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Poesia eidentidade em Minas Gerais: a construcaéo da meméria ‘Melania Silva de Aguiar* Resumo, 'Na obra de muitos poetas candnicos da historia litera de Minas Gerais, como Cliu- dio Manuel da Costa e Carlos Drummond de Andrade, a meméria est intimamente ligada as origens do Estado e a tentativa de construir uma identidade individual ou coletiva, sempre em processo, em permanente abertura, preservadas,entretanto, nessa construgio, as marcas da tradicao. Este trabalho pretende mostrar em poemas ou em fragmentos de poemas esse movimento de volta ao passado e, simultaneamente, a contribuieao daqueles poetas i consttuisao de uma identidade coletiva em continua e ccomplexa formagio. Palavras-chave: Poesia; Identidade; Tradisao; Minas Gerais. AAs coisas tangiveis tornam-se insensiveis & palma da mao, ‘Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarao. (°Meméria", Carlos Drummond de Andrade) Falar de identidade nos dias atuais é aventurar-se em terreno escorrega- dio, eivado de rachaduras inesperadas ou, em termos mais objetivos, de sen- tidos complexos e deslizantes. sso ocorre em grande parte porque os estudos contemporaneos sobrea identidade nao esto circunscritos a campos especificos do conhecimento nema determinadas posigdes tedricas advindas da tradigao. Assim, a questio Professora de Literatura Brasileira no Programa de Pés-graduagao em Letras da PUC Minas, Cadernos de Histria, Belo Horizonte, x9, n.11, p99, Ie sem, 2007 99 da identidade, e com ela a da subjetividade, tem-se colocado hoje de forma expressiva tanto nos campos da economia ¢ da politica, quanto nos da filoso- fia, da psicandlise, das artes, das ciéncias em geral, dando lugar a utilizagao simultanea dos mais diversos conceitos ¢ referenciais tebricos. De modo ge- ral, esses estudos deixam-se orientar por dois tipos de paradigma: 1) paradigmas da modernidade, da tradigao racionalista de raiz hegelia- 1a, visto 0 sujeito como pluralidade, ¢ a identidade como “forma de totalizagao ou completude do heterogeneo”; 2) paradigmas da pés-modernidade, ou da “crise da modernidade”, em que 0 sujeito ¢ visto em sua complexidade, encerrando as noses de “instabilidade, descontinuidade, abertura”, em contraposigao a tradi- ao moderna. Para o senso comum, os fatores considerados como suportes ou “Ancoras” da identidade sao: territ6rio (entendido como o espaco, geogratico ou polit co, da origem); a lingua (mais propriamente a lingua materna);a comunidade (familia, raga, profissao, geragao etc.) € 0s costumes (modos de vida, crengas, habitos herdados da tradicao). As literaturas de diferentes épocas e origens tes- temunham a importancia desses fatores de “ancoragem”, acusando, da parte do escritor, uma busca ou definigao, ainda que provis6ria, ou ilusoria, da identi- dade, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista coletivo. No caso da literatura produzida em Minas Gerais, desde seu surgimento no século XVIII, isso nao poderia ser diferente, e 0 exame da produgao pos cade dois pilares da poesia mineira, Cliudio Manuel da Costa, arcade, sete- centista, e Carlos Drummond de Andrade, novecentista e modernista (vamos restringir nosso campo de andlise poesia e, sobretudo, a desses dois grandes poetas) revela dois procedimentos, relativosa meméria individual ea mem6- ria coletiva, atuantese complementares na construgio de uma “possivel” iden- tidade mineira, ou da “mineiridade”, isto é: de um lado, a recorréncia aos elementos da meméria ou da tradicdo na reconstituigao de uma pretensa iden- tidade individual e/ou coletiva, perdida ou ameagada; de outro, a contribui- «0, voluntaria ou nao, para a construgao ou o reforco de uma identidade coletiva, que na verdade nao se completa nunca, pois est em permanente processo de formagdo, A poesia, como as outras artes, filha e guardia da " Sobre o tema ver, de Inés Signorin,o extenso capitulo “Lingua Hinguagem e idemtdade em questio” (1998, p, 335-336) 107 ‘Caderas de Hiri, Belo Horizonte, v9, & Vi, pATT, Te sn. 2007 meméria (ou Mnemosine, como queria a mitologia grega) apresenta-se, as- sim, tanto como 0 espago da lembranga, vista como possibilidade de resgate da identidade, quanto da construgao de um legado, transferido as geracoes que chegam e gradualmente somado a esse edificio identitario, em formagao permanente. No poema “Legado”, de Carlos Drummong de Andrade (Claro enigma, 1951), pode-se perceber com evidéncia o que se quer dizer com “contribui- «20 paraa construgao ou o reforgo de uma identidade coletiva”, ou a presenga de um elemento novo acrescentado ao edificio da chamada “mineiridade”. Nesse poema, o poeta faz alusdo a outro, o famoso “No meio do cami- nho” (Alguma poesia, 1930), escandalo da época ¢ que, segundo Drummond, dividiu as pessoas em duas categorias mentais, ficando, nas palavras do poeta, como um legado seu. Na verdade esse poema, dos mais conhecidos de Drum- mond, jé constitui—dizemos nés—um elemento novo incorporado a tradicao, algo que identifica de alguma forma toda uma comunidade, sendo jé do domi- nio popular e nao s6 da tribo dos letrados. No fecho de “Legado”, 0 poeta, aludindo no tiltimo verso ao polémico poema publicado 21 anos antes, respon- de as perguntas iniciais sobre o que restaria de seu para a posteridade: Que lembranga dareiao pais que me dew tudo o que lembro sei, tudo quanto sent? Nanoite do sem fim, breveo tempo esquece ‘minha incerta medalha, ea meu nome seri E mereco esperar mais do que os outros, eu? Tu nao me enganas, mundo, e ndo te engano eu. t. ses monstras atuais, no os cativa Orfeu, a vagar, taciturno, entre o talvere0 se. "Nao deixarei de mim nenhuum canto radios, ‘uma vox matinal palpitando na bruma ‘eque arranque de alguém seu mais secreto espinho. Dertudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restar, pois o resto se esfuma, ‘Uma pedra que havia em meio do caminho? ‘Alem desse poema, “No meio do caminho” (1973, p.236), que remete a Dante eo verso incial da Divina ‘vméda, 0 poeta produziuinimeros outros que, por sua popularidade,consttuem outros tanto egados. De alguma forma eles “desenham” a dentidade da origem ‘Cadernos de Historia, Belo Horizonte, v. 9, a. 13, p98-121, 1 sem. 2007 101

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