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Direito das Obrigações I

Definição de obrigação

O Código Civil define obrigação como “o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica
adstrita para com outra à realização de uma prestação” (art.º 397.º, CC), tendo esta definição
raízes romanas e significando que as obrigações são situações jurídicas que têm como
conteúdo a vinculação de uma pessoa em relação à outra à adopção de uma determinada
conduta em benefício desta.
Em sentido amplo, uma obrigação pode abranger todo e qualquer vínculo jurídico entre duas
pessoas, v.g. deveres jurídicos genéricos, ónus ou sujeições.
A obrigação stricto sensu não se confunde com a sujeição pois esta última é a situação
jurídica passiva correspondente ao direito potestativo, consistindo na necessidade de
suportar as consequências correspondentes ao exercício de um direito potestativo.
Enquanto que uma obrigação é violável, é impossível violar-se uma sujeição devido à
inelutabilidade do surgimento dos efeitos jurídicos correspondentes ao exercício de um
direito potestativo.
O ónus não se confunde com a obrigação stricto sensu pois este primeiro consiste na
necessidade de adoptar uma conduta em proveito próprio, enquanto que a obrigação
consiste num dever jurídico, imposto em benefício do credor.
A obrigação stricto sensu não se confunde com o dever jurídico genérico pois estes últimos,
enquanto situação jurídica passiva correspondente aos direitos absolutos, são uma
expressão do princípio do neminem laedere, não consubstanciando qualquer vínculo
específico que habilite uma pessoa a exigir de outrem uma prestação.

A obrigação caracteriza-se por uma determinada pessoa se encontrar adstrita a realizar uma
específica conduta, positiva ou negativa, no interesse de outra, determinada ou
determinável. Esta conduta é designada por prestação.

Objecto e características do Direito das Obrigações


O Direito das Obrigações, enquanto ramo do Direito Civil, tem como características a
liberdade e a igualdade, sendo a unidade este assegurada pela semelhança de consequências
jurídicas geradas a partir de uma relação obrigacional, unificando-se as matérias em torno
do conceito de obrigação.
Para MENEZES LEITÃO, são abrangidos pelo Direito das Obrigações a circulação de bens, a
prestação de serviços, a instituição de organizações, as sanções civis para comportamentos
ilícitos e culposos e a compensação por danos, despesas ou pela obtenção de um
enriquecimento.

Princípios gerais do Direito das Obrigações – autonomia privada

A autonomia privada é definida por Menezes Cordeiro como uma “permissão genérica de
actuação jurígena”, consistindo assim num espaço de liberdade pois que, dentro de certos
limites, as partes podem provocar os efeitos jurídicos desejados. Esta é, assim, a liberdade
de produção reflexiva de efeitos jurídicos, com a repercussão destes últimos nas esferas de
quem os produziu, postulando, para o efeito, negócios jurídicos.
Dentro dos negócios jurídicos, os contratos possuem o primado na constituição de
obrigações, pois os negócios jurídicos unilaterais apenas em casos previstos na lei poderão
dar origem a obrigações (art.º 457.º, CC).

Liberdade contratual

A liberdade contratual é a possibilidade conferida pela ordem jurídica a cada uma das partes
de auto-regular, através de um acordo mútuo, as suas relações para com a outra, por ela
livremente escolhida, em termos vinculativos para ambas, sendo esta a parte mais
importante da autonomia privada, enquanto princípio de Direito das Obrigações.
A liberdade contratual comporta tradicionalmente a liberdade de celebração, a liberdade de
selecção do tipo negocial e a liberdade de estipulação.
A liberdade de celebração consiste na faculdade que é atribuída às partes de celebrar ou não
o contrato (art.º 405.º, CC), de escolher com quem contratar e, subsequentemente, a
possibilidade de livremente propor ou não a celebração do contrato e de aceitar ou rejeitar,
sem constrangimentos de qualquer ordem, uma proposta de contrato que lhe seja dirigida.
A liberdade de selecção do tipo negocial consiste na não-limitação das partes aos tipos
negociais reconhecidos pelo legislador, enquanto que liberdade de estipulação consiste na
faculdade de estabelecer os efeitos jurídicos do contrato.
MENEZES LEITÃO inclui também no âmbito da liberdade contratual a liberdade de
extinguir, por mútuo acordo, o contrato, através do respectivo distrate ou revogação.
É consequência do princípio da autonomia privada no Direito das Obrigações a supletividade
tendencial das suas regras, sendo as regras imperativas excepção.

Restrições à liberdade contratual

A autonomia privada postula uma igualdade absoluta entre as partes, tendo


consequentemente idêntico poder negocial. No entanto, esta igualdade jurídica não
corresponde frequentemente a uma igualdade económica, pelo que se pode ter de um lado
uma parte com maior força económica e maior domínio da informação, podendo ocorrer que
a parte mais fraca se veja constrangida a aceitar a celebração de negócios em condições que
normalmente não aceitaria. Portanto, a ordem jurídica tem de, por vezes, abandonar a tutela
absoluta da autonomia privada a fim de dispensar uma tutela da parte mais fraca, implicando
restrições pontuais à liberdade contratual.

As restrições a liberdade contratual podem passar por restrições à liberdade de celebração


e/ou de estipulação.
A lei, por vezes, restringe a liberdade de celebração impondo obrigações de celebração de
contratos, ocorrendo tal em casos como a prestação de serviços essenciais, entre outros.
A liberdade de estipulação postula a liberdade de celebração, pelo que as limitações à
liberdade de celebração implicam limitações à liberdade de estipulação. No entanto, é
também possível que se limite a liberdade de estipulação sem que a liberdade de celebração
seja afectada, ocorrendo tal principalmente nos casos de contratos sujeitos a um regime
imperativo ou nas cláusulas contratuais gerais.
Os contratos sujeitos a um regime imperativo consistem numa disciplina contratual rígida a
fim de se proibir estipulações iníquas a fim de se tutelar a parte mais fraca, estando subtraída
tal matéria da disponibilidade das partes, salvo nos casos em que é possível afastar a
disciplina injuntiva em prejuízo da parte mais forte.

As cláusulas contratuais gerais consistem em situações típicas do tráfego negocial de


massas em que as declarações negociais de uma das partes se caracterizam pela pré-
elaboração, generalidade e rigidez, tendo essa parte uma posição social ou económica mais
relevante. Estas são completas e exaustivas na generalidade dos casos, constando
normalmente de formulários.
Nas cláusulas contratuais gerais verifica-se a impossibilidade fáctica de uma das partes
exercer a sua liberdade de estipulação, pelo que o legislador restringiu a liberdade de
estipulação, procurando evitar a introdução no contrato de cláusulas das quais o outro
contraente não se apercebeu e visando impedir o surgimento de cláusulas iníquas ou
abusivas.
Evita-se a introdução no contrato de cláusulas das quais o outro contraente não se
apercebeu exigindo a aceitação para que as cláusulas contratuais gerais se incluam nos
contratos individuais (art.º 4.º, LCCG), sendo ainda necessário que estas sejam comunicadas
à contraparte (art.º 5.º, LCCG), que seja prestada informação sobre os aspectos obscuros
nelas compreendidos (art.º 6.º, LCCG) e que inexistam estipulações específicas de conteúdo
distinto (art.º 7.º, LCCG).
Impede-se a introdução de cláusulas iníquas ou abusivas proibindo certas cláusulas que
apresentem essas características, podendo estas sendo proibidas, em qualquer caso,
cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé (art.º 15.º, LCCG). Nas relações entre
empresários ou profissionais liberais ou entre uns e outros e nas relações com os
consumidores finais, existem restrições específicas, as quais se desdobram em proibições
absolutas ou relativas, sendo que nestas últimas é possível a sua inclusão nos contratos
singulares se tal for conforme ao quadro contratual padronizado.

Princípio do ressarcimento dos danos

O princípio do ressarcimento dos danos é um princípio fundamental do Direito das


Obrigações, significando que sempre que exista uma razão de justiça, da qual resulte que o
dano deva ser suportado por outrem, que não o lesado, deve ser aquele e não este a suportar
o dano. A transferência do dano do lesado para outrem é operada através da constituição de
uma obrigação de indemnização, devendo-se através desta proceder à reconstituição da
situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento lesivo (art.º 562.º, CC).
Existem três títulos de imputação de danos, sendo estes a imputação por culpa, a imputação
pelo risco e a imputação pelo sacrifício.
Na imputação por culpa a responsabilidade baseia-se numa conduta ilícita e censurável do
agente, justificando que seja ele a suportar em lugar do lesado os prejuízos resultantes da
sua conduta. Neste caso, a responsabilidade civil, para além de uma função reparatória,
desempenha uma função sancionatória, representando uma sanção ao agente pela violação
culposa de uma norma de conduta.
A imputação pelo risco baseia-se numa concepção de justiça distributiva, segundo as
doutrinas do risco-proveito, risco profissional ou de actividade e risco de autoridade.
Segundo a doutrina do risco-proveito, aquele que tira proveito de uma situação deve
também suportar os prejuízos dela eventualmente resultantes (ubi commoda ibi incommoda).
Segundo a doutrina do risco profissional, aquele que exerce uma actividade ou profissão que
seja eventualmente fonte de riscos deve suportar os prejuízos que dela resultem para
terceiros, enquanto que para a doutrina do risco de autoridade sempre que alguém tenha
poderes de autoridade ou direcção relativamente a condutas alheias deve suportar também
os prejuízos que dela resultem.
A imputação pelo sacrifício corresponde à situação em que a lei permite, em homenagem a
um valor superior, que seja sacrificado um bem ou direito pertencente a outrem, atribuindo,
porém, uma indemnização ao lesado como compensação desse sacrifício, sendo esta
imputação de danos fundada numa ideia de justiça comutativa.

Princípio da restituição do enriquecimento injustificado

O princípio da restituição do enriquecimento injustificado encontra-se consagrado no n.º 1


do art.º 473.º do Código Civil, significando que, genericamente, sempre que alguém obtenha
um enriquecimento à custa de outrem sem causa justificativa tem que restituir aquilo com
que injustamente se locupletou. Este princípio, para além na norma-princípio, tem diversas
concretizações específicas.
MENEZES LEITÃO entende que a multiplicidade de disposições que se podem reclamar do
princípio da restituição do enriquecimento justificado leva a que possa ocorrer um certo
casuísmo na sua aplicação, devendo a concretização da formulação genérica deste princípio
ser realizada pela Doutrina e pela Jurisprudência.

Princípio da boa-fé

A boa-fé pode ser tida no seu sentido subjectivo ou objectivo. A boa-fé em sentido
subjectivo consiste na ignorância de estar a lesar direitos alheios.
A boa-fé em sentido objectivo consiste numa regra de conduta, sendo este o sentido mais
relevante no contexto do Direito das Obrigações, encontrando-se este princípio
essencialmente plasmado nos institutos da responsabilidade pré-contratual (art.º 227.º, n.º
1, CC), na integração dos negócios (art.º 239.º, CC), no abuso do direito (art.º 334.º, CC), na
resolução ou modificação dos contratos por alteração das circunstâncias (art.º 437.º, n.º 1,
CC) e na complexidade das obrigações (art.º 762.º, n.º 2, CC). Estes institutos são, segundo
Menezes Cordeiro, concretizações dos deveres de actuar segundo a boa-fé, constituindo
deveres acessórios de protecção, informação e lealdade.
A concretização da boa-fé através dos institutos acima referidos postula vectores precisos
na ponderação do julgador, propondo Menezes Cordeiro a tutela da confiança e a primazia
da materialidade subjacente.
Para que a confiança seja juridicamente tutelada pelo princípio da boa-fé, exige-se no
quadro de um sistema móvel um conjunto de pressupostos, sendo estes a existência de uma
situação de confiança, traduzida numa boa-fé subjectiva, uma justificação para essa
confiança, consistente no facto de a confiança ser fundada em elementos razoáveis, um
investimento de confiança, consistente no facto da destruição da situação de confiança gerar
prejuízos graves para o confiante, em virtude de ele ter desenvolvido actividades jurídicas
em virtude dessa situação, e a imputação da situação de confiança criada a outrem, levando
a que este possa ser considerado responsável pela situação.
A primazia da materialidade subjacente consiste na avaliação das condutas não apenas pela
sua conformidade com comandos jurídicos, mas também de acordo com as suas
consequências materiais, tendo como vectores a conformidade material das condutas, a
idoneidade valorativa e o equilíbrio no exercício das posições.
Princípio da responsabilidade patrimonial

O princípio da responsabilidade patrimonial consiste na possibilidade de o credor, em caso


de não cumprimento, executar o património do devedor para obter a satisfação dos seus
créditos.
Menezes Cordeiro aponta para três postulados principais no regime da responsabilidade
patrimonial no Direito português, sendo estes a sujeição à execução de todos os bens do
devedor, apenas os bens do devedor, estando os credores em pé de igualdade.
O primeiro postulado principal é, então, o de que estão sujeitos a execução todos os bens do
devedor (art.º 601.º, CC), existindo, no entanto, duas excepções, as quais são os bens do
devedor insusceptíveis de penhora e a situação da separação de patrimónios.
O segundo postulado principal é o de que só os bens do devedor podem ser objecto de
execução pelos credores (art.º 817.º, CC), podendo, no entanto, serem executados bens de
terceiros quando sejam estes a responder pela dívida, ocorrendo tal quando tenha sido
constituída uma garantia pessoal ou patrimonial, ou quando haja ocorrido uma impugnação
pauliana da transmissão dos bens do devedor para terceiro.
O terceiro postulado principal é o de que todos os credores estão em pé de igualdade, pelo
que inexiste uma hierarquização dos direitos de crédito pela ordem da sua constituição,
tendo os credores mais antigos como os mais recentes a mesma possibilidade de executar o
património do devedor. No entanto, se o património do devedor for insuficiente para pagar
a todos, este deverá ser rateado para que todos se paguem proporcionalmente (art.º 604.º,
n.º 1, CC).
Portanto, o credor comum não tem, em princípio, qualquer garantia segura de que o seu
crédito possa ser satisfeito através da execução do património do devedor, existindo um
duplo risco de que, na fase da execução, os bens penhoráveis do devedor não sejam
suficientes para satisfação do crédito pelo facto de ser possível ao devedor, por acção ou
omissão, fazer diminuir o seu património e à eventualidade de outros credores se
anteciparem àquele credor no exercício do poder de execução e penhorarem primeiramente
os bens.
Este duplo risco é mitigado, na vertente da possibilidade de diminuição do património do
devedor, pela concessão aos credores da possibilidade de reagir contra acções ou omissões
do devedor de onde possa resultar a diminuição do seu património, tratando-se estes dos
meios de conservação da garantia geral das obrigações.
Na vertente do risco de outros credores se anteciparem na execução do património do
devedor, este pode ser prevenido atribuindo-se ao credor que pretenda evitar esse risco
outras garantias para além do poder de execução do património do devedor, sendo estas as
garantias especiais das obrigações, podendo ser pessoais, se consistirem na hipótese de
fazer responder outra pessoa também pela dívida, ou reais, se o credor obtiver um direito
real de garantia sobre determinado objecto, permitindo-lhe proceder à sua execução, com
preferência sobre os credores comuns, independentemente da circunstância do objecto da
garantia pertencer ou não ao património do devedor.
Portanto, quem assume uma obrigação responde, em caso de não cumprimento com todos
ou parte dos seus bens.

Conceito e estrutura da obrigação – generalidades

O direito de crédito é um direito subjectivo que tem como objecto, nos termos do art.º 397.º
do Código Civil, uma prestação, ou seja, um comportamento que o devedor está vinculado a
adoptar em benefício do credor.
No entanto, a insusceptibilidade, no Direito actual, de imposição coerciva do
comportamento do devedor através de sanções com expressão física leva a uma divergência
doutrinária sobre se o verdadeiro objecto do direito de crédito é a prestação do devedor ou
o património deste, em virtude do não cumprimento da obrigação o tornar atingível por
execução específica ou por indemnização por incumprimento.
Portanto, existem enquanto possível objecto do direito de crédito a prestação, i.e., a
conduta do devedor, e o património, i.e., os bens do devedor.
Existem, portanto, diversas teses sobre o objecto do direito de crédito:
i Teorias personalistas – o objecto do direito de crédito é a prestação;
ii Teorias realistas – o objecto do direito de crédito é o património do devedor;
iii Teorias mistas – o objecto do direito de crédito é uma combinação da prestação
e do património do devedor;
iv Doutrinas da complexidade obrigacional – o objecto do direito de crédito consiste
numa realidade complexa.
As teorias personalistas, segundo as quais o direito de crédito é um vínculo pessoal, ou seja,
é uma conduta do devedor o objecto do direito de crédito, subdividem-se em duas posições:
i. O crédito como um direito sobre a pessoa do devedor;
ii. O crédito como um direito à prestação do devedor – teoria clássica.
A teoria do crédito como um direito sobre a pessoa do devedor tem a sua origem na época
arcaica do Direito Romano, configurando um direito de crédito como um direito de domínio
sobre uma pessoa. No entanto, para esta teoria o devedor permanece um sujeito da
obrigação, pelo que a execução para satisfação do direito de crédito apenas é passível de
realização sobre os bens e não sobre a pessoa do devedor.
Próxima desta teoria é a posição de SAVIGNY, o qual entendia que o direito de crédito se
caracterizava por representar um domínio sobre uma actuação de prestação do devedor, o
que significaria a inclusão dos direitos de crédito nos direitos de domínio, juntamente com
os direitos reais. Portanto, a concepção savignyana do crédito consiste num domínio sobre
uma actuação do devedor, sendo esta subtraída à liberdade deste último, ocorrendo assim a
sujeição dessa actuação à vontade do credor, o qual exerce um direito de domínio sobre essa
actuação.
WINDSCHEID criticou esta concepção pois tal faria com que o objecto do direito de crédito
recaísse na exigência do credor, sendo que a actuação é, também, uma expressão directa da
personalidade, sendo desta inseparável para configurar objecto de um direito de domínio.
LARENZ salienta que o credor apenas domina a actuação do devedor de forma mediata, pois
encontra-se na disponibilidade deste último a decisão de realizar a prestação ou, em
alternativa, sujeitar-se às consequências do seu incumprimento.

A outra concepção personalista existente é a que defende o crédito como um direito à


prestação do devedor, sendo também denominada de teoria clássica. Esta teoria qualifica o
direito de crédito como um direito à prestação, ou seja, um direito a uma conduta do
devedor, tendo origens na época clássica do Direito Romano (cfr. I. 3, 13 e D. 4, 4, 7, 3pr.) e
sendo defendida na pandectística por WINDSCHEID.
A teoria clássica é maioritária na Doutrina portuguesa, tendo sido defendida por
GUILHERME MOREIRA, VAZ SERRA, MANUEL DE ANDRADE, GALVÃO TELLES,
ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA, Menezes Cordeiro, RUI DE ALARCÃO, RIBEIRO DE
FARIA e MENEZES LEITÃO. Para esta teoria, o direito de crédito consiste na faculdade de
exigir de determinada pessoa a realização de determinada conduta (prestação) em benefício
de outrem, sem que esta possa ser coercivamente exigida, mas, correspondendo a um valor
patrimonial, possibilita a execução do património do devedor para ressarcimento do credor.
Portanto, o direito de crédito não incide nem sobre o património do devedor nem sobre a
coisa a prestar, consistindo antes num direito à conduta do devedor. É, portanto, um direito
exclusivamente pessoal, dirigido contra uma pessoa, ainda que o valor patrimonial desta
adstrição pessoal permita a execução do património do devedor em caso de incumprimento.

As teorias realistas, para as quais o direito de crédito é um direito sobre o património do


devedor, dividem-se em quatro grandes posições:
i O crédito como um direito sobre os bens do devedor;
ii O crédito como uma relação entre patrimónios;
iii O crédito como um direito à transmissão dos bens do devedor;
iv O crédito como expectativa da prestação, acrescida de um direito real de garantia
sobre o património do devedor.
A teoria do crédito como um direito sobre os bens do devedor defende que o crédito, à
semelhança de um direito real, um direito sobre bens, sendo, neste caso, bens
indeterminados, em virtude de incidir sobre todo o património do devedor, considerado
universalidade. Portanto, esta teoria nega a existência de um direito à prestação por se
considerar que, por ser incoercível, o cumprimento da obrigação se apresenta como um acto
absolutamente livre, não sendo o objecto do direito do credor. Portanto, o direito de crédito
consiste na faculdade de executar o património do devedor.
A teoria do crédito como relação entre patrimónios é a concepção mais extrema das teses
realistas, entendendo que o direito de crédito deixou de ser um vínculo pessoal,
transformando-se num vínculo entre patrimónios, sendo as pessoas do credor e do devedor
meros representantes jurídicos dos seus bens. Assim, não é o devedor que deve ao credor,
mas sim o património do devedor que deve ao património do credor. Nesta tese, o direito de
crédito é um direito sobre bens que recai colectivamente em todo o património do devedor.
O sujeito das obrigações seria o património, enquanto que o homem seria apenas seu mero
elemento.
A teoria do crédito como um direito à transmissão dos bens do devedor é uma concepção
que qualifica a obrigação como um processo de aquisição de bens, colocando o objecto de
crédito em bens em vez da prestação. Nesta teoria, a obrigação tem como fim a aquisição da
propriedade, diferindo de um direito real pois na obrigação haveria um fenómeno de
propriedade indirecta, i.e., um direito à aquisição de bens do devedor.
A teoria do crédito como expectativa da prestação [...]

Características da obrigação

A Doutrina tem vindo a apontar como características da obrigação a patrimonialidade, a


mediação ou colaboração devida, a relatividade e a autonomia.

