracterizam. Assume a complexi- ça e perdão nunca poderá acontecer a paz e o
dade que não lê a história, com base em um es- bem para todos. Entretanto, quem dos poderosos
quema ideológico pré-constituído, quem se esfor- do Ocidente estará disposto a escutar este grito de
ça por se deixar inquietar e provocar nos seus pre- dor, de esperança e de fé em Deus e no ser
conceitos, quem aceita suportar o peso de não ter humano?
diagnósticos já feitos e terapias pré-determinadas.
Longe de se fechar num castelo tranqüilo de fáceis IHU On-Line – Qual é a maior dificuldade
certezas, a teologia, na escuta do Espírito – empe- do homem e da mulher, hoje, para poder ver
nhada em discernir os sinais dos tempos –, deverá o rosto de Deus apresentado por Jesus?
viver na brecha da história, no diálogo e na com- Bruno Forte – Quem é o Pai de Jesus? Jesus
panhia exigente e fecunda de quantos fazem o chamou a Deus “pai”, “abba”, palavra de ternura

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

com que as crianças adoravam dirigir-se ao pai e que freqüentemente me domina, tem origem, em
que também os adultos usavam para exprimir grande parte, pela tua influência. Eu podia sabo-
confiança. Jesus foi o primeiro judeu que se diri- rear quando tu nos davas só a preço de vergonha,
giu a Deus com este nome: isso ressoa em Mc esforço, fraqueza, sentimento de culpa, enfim po-
14,32-36, na hora suprema da dor, quando tudo dia estar agradecido a ti como o está um mendigo,
parece desmoronar-se, e a solidão do Nazareno é não com os fatos. O primeiro resultado visível des-
total, porque também os discípulos não foram ca- ta educação foi aquele que me fez fugir quanto an-
pazes de estar e velar uma só hora com Ele. Jesus tes, mesmo que distantemente, me lembrasse de
diz: “Abbá, Pai, tudo te é possível, afasta de mim ti”. Quantas vezes a recusa do pai nasce da neces-
este cálice: contudo não se faça o que Eu quero, sidade de se libertar de uma dependência! Quan-
mas aquilo que Tu queres”. Esta é a revelação do tas vezes a paternidade, que estamos todos cha-
Pai, em cujas mãos Jesus confia o Seu Espírito! O mados a exercitar como paternidade-maternidade,
Pai de Jesus é, pois, o Deus capaz de sofrer por se transforma em possessividade, escravatura, do-
amor à Sua criatura: não apenas o Deus humilde, mínio! Eis, pois, que se perfila a imagem dramáti-
o Deus da compaixão e da ternura, mas o Deus ca do assassínio do pai. Na realidade, uma das cau-
que paga o preço supremo do amor. O Pai de Je- sas profundas da angústia que existe no coração
sus é o Deus capaz de sofrer por amor: disse-o humano é que – se todos queremos vencer a mor-
com palavras intensas João Paulo II na Dominum te – temos todos a necessidade de um pai-mãe no
et vivificantem (n. 39 e 41), quando falou do mis- amor que nos acolha, e para o qual todos, de um
tério do sofrimento escondido no coração divino. modo ou de outro, vivemos ou estamos vivendo
Diziam-no os Concílios da Igreja antiga: Deus pas- momentos de rejeição por medo que nos sufoque.
sus est. Repetia-o Orígenes: “Nem o Pai é impassí- O assassínio do pai é uma espécie de assassínio ri-
vel! Deus chora até por Nabucodonosor!” O sofri- tual, de gesto para afirmar a nossa independência,
mento de Deus não é o sinal da Sua debilidade ou a nossa autonomia. E então estamos todos desti-
do Seu limite, porque não é o sofrimento passivo, nados a uma infinita orfandade, conseqüente-
que se padece, porque não é possível evitá-lo. É, mente a uma nostalgia pelo pai e pela mãe aco-
pelo contrário, o sofrimento ativo, aquele que é acei- lhedores no amor, e contudo fugimos dela para
to por amor pela pessoa amada. A revelação do co- sermos livres e independentes como o filho pródi-
ração de Deus está aqui: o Pai é aquele que sofre, go, que decide ficar com todos os seus bens para
porque nos ama, porque nos criou livres e que, por- se poder gerir por si só na vida. Eis a grande ques-
tanto, expôs-se ao risco da nossa liberdade. tão: temos necessidade de alguém que nos revele
Se isso é verdade, por que em tantos se for- o rosto de um pai-mãe no amor que não crie depen-
ma uma recusa, até mesmo visceral da figura pa- dência, que não nos faça escravos. Um pai-mãe que
terno-materna de Deus? Por que, mais cedo ou nos ame, tornando-nos homens livres, mulheres
mais tarde, na vida, todos vivemos um momento livres. Um pai-mãe que não seja o concorrente da
de contestação da imagem do pai-mãe no amor? nossa liberdade, mas o fundamento desta, a ga-
Procuremos compreender esta contradição entre rantia última da verdade e da paz no nosso cora-
a necessidade de um acolhimento que vença a an- ção, que, ao mesmo tempo, cure a angústia com o
gústia e ao mesmo tempo a recusa dele, lendo um remédio do amor, mas cure também aquele medo
texto que tiro da famosíssima carta ao pai de de perder a liberdade, fazendo-nos sentir amados
Franz Kafka, um dos grandes testemunhos da in- na liberdade que não escraviza, que não cria de-
quietação do nosso tempo. Escrevendo ao pró- pendências. Essa é a expectativa do Pai no cora-
prio pai, Kafka diz assim: “A sensação de nulidade, ção do homem...

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Teologia e teoria social. Para além da razão moderna

Entrevista com John Milbank

John Milbank é teólogo anglicano e teórico IHU On-Line – Qual o senhor considera a
inglês. Estudou em Oxford, em Cambridge e em principal contribuição de Karl Rahner?
Birmingham, e ensinou em Lancaster e em Cam- John Milbank – Junto com vários outros prede-
bridge. Suas áreas de interesse combinam a teo- cessores e contemporâneos – Blondel, Marechal,
logia sistemática, a filosofia política e a teologia de Lubac, Gilson – Karl Rahner abriu caminho
histórica. Nascido no norte de Londres e conheci- para uma fusão dos horizontes da teologia e da fi-
do como um dos teólogos cristãos mais proemi- losofia, que mais tarde permitiu a Gustavo Gutiér-
nentes e controversos do mundo, atualmente é rez, no Peru, ultrapassar o modelo de “distinção
professor de Teologia na Universidade de Virgí- de planos” no pensamento social católico, que de-
nia, nos Estados Unidos. É autor de, entre outros, lineava severamente uma distinção entre questões
Theology and Social Theory: Beyond Secu- pertencentes a este mundo e questões pertencen-
lar Reason Blackwells, 1993, um estudo in- tes ao mundo sobrenatural. Não obstante, eu pen-
fluente da relação entre a teologia cristã e a histó- so que Rahner é agora encarado, ampla e correta-
ria da teoria social e política ocidental. Este livro mente, na Europa e na América do Norte, como
foi traduzido e publicado no Brasil sob o título atualmente mais conservador do que Blondel e de
Teologia e Teoria Social. Para além da ra- Lubac, e mesmo, num certo grau, do que Von
zão secular. São Paulo: Loyola, 1995. O IHU Balthasar. Previamente, sua tentativa de reconci-
On-Line, n.º 24, de 1.º de julho de 2002, repro- liar o Aquinate com Kant deu a impressão de ser a
duziu a longa resenha desse livro feita por Henri- marca de seu progressismo. Hoje, ao contrário, na
que C. de Lima Vaz. Além dessa obra, Milbank esteira do trabalho histórico realizado por pessoas
também é autor de: The World Made Strange: como Honnefelder e Courtine, podemos ver que
Theology Language and Culture (O mundo Rahner favoreceu Kant precisamente por causa
tornou-se estranho: língua teológica e cultura) dos elementos neo-escolásticos residuais em sua
Blackwell, 1997. É co-editor de Radical Ortho- obra, enquanto Kant foi, em última análise, um
doxy: A New Theology (Ortodoxia radical: neo-escolástico bastante tardio. As subestruturas
uma nova teologia) Routledge, 1999 e co-autor da obra de Kant permaneceram escotistas e suare-
de Truth in Aquinas (Radical Orthodoxy) (Ver- zianas e sua virada “transcendental” apenas con-
dade em Aquinas), Routledge, 2001. Escreveu tribuiu para completar as conseqüências lógicas
também um livro de poemas intitulado The Mer- da distinção formal escotista, da ontologia unívo-
curial Wood. Seus livros mais recentes são ca, do representacionalismo em epistemologia e
Being Reconciled: Ontology and Pardon. redução da importância da teologia. Uma arma-
Ed. Routledge, 2003 e Theological Perspecti- ção transcendentalista como a favorecida por
ves on God and Beauty (escrito com Edith Rahner ainda assume uma forte dualidade nature-
Wyschogrod e Graham Ward). Ed. Trinity Press za/graça, já que ela começa freando a dimensão
International, 2003. criatural da realidade. Contrastantemente, Blon-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

del e de Lubac iniciaram mais consistentemente IHU On-Line – Qual é o papel da teologia e
com a orientação natural paradoxal da humani- da universidade num mundo onde cresce a
dade para o fim sobrenatural, enquanto Przywara pobreza e a injustiça?
iniciou com a analogia “entis” que estabelece uma John Milbank – O poder do capitalismo e da bu-
divisão entre a teologia natural e a revelada, e Gil- rocracia estatal tornou-se agora tão total e mons-
son iniciou com a metafísica do ser (esse), que truoso, que freqüentemente a única oposição para
deve algo à bíblia (uma vez que o Novo Testa- a sobrevivência é a oposição intelectual. Isso pode
mento já foi influenciado pelos Septuaginta (Se- parecer um tanto ralo e desesperançoso em seu
tenta), bem como à tradição filosófica. A teologia caráter. No entanto, a maior “informação” tor-
política deveria agora proceder dentro deste terre- na-se a força motriz da economia (subscrevendo
no, e não do terreno de Rahner, já que isso tende ultimamente a terrível pobreza do terceiro mundo,
a confirmar a incapacidade da teologia para criti- à qual os segmentos mais tradicionais da econo-
car certos pressupostos seculares. Eu digo isso, mia são crescentemente confinados), o que mais
porém, vendo que uma aproximação mais teoló- podemos ver é que as universidades conectam
gica à teoria social vai liberar “mais”, e não “me- com produção e troca de maneira direta. O co-
nos”, opção social radical. nhecimento e a busca da verdade tornaram-se
agora também capitalizados e corrompidos. Preci-
IHU On-Line – Considera que Rahner contri- samente porque isso ocorreu e porque essa cor-
buiu para o diálogo entre ciência e teologia? rupção torna-se agora indiscutivelmente a corrup-
John Milbank – Desde o início, gostaria de aler- ção fundamental, as universidades tornam-se lu-
tar que eu não penso que Rahner atualmente te- gares cruciais de luta. Elas estão sempre mais bem
nha tanto a ensinar-nos a esse respeito. A teologia posicionadas para obter elos globais e co-ordena-
deve insistir em sua válida função dentro da uni- ção. É especialmente importante que ela seja uma
versidade secular, junto com o desenvolvimento comunidade acadêmica global, tanto no Sul como
de outros discursos religiosos, por exemplo, aque- no Norte.
les do islã e do budismo. Ela deveria apelar para o
fato de que nenhum discurso é isento de pressu- IHU On-Line – Que relações podemos esta-
posições nem livre de uma tradição assumida. belecer entre teologia, teoria social e pós-
Além disso, se somente forem permitidas acep- modernidade?
ções seculares, isso é equivalente a uma legitima- John Milbank – O principal desafio para a teolo-
ção do niilismo, já que, sem referência a algum gia em relação com a teoria social numa situação
pensamento último não-humano, tudo é “repleto pós-moderna é dar-se conta de que nenhuma teo-
de vaidade”, como Jean-Luc Marion o expressa, e ria social é “inocente” na teologia ou na antiteolo-
se desvanece no vazio. A teologia deve insistir que gia em qualquer sentido, porque, inversamente,
ela oferece a alternativa da tendência de “salvar as qualquer teologia é também nela mesma uma teo-
aparências” de qualquer coisa. Argüindo que o ria social, enquanto ela é uma eclesiologia – não
mundo material dos corpos, em última análise, sendo a Igreja, numa autêntica visão cristã, uma
tem pensamento, a teologia ingressa na última instituição, mas antes a verdadeira sociedade hu-
realidade do mundo material. Ela deveria apre- mana universal – o Reino – em embrião.
sentar-se como o materialismo e argüir que, sem
avançar com essa alternativa para o niilismo, as IHU On-Line – Em um mundo globalizado
universidades poderiam desencadear todo o de- em que a miséria cresce a cada dia, quais
bate real e substantivo e assim desenvolver sua fi- são os caminhos possíveis e necessários
nalidade real. para a reflexão ética e moral?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

John Milbank – Necessitamos acima de tudo, na conhecem que o nome de tal universal é Cristo e
esteira de teóricos como MacIntyre1 e Taylor2, que o esclarecimento é apenas uma débil paródia
perceber que a maioria das teorias éticas contem- do verdadeiro universalismo católico, o único que
porâneas argumenta além da realidade do bem, pode salvar o ser humano.
fazendo algo que é moralmente neutro, como “a
vontade” do “bem-estar material” ou o “impulso IHU On-Line – Em que sentido o cristianis-
humano fundamental”, a fundação da moralida- mo pode ser hoje uma contracultura e uma
de e seu secreto coração não-moral. Kant e Hume força de resistência ao poder hegemônico?
e o conseqüencialismo devem todos ser abando- John Milbank – Como acabo de mencionar, a
nados. Suas perspectivas são incompatíveis am- cristandade é afinal o âmago esquecido da civili-
bas com uma perspectiva católica e com as ordi- zação ocidental e por isso agora global, e, ao mes-
nárias concepções de todos os seres humanos, mo tempo, a última realidade contracultural que
quando eles falam sobre o que é “bom”. Falar isso ainda não completou sua obra de subverter o mo-
implica um modo “limpo” de as criaturas serem e noteísmo judaico e o politeísmo pagão, enquanto
que isso não é algo inventado pelos seres huma- sustenta e renova os melhores instintos de ambos
nos. Por essa razão, não pode haver uma ética os legados. Não me parece, por exemplo, que os
concebível fora de uma visão religiosa. católicos poderiam simplesmente opor as “divin-
dades” amplamente reconhecidas no Brasil, mas
IHU On-Line – Quais são os principais desa- deveriam antes ver esta circunstância como uma
fios impostos pela pós-modernidade à teo- oportunidade para reinsistir na importância da an-
logia e à universidade? jologia e na verdade de que Deus é “Um” num sim-
John Milbank – Como disse Alain Badiou3, esta- ples sentido que totalmente transcende o contraste
mos hoje divididos entre crenças vazias e formalis- usual do uno e do múltiplo. Eu acredito que nós pre-
tas – por exemplo, nos “direitos”, que não faz e ja- cisamos “ambos” insistir que a cristandade católica é
mais pode fazer algo para aceitar, por exemplo, a o único caminho para toda a humanidade “e” que
prática de tortura – de um lado, e do outro lado, ele pode abraçar diversos mistérios locais, ou nem
entre concretos engajamentos totalmente atávicos tanto, (incluindo aqueles do judaísmo) que inces-
e fetichistas. Em face disso, necessitamos realmen- santemente enriquecem nosso entendimento do
te “o concreto universal”. Crescentemente, mes- mistério uno do Deus uno que um dia chegou no
mo alguns ateus, como o próprio Badiou, meio re- tempo e que sempre continua chegando.

1 Alasdair MacIntyre é professor de Filosofia na Vanderblit University, EUA e autor de Marxism and Christianity e Against
the Self-Images of the Age. É autor também do importante livro After Virtue, publicado em 1981, pela primeira vez, e que
foi traduzido no Brasil sob o título Depois da Virtude. Bauru: Edusc, 2001.(Nota da IHU On-Line).
2 Charles Taylor, filósofo canadense, é autor de vários livros entre os quais se destaca Sources of the Self. The Making of the
Modern Identy, editado em 1989 e traduzido para o português sob o título As fontes do self. A construção da
identidade moderna. São Paulo: Loyola, 1997. Também é o autor do livro The malaise of modernity, publicado em 1991
e traduzido para várias línguas. Em espanhol, o livro se intitula La ética de la autenticidad. Barcelona: Paidós, 1994. (Nota
da IHU On-Line).
3 Alain Badiou é autor, entre outros livros, de Saint Paul. La fondation de l’universalisme. (São Paulo. A fundação do
universalismo). 3. ed. Paris: PUF, 1997, 1999. Cf. também o livro Alain Badiou no Brasil. Apresentação e organização Célio
Garcia, Autêntica: Belo Horizonte, 1999. (Nota da IHU On-Line).

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Uma teologia que ajuda a entender o envolvimento de Deus
na história do mundo

Entrevista com Rosino Gibellini

Rosino Gibellini é doutor em teologia e filo- lósofo alemão Ernst Bloch admirava-se da força
sofia, dirige as coleções Giornale di Teologia e a dialética que desenvolve a teologia cristã. A teolo-
Biblioteca de teologia contemporânea da Editora gia, para Rahner, entretanto, tem uma outra fun-
Queriniana de Brescia, Itália. Trata-se de duas ção na sociedade secular: a teologia, por sua pró-
coleções das mais prestigiadas, teologicamente, pria presença e atividade, impede que a razão se-
no mundo. Gibellini é autor, entre outros livros, cular seja desviada de sua orientação a uma ulte-
de A teologia do século XX. São Paulo: Loyo- rioridade, a um horizonte de transcendência, ao
la, 1998. mistério, que mantém aberta razão aos valores ab-
Na editoria Teologia Pública da 60ª edição solutos da verdade, da justiça, do amor pelos ou-
da IHU On-Line, de 19 de maio de 2003, publi- tros, da coragem de viver e de morrer sem deses-
camos a apresentação do livro organizado por Ro- pero. A fé alarga e aprofunda a razão. Creio não
sino Gibelli Prospettive Teologiche per il XXI ter havido nenhum teólogo católico que tanto te-
Secolo (Prospectivas teológicas para o século nha vivido no século XX a aliança entre fé e razão,
XXI). Coleção Biblioteca di Teologia Contempora- e isso é um grande legado de Rahner para a teolo-
nea n.º 123. Brescia: Queriniana, 2003. Desse li- gia do século XXI.
vro, publicamos, na 85ª edição, de 24 de novem-
bro de 2003, um resumo do artigo do teólogo IHU On-Line – De que forma ele concebia o
Dietmar Mieth, Imagem do homem e dignidade diálogo ecumênico e inter-religioso?
humana: A prospetiva cristã da Bioética, p. 213-26; Rosino Gibellini – Rahner deu uma grande
e o artigo O caráter hermenêutico da teologia, do contribuição, seja para o diálogo ecumênico, seja
teólogo e professor Dr. Werner Jeanrond, da Uni- para o diálogo inter-religioso. Sobre o diálogo
versity of Lund, Suécia, p. 49-72, na 87ª edição, ecumênico, escreveu o livro mais corajoso no
de 9 de dezembro de 2003. campo católico (em colaboração com o teólogo
de Munique, Fries), expressivo já no título, União
IHU On-Line – Como Karl Rahner definia a das Igrejas, possibilidade real (1983), um ano
teologia? antes de sua morte. O novo método é o de conci-
Rosino Gibellini – Para Rahner, a teologia tem liar as diversidades que entrementes se afirmaram
sobretudo uma função nos confrontos da comuni- na história das confissões cristãs com um essencial
dade cristã a qual, no mundo, desenvolve múlti- acordo ecumênico sobre a verdade cristã. Não se
plas atividades: anuncia o evangelho, dá testemu- trata de um retorno ao ovil católico, mas de uma
nho dele, celebra a salvação, desenvolve uma verdadeira reconciliação. Rahner não só pensava
missão e uma multíplice ação caritativa, mas, para que isso fosse possível, mas até urgente para a
fazer isso, deve pensar. Esta é a tarefa da teologia: missão no mundo. Para o diálogo inter-religioso,
pensamento do anúncio e da atividade da Igreja. ele elaborou a tese do “cristianismo anônimo”,
Não se pode agir avisadamente sem pensar. O fi- antes árdua em sua exposição, mas para a qual

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tudo aquilo que existe de verdadeiro e bom nas Rosino Gibellini – Sobre este ponto existe efeti-
religiões não-cristãs é assumido e tornado salvífico vamente uma disputa entre Rahner e Moltmann, a
pelo evento do Cristo. Aqui o debate avançou, e propósito do sofrimento em Deus. Rahner é um
precisamente pelo “cristianismo anônimo”, em di- teólogo mais clássico do que Moltmann, que é um
reção a um “cristianismo relacional”, que é o pro- teólogo mais inovador. Para Rahner, na linha da
jeto agora em fase de elaboração no âmbito da teologia calcedonense, o sofrimento é da natureza
teologia cristã. humana, assumida pelo Verbo, e por isso é possí-
vel uma via de resgate do sofrimento por esta as-
IHU On-Line – Alguns autores afirmam que sunção, mas o sofrimento permanece no âmbito
Rahner saiu derrotado do Concílio Vatica- da natureza humana (assumida pelo Verbo).
no II. Como o senhor vê essa afirmação? Moltmann lança-se além: ele escreveu um livro de
Rosino Gibellini – Rahner trabalhou muito no grande impacto: O Deus crucificado (1972)4,
Concílio como perito do cardeal de Viena, Franz em que dialoga com a teologia hebraica, em parti-
König, recentemente falecido em avançada idade. cular com Elie Wiesel e com Martin Buber, do qual
Certamente pensava que o Concílio avançasse assume o conceito do pathos de Deus. Em Jesus, é
mais. Numa carta dele, publicada, fala do Concí- Deus mesmo que sofre. Certamente é o sofrimen-
lio como “o início do início”, mas depois é preciso to patético conexo com o amor: onde existe o
consultar os 16 volumes dos seus Escritos teológi- amor, existe a capacidade de sofrimento, e assim
cos: 1954-1984, em que quase todas as temáticas o próprio sofrimento como sofrimento do amor é
conciliares são retomadas e aprofundadas. Sua assumido no próprio Deus: a paixão do mundo é
grande intuição, que se realizou no Concílio, ao assumida em Deus, poder-se-ia dizer: indireta-
menos germinalmente, foi a Weltkirche, a Igreja mente em Rahner, diretamente em Moltmann.
mundial, que vive em diversos contextos culturais Entretanto, num e no outro caso, existe a possibili-
e sociais, para os quais a igreja ocidental não re- dade de resgate e de sentido. Eu estou mais próxi-
presenta mais a mãe das outras igrejas, mas a irmã mo da posição de Moltmann, mas espera-se ainda
mais velha (por força da história até agora desen- um estudo aprofundado que avalie as duas contri-
volvida, que viu os textos conciliares escritos pri- buições em suas implicações no dogma da encar-
meiro em língua grega e depois em língua latina) nação. É bom, contudo, que, em teologia, haja
das outras igrejas cristãs, que vivem agora num opiniões até discordantes, que trazem acentua-
novo horizonte de catolicidade. Daqui abrem-se ções diversas na reflexão do pensamento cristão.
cenários inéditos para o caminho da Igreja nos
próximos decênios. IHU On-Line – Como essas idéias ajudam a
compreender, em um século de grandes ho-
IHU On-Line – Em recente entrevista ao IHU locaustos, o “silêncio de Deus”?
On-Line, o teólogo Jürgen Moltmann disse Rosino Gibellini – Essas teorias teológicas aju-
que Karl Rahner e ele tinham uma discor- dam a pensar o envolvimento de Deus na história
dância em relação ao “sofrimento de Deus” do mundo e a dar um sentido ao sem-sentido,
ou à “incapacidade divina de sofrer”. Disse caso contrário, as catástrofes permaneceriam ape-
Moltmann: “Estive totalmente em desacor- nas catástrofes sem sentido. Para o dogma cristão,
do com seu ‘Deus impassibilis’ e ele, com as catástrofes são assumidas numa história maior
meu ‘Deus crucificado’. No entanto, discór- e mais profunda, é a história de Deus com o
dias teológicas são boas quando são pela mundo, que dá sentido e salvação até à insensatez
verdade”. Qual é sua opinião? humana. A história humana é assim inserida na his-

4 Confira a entrevista de Jürgen Moltmann, um dos maiores teólogos vivos, na IHU On-Line n.º 94, de 29 de março de 2004.
Desse autor a Editora Unisinos publicou o livro A vinda de Deus. Escatologia cristã. São Leopoldo, 2003; e Experiências
de reflexão teológica. Caminhos e formas da Teologia Cristã. São Leopoldo, 2004. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tória da salvação. Não é uma inserção indolor, Rosino Gibellini – Congar e Rahner são dois
como o demonstra a paixão de Cristo e sua morte teólogos diversos, ou antes, complementares.
na cruz. Rahner e Moltmann oferecem duas varian- Congar é histórico e eclesiológico, sua paixão era
tes desta inserção salvífica da história humana numa a unidade dos cristãos, ensinou o ecumenismo a
história da salvação. Em definitivo, a cruz é a pala- toda a Igreja Católica, seu tema era a reforma da
vra de Deus ao mundo, sempre presente e sempre Igreja a ser entendida em sentido católico. Rahner
eloqüente. A paixão do mundo, segundo uma bela é um teólogo dogmático que renovou a dogmáti-
expressão de Moltmann, está escondida aos pés da ca católica: seu front é a missão no mundo na épo-
cruz, e assim resgatada de sua insensatez. ca do secularismo e do pluralismo. São comple-
mentares, e tal complementaridade a exercitaram
IHU On-Line – A teologia de Rahner teria na criação da revista internacional de teologia,
algo a dizer para um mundo que gera mais Concilium5, fundada em 1965. Solidários ambos
miséria? em sofrer por sua Igreja, que os censurou diversas
Rosino Gibellini – Sobre estes temas, expressa- vezes, mas eles viam muito longe. São os novos
ram-se com mais vigor outras teologias ou modali- profetas da Igreja Católica no século XX.
dades de fazer teologia, como a teologia latino-
americana, a teologia africana, a teologia asiática IHU On-Line – Qual é a herança mais impor-
e a teologia feminista, surgidas dos anos 1960/1970 tante de ambos os teólogos que deve ser
em diante. Rahner tratou prevalentemente dos te- aproveitada pela universidade?
mas conexos com aquela que leva o nome de “vi- Rosino Gibellini – O legado de Congar para a
rada antropológica em teologia”, isto é, a teologia universidade é o amor aos estudos históricos para
deve dar a compreensão da existência humana. uma reconstrução do passado, não como fim em
Sobre o social, Rahner foi menos inovador, mas si mesmo, mas para a reforma da Igreja e a recom-
pertencia a uma geração diversa, embora seja posição das divisões intervindas no passado. O le-
preciso recordar sua contribuição aos diálogos gado de Rahner para a universidade é o diálogo
com os marxistas, sua defesa, nas últimas sema- com as filosofias e com o pensamento. Rahner
nas de sua vida, da teologia da libertação: há pági- dialogou sobretudo com Kant e com Heidegger,
nas políticas na obra de Rahner, que, no entanto, mas com liberdade e simultaneamente com plena
foram desenvolvidas por seu discípulo Metz e de- consciência. É uma tarefa a prosseguir, sobretudo
pois por Moltmann, naquela corrente muito rica na pós-modernidade, que é tempo do pluralismo
de reflexão denominada “teologia política” e é da conversação humana. Toda grande teologia é
particularmente atenta às dimensões sociais da hoje chamada a traçar linhas de espiritualidade. A
mensagem cristã. Surgiram depois outras teolo- espiritualidade de Congar é a “paixão pela unida-
gias continentais, que respondem às novas ne- de”. Recomendaria o pequeno volume Cette
cessidades e aos novos contextos. Atualmente, Église que j’aime (Esta Igreja que eu amo). A es-
deve-se falar de teologias no plural, sobretudo na piritualidade de Rahner é a de saber colher a pro-
pós-modernidade. ximidade do santo mistério na própria vida, nas
coisas de cada dia, e então seria o caso de reco-
IHU On-Line – Qual tem sido a mas impor- mendar o belo opúsculo Cose d’ogni giorno
tante contribuição do teólogo Yves Congar, (Coisas de todo dia). É preciso voltar a reler estes
que também estaria completando cem clássicos do nosso tempo.
anos? Podemos estabelecer algumas seme-
lhanças e diferenças entre os dois teólogos?