Por patrimonialidade entende-se a susceptibilidade de a obrigação ser avaliável em dinheiro


tendo, portanto, conteúdo económico. No entanto, a obrigação não necessita de ter carácter
pecuniário, devendo, no entanto, corresponder a um interesse do credor, digno de protecção
legal (art.º 398.º, n.º 2, CC), entendendo Menezes Cordeiro e MENEZES LEITÃO que apenas
não será admissível a constituição de obrigações que tenham como objecto situações
oriundas de outros complexos normativos.
No entanto, afirmando GALVÃO TELLES entenda que a obrigação revestirá natureza
patrimonial na maioria dos casos, sendo, consequentemente, excepcionais os casos em que
tal não se verifica, Menezes Cordeiro e MENEZES LEITÃO entendem como justificada a
referência a uma patrimonialidade tendencial.
O crédito, enquanto direito à prestação (art.º 397.º, CC) é garantido através da acção de
cumprimento e da execução do património do devedor (art.º 817.º, CC), pelo que este
consiste num activo patrimonial do credor ao mesmo tempo que a obrigação se trata de um
passivo no património do devedor, em virtude da acção executiva, no momento do
vencimento da obrigação, permitir a realização de dinheiro em substituição do objecto da
prestação. Mesmo quando o crédito não esteja vencido, este representa um activo
patrimonial do credor, por ser transformável em dinheiro, através da cessão onerosa a
terceiro (art.º 577.º, CC) ou da sua afectação a fins de garantia (art.º 679.º, CC).
Outra característica das obrigações é a de que o credor não pode exercer directa e
imediatamente o seu direito, necessitando da colaboração do devedor para obter a
satisfação do seu interesse. É devida a essa característica que se fala em mediação, pois
apenas através da conduta do devedor é possível ao credor obter a satisfação do seu
interesse. Ainda que exista doutrina que não considere a mediação característica das
obrigações pelo facto de, nos casos em que o devedor se recuse a prestar, o credor possa
obter a satisfação do seu direito à prestação coercivamente, v.g. execução específica,
MENEZES LEITÃO nota que tal ocorrer pelo facto do devedor se ter vinculado a prestar essa
conduta para esse efeito. Portanto, como refere Menezes Cordeiro, na obrigação existe
sempre uma vinculação à colaboração por parte do devedor, sendo a colaboração devida o
verdadeiro entendimento da mediação como característica do direito de crédito.

A relatividade é usualmente apontada como característica das obrigações, podendo, no


entanto, ser entendida em dois sentidos diferentes:
i. Através de um prisma estrutural, referindo-se, neste sentido, ao facto do direito
de crédito se estruturar com base numa relação entre credor e devedor;
ii. Através de um prisma de eficácia, referindo-se, neste sentido, ao facto do direito
de crédito ser apenas eficaz contra o devedor, sendo apenas contra este oponível
e apenas por este último violado. Portanto, a obrigação não pode ter eficácia
externa, i.e., eficácia perante terceiros.
MENEZES LEITÃO considera a relatividade estrutural do direito de crédito e,
consequentemente, da obrigação, indubitável. Consistindo o direito de crédito no direito de
exigir de outrem uma prestação, este apenas pode, por conseguinte, ser exercido pelo seu
titular, o credor, contra outra pessoa determinada que tenha o correlativo dever de prestar,
i.e., o devedor, estruturando-se, por isso, com base numa relação jurídica entre dois sujeitos.
Apenas o devedor deve prestar e apenas dele pode o credor exigir que realize a prestação.
Sendo estruturalmente relativo, o direito de crédito distingue-se dos direitos reais, os quais
são estruturalmente absolutos pelo facto do seu objecto ser uma coisa, sendo oponíveis erga
omnes.
No sentido da não eficácia do direito de crédito em relação a terceiros existem três posições:
a clássica, a “anti-clássica” e a intermédia.
A doutrina clássica, defendida por CUNHA GONÇALVES, fundada numa deriva conceptual
da relatividade estrutural do direito de crédito, transpõe esta relatividade para a eficácia
deste mesmo. Portanto, entende-se que os direitos de crédito nunca podem ser violados por
terceiros pois, sendo direitos relativos, não existe qualquer dever dos terceiros de os
respeitar. Assim, os direitos de crédito apenas seriam violáveis pelo devedor, resultando tal
do n.º 2 do art.º 406.º e da distinção entre responsabilidade delitual e obrigacional.
A doutrina clássica foi oposta por GUILHERME MOREIRA, JOSÉ TAVARES, MANUEL
GOMES DA SILVA, GALVÃO TELLES, PESSOA JORGE, Menezes Cordeiro, RITA AMARAL
CABRAL e SANTOS JÚNIOR. Estes Autores entendem que o dever geral de respeito de não
lesar direitos alheios (neminem laedere) também abrange os direitos de crédito, tendo
também tutela delitual.
A posição intermédia, defendida por Manuel de Andrade, Vaz Serra, Antunes Varela,
Almeida Costa, Rui de Alarcão, Ribeiro de Faria, Sinde Monteiro e Menezes Leitão, considera
que não existe qualquer dever geral de respeito dos direitos de crédito, ainda que estes sejam
oponíveis perante terceiros através do princípio do abuso do direito (art.º 334.º, CC). O
terceiro poderá ser responsabilizado nos casos em que a actuação lesiva do direito de crédito
seja considerável como um exercício inadmissível da sua liberdade de acção ou da sua
autonomia privada.

A autonomia é usualmente considerada como característica das obrigações no sentido em


que apenas seria obrigação a situação jurídica regulada pelo Direito das Obrigações,
entendendo Menezes Leitão que tal é uma concepção errada pois a autonomização de uma
obrigação não impede a sua regulação pelo Direito das Obrigações nas partes não sujeitas
ao seu regime específico.

Portanto, para Menezes Leitão, existem três características das obrigações: a


patrimonialidade tendencial, a mediação e a relatividade.
A patrimonialidade tendencial significa que as obrigações têm geralmente natureza
patrimonial e que, por isso, a obrigação corresponde a um passivo no património do devedor,
da mesma forma que o crédito corresponde a um activo no património do credor. No
entanto, é possível que, em casos excepcionais, se possam constituir obrigações que não
revistam esta característica.
A mediação, ou colaboração devida, significa que o credor necessita da interposição ou
colaboração do devedor para exercer o seu direito. Sendo o crédito um direito à prestação,
i.e., um direito a uma conduta do devedor, o credor necessita que o devedor realize essa
conduta, não sendo possível a obtenção directa da satisfação do seu direito.
A relatividade significa que a obrigação se estrutura numa relação entre o credor e o
devedor, tendo apenas o devedor o dever de prestar e apenas o credor o direito de exigir o
cumprimento. Portanto, para este Autor, daí resulta que, em princípio, apenas o devedor
deva ser responsabilizado em caso de violação do direito de crédito, pois é apenas deste que
o credor pode exigir que satisfaça a prestação. No entanto, Menezes Leitão entende que é
possível que a obrigação seja eficaz perante terceiros e que este último possa ser
responsabilizado quando proceda à lesão do direito do credor em violação dos vectores
fundamentais do ordenamento jurídico, como é o caso do abuso do direito.

Distinção entre direitos de crédito e direitos reais

A distinção essencial entre direitos de crédito e direitos reais consiste no critério do objecto,
sendo que enquanto que o objecto de um direito de crédito é a prestação, i.e., uma conduta
do devedor, o objecto de um direito real é uma coisa.
Enquanto que um direito de crédito necessita da colaboração do devedor para o seu
exercício, mesmo que a prestação tenha como objecto uma coisa, o direito real não necessita
da colaboração de ninguém para o seu exercício por parte do credor, pois o seu direito incide
directa e imediatamente sobre uma coisa, não necessitando a colaboração de outrem para
ser exercido.
A relatividade estrutural dos direitos de crédito é outra forma de se distinguir os estes
primeiros dos direitos reais, pois o direito de crédito assenta numa relação, o que implica que
tenha de ser exercido contra o devedor. Por outro lado, o direito real não assenta em
qualquer tipo de relação, dado que se exerce directamente sobre a coisa, sendo oponível erga
omnes. Sendo o direito de crédito um direito relativo, a sua oponibilidade a terceiros é,
segundo Menezes Leitão, limitada, apenas ocorrendo em certas circunstâncias, enquanto
que a oponibilidade dos direitos reais é plena.
O direito real adere à coisa, estabelecendo uma vinculação tal com a coisa que dela é
inseparável, sendo esta a denominada inerência dos direitos reais, a qual tem uma
manifestação dinâmica que é a sequela, a qual significa que o titular de um direito real pode
perseguir a coisa onde quer que ela se encontre. No entanto, já não ocorre sequela nos
direitos de crédito, sendo que se alguém tem direito a uma prestação e o devedor aliena o
seu objecto, o credor já não a pode exigir, restando-lhe apenas pedir uma indemnização ao
devedor por ter impossibilitado culposamente a prestação.
Os direitos reais são também caracterizados pela prevalência, a qual significa, lato sensu,
que é prioritário o direito real primeiramente constituído sobre posteriores constituições,
salvo as regras do registo, e a maior força dos direitos reais sobre os direitos de crédito (da
qual Menezes Cordeiro discorda). Portanto, não é possível constituir sucessivamente dois
direitos reais incompatíveis sobre o mesmo objecto, prevalecendo então o primeiro. No
entanto, isso não ocorre com os direitos de crédito, os quais não possuem qualquer
hierarquização entre si pela ordem da constituição, concorrendo antes em pé de igualdade
sobre o património do devedor, o qual, sendo insuficiente, será rateado para se efectuar um
pagamento proporcional a todos os credores (art.º 604.º, n.º 1, CC), salvo se estes direitos de
crédito vierem acompanhados de um direito real que atribua prevalência no pagamento
(art.º 604.º, n.º 2, CC). Assim, para Menezes Leitão, os direitos reais prevalecem sobre os
direitos de crédito.

Objecto da obrigação: a prestação – delimitação do conceito de prestação

Da definição do art.º 397.º decorre que a prestação consiste na conduta que o devedor se
obriga a desenvolver em benefício do credor, consistindo na resposta à pergunta quid
debeatur, surgindo esta, portanto, como a contraposição ontológica ao conteúdo
deontológico da vinculação assumida pelo devedor. Portanto, a realização da prestação é
considerada como cumprimento da obrigação, importando a sua extinção (art.º 762.º, n.º 1,
CC).
A prestação pode tanto consistir numa acção como numa omissão, sendo o seu conteúdo
determinado pelas partes, dentro dos limites da lei (art.º 398.º, n.º 1, CC). A prestação
consiste frequentemente não propriamente na actividade mas antes no resultado dessa
mesma, conferindo à expressão “prestação” um duplo sentido.
A prestação, embora não necessite de ter valor pecuniário, deve corresponder a um
interesse do credor, digno de protecção legal (art.º 398.º, n.º 2, CC), negando a
patrimonialidade necessária da prestação, ainda que se verifique que a sua maioria detém,
de facto, valor patrimonial. No entanto, a fórmula legal pretende abranger como objecto da
obrigação situações não patrimoniais, correspondentes a interesses do credor que mereçam
uma efectiva tutela jurídica, v.g. publicação de um pedido de desculpas, já não se
encontrando dentro deste domínio situações que se reconduzam a outras ordens jurídicas.
LARENZ defende que o interesse do credor deve ser entendido meramente como o
interesse jurídico em receber a prestação, não os interesses pessoais e económicos que ela
lhe pode proporcionar.

Requisitos legais da prestação

A prestação consiste no objecto da obrigação (art.º 397.º, CC), tendo as partes a faculdade
de determinar o seu conteúdo dentro dos limites da lei (art.º 398.º, CC), pelo que esta tem
que respeitar certos limites legais para a sua constituição. Portanto, se a obrigação resulta
de um negócio jurídico, a obrigação estará sujeita às regras relativas ao objecto negocial
(art.º 280.º, CC), tendo como consequência a nulidade do negócio se a prestação
desrespeitar algum desses limites.
Portanto, as regras do art.º 280.º são plenamente aplicáveis à prestação, pelo que esta deve,
por isso, ser física e legalmente possível, lícita, conforme à ordem pública e aos bons
costumes e determinável. No entanto, a par da aplicabilidade da regra geral do art.º 280.º a
prestação, o legislador consagrou outros requisitos da prestação nos art.os 400.º e 401.º,
carecendo estes de articulação com a regra geral.

A impossibilidade da prestação produz a nulidade do negócio jurídico (art.º 280.º, n.º 1, CC),
podendo essa impossibilidade ser física ou legal. No entanto, para que a impossibilidade da
prestação produza a nulidade do negócio jurídico, é necessário que ela constitua uma
impossibilidade originária (art.º 401.º, n.º 1, CC), pelo que se a prestação se tornar
supervenientemente impossível, após a constituição do negócio, este último mantêm-se,
ocorrendo apenas a extinção da obrigação (art.º 790.º, CC).
Existem, ainda assim, casos em que a prestação é originariamente impossível, mas a
validade do negócio não é afectada, sendo estes os casos em que o negócio é celebrado para
a hipótese da prestação se tornar possível, ou em que o negócio é sujeito a condição
suspensiva ou a termo inicial e, no momento da sua verificação, a prestação já se tornou
possível (art.º 401.º, n.º 1, CC).
A impossibilidade tem necessariamente de ser absoluta, impedindo a realização da
prestação, e não meramente relativa, tornando excessivamente difícil ou onerosa a sua
realização.
A impossibilidade deve ser objectiva e não subjectiva, considerando-se apenas como
impossível a prestação que o seja em relação ao objecto e não relativamente à pessoa do
devedor (art.º 401.º, n.º 3, CC), valendo esta regra igualmente para a impossibilidade
superveniente (art.º 791.º, CC). Sendo as prestações, em princípio, fungíveis, o seu
cumprimento pode ser efectuado por qualquer pessoa (art.º 767.º, n.º 1, CC), pelo que se
apenas o devedor estiver impossibilitado de prestar, este deve fazer-se substituir no
cumprimento da obrigação. Portanto, inexiste qualquer obstáculo à constituição da
obrigação se a impossibilidade for meramente subjectiva, exigindo-se uma impossibilidade
relativa ao objecto e não meramente à pessoa do devedor.

O objecto negocial não pode ser contrário a qualquer disposição que tenha carácter injuntivo
(art.os 280.º, n.º 1, e 294.º, CC), constituindo as normas injuntivas um importante limite à
autonomia privada, impondo a nulidade dos negócios que as contrariem.
A ilicitude do negócio pode ser de resultado ou de meios, consoante o negócio vise
objectivamente um resultado ilícito ou se proponha alcançar um resultado lícito através de
meios cuja utilização é proibida por lei, sendo, em ambos os casos, o negócio nulo (art.º
280.º, n.º 1, CC).
Menezes Cordeiro entende que não se deve confundir a ilicitude de resultado com a situação
em que apenas o fim subjectivo de quem celebra o negócio é ilícito, sendo que nestes casos
o negócio será nulo apenas quando o fim seja comum a ambas as partes (art.º 281.º, CC).

A prestação tem que ser determinável, sendo o negócio nulo quando o seu objecto for
indeterminável (art.º 280.º, CC), não se devendo confundir indeterminável com
indeterminado, pois é possível a constituição de uma obrigação com uma prestação ainda
indeterminada, desde que esta seja determinável.
Em caso de indeterminação da prestação, a sua determinação pode ser confiada a uma ou a
outra das partes ou a terceiro, devendo, em qualquer caso, ser feita segundo juízos de
equidade se outros critérios não tiverem sido estabelecidos (art.º 400.º, CC). No art.º 400.º a
referência a “juízos de equidade” não significa uma remissão para o mero arbítrio das partes
ou do terceiro, significando, antes, o mesmo que “juízos de razoabilidade”, tendo de ser
estabelecidos sobre uma base objectiva. Portanto, as partes ou o terceiro não poderão
determinar arbitrariamente a prestação, tendo antes de seguir critérios pré-estabelecidos de
adequação ao fim da obrigação e à prossecução do interesse do credor, pelo que o acto de
determinação da prestação consiste num acto jurídico simples, aplicando-se por analogia as
regras dos negócios jurídicos (art.º 295.º, CC).
No entanto, se do negócio não resultar qualquer critério que permita realizar a determinação
da prestação, esta terá necessariamente de ser considerado nulo por indeterminabilidade do
objecto (art.º 280.º, n.º 1, CC).

A prestação não pode ser contrária à ordem pública e aos bons costumes (art.º 280.º, n.º 2,
CC), tratando-se tal de uma remissão para conceitos indeterminados, cuja concretização
deve ser realizada pelo julgador. Segundo Menezes Cordeiro, esta concretização passa, em
matéria de bons costumes, pela referência às regras de conduta familiar e sexual, bem como
as regras deontológicas estabelecidas no exercício de certas profissões. Para o mesmo
Autor, a referência à ordem pública remete para os princípios fundamentais do ordenamento
jurídico, cuja contrariedade, ainda que não conste de norma expressa, implica a invalidade
do negócio.
Menezes Leitão aponta para que, em semelhança com a ilicitude da prestação, também
apenas o fim subjectivo das partes pode ser contrário à ordem pública ou aos bons costumes,
sendo o negócio, neste caso, nulo apenas quando o fim for comum a ambas as partes (art.º
281.º, CC).

Complexidade intra-obrigacional e deveres acessórios de conduta

A complexidade do vínculo obrigacional justifica que se fale de obrigação em dois sentidos:


um estrito, correspondente à definição do art.º 397.º, que apenas abrange o binómio direito
de crédito-dever de prestar, e outro mais amplo (relação obrigacional), que abrange todo o
conjunto de situações jurídicas geradas no âmbito da relação entre o credor e o devedor.
Neste sentido amplo, a obrigação constitui analiticamente uma realidade complexa,
abrangendo:
i. O dever de efectuar a prestação principal, que por sua vez pode analiticamente
ser decomposto em sub-deveres relativos a diversas condutas materiais ou
jurídicas;
ii. Os deveres secundários de prestação, que correspondem a prestações
autónomas, ainda que especificamente acordadas com o fim de complementar a
prestação principal, sem a qual não fazem sentido;
iii. Os deveres acessórios, decorrentes do princípio da boa-fé, destinando-se a
permitir que a execução da prestação corresponda à plena satisfação do interesse
do credor e que essa execução não implique danos para qualquer das partes;
iv. Sujeições, como contraponto a algumas situações jurídicas potestativas que
competem ao credor;
v. Poderes ou faculdades, que o devedor pode exercer perante o credor;
vi. Excepções, que consistem na faculdade de paralisar eficazmente o direito de
crédito.
O dever de efectuar a prestação principal é o elemento determinante da obrigação, sendo
este que lhe atribui a sua individualidade própria. Os deveres secundários de prestação
correspondem a outras prestações funcionalizadas em relação à prestação principal, visando
complementá-la.
Os deveres acessórios de conduta são classificáveis, segundo Menezes Cordeiro, em deveres
acessórios de informação, protecção e lealdade, resultando o princípio da boa-fé e tendo por
função assegurar a realização do dever de prestação principal em termos que permitam
tutelar o interesse do credor, mas também evitar que a realização da prestação possa
provocar danos para as partes.
No tocante aos deveres acessórios, não se concebe a acção de cumprimento, mas apenas
outras sanções como a indemnização pelos danos sofridos com a violação ou eventualmente
a resolução do contrato (cfr. art.º 1003.º, al a), CC), sendo estes deveres, aliás, independentes
do dever de prestação principal, pelo que podem surgir antes ou após a sua extinção (deveres
pré- e pós-contratuais) e inclusivamente tutelar a situação de terceiros ao contrato (eficácia
de protecção em relação a terceiros).
Nas sujeições, contrapostas às situações jurídicas potestativas, é possível incluir-se entre
elas situações como a faculdade de interpelação nas obrigações puras, colocando o devedor
na situação de mora (art.º 805.º, n.º 1, CC) ou a resolução do contrato em consequência do
incumprimento (art.º 801.º, n.º 2, CC). Assim, o direito de crédito, ainda que não seja
estruturalmente um direito potestativo, pode incluir no seu seio elementos de carácter
potestativo.

Menezes Leitão entende que a obrigação é, no fundo, uma situação complexa, superando a
simples decomposição dos seus elementos principais como o direito à prestação e o dever
de prestar. Esta abrange ainda deveres secundários, acessórios, sujeições, poderes ou
faculdades e excepções, chamando-se a tal de “relação obrigacional complexa”.

Modalidades de obrigações – obrigações naturais

A qualificação das obrigações naturais como obrigações é controversa. Estas são definidas
pelo art.º 402.º do Código Civil como as obrigações que se fundam “num mero dever de
ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a
um dever de justiça”. Assim, o que caracteriza a obrigação natural é a não exigibilidade
judicial da prestação, resumindo-se a sua tutela jurídica à possibilidade de o credor conservar
a prestação espontaneamente realizada (soluti retentio), à qual o art.º 403.º se refere. Exclui-
se, por conseguinte, a possibilidade de repetição do indevido (art.º 476.º, CC), salvo se o
devedor não tiver capacidade para realizar a prestação.
Se o devedor tiver capacidade para realizar a prestação e a efectuar espontaneamente – i.e.,
sem qualquer coacção – já não pode pedir a restituição do que prestou, mesmo que, por erro,
estivesse convencido da coercibilidade do vínculo (art.º 403.º, n.º 2, CC).
As obrigações naturais não são convencionáveis livremente pelas partes no exercício da sua
autonomia privada, pois tal equivaleria a uma renúncia do credor ao direito de exigir o
cumprimento, o que é proscrito pelo art.º 809.º. Portanto, apenas serão admissíveis as
obrigações naturais referentes a deveres de ordem moral ou social que correspondam a um
dever de justiça.
A lei determina como aplicável às obrigações naturais o regime das obrigações civis em tudo
o que não se relacione com a realização coactiva da prestação, salvo as excepções
legalmente previstas (art.º 404.º, CC). No entanto, Menezes Leitão considera que não será
aplicável às obrigações naturais o regime das fontes das obrigações, a estipulação de
garantias, a aplicação do regime do cumprimento e do não-cumprimento nem o regime da
prescrição.
Na Doutrina portuguesa, Guilherme Moreira, Galvão Telles e Antunes Varela consideram as
obrigações naturais como relações de facto às quais o direito atribui eficácia. No entanto, a
doutrina dominante, defendida por Manuel de Andrade, Vaz Serra, Almeida Costa, Menezes
Cordeiro, Ribeiro de Faria e Nuno Pinto de Oliveira defendem que as obrigações naturais são
verdadeiras obrigações jurídicas, diferindo o seu regime apenas pela lei não permitir a sua
execução.
Menezes Leitão considera que a obrigação natural não é uma verdadeira obrigação jurídica,
na medida em que nela não existe um vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fique
adstrita para com outra à realização da prestação (art.º 397.º, CC). Este Autor considera que
a existência de um dever moral e social correspondente a um dever de justiça é insuficiente
para se considerar subsistente na obrigação natural um vínculo jurídico, dado que é a própria
lei a negar-lhe a faculdade de exigir judicialmente o cumprimento e esta última é inseparável
do direito de crédito, daí a proibição legal à sua renúncia antecipada (art.º 809.º, CC).
Por outro lado, este Autor nota que nas obrigações civis o cumprimento da obrigação não
aumenta o património do credor, uma vez que o devedor se limita a solver um crédito que já
consistia um valor patrimonial no âmbito desse património. Na obrigação natural, o direito
de crédito, sem a faculdade de exigir o cumprimento, não tem conteúdo, não podendo
nunca, para Menezes Leitão, considerar-se como um valor no activo patrimonial do credor,
pelo que o cumprimento da obrigação natural representa um incremento do património do
credor natural à custa do património do respectivo devedor, levando a que a situação se
aproxime da doação, sem que tenha espírito de liberalidade.
Nas obrigações naturais inexiste consequentemente um direito primário à prestação, como
direito de crédito, limitando-se a lei a reconhecer causa jurídica à prestação realizada
espontaneamente, excluindo que o prestador possa vir a recorrer à prestação do indevido.
Portanto, para Menezes Leitão, a obrigação natural não parece qualificável como um dever
jurídico, mas antes como um dever oriundo de outras ordens normativas que, pelo facto de
corresponder a um dever de justiça, leva a que o direito atribua causa jurídica às atribuições
patrimoniais realizadas espontaneamente em seu cumprimento. Assim, o art.º 403.º, n.º 1,
não juridificando a obrigação natural, mas antes da tutela da aquisição pelo credor natural,
em consequência da prestação, à qual se atribui causa jurídica.

Classificação das obrigações em função dos tipos de prestações

A classificação mais importante de prestações é aquela que se reconduz à distinção entre


prestações de coisa e prestações de facto. As prestações de coisa são aquelas cujo objecto
consiste na entrega de uma coisa, enquanto que as prestações de facto são aquelas que
consistem em realizar uma conduta de outra ordem.
A classificação entre prestações de coisa e prestações de facto é aproximável da distinção
económica entre bens e serviços, correspondendo as prestações de coisa ao fornecimento
de bens e as prestações de facto à realização de serviços.
É distinguível a prestação do devedor relativamente à coisa e a própria coisa a prestar, sendo
que o interesse do devedor incide normalmente sobre a coisa, a qual existe de forma
independente da prestação e sem relação à actividade do devedor. Portanto, o direito de
crédito nunca incide directamente sobre a coisa, mas antes sobre a conduta do devedor pois
é sempre exigida a mediação da actividade do devedor para o credor obter o seu direito.
Mesmo nos casos de prestação de coisa, o credor não tem qualquer direito sobre a coisa, o
que apenas sucede num direito real, mas antes um direito à prestação, o qual consiste na
entrega dessa coisa. Mesmo que o credor obtenha a execução específica dessa obrigação,
conseguindo na execução que a entrega da coisa lhes seja feita por outrem (cfr. art.º 827.º,
CC), continua-se a estar perante um direito a uma prestação, sendo esta realizada, nesta
situação, pela acção executiva.
Por outro lado, nas prestações de facto é impossível distinguir entre a conduta do devedor e
uma realidade que exista independentemente dessa conduta, tendo o direito do credor por
objecto a prestação e o seu interesse não corresponde a nenhuma realidade independente
dessa prestação.
As prestações de facto podem ser subclassificadas em prestações de facto positivo (facere)
e prestações de facto negativo (divisíveis em prestações de non facere e de pati). As
prestações de facto positivo (facere) são aquelas em que a prestação tem por objecto uma
acção, sendo as de facto negativo aquelas em que a prestação tem por objecto uma omissão.
As prestações de facto negativo dividem-se ainda em função de se a omissão que é objecto
da prestação corresponde a não realizar determinada conduta (prestação de non facere) ou
antes a tolerar a realização de uma conduta por outrem (prestação de pati).
Pode ainda dividir-se as prestações de facto em prestações de facto material e prestações
de facto jurídico. Nas prestações de facto material, a conduta que o devedor se compromete
a realizar é puramente material, não destinada à produção de efeitos jurídicos, enquanto que
nas prestações de facto jurídico, a conduta do devedor aparece destinada à produção de
efeitos jurídicos, sendo assim esse resultado jurídico incluído na prestação.

São prestações fungíveis aquelas em que a prestação pode ser realizada por outrem que não
o devedor, podendo este fazer-se substituir no cumprimento, enquanto que as prestações
infungíveis são aquelas em que só o devedor pode realizar a prestação, não sendo permitida
a sua realização por terceiro.
As prestações são, regra geral, fungíveis, podendo ser realizadas por terceiro, interessado
ou não no cumprimento da obrigação (art.º 767.º, n.º 1, CC). A prestação é, no entanto,
infungível (art.º 767.º, n.º 2, CC) quando a substituição do devedor no cumprimento prejudica
o credor (infungibilidade natural), ou quando se tenha acordado expressamente que a
prestação só pode ser realizada pelo devedor (infungibilidade convencional).
A fungibilidade da prestação tem uma importância especial para efeito da execução
específica da obrigação. Se a prestação for fungível, o credor pode, sem prejuízo para o seu
interesse, obter a realização da prestação por outra pessoa, às custas do devedor. Assim, se
a prestação consistir na entrega de coisa determinada, o credor pode requerer em execução
que a entrega lhe seja feita (art.º 827.º, CC), obtendo, por via executiva, a realização da
prestação de outrem, que não o devedor. Também se a prestação for de facto positivo pode,
se for fungível, se sujeita à execução específica, a qual consiste em requerer a realização por
outrem da actividade que o devedor se tinha comprometido a realizar (art.º 828.º, CC), sendo
que se se tratar de prestação de facto negativo ocorre um fenómeno semelhante. Mesmo
que a prestação consista numa actividade jurídica, é admissível a sua substituição no
cumprimento, mediante emissão pelo tribunal de sentença com os mesmos efeitos do
contrato prometido (art.º 830.º, CC).
Se a prestação for infungível, a substituição do devedor já não é possível, pelo que a lei não
admite a execução específica da obrigação. No entanto, é admissível em alguns casos a
aplicação de uma sanção pecuniária compulsória, visando coagir o devedor a cumprir a
obrigação (art.º 829.º-A, CC), estando também sujeitas a um regime específico em caso de
impossibilidade da prestação, uma vez que nelas a impossibilidade relativa à pessoa do
devedor acarreta mesmo a extinção da obrigação, em virtude de não ser admitia a sua
substituição no cumprimento (art.º 791.º, CC).

São prestações instantâneas aquelas cuja execução ocorre num único momento, enquanto
que as prestações duradoura são aquelas cuja execução se prolonga no tempo, em virtude
de terem por conteúdo um comportamento prolongado no tempo ou uma repetição
sucessiva de prestações isoladas por um período de tempo.
Para uma prestação ser caracterizada como duradoura a sua realização global tem que
depender sempre do decurso de um período temporal, durante o qual a prestação deve ser
continuada ou repetida. Pode-se distinguir neste âmbito entre prestações duradouras
continuadas ou periódicas. Nas prestações duradouras continuadas a prestação não sofre
qualquer interrupção, enquanto que nas prestações duradouras periódicas a prestação é
sucessivamente repetida em certos períodos de tempo, tendo em comum, porém, o facto
desta aumentar em função do decurso do tempo.
Por outro lado, as prestações instantâneas não têm o seu conteúdo ou extensão delimitados
em função do tempo, sendo classificáveis em prestações instantâneas integrais ou
fraccionadas. As prestações instantâneas integrais são aquelas realizadas de uma só vez,
enquanto que as prestações instantâneas fraccionadas são aquelas em que o seu montante
global é dividido em várias fracções.
As prestações instantâneas fraccionadas são distinguíveis das prestações duradouras
periódicas pelo facto de se estar, nas primeiras, perante uma única obrigação cujo objecto é
dividido em fracções, com vencimentos intervalados, havendo sempre uma definição prévia
do seu montante global e o decurso do tempo não influi no conteúdo e extensão da
prestação, mas apenas no seu modo de realização. Nas prestações duradouras periódicas,
verifica-se, pelo contrário, uma pluralidade de obrigações distintas, embora emergentes de
um vínculo fundamental que sucessivamente as origina, pelo que, por definição, não pode
haver qualquer fixação inicial do seu montante global, já que é o decurso do tempo que
determina o número de prestações que é realizado.
Portanto, a distinção entre as prestações duradouras e as instantâneas baseia-se no facto
do decurso do tempo determinar o conteúdo da obrigação nas primeiras, dado que mesmo
nas prestações instantâneas fraccionadas, o decurso do tempo não influi no conteúdo da
obrigação, determinando apenas o seu vencimento (art.º 805.º, n.º 2, alínea a), CC). Pelo
contrário, nas prestações duradouras, contínuas ou periódicas, o decurso do tempo influi no
conteúdo e extensão da obrigação, pelo que a extinção ou alteração do contrato antes do
decurso do prazo implica a não constituição ou alteração da prestação relativa ao tempo
posterior.
As prestações duradouras implicam a atribuição de um regime especial de extinção aos
contratos que as incluem, sendo que o facto de estes se poderem prolongar no tempo implica
que a lei deva assegurar também alguma limitação à sua duração, sob pena da liberdade
económica das partes poder ficar seriamente comprometida.
Portanto, a lei tem de assegurar uma delimitação temporal aos contratos de execução
duradoura, o que é realizado através do acordo prévio das partes fixando um limite temporal
ao contrato – caso em que o decurso do tempo importa a extinção do contrato por
caducidade – ou, quando isso não sucede, através do instituto da denúncia do contrato. A
denúncia do contrato é um instituto típico dos contratos de execução duradoura,
caracterizando-se por permitir, quando as partes não houverem fixado a duração do
contrato, que qualquer delas proceda à sua extinção para o futuro, através de um negócio
jurídico unilateral receptício. Assim, se alguém celebrar um contrato de execução duradoura,
o contrato pode manter-se durante um certo lapso de tempo, não vigorando ilimitadamente,
uma vez que ambas as partes têm o direito de o denunciar para o futuro.
Se forem celebrados por tempo indeterminado, os contratos de execução duradoura
podem, assim, ser denunciados pelas partes. Se não o forem, a aplicação da resolução dos
contratos não está excluída, exigindo-se, no entanto, fundamentos específicos,
correspondentes à inexigibilidade de manutenção por mais tempo do vínculo contratual.
Ainda assim, o regime da resolução dos contratos de execução duradoura sofre um desvio à
regra geral, sendo que enquanto que a resolução do contrato tem geralmente eficácia
retroactiva (art.º 434.º, n.º 1, CC), nos contratos de execução duradoura esta não abrange as
prestações já executadas, salvo se entre elas e a causa de resolução existir um vínculo que
legitime a resolução de todas elas (art.º 434.º, n.º 2, CC).
Os contratos de execução duradoura caracterizam-se também pelo facto de nestes
vigorarem com maior intensidade os deveres acessórios, pelo facto de se tratarem de
relações que, atendendo à sua duração, pressupõem uma intensa relação de confiança e
colaboração entre as partes, pressupondo uma aplicação mais intensa do princípio da boa-fé
e dos deveres acessórios de protecção, informação e lealdade em ordem a manter uma
permanente confiança recíproca e entendimento mútuo no âmbito daquele contrato. Disto
decorre que, se alguma das partes vier a lesar a confiança da outra, mesmo que não
incumprindo uma prestação recíproca, a parte lesada tem o direito de resolução do contrato,
com fundamento em justa causa.

Distingue-se também tradicionalmente entre prestações de resultado e prestações de


meios. Segundo esta classificação, nas prestações de resultado, o devedor vincular-se-ia
efectivamente a obter um resultado determinado, respondendo por incumprimento se este
resultado não fosse obtido. Nas prestações de meios, o devedor não estaria obrigado à
obtenção do resultado, mas apenas a actuar com a diligência necessária para que este
resultado seja obtido.
Em termos de regime jurídico, a distinção resulta na forma de estabelecimento do ónus da
prova, sendo que bastaria ao credor, nas prestações de resultado, demonstrar a não
verificação do resultado para responsabilizar o devedor, sendo este que, para se exonerar de
responsabilidade, teria que demonstrar que a inexecução é devida a uma causa que não lhe
é imputável. Pelo contrário, nas prestações de meios é insuficiente a não verificação do
resultado para responsabilizar o devedor, havendo que proceder à demonstração de que a
sua conduta não correspondeu à diligência a que se tinha vinculado.
No entanto, Menezes Leitão entende que a distinção entre obrigações de meios e
obrigações de resultado não procede em virtude do facto de que em ambos os casos aquilo
a que o devedor se obriga é sempre uma conduta (a prestação), visando o credor um
resultado, que corresponde ao seu interesse (art.º 398.º, n.º 2, CC) e de caber sempre ao
devedor o ónus da prova de que realizou a prestação (art.º 342.º, n.º 2, CC) ou de que a falta
de cumprimento não procede de culpa sua (art.º 799.º, CC), sem o qual será sujeito a
responsabilidade.

A prestação, enquanto objecto da obrigação, não necessita de se encontrar determinada no


momento da conclusão do negócio, bastando que seja determinável (art.os 280.º e 400.º,
CC). Tal permite estabelecer uma distinção entre prestações determinadas e prestações
indeterminadas, sendo prestações determinadas aquelas em que a prestação se encontra
completamente determinada no momento da constituição da obrigação e sendo prestações
indeterminadas aquelas em que a determinação não se encontra realizada, pelo que essa
terá de ocorrer até ao momento do cumprimento.
Por vezes, a indeterminação resulta de as partes não terem julgado necessário tomar
posição sobre o assunto, em virtude de haver regra supletiva aplicável, ou de pretenderem
aplicar ao negócio as condições usuais no mercado. Neste caso, a lei remete precisamente
para esses critérios, procedendo-se à determinação por essa via (cfr. art.º 883.º, CC).
Noutros casos, a indeterminação da prestação resulta de as partes terem pretendido
conferir a uma delas a faculdade de efectuar essa determinação, porque apenas essa parte
tem os conhecimentos necessários para o poder fazer adequadamente. As partes podem
acordar que essa informação seja fornecida à outra parte antes da celebração do contrato,
sendo a prestação determinada durante as negociações, permitindo a sua determinação no
momento da conclusão do negócio. Quando, porém, esta circunstância não ocorrer, tal
significa que as partes delegaram numa delas a faculdade de determinar o conteúdo da
prestação, podendo esta situação ser qualificada como um poder potestativo, tendo como
contraponto a sujeição da outra parte, a ver determinado o objecto da prestação, de acordo
com a decisão da primeira.
A declaração de determinação da prestação tem natureza negocial, não sendo, no entanto,
sujeita a forma especial, mesmo que o contrato tenha natureza formal (cfr. art.º 221.º, n.º 2,
CC).
Quando as partes ou o terceiro não puderem determinar a prestação ou não o realizarem no
tempo devido, ela deve ser efectuada pelo tribunal (art.º 400.º, n.º 2, CC), tratando-se, neste
caso, de uma complementação do conteúdo do contrato através de uma actuação judicial e
não de uma mera interpretação do negócio (art.º 236.º, CC), implicando que a acção tenha
simultaneamente natureza constitutiva.
As obrigações genéricas e alternativas constituem as categorias mais importantes de
obrigações com prestações indeterminadas.

Obrigações genéricas

O art.º 539.º define as obrigações genéricas como aquelas em que o objecto da prestação se
encontra apenas determinado quanto ao género, significando isto que a prestação se
encontra determinada apenas por referência a uma certa quantidade, peso ou medida de
coisas dentro de um género, mas não estão ainda concretamente determinados quais os
espécimes daquele género que vão servir para o cumprimento da obrigação.
Pelo contrário, as obrigações específicas são aquelas em tanto o género como os espécimes
da prestação se encontram determinados.
As obrigações genéricas são bastante comuns no comércio, ocorrendo quase sempre que se
efectua uma negociação sobre coisas fungíveis, não consistindo necessariamente, no
entanto, o seu objecto neste tipo de coisas. Enquanto que a classificação entre coisas
fungíveis e infungíveis se relaciona com a sua consideração usual no tráfego, a classificação
entre obrigações genéricas e específicas resulta do acordo das partes. Portanto, é possível
que coisas infungíveis sejam objecto de obrigações genéricas.
O facto da obrigação ser genérica implica diferenças de regime, tendo que ocorrer um
processo de individualização dos espécimes dentro do género, sendo este a escolha que
pode caber, nos termos gerais, a ambas as partes ou a terceiro (art.º 400.º, CC). A regra nas
obrigações genéricas é a de que a escolha cabe ao devedor (art. 539.º, CC), devendo este,
para Menezes Cordeiro, entregar uma coisa de classe e qualidade média, invocando este
ilustre Autor o regime da integração dos negócios jurídicos segundo os ditames da boa-fé
(art.º 239.º, CC). No entanto, para Menezes Leitão, esta solução decorre do art.º 400.º que,
ao estabelecer que a determinação da prestação deve ser adequada à satisfação do interesse
do credor, o que não ocorrerá se a prestação for exclusivamente determinada com coisas de
qualidade inferior.
A indeterminação inicial da obrigação genérica coloca o problema da averiguação do
momento em que tem lugar a transferência da propriedade sobre as coisas que vão servir
para o cumprimento da obrigação, o que releva para efeitos de risco, dado que a regra é a de
que o perecimento da coisa corre por conta do seu proprietário (res perit domino, cfr. art.º
796.º, CC). Na obrigação genérica a transferência da propriedade não pode ocorrer no
momento da celebração do contrato, conforme resulta genericamente do art.º 408.º, n.º 1,
relativamente às coisas determinadas. Um direito real só pode ter por objecto coisas
corpóreas e determinadas, pelo que um direito a uma quantidade de coisas a escolher de
certo género seria sempre qualificado como um direito de crédito. Portanto, é sempre
necessária a determinação da prestação para obter a transferência da propriedade,
operando esta transferência apenas quando a coisa é determinada com o conhecimento de
ambas as partes.
No entanto, as obrigações genéricas têm um regime especial, transmitindo-se a
propriedade – e o risco a ela associada – no momento da concentração da obrigação, i.e.,
quando a obrigação passa de genérica a específica, não se exigindo que seja conhecida de
ambas as partes.
Existem três teorias relativas à determinação do momento da concentração da obrigação:
i. Teoria da escolha – defendida por Thöl;
ii. Teoria do envio – defendida por Puntschart;
iii. Teoria da entrega – defendida por Jhering.
Segundo a teoria da escolha, a concentração da obrigação genérica ocorre logo no
momento em que o devedor procede à separação dentro do género das coisas que pretende
usar para o cumprimento da obrigação. Nesse momento, o devedor já teria procedido à
escolha das coisas dentro do género, pelo que a obrigação deixaria de ser genérica e passaria
a considerar-se específica. Assim, ocorrendo posteriormente o perecimento destas coisas,
esse risco correria por conta do credor e o devedor não seria obrigado a entregar outras
coisas do mesmo género.
Segundo a teoria do envio, a simples separação não basta para a concentração da obrigação
genérica, exigindo-se antes que o devedor proceda ao envio para o credor das coisas com
que pretende cumprir a obrigação. Neste caso, logo que as coisas saem do domicílio do
devedor a obrigação genérica concentrar-se-ia, pelo que o risco do seu perecimento durante
o transporte correria por conta do credor.
Finalmente, segundo a teoria da entrega, a concentração da obrigação genérica só ocorreria
com o cumprimento da obrigação, só nesse momento se efectuando a transferência do risco
para o credor. Consequentemente, qualquer perecimento da coisa que ocorresse
anteriormente a esse momento correria por conta do devedor.
A lei portuguesa consagrou relativamente à concentração das obrigações genéricas por
escolha do devedor como regra geral a teoria da entrega de Jhering. Enquanto a prestação
for possível com coisas do género estipulado o devedor não fica exonerado pelo facto de
terem perecido aquelas com que se dispunha a cumprir (genus nanquam perit), consagrando-
se a irrelevância geral da escolha ou do envio para efeitos de concentração da obrigação
genérica (art.º 540.º, CC).
Se o devedor continua a ter que entregar coisas do mesmo género, tal significa que a
obrigação genérica ainda não se concentrou, ocorrendo tal apenas, regra geral, com o
cumprimento, sendo esse também o momento da transferência da propriedade sobre as
coisas objecto da obrigação genérica, dado que a transmissão da propriedade das coisas
genéricas exige a sua concentração (art.º 408.º, n.º 2, CC), o que normalmente apenas ocorre
mediante a entrega pelo devedor (art.º 540.º, CC). A lei admite, no entanto, certos casos em
que, embora cabendo a escolha ao devedor, a obrigação se concentra antes do cumprimento
(art.º 541.º, CC), sendo estas o acordo das partes, o facto de o género se extinguir a ponto de
restar apenas uma – ou, mais precisamente, a quantidade devida – das coisas nele
compreendidas, o facto do credor incorrer em mora e a promessa de envio do art.º 797.º.
Para Menezes Cordeiro, a norma do art.º 541.º documenta cedências do legislador às teorias
da escolha e do envio, pelo que, neste caso, o legislador se teria desviado da teoria da
entrega, discordando Menezes Leitão de tal asserção.
Este último Autor entende que a possibilidade do acordo das partes afastar a regra geral da
concentração da obrigação genérica no momento do cumprimento trata-se de um contrato
modificativo da obrigação, através do qual as partes substituem uma obrigação genérica por
uma específica. No tocante à situação de o género se extinguir ao ponto de restar apenas a
quantidade de coisas que o devedor deve prestar, este Autor entende que a concentração
ocorre por mero facto da natureza, inexistindo um desvio à regra geral. Se as coisas
sobrantes também desaparecessem, deixaria a prestação de ser possível com coisas do
género estipulado, pelo que o devedor estaria sempre exonerado em virtude da
impossibilidade da prestação (cf. art.º 790.º, CC).
No caso da mora do credor (cf. art.º 813.º, CC), ocorre nesta situação que este último, sem
motivo justificado, recusa receber a prestação ou não pratica os actos necessários ao
cumprimento da obrigação, determinando a lei que, neste caso, a obrigação genérica se
concentra, correndo o risco de perecimento destas coisas por conta do credor, entendendo
Menezes Leitão que esta regra especial se trata de uma ficção estabelecida para estender a
aplicação às obrigações genéricas do regime do art.º 814.º, n.º 1, fazendo recair sobre o
credor em mora os riscos do perecimento superveniente das coisas com que se dispunha a
prestar. No entanto, a obrigação permanece genérica se o devedor, perante a mora do
credor, proceder à consignação em depósito de coisas do mesmo género que não sejam
aquelas que o credor recusou, ninguém consideraria que a consignação não se fez em relação
à coisa devida (art.º 841.º, CC), pelo que se o credor posteriormente abandonar a sua
situação de mora, não pode recusar a entrega pelo devedor de outras coisas do mesmo
género que não sejam as inicialmente oferecidas.
No caso da promessa de envio referida no art.º 797.º, inexiste, para Menezes Leitão, uma
hipótese sequer de concentração da obrigação genérica antes do cumprimento. A norma em
análise não se refere às dívidas em que o devedor se compromete a levar ou a entregar a
coisa até ao local do cumprimento, suportando até então o risco do transporte, referindo-se
apenas às denominadas dívidas de enviou ou de remessa, em que o devedor não se
compromete a transportar a coisa até ao local do cumprimento, mas apenas a, no local do
cumprimento, colocar a coisa num meio de transporte destinado a outro local. Assim, essas
obrigações cumprem-se no próprio local de envio ou da remessa, ficando a obrigação extinta
nesse momento em virtude do cumprimento. O facto do credor ainda não ter recebido a
prestação é irrelevante, uma vez que o cumprimento pode ser realizado a terceiro se assim
tiver sido estipulado ou consentido pelo credor (cf. art.º 770.º, al a), CC).
Assim, para Menezes Leitão, a concentração da obrigação genérica, quando a escolha
compete ao devedor, apenas se dá no momento do cumprimento, podendo até lá o devedor
revogar escolhas que anteriormente tenha realizado, apenas não sucedendo tal se este tiver
perdido a possibilidade material de o fazer (perecimento das restantes coisas do género), ou
se a escolha tiver sido aceite, o que significa que as partes por acordo modificaram a
obrigação, transformando-a em específica. Inexistem, assim e para este Autor, desvios à
consagração da teoria da entrega no art.º 540.p, como soluções próximas da teoria da
escolha ou do envio, pois a mora do credor não deve impedir a realização de nova escolha
pelo devedor até ao cumprimento e na promessa de envio referida no art.º 797.º é de
verdadeiro cumprimento que se trata.
No entanto, quando as escolhas competem ao credor ou a terceiro, a lei adopta plenamente
a teoria da escolha, sendo esta irrevogável (art.º 542.º, CC). Portanto, a escolha pelo credor
ou terceiro concentra imediatamente a obrigação, desde que declarada respectivamente ao
credor ou a ambas as partes. Se, no entanto, a escolha couber ao credor e este não a fizer
dentro do prazo estabelecido ou daquele que para o efeito que for fixado pelo devedor, é a
este que a escolha passa a competir (art.º 542.º, n.º 2, CC), passando, neste caso, a ser
aplicáveis as disposições dos artigos 540.º e 541.º, como se a escolha coubesse ao devedor
desde o início.
Obrigações alternativas