5 A versão portuguesa da revista Concilium é publicada pela Editora Vozes. (Nota da IHU On-Line).

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Culturas e religiões estão dialogando constantemente

Entrevista com Michael Amaladoss, SJ

Michael Amaladoss, SJ é diretor do Instituto ca sempre foi contextual. Ele procurava responder
para o Diálogo com Culturas e Religiões, em às questões que o povo perguntava em sua época
Chennai, na Índia. Amaladoss é Ph.D. em Teolo- e suas implicações teológicas. Ele respondia a es-
gia Sistemática pelo Institut Catholique de Paris, sas questões de maneira racional, compreensível
na França, além de professor de Teologia no Vid- para cada um, mesmo aqueles que acreditavam
yajyoti College of Theology, em Déli, na Índia. de maneira diferente. Sua teologia estava direcio-
Amaladoss escreveu muitos livros e artigos sobre nada para uma profunda espiritualidade como
espiritualidade e diálogo inter-religioso. Entre eles, forma de vida.
citamos: Faith, Culture and Inter-Religious
Dialogue. Ideas for Action (Fé, cultura e diálo- IHU On-Line – Em que sentido contribui
go inter-religioso. Idéias para a ação). Nova Déli: para o “diálogo da teologia com a ciência e
Indian Social Institute, 1985; Making All Things a universidade”?
New. Dialogue, Pluralism and Evangelization Michael Amaladoss – Rahner não dialogou
in Asia (Fazendo novas todas as coisas. Diálogo, tanto com as ciências físicas. Mas para ele a pró-
pluralismo e evangelização na Ásia). Edição india- pria teologia era uma ciência – uma “ciência hu-
na: Anand: Gujarat Sahitya Prakash, 1990. Edi- mana”. Ele dialogava com os filósofos de sua épo-
ção international: Maryknoll: Orbis Books, 1990;. ca. Esse diálogo se dirigia para o coração da uni-
Inigo in India. Reflection on the Ignatian versidade. A reflexão de Rahner sobre criação-
Exercises by an Indian Disciple (Inigo na evolução é um bom exemplo.
Índia. Reflexões dos exercícios inacianos por um
discípulo indiano). Anand: Gujarat Sahitya Pra- IHU On-Line – De que forma a teologia e a
kash, 1992; Walking Together. The Practice universidade podem e devem ajudar a mu-
of Inter-Religious Dialogue (Caminhando jun- dar os rumos de injustiça social da contem-
tos. A prática do diálogo inter-religioso). Anand: poraneidade?
Gujarat Sahitya Prakash, 1992. Traduzido para o Michael Amaladoss – A teologia e a universida-
português sob o título Pela Estrada da Vida. São de deveriam procurar responder às questões e re-
Paulo: Paulinas, 1995. Seus livros mais recentes fletir sobre os problemas do mundo real. Num
são: Making Harmony. Living in a Pluralist mundo injusto, não haverá bons projetos econô-
World. Déli: ISPCK, 2003 e The Dancing Cos- micos e políticos a oferecer. Entre elas, insistirão
mos. A Way to Harmony. Déli: ISPCK, 2003. na justiça, e em perspectivas e valores morais e éti-
cos, além de explorar os fundamentos filosóficos,
IHU On-Line – Qual é a contribuição de Karl teológicos e espirituais desses valores.
Rahner para a teologia e a sociedade?
Michael Amaladoss – Eu penso que Karl Rah- IHU On-Line – Que características o senhor
ner contribuiu para a teologia e a sociedade em vê como indispensáveis para uma teologia
três importantes dimensões. Sua reflexão teológi- das religiões e uma teologia na universidade?

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Michael Amaladoss – Teologia é a busca por der às necessidades básicas de seu povo – os po-
Deus. Deus está além de todas as nossas imagina- bres – ela pode pensar em modelos alternativos de
ções e nossos raciocínios. Deus manifesta-se por desenvolvimento.
diferentes caminhos para diferentes povos. Um
povo diferente busca Deus por caminhos diferen- IHU On-Line – Qual poderia ser o papel das re-
tes. A teologia das religiões e a teologia na univer- ligiões numa renovação ética da humanidade?
sidade devem reconhecer e aceitar essa diversida- Michael Amaladoss – Hoje as próprias religiões
de e envolver-se num diálogo, no contexto da necessitam de conversão. Elas tendem a justificar
busca compartilhada por opinião e satisfação. as correntes econômicas, políticas e sociais injus-
tas. Elas facilmente suportam violência contra ou-
IHU On-Line – A metade da população está tros crentes que são demonizados. Cada religião
na Ásia, qual é o papel desse continente no tem, por exemplo, seus profetas que são sensíveis
contexto mundial atual? à presença de Deus e seu plano para o mundo, e
Michael Amaladoss – Tanto a Índia como a eles se preocupam com os pobres e os oprimidos.
China têm mais de um bilhão de pessoas. Elas São estas pessoas, inspiradas pelo Espírito, que
possuem ricas tradições culturais e religiosas que podem contribuir para uma renovação ética da
retrocedem milênios. Hoje, elas estão explorando humanidade. Elas podem ser encontradas em to-
trilhas econômicas mistas – combinando capitalis- das as religiões. Não penso que as religiões, como
mo e socialismo – para atender as necessidades instituições, possam ajudar muito.
dos pobres. Precisamente nesta semana, a Índia
teve eleições nacionais e o povo (60 milhões de IHU On-Line – Em que a teologia e a cultura
eleitores) rejeitou o governo central e vários go- asiática podem enriquecer-se mutuamente?
vernos estaduais que não atendiam às necessida- Michael Amaladoss – Os asiáticos são povos
des dos pobres. Eu penso que as culturas e reli- profundamente religiosos. Eles tornam o diálogo
giões da Índia e da China são mais comunitárias e inicial entre culturas e religiões mais fácil, embora
menos individualistas. Eles também podem hu- os problemas não estejam ausentes. Cultura e re-
manizar sistemas econômicos e políticos baseados ligião não são realmente diferentes. Enquanto a
em valores “seculares” (ateus). cultura procura tornar a vida e o mundo significa-
tivos, a religião enfoca pensamentos definitivos.
IHU On-Line – A Índia poderia caminhar em Assim, elas estão dialogando constantemente. O
direção a um projeto alternativo de desen- problema com o Ocidente é que este vínculo en-
volvimento que não imite os países de Oci- tre cultura e religião é negado. A cultura está “se-
dente e não ponha em risco, mais ainda, o cularizada” e a religião, “privatizada”. Um víncu-
meio ambiente? lo entre cultura e religião não é possível, se uma
Michael Amaladoss – Não é correto situar na busca por uma perspectiva última e definitiva na
Índia (ou em outras nações em desenvolvimento) vida não é restaurada. Definitiva não significa
a tarefa de suprir o desenvolvimento e consumo “de outro mundo” ou “pós-morte”. Perspectivas
desenfreado e sem princípios das nações euro- últimas simplesmente se estendem além do mun-
americanas ricas e dominantes. Se alguém deve do material para o mundo humano e social, no
escolher entre vida – sobrevivência – e qualidade qual se encontra o divino como poder imanente-
de vida, a escolha é óbvia. Se a Índia pode aten- transcendente.

19
A Igreja e a revolução cultural de 1968

Entrevista com Giancarlo Zizola

Giancarlo Zizola, jornalista e ensaísta italia- IHU On-Line – Como o senhor se transfor-
no, considerado um dos maiores vaticanistas de mou num “vaticanista”? Por que foi chama-
seu país, afirma que os maiores desafios para a do por João XXIII e qual foi sua percepção
Igreja no mundo moderno é a globalização, a da experiência do Concílio em Roma?
abertura às culturas menos escutadas. “A Igreja Giancarlo Zizola – Em Roma, reinavam a igno-
deve sair urgentemente da sua concha ocidental, rância e a indiferença. O anúncio do Concílio ti-
como nos inícios saiu da concha mosaica, graças à nha suscitado a imediata preocupação da Cúria
genial estratégia apostólica de São Paulo, para es- Romana. Foi precisamente para enfrentar esta po-
tender-se pelo Mediterrâneo”. Sobre o Concílio sição de desinteresse, prenúncio da falência do
Vaticano II, que acompanhou de perto nos primei- projeto, que o Papa João XXIII6 precisava organi-
ros tempos de carreira jornalística, Zizola afirma zar um consenso no mundo católico. Ele me cha-
que seu limite “foi a tentativa de relançar a missão mou a Roma do Vêneto, porque pensava que os
temporal da Igreja, de modo mais moderno, en- jornais católicos italianos (que então eram nove)
quanto o quadro teológico do Concílio estava ba- necessitavam de um jovem jornalista que se ocu-
seado na natureza espiritual da Igreja e em sua passe especialmente de converter os espíritos à
presença na história como peregrina, sem poder idéia do Concílio.
competitivo com os poderes mundanos”. Zizola é
autor de Le Successeur. Desclée de B. Paris, IHU On-Line – Como descreveria o movi-
1996 e L’ altro Wojtyla. Riforma, restaurazio- mento gerado na Igreja durante e depois do
ne e sfide del millennio. Sperling Paperback, Concílio Vaticano II?
2005, publicado originalmente em 2002. Ele aca- Giancarlo Zizola – A história dos concílios ensi-
ba de publicar o livro Benoit XVI ou le mystère na que a recepção durou muito tempo. As trans-
Ratzinger (Bento XVI ou o mistério Ratzinger), formações no campo da cultura não ocorrem com
Desclée de Brouver. Paris: Seuil, 2005. É corres- um golpe de decreto-lei. É preciso considerar a
pondente das seguintes publicações: Le Monde complexidade do mundo católico, do ponto de
Diplomatique, Social Compass e Tablet. Le- vista das suas múltiplas tradições espirituais e so-
ciona Ética da Comunicação e da Informação na ciais. No que se refere ao Vaticano II, o problema
Universidade de Pádua. da realização foi complicado por causa do evento

6 O patriarca de Veneza, Roncalli, ex-núncio apostólico em Paris e ex-delegado apostólico em Istambul, foi eleito Papa em 1958,
sucedendo a Pio XII. (Nota da IHU On-Line)

20
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

de 1968, isto é, por causa da revolução cultural Quanto a Wojtyla, com ele a Igreja voltou atrás,
generalizada, cósmica, rápida e profunda, que en- para relançar o esquema da cristandade forte
velheceu a plataforma das inovações do Concílio, contra a modernidade, abandonando o esquema
tocando o subsolo cultural e filosófico da fé. Em conciliar da saída da cristandade para um cristia-
segundo lugar, o Concílio foi o ponto de partida nismo minoritário de testemunho. Agradava-lhe a
para uma concatenação de retomadas identitárias ilusão midiática das massas. Em alguns campos,
do cristianismo em suas várias regiões, da África à porém, foi mais longe que o Concílio, principal-
Ásia e à América Latina. Isso deu vida a ulteriores mente na obrigação cristã pela paz e pelo diálogo
disseminações. A teologia de que se nutrira o com as religiões mundiais.
Concílio era de marca amplamente européia. A li-
berdade religiosa era filha do catolicismo america- IHU On-Line – Quem ganhou e quem perdeu
no (o teólogo Courtney Murray7, sobretudo). Após no Vaticano II sob a ótica teológica? E, em
1968, surgiu e difundiu-se a teologia da libertação sua visão, houve alguma nova derrota que
na América Latina. O estatuto da liberdade cristã não se manifestou durante o Concílio?
não havia sido pensada no Concílio, como come- Giancarlo Zizola – Todo Concílio tem seus limi-
çou a ser pensada depois a teologia da libertação. tes, mas a questão do Vaticano II é se a Igreja Ca-
Por conseguinte, parece-me que o problema prin- tólica reconhece o significado permanente deste
cipal do Concílio é que os padres, sob a inspiração paradigma de reforma. Eu penso que, em alguns
divina, lançaram a Igreja ao encontro de seu tem- aspectos, o limite do Concílio foi a tentativa de re-
po histórico, mas este movimento foi recíproco e lançar a missão temporal da Igreja, de modo mais
bem cedo também o tempo histórico começou a moderno, enquanto o quadro teológico do Con-
falar à Igreja, a qual teve, então, medo do movi- cílio estava baseado na natureza espiritual da
mento que ela mesma havia iniciado. Igreja e em sua presença na história como pere-
grina, sem poder competitivo com os poderes
IHU On-Line – O senhor acompanhou os pa- mundanos.
pados desde João XXIII. Como considera a
característica de cada sucessor de Pedro e o IHU On-Line – Quais os aspectos do Concí-
ambiente eclesial que eles criaram? lio que João Paulo II mais afirmou e quais
Giancarlo Zizola – A Igreja pôde contar com os que considerou irrelevantes ou quais os
uma série de papas gigantescos. Direi que o Papa que negou?
João foi um profeta, tradicional, mas não tradicio- Giancarlo Zizola – Pôs de lado a colegialidade
nalista. Queria reconduzir a Igreja à sua missão es- episcopal, a teologia das igrejas locais e tornou a
piritual, voltada a todos os povos, sem preclusões valorizar o papel político da Igreja, inflou o papel
ideológicas. Paulo VI8 era um intelectual aberto, centralizador e totalitário do papado romano, des-
queria as reformas, e o seu mérito foi de ter posto prezou o papel dos leigos e das mulheres na Igreja,
o Concílio dentro da instituição. Entretanto, teve substituiu a teologia da misericórdia com o retor-
que prestar contas aos resistentes conservadores, no da intransigência no campo moral, abriu as
que prenunciavam o risco do cisma (e criaram-no portas à invasão anárquica dos movimentos com
com o movimento do tradicionalismo de Lefebvre9). graves repercussões sobre o equilíbrio interno da

7 Courtney Murray, teólogo norte-americano, jesuíta, que teve um papel fundamental na elaboração do importante documento
do Vaticano II que é Declaração Dignitatis Humanae sobre a Liberdade Religiosa. (Nota da IHU On-Line)
8 Paulo VI, cardeal-arcebispo de Milão, Montini, foi eleito Papa Paulo VI, em 1963, sucedendo a João XXIII. Continuou a
realização do Concílio Vaticano II. (Nota da IHU On-Line)
9 Marcel Lefebvre, francês, foi arcebispo na África e liderou, durante o Concílio Vaticano II, com os bispos brasileiros Geraldo
Sigaud e Antonio de Castro Mayer, o Coetus Internationalis Patrum que reunia o grupo mais conservador da Igreja. Marcel
Lefebvre nunca aceitou o Concílio Vaticano e fundou a Fraternidade Pio X que rompeu com a Igreja Católica. Tanto João
Paulo II quanto Bento XVI negociam com a Fraternidade o fim do cisma. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Igreja Católica, fez prevalecer os interesses políti- IHU On-Line – Qual foi a grande novidade
cos da Santa Sé sobre preocupações ecumênicas da Constituição Gaudium et Spes (GS)? Até
nos confrontos com o mundo ortodoxo. Como eu onde a Igreja da Europa conseguiu fazer-se
disse, todavia ele também pôs em relevo o plura- presente na sociedade?
lismo dos meios de salvação, deu um golpe pesa- Giancarlo Zizola – A principal novidade, a meu
do no infalibilismo, iniciando o processo dos mea ver, é que, em tal constituição, a Igreja foi con-
culpa pelos erros históricos da Igreja, e ensinou ao vidada a levar a sério a história como lugar teoló-
povo católico que é preciso dizer não ao Deus da gico, com o qual é necessário interagir, porque é
guerra e é necessário não só pregar a paz, mas rico de valores e de ensinamentos, repleto de ape-
também mobilizar-se contra qualquer guerra. los. Terminava, assim, a idéia de que a Igreja fosse
uma societas perfecta, em si mesma auto-suficien-
IHU On-Line – O teólogo Ratzinger, que par- te e acima da história.
ticipou do Concílio, o cardeal Ratzinger
que foi Prefeito da Congregação para a Dou- IHU On-Line – As mudanças no cenário
trina da Fé e Bento XVI seriam a mesma mundial, descritas na GS, 40 anos atrás,
pessoa ou podemos falar de diversas etapas modificaram-se. Quais são os maiores de-
da mesma pessoa? Como caracteriza cada safios da Igreja para ela estar presente no
um? mundo atual?
Giancarlo Zizola – Segui atentamente a carreira Giancarlo Zizola – A globalização. A Igreja deve
de Ratzinger e minha conclusão, a favor da qual sair urgentemente da sua concha ocidental, como
argumentei no livro Benoit XVI ou le mystère nos inícios saiu da concha mosaica, graças à genial
Ratzinger (Bento XVI ou o mistério Ratzinger), estratégia apostólica de São Paulo, para esten-
Desclée de Brouver. Paris: Seuil, 2005, é a seguin- der-se pelo Mediterrâneo. Sair do Ocidente como
te: o campeão da batalha contra o relativismo, limite geopolítico e cultural não significa assumir o
que deu prova de muitas mudanças durante a sua desafio da inculturação plural do Evangelho, na
vida, é de uma notável capacidade de adaptação. África, na Índia, na China, no Japão etc. E apro-
Ele tem o mérito de haver denunciado o erro es- fundar o diálogo com as grandes religiões mun-
tratégico de direcionar novamente para a “socie- diais e as grandes tradições espirituais (islã, budis-
dade cristã” ou para um cristianismo de massa, mo, hinduísmo, confucionismo etc.). O antigo
por isso, sou de opinião que ele, como Papa, im- quadro filosófico eurocêntrico da fé deve abrir-se
pulsionará o pedal das reformas e do retorno a ao enxerto em outras fontes culturais e espirituais,
um cristianismo de interioridade, não mais de os- sem lesar a identidade essencial do Cristo morto
tentação temporária e de sucessos exteriores. por todos, no tempo e no espaço, e por todos res-
suscitado, sem privilégios ou nenhuma exclusão.
IHU On-Line – O senhor conhece em profun- Isso é tanto mais necessário hoje para contribuir
didade o Vaticano. É possível mudar esta com a cura do Ocidente do ódio teológico e do
estrutura de poder? Não tem sido possível perverso, patológico choque de civilizações que
pôr em prática as sinalizações do Concílio o está precipitando no próprio cupio dissolvi [de-
em tal direção? Seria necessário um novo sejo dissolver-me]. E ainda mais necessário, se
Concílio? pensamos no profundo movimento em curso
Giancarlo Zizola – Estou convencido, há tem- que direciona a imensa humanidade do Oriente
po, de que uma grande assembléia conciliar seja para o Ocidente, um movimento ao qual talvez
necessária para permitir às igrejas cristãs retomar somente a Igreja pode oferecer uma resposta vá-
em profundidade a missão do anúncio do Evan- lida e com perspectiva, uma resposta que não
gelho num mundo em radical transformação cul- pode ser confiada apenas aos interesses econô-
tural e política. micos e às armas.

22
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Por onde passa o diálogo en- ça. Há demasiado cansaço, demasiada resigna-
tre sociedade e Igreja atuais? Em que as- ção diante das degradações do homem e do am-
pectos cada um deveria deixar-se interpelar biente como puro objeto de mercado. A Igreja
pelo outro para um diálogo eficaz? deve apresentar-se a este mundo enfermo como
Giancarlo Zizola – Creio que o mundo contem- Pedro diante do paralítico e dizer-lhe: “Eu não te-
porâneo tenha absoluta necessidade de esperan- nho nem ouro, nem prata, mas o que tenho te
dou: levanta-te e caminha”10.