As obrigações alternativas consistem também em modalidades de prestações


indeterminadas, caracterizando-se por existirem duas ou mais prestações de natureza
diferente, mas em que o devedor se exonera com a mera realização de uma delas que, por
escolha, vier a ser designada (art.º 543.º, CC). As prestações encontram-se em alternativa,
mas apenas uma delas é concretizável através de uma escolha. Na falta de determinação em
contrário, a escolha pertence ao devedor (art.º 543.º, n.º 2, CC), podendo também competir
ao credor ou a terceiro (cf. art.º 549.º, CC). Assim, apesar de existirem duas ou mais
prestações, o devedor tem apenas uma obrigação, e o credor apenas um direito de crédito.
Só constituem obrigações alternativas aquelas que pressupõem uma escolha entre
prestações, não sendo permitido, no entanto e mesmo que se tratem de prestações
divisíveis, que aquele a quem incumbe a escolha decida realizá-la entre parte de uma
prestação ou parte de outra (cf. art.º 544.º, CC).
Menezes Leitão, Antunes Varela, Romano Martínez e Morais Carvalho entendem que o
momento da determinação, quando competindo ao devedor, desde que conhecida da outra
parte, ocorre durante a escolha desse último, coincidindo com a eficácia real e consequente
transferência do risco. Menezes Cordeiro diverge, defendendo a aplicação analógica do
regime da concentração das obrigações genéricas às obrigações alternativas. A escolha do
devedor é irrevogável, uma vez que, após a realização da escolha, ele só se exonera
efectuando a prestação escolhida, sendo esta igualmente irrevogável quando competir ao
credor ou a terceiro, por força da remissão do art.º 549.º para o art.º 542.º.
Se, porém, alguma das partes não realizar a escolha no tempo devido, a lei prevê a
devolução dessa faculdade à outra parte (cf. art.º 542.º, n.º 2 ex vi do art.º 549.º e art.º 548.º,
CC), ainda que sob critérios diferentes. Se a escolha couber ao credor, e ele não a fizer no
prazo estipulado ou naquele que para o efeito for fixado pelo devedor, a escolha passa
imediatamente a competir a este. Se, porém, a escolha couber ao devedor, a devolução da
escolha ao credor ocorre apenas na fase de execução (art.º 714.º, CPC), tendo o credor, na
fase declarativa, que obter uma condenação em alternativa através da formulação de um
pedido alternativo (art.º 553.º, CPC). Até à realização da escolha pelo devedor, o direito do
credor não incide sobre ambas as prestações isoladamente consideradas, sendo antes um
direito a receber em alternativa uma ou outra das prestações, pelo que a lei não lhe permite
exigir do devedor apenas uma das prestações antes de, na acção executiva, se lhe devolver
o direito de escolha.
As obrigações alternativas têm um regime especial em sede de impossibilidade da
prestação, quando esta se verifica antes da escolha ter ocorrido, devendo distinguir-se entre
impossibilidade casual, impossibilidade imputável ao devedor e impossibilidade imputável
ao credor.
A impossibilidade casual, que é aquela que não é imputável a nenhuma das partes, leva a
que, estando a prestação indeterminada, por não ter ocorrido a escolha, a propriedade sobre
qualquer dos objectos da obrigação alternativa ainda não se transmitiu para o credor, pelo
que o risco pelo perecimento casual de algumas prestações corre por conta do devedor (art.º
545.º, CC). Em virtude da impossibilidade casual ocorre um fenómeno de redução da
obrigação alternativa à prestação que ainda seja possível.
Se a responsabilidade for imputável ao devedor, e a escolha lhe competir, ele deve efectuar
uma das prestações possíveis (art.º 546.º, CC). Se a escolha competir ao credor, ele pode
exigir uma das prestações possíveis, ou exigir indemnização pelos danos de não ter sido
realizada a prestação que se tornou impossível, ou resolver o contrato nos termos gerais.
Se a responsabilidade for imputável ao credor, e se a escolha lhe pertencer, considera-se a
obrigação como cumprida (art.º 547.º, CC). Se a escolha pertencer ao devedor, a obrigação
também deve ser considerada como cumprida, a menos que o devedor prefira realizar outra
prestação e ser indemnizado dos danos que haja sofrido.
Se a impossibilidade for imputável a uma das partes e a escolha caber a terceiro, Antunes
Varela defende que, sendo a impossibilidade imputável ao devedor (art.º 546.º, CC), caberá
ao terceiro escolher entre realizar uma das prestações possíveis ou pedir indemnização pelos
danos resultantes de não ter sido realizada a prestação que se tornou impossível. O terceiro
não pode, porém, optar pela resolução do contrato, dado que se trata de uma faculdade que
é atribuída em exclusivo ao credor. Quando a responsabilidade for imputável ao credor (art.º
547.º, CC), pertencendo a escolha a terceiro, caberá igualmente ao terceiro escolher se
considera cumprida a obrigação ou determinar ao devedor que realize a prestação possível e
peça indemnização pelos danos resultantes de não ter sido realizada a prestação que se
tornou impossível.
No entanto, Menezes Cordeiro entende que quando a obrigação se torna impossível, o
credor perde a faculdade de realizar a escolha, dado que ele só pode escolher entre duas
prestações possíveis e não entre uma prestação e uma indemnização. Portanto, se a escolha
pertencer a terceiro e a responsabilidade for imputável ao devedor, deve passar a ser o credor
que escolherá entre exigir a prestação possível, a indemnização ou a resolução do contrato
(art.º 546.º, CC). Se a escolha pertencer a terceiro e a responsabilidade for imputável ao
credor, deverá passar a ser o devedor a escolher entre considerar cumprida a obrigação ou
realizar outra prestação, exigindo simultaneamente uma indemnização (art.º 547.º, CC).
Menezes Leitão subscreve a posição de Menezes Cordeiro, entendendo que quando as
partes, ao abrigo da sua autonomia privada, deferem a escolha a terceiro, fazem-nos
exclusivamente para efeitos de determinação da prestação (art.º 400.º, CC) e não para
exercer os direitos que lhes competem quando a outra parte culposamente impossibilita a
realização da prestação.
As obrigações alternativas representam modalidades de obrigações com prestação
indeterminada, não se confundindo, por isso, com as obrigações com faculdade alternativa,
nas quais a prestação já se encontra determinada, mas dá-se ao devedor a faculdade de
substituir o objecto da prestação por outro.

Obrigações pecuniárias

As obrigações pecuniárias correspondem às obrigações que têm dinheiro por objecto,


visando proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies monetárias possuam,
sendo estes dois requisitos cumulativos. Se a obrigação visar apenas proporcionar ao credor
um valor económico (de um determinado objecto ou de uma componente do património),
não tendo assim por objecto a entrega de quantias em dinheiro, não se tratará de uma
obrigação pecuniária, mas sim de uma dívida de valor, a qual se caracteriza por ter um valor
fixo, que não sofre alteração em caso de desvalorização da moeda, não suportando assim o
credor o risco correspondente. No entanto, a dívida de valor terá, em certo momento, que
ser liquidada em dinheiro, pelo que nesse momento se converterá em obrigação pecuniária.
O dinheiro, objecto dessas obrigações, assegura na ordem económica simultaneamente a
função de meio geral de trocas, meio legal de pagamento e unidade de conta. A função de
meio geral de trocas advém do facto de o dinheiro, em função do seu poder de compra, ser
utilizado para efeitos de aquisição e alienação de bens e serviços, funcionando como meio
intermediador da circulação desses bens. A função de meio legal de pagamento resultado do
facto de, por força de uma disposição legal, ser atribuída eficácia liberatória a entrega de
espécies monetárias em pagamento das obrigações pecuniárias, vinculando-se assim o
credor à sua aceitação. A função de unidade de conta resulta do facto de, sendo o valor da
moeda relativamente estável, pode ser utilizado como medida do valor dos bens e serviços
de qualquer tipo.
Segundo a sistematização do Código Civil, as obrigações pecuniárias podem dividir-se em
três modalidades:
a. Obrigações de quantidade;
b. Obrigações em moeda específica;
c. Obrigações em moeda estrangeira.
As obrigações de quantidade correspondem à categoria mais importante de obrigações
pecuniárias, consistindo naquelas obrigações que têm por objecto uma quantidade de
moeda com curso legal no país.
O regime das obrigações de quantidade consta do art.º 550.º:
“O cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data
em que for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salva estipulação em
contrário.”
Deste preceito resulta a referência a dois princípios reguladores do regime das obrigações
pecuniárias de quantidade:
i. O princípio do curso legal;
ii. O princípio do nominalismo monetário.
O princípio do curso legal significa que o cumprimento das obrigações pecuniárias se deve
realizar apenas com espécies monetárias a que o Estado conheça função liberatória genérica,
cuja aceitação é obrigatória para os particulares. Assim, a obrigação pecuniária de
quantidade tem sempre por objecto uma quantia de unidades monetárias, devendo o
cumprimento ser realizado com espécies (moedas ou notas) que, nesse momento, tenham
curso legal, i.e., que possam desempenhar a função de entrega de dinheiro que consiste em
permitir ao credor a recepção de um valor correspondente às espécies monetárias, em
virtude da susceptibilidade do seu uso enquanto instrumento geral de troca.
Dogmaticamente, as obrigações pecuniárias de quantidade consistem em obrigações
genéricas, sujeitas ao regime respectivo, mas o género de referência toma por base todo o
universo da moeda com curso legal no país. Disto decorre a impossibilidade da extinção do
género referida no art.º 541.º, não ficando o devedor liberado pelo facto de não possuir
dinheiro para efectuar o pagamento, não sendo causa extintiva da obrigação a
impossibilidade económica do devedor, dado o facto de enquanto existir moeda com curso
legal subsistir o género acordado para o pagamento.
Outro princípio essencial do regime das obrigações pecuniárias consiste no princípio do
nominalismo monetário, segundo o qual se deve tomar em consideração somente o valor
nominal da moeda, independentemente de qual seja o valor de troca no momento do
cumprimento (art.º 550.º, CC), pelo que uma obrigação pecuniária de quantidade com um
longo prazo de cumprimento acarreta um risco de desvalorização da moeda, com a inerente
perda do seu poder de compra, e que esse risco é suportado pelo credor, já que o devedor se
libera com a simples entrega da quantia monetária convencionada.
No entanto, o princípio do nominalismo monetário sofre algumas excepções, podendo as
partes convencionarem coisa diferente, dada a supletividade do art.º 550.º, e ocorrendo que,
em alguns caos, a lei prevê a actualização das obrigações pecuniárias, sendo tal normal nos
casos em que se tratam de prestações periódicas ou em certas obrigações restitutórias, em
que a restituição ocorra passado um grande lapso de tempo.
O art.º 551.º determina que “quando a lei permitir a actualização das prestações pecuniárias,
por virtude das flutuações do valor da moeda, atender-se-á, na falta de outro critério legal,
aos índices dos preços, de modo a restabelecer, entre a prestação e a quantidade de
mercadorias a que equivale, a relação existente na data em que a obrigação se constituiu”.
Portanto, adopta-se preferencialmente o critério do índice dos preços, para efeitos de
actualização das obrigações, quando esta é legalmente permitida. No caso de actualização
convencional das obrigações pecuniárias, caberá naturalmente às partes fixar o critério de
actualização.

As obrigações em moeda específica correspondem a situações em que a obrigação


pecuniária é convencionalmente limitada a espécies metálicas ou ao valor delas, afastando-
se assim por via contratual a possibilidade do pagamento em notas. O legislador, apesar do
princípio do curso legal, não excluiu a possibilidade de as partes convencionarem que o
cumprimento se fará em moeda específica (art.º 552.º, CC), permitindo assegurar a validade
dessas cláusulas, sempre que a lei não as proíba.
O legislador português distingue no art.º 552.º entre dois tipos de obrigações em moeda
específica:
i. As obrigações em certa espécie monetária;
ii. As obrigações em valor de uma espécie monetária.
A verificação de uma ou outra destas situações depende de ter sido ou não estipulado
igualmente um quantitativo expresso em moeda corrente. Se não for estipulado um
quantitativo expresso em moeda corrente considera-se que a obrigação tem que ser
efectuada na espécie monetária estipulada, desde que ela exista, ainda que tenha variado de
valor após a data em que a obrigação foi constituída (art.º 553.º, CC).
Se for estipulado um quantitativo expresso em moeda corrente, a estipulação do
pagamento em moeda específica, é considerada apenas como pretendendo estabelecer
uma vinculação ao valor corrente que a moeda ou moedas do metal específico tinham à data
da estipulação (art.º 554.º, CC).

As obrigações em moeda estrangeira ou obrigações valutárias são aquelas em que a


prestação é estipulada em relação a espécies monetárias que têm curso legal apenas no
estrangeiro.
A Doutrina distingue, no tocante às obrigações valutárias, entre obrigações valutárias
próprias ou puras e obrigações valutárias impróprias ou impuras. Nas primeiras verifica-se
que o próprio cumprimento da obrigação só pode ser realizado em moeda estrangeira, não
podendo o credor exigir o pagamento em moeda nacional nem o devedor entregar esta
moeda. Nas obrigações valutárias impróprias, a estipulação da moeda estrangeira funciona
apenas como unidade de referência para determinar, através do câmbio de determinada
data, a quantidade de moeda nacional devida. Neste caso, o cumprimento terá
necessariamente que ser realizado em moeda nacional.
O art.º 558.º vem, porém, consagrar, a título supletivo, uma categoria de obrigações
valutárias intermédias em relação a esta bipartição, sendo designada pela Doutrina de
obrigação valutária mista, consistindo esta na situação de ser estipulado o cumprimento em
espécies monetárias que possuem curso legal apenas no estrangeiro, mas admitindo-se a
possibilidade de o devedor realizar o pagamento na moeda nacional com base no câmbio da
data de cumprimento. Esta possibilidade é, no entanto, restrita ao devedor, constituindo,
por isso, uma obrigação com faculdade alternativa, já que o credor apenas pode exigir o
cumprimento na moeda estipulada.
Se o credor entrar em mora, o devedor tem ainda a opção de realizar o cumprimento de
acordo com o câmbio da data em que a mora se deu (art.º 558.º, n.º 2, CC), sendo-lhe assim
conferida a possibilidade de por essa via impedir a aplicação da diferença cambial
desfavorável que poderia resultar da mora do credor. Se, pelo contrário, essa diferença
cambial for favorável, naturalmente que o devedor não é obrigado a fazer essa opção, uma
vez que o credor deve suportar todas as consequências da sua mora, mesmo que se traduzam
num benefício para o devedor.
A lei não regula o caso simétrico de ser o devedor a entrar em mora neste tipo de obrigações,
sendo que Menezes Leitão entende que caberá ao devedor indemnizar o credor por todos os
prejuízos sofridos, devendo a indemnização abranger não apenas a eventual diferença
cambial desfavorável, mas também os correspondentes juros de mora (ex vi art.º 804.º, n.º
2, CC). Os juros corresponderão à taxa legal da moeda em causa ou à taxa de mercado,
quando esta não exista, não ficando, no entanto, o credor impedido de reclamar danos
superiores.

Obrigações de juros

As obrigações de juros correspondem igualmente a uma modalidade específica de


obrigações, as quais se caracterizam por corresponderem à remuneração da cedência ou do
diferimento da entrega de coisas fungíveis (capital) por um certo lapso de tempo. A
obrigação de juros pressupõe assim uma obrigação de capital, sem a qual não se pode
constituir e tem assim o seu conteúdo e extensão delimitados em função do tempo,
tratando-se, portanto, de uma prestação duradoura periódica. Por este motivo, a lei
caracteriza os juros como frutos civis (art.º 212.º, n.º 2, CC), uma vez que são frutos das coisas
fungíveis, produzidos periodicamente em virtude de uma relação jurídica. Essa relação
jurídica consiste, neste caso, na cedência das coisas fungíveis com obrigação de restituição
de outro tanto do mesmo género ou no diferimento da sua entrega, sendo o juro calculado
em função do lapso de tempo correspondente à utilização do capital. Os juros representam
assim uma prestação devida como compensação ou indemnização pela privação temporária
de uma quantidade de coisas fungíveis denominada capital e pelo risco de reembolso desta.
A obrigação de juros aparece, por isso, como uma obrigação que se constitui tendo como
referência uma outra obrigação (a obrigação de entrega ou restituição do capital),
constituindo economicamente um rendimento desse mesmo capital. Tratam-se, no entanto,
de obrigações distintas, já que a partir do momento em que se constitui, o crédito de juros
adquire autonomia em relação ao crédito de capital, podendo qualquer deles ser cedido ou
extinguir-se sem o outro (art.º 561.º, CC).
É possível distinguir-se entre juros legais e convencionais, sendo que os juros legais são
aplicáveis sempre que haja normas legais que determinem a atribuição de juros em
consequência do diferimento na realização da prestação, funcionando ainda supletivamente
sempre que as partes estipulem a atribuição de juros sem determinarem a sua taxa ou
quantitativo. A taxa de juros legais encontra-se fixa em 4% (Port. n.º 291/2003, de 8 de Abril).
Pelo contrário, os juros convencionais são aqueles em que a sua taxa ou quantitativo é
estipulada pelas partes. No entanto, a lei limita a liberdade de estipulação nesta matéria,
qualificando como usurários quaisquer juros anuais que excedam os juros legais acima de 3%
ou 5%, conforme exista ou não garantia real (art.os 1146.º e 559.º-A, CC), sendo apenas
permitida a cobrança de juros superiores se se tratar de uma cláusula penal moratória, caso
em que esses limites são respectivamente elevados para 7% e 9% (art.º 1146.º, n.º 2, CC).
Portanto, as partes são impedidas de estipular juros que ultrapassem esses limites e, caso o
façam, a lei determina a fixação dos juros nos montantes máximos legalmente permitidos,
ainda que tivesse sido outra a vontade dos contraentes.
Pode distinguir-se entre juros remuneratórios, moratórios e indemnizatórios. Os juros
remuneratórios têm uma finalidade remuneratória, correspondente ao preço do
empréstimo do dinheiro. O credor priva-se do capital por tê-lo cedido ao devedor por meio
de mútuos, exigindo uma remuneração por essa cedência (art.º 1145.º, n.º 1, CC). Os juros
compensatórios destinam-se a proporcionar ao credor um pagamento que compense uma
temporária privação de capital, que ele não deveria ter suportado. Os juros moratórios têm
uma natureza indemnizatória dos danos causados pela mora, visando recompensar o credor
pelos prejuízos sofridos, em virtude do retardamento no cumprimento da obrigação pelo
devedor (art.º 806.º, CC). Os juros indemnizatórios são aqueles que se destinam a
indemnizar os danos sofridos por outro facto praticado pelo devedor.
Nas obrigações de juros é proibido o anatocismo, i.e., a cobrança de juros sobre juros.
Portanto, a lei consagra a regra de que o juro não vence juros, a menos que haja convenção
posterior ao vencimento, ou seja efectuada uma notificação judicial ao devedor para
capitalizar os juros ou proceder ao seu pagamento, sob pena de capitalização (art.º 560.º, n.º
1, CC). Apenas nestes dois casos ocorre a capitalização de juros e, mesmo assim, apenas são
capitalizáveis os juros correspondentes ao período mínimo de um ano (art.º 560.º, n.º 2, CC).
A lei determina, porém, que não são aplicáveis estas restrições se forem contrárias a regras
ou usos particulares do comércio (art.º 560.º, n.º 3, CC).