10 G. Zizola cita o livro dos Atos dos Apóstolos, 3, 6. (Nota da IHU On-Line)

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Teologia, pós-modernidade e universidade

Entrevista com João Batista Libânio, David Tracy, Michael Amaladoss,


Lúcia Weiler, Andrés Torres Queiruga e Luiz Carlos Susin

IHU On-Line reuniu em uma mesa-redonda, O professor Dr. David Tracy é licenciado e
no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, os princi- doutor em Teologia pela Universidade Gregoria-
pais conferencistas do Simpósio Internacional O na de Roma e professor de Teologia Contemporâ-
Lugar da Teologia na Universidade do Século XXI nea e Filosofia da Religião, na University of Chica-
e alguns teólogos convidados para uma entrevista go Divinity School, nos Estados Unidos. Ele minis-
em forma de debate. Participaram o Prof. Dr. trou, no Simpósio Internacional O Lugar da
João Batista Libânio, o Prof. Dr. David Tracy, o Teologia na Universidade do Século XXI, a
Prof. Dr Michael Amaladoss, a Prof.ª Dr.ª Lúcia conferência Entre o apocalíptico e o apofático11. O
Weiler, o Prof. Dr. Andrés Torres Queiruga e o fazer teológico na universidade, hoje, a partir da
Prof. Dr.Luiz Carlos Susin. pós-modernidade. Entre seus livros publicados,
citamos The Achievement of Bernard Loner-
gan, 1970; Blessed Rage for Order: The New
Minicurrículo dos entrevistados
Pluralism in Theology, 1975; The Analogical
O padre e Prof. Dr. João Batista Libânio, Imagination: Christian Theology and the Con-
SJ é professor no Instituto Santo Inácio, de Minas text of Pluralism, 1981 (livro que será traduzido
Gerais. É licenciado em Filosofia pela Faculdade e publicado pela Editora Unisinos na coleção The-
de Filosofia de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, ologia Publica); Plurality and Ambiguity: Her-
em Letras Neolatinas pela Pontifícia Universida- meneutics, Religion and Hope (com tradução
de Católica do Rio de Janeiro, em Teologia pela em francês, alemão, espanhol e chinês), 1987; Di-
Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, Ale- alogue with the Other (traduzido para o chi-
manha, e doutor em Teologia pela Pontifícia Uni- nês), 1990. Em setembro de 2004, será publicado
versidade Gregoriana de Roma. É autor de, entre simultaneamente em inglês, francês e italiano o li-
outros livros, As lógicas da cidade: o impacto vro The Side of God.
sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo:
Loyola, 2002; Introdução à vida intelectual. O indiano Prof. Dr. Pe. Michael Amala-
São Paulo: Loyola, 2002; A Religião no início doss, SJ é diretor do Instituto para o Diálogo com
do milênio. São Paulo, Loyola, 2002; Crer num Culturas e Religiões, em Chennai, na Índia. Ele
mundo de muitas crenças e pouca liberta- concedeu uma entrevista à IHU On-Line na edi-
ção. Valência: Siquem/Paulinas, 2003; Olhando ção n.º 102, de 24 de maio de 2004, e ministrou a
para o futuro. Prospectivas teológicas e pas- conferência A teologia das religiões e a teologia na
torais do Cristianismo na América Latina. universidade no Simpósio Internacional O Lugar
São Paulo: Loyola, 2003. da Teologia na Universidade do Século XXI. Mi-

11 A teologia apofática fala de modo negativo de Deus. Deus não pode ser apreendido adequadamente pela razão humana; a
linguagem humana, quando aplicada a Ele, é sempre inexata. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

chael Amaladoss é Ph.D. em Teologia Sistemática Filosofia e Teologia pela Universidade de Comil-
pelo Institut Catholique de Paris, na França, além las, Espanha, é doutor em Filosofia pela Universi-
de professor de Teologia no Vidyajyoti College of dade de Santiago de Compostela, Espanha, e em
Theology, em Nova Déli, na Índia. Amaladoss es- Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana,
creveu muitos livros e artigos sobre espiritualidade Itália. Exerce as funções de membro da Europäis-
e diálogo inter-religioso. Entre eles, citamos: Fa- che Gesellschaft für katholische Theologie (Asso-
ith, Culture and Inter-Religious Dialogue. ciacão Européia de Teólogos Católicos); membro
Ideas for Action (Fé, cultura e diálogo inter-reli- fundador da Sociedade Espanhola de Ciências
gioso. Idéias para a ação). New Delhi Indian Social das Religiões (SECR); membro numerário da Real
Institute, 1985; Making All Things New. Dialo- Academia Galega e do Conselho da Cultura Gale-
gue, Pluralism and Evangelization in Asia ga. Seus livros mais recentes são: El problema
(Fazendo novas todas as coisas. Diálogo, pluralis- de Dios en la Modernidad. Verbo Divino, Estel-
mo e evangelização na Ásia). Edição indiana: la, 1998; Do Terror de Isaac ó Abbá de Xesús.
Anand: Gujarat Sahitya Prakash, 1990. Edição in- SEPT, Vigo, 1999. Tradução castelhana: Del Ter-
ternational: Maryknoll: Orbis Books, 1990. Inigo ror de Isaac al Abbá de Jesús; Hacia una nueva
in India. Reflection on the Ignatian Exerci- imagen de Dios. Verbo Divino, Estella, 2000; Cre-
ses by an Indian Disciple (Inigo na Índia. Refle- er de otra manera, Cuad. Aquí y Ahora. San-
xões dos exercícios inacianos por um discípulo in- tander: Sal Terrae, 1999; Por el Dios del mun-
diano). Anand: Gujarat Sahitya Prakash, 1992; do en el mundo de Dios. Sobre la esencia de
Walking Together. The Practice of Inter-Re- la vida religiosa. Santander: Sal Terrae, 2000;
ligious Dialogue (Caminhando juntos. A prática Fin del cristianismo premoderno. Retos ha-
do diálogo inter-religioso). Anand: Gujarat Sahit- cia un nuevo horizonte. Santander: Sal Terrae,
ya Prakash, 1992. Traduzido para o português 2000; Peccato e perdono. Perché è urgente e
sob o título Pela Estrada da Vida. São Paulo: necessario un cambiamento nella Confessione.
Paulinas, 1995. Seus livros mais recentes são Ma- Marna. Vicenza: ISG Edizioni, 2001. Entre suas
king Harmony. Living in a Pluralist World. obras publicadas em português, citamos Creio
Déli: ISPCK, 2003; The Dancing Cosmos. A em Deus Pai. O Deus de Jesus como afirma-
Way to Harmony. Déli: ISPCK, 2003. ção plena do humano. São Paulo: Paulinas,
1993; O cristianismo no mundo de hoje. São
A irmã Lúcia Weiler, responsável pela ofici- Paulo: Paulus, 1994; A revelação de Deus na
na As mulheres seguidoras de Jesus – as mu- realização humana. São Paulo: Paulus, 1995. E
lheres nos sinóticos no Simpósio Internaci- por ocasião do Simpósio Internacional O Lugar da
onal O Lugar da Teologia na Universidade Teologia na Universidade do Século XXI, em maio
do Século XXI, é professora na Escola de Teolo- de 2004, na UNISINOS, lançou a tradução portu-
gia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF). Gradu- guesa do seu livro Repensar a ressurreição.
ada em Teologia pela PUCRS, fez mestrado e dou- São Paulo: Paulinas, 2004.
torado em Teologia na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O Prof. Dr. Luiz Carlos Susin ministrou a
oficina A escatologia cristã. A teologia cristã no
O Prof. Dr. Andrés Torres Queiruga é pro- confronto com a ciência moderna no Simpósio
fessor da Universidade de Santiago de Composte- Internacional O Lugar da Teologia na Universida-
la, na Espanha. Ele ministrou a conferência O fa- de do Século XXI. Susin dedica-se ao ensino da
zer teológico na universidade em tempos moder- Teologia, desde 1984, no Instituto de Teologia e
nos no Simpósio Internacional O Lugar da Teolo- Ciências Religiosas da Pontifícia Universidade Ca-
gia na Universidade do Século XXI. Queiruga con- tólica de Porto Alegre (Atual Faculdade de Teolo-
cedeu uma entrevista à IHU On-Line na 92ª edi- gia – FATEO), hoje concentrando seu trabalho no
ção, de 15 de março de 2004. Ele é licenciado em programa de pós-graduação em Teologia, em ní-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

vel de mestrado. O professor pertence à Ordem da vida como gozo, como presente, diminuindo a
dos Capuchinhos. É licenciado em Filosofia pela perspectiva de futuro e de passado. Há também
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ijuí, uma crítica radical a todo totalitarismo, a toda im-
atual Unijuí. Concluiu o mestrado e o doutorado posição, portanto uma consciência muito mais
em Teologia pela Universidade Gregoriana de clara da liberdade, da autonomia das pessoas.
Roma, Itália. Participou da fundação da Socie- Vejo um lado muito positivo que é a afirmação da
dade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), subjetividade e outro lado, o extremo desse lado
da qual foi presidente no triênio 1998-2001. Des- da subjetividade, que é o esquecimento das di-
de 2000, é membro do Comitê de Direção da Re- mensões sociais e do pobre, que é cada vez mais
vista Internacional de Teologia Concilium. É autor marginalizado. Quando digo pobre, me refiro a
de Assim na terra como no céu. Brevilóquio continentes, países e grandes segmentos de certos
sobre escatologia e criação. Petrópolis: Vozes, países. Na Europa, fala-se do quarto mundo, uma
1995; Jesus, Filho de Deus e filho de Maria. população marginalizada de todo o progresso.
São Paulo: Paulinas, 1997; A criação de Deus. Em reação a isso, há muitos movimentos que têm
São Paulo: Paulinas, 2003. Como presidente da a ver com a descoberta da solidariedade como
SOTER, organizou a publicação dos seguintes vo- resposta à situação.
lumes: Mysterium Creationis – um olhar in-
terdisciplinar sobre o Universo. São Paulo: David Tracy – Penso que, como primeiro e mais
Paulinas, 1999; O mar se abriu – trinta anos importante aspecto, é preciso mencionar o diálo-
de teologia na América Latina. São Paulo: go entre as religiões, abrangendo aquilo que acei-
Loyola, 2000; Sarça Ardente – Teologia na tamos ou não aceitamos, além da solidariedade e
América Latina: Prospectivas. São Paulo: Pa- unidade de todas as forças numa luta pela justiça.
ulinas, 2000; Terra Prometida – Movimento Isso é atualmente muito importante. Em segundo
social, engajamento cristão e teologia. Pe- lugar, considero terrivelmente importante encarar
trópolis: Vozes, 2001. O professor Susin apresen- que a realidade da globalização, junto com a tec-
tou o livro A Vinda de Deus: Escatologia Cris- nologia da informação e o capitalismo, tem possi-
tã12, de Jürgen Moltmann, no evento Abrindo o bilidades, mas também ameaças para todas as na-
Livro do dia 26 de agosto de 2003. Sobre o tema, ções, para todos os povos. Isso no sentido de unir
os leitores e leitoras podem conferir, na IHU a solidariedade das religiões e de outros povos
On-Line, número 72, de 25 de agosto de 2003, a que nos dizem respeito, como também o mundo
entrevista do Prof. Dr. Frei Luiz Carlos Susin. secular. Algo poderia ser feito no sentido de recriar
uma genuína nova situação para a humanidade.
IHU On-Line – Quais são as caracterís- Em terceiro lugar, eu penso que, para o próprio
ticas mais marcantes da era contemporâ- cristianismo, é mais importante dar-se conta de
nea? Quais suas vantagens e seus limites? que ele já não será mais, por muito tempo, como
João Batista Libânio – Trata-se de um momen- agora, a religião do século, a religião européia, a
to marcado por um crescente individualismo, ele é religião dos descendentes da América do Norte,
a ideologia da modernidade. Há também um da América do Sul etc. Dar-se conta de que, no
crescente desenvolvimento tecnológico na infor- hemisfério sul, em outro espaço, haverá mais ca-
mática e na genética. A capacidade gigantesca de tólicos. Há agora mais anglicanos na África do
produtividade do capitalismo vai transformando Sul do que na Grã Bretanha, mais presbiterianos
os desejos em necessidades e, por isso, desenca- na Coréia do que na Escócia ou na Suíça. E,
deando um processo enorme de consumismo. A quanto ao budismo, já não é mais a religião do
ideologia central do prazer traz uma compreensão Oriente, hoje é a religião de muitos ocidentais.

12 A Vinda de Deus: Escatologia Cristã, de Jürgen Moltmann. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2003. 374p. (Coleção
Theologia Publica 3). (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Para pós-modernos, o budismo é muito atraente. de cooperação, enquanto representa o lado nega-
Assim, o cristianismo já não é a religião européia tivo da globalização, por expressar a crescente dis-
dominante. Os teólogos devem entender o que tância entre os ricos e os pobres, na qual o poder
está acontecendo e agir de acordo com essa ten- também atua globalmente, explorando e domi-
dência. Essa é uma missão central e crucial. E, nando, no restante do mundo, o mercado, espe-
por último, para mim, este também é um mo- cialmente os empreendimentos comerciais. E eles
mento crucial, porque da modernidade para a produzem efeitos nas Nações Unidas e em outras
pós-modernidade, em relação à democracia, ao organizações mundiais. A maioria da população
pluralismo, aos direitos humanos, as alternativas não tem acesso à globalização, mas é dominada
são desesperadoras e assustadoras. E há também pelos poderosos e pelos ricos. Tudo isso conduz a
um momento pós-moderno no qual se viu que a conflitos. Eu penso que, por trás dos conflitos, que
totalidade das alternativas do sistema da moderni- também se manifestam como inter-religiosos e in-
dade não está clara. Por isso, surge o pós-moderno, tercatólicos, há um sentido de exploração tecnoló-
tanto secular como religioso, com alguns aspectos gica, na busca do poder e no controle dos recur-
das tradições pré-modernas, com recursos para sos. E isso leva à rejeição dos argumentos religio-
ajudar o presente. Penso especialmente em tradi- sos, pois tende a justificar a violência dos conflitos,
ções místicas e em momentos na tradição dos como a guerra, e por vezes demoniza os outros, já
franciscanos ou dos reformistas radicais e de anti- que todos esses conflitos expressam a guerra entre
gos luteranos ou em aspectos da bíblia que são Deus e os demônios. Entretanto, em tudo o que
muito influentes em tempos específicos. Nos pri- vemos no mundo, também há a afirmação positi-
meiros três séculos da cristandade, foi mais in- va de muitos grupos modernos. O que ocorreu na
fluente o Evangelho de Mateus, porque ele ensina Índia é um bom exemplo. A Índia foi dominada
como formar uma comunidade com novas leis e por um partido que era hindu e que governou na
novos direitos. Hoje, para muitos, o Evangelho linha do sistema capitalista. Recentemente, quan-
de Marcos e o mais místico Evangelho de João do houve eleições, porém, os pobres modelaram
tornaram-se fundamentos maiores para repensar o processo, levar a que se governasse mais simpa-
e cumprir realmente a fé. Assim, em resumo, con- ticamente para eles, e o governo é mais secular,
sidero que os elementos mais importantes no pre- novo em sua compreensão, e os comunistas con-
sente são: a luta por justiça com amor, como cha- seguiram 60 cadeiras no parlamento. Isso serve
ve; o diálogo das religiões; a análise ética; a polí- como exemplo de uma ideologia favorável aos
tica econômica da globalização em todas as suas pobres. Também revela o acesso à democracia.
formas; a cobertura do novo sentido da nova Em Mumbai,13 houve manifestações, nas quais as
cristandade que está por vir; os grandes recursos pessoas expressavam suas convicções e preferên-
da tradição que ignoramos durante demasiado cias. A impressão é que isso se relaciona também
tempo. com a pós-modernidade e, em maior ou menor
grau, com o pluralismo como fato da vida, como
Michael Amaladoss – Eu vejo a tendência para expressão de culturas, o que também permite ver,
a cooperação como um sinal maior de esperança. em lugar do conflito, o desejo de se buscarem saí-
Os homens atingem a coletividade da comunida- das. Há vários grupos procurando isso em várias
de no campo da ciência e da tecnologia e mantêm partes do mundo. No momento, parece dominar
a importante presença no campo da tecnologia da o conflito. Na Índia, de certa maneira, ainda vigo-
comunicação, e tudo isso representa instrumentos ra o pensamento hindu. Basicamente, eles acredi-
favoráveis, um novo desenvolvimento para as ne- tam num único Deus, que ultrapassa várias divin-
cessidades da população que está crescendo. dades, buscando a verdadeira realização, porque
Toda essa tecnologia, porém, apresenta um viés Deus é um e por isso todo o povo deve ser uma

13 Refere-se ao Fórum Social Mundial, realizado, no início deste ano, em Mumbai, na Índia (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

comunidade que tenha sentido. Dessa forma, o penso que a pós-modernidade é um modo de
sentido do pluralismo e da unidade, diria eu, é a afrontar a modernidade, que é um futuro tão tre-
busca da harmonia e da unidade. Eu penso que mendamente aberto que precisamos pensá-la,
essa é a visão que temos em grupos universitários pois ainda não a dominamos. Não sabemos para
em várias partes do mundo e que esta harmonia aonde caminha a humanidade, portanto devemos
quer estender-se, hoje, para grupos que visam ao buscar orientações. Nesta humanidade global, an-
aspecto ecológico que se expande atualmente no tes de tudo, está o problema da justiça. Um obser-
mundo. Eles vivem como nós gostaríamos de vi- vador de Marte seria incapaz de compreender que
ver: em harmonia sobre a terra. Eu creio que tam- haja fome neste mundo, onde sobra riqueza, onde
bém há muitos sinais de esperança. se gasta em armamento. Portanto, o tema da justi-
ça entre as nações e dentro das nações é o tema
Lúcia Weiler – Uma das características que eu da paz – há guerras que continuam solapadas,
percebo na contemporaneidade é a fragmentação abertas – são temas centrais. Devemos estender
e busca da globalização sem uma integração de também isso à ecologia e à saúde humana. A eco-
ambas. Fragmentação do conhecimento, de situa- logia está a serviço da humanidade, logo devemos
ções, de afetividades e, ao mesmo tempo, uma cuidar do mundo, mas cuidar dele para que haja
globalização. Há uma globalização positiva de es- pessoas que vivam sãs e com justiça. Vendo estas
perança que tem suas vantagens e há outra que é problemáticas tão sérias, percebemos que a possí-
algo que vem de fora. Há uma consciência nova vel solução para o futuro é por meio da unidade
ecológica, inclusive o próprio cristianismo começa das nações. O grande problema é ir encontrando
a conscientizar-se de ter contribuído com suas in- instrumentos internacionais. Olhando o conflito
terpretações por vezes errôneas de textos bíblicos no Iraque, não há como não pensar numa organi-
ou não comprometer-se suficientemente com a si- zação como as Nações Unidas fortalecida, que pu-
tuação atual, e isso se tornou uma questão ética desse parar esta tremenda irracionalidade. Por-
de responsabilidade e está se tornando uma rea- tanto, há que construir uma sociedade de nações
ção e uma espiritualidade e uma mística, ecológi- eficaz, efetiva. Naturalmente, nisso entraria o diá-
ca, cósmica. Há também a desumanização, a vio- logo das religiões para unir os esforços, segundo a
lência e a reação contrária, uma sede de humani- preocupação de Hans Küng15 e de todos nós. Do
zação, sede de relações humanas, relações iguais, ponto de vista cristão, a minha grande preocupa-
entre homens e mulheres. Há conflitos marcantes, ção é como lograr que o cristianismo seja frutífero,
e a nossa sociedade está buscando e ensaiando já não entro agora na questão de ajudar a dar sen-
como integrá-los. tido à vida individual e à vida coletiva, e sim, real-
mente, que a Igreja consiga primeiro romper o
Andrés Torres Queiruga – O que me impressio- maior mal-entendido da modernidade ocidental,
na mais é que a mudança da modernidade é tão provavelmente na oriental não seja tanto, pensar
grande que Karl Jaspers14 fala de cinco rupturas que Deus é inimigo do homem, anunciado por
na história da humanidade e põe a modernidade, Feuerbach16. Convencer a humanidade de que
que é muito recente, como a última. Por isso, eu Deus é verdadeiramente amor, portanto, a reli-

14 Karl Jaspers (1883-1969), advogado, médico e filósofo alemão. Entre 1920 e 1930, o filósofo dedicou-se a elaborar as idéias
que, com as de seu compatriota Martin Heidegger, formariam a base do existencialismo alemão. Jaspers afastou-se de
Heidegger, quando este não condenou explicitamente o regime nazista. (Nota da IHU On-Line)
15 Hans Küng, importante teólogo alemão, presidente da Fundação de Ética Global,com sede em Tübingen, na Alemanha. É

autor de inúmeros livros. Foram traduzidos para o português, entre outros, Igreja Católica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002;
Uma ética global para política e economia mundiais. Petrópolis: Vozes, 1999; Religiões do Mundo. Em busca dos
pontos comuns. Verus Editora, 2004. O sítio da Fundação de Ética Global é http://www.weltethos.org (Nota da IHU On-Line).
16 Ludwig Feuerbach (1804-1872), filósofo alemão, autor, entre outros, dos livros, Preleções sobre a essência da religião.

São Paulo: Papirus, 1989 e A essência do cristianismo. 2. ed. São Paulo: Papirus, 1997. (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

gião só tem sentido como salvação, para fazer o nosso grupo não está dando o devido lugar à
bem à humanidade. Entretanto, não basta enun- questão ecológica como paradigma fundamental
ciar isso, temos que mostrar com uma nova teolo- de nosso tempo. Ele insiste muito na imagem do
gia. Para mim, parece que o problema fundamen- Titanic. Nós estamos no Titanic, ele está para
tal é democratizar a Igreja, se não o conseguirmos, afundar e nós ficamos tratando de questões inter-
não poderemos adaptá-la ao mundo atual, não nas. Eu acho que também beira essa teoria, ape-
podemos estar, passo a passo, com o tempo, sair nas não dá para resolver separadamente esses
para desafios novos, e isso supõe uma mudança problemas.
muito radical. Por exemplo, teologicamente, não
haveria dificuldade nenhuma para que todos os IHU On-Line – O sofrimento é algo crucial
cargos da Igreja fossem eletivos e temporais. Os na contemporaneidade. Onde ele está con-
grandes cargos, bispos, Papas deveriam ser por centrado? Como está presente ou ausente
tempo determinado. Sei que isso assusta muito. na teologia? Deus sofre?
Acho, porém, que sem isso não seremos capazes João Batista Libânio – Há dois grandes sofri-
de atualizar o cristianismo. mentos. As classes populares sofrem de miséria,
de fome, de insegurança do futuro, de perda da
Luiz Carlos Susin – Eu gostaria apenas de dar a dignidade, daquilo que Gustavo Gutiérrez18 defi-
minha visão sobre a periferia de uma megalópole ne como não-homem, não-ser humano. As clas-
onde há dificuldades de comer, porque há frag- ses mais ricas sofrem de uma falta de sentido da
mentos de comida, fragmentos de trabalhos e vida, de um vazio, de um niilismo, portanto estão
também fragmentos de religião, porque tudo se em busca de consolo, de religiões, de seções espi-
apresenta de forma caótica. E, às vezes, tive a ritualistas, porque, no fundo, se encontram em um
tentação de interpretar o nosso momento com a vazio. Se esses dois temas são trabalhados na teo-
teoria do caos, mas dentro da ambigüidade em logia? Sim, a teologia da libertação trabalhou mui-
que o caos tanto é lugar de muita morte quanto é to o sofrimento e ainda a sua questão central: o po-
lugar de muita criatividade. Na informalidade, na bre. Os últimos livros de Gustavo Gutiérrez insistem
periferia, percebemos muita criatividade, muita muito nisso19. Creio que a teologia européia está
energia, energia solta que se caracteriza, em par- preocupada com esse niilismo que há nas suas so-
te, pela violência e que assusta muito. É o horror ciedades. Portanto, os dois sofrimentos maiores
do caos. Também, muita energia criativa e que são tratados pela teologia a seu modo, o que pare-
vai em direção à complexidade de formação que ce um consenso, sobretudo depois que Molt-
depois tem que se ver pelo lado institucional, mann20 insistiu tanto no Deus crucificado, que já
pelo lado jurídico, até pelo lado metafísico. Aca- não temos mais a idéia da apatia de Deus da teolo-
bo de receber um e-mail de Leonardo Boff muito gia clássica ou de origem grega. Para nós, hoje,
aborrecido com nosso grupo que está lançando Deus sofre porque nos criou e está ao nosso lado,
uma temática em vista de um fórum mundial de para lutar ao nosso lado, a fim que tudo dê certo e,
teologia e libertação17. Ele se queixa, porque quando isso não acontece, ele sofre conosco.

17 Refere-se ao I Fórum Mundial de Teologia e Libertação – FMTL, que se realizou nos dias 21 a 25 de janeiro de 2005, na PUCRS,
em Porto Alegre, precedendo o Fórum Social Mundial, que ocorreu de 26 a 31 de janeiro de 2005. (Nota da IHU On-Line).
18 O teólogo, filósofo e psicólogo peruano Gustavo Gutiérrez é um dos iniciadores da teologia da libertação. Autor de diversos

livros, entre os quais destacamos: Teologia da Libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000 (Nota da IHU
On-Line)
19 Alguns dos últimos livros de Gustavo Gutiérrez são: Em busca dos pobres de Jesus Cristo. O pensamento de Bartolomeu

de Las Casas. São Paulo: Paulus, 1992 e Onde dormirão os pobres? São Paulo: Paulus, 2003. (Nota da IHU On-Line)
20 Jürgen Moltmann é um dos maiores teólogos vivos. Ele concedeu entrevista ao IHU On-Line n.º 94, de 29 de março de 2004.

Desse autor, a Editora Unisinos publicou os livros A vinda de Deus. Escatologia cristã. São Leopoldo, 2003 e Experiências
de reflexão teológica. Caminhos e formas da Teologia Cristã. São Leopoldo, 2004. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

David Tracy – Estou convencido de que não ca Romana, que é outro império poderoso.
existe nenhuma filosofia ou teologia que não te- Ambos são grandes organizações que pensam fa-
nha como tema, não digo único, mas central, a zer um grande bem, mas de fato eles fizeram e fa-
preocupação de encontrar uma resposta para o zem o mal. E, como membros responsáveis de
sofrimento inocente. O sofrimento dos indivíduos ambos, devemos lutar, intelectualmente e de qual-
por enfermidades, infortúnios ou acidentes que quer outra maneira que pudermos. Para mim, não
podem acontecer às pessoas, o sofrimento psico- é Moltmann que apresenta a solução. Já na bíblia,
lógico, tão terrível... De certa forma, todos nós es- e não com o pensamento moderno, ou Hegel,
tamos num sofrimento geral. Não só os indivíduos, Deus sofre. E porque temos categorias que pro-
como povos inteiros, em todas as classes sociais. vêm dos gregos, e não originalmente da bíblia, o
Eu concordo com Levinas21 que toda teologia, e sofrimento é sempre mudança, é sensibilidade
mesmo filosofia, que não responda a isso, é, no com os outros que estão sofrendo e mudando. Em
atual momento, no mínimo, estranha, porque há toda a cristandade, é o crucificado o desejado.
tanto sofrimento que está ocorrendo no mundo e Preciso dizer, em termos históricos, que, por causa
há tantas maneiras que a moderna tecnologia do pensamento grego, se levantou uma noção da
pode motivar qualquer um, incluindo os intelec- imutabilidade que influenciou os cristãos recentes,
tuais, a encarar essa realidade, e a encarar a ne- com algumas exceções no passado, para dar-se
cessidade de se fazer algo, de pensar bem. Como conta de que Deus também sofre. Deus está co-
disse um recente sociólogo americano, nós esta- nosco. Como disse Dietrich Bonhoeffer22 sobre
mos sendo entretidos para a morte. Há sempre os nazistas, sobre os que eventualmente foram
algo novo para ver, somos sempre levados a mu- mortos por eles, muitas vezes só o Deus que sofre
dar de canal, a ter sempre novas experiências... E, pode ajudar. E o povo tem o direito de saber isso.
não obstante, as religiões não oferecem uma sóli- E os teólogos têm a responsabilidade de articular
da orientação para se tentar entender o sofrimen- isso de forma que oriente. Por que não tomo a
to. A única coisa que vejo em todas as religiões é cruz que representa o sofrimento e a alegria? É
que elas consideram que o ego é o problema. O importante a experiência do Abba, pensamento
ego exige que se faça tudo para ele mesmo, que se cristão de que Deus é amor. Isso, porém, não
trabalhe para ela e não se veja a realidade que pode ser dito num sentido tão sentimental, que
está acontecendo aos outros e, eventualmente, o não vai ajudar na perturbação e no sofrimento.
que está acontecendo a nós mesmos. Nós permiti- Por isso, também devemos evitar que cristãos
mos isso, nós permitimos que o povo goste disso, desvirtuem a tradição católica, transformando o
eventualmente permitimos que apressadamente sofrimento num dolorismo ou num fatalismo ou
se queira isso. E não obstante, a cruz exige que es- dizendo que o povo pode sofrer agora para ser
sas relações se dêem a partir de nós, no lugar onde feliz depois. Isso não é uma resposta teológica
estamos. Não é fácil, no presente momento histó- adequada. O sofrimento tem o poder de induzir
rico, ser um cidadão dos Estados Unidos, esse po- ao sofrimento ou de lutar contra o sofrimento,
deroso império, ou ser um crente da Igreja Católi- nesta vida, agora!

21 Emmanuel Levinas 1906-1995), filósofo e comentador talmúdico, nasceu na Lituânia e faleceu na França. Desde 1930, era
naturalizado francês. Foi aluno de Husserl e conheceu Heidegger cuja obra Ser e tempo de 1927 o influenciou muito. “A ética
precede a ontologia” é uma frase que caracteriza o pensamento de Levinas. Ele é autor do livro que o consagrou Totalité et
infini. Essai sur l’extériorité que foi traduzido para o português com o titulo Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70,
2000. No Brasil, a Editora Perspectiva, publicou Quatro leituras talmúdicas em 2003 e a Editora Vozes, De Deus que
vem a idéia, em 2002. (Nota da IHU On-Line)
22 Dietrich Bonhoeffer(1906-1945), importante teólogo do século XX. Ativo nas iniciativas ecumênicas da Igreja considerada

como uma entidade mundial, foi um dos primeiros alemães que se aperceberam dos problemas do nazismo, criticando o
regime de Hitler. Associou-se ao grupo que desejou matar Hitler. Foi preso, passando dois anos na cadeia, e foi enforcado em
1945. Sua última obra de envergadura foi Ética. São Leopoldo: Sinodal, 1988. Escreveu ainda muitos livros, entre os quais
citamos Ressistência e submissão. São Leopoldo: Sinodal, 2003. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Michael Amaladoss – Não penso que o sofri- e a autoconfiança. Outra é a violência, o crime or-
mento seja algo particularmente pós-moderno. ganizado, que se manifesta, muitas vezes, no pla-
Penso que no presente, como no passado, os hu- no doméstico, de forma velada, e aí a mulher é a
manos enfrentam o sofrimento, vão contra o sofri- grande vítima. A resposta que a teologia está pro-
mento, escapam do sofrimento. Esse é o primeiro curando é desenvolver uma mística e uma resis-
aspecto: o povo enfrenta o sofrimento e atrás do tência interligadas. Em nosso trabalho, tentamos
sofrimento está a injustiça. Isso vale para formas aumentar esse modo de empoderamento dos po-
de hinduísmo, de grupos sociais ou de ações polí- bres, especialmente de mulheres, com quem eu
ticas e outras. Em segundo lugar, as pessoas acre- mais trabalho. Vejo uma distância muito grande
ditam que certa forma de sofrimento é inerente à ainda na academia. Acho que ela reflete, mas não
natureza e lutam contra o sofrimento. E, num gru- chega a uma prática de assumir, de fato, o sofri-
po que avalia o sofrimento, a idéia é que precisa- mento. O Deus que sofre é aquele que escuta o
mos crer na capacidade de humanizá-lo. Vejo que clamor e desce. Em grande parte, nossa teologia
as posições do budismo na contemporaneidade ainda é triunfalista ou fundamentalista, busca ver-
devem ser bem entendidas. Buda envolveu-se dades e não se preocupa tanto com convicções e
com o sofrimento, mas não pregou a resignação, e práticas. A bíblia dá uma grande perspectiva para
sim a capacidade de superá-lo de forma humana, quebrar o oficial e entrar com as pequenas histó-
de humanizá-lo, aceitando-o e dando-lhe uma rias onde há libertações acontecendo. O clamor
nova concepção humana. Como último aspecto, de Deus é o clamor do povo, seja para o próprio
penso que o cristianismo é mais prospectivo do povo, para a academia ou para a teologia. O grito
que o budismo, porque vê o sofrimento como algo de Jesus em Marcos é uma convergência do cla-
que teve que ocorrer, mas esta ocorrência está li- mor do pobre. em que é reconhecido que Ele é fi-
gada ao fato de que Deus aceita o sofrimento e lho de Deus. Devemos resgatar o sofrimento não
nos impõe que o enfrentemos e o humanizemos. por ele mesmo, porque teríamos uma espada de
Penso que tudo isso está se consolidando. Essa é dois gumes, mas a solidariedade no sofrimento,
uma experiência que não tem limites, que se torna sim, é a grande obra de Deus, do amor de Deus.
apofática E isso é um mistério. É preciso entender Estar lá onde a pessoa sofre. Uma mulher que aju-
o sofrimento e humanizá-lo. Ele é tão mistério dou muito na desconstrução de textos bíblicos foi
como Deus. Assim, temos uma responsabilidade a Elza Tamez23, quando ela disse que Agar24 foi a
esse respeito. mulher que complicou a história da salvação e jus-
tamente essa mulher vê aquele que vê o sofrimen-
Lúcia Weiler – Eu vejo dois grandes sofrimentos: to, o clamor e por isso ela também entra na bên-
um é a exclusão, com suas formas sutis, que a ção. Precisamos ainda a prática, mas a sensibili-
pós-modernidade pratica e que faz as pessoas so- dade por um Deus que sofre a temos, e não pode-
frerem muito. Eu trabalho no Centro de Estudos mos fugir disso.
Bíblicos (Cebi) e vejo que, praticamente, 95% das
pessoas que se relacionam conosco no Brasil, não Andrés Torres Queiruga – Indubitavelmente, o
têm Internet nem uma possibilidade de comunica- sofrimento tem que ser um problema fundamental
ção que entre nós já é normal. Muitos não sabem da teologia. Uma teologia que não seja sensível
ler nem escrever, ouvem a bíblia por meio de um para isso, não tenha eficácia nisso, não é teologia.
gravador. As mediações de exclusão são muito su- O que me preocupa é que essa situação tome for-
tis, o que faz sofrer muito, porque tira a dignidade mas racionais. Acho que seguimos mantendo um

23 Elza Tamez, teóloga mexicana, metodista, professora da Universidade Bíblica Latino-Americana da Costa Rica, com vários
livros traduzidos para o português. (Nota da IHU On-Line).
24 Agar é a escrava egípcia de Abraão com a qual ele teve vários filhos. Cf. o livro do Gênesis, 21,1-21 e 25,12. (Nota da IHU

On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

terrível mal-entendido teológico e que o cobrimos como a dor de um filho fere a mãe e fere o pai.
com retórica, porque não adianta dizer que Deus Portanto, não podemos crer em Deus antimal, se
sofre ou que Deus se compadece, o que é verda- não colaboramos com Ele na luta contra o mal. E
de, se, ao mesmo tempo, não esclarecemos que assim podemos ler o Evangelho: o único encargo
sofre, porque é impossível evitar o mal. Nós segui- que nos deixa Jesus é justamente a luta contra o
mos mantendo um mito. Na verdade, eu prefiro mal, porque isso significa a lei da caridade. Amar é
dizer que Deus se compadece a dizer que ele sofre, lutar contra o mal: dar de comer a quem tem
o que me parece mais exato dentro da inexatidão. fome, vestir o nu. O critério último é esse, porque
Enquanto se mantiver o preconceito de que Deus a parábola do juízo final vai nos dizer que cremos
pode criar um paraíso no qual não haja sofrimen- em Deus, se realmente lutamos contra o mal. Por
to, ou que hoje Deus poderia eliminar o sofrimen- isso, para mim, é importante que rompamos o
to, então estamos fazendo retórica que não leva a mal-entendido de que Deus pode evitar o mal. De
nada. De nada vale um Deus que se compadece nada valeria que nos quisesse muito e sofresse na
de mim, se podendo tirar minha enfermidade ou cruz se, podendo evitar o mal, não o evita.
tirar minha fome, não o faz. Então temos que dis-
tinguir dois caminhos: de um lado, há um Deus Luiz Carlos Susin – Queria lembrar que, talvez,
que está amando, de outro, é impossível evitar a espiritualidade barroca ibérica, depois que ga-
esse sofrimento. É a palavra de Isaías: “Pode uma nhou conotações latino-americanas entre nós,
mãe esquecer o filho de suas entranhas, ainda que apesar da suas ambivalências, já tem uma expe-
ela o esqueça, eu não o esquecerei”25. Se eu vejo riência do que significa por um lado, aceitar a con-
uma mãe sofrer à cabeceira do seu filho, sei que, dição de criatura que sofre, e, por outro, saber que
para a mãe é impossível evitar esse sofrimento. isso não é desesperador, porque há a solidarieda-
Isso não pode levar a pensar em um Deus impo- de de Deus de alguma forma no sofrimento que
tente, Deus é onipotente. O problema do mal não nós chamamos hoje de compaixão e que essas
é de Deus, é nosso. É a nossa finitude que faz im- duas formas de sofrimento uma salva a outra, em-
possível evitar todo o mal. Então, se realmente bora uma seja sofrimento para a vida e outra para a
compreendemos que Deus, ao criar o mundo, morte, uma seja destrutiva e a outra, regeneradora.
sabe que, inevitavelmente, o limite do mundo vai
impor conflitos, contradições, sofrimentos, e que IHU On-Line – Que riquezas e limitações
uma liberdade finita permite a possibilidade de fa- apontaria para o fazer teológico asiático,
zer coisas más, Deus ou não cria, ou, se cria, tem europeu, latino-americano e o que cada um
que assumir que, no mundo, vai aparecer sofri- deveria aproveitar do outro?
mento, conflito e mal, ou seja, não é possível evi- João Batista Libânio – Do fazer teológico da
tar o mal. Se não esclarecermos isso, fazemos re- América Latina, eu colocaria duas características:
tórica. Ele mostra sua personalidade, lutando con- o partir da experiência de Deus no pobre como a
tra o mal, por isso eu inventei uma palavra: ”pone- inspiração mais profunda na teologia, portanto é
rologia” para dizer que primeiro temos que dar-nos uma experiência de Deus, é algo tremendamente
conta de que para um crente ou não-crente o mal é teologal, mas essa experiência de Deus se faz no
inevitável, e Deus situa-se ao nosso lado, natural- pobre, no sofrimento, na dor etc. Geralmente, for-
mente porque nos ama, apoiando-nos na luta mulamos desta mnaneira: uma teologia da práxis,
contra o mal, compadecendo-se de nós, mas ani- na práxis, para a práxis, pela práxis. A primeira,
mando-nos a lutar. Uma vez que compreendemos porque ela colhe da prática do cristão e da prática
que o mal é inevitável, compreendemos que Deus de outras pessoas que estão envolvidas com esse
é o antimal, que está continuamente lutando, ten- processo de libertação e reflete sobre ele. Na prá-
tando evitar esse mal que o fere como nos fere, xis, porque supõe que o teólogo esteja compro-

25 Ele está citando Isaías 49,15 (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

metido com essa situação. Para a práxis, porque modo semelhante, parece-me muito claro que o
tenta devolver essa reflexão para essas pessoas problema, que está ocorrendo na história da filo-
para que elas, iluminadas pela teologia, possam sofia e da teologia é o seguinte: Pierre Hadot27, do
agir mais cristãmente, mais lucidamente. E, talvez, Collège de France, como sabem, fez vários estu-
o mais complicado, pela práxis, porque se deixa dos que ajudam a ver os problemas da cultura oci-
criticar na sua teologia pela própria práxis. De tal dental, em que há uma divisão entre teoria e práti-
maneira que cristãos simples, pobres, podem criti- ca. E isso ocorreu primeiro nos movimentos da teo-
car um teólogo acadêmico, porque ele percebe logia fora dos mosteiros, e, recentemente, no âm-
que daí vem elementos que a ele escapam, que bito das universidades. Tomás de Aquino, porém,
esse lugar é tão original que critica o seu lugar aca- ainda conseguiu ver esses conceitos conjunta-
dêmico. Das outras teologias, aprendemos muito. mente. Separou-se a espiritualidade da teologia e
A teologia européia nos ensinou a metodologia, a a prática da teoria. Eu aprendi isso participando
hermenêutica e muitas outras coisas. Estamos de uma discussão entre cristãos e budistas. O de-
aprendendo da teologia norte-americana, que in- bate foi bastante metafísico, bastante teológico,
felizmente conheço menos, porque minha forma- sobre ser e não ser, sobre Deus e a finitude, sobre
ção é mais européia, esse esforço de responder a natureza do sofrimento, a natureza da ansiedade
para uma sociedade na que o consumo, a riqueza, etc. Os budistas procuram inserir as práticas espiri-
o poder é extremo e como esses teólogos estão tuais na teoria, de uma maneira como os teólogos
tentando introduzir rupturas nessa homogeneida- ocidentais, mesmo os que não exerceram práticas
de para poder despertar, por meio de dois ele- espirituais, o fazemos. É muito mais difícil, há uma
mentos, que David Tracy citou na sua conferên- grande divisão. As culturas modernas ocidentais,
cia: a mística e a apocalíptica. entre outras, e mesmo em relação ao antigo Oci-
dente, são peculiares, como Hadot mostrou. Toda
David Tracy – É muito claro que uma das gran- a antiga filosofia, não precisamente as concepções
des vantagens e esperanças do cristianismo nos cristãs e judaicas, apresentava esse aspecto. Assim,
dias atuais é que ele é global. Como disse antes, se você é estóico, no dia-a-dia, você vai engajar-se
não é algo que vai demorar para aparecer. E isso em exercícios para ligar o seu logos com o logos
significa que o cristianismo é ecumênico. Há um que preside o universo. Se é epicurista, seus exer-
lugar teológico em minha tradição, como católico, cícios são feitos para aprender a deixar ir-se a sua
para, por exemplo, Calvino e o calvinismo. O que ansiedade, numa forma de vida budista. A teolo-
é necessário agora é aprender algo dessas diferen- gia cristã, por razões que estamos começando a
tes formas de pensamento e prática cristã que entender, penso eu, fez uma divisão, isso apesar
emergem em toda a parte do novo mundo, espe- da grande visão de Tomás, acima mencionada,
cialmente o mais antigo, como o que aparece na dizendo que não deve separar, quando distingue.
Índia, onde há tantos jesuítas. Se bem há uma dis- E ele não o fez. Ele foi muito bom nisso. Entretan-
cussão sobre as religiões e sobre como o cristianis- to, no século XIV isso se vai. E, na academia, nós
mo transformou-se em uma religião minoritária, ensinamos a teologia separadamente. E o povo
para mim, o mais importante é destacar que o cris- que nos ouve, poderia ensinar-nos a repensar e a
tianismo é o melhor de toda a cristandade26. De repensar publicamente, assim espero. Não é pre-

26 O autor está entendendo cristandade como toda a história e cultura cristãs e a forma concreta que o cristianismo foi tomando
no decorrer da história.
27 Pierre Hadot, filósofo francês, é um dos co-autores do livro Dicionário de ética e Filosofia Moral. São Leopoldo: Unisinos,

2003. Suas pesquisas concentraram-se primeiramente nas relações entre helenismo e cristianismo, em seguida, na mística
neoplatônica e na filosofia da época helenística. Elas se orientam atualmente para uma descrição geral do fenômeno espiritual
que a filosofia representa. Em português, pode ser lido o livro de sua autoria O que é a filosofia antiga? São Paulo: Loyola,
1999. Para uma resenha da obra confira a revista Síntese 75(1996), p. 547-51. A resenha do original francês é de Henrique C.
de Lima Vaz. (Nota da IHU On-Line).

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cisamente uma investigação avassaladora, ques- ceitual, lógico, escolástico, numa tendência talvez
tionando quando ocorreu a divisão e por quê. Vá- não tanto tomista, mas neo-escolástica. Hoje a
rios pensadores, como Wittgenstein, Nietzsche, real visão asiática é muito mais afetada por símbo-
Foucault, e teólogos como Karl Rahner, e também los, numa visão mais holística, muito mais voltada
outros, tentam colocar as coisas em comum. To- para a terra, mesmo num sentido artístico, crendo
dos devemos envolver-nos e eventualmente que- que arte, filosofia, teologia, espiritualidade, con-
remos ter êxito, pois atualmente, na academia, os duzem todos para uma mesma direção. Minha
cristãos têm diante de si todo o mundo global e to- concepção é bastante indiana. Como os cristãos
das as outras formas de cristianismo. Como suge- na Ásia não estão sendo tão notórios, penso que
ri, eles não promovem essa divisão e por isso po- eles devem ser redescobertos. Há uma aproxima-
dem não só ensinar a conhecê-la e superá-la, mas ção artística, uma aproximação simbólica, e não
mostrar novos caminhos e, surpreendentemente, uma aproximação conceitual, nem dogmática, ou
o antigo caminho é de ajuda para a filosofia e a lógica, uma aproximação para a reflexão teológi-
teologia. ca. Penso que nisso eles realmente podem contri-
buir. Talvez a Ásia também possa aprender de ou-
Michael Amaladoss – Sobre a filosofia asiática, tros, especialmente da América Latina. Acontece
podemos dizer o seguinte: na compreensão hin- que, por causa da tradição budista e hinduísta, os
duísta e budista não há real divisão entre filosofia católicos aceitam o sofrimento com demasiada fa-
e teologia. Mesmo se os teólogos cristãos orientais cilidade. Eles podem aprender o sentido do confli-
aprenderam da tradição ocidental, sobre a relação to, a luta contra ele, lutando contra o sofrimento,
entre razão e fé, entre filosofia e teologia, algumas lutando pela libertação, o que não fazem suficien-
coisas são vistas de outra maneira. Na Ásia, enca- temente na Ásia. E para muitos de nós a teologia
ra-se a teologia com uma visão integral. Também da libertação, que vem da América Latina, tem
se relaciona com filosofia e ciências sociais, mas sido uma resposta nesse sentido.
não se faz tanta diferenciação entre as ciências.
Segue-se uma visão integral de pensamento e re- Lúcia Weiler – Eu sinto que a teologia lati-
flexão, que não radicaliza a separação. Um segun- no-americana está muito próxima da experiência,
do elemento importante é a presença de outras re- da prática e da vida. Isso desenvolve criatividades
ligiões e de outras teologias na Ásia que, em todo novas e, sobretudo, é uma teologia mais narrativa
o mundo, só podem ser dialogais, dialogando do que dogmática, uma forma nova de teologizar
com outras tradições, como o budismo, o hinduís- mediações hermenêuticas novas, além de toda a
mo etc. E depois, esse pluralismo permite inter- teologia da libertação que continua dando passos.
câmbios que levam a encarar certas colocações Sinto que, como América Latina, poderíamos in-
teológicas como relativas e de certa forma limita- tegrar mais o diálogo entre a teologia sistemática e
das. Não se caminha mais no sentido da verdade a teologia bíblica, sobretudo intuições como a de
absoluta na bíblia, ou em relação a Jesus Cristo. Carlos Mesters e outras, que, a meu ver, estão sen-
Todas as manifestações humanas são, porém, de do mais procuradas na Europa que na própria
certa forma, afetadas por essa relatividade e pelo América Latina. Eu participo do intercâmbio do
diálogo na linha do pluralismo. Todos se esforçam Cebi com países de língua alemã. Já fomos para a
juntos na busca da plenitude e por isso unicamen- Academia de Freiburg e lá querem o método do
te Deus é o fim da busca. E onde está Deus? A teo- Cebi. Eu vejo isso como um intercâmbio enrique-
logia é o esforço de experimentar Deus, é sempre cedor para ambos. Quando olho para a Europa,
uma busca que nunca termina. Em terceiro lugar, estudei lá dois anos, vejo que há um patrimônio
penso que a teologia asiática poderia contribuir de pesquisa que nós não temos. Então agradece-
com alguns recursos. Herdamos muito da teologia mos o que a Europa nos oferece, mas acho que
cristã do Ocidente. Também herdamos toda a estaria na hora de desenvolver mais a pesquisa na
concepção racionalista da teologia, o aspecto con- área bíblica. Da Ásia, eu só tenho contato com a

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Indonésia, mais diretamente. A teologia desenvol- dos pela experiência budista, creio que uma oferta
ve formas de reflexão na fé pelo contexto de se- que o cristianismo não deve renunciar a oferecer é
rem poucos cristãos entre muitos de outras reli- a experiência do Abba criador, do Abba que cria
giões. Eles diziam: “Nós precisamos formar para por amor, esta personalização do divino, que
convicções de fé e não para repetir verdades de pode não ser uma pessoa humana, mas não pode
fé”. O pensamento asiático, a arte, o lado contem- ser menos que uma pessoa humana, em todo o
plativo, reflexivo a interdisciplinaridade é um méto- caso mais que uma pessoa, portanto de uma rela-
do que dá certo. Não é uma contemplação que ali- ção pessoal, sabendo que estamos nos relacio-
ena, mas um processo de reflexão. Podemos nando com alguém que nos ama. E aí verdadeira-
aprender muito uns dos outros. mente deve haver uma libertação do ego, mas
não para trás, para o indiferente, senão para a co-
Andrés Torres Queiruga – Curiosamente, sou o munhão, para a entrega no amor e para o outro.
único europeu, mas não me sinto representando Seguramente, devemos aceitar da Ásia esse saber
nem incorporando a Europa. Hoje a teologia ne- de que não somos os artífices absolutos da reali-
cessita incorporar esta dialética da experiência, e dade. Que há algo que devemos deixar que a rea-
da coerência racional. Indubitavelmente, a Euro- lidade nos fale, mas não renunciar à capacidade
pa tem o perigo de fazer livros sobre livros e idéias profética que temos na luta contra o mal, na reali-
sobre idéias e perder a experiência. A chamada zação do amor.
teologia da libertação foi uma sacudida para a Eu-
ropa para chamar-nos à experiência da realidade. Luiz Carlos Susin – Da América Latina tería-
Os exegetas americanos conhecem a exegese eu- mos que resolver um complexo de Édipo, com a
ropéia, mas estão mais livres, um oceano no meio teologia européia sobretudo. Tínhamos um pro-
parece que dá mais liberdade aos mestres. São blema, de adolescentes talvez. Jon Sobrino28 pro-
mais realistas. A tradição asiática sempre é uma curou distinguir isso, dizendo que a teologia da
tradição de experimentar falando, de viver de Europa teria enfrentado o primeiro iluminismo,
dentro a vida. De todas as maneiras, não pode- aquele da compreensão e do sentido. A nós toca-
mos renunciar à coerência racional. Sempre falan- va, em parceria com os movimentos de luta, de
do de uma razão ampliada, que inclua emoção, transformação, resolver o problema do segundo
que inclua sentimento. Podemos afirmar pouco iluminismo, aquele da práxis, da transformação
sobre Deus, mas aquilo que afirmamos deve ser da realidade. Praticamente todos os teólogos, nes-
coerente. Queiramos ou não, na cultura em que se período, foram nessa direção. Eu penso que,
vivemos, somos racionais e se algo é incoerente, com isso, nós trabalhamos muito com distinções
não o aceitamos. Assim, devemos superar o fun- também. Nas referências feitas à América euro-
damentalismo bíblico. É uma tarefa radical pensar péia, não consigo imaginar que ali estivesse tam-
sobre experiência sem estarmos submetidos à pa- bém a América Latina, porque a América Latina,
lavra da bíblia que é mítica, muito intervencionis- como o nome diz, é um pouco de latino, um pou-
ta, de um Deus que ainda não é cristão. A questão co de indígena e americano, mestiça, não tem mui-
do pluralismo é evidente. Não há possibilidades to de anglo-saxã, por exemplo. E isso nos permite
de sintetizar todas as culturas, mas ao mesmo tem- uma riqueza, uma complexidade que, se, por um
po não podemos renunciar ao diálogo entre elas. lado, nos tornou, em um certo momento, um pou-
Se somos humanos, tem que haver pontos de co adolescentes agressivos, por outro, nós, hoje,
contato. Não poderá haver identidade, mas tem aceitamos, com mais facilidade, aquilo que até em
que haver progresso no contato, maior espaço em análises militares e de grandes organismos econô-
comum. Assim como estamos hoje muito fascina- micos já se tratava: o mundo como regiões, não

28 Jon Sobrino, teólogo jesuíta, professor na Universidade Centro-Americana de El Salvador. É autor de inúmeros livros, muitos
dos quais traduzidos para o português. (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

como continentes, não como se fossem mundos não é como na Argentina e em outros lugares e
isolados, mas como regiões. Escutamos muitas nos Estados Unidos. Temos vários apelos favorá-
vozes, muitos sujeitos, inclusive fazendo teologia, veis à tradição indígena. É tão importante a incul-
a presença da mulher aqui já se sente muito visi- turação religiosa. Convém repensar também a
velmente. Estamos dentro de uma complexidade questão relacionada com os escravos, que tam-
que nos faz voltar um pouco ao fascínio do outro, bém é uma experiência tão terrível, aqui, na histó-
e o fascínio de outro nos abre a experiências de ria do Brasil, nos Estados Unidos e alhures. Eu es-
outras religiões também. pero poder organizar alguns aspectos regulares,
em algumas dessas sociedades onde estive para
IHU On-Line – Alguém gostaria de fazer mais encontros. As pessoas poderiam realmente apren-
algum comentário? der umas com as outras. Aprender algo relaciona-
David Tracy – Este debate foi muito rico, lastimo do com o hemisfério e até mesmo algo global.
não entender bem o português. Fui por diversos Aconteceu algo muito bonito no campo da litera-
anos perito no Concilio Vaticano II com outros tura: todas as pessoas educadas da América Lati-
grandes teólogos. Lembro Gustavo Gutierrez que na lêem os grandes autores latino-americanos.
se tornou um bom amigo e a maioria dos teólogos Aconteceu também com a música, com a pintura.
que encontrei foram pessoas muito boas. O que Por que não acontece com a teologia?
há precisamente a dizer é que fui me convencen-
do, ao longo das conferências deste Simpósio João Batista Libânio – Eu penso que há uma
Internacional O Lugar da Teologia na Universida- dificuldade crescente, sobretudo para nós aqui,
de do Século XXI, que é muito importante que no Hemisfério Sul, porque as políticas das nações
haja mais solidariedade intelectual e prática dos estão criando obstáculos. Muitos de nós hoje te-
teólogos de todo o hemisfério. Há uma reunião mos uma enorme dificuldade de viajar aos Esta-
anual dos teólogos católicos, incluindo o Canadá dos Unidos, porque, muitas vezes, passamos por
e o leste dos EUA. Presumo que daqui também tal vexame, por tal humilhação ao entrar, que não
participem alguns. Por que continuarmos distan- temos coragem de viajar. A política internacional
tes? Houve sérios problemas de alguns cristãos atual não favorece encontros físicos entre nós, por-
com seus governos, além do terrível escândalo que os países centrais dificultam o acesso dos paí-
que acompanhamos agora na Igreja. E creio im- ses marginalizados. Entrar na Europa é cada vez
portante mencionar também o povo indígena, mais difícil e nos EUA muito mais difícil. Teríamos
que tem igualmente uma história terrível. Por últi- que passar por uma concepção nova de política
mo, a situação no Brasil, no Peru e no México, internacional.