Uma situação específica que pode ocorrer nas obrigações respeita à possibilidade de
indeterminação do credor, podendo este não ficar determinado no momento em que a
obrigação é constituída, embora deva ser determinável, sob pena de nulidade do negócio
jurídico de que resulta a obrigação (art.º 511.º, CC). No entanto, o devedor é
obrigatoriamente determinado no momento em que a obrigação é constituída.
A indeterminação temporária do devedor pode resultar de se aguardar a verificação de um
facto futuro e incerto, ou em virtude de a ligação entre o credor e a relação obrigacional se
apresentar como indirecta ou mediata, sendo essa qualidade determinada através de uma
relação de natureza diferente.

Obrigações plurais

A definição de obrigação do art.º 397.º reporta-se, em bom rigor, às obrigações singulares,


na medida em que nela apenas se menciona um credor e um devedor. No entanto, a
obrigação pode também constituir-se abrangendo uma vinculação de várias pessoas para
com outra (pluralidade passiva), ou uma vinculação de uma pessoa para com outras
(pluralidade activa), ou ainda de várias pessoas para com outras (pluralidade mista). Em
todas estas situações o objecto da obrigação – a realização da prestação – pode ser o mesmo,
mas varia o número de pessoas que se vinculam a essa conduta ou que tem o direito de a
exigir.
Portanto, a obrigação deve ser classificada consoante o número de sujeitos da relação
obrigacional. Se a obrigação abranger apenas dois sujeitos (o credor e o devedor), fala-se em
obrigação singular. Se abranger mais que dois sujeitos, tendo, assim, uma pluralidade de
credores ou uma pluralidade de devedores, fala-se em obrigação plural.
As obrigações plurais colocam o problema de determinar como se processa a contribuição
dos diversos devedores para a realização da prestação a que estão vinculados e em que
termos pode cada um dos credores exigir a prestação.
Nas obrigações conjuntas ou parciárias, cada um dos devedores só está vinculado a prestar
ao credor ou credores a sua parte na prestação e cada um dos credores só pode exigir do
devedor ou devedores a parte que lhe cabe. A prestação é, assim, realizada por partes,
prestando cada um dos devedores a parte a que se vinculou e não recebendo cada um dos
credores mais do que aquilo que lhe compete.
Nas obrigações parciárias cada credor só pode exigir a sua parte no crédito e cada devedor
só tem de prestar a sua parte na dívida.

As obrigações solidárias encontram-se previstas nos artigos 512.º e seguintes,


caracterizando-se pelo facto de nelas qualquer um dos devedores estar obrigado perante o
credor a realizar a prestação integral (solidariedade passiva) ou ainda por qualquer um dos
credores poder exigir do devedor a prestação integral (solidariedade activa) ou ainda pelo
facto de qualquer um dos credores poder exigir a qualquer um dos devedores a prestação
devida por todos os devedores a todos os credores (solidariedade mista).
Na solidariedade passiva, a realização da prestação integral por um dos devedores libera
todos os outros relativamente ao credor (art.º 512.º, CC), adquirindo depois esse devedor um
direito de regresso sobre os outros devedores para exigir a parte que lhes compete na
obrigação (art.º 524.º, CC). Na solidariedade activa, a realização integral da prestação a um
dos credores libera o devedor no confronto com todos os credores (art.º 512.º, CC), embora
o credor que recebeu mais do que lhe compete esteja obrigado a satisfazer aos restantes a
parte que lhes cabe no crédito comum (art.º 533.º, CC). Na solidariedade mista, concorrem
simultaneamente as duas situações, pelo que a realização integral da prestação por um dos
devedores a um dos credores libera todos os devedores em relação a todos os credores.
Neste caso, o devedor que realizou a prestação tem um direito de regresso sobre os outros
devedores pela parte que a estes compete e o credor que recebeu a prestação está obrigado
a entregar aos restantes credores a parte que a estes compete.
Características da solidariedade são, assim, a identidade da prestação em relação a todos os
sujeitos da obrigação, a extensão integral do dever de prestar ou do direito à prestação em
relação respectivamente a todos os devedores ou credores, e o efeito extintivo comum da
obrigação caso se verifique a realização do cumprimento por um ou a apenas um deles.
A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das
partes (art.º 513.º, CC), pelo que se nada houver sido estipulado pelas partes nem resultar da
própria lei, a regra geral nas obrigações plurais é a da conjunção.

A solidariedade passiva tem diversas consequências em termos de regime, as quais podem


ser separadamente analisadas no âmbito das relações entre o credor e os diversos devedores
(relações externas) ou no âmbito das relações dos diversos devedores entre si (relações
internas).
No âmbito das relações externas, em relação ao credor, a solidariedade caracteriza-se, em
primeiro lugar, por uma maior eficácia do seu direito, que se pode exercer integralmente
contra qualquer um dos devedores (art.os 512.º, n.º 1, e 519.º, n.º 1, CC), não podendo estes,
uma vez demandados pela totalidade da dívida, vir invocar o benefício da divisão (art.º 518.º,
CC), tendo assim que satisfazer a prestação integral. No entanto, esta maior eficácia não se
traduz na possibilidade do credor repetir sucessivamente a pretensão perante os vários
devedores, pois a exigência da totalidade ou de parte da prestação a um dos devedores
impede o credor de exercer nessa parte o seu direito contra os restantes, excepto se houver
razão atendível, como a insolvência ou o risco de insolvência do demandado (art.º 519.º, n.º
1, in fine, CC). Se, porém, um dos devedores opuser eficazmente um meio de defesa pessoal,
este continua a poder reclamar dos outros a prestação integral (art.º 519.º, n.º 2, CC),
podendo, em qualquer caso, optar por demandar conjuntamente todos os devedores, caso
em que renuncia à solidariedade (art.º 517.º, CC). Admite-se também a possibilidade de o
credor renunciar à solidariedade apenas a favor de alguns devedores, caso em que conserva
o direito à prestação integral sobre os restantes (art.º 527.º, CC).
Relativamente aos devedores, a solidariedade caracteriza-se pelo facto da satisfação do
direito do credor, por cumprimento, dação em cumprimento, novação, consignação em
depósito ou compensação, mesmo que desencadeada apenas por um dos devedores,
exonerar igualmente os restantes (art.º 523.º, CC). Outras causas de extinção da obrigação,
que incidirem sobre a totalidade da dívida, como a impossibilidade objectiva da prestação
(art.º 790.º, CC), exoneram naturalmente todos os devedores. Se a dívida se extinguir apenas
em relação a um dos devedores, como ocorre na remissão concedida a apenas um dos
obrigados (art.º 864.º, n.º 1, CC), ou na confusão com a dívida deste (art.º 869.º, n.º 1, CC),
dá-se uma extinção parcial da obrigação limitada à parte daquele devedor. Se a prestação
vier a ser não cumprida por facto imputável a um dos devedores, todos eles são responsáveis
pelo seu valor, mas só o devedor ou devedores a quem o facto é imputável respondem pelos
danos acima desse valor (art.º 520.º, CC). Relativamente aos meios de defesa, o devedor,
quando demandado, por opor ao credor os meios de defesa que lhe são próprios e os que são
comuns aos outros devedores, mas não pode utilizar meios de defesa pessoais dos outros
devedores (art.º 514.º, n.º 1, CC).
Nas relações entre os devedores, a solidariedade caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo
facto de o devedor que satisfizer a prestação acima da parte que lhe competir adquirir um
direito de regresso sobre os outros devedores pela parte que a estes lhe compete (art.º 524.º,
CC). O direito do regresso do devedor que realizou a prestação é, assim, limitado à parte de
cada um dos outros devedores na obrigação comum, não se estendendo, portanto, o regime
da solidariedade às relações internas. No entanto, o devedor que pagou não suporta
integralmente o risco de insolvência ou de impossibilidade subjectiva de cumprimento de
cada um dos devedores, já que a lei prevê que nesses casos a quota-parte do devedor que
não cumpre é dividida pelos restantes, incluindo o credor de regresso e os devedores que
pelo credor hajam sido exonerados da obrigação ou do vínculo de solidariedade (art.º 526.º,
n.º 1, CC). Esse benefício de repartição deixa, porém, de aproveitar ao credor de regresso, se
foi por negligência sua que não lhe foi possível cobrar a parte do seu condevedor na
obrigação solidária (art.º 526.º, n.º 2, CC).
Os meios de defesa que cada um dos condevedores possuía em relação ao cumprimento da
obrigação, quer comuns, quer pessoais, são igualmente oponíveis ao credor de regresso
(art.º 525.º, n.º 1, CC), a menos que, sendo um meio comum de defesa, não tivesse sido
oportunamente utilizado por culpa desse devedor (art.º 525.º, n.º 2, CC). No tocante à
prescrição, esta é inoponível ao credor de regresso se, por não ter ela ainda decorrido
relativamente a esta, este vier a ser obrigado a cumprir a obrigação, apesar de prescritas as
obrigações dos outros condevedores (art.º 521.º, n.º 1, CC), sendo-lhe, no entanto, oponível
se o cumprimento da obrigação se verificar apenas em virtude de ele não ter invocado a
prescrição (art.º 521.º, n.º 2, CC).
Na solidariedade activa, o credor que exigir, por si só, a prestação integral, leva a que o
devedor se libere perante todos os credores com a realização da prestação a qualquer um
destes (art.º 512.º, n.º 1, in fine, CC). O devedor pode, aliás, escolher o credor solidário a quem
realizar a prestação, enquanto não tiver sido judicialmente citado por um credor cujo crédito
se encontre vencido (art.º 528.º, n.º 1, CC).
Relativamente ao devedor, a solidariedade caracteriza-se pelo facto de a satisfação do
direito de um dos credores, por cumprimento, dação em cumprimento, novação,
consignação em depósito ou compensação, exonerar igualmente o devedor perante os
restantes (art.º 532.º, CC). Outras causas de extinção da obrigação, que incidirem sobre a
totalidade da dívida, como a impossibilidade objectiva da prestação (art.º 790.º, CC)
exoneram naturalmente o devedor perante todos os credores. Se a dívida se extinguir apenas
em relação a um dos credores, como sucede na remissão concedida apenas por um dos
credores (art.º 864.º, n.º 3, CC), ou na confusão apenas com o crédito deste (art.º 869.º, n.º
2, CC), dá-se uma extinção parcial do crédito limitada à parte daquele credor. Já se a
prestação vier a ser não cumprida por facto imputável ao devedor a solidariedade mantém-
se em relação ao crédito da indemnização (art.º 529.º, n.º 1, CC). Se a impossibilidade da
prestação for imputável a um dos credores, fica o devedor exonerado, mas o credor solidário
é obrigado a indemnizar os restantes credores (art.º 529.º, n.º 2, CC). Relativamente aos
meios de defesa, o devedor, uma vez demandado, pode opor ao credor solidário os meios de
defesa que lhe respeitem e os que são comuns aos outros credores (art.º 514.º, n.º 2, CC),
mas não pode utilizar meios de defesa que respeitem exclusivamente a outros credores.
Nas relações entre credores, a solidariedade activa caracteriza-se pelo facto de o credor cujo
direito foi satisfeito além da parte que lhe competia na relação ter a obrigação de satisfazer
aos outros a parte que lhes cabe no crédito comum (art.º 533.º, CC), tratando-se se uma
espécie de direito de regresso activo dos outros credores sobre o credor que recebeu a
prestação. Presume-se a igualdade das partes dos credores na obrigação solidária, pelo que
a obrigação de regresso será cumprida em partes iguais (art.º 516.º, CC), salvo se os credores
forem titulares em termos diferentes, em que o regresso tomará em linha de conta essa
diferente repartição, ou que só um dos credores tenha o benefício do crédito. Neste último
caso, apenas esse credor poderá exercer o direito de regresso, o qual será realizado pela
totalidade, se prestação for realizada a outro credor, ou será excluído, se a prestação for
realizada a ele próprio.

Existem obrigações plurais que tem como objecto uma prestação indivisível, tratando-se,
neste caso, de obrigações plurais indivisíveis. Neste caso, “se a prestação for indivisível e
vários os devedores, só de todos eles pode o credor exigir o cumprimento da obrigação, salvo
se tiver sido estipulada a solidariedade ou esta resultar da lei” (art.º 535.º, CC). Portanto, a
prestação tem de ser exigida de todos os devedores simultaneamente.
Nas obrigações indivisíveis com pluralidade de devedores, extinguindo-se relativamente a
algum ou alguns dos obrigados, não inibe o credor de exigir a prestação dos restantes
obrigados, contanto que lhes entregue o valor da parte que cabia ao devedor ou devedores
exonerados (art.º 536.º, CC). Ou seja, apesar da indivisibilidade da prestação, o facto de ela
se extinguir relativamente a algum ou alguns dos devedores não acarreta necessariamente
a sua extinção integral, sendo admitido um acréscimo da responsabilidade dos restantes
obrigados, desde que seja previamente compensado por uma contraprestação de entrega
do valor da parte do devedor ou devedores exonerados.
Se ocorrer uma impossibilidade superveniente da prestação imputável a algum ou alguns
dos devedores, os restantes ficam exonerados (art.º 537.º, CC), devendo aquele ou aqueles à
qual esta é imputável ser sujeito à indemnização por impossibilidade culposa (art.º 801.º, n.º
1, CC). Relativamente aos restantes devedores, derivando a impossibilidade de uma causa
que não lhes é imputável, deverão ver extinta a sua obrigação (art.º 790.º, CC).
Se a obrigação for indivisível com pluralidade de credores, a lei refere que qualquer um deles
tem o direito de exigir a prestação por inteiro, mas que o devedor, enquanto não for
judicialmente citado, só relativamente a todos os credores em conjunto se pode exonerar
(art.º 538.º, CC). Segundo Menezes Cordeiro, este regime significa que a citação judicial do
devedor por um dos credores transforma a obrigação conjunta em solidária, apontando
Menezes Leitão para o facto de que a extinção da obrigação relativamente a algum ou alguns
dos credores implica a aplicação analógica do art.º 536.º, podendo os restantes credores
exigir a prestação do devedor apenas se lhe entregarem o valor da parte que cabia à parte do
crédito que se extinguiu.
As obrigações correais caracterizam-se por, embora havendo uma pluralidade de devedores
ou de credores, quer a obrigação quer o direito de crédito apresentam-se como unos, pelo
que, ao contrário das restantes obrigações plurais, o crédito não se pode extinguir apenas
em relação a um dos devedores, ou a um dos credores, extinguindo-se antes globalmente
sempre que ocorra uma circunstância extintiva que afecte um dos sujeitos da obrigação.
As obrigações disjuntas correspondem a obrigações de sujeito alternativo, ou seja, em que
existe uma pluralidade de devedores ou credores, mas apenas um virá, por escolha, a ser
designado sujeito da relação obrigacional. Ao contrário do que ocorre nas obrigações
alternativas, a escolha não se coloca neste caso em relação a várias prestações, mas em
relação aos sujeitos a obrigação, vindo posteriormente um de entre vários, a ser designado
como devedor ou credor.
As obrigações em mão comum correspondem a situações, em que apesar de ocorrer uma
pluralidade de partes da relação obrigacional, essa pluralidade resulta da pertença da
obrigação a um património de mão comum autonomizado do restante património das
partes, o que leva a que o vínculo se estabeleça de uma forma colectiva, onerando o conjunto
de devedores com o dever de prestar ou o conjunto de credores com o direito à prestação.

Classificação das Fontes das Obrigações

As obrigações podem resultar de diversos fenómenos, sendo denominado de fonte da


obrigação o facto jurídico de onde emerge a relação obrigacional.
O Código Civil não apresentou, dada a heterogeneidade de situações obrigacionais, uma
sistematização científica das fontes das obrigações, optando antes por efectuar uma sua
mera enumeração nos art.os 405.º e ss.:
i. Contratos (art.os 405.º e ss., CC);
ii. Negócios jurídicos unilaterais (art.os 457.º e ss., CC);
iii. Gestão de negócios (art.os 464.º e ss., CC);
iv. Enriquecimento sem causa (art.os 473.º e ss., CC);
v. Responsabilidade civil (art.os 483.º e ss., CC).
Nem todas as fontes das obrigações têm igual importância, sendo as mais importantes os
contratos e a responsabilidade civil, sendo as formas estatisticamente mais comuns de
surgimento de obrigações.
Em relação às restantes fontes, a lei portuguesa procurou restringir a aplicação de duas
delas, os negócios unilaterais e o enriquecimento sem causa, a situações excepcionais (cf.
art.os 457.º e 474.º, CC) e a gestão de negócios refere uma situação específica de verificação
rara (art.º 464.º, CC).
Menezes Cordeiro aponta para o facto do elenco tipificado no Código Civil não ser exaustivo,
enxameando por toda a ordem jurídica formas de constituição de obrigações que não se
podem reconduzir, com adequação dogmática, a nenhuma das cinco fontes básicas.

Os contratos – generalidades

Os negócios jurídicos costumam ser distinguidos em unilaterais, que são os que possuem
apenas uma parte, e contratos, que são os que possuem duas ou mais partes. Normalmente,
o contrato possui apenas duas partes, sendo, por isso, designado de negócio jurídico
bilateral, podendo, no entanto, ocorrer que o contrato tenha cariz multilateral quando tiver
mais que duas partes.
Na definição tradicional entende-se por parte, não uma pessoa, mas antes o titular de um
interesse, o que poderia implicar que duas ou mais pessoas constituíssem uma única parte,
quando tivessem interesses comuns. Daí a exigência de uma contraposição de interesses, na
autoria das declarações negociais, contraposição essa que seria resolvida através
precisamente da estipulação contratual. Portanto, o contrato consistiria, para Antunes
Varela, “num acordo vinculativo, assente sobre duas ou mais declarações de vontade (oferta
ou proposta, de um lado; aceitação do outro) contrapostas, mas perfeitamente
harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma regulamentação unitária de interesses”
ou que nele existe, segundo Almeida Costa, “a manifestação de duas ou mais vontades, com
conteúdos diversos, prosseguindo distintos interesses e fins, até opostos, mas que se
ajustam reciprocamente para a produção de um resultado unitário”.
No entanto, a classificação clássica das partes em função dos interesses foi criticada não
apenas por apelar a uma realidade extra-jurídica, mas também porque os vários
intervenientes num negócio unilateral podem ter interesses diversos, sem prejuízo da sua
posição comum.
Menezes Cordeiro vem propor, em alternativa, que a distinção entre negócios unilaterais e
contratos se baseia nos efeitos que venham a ser desencadeados, sendo que “nos negócios
unilaterais os efeitos não diferenciam as pessoas que eventualmente neles tenham
intervindo, pelo que tende neles a haver uma única pessoa, uma única declaração ou um
único interesse”. Pelo contrário, nos contratos “os efeitos diferenciam duas ou mais pessoas,
isto é: fazem surgir, a cargo de cada interveniente, regras próprias que devem ser cumpridas
e possam ser violadas independentemente umas das outras; em moldes formais, há mais
que uma parte; e em consequência, tendem a surgir várias declarações, várias pessoas e
vários interesses”.
Para Menezes Leitão, a distinção entre contratos e negócios jurídicos unilaterais reside no
facto do primeiro se assumir como o resultado de duas ou mais declarações negociais
contrapostas, mas integralmente concordantes entre si, de onde resulta uma unitária
estipulação de efeitos jurídicos, enquanto que os negócios jurídicos unilaterais produzem
efeitos apenas com uma declaração negocial.

Modalidades de contratos – classificações e tipologias

Os contratos têm uma enorme extensão, surgindo em praticamente todos os domínios do


jurídico, podendo ser objecto das mais diversas ordenações, em função de critérios de toda
a natureza.
Em Direito Civil, é comum apresentar-se classificações de negócios jurídicos e de
obrigações, podendo os primeiros ser:
i. Unilaterais e multilaterais ou contratos;
ii. Conjuntos e deliberações;
iii. Inter vivos e mortis causa;
iv. Reais quoad constitutionem e sujeitos a registo constitutivo;
v. Pessoais, obrigacionais e reais quoad effectum;
vi. Causais e abstractos;
vii. Típicos e atípicos e nominados e inominados;
viii. Onerosos e gratuitos;
ix. De administração e de disposição;
x. Parciários, de organização, de distribuição e aleatórios;
xi. Instrumentais, preparatórios e acessórios.
Nas obrigações, estas podem ser:
1. Quanto ao conteúdo, de entrega de coisa, de serviço, de abstenção e de organização;
2. Quanto aos vínculos, simples e complexas;
3. Quanto às partes, uni e plurilaterais;
4. Quanto à estrutura, absolutas, relativas e mistas;
5. Quanto à natureza obrigacional exclusiva, puras e combinadas, subordinadas e
subordinantes;
6. Quanto à previsão normativa ou social, típicas ou atípicas;
7. Quanto ao conhecimento prévio do conteúdo, determinadas e indeterminadas.

Contratos consensuais, formais e reais quoad constitutionem

Na tradição romana, a eficácia dos contratos consensuais era solo consensu, i.e., pelo mero
acordo entre as partes, fosse qual fosse o modo por que ele se manifestasse. No entanto, os
contratos reais exigiam a entrega da coisa visada.
Esta distinção tem, em regra, o seguinte conteúdo no Direito actual:
a. Os contratos consensuais não exigem qualquer forma específica, bastando que as
declarações de vontade que os integrem se manifestem de modo mutuamente
compreensível;
b. Os contratos formais requerem que as declarações em causa se exteriorizem por via
pré-determinada legalmente;
c. Os contratos reais (quoad constitutionem) implicam, além das declarações de vontade
(consensuais ou formais, dependendo do caso), a entrega de uma coisa.
O Direito romano era bastante formalista, sendo que este veio a regredir ao longo dos
tempos, mantendo-se, no entanto, em alguns negócios, devendo-se tal à solenidade, ligada
à vantagem de dar publicidade a certas ocorrências, à reflexão, promovida junto das partes,
à facilidade de prova, devida aos documentos e pelas memórias que fiquem dos actos
celebrados. No entanto, ainda que relevem as “razões justificativas” (art.os 221.º, n.º 2, e
238.º, n.º 2, CC), elas nem sempre são racionais, em virtude da sua dissociação com os
valores em jogo.
A regra geral é a de que, quando a lei nada disser, os contratos são consensuais (art.º 219.º,
CC), sendo esta norma entendida como uma extensão do princípio da autonomia privada.
A forma legal, ou seja, aquela que é exigida pela lei, para determinado negócio, é exigida
apenas para o cerne ou “núcleo contratual fundamental”, ficando as estipulações acessórias
incluídas nessa forma quando assumam uma delicadeza ou uma feição semelhante ao núcleo
(as “razões da exigência especial”, cfr. art.º 221.º, n.os 1 e 2, CC), aplicando-se a fortiori esta
regra a contratos subsequentes, modificativos ou extintivos do primeiro. Quando as
estipulações acessórias forem anteriores ao contrato ou dele contemporâneas, elas só valem
se se provar que correspondem à vontade das partes, no momento da contratação formal
(art.º 221.º, n.º 1, CC).
Quando forma for voluntária, ou seja, quando for adoptada pelos contratantes, embora
dispensada por lei e por convenção, as estipulações acessórias valem quando se mostre que
correspondem à vontade das partes (art.º 222.º, n.º 1, CC), sendo que o abandono da forma
convencional pode resultar, tacitamente, da conduta das partes com ela incompatível.
Quando a forma for convencional, ou seja, pactuada, pelas partes, em acordo a tanto
dirigido, as estipulações acessórias que não a observem não serão, em princípio, aplicáveis,
em virtude da presunção (ilidível, art.º 350.º, n.º 2, CC) de que as partes só por esse modo se
quiseram vincular.
No tocante aos contratos mistos que, no seu seio, alberguem elementos contratuais sujeitos
a forma solene, ocorre que a “parcela” não submetida à forma, seja ela legal, voluntária ou
convencional, seja considerada, para efeito das competentes regras, como “estipulação
acessória”. No entanto, quando do conjunto do contrato, pela sua natureza, não seja nele
possível o discernimento de várias áreas, a exigência de forma para uma delas contamina o
conjunto.

Contratos nominados e inominados

O contrato nominado tem uma designação própria (um nomen ou nome), fixado na lei. O
inominado não a tem: ou dispõe de uma denominação habitual, na gíria do sector ou entre
os juristas, ou é referenciado através de perífrases.
Nos seus contratos, as partes recorrem, geralmente, a denominações. O uso de um nomen
comum pode significar a vontade de ambas de remeter para o correspondente regime. Será,
no entanto, necessária uma verificação casuística, recorrendo às regras da interpretação,
prevalecendo o regime, de todo o modo, sobre as (meras) qualificações das partes, as quais
podem estar erradas.

Contratos típicos e atípicos

São contratos típicos aqueles cujas cláusulas nucleares constem da lei, sucedendo tal
normalmente em torno de um nomen iuris, pelo que os contratos típicos tendem a ser
nominados. O tipo é, assim, o núcleo legalmente regulado.
Os contratos atípicos, pelo contrário, resultam do exercício da autonomia privada, sendo o
tipo, por seu turno, o conjunto concatenado das regras legais aplicáveis ao contrato visado,
o qual apresenta uma lógica interna.

A presença de tipos contratuais é geralmente explicada por razões histórico-culturais,


tratando-se de acervos estratificados que se vieram a apurar ao longo dos séculos. No
entanto, a densidade reguladora dos tipos varia substancialmente.
Por vezes, os tipos contratuais visam um determinado fim, sendo tipos funcionais,
essencialmente entretecidos para a sua prossecução. Noutros casos, o tipo apenas propõe
um edifício contratual, que as partes poderão, depois, destinar ao que lhes convenha, sendo
um tipo formal. A liberdade das partes permite, em regra, que um tipo funcional seja usado
fora da função típica.

Os tipos contratuais apresentam três vantagens:


i. Fixam o regime mais habitual, a nível supletivo, poupando às partes a necessidade
de desenvolver um articulado mais completo, o que seria sempre arriscado e
oneroso;
ii. Estabelecem o sistema de maior equilíbrio para regular os interesses em
presença, exprimindo, em regra, soluções antigas, aperfeiçoadas ao longo dos
séculos e, nessa medida, de maior justiça e harmonia;
iii. Facilitam a intervenção do Estado, quando se trate de fixar regimes imperativos
para vectores sensíveis ou de proibir concretas soluções que, historicamente,
tenham sido isoladas como nocivas.
De qualquer forma e salvo a existência de regras imperativas, as partes podem alterar as
composições dadas pelos tipos legais ou juntar, num contrato, elementos característicos de
dois ou mais tipos (art.º 405.º, CC), tendo-se, neste último caso, contratos mistos.

A par dos tipos contratuais legais, tem-se, ainda, tipos sociais, ou seja, encadeamentos de
cláusulas habitualmente praticadas em determinados sectores, em regra dotados de
designação própria e que, mau grado a não formalização em lei, traduzem composições
equilibradas e experimentadas. Não obstante a ausência de regulação pelo legislador, o tipo
social pode funcionar em moldes paralelos ao tipo legal, evitando este, às partes, o terem de
se repetir em lugares comuns, ao mesmo tempo que afeiçoa as soluções historicamente mais
equilibradas.
Os tipos sociais são, com frequência, alvo de pequenas codificações, feitas em cláusulas
contratuais gerais, havendo, então, que proceder ao seu controlo material através da LCCG.

Contratos obrigacionais e reais quoad effectum

Os contratos obrigacionais apenas produzem efeitos no plano das obrigações, enquanto que
os contratos reais quoad effectum constituem, modificam ou extinguem direitos reais.
Os contratos reais quoad effectum situam-se, em regra, na jurisdição da compra e venda, da
doação, e, em alguns casos, da sociedade. Os contratos com eficácia real quoad effectum
tendem a ser mais formais e a apresentar uma maior rigidez em virtude de modificarem
situações jurídicas reais, sujeitas a uma tipicidade legal.
Nada impede às partes de inserirem, num contrato, elementos obrigacionais e reais quoad
effectum.

Contratos comuns e especiais

O contrato comum estabelece uma regulação básica, de âmbito genérico, sobre a qual se
pode firmar uma regulação mais especializada, em função de interesses ou vectores
sectoriais, tratando-se, nesse caso, de um contrato especial.
A duplicação de contratos, em comuns e especiais, é de regra quando exista um Direito
comercial autónomo, dado que todo este será Direito privado especial. A autonomização de
algumas províncias comerciais poderá também ditar o surgimento de novas especialidades.
No entanto, a duplicação de contratos em comum e especial também ocorre dentro do
Direito civil.

Contratos sinalagmáticos e não-sinalagmáticos

Os contratos são sinalagmáticos quando impliquem prestações recíprocas, de tal modo a


que as partes se apresentem, simultaneamente, como credora e devedora uma da outra.
Pelo prisma de cada uma delas, poder-se-á falar em prestação e contraprestação, sendo o
sinalagma a relação de reciprocidade que, entre ambas, se estabeleça, v.g. contrato de
compra e venda.
Nos contratos não-sinalagmáticos, falta essa reciprocidade de prestações, v.g. contrato de
doação.

Dentro dos contratos sinalagmáticos, é possível distinguir-se:


i. O sinalagma genético;
ii. O sinalagma funcional.
O sinalagma genético manifesta-se aquando da conclusão do contrato, traduzindo a
projecção de reciprocidade que, nas partes, as leva a pretender aquele contrato. O sinalagma
funcional opera durante toda a vida do contrato, sendo perceptível nas obrigações
duradouras, em que uma das prestações vai sendo produzida para que a contraprestação
seja recebida.
Esta contraposição manifesta-se, pelo menos tendencialmente, no regime. Existindo mero
sinalagma genético, o incumprimento, por uma das partes, pode não justificar a resolução
(art.º 886.º, CC). No entanto, se o sinalagma for funcional, a resolução opera (art.º 801.º, n.º
1, CC), funcionando a excepção de não-cumprimento quando não existam prazos diferentes,
o que constitui um sintoma de funcionalidade, no sinalagma subjacente (art.º 428.º, n.º 1,
CC).
Como figura intermédia entre o sinalagma e o não-sinalagma, encontra-se o sinalagma
imperfeito, o qual se reporta a contratos que, sendo geneticamente não-sinalagmáticos,
poderão, no seu funcionamento, ser alvo do surgimento de prestações recíprocas.

A sinalagmaticidade dá azo ao instituto da excepção do não-cumprimento do contrato


(art.os 428.º e ss., CC), interferindo noutros, como a resolução por incumprimento (art.os 432.º
a 436.º e 801.º, n.º 2, CC) ou por impossibilidade superveniente (art.º 795.º, n.º 1, CC). Esta
tem ainda um papel na estrutura teleológica do contrato e, daí, no tema da equivalência e
das suas perturbações.

Contratos monovinculantes e bivinculantes

Num contrato ocorre, geralmente, a produção de efeitos perante as duas partes, as quais
devem respeitá-los. Tal ocorre mesmo nos contratos gratuitos, v.g. doação, em que as partes
ficam envolvidas em prestações secundárias e deveres acessórios.
Em certos casos, todavia, apenas uma das partes fica vinculada, dispondo a outra do direito
potestativo de desencadear, para ambas os efeitos contratuais, v.g. “promessa unilateral”
(art.º 411.º, CC).
Os contratos monovinculantes são claramente diferentes dos não-sinalagmáticos, os quais
fixam um regime relevante entre as partes, sem inserir, uma delas, na posição potestativa de
tudo desencadear. Ocorre também que um contrato sinalagmático pode depender da mera
vontade de uma das partes, v.g. opção de compra.
No entanto, Menezes Leitão entende que é impossível a autonomização de uma
classificação dos contratos em monovinculantes ou bivinculantes, entendendo este Autor
que “dizer que só uma das partes tem uma obrigação ou dizer que só uma das partes está
vinculada é, no fundo, dizer exactamente a mesma coisa”.

Contratos onerosos e gratuitos

Um contrato é oneroso quando implique esforços económicos para ambas as partes, em


simultâneo e com vantagens correlativas, sendo gratuito quando cada uma das partes dele
retire tão-só vantagens ou sacrifícios.
O caso paradigmático de um contrato oneroso é a compra e venda, sendo a sua contraparte
gratuita a doação. No entanto, existem contratos que podem surgir como onerosos ou
gratuitos conforme a estipulação das partes.
Da natureza gratuita ou onerosa dos contratos deriva a aplicação de múltiplas regras
diferenciadas, contando-se, a par das que se reportam aos respectivos tipos, as relativas aos
pressupostos, à interpretação e aos casos de impugnação.

Nos contratos gratuitos, o empobrecimento do património de uma das partes corresponde,


em regra, ao enriquecimento do património da outra. No entanto, tal regra geral tem
excepções, como verificado pelo caso da chamada doação onerosa, podendo ainda ocorrer
que as partes contratantes, ao abrigo da sua autonomia privada, componham um contrato
misto que compreenda uma parte gratuita e outra onerosa.

Menezes Cordeiro aponta para que, no verdadeiro contrato gratuito, a vontade livre do
sacrificado manifestou-se pela intenção de dar – o animus donandi – sendo a presença deste
factor condição sine qua non para a aplicação das regras próprias das liberalidades. Tal
aspecto é da maior importância pois o Direito não admite, em certas condições,
desequilíbrios excessivos entre as posições das partes, ocorrendo que, no surgimento de um
contrato gratuito, desejado como tal (animus donandi), o desequilíbrio é justo e admissível.
Os contratos gratuitos têm um relevo social e económico considerável, dando corpo a
manifestações de solidariedade, fundamentais para a coesão ética e social de qualquer
comunidade.

Contratos instrumentais e principais; preparatórios e definitivos; normativos;


contratos-tipo e contratos-quadro

Um contrato é instrumental quando vise reger, em exclusivo, aspectos atinentes a um outro


contrato, sendo principal quando se encontre orientado para o fim exterior.
A generalidade dos contratos instrumentais são preparatórios, sem prejuízo dos contratos
instrumentais que se reportem a contratos já celebrados e, mais genericamente, com
contratos sobre contratos.
O contrato diz-se normativo quando, do seu conteúdo, resultem regras gerais e abstractas,
i.e., regras que se aplicarão eventualmente, caso ocorram situações que, com generalidade
e abstracção, eles próprios prevejam. No limite, o contrato normativo é contrato, quanto à
constituição, e lei, quanto aos efeitos.
O caso paradigmático dos contratos normativos é a convenção colectiva de trabalho, não se
confundindo esta primeira modalidade de contratos com as cláusulas contratuais gerais que,
sendo gerais e abstractas, são apenas predispostas para a conclusão de contratos singulares
que delas advenham. Estando-se no domínio da autonomia privada, os contratos normativos
irão produzir efeitos no círculo que tenha a ver com as entidades que os hajam celebrado,
devendo ter-se em contra na sua interpretação os vectores apurados para as convenções
colectivas de trabalho.

Os contratos-tipo são modelos a adoptar em contratos ulteriores, que venham a ser


celebrados. Estes podem operar como cláusulas contratuais gerais, quando postos à
disposição de interessados indeterminados, podendo também servir como simples figurinos
que as partes poderão adoptar no futuro. Neste último caso, a existência de um “modelo”
pode ser tida em conta na interpretação e integração.
Os contratos-quadro são contratos que contém elementos a inserir em contratos ulteriores,
sem que os prefigure in totum, ordenando apenas seja a sua aparição, seja a sua
concatenação, seja alguns aspectos do seu interior (cf. art.º 251.º, CCP).

Contratos mistos

É contrato misto aquele que envolve regras próprias de um tipo contratual e regras que lhe
sejam estranhas, seja por pertencerem a um tipo diverso, seja por não caberem em qualquer
tipo. Os contratos mistos são, por conseguinte, contratos atípicos lato sensu.
Os contratos atípicos stricto sensu são aqueles cuja regulação nada tenha a ver com qualquer
tipo legal.

Dada a latitude da autonomia privada, é possível às partes:


i. Escolher um tipo previsto na lei;
ii. Optar por um tipo social que, embora sem previsão legal específica, convoque
regras que, de certo modo, o acompanhem;
iii. Associar, no mesmo contrato, regras provenientes de dois ou mais tipos legais;
iv. Associar, no mesmo contrato, regras provenientes de dois ou mais tipos sociais
ou articular, num instrumento, regras típicas, legais ou sociais;
v. Incluir, junto de cláusulas típicas, proposições inteiramente novas, da sua lavra;
vi. Usar figuras típicas mas de tal modo que venham desempenhar um papel
diferente daquele que, normalmente, lhe está associado;
vii. Engendrar figuras inteiramente novas;
viii. Adoptar esquemas conhecidos no estrangeiro, seja com tipos legais, seja como
tipos sociais, mas em termos tais que a lei do contrato seja a portuguesa.

Existem quatro grandes categorias de contratos mistos:


1. Contratos complementados;
2. Contratos combinados ou múltiplos;
3. Contratos duplos ou híbridos;
4. Contratos indirectos ou mistos stricto sensu.
Nos contratos complementados ou contratos típicos com prestações subordinadas de outra
espécie, tem-se uma composição que, no essencial, se enquadra num tipo contratual mas
que, a acompanhar esse núcleo, apresenta prestações próprias de outras figuras.
Nos contratos combinados ou múltiplos, uma das partes está adstrita a uma prestação
própria de certo tipo, enquanto a outra se vincula a diversas prestações redutíveis a distintos
tipos contratuais.
Nos contratos duplos ou híbridos, uma das partes está adstrita a uma prestação própria de
um tipo contratual, enquanto a outra se enquadra na prestação típica de outro.
Os contratos indirectos ou mistos stricto sensu correspondem àqueles em que as partes
usam um determinado tipo contratual, fazendo-o, no entanto, de tal forma que prosseguem,
de facto, a composição de interesses própria de um tipo diverso.

Colocando-se frequentemente a questão da determinação de qual o regime que lhes deve


ser aplicado, dado que as partes, reunindo no mesmo contrato regras de dois ou mais
negócios total ou parcialmente regulados na lei, provocam sempre um conflito de regimes
legais potencialmente aplicáveis, a doutrina aponta três teses que pretendem resolver esta
questão:
a Teoria da absorção – defendida por Lotmar;
b Teoria da combinação – defendida por Rümelin e Hoeniger;
c Teoria da analogia – defendida por Schreiber.
A teoria da absorção vem defender que o conflito de regimes contratuais suscitado pelos
contratos mistos deve ser resolvido pela opção a favor de um único regime contratual – o que
se pudesse considerar predominante – o qual absorveria as regulações respeitantes aos
outros tipos contratuais.
A teoria da combinação vem, por outro lado, sustentar que o conflito entre os regimes
contratuais não deve ser resolvido pela opção a favor de um deles, mas antes se deve realizar
uma aplicação combinada dos dois regimes.
A teoria da analogia vem sustentar que o conflito de regimes contratuais deve implicar a não
aplicação de qualquer deles, configurando-se, por isso, o contrato misto como um contrato
integralmente atípico, não regulado por qualquer tipo contratual, mas apenas pela parte
geral do Direito das Obrigações, e sendo as questões do seu regime consideradas, por isso,
como lacunas da lei, a resolver através da integração analógica, com base na norma mais
próxima em termos de situação de interesses e fim da le.
Galvão Telles defendeu que os contratos múltiplos ou combinados e duplos ou híbridos se
devem reger pela teoria da combinação, enquanto que os contratos mistos stricto sensu e os
contratos complementados se devem reger pela teoria da absorção. Antunes Varela
defendeu que, sempre que a lei não estabeleça um regime para o contrato misto deve
ponderar-se, em concreto, se o seu regime deveria ser estabelecido através da absorção ou
da combinação. Almeida Costa apela aos critérios de integração dos negócios jurídicos (art.º
239.º, CC), sustentando que deve ser em primeiro lugar averiguada a possibilidade de
aplicação analógica da disciplina de algum ou alguns contratos típicos, correspondendo à
teoria da analogia. Menezes Cordeiro defende a aplicação preferencial da teoria da absorção,
recorrendo-se subsidiariamente à combinação ou à analogia quando a aplicação daquela
teoria seja afastada por normas injuntivas, vontade das partes em contrário ou se torne
inviável. Ferreira de Almeida defende a resolução primordial das questões através da
interpretação contratual e da integração de lacunas, defendendo, quando tal seja
insuficiente, a combinação cumulada de regimes.
Para Menezes Leitão, sempre que, na economia do contrato misto, os elementos
pertencentes a um dos contratos assumirem preponderância, deve ser aplicado
essencialmente o regime desse contrato – teoria da absorção. Quando não for possível
estabelecer essa preponderância, a solução deve ser a aplicação simultânea dos dois regimes
– teoria da combinação.
A opinião deste Autor leva a que, tendencialmente, os contratos múltiplos e híbridos se
regerão pela teoria da combinação e os contratos indirectos e complementados pela teoria
da absorção.

A união de contratos

Deve distinguir-se dos contratos mistos a figura da união de contratos. No contrato misto,
ainda que se recolham elementos de vários tipos contratuais, estes elementos dissolvem-se
para formar um contrato único. Na união de contratos, pelo contrário, essa dissolução não
ocorre, verificando-se antes a celebração conjunta de diversos contratos, unidos entre si.
Assim, a união de contratos permite que cada contrato mantenha a sua autonomia,
possibilitando a sua individualização em face do conjunto, existindo, no entanto, um nexo
entre os vários contratos.
Admitem-se as seguintes formas de união de contratos:
i. União externa;
ii. União interna;
iii. União alternativa.
Ocorre uma união externa quando a ligação entre os diversos contratos resulta apenas da
circunstância de serem celebrados ao mesmo tempo, já que as partes não estabeleceram
qualquer nexo de dependência entre os diversos contratos.
Na união interna, pelo contrário, os dois contratos apresentam-se ligados entre si por uma
relação de dependência, já que na altura da sua celebração, uma das partes estabeleceu que
não aceitaria celebrar um dos contratos sem o outro. Esta dependência pode ser unilateral
quando apenas um dos contratos depende do outro, ou bilateral, quando ambos os contratos
se encontram dependentes entre si. Em qualquer caso, as partes querem um dos contratos,
ou ambos, como associados economicamente, pelo que a validade e a vigência de um ou
ambos dos contratos ficará dependente da validade e vigência do outro.
Na união alternativa, as partes declaram pretender ou um ou outro contrato, consoante
ocorrer ou não a verificação de determinada condição. A verificação da condição implica
assim a produção de efeitos de um dos contratos, ao mesmo tempo que exclui a produção
de efeitos do outro. Os contratos encontram-se, por isso, numa fase inicial unidos entre si,
mas essa união é meramente ocasional e virá a ser resolvida a favor da permanência de
apenas um dos contratos.