36
É necessário desbloquear a experiência de Deus

Entrevista com Maria Clara Lucchetti Bingemer

Maria Clara Bingemer concedeu a entrevista teresse crescente pela teologia. Fiquei impressio-
a seguir à IHU On-Line sobre o Simpósio Inter- nada com a freqüência e com as pessoas que vie-
nacional O Lugar da Teologia na Universidade do ram de longe, só para ouvir os teólogos. Os confe-
Século XXI. No evento, a professora foi responsá- rencistas foram todos excelentes. Gostei muitíssi-
vel por conduzir a oficina Teologia e espiritualida- mo do David Tracy. Embora seja do Norte, é um
de. Uma leitura teológico-espitirual a partir da rea- homem muito aberto. Selecionou justamente os
lidade ecológica e feminista. Maria Clara é decana autores que estão marcando o pensamento teoló-
do Centro de Teologia e Ciências Humanas da gico no Norte: o de Levinas, o pensamento judai-
PUC-Rio. Graduou-se em Jornalismo, obteve o co de Walter Benjamin e Simone Weil29. Um pen-
mestrado em Teologia pela PUC-Rio e douto- samento que enfatiza essa abertura para o outro e
rou-se em Teologia Sistemática pela Pontifícia que é igual ao nosso, quando tentamos fazer teo-
Universidade Gregoriana, de Roma. É autora de, logia na realidade: uma realidade de opressão, de
entre outros livros, A experiência de Deus num pobreza e de injustiça. Achei que a teologia feita
corpo de mulher. São Paulo: Loyola, 2002 e no Hemisfério Norte pode dialogar melhor com a
Deus amor: graça que habita em nós. São teologia feita aqui nessas latitudes.
Paulo; Valência: Paulinas; Siquem, 2003.
IHU On-Line – Quais são as maiores limita-
IHU On-Line – Qual é sua avaliação do Sim- ções no fazer teológico do Hemisfério Sul?
pósio Internacional O Lugar da Teologia na Maria Clara Bingemer – Recursos. A nossa li-
Universidade do Século XXI? mitação fundamentalmente é essa. Recursos, dis-
Maria Clara Bingemer – Fica, para mim, um tâncias dos centros onde as coisas estão aconte-
sentimento de que a teologia está readquirindo cendo, pobreza das bibliotecas, pobreza de recur-
importância, porque muita gente temia que, com sos bibliográficos.
essa eclosão do pluralismo religioso, do diálogo
inter-religioso, das ciências da religião, a teologia IHU On-Line – Há diferenças importantes
fosse perdendo espaço. Eu acho que está aconte- entre as linhas teológicas apresentadas pe-
cendo o contrário, que a teologia está ganhando los conferencistas do Simpósio?
espaço, está despertando um novo interesse, por- Maria Clara Bingemer – A diferença de fundo é
que, para pensar essas questões que o pluralismo a maneira de fazer teologia. David Tracy elabora
religioso, o diálogo inter-religioso e as ciências da sua teologia de uma maneira muito diferente da
religião levantam, se faz necessária a teologia. de Andrés Queiruga e de João Batista Libânio.
Esse simpósio reafirmou que está havendo um in- Tracy já passou, no itinerário dele, pelo diálogo

29 A IHU On-Line n.º 84, de 17 de novembro de 2003, teve como matéria de capa a vida e a obra da importante filósofa Simone
Weil. Além da professora Maria Clara Bingemer, foram entrevistados Maria Carpi, Fernando Rey Puente e Emília Mendonça
de Morais.(Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

inter-religioso, agora está nitidamente na mística, IHU On-Line – Mas, como se expressa no
mas é uma mística inter-religiosa, não é uma místi- concreto esse estrangulamento?
ca fechada. Gostei tanto dele porque estou plena- Maria Clara Bingemer – Há uma marcha à ré
mente convicta de que só quem poderá dizer pala- em muitos Institutos de Teologia por normas vin-
vras que ajudem à humanidade neste momento das de Roma e pela nomeação dos bispos, que
são os místicos. Não acho que os teólogos siste- vão numa certa linha junto com novos movimen-
máticos, os filósofos etc. possam nos ajudar muito tos neoconservadores como Opus Dei e Legioná-
nesse momento em que estamos lidando com o rios de Cristo que estão ganhando mais espaços
fato de que a religião, muitas vezes, se torna um nas universidades. Uma recomendação que eu
motivo de medo, de terror, de violência, como é o daria para a Companhia de Jesus: os jesuítas têm
caso do Islã político, da guerra do Iraque, onde a que ficar nas suas universidades, não podem en-
religião está no centro, no epicentro do conflito tregá-las, porque senão nós todos vamos ficar nas
como causadora dele, como atriz protagonista. mãos desses novos movimentos. Eu acabei de sa-
Quem está dizendo as palavras hoje, que real- ber que Amaladoss foi chamado ao Vaticano,
mente originam o pensar, são os místicos, ou os para responder por suas idéias. Isso esteriliza um
teólogos que incluem a mística no seu fazer teoló- teólogo. Leonardo Boff saiu, porque não agüenta-
gico. Queiruga e Libânio não ignoram isso, o va mais ficar respondendo cartas, Gustavo Gutier-
mencionam, inclusive quando Queiruga falou so- rez se fez dominicano, porque senão passaria o
bre Urs von Balthasar30, que trabalhou muito com tempo todo respondendo ao Cardeal de Lima, do
a mística assim como Rahner. Entretanto quem Opus Dei, justificando daqui e dali. É um momen-
mais enfatizou isso foi Tracy. Ele disse que hoje to muito complicado na Igreja para a teologia.
trabalha diretamente com o apofatismo catafatis-
mo, a mística está no centro das preocupações IHU On-Line – Na situação atual da teologia
dele, a teologia do Amaladoss, por ser de um ori- brasileira, como poderia acontecer um re-
ental, já inclui isso. Os orientais trabalham isso posicionamento na universidade, tendo em
muito melhor que nós. No Ocidente, nós exilamos conta que também a universidade precisa
a mística como uma coisa não-séria, menos rigo- ser questionada para se voltar mais para a
rosa, e eu acho que hoje ela está adquirindo uma sociedade. A teologia pode ajudar nesse
cidadania mais central e importante dentro da teo- sentido?
logia. Isso eu percebi também aqui. Nas perguntas Maria Clara Bingemer – Não se deve fugir ao
das pessoas, foi algo que apareceu bastante. O dis- desafio de dialogar com o mundo acadêmico, que
curso que enfatiza que a teologia da libertação é um mundo agnóstico, letrado, que expõe ques-
morreu, que não há mais preocupação pelos po- tões agudas. Às vezes, na América Latina, nós nos
bres, não é verdadeiro. Mostrou-se o tempo todo voltamos para uma teologia mais popular, que é
essa preocupação do enraizamento na realidade. mais fácil. Havia até uma postura antiintelectualis-
Agora, revelou-se muito também uma crítica ao ta que, para mim, não é correta. Por um lado, não
momento atual da Igreja, da instituição eclesial, o se pode abandonar o diálogo com os não-crentes,
sentido do estrangulamento em que se encontra a com os que estão no mundo acadêmico etc. Por
instituição eclesial como um impedimento sério ao outro, essa síntese que soubemos fazer neste Sim-
pensar teológico, mas isso se sente mais dolorosa- pósio é preciosa, no sentido de voltar a reflexão
mente aqui no Sul do que no Norte, porque no que se faz na universidade a serviço do povo. É
Norte eles são mais livres. Eles simplesmente não um desafio permanente para todas as universida-
ligam para isso. des sobretudo para a universidade católica, para a

30 Hans Urs von Balthasar, teólogo, é autor de imensa obra teológica. A sua obra fundamental é Theo-drama. Theological
dramatic theory. Ignatius Press, 1994. Em português podem ser consultados os livros O cristão e a angústia, Editora Cristã
Novo Século, 2003 e Meditar como cristãos. Aparecida do Norte: Santuário, 2003. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

universidade confessional. Na Europa e na Améri- rante, e justamente Deus diz não, ninguém vai
ca do Norte, a academia fica mais dentro da aca- matar Caim, porque eu vou botar a minha bên-
demia mesmo, mas há exceções, por exemplo, o ção, o meu sinal sobre a testa dele. O ser humano
Cardeal Martini31, que é um homem de uma eru- deseja raiz, deseja um lugar, e o mundo, tal como
dição fantástica, além de um grande homem de está, com a globalização, com esses processos per-
Igreja, fundou, na Universidade de Milão, uma versos do mercado, condena as pessoas a não te-
Cátedra chamada Cátedra dos que não crêem, rem raízes, a não terem lugar. Eu estive em Cuba
em que ele abordava temas que interessam a toda agora e vi algo de cortar o coração: famílias que se
a humanidade e dialogava com não-crentes. Saiu desagregam, porque os filhos estão saindo da ilha
até um livro do diálogo dele com Umberto Eco e ficam os pais sozinhos, que acabam indo tam-
muito interessante chamado Em que crêem os bém, mas vão para os Estados Unidos para serem
que não crêem?32. Esse tipo de diálogo a univer- limpadores de piscinas, entregadores de pizza,
sidade não pode deixar de fazer, embora também vão ser sempre subcidadãos, não vão para um fu-
não possa deixar de fazer também o outro, o diá- turo melhor, talvez vão ter mais dinheiro no bolso,
logo com as classes desfavorecidas, sobretudo em mas não sei se vai ser melhor, porque, em Cuba,
um continente que tem um terço de pessoas vi- eles eram cidadãos plenos, é a terra deles, e eles
vendo abaixo do nível de pobreza. Uma situação morrem de saudades, mas estão condenados a ir
que antes era só nossa, mas hoje, com a migração para lá, senão morrem de fome na sua terra. É
é uma realidade também na Europa, é o tema nú- uma situação horrível. E os mexicanos que atra-
mero um da agenda dos Estados Unidos, não sei vessam o deserto para chegar aos EUA... Essas
se é da agenda do Bush, mas o é da agenda dos mexidas mostram que as pessoas estão procuran-
Estados Unidos. Um teólogo como o Queiruga é do viver, buscando a vida, porque não estão con-
ótimo que esteja na Espanha, porque a católica seguindo viver nos lugares onde gostariam. O
Espanha, no momento, tem a mais baixa taxa de mesmo acontece com os nordestinos no Brasil
natalidade da Europa inteira e virou a sociedade que vêm para São Paulo e muitos se matam, jo-
do bem-estar. Como dizia Simone Weil, ser um in- gando-se do Viaduto, porque estão morrendo de
telectual é um privilégio terrível, terrível porque é fome. Vieram em busca de uma vida melhor, de
uma responsabilidade incrível. dinheiro para mandar para suas famílias, e so-
mem. As famílias nunca mais têm notícias deles.
IHU On-Line – O estudioso da cultura Néstor Acho que há valores fundamentais na humanida-
García Canclini retrata fortemente os movi- de que estão sendo “assassinados” por esse tipo
mentos migratórios no nosso Continente di- de situação. Isso é uma coisa que tem que ser mui-
zendo que uma quinta parte dos mexicanos to pensada, citando Simone Weil outra vez. A
e uma quarta parte dos cubanos moram nos obra-prima dela chamada O Enraizamento ana-
Estados Unidos. Los Angeles virou a terceira lisa justamente isso.
cidade mexicana, Miami, a segunda concen-
tração de cubanos, Buenos Aires, a terceira IHU On-Line– A teologia da libertação nas-
urbe boliviana. Como a teologia pode ser fei- ceu em um contexto político muito defini-
ta em uma realidade nômade que atinge o do. Atualmente, a política toma novas for-
cerne das questões identitárias? mas como o mostram novos movimentos
Maria Clara Bingemer – A raiz do ser humano, políticos na Argentina, no México, no Bra-
o lugar, é uma coisa seriíssima. Para a bíblia, é sil, que não passam pelas estruturas tradi-
fundamental: a maldição de Caim era andar er- cionais de partido político, sindicato etc.,

31 Carlo Maria Martini, teólogo, profundo conhecedor da bíblia, jesuíta, foi cardeal-arcebispo de Milão, Itália. Atualmente vive em
Jerusalém. Dos inúmeros livros de sua autoria, muitos foram traduzidos para o português. (Nota da IHU On-Line)
32 Editora Record, 1999.(Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

formas de democracia direta. Como a teolo- A prioridade número um para a Igreja deveria ser
gia pode se deixar influenciar por este novo suscitar, facilitar, desobstaculizar, desbloquear a
contexto? experiência de Deus das pessoas, porque todo o
Maria Clara Bingemer – Acho que a teologia resto vem depois, a norma vindo na frente ela não
atual tem que estar muito aberta para auscultar es- é abraçada, a imposição vindo na frente também
ses problemas, perceber que eles mudam numa não é abraçada. No momento, porém, que as pes-
velocidade muito maior do que se modificavam soas fazem as experiências de Deus, que são refe-
antes. A teologia da libertação nasceu num con- rência para toda a sua vida de amor, de ser ama-
texto claro de opressão política, inclusive ditadu- do, elas entendem certas coisas, relevam outras,
ras. Hoje temos uma democracia, há que ver o abraçam a norma, passam a amar a liturgia, que é
que se entende por democracia, se é só escolher chatíssima. Se elas não têm essa experiência de
os líderes políticos pelo voto, porque não sei se Deus, não tem sentido nenhum para elas, por isso
um país com mais de 30 milhões de pessoas abai- o jovem não quer ir à missa, porque acha “um
xo da linha da pobreza, pode fazer uma escolha saco”, e eu entendo que ache. Seria muito impor-
muito livre... Depois que os meios de comunica- tante mudar esse foco. Para isso a igreja tem que
ção transformaram, segundo McLuhan33, o mun- se tornar mais permeável, mais flexível, mais aber-
do numa aldeia global, não há mais esse tipo de ta, mais acolhedora.
fronteiras, ou seja, os chamarizes do mercado.
Querem transformar o sujeito pós-moderno num IHU On-Line – Por que a necessidade de uma
sujeito consumidor, que consome inclusive por- teologia feminina? Como está isso aqui no
nografia. Entram tanto nas favelas, como nas ca- Brasil?
sas das famílias da classe média. Não é só o meni- Maria Clara Bingemer – Eu não acredito muito
no da classe média que deseja o último modelo de em uma teologia feminista, constituída só de mu-
tênis, o favelado também, só que ele não tem lheres sem os homens. Não gosto disso. A huma-
como comprar, então isso gera nele a frustração, nidade é homem e mulher, eu não acho a menor
que gera a violência, que o faz procurar o tráfico graça num mundo sem homens. Como um mun-
para ele ter dinheiro para adquirir as coisas que do sem mulheres é horrível, sem homens também.
quer. O narcotráfico também é um dos problemas É muito importante que a mulher faça teologia,
muito sérios que desafia bastante a teologia. Falar porque ela o fará de uma maneira diferente, com
em valores como a paz e a alegria, que são os fru- o sentido da mulher, com o corpo da mulher, com
tos do Espírito que são sempre os valores cristãos a experiência da mulher... Se a mulher não entra
por excelência, está muito complicado hoje. Então, nesse fazer teológico, a teologia fica mais pobre,
por isso, me parece que a teologia deve estar mais assim como se o homem se retirasse, ficaria mais
aberta para as outras religiões e para as propostas pobre também. A vida familiar se enriqueceu com
que as outras religiões fazem no sentido de que as a maior participação dos homens, dos pais na
religiões têm que se unir para ver se esses valores educação das crianças, homem que cozinha, ho-
são trazidos de volta, porque sem eles a humani- mem que lava pratos, que acontece hoje com os
dade tem um curto futuro, parece-me. casais mais jovens. Com a teologia, pode aconte-
cer a mesma coisa, ainda mais que a Igreja Católi-
IHU On-Line – O que a senhora acha mais ca, que é uma igreja clerical, é um mundo só mas-
urgente mudar na Igreja? culino, onde a mulher não entra nem pela tangen-
Maria Clara Bingemer – Mudar as prioridades, te. Se mulheres pensarem fazer os cursos teológi-
porque parece que a prioridade número um está cos, elas o farão necessariamente com base na
em guardar bem a ortodoxia e a correta doutrina. própria experiência, à maneira delas, selecionan-

33 Marshall McLuhan (1911-1980), professor canadense que declarou, no final dos anos 1960, que o meio é a mensagem e que
todos vivemos em uma aldeia global. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

do dados, o modo de elaborar os dados, a manei- pente, foi acontecendo o mesmo e hoje passado
ra de pensar, misturando a espiritualidade, o que um ano e meio, eu vejo as pessoas muito desen-
a mulher sabe fazer muito bem, ao contrário do cantadas e o pior é que não sabem mais para
homem separa muito mais as coisas. Será um en- aonde ir, porque antes, se desencantavam, mas
riquecimento para todos. diziam: “Tem esperança ali”. A Igreja é a respon-
sável, é a guardiã, sempre foi, as igrejas, eu acho,
IHU On-Line – Olhando a situação sociopo- porque elas são as encarregadas de relembrar o
lítica brasileira atual, qual é o papel mais povo de que não podemos nunca apostar todas as
urgente das religiões e da teologia? nossas fichas num projeto humano. A transcen-
Maria Clara Bingemer – Segurar a esperança, dência está aí, embora ela passe pelo histórico.
porque a esperança está “indo pro brejo”. A vitó- Nós temos obrigação de procurar, de investir se o
ria de Lula foi simbólica. Isso já foi um ganho. Só negócio desenvolve, finalmente não desfraldar as
isto: colocar um operário sentado na cadeira de esperanças, sobretudo dos mais humildes, não
Presidente da República foi um ganho que o Bra- deixar que todas as nossas esperanças “morram
sil lavrou para sempre! Agora, no desenrolar, todo na praia”. É nesse sentido que eu falo de segurar a
o mundo esperava um Brasil diferente e, de re- esperança do povo, acho que, no Brasil, a Igreja
tem uma grande responsabilidade nesse ponto.

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A possibilidade da fé e da teologia, hoje

Entrevista com Johan Maria Herman Josef Konings, SJ

Johan Maria Herman Josef Konings, SJ, pro- que faz um avião levantar vôo e manter-se no ar
fessor no Instituto Santo Inácio, de Minas Gerias, sem a ajuda de anjos. Ou seja, para pessoas que
conversou com a IHU On-Line no decorrer do acreditam na autonomia do saber científico e
Simpósio Internacional O Lugar da Teologia na contudo prestam ouvido a uma outra voz, que se
Universidade do Século XXI. Ele ministrou a ofici- pode chamar “a Palavra de Deus”. Assim, ex-
na Hermenêutica e Teologia no século XXI no pressou com clareza que a fé não exige que se
evento. Johan Konings é licenciado em Filosofia acredite na literalidade de suas expressões sim-
pela Universidade Católica de Louvain, na Bélgi- bólicas e metafóricas, que ele abordou sob o as-
ca, licenciado e bacharel em Teologia e licenciado pecto do mito na narrativa bíblica – programa
em Teologia Bíblica pela Universidade Católica de que ele chamou de desmitologização, o que foi
Louvain. Concluiu o doutorado em Teologia pela muito mal-entendido, pois Bultmann sabia muito
Universidade Católica de Louvain em 1977. Entre bem que a linguagem sobre Deus não pode dis-
seus livros publicados, citamos Ser Cristão. Fé e pensar as metáforas, as narrativas simbólicas etc.
prática. Petrópolis: Vozes, 2003 e Liturgia Do- Além disso, quando coloca a verdadeira dimen-
minical. Mistério de Cristo e formação dos são da fé cristã na busca da autenticidade exis-
fiéis (anos A-B-C). Petrópolis: Vozes, 2003. tencial sob a palavra de Deus reconhecida em
seu revestimento narrativo, Bultmann prepara a
IHU On-Line – Qual a principal contribui- volta à interioridade, à escuta da experiência de
ção de Rudolf Bultmann para a teologia Deus no cerne da própria existência, com todas
contemporânea? as suas intencionalidades existêntico-transcen-
Johan Konings – Vejo em Rudolf Bultmann di- dentais, a abertura ao outro, ao mundo e a Deus.
versas contribuições à teologia contemporânea, Bultmann foi um expoente da teologia crítica,
e não consigo decidir qual delas devo considerar isto é, da teologia que leva a sério as exigências
a mais importante. Creio que Bultmann, contra- da razão crítica segundo o pensamento de Ima-
riamente à imagem que dele se tem no Brasil, em nuel Kant34. Mas foi também um teólogo dialético
vez de ser um teólogo liberal, foi um teólogo no sentido de Karl Barth35, consciente de que
crente, que reagiu contra a teologia liberal e quis Deus não se deixa captar em representações que
expressar, no contexto do mundo tecnocientífi- pertencem ao mundo fenomênico humano, ou
co, não apenas a possibilidade da fé e da teolo- seja, ele foi um desses teólogos preocupados em
gia, mas também a fé que de fato tinha. Quis ex- deixar Deus ser Deus - Deus, que deixa o ser hu-
pressar a fé para pessoas que confiam na ciência mano ser humano.

34 Sobre I. Kant conferir a IHU On-Line n.º 93, de 22 de março de 2004, com o título de capa Kant. Razão, liberdade e ética,
na qual, por ocasião do bicentenário da sua morte, discutimos o seu legado. Confira, especialmente, o artigo de Karl Lehmann,
Passando pelo fogo purificador da crítica, p. 18-21.(Nota da IHU On-Line).
35 De Karl Barth, em português, pode ser lido o livro Carta aos Romanos. Editora Cristã Novo Século, 2002. (Nota da IHU

On-Line)

42
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Qual a maior riqueza da obra culados dialeticamente, sem que um absorva o
Teologia do Novo Testamento? outro. Diante da religiosidade pós-moderna, que
Johan Konings – Faz muito tempo que li essa alguns até chamam pagã, creio que uma retoma-
obra, e por minha especialidade exegética tenho da do pensamento de Bultmann poderá, por um
mais presente sua obra analítica sobre as formas lado, iluminar os não-religiosos para ver que a
literárias no Novo Testamento e o comentário so- verdadeira transcendência, que chamamos Deus,
bre o Evangelho de João. A sua Teologia é uma não exige um sacrifício da razão, mas apenas do
síntese que abrange todos os grandes temas da teo- racionalismo monotrilho - e, por outro lado, aju-
logia bíblica. Mas lembro-me do impacto que me dar os “religiosos” a purificar sua imagem de
causou o primeiro capítulo, sobre a pregação de Deus, para que este não seja um tapa-buraco, um
Jesus, embora, com o tempo e com tudo o que le- pronto-socorro, um “deus ex machina”, um sub-
mos depois, muitos pontos devam ser matizados. terfúgio e causa de alienação diante dos desafios
Lembro-me também das suas exposições bíbli- que devemos assumir com a objetividade de nos-
co-antropológicas, baseadas sobretudo em Paulo so conhecimento racional e com a coragem de
e João. No fundo, embora sendo visceralmente nosso engajamento existencial. Há vinte anos, Pe-
um homem da modernidade, Bultmann não acre- ter Berger anunciou um “rumor de anjos”, mas
ditava cegamente no otimismo moderno. Pelo uma retomada do pensamento de Bultmann,
contrário, e nisso talvez reforçado pela tradição lu- como também de Bonhoeffer e de Tillich36, nos
terana, tinha muita consciência daquilo que cha- ajudará a não confundir esse rumor de anjos com
mamos pecado, o estado não-redento da humani- a voz do Altíssimo.
dade e do mundo, ao qual ele opunha, em termos
inspirados pelo pensamento fenomenológico-exis- IHU On-Line – De que maneira a obra de Ru-
tencialista, a autenticidade existencial como graça dolf Bultmann poderia iluminar um tempo
que vem da obediência à palavra de Deus. Pode- de crise civilizacional como é a contempo-
mose criticar a ausência de uma ética social ou raneidade, em que as instituições, que eram
global, mas no tempo em que ele viveu, antes, du- transmissoras de valores, como o Estado, a
rante e depois da Segunda Guerra Mundial, essa escola as igrejas, estão em crise?
visão teológica foi muito valiosa e creio que ele Johan Konings – Já disse que Bultmann nos
continua inspirador para nós hoje, também na lembra, quanto ao pensamento crítico, que somos
América Latina, para não esquecermos que so- “filhos de Adão”. Crises não se resolvem com mis-
mos filhos e filhas de Adão e Eva. tificação, mas com lucidez e coragem. Assim, uma
retomada crítica do seu pensamento poderá aju-
IHU On-Line – De que forma a contribuição dar a humanidade a reconhecer os passos certos,
de Bultmann pode ajudar no diálogo entre a não-ilusórios, a serem dados na noite que nos cir-
fé e o mundo não-religioso, científico, uni- cunda. Quando digo “retomada crítica”, quero di-
versitário, político etc.? zer: incluindo uma crítica à teologia crítica de Bult-
Johan Konings – Bultmann pode ajudar para o mann. Uma metacrítica. E tal metacrítica (à teolo-
diálogo com o mundo não-religioso – e, espero gia crítica) já existe, tanto na teologia bíblica como
eu, também com o mundo religioso – exatamente na da teoria do conhecimento que o pensamento
por causa de seu extremo respeito por Deus e pelo de Bultmann supõe. Do lado da fenomenologia,
ser humano. Tem horror a uma mistura dos âmbi- com a qual Bultmann está afinado, veio, já desde
tos do humano e do divino. Deseja que sejam arti- o tempo dele, a fenomenologia da alteridade, em