Contratos com eficácia real

Não sendo a única fonte das obrigações, o contrato é a mais importante entre todas elas.
No entanto, o contrato não se limita a constituir, modificar e extinguir relações
obrigacionais, nascendo dele também relações jurídicas familiares, direitos sucessórios e
direitos reais.
A regra geral, no tocante à constituição e transferência de direitos reais, é a da sua
verificação por mero efeito do contrato (art.º 408.º, CC).
Assim, se for celebrado um contrato de compra e venda, este imporá ao vendedor a
obrigação de entregar a coisa (art.º 879.º, CC), sendo que, ao mesmo tempo, por força da
regra geral do art.º 408.º, a celebração do contrato transfere, desde logo, do vendedor para
o comprador, o domínio sobre a coisa.
Aos contratos com semelhante efeito chamam-se contratos com eficácia real ou contratos
reais quoad effectum.

O princípio da transferência imediata do direito real constitui a regra dos contratos de


alienação de coisa determinada (art.º 408.º, n.º 1, CC), tratando-se, no entanto, de uma regra
puramente supletiva, a qual pode ser afastada pelas partes, por exemplo, mediante o
estabelecimento de uma cláusula de reserva de propriedade.
A reserva de propriedade, prevista no art.º 409.º (art.º 934.º no tocante à reserva na venda
a prestações), consiste na possibilidade, conferida ao alienante de coisa determinada, de
manter na sua titularidade o domínio da coisa até ao cumprimento (total ou parcial) das
obrigações que recaiam sobre a outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
Se reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações da outra parte
ou à verificação de qualquer outro evento, a alienação é feita sob condição suspensiva – e
não da condição resolutiva da falta de cumprimento ou da não verificação do evento.
Para que seja eficaz em relação a terceiros, tratando-se de coisas imóveis ou de coisas
móveis sujeitas a registo, é necessário que o direito emergente da cláusula (pactum reservati
dominii) tenha sido inscrito no registo.
Tendo a alienação por objecto coisas móveis não sujeitas a registo, a reserva vale, mesmo
em relação a terceiros, por simples convenção das partes. Esta solução pode lesar as
expectativas, quer dos credores do adquirente, quer dos próprios subadquirentes, dada a
inexistência do princípio “posse vale título” no ordenamento português, que suponham, por
ignorância da cláusula, pertencerem desde logo ao adquirente as mercadorias por ele
compradas, que se encontrem em seu poder, explicando-se principalmente pelo intuito de
facilitar a concessão de crédito ao adquirente e ainda pela possibilidade que, em regra, não
faltará a um contraente prudente e cauteloso de conhecer a real situação das coisas. Aliás,
apenas mediante esta cláusula ou a reserva da resolução do contrato o vendedor poderá
recuperar o domínio da coisa vendida, depois de efectuada a entrega dela, com fundamento
na falta de pagamento do preço, dada a disposição excepcional do art.º 886.º

Contrato-promessa – noção genérica

O contrato-promessa é a convenção pela qual ambas as partes ou apenas uma delas, se


obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado
contrato. Ao contrato a cuja futura realização as partes, ou apenas uma delas, ficam adstritas
dá-se o nome de contrato prometido.
O contrato-promessa cria a obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de
emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido. A obrigação
assumida por ambos os contraentes, ou por um deles se a promessa for apenas unilateral,
tem assim por objecto uma prestação de facto positivo, um facere oportere, sendo o direito
atribuído à contraparte uma verdadeira pretensão.

A promessa unilateral aproxima-se bastante de outras figuras negociais, como os pactos de


preferência, a venda a retro, os pactos de opção e a proposta contratual.
No pacto de preferência (art.os 414.º e ss., CC), a pessoa não se obriga a contratar, como
sucede no contrato-promessa, mas apenas a escolher em certos termos uma outra como
contraente, no caso de se decidir a contratar.
Na venda a retro (art.os 927.º e ss., CC), o comprador não promete celebrar uma outra venda
com o vendedor, ficando antes sujeito a que este, mediante uma simples notificação, resolva
o contrato, não necessitando, portanto, de qualquer nova declaração contratual por parte do
comprador.
Nos pactos de opção, uma das partes emite logo a declaração correspondente ao contrato
que pretende celebrar, enquanto a outra se reserva a faculdade de aceitar ou declinar o
contrato, dentro de certo prazo. Aceitando, o contrato torna-se perfeito sem necessidade de
qualquer nova declaração da contraparte, contrariamente ao que ocorre com a promessa
unilateral, em que se torna necessário um acordo posterior para dar vida ao contrato
definitivo.
Da promessa unilateral deriva para o não-promitente uma verdadeira pretensão à
celebração do contrato prometido, enquanto que do pacto de opção deriva um direito
potestativo à aceitação da proposta contratual emitida e mantida pela outra parte.
A promessa unilateral também não se confunde com a proposta contratual, dado que se
prescinde, nesta última, de nova manifestação de vontade do proponente para que o
contrato se aperfeiçoe, enquanto que na promessa unilateral o promitente obriga-se apenas
à celebração de um contrato futuro. Enquanto a promessa unilateral assenta sobre um
contrato consumado, a proposta é uma simples declaração de vontade emitida por uma das
partes que só se converte em contrato com a aceitação do outro contraente, que ela visa
provocar.

A celebração de contrato com sinal, tendo íntima ligação com o contrato-promessa, não se
confunde com este.
O sinal consiste na coisa que um dos contraentes entrega ao outro, no momento da
celebração do contrato ou em momento posterior, como prova da seriedade do seu
propósito negocial e garantia do seu cumprimento (sinal confirmatório) ou como
antecipação da indemnização devida ao outro contraente, na hipótese de o autor do sinal se
arrepender do negócio e voltar atrás (sinal penitencial), podendo a coisa entregue coincidir
ou não com o objecto da prestação devida ex contractu.
O contrato-promessa é uma convenção autónoma, enquanto que a constituição de sinal é
uma cláusula dependente de um outro negócio, no qual se insere, podendo este último
acompanhar tanto um contrato-promessa, como um contrato definitivo.
No contrato-promessa em que um dos contraentes entregue ao outro qualquer quantia em
dinheiro ou alguma coisa, mesmo que a coisa coincida no todo ou em parte com a prestação
correspondente ao contrato prometido, a entrega tanto pode representar a constituição do
sinal como uma antecipação de pagamento, consoante as circunstâncias.
Na promessa de compra e venda presume-se, até prova do contrário, que reveste o sentido
de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda
que declaradamente a título de antecipação ou princípio de pagamento.

Forma e substância do contrato-promessa. Princípio da equiparação

A regra geral que a lei estabelece em relação ao regime do contrato-promessa é a do


princípio da equiparação (art.º 410.º, CC), que consiste em aplicar, como regra, aos requisitos
e aos efeitos do contrato-promessa as disposições relativas ao contrato prometido.
No entanto, o princípio da equiparação é excepcionado em dois aspectos, sendo o primeiro
é atinente à forma e o segundo atinente às disposições que, pela sua razão de ser, se não
podem considerar extensíveis ao contrato-promessa (art.º 410.º, n.º 1, CC).
Quanto à forma, a solução aplicável ao contrato-promessa traduz-se nos seguintes
preceitos:
a. Se, para o contrato prometido, a lei exigir documento (seja ele autêntico ou
particular), como sucede para a venda ou doação de coisas imóveis, o respectivo
contrato-promessa só é válido se constar de documento escrito, assinado pela parte
que se vincula à celebração do contrato definitivo (art.º 410.º, n.º 2, CC);
b. Tratando-se de contrato-promessa relativo à celebração de contrato oneroso de
transmissão ou constituição de direito real sobre edifício (ou de fracção autónoma) já
construído, em vias de construção ou que deva ser construído, o documento escrito
necessita de ter reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes, bem
como a certificação notarial da existência da licença de utilização ou de construção;
c. Se o contrato prometido estiver subordinado a qualquer outra formalidade, que não
seja a redução a documento, vale para a respectiva promessa a regra geral da
liberdade de forma (art.º 219.º, CC).

Na eventualidade do contrato-promessa bilateral ser assinado apenas por um dos


promitentes, existe a questão sobre se este pode valer como promessa unilateral,
apresentando a doutrina as seguintes teorias:
i. Tese da transmutação automática do contrato em promessa unilateral;
ii. Tese da nulidade total do contrato;
iii. Tese da conversão;
iv. Tese da redução.
A tese da transmutação automática do contrato-promessa bilateral em que faltasse a
assinatura de uma das partes em promessa unilateral foi sufragada pelo STJ numa primeira
fase, entre 1972 e 1977.
A tese da nulidade total do contrato veio a ser sufragada pelo STJ, numa segunda fase, a
partir de 1977, passando então a defender-se que falta da assinatura de uma das partes é um
elemento essencial para a forma do contrato-promessa bilateral e que atenta a natureza
sinalagmática deste contrato, a invalidade de uma das obrigações tem que afectar
igualmente a outra, dado que o sinalagma genético é irredutível a metade. Esta tese foi
defendida por Galvão Telles até 1986.
A tese da conversão foi defendida por Antunes Varela e, posteriormente, por Galvão Telles,
sendo que esta defende que se apresentaria como iníquo não permitir o aproveitamento do
negócio, mas que este deve ser realizado através do mecanismo da conversão e não da
redução, já que esta última pressupõe uma invalidade parcial e o contrato-promessa bilateral
a que falte uma das assinaturas se apresenta como totalmente nulo, por falta da forma
exigida por lei. Por outro lado, a natureza sinalagmática do contrato-promessa bilateral
torná-lo-ia radicalmente diferente do contrato-promessa unilateral, que não reveste essa
natureza. Portanto, não se está perante um aproveitamento parcial do negócio, mas perante
a sua transformação num negócio de tipo ou, pelo menos, de conteúdo diferente, situação
sujeita por isso ao regime da conversão (art.º 293.º, CC). O aproveitamento do negócio
afigura-se, neste caso, como um ónus sobre a parte interessada em tal.
A tese da redução foi defendida por Almeida Costa, Ribeiro de Faria, Calvão da Silva e
Gravato de Morais, sendo que esta tese defende que se no contrato-promessa a lei só exige
a assinatura para a declaração negocial do contraente que se vincula à promessa, a nulidade
por falta de forma no contrato-promessa bilateral será parcial se apenas um dos contraentes
não assinar o contrato, o que justifica a aplicação do regime da redução (art.º 292.º, CC).
Neste caso, o regime da redução só será afastado se se demonstrar que a vontade das partes
vai em sentido contrário.
Menezes Cordeiro defende uma tese intermédia, considerando a promessa unilateral
visceralmente diferente do contrato-promessa bilateral, pelo que a situação será
necessariamente de invalidade total pelo que, em princípio, apenas a conversão poderia
salvar o negócio. No entanto, este Autor, reconhecendo que a redução é a solução que
melhor salvaguarda os interesses do contraente vinculado propugna uma aplicação conjunta
dos dois preceitos, remetendo-se ainda, com base no art.º 239.º para a boa-fé afim de se
encontrar a solução mais justa.

A segunda excepção ao princípio da equiparação reporta-se principalmente aos efeitos do


contrato-promessa.
O contrato-promessa, criando para o promitente uma obrigação de contratar, cujo objecto
é uma prestação de facto, goza apenas, em princípio, de eficácia meramente obrigacional,
restrita por conseguinte às partes contratantes, ao invés do contrato prometido, quando se
trate de contrato de alienação ou oneração de coisa determinada, que goza de eficácia real.
Para o regime da relação obrigacional emergente da promessa continua, entretanto, a valer
o mesmo princípio da equiparação estabelecido no art.º 410.º, não se distinguindo, na sua
aplicação, entre os requisitos da formação e os efeitos do negócio. São, assim, aplicáveis
mutatis mutandis à promessa de venda, as regras que na compra e venda se reportam à
determinação e redução do preço, à venda de bens alheios, de coisas defeituosas, de bens
onerados, etc.
Sendo afastadas as disposições que, pela sua razão de ser, se não devam considerar
extensivas ao contrato-promessa, deve apurar-se, em obediência à directriz traçada, a razão
de ser dessa regra, a ratio legis da norma que a consagra.
Assim, não é aplicável à promessa de venda, que tem eficácia meramente obrigacional, a
eficácia translativa da compra e venda, a qual define o risco do comprador pelo perecimento
da coisa (art.º 796.º, CC), ou a limitação ao direito de resolução do contrato por parte do
vendedor (art.º 886.º, CC). São igualmente inaplicáveis ao contrato-promessa a proibição da
venda de coisa alheia (art.º 892.º, CC), a proibição da venda de coisa comum (indivisa) por
um só dos condóminos (art.os 1405.º e 1408.º, CC) e outras proibições análogas. É igualmente
inaplicável à promessa de venda de bens imóveis a exigência de intervenção de ambos os
cônjuges nos contratos de alienação dessa natureza (art.º 1682.º-A, n.º 1, CC).
Na fixação das consequências do não cumprimento do contrato-promessa, deve corrigir-se
o princípio da equiparação à luz das prescrições especiais constantes dos artigos 442.º e 830.º
para a falta de cumprimento do contrato-promessa.

Contrato-promessa com eficácia real

O contrato-promessa produz, em regra, efeitos somente inter partes, sendo, no entanto,


admitido que a promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens
imóveis, ou sobre bens móveis sujeitos a registo, produza efeitos em relação a terceiros,
desde que se verifiquem os seguintes requisitos (art.º 413.º, CC):
a. Constar a promessa de escritura pública ou documento particular autenticado, salvo
se a lei não exigir tal forma, caso em que a promessa deve ser realizada em
documento particular com reconhecimento da assinatura da parte que se vincula ou
de ambas, consoante se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral;
b. Pretenderem as partes atribuir-lhe eficácia real;
c. Serem inscritos no registo os direitos emergentes da promessa.
Quando assim for, a promessa, enquanto não for revogada, declarada nula ou anulada ou
não caducar, prevalece sobre todos os direitos (pessoais ou reais) que posteriormente se
constituam relativamente à coisa, tudo se passando, sob esse aspecto, relativamente a
terceiros, como se a alienação ou oneração prometida, uma vez realizada, se houvesse
efectuado na data em que a promessa foi registada.
Na falta dos requisitos exigidos, o contrato-promessa, ainda que válido, tem eficácia
meramente obrigacional, não sendo os direitos nascidos desse contrato oponíveis a
terceiros.
A Doutrina discute qual a natureza do direito do beneficiário da promessa com eficácia real,
entendendo Menezes Cordeiro, Galvão Telles e Oliveira Ascensão que se trata de um direito
real de aquisição. Antunes Varela, Almeida Costa, Pessoa Jorge e Henrique Mesquita
entendem que se trata ainda de um direito de crédito, embora sujeito a um regime especial
de oponibilidade a terceiros.
Perante a alienação faltosa a terceiro, existem as seguintes posições:
i. Recorrer-se-ia a uma execução específica contra o promitente faltoso, e ao
regime da nulidade, contra o terceiro, por venda de bens alheios – Antunes Varela
e Ribeiro de Faria;
ii. Idem, mas sendo a venda feita a terceiros meramente ineficaz – Pessoa Jorge,
Almeida Costa, Henrique Mesquita e Gravato Morais;
iii. Usar-se-ia a execução específica contra o terceiro adquirente – Dias Marques – ou
contra este e o promitente faltoso – Oliveira Ascensão;
iv. Lançar-se-ia mão de uma acção ad hoc “declarativa constitutiva, eventualmente
cumulável com um pedido de restituição, a instaurar em litisconsórcio necessário
contra o promitente e o terceiro adquirente” – Menezes Leitão;
v. Intentar-se-ia uma reivindicação contra o actual possuidor da coisa – Menezes
Cordeiro.

Registo da acção de execução específica

No caso de, sem que o contrato-promessa tenha eficácia real, uma acção de execução
específica julgada procedente que tenha sido registada pelo seu autor, esta sentença é
oponível a terceiros, desde que a sentença favorável venha a ser registada.
O registo da sentença que julgue definitivamente procedente a acção de execução
específica baseada em contrato-promessa de venda de coisa imóvel, destituída de eficácia
real, tem os seguintes efeitos:
a. O direito do promitente-adquirente, convertido em adquirente pela sentença de
procedência da acção, prevalece evidentemente, pela publicidade que o registo
conferiu à acção, sobre o direito de todos os promitentes-adquirentes baseados em
contratos-promessa de data posterior, quer estes tenham, quer estes não tenham
eficácia real;
b. A prevalência do registo da sentença favorável ao promitente-adquirente estende-se
ao próprio registo da transmissão efectuada pelo promitente-vendedor a terceiro,
depois de registada a acção de execução específica, por duas razões: primeiro,
porque o registo da acção, embora provisório por natureza, tornou pública a
pretensão do promitente, alertando, por conseguinte, qualquer futuro adquirente
contra o perigo decisivo da sua aquisição; segundo, porque, de outro modo, o
promitente-vendedor, depois de demandado na acção de execução específica, teria
sempre um meio fácil de inutilizar o efeito principal da procedência da acção,
alienando entretanto o imóvel a terceiro;
c. A prevalência do registo da sentença favorável ocorre sobre terceiro que houver
adquirido antes da propositura de acção de execução específica quando esta última
for julgada procedente antes do terceiro adquirente proceder ao registo da aquisição.

Transmissão dos direitos e obrigações dos promitentes

Os direitos e obrigações resultantes da promessa contratual são, em princípio,


transmissíveis por morte e por negócio entre vivos (art.º 412.º, n.º 1, CC). Se, para um dos
contraentes, a promessa cria apenas um direito de crédito, este poderá cedê-lo, nos termos
gerais da cessão de créditos (art.os 577.º e ss., CC). Quando do contrato-promessa lhe
advenham ao mesmo tempo direitos e obrigações, como no caso da promessa de compra e
venda, ele poderá ceder a sua posição contratual (art.os 424.º e ss., CC). Falecendo qualquer
das partes, a posição dela transmite-se aos seus sucessores, de acordo com as regras da
sucessão.
Exceptuam-se da regra da transmissão os direitos e obrigações em cuja constituição,
segundo a vontade dos contraentes ou as próprias circunstâncias do contrato, tenham
exercido papel decisivo as qualidades ou atributos pessoais do promitente ou da contraparte.
É a estes direitos ou obrigações constituídos intuitu personae que o art.º 412.º se refere com
a expressão “direitos e obrigações exclusivamente pessoais”.
A questão da transmissibilidade não deve, no entanto, ser decidida em termos rígidos,
atendendo apenas à natureza do contrato prometido, tendo esta de ser articulada com a
vontade real ou presumível dos contraentes e com as circunstâncias especiais de cada
contrato.
Execução específica do contrato-promessa

As partes vinculam-se, no contrato-promessa, a uma prestação de facto jurídico, sendo esta


incoercível, pelo que o devedor não pode ser coagido pela força a emitir a declaração
negocial a que se obrigou. No entanto, a lei admite que a obrigação de contratar seja alvo de
execução específica, consistindo na substituição do devedor no cumprimento, obtendo o
credor por via judicial a satisfação do seu direito. Neste caso, a execução específica consistirá
na emissão, por parte do tribunal, de uma sentença que produza os mesmos efeitos jurídicos
da declaração negocial que não foi realizada, operando-se assim a constituição do contrato
definitivo.
A execução específica da obrigação de contratar encontra-se prevista no art.º 830.º, onde se
determina que:
“Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra
parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração
negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.
Disto decorre que o não cumprimento da promessa atribui à contraparte o direito de
recorrer à execução específica, entendendo Menezes Leitão que a referência legal a não
cumprimento deve ser entendida em sentido amplo, uma vez que para efeitos da execução
específica é suficiente a simples mora, já que o credor mantém interesse na prestação,
exercendo o seu direito.
A execução específica deixa de ser possível a partir do momento quem se verifique uma
impossibilidade definitiva de cumprimento.
Existem duas situações em que é expressamente excluída a execução específica do
contrato-promessa, sendo estas:
1. A existência de convenção em contrário;
2. A execução específica ser incompatível com a natureza da obrigação assumida.
A possibilidade de execução específica da obrigação de contratar não se apresenta como um
regime imperativo, pelo que as partes podem derrogá-lo através de convenção, presumindo-
se tal no caso de as partes constituírem sinal ou estipularem uma penalização para o
incumprimento (art.º 830.º, n.º 2, CC) por se presumir, nesta situação, que as partes
pretendem unicamente, em caso de incumprimento, a obtenção da indemnização
convencionada e não a execução específica. No entanto, esta presunção é ilidível por prova
em contrário (art.º 350., n.º 2, CC), nada impedindo, por isso, que as partes convencionem a
aplicação dos dois regimes, cabendo nesse caso ao credor optar pela alternativa que lhe for
mais conveniente.
No caso de promessa relativa à constituição ou transmissão de direito real sobre edifício ou
fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o direito à execução
específica não pode ser afastado pelas partes (art.º 830.º, n.º 3, CC), pelo que a convenção
de sinal ou a cláusula penal nunca terão carácter alternativo à execução específica. A
execução específica não pode, segundo Antunes Varela, ser afastada quando a promessa
tenha eficácia real, mesmo que exista convenção de sinal ou de cláusula penal.
Existem também casos em que a execução específica se apresenta como incompatível com
a obrigação assumida pela índole específica do processo de formação do contrato prometido
ou a sua natureza pessoal não se apresentar como compatível com a sua constituição por
sentença judicial. Tal ocorre nas promessas relativas a contratos reais quoad constitutionem,
em que se exige a tradição da coisa para operar o contrato definitivo, não podendo o tribunal
substituir-se ao promitente na tradição da coisa, acto cuja espontaneidade a lei pressupõe.
Nestes casos, o incumprimento do contrato-promessa apenas poderá gerar indemnização
por responsabilidade contratual, não se admitindo a produção dos seus efeitos através de
sentença judicial.
A lei procura também solucionar problemas que a execução específica poderia desencadear.
No caso do bem ter sido prometido vender livre de ónus ou encargos, mas se encontrar
presentemente hipotecado, é possível que, a par da acção de execução específica, se peça
simultaneamente a condenação do promitente faltoso na quantia necessária para expurgar
a hipoteca, assim se conseguindo a sua extinção, sem prejuízo para o beneficiário da
promessa (art.º 830.º, n.º 4, CC). No caso do promitente faltoso invocar a excepção de não
cumprimento do contrato, a acção improcede se o autor da acção não consignar em depósito
a sua prestação no prazo fixado pelo tribunal (art.º 830.º, n.º 5, CC).