36 Paul Tillich (1886-1065), nasceu na Alemanha, mas viveu quase toda a sua vida nos EUA. Foi um dos maiores teólogos
protestantes do século XX. É autor de uma importante obra teológica. Entre os livros traduzidos para o português, podem ser
consultados Coragem de Ser. 6.ed. Editora Paz e Terra, 2001 e Amor, Poder e Justiça. Editora Cristã Novo Século,
2004.(Nota da IHU On-Line)

43
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Franz Rosenzweig37, Martin Buber, Emmanuel Le- ponsabilidade histórico-existencial no meio da noi-
vinas e Paul Ricoeur38. E quanto à teologia bíblica, te, sem falsa segurança, mas seguindo o “vinde e
mais exatamente, quanto à teologia do Novo Tes- vede” que Jesus dirigiu a seus primeiros seguidores.
tamento, os próprios discípulos de Bultmann o cor-
rigiram em muitos pontos. Quero citar, além do ad- IHU On-Line – Gostaria de acrescentar al-
mirável Ernst Käsemann39, sobretudo Günther gum outro aspecto em relação a Rudolf
Bornkamm, cujo livro sobre Jesus existe em tradu- Bultmann que não foi perguntado?
ção brasileira40 – o leitor poderá, portanto, verifi- Johan Konings – Só queria acrescentar que
car o que vou dizer. Se Bultmann insistiu que não Bultmann foi um momento num diálogo que nun-
se pode reconstituir a história da vida de Jesus e ca tem fim. Querer ressuscitá-lo, sem mais, certa-
que isso também não é necessário para anunciar o mente não seria de seu gosto, e nem serviria para
Cristo da fé como apelo à autenticidade de nosso nós. Por isso insisti no termo “releitura”. Os gran-
existir, os discípulos, Bornkamm e outros, lembra- des pensadores não se esgotam na primeira leitu-
ram que o Cristo anunciado tem um conteúdo his- ra, eles sempre reaparecem nessa espiral fecunda
tórico, e esta é precisamente a palavra que nos in- que é o pensamento partilhado e ruminado. Alu-
terpela da parte de Deus, que ninguém jamais viu. dindo à sua própria gnoseologia, eu diria que de-
Por isso mesmo, entre nós, a teologia da liberta- vemos entrar no círculo hermenêutico com ele.
ção dedicou renovada atenção à práxis histórica
de Jesus. Simplificando, como convém numa en-
trevista: Bultmann quis dizer que não podemos re- A teologia e a universidade devem vol-
constituir um Jesus sobrenaturalista, cheio de mi- tar-se para os mais necessitados
lagres, para assim impor a fé na sua divindade e a
submissão a verdades e normas reveladas. Não é IHU On-Line – Quais as idéias expressadas
o milagroso em Jesus que nos dá garantias divinas no Simpósio Internacional O Lugar da Teo-
da obra redentora, mas a cruz e a glória anuncia- logia na Universidade do Século XXI que o
das no querigma41 que nos interpela. Ora, eu creio senhor considera mais interessantes?
que Bultmann não negaria que a imagem narrati- Johan Konings – Infelizmente só participei de al-
va de Jesus de Nazaré expressa a fé da primeira gumas conferências. Concordo profundamente
comunidade – a fé dos discípulos –, é a voz que com Andrés Torres Queiruga que esse termo pós-
Deus dirige à nossa existência, ou seja, que Jesus modernidade pode ser usado abusivamente. Aqui
é a palavra de Deus, como diz o Evangelho de entre nós, me pergunto, às vezes, se já entramos
João magnificamente comentado por Bultmann. na modernidade. Deixemos os franceses falarem
Pois bem, uma releitura de Bultmann, enriqueci- da sua pós-modernidade, mas aqui a questão é
da com nossa maior sensibilidade pela práxis his- modernidade. É a assimilação de uma cultura crí-
tórica, poderá nos ajudar para assumir nossa res- tica, nacional, na medida do possível, internacio-

37 Franz Rosenzweig (1886- 1929), judeu nascido na Alemanha, é autor de uma obra filosófica importante onde ressaltam os
livros Der Stern der Erlösung (A estrela da redenção) e Judentum und Christentum (Judaísmo e Cristianismo). Ele
trabalhou com Martin Buber na tradução da bíblia hebraica para o alemão. (Nota da IHU On-Line)
38 Paul Ricoeur, filósofo francês, autor do importante livro O conflito das interpretações, São Paulo: Imago, 1978. A IHU

On-Line publicou, de Paul Ricoeur, um artigo intitulado Imaginar a paz ou sonhá-la?, na 49ª edição, de 24 de fevereiro de
2003, e uma entrevista na 50ª edição, de 10 de março de 2003. (Nota da IHU On-Line).
39 De Ernest Käsemann, em português, acaba de ser lançado o seu livro Perspectivas Paulinas pela Editora Teológica. (Nota

da IHU On-Line).
40 Além desse livro, foi publicado, pela Editora Paulus, em 2003, o livro de G. Bornkamm, Bíblia. Novo Testamento. (Nota da

IHU On-Line).
41 Querigma é núcleo central e essencial da mensagem cristã. Proclamação de fé sobre a vida, a morte, a ressurreição e a

mensagem de Jesus Cristo (Nota da IHU On-Line).

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nal, é uma figura pela qual toda a humanidade como ela nasceu naquele momento histórico que
tem que passar. Então, acho que é muito prema- viveu Jesus de Nazaré e o momento histórico que
turo querer falar sobre pós-modernidade. Ainda nós estamos vivendo. Uma cultura que não é ho-
não entramos na modernidade. Ora, o que está mogênea, uniforme, mas plural, composta de ele-
sendo questionado, que é o colocado em pauta, é mentos étnicos diversos, de tradições culturais di-
no fundo o que a tradição cristã tem a dizer para versas, e mais do que isso, talvez seja aquilo que
este momento que nós vivemos aqui na América se poderia chamar de toque pós-moderno, a si-
Latina, aqui no Brasil. E eu fico sempre com esse multaneidade de diversas figuras culturais no mes-
jogo de palavras de revelar e relevar. Será que mo momento, porque nunca, na história, foi pos-
aquilo que nós chamamos de revelação é também sível reunir, ao mesmo tempo, tantas experiências
relevante, ou seja, será que nós chamamos de re- diversas no mesmo lugar. Diante desta pluralida-
velação alguma coisa que já temos em nós, ou al- de, nós devemos, então, introduzir esta palavra
guma coisa que é capaz de responder àquilo que a que Deus nos falou com muito amor e que se cha-
nossa tradição nos transmite? Isso eu chamo rele- ma Jesus de Nazaré.
vância, ressalva alguma coisa em nós. Se a tradi-
ção é mera repetição de fórmulas e se o veículo IHU On-Line – Na América Latina, a teolo-
desta tradição é uma instituição que apenas quer gia soube responder mais aos pobres e na
se continuar a si mesma, corremos o perigo de Europa às universidades?
não termos nada a dizer, nada a comunicar. O Johan Konings – Eu me criei mais no mundo
que seria a negação mesmo desta tradição que, germânico e, de fato, sobretudo na Alemanha, há
numa das suas mais belas expressões chama o ini- faculdades de Teologia que desenvolveram uma
ciador dessa tradição de palavra, palavra de Deus. disciplina bem universitária, mas eu não vejo uma
O prólogo do Evangelho de João42 identifica o diferença fundamental quanto à experiência po-
fundador da nossa tradição como uma palavra de pular. Por exemplo, a teologia do século XX, na
Deus. Ora, se esta palavra não leva em considera- Alemanha, nasceu da experiência popular contra
ção o funcionamento do nosso ouvido, então es- a teologia acadêmica. O maior teólogo protestan-
tamos num diálogo de mudos. Em outros termos, te da Alemanha do século XX, com todo o respeito
devemos verificar se aquilo que nós transmitimos por Rahner, mas como biblista, eu penso ser Ru-
como palavra de Deus realmente é uma palavra dolf Bultmann43. Seu questionamento nasceu, por-
para ser ouvida ou uma espécie de barulhão que que depois da destruição causada pela Primeira
nos ensurdece. É como a diferença entre música e Guerra Mundial, uma destruição mais cultural e es-
som. Hoje em dia, nas danceterias, não há músi- piritual do que teológica ou material, Bultmann viu,
ca, só há som quase ensurdecedor. Eu me pergun- na prática de pastor, com as populações operárias,
to, todavia, se, às vezes, aquilo que nós chama- onde ele trabalhava, que tudo deveria ser nova-
mos de tradição, e nos esquecemos que se trata da mente, criteriosamente repensado. E ele se deu ao
transmissão de Jesus de Nazaré, não é mais uma trabalho de estabelecer critérios na teologia críti-
coisa ensurdecedora do que uma palavra que to- ca. Isso não nasceu do ambiente universitário, e
que a sensibilidade do homem e da mulher mo- sim da Pastoral Operária. O que acontece no Bra-
dernos neste momento histórico em que vivemos. sil, na América Latina, hoje com a teologia da li-
Então, a preocupação dele ser e estabelecer exa- bertação, é exatamente a mesma coisa. Teólogos
tamente um diálogo entre esta palavra assim com uma formação altamente acadêmica, prati-

42 Evangelho de João, capítulo 1, 1-18. (Nota do IHU On-Line).


43 Rudolf Bultmann (1884- 1976) é um teólogo alemão. Com Karl Barth e F. Gogarten, é um dos protagonistas da teologia
dialética. Não a história, mas o “querigma”, isto é, a proclamação da primeira cristandade, está na raiz da fé. Essa é a tese
fundamental de Bultmann, que marca a teologia do século XX. No Brasil, acaba de ser publicada a sua obra fundamental
intitulada Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. O livro, com 928 páginas, foi traduzido por Ilson
Kayser e revisado por Nélio Schneider. (Nota do IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

camente todos eles estudaram na Europa: França, IHU On-Line – Qual a lição mais importante
Itália, Bélgica, Alemanha, confrontados com a ex- que tirou de sua longa experiência na Pasto-
periência do povo na América Latina vêem que o ral Universitária?
veículo tradicional não responde àquilo que o Johan Konings – Sim, eu me envolvi bastante
povo está vivendo. na Pastoral Universitária. Ora, eu não considero a
universidade um âmbito muito especial para a
IHU On-Line – E como vê a presença da teo- elaboração de um discurso cristão. Deve haver fa-
logia na universidade no Brasil? culdades de Teologia, dentro ou fora da universi-
Johan Konings – Eu nunca me preocupei muito dade, para se especializar no estudo da tradição
com isso, embora tenha sido coordenador de Cul- cristã, eventualmente para preparar ministros cris-
tura Religiosa da PUC de Porto Alegre. Aliás, nun- tãos, tudo bem, mas a Pastoral como tal não se faz
ca me preocupei muito com a presença da teolo- num âmbito separado. O universitário vive numa
gia em geral, claro, eu sou teólogo, a minha profis- família, espero, porque muitos, atualmente já nem
são é formular melhor, de maneira mais adequa- conhecem mais a experiência daquilo que é uma
da, o discurso sobre Deus. O que importa, porém, família. Ele vive num ambiente mais amplo, traba-
na universidade, tenha Faculdade de Teologia ou lho – ele tem que trabalhar para pagar seus estu-
não, é que se faça pesquisa e ensino de uma ma- dos –, e talvez esse ambiente de trabalho seja mais
neira científica e que o resultado disso se destine importante do que as três horas noturnas que ele
honestamente ao ser humano e, em primeiro lu- passa na universidade. E também num ambiente
gar, ao ser humano mais necessitado. Isso para cultural amplo, um ambiente político etc. Então a
mim é o teor teológico da universidade. Pastoral deve estar presente em tudo isso, não
pode ser setorizada. Se, na universidade, lhe mos-
tram modelos bonitinhos, mas que não funcio-
nam, quando vai para casa, para que serve isso? A
Pastoral Universitária não deve ser outra coisa se-
não um prolongamento da experiência cristã em
toda a vida do universitário.

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O cristianismo tem algo a dizer para a contemporaneidade?

Entrevista com Nélio Schneider

Nélio Schneider é teólogo, tradutor e profes- var a relevância e a atualidade do querigma neo-
sor no Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em testamentário para o mundo moderno; o meio de
Teologia da Escola Superior de Teologia (EST). fazer isso é o estudo científico profundo das raízes
Graduado em Teologia pela EST e doutor em Teo- da fé em Jesus e no cristianismo primitivo e sua
logia pela Kirchliche Hochschule Wuppertal, na tradução e interpretação para a atualidade, visua-
Alemanha. É autor de, entre outros, Proclamar lizando aí a necessidade de abandonar as formu-
Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1998 e lações míticas usuais no mundo antigo e retraduzir
Paulo de Tarso – Apóstolo a serviço do seu conteúdo em linguagem contemporânea, pois
Evangelho de Jesus Cristo e da Cidadania. a fé não anula a razão, antes crer implica também
São Leopoldo: CEBI, 1999. compreender. Por isso, o decisivo não é arrastar
consigo uma bagagem de concepções incompre-
IHU On-Line – Quais foram as principais di- ensíveis para nós, mas falar a mensagem do Evan-
ficuldades para a revisão da obra Teologia gelho de tal forma que também hoje o indivíduo
do Novo Testamento, de Rudolf Bultmann? seja confrontado com a decisão da fé diante de
Nélio Schneider – Não se apresentaram dificul- Deus e, desse modo, seja tocado incondicional-
dades propriamente; fizemos uma opção editorial, mente em sua existência, só assim chegando a
primeiro por apresentar uma tradução baseada na compreender a si mesmo de maneira autêntica.
versão mais recente da obra na Alemanha, inclusi-
ve com todos os acréscimos bibliográficos da edi- IHU On-Line – Quais foram as vantagens e
ção original (em torno de 200 páginas); segundo, os limites de não considerar a história, e
por constituir, por um lado, uma edição útil do sim o querigma, na raiz da fé?
ponto de vista científico (ou seja, preservando, Nélio Schneider – A importância de ressaltar o
por exemplo, os caracteres gregos do texto origi- papel decisivo do querigma para a fé está em que
nal, que são muitos) e, por outro, uma edição legí- a proclamação do Evangelho é que atinge incon-
vel também para quem não domina o grego neo- dicionalmente a existência do ser humano em to-
testamentário (apresentando a tradução também dos os tempos, ao passo que a história passada
do texto grego); terceiro, por entregar ao público pode ser pesquisada e aquilatada com os métodos
brasileiro uma edição bem trabalhada do ponto científicos sem constituir base para nenhuma mu-
de vista estético, para fazer jus à importância da dança na vida do indivíduo. O limite dessa idéia,
obra dentro da pesquisa da teologia do Novo Tes- apontado já por discípulos do próprio Bultmann,
tamento e à relevância do autor nessa área. é que foi justamente a história de Jesus de Nazaré
que gerou o querigma que atinge incondicional-
IHU On-Line – Qual considera a principal mente a existência humana. Assim, esse aspecto
contribuição de Rudolf Bultmann à teologia histórico específico não pode ser negligenciado e
contemporânea? deverá ser considerado em sua relevância para a
Nélio Schneider – A contribuição maior de Ru- fé. Para Bultmann, a história de Jesus de Nazaré
dolf Bultmann foi a busca constante por compro- não fazia parte do querigma neotestamentário,

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mas constituía um de seus pressupostos. Para os ao fenômeno histórico e ao conteúdo da proclama-


críticos de Bultmann, o próprio Jesus de Nazaré e ção; c) um dos temas teológicos mais discutidos no
a mensagem por ele proclamada são constitutivos século passado foi a proposta apresentada por
do querigma. Bultmann de demitologização da mensagem do
Novo Testamento, que propugnava a necessidade,
IHU On-Line – O que significa a fé consistir não de eliminar o mito, mas de traduzi-lo e inter-
na autocompreensão da pessoa humana me- pretá-lo para a linguagem do mundo contemporâ-
diada pelo Evangelho? Crer não é acreditar neo. Partindo do pressuposto de que o mundo ne-
em fato, e sim uma nova maneira de enxer- otestamentário se expressa na linguagem mitológi-
gar a existência? ca e que o mundo moderno não mais se utiliza
Nélio Schneider – O ser humano só chega a dela, Bultmann vê como imperativo que o evange-
uma compreensão autêntica de si mesmo quando lho seja expresso na linguagem que nos é própria,
confrontado com a decisão da fé. Como ocorre para que preserve a sua relevância para o ser hu-
esse confronto? Pela proclamação do Evangelho, mano moderno e seja capaz de confrontá-lo com a
revela ao ser humano a sua verdadeira condição decisão da fé.
de pecador diante de Deus e o convoca a uma en-
trega existencial plena e irrestrita, em obediência IHU On-Line – Qual é contribuição da obra
incondicional a Deus. Trata-se, portanto, de con- para a teologia latino-americana?
ceber a própria existência de maneira nova, den- Nélio Schneider – Sendo um clássico da literatu-
tro de novos moldes existenciais e viver uma vida ra científica sobre o Novo Testamento, é imperati-
de obediência total a Deus. Crer não tem nada a vo que quem pesquise sobre o assunto tenha co-
ver com acreditar na veracidade de certos fatos, nhecimento dos resultados desse trabalho. Com o
mas de acolher a mensagem do Evangelho como lançamento da tradução para o vernáculo, o aces-
válida para a própria existência e, assim, promo- so a essa obra fundamental está facilitado. A im-
ver uma mudança radical na maneira de vivê-la. portância da obra para a teologia latino-americana
reside no fato de, valendo-se de um instrumental
IHU On-Line – Quais foram as principais científico de pesquisa, trazer à luz o querigma neo-
descobertas neotestamentárias de Rudolf testamentário de uma forma criteriosa e séria. Bult-
Bultmann? mann propõe uma interpretação existencial do que-
Nélio Schneider – Rudolf Bultmann ocupou-se rigma em sua relevância para o indivíduo crente ou
com muitos temas e foi pioneiro em diversos cam- descrente. É um ponto que poderia ainda hoje gerar
pos da pesquisa do Novo Testamento. Cito apenas uma discussão frutífera com uma abordagem globa-
três pontos importantes: a) na pesquisa sobre os lizante em que o indivíduo some na moderna massa
Evangelhos, marcou época a sua obra História da informe ou é subsumido numa quantidade de estru-
tradição sinótica, na qual ele estabeleceu parâme- turas que o despersonalizam.
tros até hoje considerados sobre as diversas formas
literárias em que se constituiu a tradição sobre Je- IHU On-Line – Como esta obra contribui
sus e seus diferentes contextos vivenciais (Sitz im para uma teologia pública na universidade?
Leben) no âmbito da primeira cristandade; b) no Nélio Schneider – Essa obra contribui para uma
âmbito da teologia do Novo Testamento, justa- teologia pública universitária pela sua metodologia:
mente a obra em questão, representa um marco ela obtém seus resultados com rigor científico, valen-
que até hoje é tomado como ponto de partida por do-se de um princípio interdisciplinar. Concorrem
quem se ocupa com o tema; Bultmann considerou para a investigação as perspectivas histórica, filológi-
a teologia do Novo Testamento em sua diversidade ca, filosófica e teológica. Essa abordagem torna a
de formulações, em suas variações históricas, con- obra relevante não só para crentes, mas também
dicionadas pelo percurso da proclamação evangé- para toda pessoa que se interesse pelo conhecimen-
lica através do mundo antigo, estabelecendo, com to científico abalizado dos escritos neotestamentários
isso, um modelo cientificamente mais adequado em seu contexto histórico e cultural.

48
A teologia e a idéia de desenvolvimento nacional

Entrevista com Rubens Ricupero

Rubens Ricupero, secretário geral da Confe- sil nessa pós-modernidade, na medida em


rência das Nações Unidas sobre Comércio e De- que nós temos uma realidade brasileira
senvolvimento (UNCTAD), ministrou a conferên- que, em muitos casos, é anterior a essa
cia de abertura do Simpósio Internacional O Lu- pós-modernidade?
gar da Teologia na Universidade do Século XXI, Rubens Ricupero – Isso é verdade. Eu acho que
na noite do dia 24 de maio de 2004, sobre A gran- o caso brasileiro é de uma particular heterogenei-
de transformação socioeconômica da sociedade dade, no sentido que Celso Furtado havia defini-
capitalista pós-moderna: desafios e perspectivas do muitos anos atrás, isto é, temos um tipo de eco-
tendo em vista o lugar da universidade e da teolo- nomia capitalista em que há regiões que estão em
gia no século XXI. Rubens Ricupero foi nomeado distintos tempos do capitalismo. Isso traz o atraso
secretário geral da UNCTAD em setembro de de umas em relação a outras, mas são diferentes
1995. Anteriormente foi subchefe da Casa Civil da de natureza, justamente como diz a palavra hete-
Presidência em 1985 e conselheiro especial do rogeneidade. Isso, no Brasil, se nota claramente
Presidente da República em 1986. Em 1993, foi num exemplo, entre muitos, mas este exemplo eu
nomeado ministro do Meio Ambiente e da Ama- acho muito claro, que é o conflito pela terra. Nós
zônia pelo Presidente Itamar Franco, antes de tor- temos, ao mesmo tempo uma das agriculturas
nar-se ministro da Fazenda em 1994, quando su- mais modernas e mais intensivas em capital e tec-
pervisionou o lançamento do programa brasileiro nologia do mundo, que é essa grande agricultura
de estabilização econômica (Plano Real). Rubens do agronegócio exportador, mas ao mesmo tem-
Ricupero é professor de Teoria das Relações Inter- po temos um movimento de camponeses sem ter-
nacionais na Universidade de Brasília, desde ra. Esses dois fenômenos, normalmente, não coe-
1979, e professor de História das Relações Diplo- xistem porque nos países onde há uma agricultura
máticas do Brasil no Instituto Rio Branco, desde muito capitalizada, com muita tecnologia, a fase da
1980. É também autor de diversos livros e ensaios reforma agrária, do acesso à terra, já se cumpriu,
sobre relações internacionais, problemas do de- no passado. Enquanto no Brasil, curiosamente,
senvolvimento econômico, comércio internacio- nós temos essa coexistência com tensões, de uma
nal e história da diplomacia. Entre eles, citamos A agricultura muito moderna, exportadora, concen-
ALCA. São Paulo: Publifolha, 2003. De Ricupero, tradora do capital, e um movimento de milhares de
IHU On-Line publicou dois textos: Uma reforma agricultores que não têm, ainda, terra. Portanto, só
anacrônica? e Reforma agrária não é questão de isso já mostra a complexidade da estrutura brasilei-
polícia, na 69ª edição, de 4 de agosto de 2003, e ra. Eu citei esse exemplo porque é dramático, não
um artigo dele sobre Norberto Bobbio na 89ª edi- resolvido, um problema para o qual até hoje não se
ção, de 12 de janeiro de 2004. vê claramente a solução, porque, embora a agricul-
tura moderna seja muito útil para o País, quanto ao
IHU On-Line – O senhor vem, entre outros comércio exterior, ela não tende a gerar muitos
aspectos, abordar a questão do capitalismo empregos. Então, ela não resolve o problema des-
na pós-modernidade, mas onde está o Bra- sa massa de gente deslocada. E como o País não

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

está crescendo, não há também geração de em- reservas. São países que podem crescer mesmo
pregos na indústria e nos serviços que possa ab- em condições que no Brasil são impensáveis. Por
sorver esses trabalhadores agrícolas. exemplo, a Índia está crescendo seis por cento ao
ano com um déficit consolidado no setor público,
IHU On-Line – Na Folha de S. Paulo do últi- somando o governo central e os estados, de 10%
mo dia 23 de maio, o senhor chama a aten- do PIB, com uma inflação baixa, mais baixa do
ção para a necessidade de o País criar uma que a brasileira. Ela só consegue fazer isso porque
marca forte, à luz da experiência asiática, ela não depende dos mercados internacionais.
quem sabe, e chamava a atenção para a ne- Então, o que eu defendo no meu artigo, é o cami-
cessidade de definir algumas característi- nho do comércio exterior, que passa pela conquis-
cas de uma estratégia nacional de desenvol- ta da eficiência, e aí é que vem a idéia da “marca
vimento. Que características seriam essas? Brasil”. Há muita coisa que nos prejudica, hoje,
Rubens Ricupero – Eu parto de um ponto que que depende apenas de nós mesmos, não do mun-
me parece crucial: o Brasil tem que abandonar a do exterior. Por exemplo, nós temos uma burocra-
ilusão de que cultivou nesses últimos dois anos, e cia pesada e onerosa no comércio exterior. É difícil
que é baseada na suposição que nós só vamos exportar. Isso depende apenas de uma maior racio-
crescer com capital vindo de fora; que nós precisa- nalidade. Nós temos até hoje um sistema de tribu-
mos inelutavelmente importar poupança externa tos, de impostos, que oneram as exportações; isso
e por isso, para podermos atingir o que os econo- só depende de nós mudarmos, não são os america-
mistas chamam “o grau de investimento”, investi- nos que nos impedem; nós temos que melhorar a
ment grade, nós temos que seguir uma política administração dos portos, que são caros, mal-ad-
além até da ortodoxia, em relação ao superávit ministrados, com algumas exceções. Então, o que
primário, de orçamento, de taxas de juros. Se essa eu propugno é um esforço sistemático em todas as
visão não for abandonada, não há solução viável áreas que dependem de um esforço nacional de
para o Brasil, porque ela se baseia num grande competitividade para criar a obsessão necessária
equívoco: na hipótese de que nós temos um siste- pela independência.
ma financeiro mundial estável, que recompensa
os países que têm bom comportamento. E isso IHU On-Line – O senhor chamava atenção,
não é verdade. Nós temos um sistema financeiro nos seus textos de alguns meses atrás, da
extremamente volátil, que se deixa levar por con- necessidade de implantar algumas políticas
siderações, muitas vezes, irracionais e, por mais distributivistas, com base em alguns estu-
que o Brasil se esforce em atingir as metas ortodo- dos do Ipea. Alguma coisa disso, porque
xas, ele nunca será recompensado, estará sempre essa característica do governo brasileiro,
em situações como nós estamos agora, de novo, que o senhor assinalou, de confiança extre-
ameaçados por uma outra crise. Nós temos que mada na globalização financeira, ela já vem
encontrar outra solução para sairmos dessa prisão de outros governos...
da dívida. Essa solução só pode ser através da Rubens Ricupero – Veio a partir do Collor, e se
produção, por muitos anos, de saldos comerciais manteve, eu devo dizer que no período em que eu
apreciáveis, com o câmbio favorável para expor- fui ministro da Fazenda, eu nunca acreditei nisso,
tação, e através desses saldos comerciais, reduzir tanto assim que eu nunca visitei o Fundo Monetá-
ao mínimo absoluto a nossa necessidade de recur- rio Internacional, e nesse período eu fui contra a
sos de fora. Isso foi o que fizeram os países que es- apreciação da moeda. Eu aceitei, e disse isso no
tão crescendo. Países como a China e a Índia, que Congresso, que o real se valorizasse, pois ele foi
crescem a oito ou a seis por cento, porque nunca lançado no meu período, apenas por algumas se-
cometeram o erro brasileiro de acreditar na globa- manas, porque no início não se acreditava no real.
lização financeira, mantiveram sempre a sua auto- Então, a valorização em relação ao dólar teve um
nomia financeira, não se endividaram com os efeito psicológico. Eu lamento enormemente que
mercados internacionais, acumularam enormes depois de eu ter saído, os que ficaram, que são

50
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

meus amigos, cometeram um erro grave – Gusta- sidade de São Paulo, se tornaram um pouco técni-
vo Franco, Pedro Malan, o presidente Fernando cas, afastadas da realidade social. Há esse papel
Henrique – persistiram nisso até 1998, com resul- na Unicamp, por exemplo, que tem um foco de
tados desastrosos. pensamento crítico. Vejamos um exemplo concre-
to: a mim me chama muito a atenção a agricultura
IHU On-Line – Qual é o papel da universida- de exportação. Eu sempre me pergunto se essa
de nessa problemática? grande agricultura de soja, de algodão, a criação
Rubens Ricupero – Eu acho que a universidade de gado no Mato Grosso, que nos enche de orgu-
tem que desempenhar um papel de consciência lho, como brasileiros, qual é o impacto social des-
crítica, de avaliação dessas teorias que estão por sa agricultura na região? Qual é o impacto do ní-
aí. Uma das causas do mal que está nos dominan- vel de emprego? No nível de salário? Na questão
do, na América Latina, é que infelizmente muitos da terra? Que eu saiba, não há estudos. Ora, à
dos nossos economistas formaram-se em universi- universidade competiria esses estudos, sobre a
dades norte-americanas. E isso foi deliberado, a realidade nacional. Nós precisamos saber o que
partir dos anos de 1960, com programas de bolsa, está acontecendo. Esse tipo de agricultura pode
e esqueceu-se uma coisa que Raul Prebisch, o coexistir com a reforma agrária, com a proprieda-
fundador da Cepal, o fundador da Unctad, que eu de familiar? Como criar um espaço para a agricul-
dirijo, e amigo do Celso Furtado, dizia, que as teo- tura familiar? Isso compete aos pesquisadores da
rias neoclássicas, as teorias econômicas do Norte, universidade, aos agrônomos, aos economistas...
são valiosas, não devemos ter arrogância, temos Eu confesso que fico um pouco surpreso de ver
muito o que aprender com elas, mas nós temos que o que há de mais interessante nessa área vem
que avaliá-las com olhos críticos, com base na de iniciativas, ou do Ipea44, que é um órgão oficial,
nossa realidade, mas os economistas importam que produz coisas muito boas, inclusive os melho-
essas teorias.... Eu acho que o papel da universi- res estudos sobre o problema da Alca, na distribui-
dade é produzir um pensamento crítico e potente, ção da renda, são todos do Ipea, assim como os
para ser levado a sério, mas que seja capaz de estudos sobre a concentração de renda. O único
questionar essas teorias, essas abordagens, que problema do Ipea é que ele deveria orientar o go-
não são adequadas para o tipo de necessidade verno, e o governo não lê os próprios estudos,
que nós temos. A universidade deveria ser o pon- produz mas não lê, não utiliza. Outros estudos são
to de reflexão do projeto nacional de desenvolvi- de pessoas isoladas, como os do professor Márcio
mento, que está faltando ao Brasil. Nós vemos Pochman, da Universidade de Campinas45. Entre-
que os governos se sucedem e estão todos um tanto, num país como o Brasil, cujo problema cen-
pouco perdidos, nenhum deles tem uma idéia de tral é a extraordinária desigualdade de miséria, de
nação, de um projeto a construir, perdeu-se isso pobreza, deveria ser essa a primeira prioridade da
há muito tempo. Eu vejo aí um papel muito gran- universidade, em cada lugar, aqui, no Rio Grande
de da universidade em busca desse projeto, a uni- do Sul, em São Paulo, em Mato Grosso, partindo
versidade teria que animar esse projeto. da realidade local, estudar. Não se vê isso, a uni-
versidade nem sempre contribui para o conheci-
IHU On-Line – Ela está ausente? mento da realidade local, ela, muitas vezes, fica
Rubens Ricupero – Eu acho que ela está muito prisioneira de currículos, que são adequados, mas
modesta, porque grandes universidades do passa- um tanto acadêmicos e tradicionais. Falta um
do que tinham um bom prestígio, como a Univer- pouco esse contato com a realidade. A segunda

44 IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, existente há 40 anos, é uma fundação pública subordinada ao Ministério do
Planejamento, Orçamento e Gestão com a atribuição de elaborar estudos e pesquisas para subsidiar o planejamento de
políticas governamentais. (Nota da IHU On-Line)
45 De Márcio Pochmann a IHU On-Line publicou a entrevista intitulada Nunca esteve tão longe a distância entre o País que

podemos ser e o País que somos, na 98ª edição, de 26 de abril de 2004. (Nota da IHU On-Line)

51
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

coisa que eu vejo é que de um lado há um excesso para o sacerdócio, ou porque fossem católicos ou
de indulgência com universidades privadas que protestantes. Eu acho que a teologia faz parte do
são fábricas de diplomas. Eu não sou contra a uni- conceito de universidade, porque essa palavra,
versidade privada, pelo contrário, sou contra aque- nós sabemos, vem dessa raiz latina que é a totali-
las que são indústrias para construir fortunas, como dade do conhecimento humano. Então não se
algumas. Por outro lado, há muita rigidez para pode excluir um segmento do conhecimento hu-
quem quer criar cursos novos, com currículos mais mano, como é a reflexão sobre o transcendental,
inovadores. Por exemplo, hoje em dia, quando é sob o argumento de que isso não tem nada a ver
nítida a idéia de que o desenvolvimento é um pro- com o Estado leigo. Eu acho que é necessário que
cesso contínuo de aprendizagem, a universidade haja o ensino da teologia mas um ensino aberto,
deveria estar atenta para acompanhar as deman- não pode ser um ensino de tipo positivo, inquisito-
das que a economia moderna exige. A Universi- rial, mas um ensino inclusive para contestar a pró-
dade de Genebra, onde eu moro, tem três grandes pria teologia. Curiosamente, Darcy Ribeiro, quan-
ramos. Um que prepara os professores para o sis- do fundou a Universidade de Brasília, e eu fui tes-
tema de ensino; outro que é sobre os ensinos es- temunha disso, queria criar o Instituto de Teolo-
peciais, minorias, excepcionais; e um terceiro gia, embora ele mesmo fosse agnóstico, não tives-
ramo que é a da educação permanente exigida se nenhuma fé religiosa, ele tinha muita ligação
pela vida moderna. Eu não vejo essa preocupa- com o Frei Mateus Rocha, que é um grande domi-
ção nos cursos de Pedagogia do Brasil, nós somos nicano e que morreu prematuramente em um aci-
um pouco atrasados nisso. A universidade, para dente de automóvel. Um homem que nos deixou
ser levada a sério, precisa começar a produzir co- um livro maravilhoso, chamado Um programa
nhecimento e colocar-se “à frente da curva”, não de vida radical, que era justamente a vivência
apenas importar de fora as coisas novas. do Evangelho. O Frei Mateus estava trabalhando
com Darcy para criar esse Instituto de Teologia
IHU On-Line – Onde entra a teologia, nesse dentro da Universidade. Houve o golpe militar, e
movimento? o projeto foi abandonado. Vê-se que houve pes-
Rubens Ricupero – Eu sou muito favorável a soas que entenderam isso. Acho que deveríamos
que haja teologia na universidade. Na minha opi- ter a teologia nas universidades, não apenas a
nião, seguimos o sistema francês, que é o da laici- teologia católica, mas ter teologia como um espa-
zação radical. Na universidade, o ensino e a pes- ço ecumênico.
quisa foram separados do ensino da teologia. A
França fez isso com a Revolução Francesa, por- IHU On-Line – Ante a complexidade brasi-
que rompeu com as tradições do Ocidente, mas leira, que prejuízos nós tivemos com a au-
essa ruptura nunca ocorreu nos países do mundo sência desses estudos teológicos?
germânico ou do mundo inglês, em que sempre se Rubens Ricupero – Eu acho que o prejuízo que
compreendeu que o ensino da teologia não tem nós tivemos foi que o conceito de desenvolvimen-
nada a ver com o confessionalismo. Em Viena, há to que nós devemos buscar, e aí vem a idéia do
anos, eu conheci muitos estudantes de teologia nosso fracasso, não é apenas a idéia do desenvol-
que não eram sequer pessoas religiosas, eram pes- vimento material, eu não creio que nós devamos
soas que, muitas vezes, tinham dúvidas existen- imitar uma sociedade como a norte-americana,
ciais e faziam cursos de Teologia, como os de Filo- preocupada em acumular riquezas. Para mim, a
sofia, em busca de uma resposta para o sentido da melhor definição de desenvolvimento é a de
vida, mas não porque estivessem se preparando Jacques Maritain46, o grande filósofo católico. Ele

52
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

dizia que era a promoção de todos os homens e a atração pelas artes. Mas tenho fé religiosa e desde
promoção de todo o homem. O que ele queria di- os tempos em que eu era estudante, aos 18, 19
zer com isso: a promoção de todos os homens e anos, na Faculdade de Direito, em São Paulo, eu
mulheres, sem discriminação de classe, raças ou fazia parte de uma Conferência Vicentina e sem-
de religião. E de todo o homem, que era a promo- pre me aproximei da militância pelo lado do tra-
ção de tudo aquilo que o homem tinha, as suas balho concreto. A Conferência de São Vicente de
necessidades materiais e também as suas necessi- Paulo lembra um pouco os movimentos que algu-
dades – eu não diria nem espiritual, porque isso já mas ONGs vêm repetindo, de procurar aliviar as
implica uma fé religiosa – falando numa lingua- misérias humanas, mesmo sabendo que aquilo
gem totalmente leiga, as suas necessidades simbó- não vai resolver o problema na raiz. Eu comecei
licas, de cultura. Esse tipo de coisa, se ficar faltan- por aí, trabalhei em favelas, em 1995, com um
do, acaba produzindo um homem incompleto, grupo de estudantes, fui visitar Dom Helder
aquilo que Marcuse chamava de um homem uni- Câmara, no Rio de Janeiro47, nós queríamos iniciar
dimensional. É o que nós vemos hoje em socieda- um trabalho nas favelas ... Essa preocupação com
des como a norte-americana, é o que abre cami- a pobreza, trabalhar diretamente com o povo po-
nho para os fundamentalismos, que torna mais fá- bre, foi uma coisa que me acompanhou toda a
cil, curiosamente, o domínio dos fanatismos reli- vida. Até hoje, eu trato das questões do desenvol-
giosos, quando eles aparecem. Justamente, um vimento por causa disso, eu me convenci, vendo,
ser humano despreparado, não desenvolvido em nas favelas, que só a caridade não resolve. A in-
todas as suas dimensões, ele cai mais facilmente fluência que eu tenho é do catolicismo francês do
nessa armadilha dos fundamentalistas, ele não pós-guerra, o de Jacques Maritain, por Alceu
tem um pensamento crítico. Amoroso Lima. Sou hoje presidente do Conse-
lho do Instituto Jacques Maritain, em São Paulo.
IHU On-Line – Nexos que o senhor estabe- Tive muita influência dos teólogos dominicanos,
lece entre o seu interesse pela teologia e a e a minha espiritualidade é, sobretudo, benediti-
sua vida, como foi o seu percurso como na. Eu sou muito ligado aos beneditinos. Na ver-
cristão... dade, creio que é na Ordem de São Bento que
Rubens Ricupero – Eu não sou uma pessoa mui- me sinto bem, mas tenho também uma ligação
to dotada para a especulação filosófica ou teológi- com os jesuítas por meio da vida intelectual. Visi-
ca, para o pensamento abstrato. Eu tenho uma tei inclusive a casa de Santo Inácio de Loyola na
abordagem em geral histórica e tenho uma grande Espanha.

47 D. Hélder Câmara, cearense, foi bispo auxiliar do Rio de Janeiro, fundador, em 1952, da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil – CNBB – e, em 1964, assumiu o cargo de arcebispo de Recife. Foi duramente perseguido pelo regime militar. Ele foi
amplamente citado na IHU On-Line, n.º 96, de 12 de abril de 2004 que debateu o golpe militar de 1964. Confira
especialmente a entrevista do historiador e padre José Oscar Beozzo. (Nota da IHU On-Line)

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Literatura como lugar da teologia

Entrevista com Geraldo Luiz De Mori, SJ

Geraldo Luiz De Mori, SJ é bacharel em Filo- longo da história. Para o doutorado, então, lendo
sofia e em Teologia pelas Faculdades de Filosofia Paul Ricoeur, descobri que poderia tentar pensar
e Teologia do Centro de Estudos Superiores da o tempo com base na nossa situação aqui do Bra-
Companhia de Jesus, em Belo Horizonte, Minas sil e na da literatura. Ricoeur afirma que o tempo
Gerais. É mestre e doutor em Teologia pela Facul- não é algo que pensamos, mas algo que conta-
dade de Teologia do Centre Sèvres, de Paris. mos. Contamos o tempo, quando contamos a his-
Atualmente, é professor de Teologia Dogmática tória. O homem é um ser temporal porque ele
na Faculdade de Teologia do Centro de Estudos conta a sua própria história, a sua própria vida, faz
Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Ho- narração. Baseado nisso tentei pensar que histó-
rizonte. IHU On-Line conversou com o Prof. Dr. rias sobre nós, brasileiros, foram narradas, que di-
Pe. Geraldo Luiz De Mori, SJ, durante o Simpósio zem algo sobre nós, mas que, ao mesmo tempo,
Internacional O Lugar da Teologia na Universida- falam sobre a nossa maneira de viver, ou de pen-
de do Século XXI, no qual o professor ministrou o sar, ou de ser no tempo. Eu já conhecia o romance
minicurso A pós-modernidade e a teoloiga: desa- de um escritor baiano, João Ubaldo Ribeiro, que
fios e tarefas. se chama Viva o Povo Brasileiro, e fiz uma leitura
dele, aplicando a ele uma categoria de Ricoeur
IHU On-Line – O senhor trabalhou a temáti- que ele chama de verdadeiras fábulas do tempo.
ca do tempo em teologia na sua tese de dou- Achei que esse romance poderia ser uma fábula
torado. Quais as principais reflexões tira- do tempo brasileiro, fiz a leitura do romance como
das dessa pesquisa? fala do tempo brasileiro. Depois li a bíblia como
Geraldo De Mori – Interessei-me por essa pro- uma “fábula” do tempo da revelação. E a minha
blemática a partir do meu mestrado. Na disserta- tese é um pouco isto: procurar ver como essa fá-
ção, trabalhei a teologia da cruz em Moltmann e bula do tempo brasileiro apresenta questões teo-
Sobrino, um da Alemanha e outro da América lógicas e como a fábula do tempo da revelação
Central. Quando eu estava estudando estes dois ajuda a pensar essa primeira.
teólogos, percebi que todo o pensamento deles,
na verdade, era determinado por uma problemá- IHU On-Line – Quais as principais conclu-
tica temporal, eles tinham uma interpretação esca- sões que tirou, confrontando ambas as
tológica do evento da cruz, que é coração na reve- “fábulas”?
lação cristã. Só que eles entendem diferentemente Geraldo De Mori – Na verdade, a tese de Ricoeur
a escatologia. Um é mais marcado pelo futuro, se desdobra em três subteses. As minhas conclu-
Moltmann; e Sobrino, mais pelo presente, muito sões vão nestas três direções. A primeira é que o
preocupado com o sofrimento no presente. A tempo só pode ser contado. Quando contamos o
questão do tempo é antiga, Santo Agostinho é um tempo, contamos com um começo, um meio e um
dos grandes teólogos do tempo. E depois muitos fim; uma história. Então procurei ver como nós
filósofos e teólogos se debruçaram sobre isso ao contamos a história no Brasil para nós mesmos,

54
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tendo por base esse romance. A conclusão a que brasileiro? O brasileiro é o povo que vive voltado
cheguei é que primeiro nós temos um problema para o futuro. No romance, porém, a temporalida-
muito grande com a nossa memória, o passado, de do brasileiro é outra. Descobri um personagem
que é o começo, porque no Brasil, normalmente, no romance que simboliza o Brasil, que se chama
temos muito problema com a memória, facilmen- Capiroba. Ele é antropófago, que podemos asso-
te esquecemos, não somos muito amigos de ficar ciar com todas as teorias do Oswald de Andrade,
pesquisando o passado. O romance, que aconte- do Manifesto de Antropofagia, da Semana de Arte
ce em trezentos anos de história do Brasil, tem Moderna, que caracteriza nossa cultura como an-
duas anamneses, duas, voltas, ou releituras ao tropófaga. Isso aparece no romance de maneira
passado histórico do Brasil todo. Uma feita pela curiosa, interessante e instigante. Será que a tem-
oralidade, digamos assim, por uma personagem, poralidade da antropofagia é futura? É presente?
que é uma mãe de santo e que conta, quando ela É passada? O que é? Seria uma temporalidade
faz cem anos, a história dela. A isso chamo de mestiça, antropofagia significa mestiçagem, a mor-
anamnese da oralidade. E a outra é uma persona- te daqueles que entram na relação para nascer
gem já do final do romance, que se tornou um ge- algo novo, então nesse sentido ela é futura, tem
neral do exército, e, no final da vida, narra todas muito a ver com o futuro, o brasileiro, digamos as-
as suas peripécias, começa a escrever as memórias. sim, a própria identidade dele, a identidade narra-
Assim, a primeira é uma memória oral e a segun- tiva dele, que depende do passado, mas ela é futu-
da, uma memória escrita, só que ele não consegue ra, ela está em construção. Na verdade, o antro-
ler, nós não conseguimos ler porque ela é rouba- pófago é o presente. Aí eu vou trabalhar com um
da, a memória é roubada. No livro, quando esse personagem brasileiro que é muito forte, que en-
personagem morre, no dia em que completa cem carna bem isso dentro do romance, o Leléu, que é
anos, quando vão enterrá-lo, aparecem ladrões a encarnação do jeitinho brasileiro, isto é, onde
na sua casa e levam uma espécie de canastra ele puder encontrar um nicho para driblar a pró-
onde estão essas memórias escritas. Então, nós só pria sorte, ele entra. Comecei a perceber que o
temos acesso ao nosso passado pela oralidade, “jeitinho” é o que podemos fazer agora para viver.
das histórias que escutamos. A história contada Fiquei muito instigado com essa figura.
por escrito, existe, mas não conta realmente. A
verdadeira história do povo brasileiro não são só IHU On-Line – Como a análise do tempo tor-
os heróis do romance, mas o “povão”. Um pouco na-se uma problemática teológica na sua
de toda essa problemática da história, que emerge análise?
muito forte no romance, que tem a ver com uma Geraldo De Mori – Normalmente, quando pen-
categoria que o autor chama identidade narrativa, samos essa problemática do tempo, pensamos
eu trabalho muito. Para entendermos nossa iden- não só no presente, no passado e no futuro, na
tidade, saber quem somos, temos que saber, que identidade, do contar, do narrar, mas há uma per-
histórias ouvimos, que histórias compõem a nosa gunta sobre o fundamento do tempo. Normal-
identidade. Para saber quem é o Brasil, devemos mente na história do pensamento filosófico e teo-
ouvir as histórias dos diferentes povos, culturas, lógico, o fundamento do tempo é a eternidade,
que se misturaram e que formaram essa cultura. que, no romance, aparece pelas reencarnações do
personagem Capiroba, a alma dele, que se chama
IHU On-Line – E quais as conclusões em re- no final do romance a alma brasileira, na verdade
lação a como o povo brasileiro trabalha o é um pouco a saga do povo brasileiro. Ela se reen-
presente e o futuro? carna de novo para poder aprender, porque ela
Geraldo De Mori – Muitas vezes, falamos que o não aprendeu o suficiente, para representar pro-
Brasil é o país do futuro, que nós somos o povo da gressivamente a alma brasileira, o romance termi-
esperança, então me perguntei qual era o tempo na assim. No Brasil, muitos acreditam na reencar-
do Brasil. É o futuro. Qual é a temporalidade do nação, mas não é tanto na perspectiva religiosa.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Eu quis pegar mais um pouco o que aqui na Amé- IHU On-Line – Que crítica faria à teologia,
rica Latina, a teoria literária chama de realismo ou melhor a que tipo de teologia faria uma
mágico. Isso funciona como um realismo mágico, crítica?
quer dizer, como o fundamento do tempo, não é Geraldo De Mori – À teologia que é feita só para
eternidade abstrata, mas é um pouco também o interior da Igreja, que está preocupada só com
dessa capacidade de encontrar sentido onde quer os problemas da Igreja, que quer ditar normas, re-
que possamos fazê-lo. Assim, eu vou pensar teolo- gras, ou que quer pensar normas, regras que já
gia de um diálogo com a literatura, com a antro- existem, ou que quer dar a elas uma espécie de
pologia, com a cultura, não simplesmente fazer embasamento, mas que não é voltada para a vida
uma teologia que vem do alto. das pessoas. Acho que uma teologia muito volta-
da para a Igreja somente, Igreja como Instituição
IHU On-Line – O senhor utilizou textos bí- ou mesmo Igreja como comunidade, ou para as
blicos específicos, aplicando a categoria de Comunidades Eclesiais de Base, por exemplo,
“fábula”? não responde a nosso tempo. A teologia precisa
Geraldo De Mori – Eu peguei uma perspectiva ter essa versatilidade para poder estar com ante-
que é privilegiada na exegese teológica hoje, que nas ligadas, preocupada com as diferentes proble-
não seleciona um texto ou uma parte da bíblia es- máticas. O câncer da teologia é quando ela se fe-
pecífica, mas faz uma leitura canônica da bíblia, cha. Ela é chamada sempre a estar aberta às reali-
ou uma leitura bíblica como livro, com um come- dades onde ela se insere, onde se insere a comuni-
ço, um meio e um fim. Ler a bíblia como se fosse dade cristã. A teologia deve sempre refletir a vida
um “romance” e tentar perceber qual seria o co- onde os cristãos estão inseridos. Agora falamos
meço do texto bíblico, o meio e o fim. Que catego- muito de pós-modernidade, que é uma espécie de
rias esse texto me oferece ou que temáticas ele elevação à enésima potência do indivíduo, um
trabalha. ego, não diria nem um egocentrismo, senão pode
parecer quase uma leitura analista, uma espécie
IHU On-Line – Por onde caminha a teologia de supervalorização do indivíduo e do eu e que
hoje? Que linhas teológicas surgem na con- pode repercutir na teologia, em ela preocupar-se
temporaneidade que são mais instigantes? somente em dar sentido para as questões levanta-
Geraldo De Mori – Eu acho que as temáticas das pelo indivíduo, no caso. A mesma crítica que
que foram abordadas aqui no Simpósio, mos- eu faria para uma teologia voltada só para a insti-
tram um pouco para onde vai a teologia. Uma tuição, eu diria o mesmo para uma teologia volta-
das temáticas fundamentais é o diálogo inter-reli- da só para os problemas do indivíduo. A teologia
gioso. Essa é uma das temáticas que precisa ser tem que ouvir essa rede na qual a pessoa está in-
aprofundada. Ela tem que encontrar espaço den- serida, que é o mundo, que são as outras pessoas,
tro da teologia. Uma outra, não tanto temática, é que é a sociedade, os diferentes lugares onde ela
a literatura, espaço que deveria ser mais explora- vive. Se ela se fechar sobre qualquer forma, criar
do pela teologia, é um lugar privilegiado para fa- muros para não ouvir, ou para não ver, aí eu acho
zer teologia. que ela começa a morrer.

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“As forças vivas da Igreja sentem necessidade
de um oxigênio participativo”

Entrevista com Clodovis Boff

Clodovis Boff é frade da ordem dos Servos de transformação, de libertação. É preciso sempre
de Maria e nasceu em Concórdia, Santa Catarina, voltar a essa fonte, uma refontização. E vamos ter
em 1944. Fez doutorado em Teologia na Universi- que lembrá-lo muitos anos ainda, 50 anos, o cen-
dade de Louvain, na Bélgica. É autor de vários li- tenário, bicentenário, porque vai levar tempo até
vros de reflexão social e espiritual sobre a realida- a Igreja assimilar toda a sua mensagem.
de, entre os quais citamos: Teologia e prática.
Teologia do político e suas mediações. Pe- IHU On-Line – Quais as visões de Igreja ex-
trópolis: Vozes, 1978 (tema de sua tese de douto- pressas nessa constituição?
rado) e Como trabalhar com os excluídos. Clodovis Boff – Nela, há a chamada revolução
São Paulo: Paulinas, 1998. É professor na PUC-Rio, eclesiológica. Primeiro, em vez de ser uma Igre-
no Instituto Franciscano de Petrópolis e no Maria- ja-instituição, sociedade, é a Igreja-mistério. Em
num, de Roma. Também é assessor do ISER. Atual- vez de ela nascer dos homens, nasce da Trindade,
mente, Frei Clodovis Boff mora em Curitiba.Lecio- do coração e do plano de Deus. É uma visão mais
na na PUC-PR, no curso de Teologia para Leigos e mística, mas espiritual. Esse é o primeiro capítulo
no Instituto Teológico Franciscano, do Rio de do Vaticano II. Segundo, no passado se entendia
Janeiro. muito como a Igreja do Papa, dos padres, dos bis-
pos, das freiras, a Igreja clerical. Agora não. Agora
IHU On-Line – Qual é o significado de cele- é a Igreja Povo de Deus, segundo capítulo. É o
brar 40 anos da Lumen Gentium? conjunto não dos ordenados, mas dos batizados.
Clodovis Boff – Um concílio tão importante O que nos faz Igreja é o batismo. Se alguém é bati-
como foi o Vaticano II leva tempo para ser assimi- zado, esse alguém é membro da Igreja. Esse é um
lado pela Igreja. Talvez a parte mais importante de capítulo fundamental. Terceiro, o ministério na
um concílio não é tanto o que se passa nos quatro Igreja, os encargos na Igreja, sobretudo o papel
anos em que ocorreu, mas a mensagem que ele dos pastores. Não é tanto a dominação, o poder,
transmite para ser acolhida, aprofundada, assimi- mas o ministério, o serviço ao povo de Deus. Há
lada e vivida pela própria Igreja. Grande parte do uma inversão. O padre não está no trono; ele está
que o Concílio Vaticano II falou ainda não foi assi- “ao pé do povo”, como Cristo lavando os pés do
milada pela Igreja, particularmente a questão de povo como um servo. Essa é toda a visão do ter-
visão de Igreja. Por exemplo, o povo católico con- ceiro capítulo. Também nele existe a visão do que
tinua ainda, infelizmente, com aquela visão hie- é a Igreja: comunidade, que se reúne em torno da
rarquicista, piramidal, clerical, de Igreja. Ainda palavra, celebra a eucaristia e se lança na missão.
não assimilou suficientemente uma visão de Igreja Essa é a Igreja particular, a diocese, a paróquia, a
“povo de Deus”, Igreja dos batizados, uma Igreja comunidade de base, o grupo de oração. Não tan-
toda ministerial, responsável, uma Igreja que te- to a Igreja, aquele conjunto imenso, que tem a ca-
nha uma missão no mundo de fermento, de luz, pital em Roma, o Papa na frente e os bispos como

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

espécie de vigários do Papa ou seus comissários. caráter orientalista manifestam. Às vezes, a Igreja
Não! Essa Igreja somos nós, que estamos reuni- também participante, comprometida precisa de
dos em torno da palavra. É uma visão muito mais espiritualidade, vibração, falta o luminoso, falta a
bíblica, mais fiel à grande tradição patrística da aura nela. Por isso, muita gente vai buscar outras
Igreja do que aquela visão antiga, muito empo- fontes para se alimentar espiritualmente. Esse é
brecida e decaída na compreensão e na vivência um dado fundamental. Precisamos de uma ecle-
dos cristãos. siologia mais mística. Aliás, o primeiro capítulo do
Vaticano II leva para o lado da mística, porque
IHU On-Line – Quais as visões de Igreja que mística e mistério são duas coisas que se prendem
estão em debate hoje? uma à outra. Precisa haver mais esforço coletivo
Clodovis Boff – As grandes questões eclesiológi- nessa direção.
cas hoje concernem, sobretudo em dois setores.
Primeiro, o setor interno que se refere à participa- IHU On-Line – A eclesiologia da Lumen
ção dentro da Igreja. Busca-se uma Igreja que seja Gentium precisa ser renovada?
mais participativa. Fala-se, às vezes, de uma de- Clodovis Boff – A eclesiologia da Lumen Gentium
mocracia eclesial. Quer-se envolver mais todos os tem alguns pontos que necessitam de aprofunda-
grupos de Igreja, leigos, comunidades, jovens, mento. No próprio capítulo III, a discussão entre a
mulheres, nas grandes decisões da Igreja. Isso já relação o papado e o episcopado mundial não foi
existe em parte nos conselhos e nas assembléias bem esclarecida. Teologicamente sim, ou seja,
pastorais. O povo realmente participa por inter- diz-se que o Papa junto com os bispos regem e
médio de seus representantes. Entretanto, às ve- servem à Igreja48. Na prática, porém, ainda é o
zes, há muitas decisões da Igreja das quais os lei- Papa praticamente que leva a Igreja, e os bispos
gos são excluídos. Por exemplo, na designação assessoram por meio dos sínodos episcopais, mas
dos bispos, dos párocos, nessas decisões que o têm pouca incidência, na realidade, nas grandes
Vaticano toma sem consulta da base, de modo decisões da Igreja. O Papa Paulo VI se deu conta
que muitos documentos caem “do céu para a ter- disso e pediu que houvesse aprofundamento. E o
ra”, sem uma prévia preparação da base. Não há Papa João Paulo II, na encíclica Ut Unum Sint, no
um diálogo, sobretudo, com aqueles setores mais número 95, fala que é preciso discutir novas for-
dinâmicos, por exemplo, a intelectualidade, os mas de exercício do papado, para que se abra
teólogos, os jovens, as mulheres... O segundo uma nova situação, mais ecumênica, em que os
dado é uma Igreja de compromisso social, empe- próprios irmãos não-católicos vejam a Igreja
nhada com os pobres, com a exclusão, para supe- como um espaço onde eles têm vez e voz, onde
rar essa dificuldade, com a globalização assimétri- possam dizer sua palavra, porque, do jeito que
ca, com a construção da paz, agora com essas está, a Igreja ainda está muito concentrada na sua
guerras, o terrorismo etc. É verdade que o Papa cúpula papal. Um outro dado sobre a vida religio-
dá um exemplo muito grande. A Igreja avançou sa que a Lumen Gentium aborda é a falta de inser-
muito, sobretudo na América Latina, desde Me- ção no meio dos pobres, compromisso com a
dellín para cá, mas ainda precisa avançar mais, marginalidade. Teve pouco disso. Um outro as-
como Igreja profética. E o último ponto funda- pecto: os leigos precisam ter mais protagonismo
mental é que queremos uma Igreja ungida, espiri- na Igreja. O Vaticano II abre um grande espaço,
tualizada, mística, contemplativa, adorante, onde falando do povo de Deus, do laicato. A essa altura
as pessoas possam fazer uma experiência de do campeonato, depois de toda essa experiência
Deus, do divino. Responder a essa fome e sede de de 40 anos, os leigos precisam ter mais espaço,
sagrado que a new age ou outros movimentos de mais presença, mais participação. Eles só palpi-

48 Sobre este ponto conferir Boaventura Kloppenburg, No Quarentenário da Lumen Gentium. Cadernos Teologia Pública,
n.º 4, 2004, especialmente p. 15-8. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

tam, mas têm pouca incidência nas decisões pro- vam dos concílios e votavam. Depois, concen-
fundas da Igreja, precisam ser mais ouvidos. O trou-se nos clérigos. Os leigos foram praticamente
Vaticano II disse que o Espírito Santo fala também excluídos. Os bispos, até por volta de 1200 na Ida-
pelo senso, pelo faro, pela intuição do povo de de Média, eram também indicados pela base, pe-
Deus, inclusive dos leigos. Não se leva, contudo, los leigos, junto com seus pastores, nunca separa-
muito a sério esse sentimento. É preciso avançar. dos. Hoje em dia, ninguém opina mais nada. O
núncio faz consultas, podendo até ouvir um leigo,
IHU On-Line – É possível a democracia na mas são casos isolados.
Igreja?
Clodovis Boff – Eu tenho trabalhado nesse IHU On-Line - A democracia de que a Igreja
tema, inclusive dando seminários. A palavra de- necessita teria características próprias?
mocracia, por causa de suas associações com a Clodovis Boff – É necessária uma democracia
sociedade civil, suscita certa resistência da parte eclesial, uma democracia evangélica, não uma có-
dos ouvidos eclesiásticos. Falemos, então, em par- pia das democracias civis. As forças vivas da Igreja
ticipação, que é a essência da democracia. Uma sentem necessidade de um oxigênio participativo.
Igreja participativa corresponde àquilo que, em Há muita gente que se sente um pouco sufocada
linguagem secular, deve-se chamar Igreja demo- por não ser ouvida. Existem muitos movimentos
crática. Há, porém, um termo teológico que recu- da Igreja que pedem diálogo. Nós não sentimos
pera esse conteúdo da democracia, que se chama muito porque, na América Latina, no Brasil, os lei-
sinodalidade, ou conciliaridade. Uma igreja sino- gos opinam, porque nossos pastores são abertos,
dal ou uma igreja conciliar é uma igreja de partici- são “democráticos”. Quando eu vou para a Itália,
pação também nas decisões. Ela participa nos tra- contudo, sinto que lá os padres, os clérigos man-
balhos, nos pareceres e consultas, mas a questão dam e muitos leigos se sentem bloqueados, não
está em participar nas decisões, por exemplo, têm aquela participação que eles gostariam. É as-
quando uma assembléia ou conselho pastoral sim em toda a Europa e nos Estados Unidos. O
toma decisões junto com seus pastores. Já há uma próximo Papa vai ter que colocar na agenda essa
prática nisso, que, canonicamente, do ponto de questão de um maior envolvimento nas bases, se-
vista legal, ainda não está consagrada. Assim sen- não se corre o risco de criar uma Igreja dual, que
do, um pároco, um bispo, um pastor, que não está ensina, com documentos, filosofias ótimas, e uma
muito de acordo com isso, pode frear, apoiado Igreja de base que deixa Roma falar sozinha, ou
pelo direito canônico. É preciso que essa prática não acolhe aqueles documentos, resiste a essas
seja canonizada, reconhecida em lei como prática doutrinas.
normal da Igreja, prática decisória. É isso que é
democracia. Elege-se o prefeito, o deputado e o IHU On-Line – O senhor vê a possibilidade
presidente, mas não se elege o pároco, o bispo, de a Igreja caminhar nesse sentido?
nem “se apita” para o Papa. Decide-se em plebis- Clodovis Boff – Claro! Não é uma questão de
cito sobre regime parlamentar ou presidencial, so- querer ou não querer. É uma questão de ver qual
bre monarquia ou república, como aconteceu no é a natureza, a essência da Igreja. A Igreja é comu-
Brasil, mas, na Igreja, ninguém é chamado a ple- nidade, de irmãos, de iguais, dos filhos de Deus,
biscito para decidir nada, se precisa de um concí- que são criaturas livres, ativas, participativas. Se
lio, por exemplo, ou não. Poderiam pensar em há desigualdade na Igreja, como há, é evidente,
mecanismos mais participativos, adequados à na- os padres, os bispos, os irmãos, é uma desigualda-
tureza sagrada da Igreja, que tem uma inspiração de puramente funcional, para servir a Igreja, não
bíblica. Até o primeiro milênio, a Igreja era muito para dominar. O Papa é nosso grande irmão, nos-
participativa. Os leigos participavam dos concíli- so servidor, em função sempre do primado da
os, mediante seus representantes, que eram no- misericórdia, do serviço, do amor, do sacrifício,
bres, príncipes e reis, mas eram leigos, participa- do martírio, até como o Papa muito bem disse na

59
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Ut Unum Sint, nessa encíclica ecumênica. É a es- IHU On-Line – O senhor gostaria de comen-
sência da Igreja, a essência “comunhonal”, frater- tar mais alguma questão sobre a Lumen
na, igualitária, espiritual da Igreja que exige essa Gentium que não foi perguntada?
participação. O grande eclesiólogo Yves Congar49 Clodovis Boff – Outra coisa que me parece im-
dizia que o direito canônico atual, por ser ainda portante é a estrutura carismática na Igreja. É um
muito autoritário na sua concepção de poder, é dado que talvez foi o menos assimilado. A Lu-
um elemento um pouco estranho à natureza da men Gentium n.º 12, e eu insisto muito nisso,
Igreja. Precisaria adequar o direito, toda essa par- fala que a Igreja tem uma estrutura ministerial,
te do poder, da participação, das leis de organiza- sacramental, essa é a parte institucional. Ao lado
ção da Igreja, à natureza da Igreja, que é igualitá- dela, porém, há uma estrutura chamada carismá-
ria por essência. A Igreja é comunhão com Deus, tica, que é mais livre e mais espontânea, a respei-
com a Trindade, com o Cristo, com a graça, com o to de todas essas iniciativas que vêm da base, das
Espírito Santo. Entretanto, na hora de tomar as mulheres, dos leigos, dos grupos de oração. Isso
decisões, quem resolve é o Papa, o bispo, o teólo- tudo é Igreja. Essa outra estrutura carismática se
go, a freira... Não está certo. Há uma contradição. inspira mais no Espírito Santo, enquanto a pri-
Podemos comungar Cristo, mas não podemos co- meira, mais institucional, ministerial, sacramen-
mungar das decisões? tal, se conforma mais com a dimensão cristológi-
ca, de Cristo, que mandou fazer isso. O Vaticano
IHU On-Line – Se o senhor tivesse que res- II abriu por aí, mas ainda não desenvolveu muito
ponder à pergunta do Concílio: “Igreja, o a Igreja do Espírito Santo. Ele mesmo nos diz que
que dizes de ti mesma?”, o que diria? o Pai nos traz para si, nos aconchega em seu co-
Clodovis Boff – Eu diria assim: eu, igreja, sou fi- ração com as duas mãos, do Filho e do Espírito
lha do Pai, querida, pensada desde todo o sem- Santo. Segura-se muito a mão do Filho: Jesus,
pre, antes da criação do mundo, antes do Big Jesus, Jesus, a Igreja de Jesus. Esquecemos do
Bang. Deus me quis como a filha que vai servir o Espírito Santo, que é mais livre, mais santifica-
mundo, que vai ser o facho, que vai transmitir a dor, mais criativo. Graças a Deus, agora, os pen-
mensagem do seu Filho ao mundo. Eu sou esposa tecostais católicos e os carismáticos trazem isso
desse verbo de Deus, esse Cristo. Eu sou aquela espontaneamente, livremente, na oração, na fala,
que, como Eva, nasceu do lado de Adão, eu nasci nos dons. Entretanto, é preciso que seja muito
do lado de Cristo, morto na cruz, e me alimento mais amplo esse fermento do Espírito Santo, pre-
do batismo e da ceia, batismo pelo qual eu cresço cisa crescer mais. É assim que podemos recupe-
com novos filhos. Eu sou a oficina, o templo, o ni- rar todas as deficiências que a Igreja de hoje sen-
nho do Espírito Santo, em que ele derrama seus te, que é a participação, o envolvimento na socie-
dons, em que ele inspira, santifica, e a partir dali dade e a espiritualidade. Precisa-se de uma Igreja
derrama também, irradia sobre todo mundo, essa mais carismática.
graça santificadora para a sociedade e para as ou-
tras religiões. Eu sou uma Igreja que nasceu da IHU On-Line – Além dessa questão da Igreja
Trindade, sou o sonho do Pai, sou o projeto do Fi- carismática, quais seriam os outros pontos
lho e sou o ninho do Espírito Santo. Essa é a defi- da Lumen Gentium que foram menos assi-
nição espiritual que eu daria para a Igreja. milados ao longo desses 40 anos?

49 Yves Marie-Joseph Congar (1904-1995), teólogo francês, conhecido por sua participação no Concílio Vaticano II. Foi elevado
a cardeal pelo Papa João Paulo II, em 1994, um ano antes da sua morte em 22 de junho de 1995, em Paris. Congar escreveu
muito sobre o ecumenismo. Dedicamos a editoria Memória da 102ª edição do IHU On-Line, de 24 de maio de 2004, à
comemoração do centenário de nascimento de Congar. (Nota da IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Clodovis Boff – Por exemplo, o capítulo 5 da pessoa quer espiritualidade um pouco como fuga,
Lumen Gentium, que fala da vocação universal à para poder ter uma massagem espiritual, uma
santidade, é o capítulo menos lido, e muitos nem consolação, porque a vida é muito dura, muito
sabem que ele existe, quando é um capítulo im- desencantada, ela quer ter uma espécie de reen-
portante. A santidade é democratizada. Não são cantamento de suas relações e sua existência.
só padres e freiras que podem ser chamados a ser Fundamentalmente, quer “amorizar” a vida. E
santos. Pode ser uma pessoa de amor, de compai- “amorizar” é se abrir ao Espírito que é amor, e,
xão, realizada humanamente, a ponto de se divi- portanto, vai ser santo, porque a caridade é o nú-
nizar na comunhão com Deus. É algo ainda bas- cleo da santidade. É preciso que haja um reencan-
tante da elite, enquanto é um tópico fundamental. tamento na espiritualidade, mas consistente e
O Vaticano II observou que todos são chamados à não-ilusório, ou de fuga, ou superficial, ou pura-
santidade, inclusive a dona-de-casa, o jovem, o mente emocional. A emoção é necessária como
trabalhador da rua, das fábricas, o funcionário pú- porta de entrada, como isca, como a entrada que
blico, o operador da bolsa, todos, porque a santi- abre o apetite antes do prato principal, da comida
dade está na caridade, no amor. Esse ainda é um sólida, a bíblia, a palavra, a ética do compromisso,
discurso muito gaguejante, infantil dentro da Igre- da justiça, da solidariedade, da compaixão. Esse é
ja. Esse discurso está ligado à espiritualidade. A um ponto que precisa ser mais trabalhado.

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A Igreja vestida somente de Evangelho e sandálias

Entrevista com Jose Ignácio González Faus, SJ

O teólogo jesuíta espanhol Jose Ignácio Gon- munhão à imagem da Trindade e que, portanto,
zález Faus afirma que o ideário de Igreja traçado não pode reduzir-se à mera “submissão” (como
pela Lumen Gentium50 ainda continua inédito. fazem hoje os setores mais conservadores). Aí ex-
“Cada dia rezo pela conversão da instituição ecle- pressa a Lumen Gentium que a Igreja seja para o
sial e peço três coisas: que a Igreja seja verdadeira- mundo sinal de salvação (“sacramento”). E isso se
mente Igreja dos pobres, a profunda reforma de reflete na recuperação da categoria de povo de
papado e da hierarquia e a união dos cristãos”, Deus para definir a Igreja, e na troca de ordem en-
disse o teólogo. González Faus é professor na Fa- tre os capítulos 2 e 3 da Lumen Gentium: de
culdade de Teologia de Barcelona, desde 1968. modo que o povo é tratado antes da hierarquia, e
Conhecedor da América Latina, defende a aspira- o “mistério da Igreja” (cap. 1º) é o mistério do
ção popular à liberdade e à justiça. Ele é autor de povo de Deus (a comunhão, portanto). A Lumen
inúmeros livros teológicos entre os quais destaca- Gentium, contudo, não é toda a eclesiologia do
mos La humanidad nueva. Ensayo de cristo- Vaticano II, como logo direi. E seu outro limite é
a justaposição de duas linguagens, feita para ob-
logía. Madrid: EAPSA, 1984. Entre suas obras pu-
ter uma quase totalidade de votos. É um procedi-
blicadas em português, cabe mencionar Nenhum
mento correto e evangélico, ao qual nunca recor-
Bispo Imposto: S. Celestino, Papa. São Pau-
re a facção conservadora da Igreja, mas logo con-
lo: Paulus, 1996 e Vigários de Cristo: os Po-
seguiria trabalhando na integração dessas duas
bres na Teologia e Espiritualidade Cristã. linguagens.
São Paulo: Paulus, 1996. A entrevista foi conce-
dida, por e-mail, em espanhol, e traduzida pela IHU On-Line – Qual foi a tensão eclesiológi-
IHU On-Line. ca mais importante do Concílio? Que impli-
cações têm os conceitos de “povo de Deus”
IHU On-Line – Qual é a principal contribui- e de “corpo místico de Cristo” e até que
ção da Constituição Lumen Gentium para a ponto a primeira imagem realmente saiu
Igreja e que limites se percebem 40 anos “vencedora” na Lumen Gentium e na ecle-
depois nessa eclesiologia? siologia contemporânea?
González Faus – Sua principal contribuição é a González Faus – Houve muitas tensões concre-
passagem de uma eclesiologia de “sociedade per- tas, e eu não saberia escolher a principal: eu as en-
feita” a uma eclesiologia de comunhão Uma co- globaria todas nesta outra tensão do século I: se a

50 Os 40 anos da Lumen Gentium foram lembrados pelo IHU com a realização do evento IHU Idéias de 25 de novembro de
2004, que contou com a explanação dos bispos eméritos Dom Frei Boaventura Kloppenburg, OFM, e Dom Frei Aloísio
Lorscheider, OFM, que falaram sobre o tema Por onde anda a eclesiologia, hoje? Limites e possibilidades depois de 40 anos da
Lumen Gentium. O debate inspirou a matéria de capa do IHU On-Line número 124, de 22 de novembro de 2004. O texto
apresentado por Dom Boaventura na palestra de novembro deu origem ao Caderno Teologia Pública número 4. (Nota da
IHU On-Line)

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Igreja haveria de ser a igreja de Paulo, ou a de São González Faus – Eu creio que este sonho segue
Tiago e daqueles “fariseus fanáticos” de Jerusa- inédito. João Paulo II, por vir de um país comunis-
lém, dos quais fala o livro dos Atos. A categoria ta e totalitário, só pode conceber a Igreja como
povo de Deus cobra todo o seu valor não a contra- “em guerra” contra o ateísmo e necessitada do au-
pondo, senão integrando-a com a de corpo de toritarismo dos tempos de guerra, mas, ainda mais
Cristo: o verdadeiro corpo de Cristo é o povo. Se do que ele, a cúria romana resistiu sempre a esse
não se realiza esta integração, então o “corpo de sonho.
Cristo” se converte numa nebulosa sem contor-
nos, que serve apenas para reforçar o estamento IHU On-Line – A Lumen Gentium serve ain-
clerical, mas não para visibilizar e seguir o Ressus- da de inspiração ou, 40 anos depois, deve
citado. Na Igreja primitiva, ela era o corpo real de ser pensada outra eclesiologia?
Cristo; e a expressão “corpo místico” (misterioso) González Faus – A Lumen Gentium só falou da
se aplicava à eucaristia. Foi uma pena que se te- Igreja para dentro. Deve ser completada com no-
nham mudado as linguagens, e o qualificativo de vos sinais dos tempos. Por exemplo, o tema im-
corpo místico tenha passado à Igreja, pois, com portantíssimo da mulher na Igreja não está na Lu-
isso, se perde o caráter real e visível do corpo que men Gentium. Entretanto, sobretudo, deve com-
é dado pela realidade do povo. E esse corpo “mis- pletar-se com o que antes insinuei e que é a ecle-
terioso” e venerável fica reduzido ao estamento siologia da Gaudium et Spes, a qual fala da Igreja
eclesiástico. para fora (as duas partes em que Paulo VI queria
dividir o Concílio). Por desgraça, desta outra
IHU On-Line – É possível a democracia na Constituição atendeu-se principalmente aos te-
Igreja? Há sinais disso? Quais são as ten- mas concretos da sociedade (guerra, economia,
dências mais inovadoras da eclesiologia direitos humanos, ciências, família...), mas não à
atual? eclesiologia com que se querem abordar esses te-
González Faus – A Igreja não é, em sua essên- mas e que seria a tradução para fora da comu-
cia, uma democracia; mas ainda menos, muito nhão da Lumen Gentium. Permitam-me uns pou-
menos, pode ser uma monarquia absoluta. Não é cos exemplos. Uma Igreja comunhão ama deve-
uma democracia, porque toda ela (começando ras o mundo e, por isso, suas alegrias, suas espe-
pelos papas e bispos) está sob a palavra de Deus. ranças e suas dores, sobretudo dos mais pobres,
Entretanto, se a Igreja é uma comunhão, está obri- são alegrias e angústias dela (Lumen Gentium
gada a dotar-se de procedimentos democráticos 1,1; quantos representantes da instituição eclesial
em seu funcionamento, pois estes são os mais há- poderiam dizer isso com verdade de sua gestão?).
beis para traduzir a koinonia (comunhão). Com Uma Igreja que ama o mundo compreende que a
respeito às tendências mais inovadoras, eu, sem fé não pode ser desligada das tarefas temporais,
dúvida, ficaria com a eclesiologia de Yves Congar, compreende que ela não tem a solução de todos
excelente pessoa, de quem João Paulo II disse que os problemas, embora disponha de um Espírito
havia sido um autêntico presente de Deus à sua que ajudará a abordá-los corretamente (nº 43).
Igreja (presente que esta desprezou olimpicamen- Reconhece, ademais, que recebeu muito da evo-
te). A Congar seria preciso acrescentar algumas lução histórica do gênero humano e que tem mui-
investigações da exegese posterior ao concílio so- to que aprender de quem nele trabalha “de toda
bre a Igreja que Jesus queria ou que deixaram os cl