Sinal

O regime do contrato-promessa deve ser articulado com o regime do sinal, o qual consiste
numa cláusula acessória dos contratos onerosos, mediante a qual uma das partes entrega à
outra, por ocasião da celebração do contrato, uma coisa fungível, que pode ter natureza
diversa da obrigação contraída ou a contrair. O sinal funciona, nesse caso, como fixação das
consequências do incumprimento, uma vez que se a parte que constituiu o sinal deixou de
cumprir a sua obrigação, a outra parte tem o direito de fazer sua a coisa entregue. Se o não
cumprimento partir de quem recebeu o sinal, este tem que o devolver em dobro (art.º 442.º,
n.º 2, primeira parte, CC).
No entanto, se se verificar o cumprimento do contrato, a coisa entregue deve ser imputada
na prestação devida – valendo, então, como princípio de pagamento – ou restituída, caso
essa imputação não seja possível (art.º 442.º, n.º 1, CC).
Para Menezes Leitão, o sinal representa um caso típico de datio rei, transmitindo-se a
propriedade com uma função confirmatória-penal, podendo nessa medida qualificar-se
como um contrato real simultaneamente quoad effectum e quoad constitutionem. O sinal só
se constitui com a tradição da coisa que é o seu objecto, sendo nesse momento a propriedade
adquirida pelo accipiens, mas podendo vir a ser forçado a restituí-la ao dans se não for
possível a sua imputação à prestação devida. Sendo possível essa imputação, a coisa objecto
do sinal fica definitivamente no património do accipiens, em caso de cumprimento do
contrato. Verificando-se o incumprimento do contrato, há lugar à aplicação dos efeitos
penais, passando pela perda do sinal ou pela sua restituição em dobro.
Envolvendo uma estipulação da indemnização em caso de incumprimento, o sinal aproxima-
se da cláusula penal (art.º 810.º, n.º 1, CC), distinguindo-se desta apenas pelo facto de
pressupor a entrega prévia de uma coisa fungível.

A regra geral é que, no contexto dos contratos, a realização de uma datio rei, por uma das
partes, na altura da celebração do contrato ou em momento posterior, não implica
presunção de constituição de sinal sempre que se verifique coincidência entre a datio rei
realizada e o objecto da obrigação a que aquela parte está adstrita (art.º 440.º, CC). Nesta
situação, entende-se que o que se visou com a datio foi antecipar o cumprimento da
obrigação e não a constituição de sinal, devendo as partes, se pretenderem que a prestação
entregue tenha o carácter de sinal, atribuir-lhe especificamente essa natureza.
No entanto, no caso dos contratos-promessa, não podendo em caso algum a datio rei
coincidir com a prestação a que fica adstrito, dado o facto do contrato-promessa instituir
apenas obrigações de prestação de facto jurídico, i.e., a celebração do contrato definitivo, a
entrega de uma coisa nunca poderia constituir cumprimento. Portanto, aplica-se o art.º 441.º
aos contratos-promessa, o qual dispõe:
“No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia
entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação
ou princípio de pagamento do preço.”
Disto decorre que a entrega de quantias em dinheiro (datio pecuniae) pelo promitente-
comprador ao promitente-vendedor constitui presunção da estipulação de sinal por essa via,
e isso mesmo quando as quantias entregues o sejam a título de antecipação ou princípio de
pagamento do preço. Dado que a obrigação de pagamento do preço surge com a celebração
do contrato definitivo, a sua antecipação ou princípio de pagamento na fase do contrato-
promessa tem por referência uma obrigação ainda não existente, sendo, portanto,
insuficiente para a elisão da presunção de constituição de sinal.

Funcionamento do sinal

A lei estabelece uma distinção no regime do sinal, consoante ele seja aplicado
genericamente a todos os contratos, ou especificamente ao contrato-promessa.
O art.º 442.º, n.º 1, refere-se ao regime do sinal em geral, indicando o seu funcionamento
em caso de cumprimento da obrigação, imputando-se o sinal na prestação devida quando
coincida com esta. Sendo impossível a imputação, pela coisa entregue não coincidir com a
prestação devida, deve o sinal ser restituído em singelo, ocorrendo tal também nos casos em
que se verifique a impossibilidade da prestação por facto não imputável a qualquer das partes
ou imputável a ambas.
O art.º 442.º, n.º 2, primeira parte, refere-se igualmente ao regime do sinal em geral,
explicando o seu funcionamento em caso de não-cumprimento. Neste caso, se o não-
cumprimento for de quem constituiu o sinal, este será perdido a favor da contraparte. Se for
esta a incumprir o contrato, terá de restituir o sinal em dobro.
O art.º 442.º, n.º 2, segunda parte, trata-se do sinal no contrato-promessa. Se houver
tradição da coisa a que se refere o contrato-prometido, o promitente-adquirente pode optar,
em lugar da restituição do sinal em dobro, por receber o valor actual da coisa, com dedução
do preço convencionado, acrescido do sinal (em singelo) e da parte do preço que tenha sido
paga.
A Doutrina discute se a exigência do aumento do valor da coisa ou do direito, a que se refere
o contrato-prometido, pressupõe que tenha sido constituído sinal ou basta-se apenas com a
tradição da coisa.
Menezes Cordeiro e Menezes Leitão entendem que deve ser exigida a constituição de sinal,
uma vez que, quando este não é estipulado, a tradição da coisa para o promitente-
comprador apresenta-se como um acto de mera tolerância do promitente-vendedor, não
havendo razão para que ele seja prejudicado por esse acto. Galvão Telles e Januário Gomes
entendem que o aumento do valor da coisa ou do direito tem lugar mesmo que não tenha
sido estipulado sinal, já que não haveria motivo para só se aplicar este regime quando o sinal
exista em alternativa a este.
Para Menezes Leitão, o art.º 442.º, n.º 3, primeira parte, o qual vem referir que “em qualquer
dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa,
requerer a execução específica do contrato, nos termos do art.º 830.º” tem uma redacção
defeituosa, uma vez que ela faz parecer que o contraente não faltoso tem sempre a
possibilidade de optar pela execução específica em alternativa ao sinal. Não é isto que
ocorre, sendo que, em face ao art.º 830.º, havendo sinal, presume-se que as partes efectuam
uma estipulação contrária à execução específica (art.º 830.º, n.º 2, CC), só podendo esta
funcionar em alternativa caso as partes ilidam esta presunção, ou se trate da hipótese
prevista no art.º 830.º, n.º 3, onde a execução específica é imperativa.
O art.º 442.º, n.º 3, segunda parte, prevê ainda que “se o contraente não faltoso optar pelo
aumento da coisa ou do direito, conforme se refere no número anterior, pode a outra parte
opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o
disposto no art.º 808.º”. Menezes Cordeiro qualificara esta figura como a “excepção do
cumprimento do contrato-promessa”.
Antunes Varela e Menezes Cordeiro entendem que a mera ocorrência de mora é bastante
para a aplicação do art.º 442.º, n.º 3. Galvão Telles e Calvão da Silva entendem que se exige
uma situação de incumprimento definitivo. Almeida Costa considera que o regime do art.º
442.º, n.º 3, acrescenta ao art.º 808.º um novo caso de transformação da mora em
incumprimento definitivo, que seria a exigência do sinal ou do aumento do valor da coisa, a
qual constituiria uma declaração tácita de resolução do contrato-promessa. Januário Gomes
veio defender que se deveria distinguir entre os dois casos previstos no art.º 808.º, para a
transformação da mora em incumprimento definitivo, exigindo-se previamente à restituição
do sinal em dobro ou do aumento do valor da coisa, a outorga ao devedor de um prazo
suplementar de cumprimento, podendo este, no entanto, após esse prazo, caso houvesse
opção pelo valor da coisa, ainda cumprir a obrigação, a menos que se verificasse a perda do
interesse do credor.
A jurisprudência adopta maioritariamente a posição de que se deve exigir uma situação de
incumprimento definitivo.
Menezes Leitão entende que para a aplicação do mecanismo do sinal se deve exigir o
incumprimento definitivo da obrigação, por objectiva perda de interesse na prestação ou
pela fixação de um prazo suplementar de cumprimento. Este Autor entende também que
enquanto que os efeitos do sinal apenas ocorrem em caso de incumprimento definitivo, a
opção pelo aumento do valor da coisa ou do direito pode ocorrer antes, em caso de simples
mora, valendo esta como renúncia do promitente-comprador a desencadear o mecanismo
do sinal, uma vez verificado o incumprimento definitivo.
O direito ao aumento do valor da coisa ou do direito, reconhecido ao promitente-
comprador, trata-se, no entender de Antunes Varela, de uma forma especial de sanção
pecuniária compulsória, enquanto que para Galvão Telles se trata de uma indemnização
compensatória, destinada a ressarcir os prejuízos causados pelo incumprimento definitivo,
atento o facto de surgir em paralelismo com a exigência do sinal em dobro.
Menezes Leitão entende que este direito é um afloramento do princípio da proibição do
enriquecimento injustificado. O sinal funciona, no regime supletivo, enquanto fixação
antecipada da indemnização devida, em caso de não cumprimento, pelo que a parte não
poderá reclamar outras indemnizações, para além daquelas previstas na lei (art.º 442.º, n.º
4, CC). Se as partes estabelecerem um regime em contrário, a convenção de sinal funcionará
como um limite mínimo da indemnização, que não obstará a que a parte lesada possa
reclamar uma quantia superior se demonstrar que sofreu danos mais elevados. De qualquer
forma, o n.º 4 do art.º 442.º exclui apenas outras indemnizações resultantes do não
cumprimento do contrato-promessa.

Funções do sinal

A Doutrina discute qual a função do sinal no direito português vigente.


Para Galvão Telles, o sinal não tem natureza penitencial, mas antes confirmatória-penal,
dado que a indemnização convencionada não funciona como preço de arrependimento, mas
antes como sanção para um acto ilícito, o incumprimento da obrigação. No entanto, nada
obstaria a que as partes pudessem estipular um sinal penitencial, ao qual se deve reservar o
nome de arras.
Para António Pinto Monteiro, o sinal tem natureza penitencial no contrato-promessa, face
ao disposto no art.º 830.º, n.º 2, e, embora não seja essa a função prevista no art.º 442.º, n.º
4, para os demais contratos, acaba por corresponder, de facto, à mesma situação.
Para Menezes Cordeiro, o regime vigente procedeu à junção das diversas funções do sinal,
uma vez que o sinal tem natureza confirmatório-penal, “na medida em que dá consistência
ao contrato e funciona como indemnização” e natureza penitencial, “quando funcione como
preço de arrependimento, permitindo ao interessado resolver o contrato, mediante o
pagamento que resulte do próprio sinal”. Para este Autor, o sinal tem natureza
confirmatório-penal quando coexistir com a possibilidade de execução específica, e natureza
penitencial quando estes sejam incompatíveis.
Menezes Leitão entende que o sinal nunca pode ser penitencial, dado que a sua exigibilidade
depende do incumprimento definitivo da obrigação pela contraparte, funcionando como
pré-determinação das consequências desse incumprimento, ou seja, tem natureza
confirmatório-penal.

A atribuição do direito de retenção ao promitente que obteve a tradição da coisa

O sinal vinculístico, ou seja, o sinal existente num contrato-promessa em que haja ocorrido
tradição da coisa, é reforçado pela atribuição, ao promitente-adquirente, de um direito de
retenção (art.º 755.º, n.º 1, al f), CC).
O direito de retenção é uma garantia especial que permite ao devedor que disponha de um
crédito contra o seu credor, reter a coisa em seu poder se, estando obrigado a entrega-la, o
seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados (art.º
754.º, CC). Havendo retenção de coisas móveis, o seu titular goza dos direitos e está sujeito
às obrigações do credor pignoratício, salvo no que respeita à substituição e reforço da
garantia (art.º 758.º, CC), sendo que se estiver em jogo a retenção de coisas imóveis, como
ocorre no caso paradigmático da promessa habitacional, o seu titular tem os seguintes
poderes (art.º 759.º, CC):
i. De executar a coisa, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor
hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor;
ii. De fazer prevalecer esse seu poder sobre a hipoteca, ainda que registada
anteriormente;
iii. De beneficiar das regras do penhor, as quais incluem a defesa possessória.
O direito de retenção veio, assim, blindar em absoluto o promitente-adquirente traditário.

Tendo em conta que o direito de retenção conferido ao promitente-adquirente traditário o


colocou numa posição mais forte que o próprio adquirente, dada a prevalência deste
primeiro direito real sobre a hipoteca, mesmo que anteriormente registada, a jurisprudência
tem assentado em interpretações restritivas, pelo que:
i. O promitente-adquirente só pode coagir o vendedor enquanto a coisa pertencer
a este;
ii. Não há retenção quando a promessa seja nula;
iii. O promitente-adquirente não tem a retenção da coisa se, proposta uma acção de
execução específica, esta for considerada procedente;
iv. A tradição, por via de uma promessa, de um lote de terreno não dá a retenção
sobre a construção que nele se venha a edificar;
v. Não há retenção quando ocorra culpa do promitente-adquirente no
incumprimento;
vi. Não dispõe de retenção o promitente-adquirente que compre a coisa numa venda
executiva;
vii. Na falência ou na insolvência, o promitente-adquirente não pode opor-se à
inclusão da coisa na massa, cabendo ao administrador tomar as competentes
decisões;
viii. A retenção do promitente adquirente prevalece sobre as hipotecas anteriores,
funcionando perante as constituídas após 18 de Julho de 1980.

Menezes Cordeiro e Menezes Leitão entendem que o direito de retenção surge apenas caso
tenha sido passado sinal:
i. Porque os créditos referidos no art.º 442.º são apenas o da restituição do sinal em
dobro ou o aumento do valor da coisa e não o crédito geral indemnizatório ex
798.º;
ii. Porque, não havendo sinal, a tradição será uma mera tolerância, não cabendo
penalizar o promitente-vendedor.
A retenção só garante o direito ao aumento do valor da coisa e não à restituição do sinal em
dobro, sendo que estes Autores entendem que o direito do credor hipotecário tem um direito
que se reporta ao valor da coisa ao tempo da hipoteca e não ao aumento desse valor.

Pactos de preferência – generalidades

Pactos de preferência são os contratos pelos quais alguém assume a obrigação de, em
igualdade de condições, escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) como seu
contraente, no caso de se decidir a celebrar determinado negócio.
Os pactos de preferência, ainda que sejam mais vulgares na compra e venda – pactos de
prelacção (pacta prelationis) ou preempção –, podem ter também por objecto outros
contratos. Os pactos de preferência são admitidos em relação à compra e venda (art.º 414.º,
CC) e relativamente a todos os contratos onerosos em que tenha sentido a opção por certa
pessoa sobre quaisquer outros concorrentes (art.º 423.º, CC).
Do pacto de preferência nasce uma obrigação típica: para uns autores, a de o devedor não
contratar com terceiro (non facere), se o outro contraente se dispuser a contratar em iguais
condições; para outros, a de, querendo contratar, o obrigado escolher a contraparte, de
preferência a qualquer outra pessoa (facere). Em face dessa obrigação, fica a plena liberdade
de o titular da preferência aceitar ou não a celebração do contrato, nos termos em que o
obrigado se propõe a realizá-lo.
É de se notar, porém, que o pacto de preferência raramente surgirá isolado, dado que tal
configuraria uma liberalidade, pelo que este surge usualmente como uma cláusula no seio de
um contrato mais vasto.

O pacto de preferência distingue-se do contrato-promessa, sendo que na promessa bilateral


há uma obrigação recíproca de contratar, enquanto que no pacto de preferência só um dos
contraentes se vincula. Na promessa unilateral, o promitente compromete-se a contratar,
enquanto que no pacto de preferência o vinculado não se obriga a contratar, prometendo
apenas, se contratar, preferir certa pessoa – tanto por tanto, em igualdade de condições – a
qualquer outro interessado, havendo assim, quanto muito, uma promessa unilateral
condicional.
O pacto de preferência distingue-se da venda a retro (art.os 927.º e ss., CC), o qual assenta
sobre uma cláusula resolutiva. A venda a retro implica a faculdade de resolução da venda
anterior por simples declaração de vontade do vendedor, obrigando por isso à entrega do
preço primitivo e determinando a caducidade dos direitos entretanto constituídos sobre a
coisa. O pacto de preferência prevê a realização eventual de um futuro contrato, sobre o qual
se exerce então o direito conferido ao titular da preferência, tendo este de pagar o preço (ou
a contra-prestação) que o terceiro deu ou estaria disposto a dar.
O pacto de preferência não se confunde com o pacto de opção, existindo já, neste último, a
declaração contratual de uma das partes num contrato em formação, enquanto que no pacto
de preferência se prevê a celebração de um contrato eventual.

Requisitos e forma do pacto de preferência

Para Antunes Varela e Almeida Costa, valem para os pactos de preferência, como
verdadeiros contratos que são, as regras gerais dos contratos.
Para Menezes Cordeiro, o pacto de preferência não pode ser insensível ao contrato definitivo
nele prefigurado, defendendo este ilustre Autor a aplicação, à preferência, do princípio da
equiparação, fundada nos seguintes motivos:
i. Pela preferência pode o obrigado ficar na eventualidade de ter mesmo de fechar
o contrato definitivo, não podendo este, por via da preferência, conseguir algo
que o Direito proíba, pelo que os requisitos da preferência terão de ser os do
contrato definitivo, o que se consegue pela equiparação;
ii. Na preferência, tem-se um contrato preparatório, que pode desembocar no dever
de contratar, procedendo as razões que, na promessa, conduzem à regra da
equiparação;
iii. O art.º 415.º, embora epigrafado “forma”, limita-se a remeter, sem excepções
nem distinções, para o art.º 410.º, n.º 2, o qual pressupõe a aplicabilidade do
primeiro número deste artigo;
iv. Que o regime do contrato-promessa é a base para a construção do regime de
outros contratos prévios.
Este Autor defende, subsequentemente, a aplicabilidade, ao pacto de preferência, das
regras aplicáveis à capacidade, à conformidade legal e aos demais requisitos atinentes ao
objecto (art.º 280.º, CC), próprias do contrato preferível. Ainda nos termos do aplicável art.º
410.º, n.º 1, devem ser excepcionadas as regras que, pela sua razão de ser, não caibam na
preferência. No entanto, a aproximação preconizada não deve conduzir a resultados tão
estritos como os verificados no contrato-promessa, dado que no pacto de preferência,
contrariamente ao contrato-promessa, apenas se encontra prefixado o tipo geral do
contrato definitivo, geralmente a compra e venda.

O art.º 415.º, remetendo para o art.º 410.º, n.º 2, leva a que a forma aplicável ao pacto de
preferência seja equivalente àquela aplicável ao contrato-promessa.
Assim, se a preferência respeitar a contrato para cuja celebração a lei exija documento
(autêntico ou particular), o pacto só é válido se constar de documento escrito, assinado pelo
obrigado, não sendo necessária a assinatura da outra parte, visto esta não ser promitente.
No entanto, Menezes Cordeiro nota que seria pouco compaginável uma preferência ad
nutum, pelo que ou existe uma contraprestação – o prémio da preferência – ou este inclui-se,
como cláusula, num pacto mais vasto, de onde promanam deveres para ambas as partes.
Neste caso e para este Autor, será exigível, se necessário, a assinatura de ambas as partes,
aplicando-se na falta de uma destas o regime do contrato-promessa, relativo à redução ou
conversão.

O pacto de preferência tem, geralmente, eficácia obrigacional ou inter partes. Portanto, o


seu titular não é chamado sequer a exercer o seu direito nos processos de execução, de
falência, de insolvência, etc., nem procedendo a preferência contra a alienação efectuada
nos processos dessa natureza.
No entanto, a preferência pode ser eficaz contra terceiros, se gozar de eficácia real, quando
se reporte a bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo. Para tal, devem ser verificados os
requisitos exigidos para o caso paralelo do contrato-promessa, ou seja:
i. Constar a preferência de escritura pública ou de documento particular
autenticado, salvo se a lei não exigir essa forma para o contrato preferível, caso
em que se exige apenas documento particular com reconhecimento da assinatura
do obrigado;
ii. Pretenderem as partes atribuir-lhe eficácia real;
iii. Inscreverem-se no registo os direitos emergentes da preferência.
Neste caso, a preferência será oponível ao terceiro adquirente da coisa e será igualmente
atendível nos processos de execução ou de liquidação, em que os direitos de origem
convencional, dada a sua eficácia erga omnes, serão tratados como os direitos legais de
preferência, sem prejuízo da prioridade devida em qualquer caso a estes últimos. Havendo,
porém, direitos reais de gozo ou de garantia anteriormente registados sobre a mesma coisa,
o direito de preferência, embora goze de eficácia real, não os pode afectar.

O modus praelationis; o terceiro

O pacto de preferência origina uma relação complexa e duradoura entre as partes, sendo
que até à sua extinção pelo exercício (ou não-exercício) ou por qualquer outra forma de
extinção das obrigações, a preferência existe e deve ser respeitada.
Ao lado da prestação principal – a de dar preferência, a tanto por tanto – e das prestações
secundárias, como a de fazer a competente comunicação, existem deveres acessórios.
Apesar da situação de preferência ser mais lassa que a promessa, surge, entre as partes, uma
situação de confiança e, ainda, uma estruturação material. Portanto, consubstanciam-se
deveres de segurança, de lealdade e de informação, que devem respeitar as partes. Menezes
Cordeiro chama ao relacionamento surgido na situação de preferência de modus praelationis.

O terceiro que pretenda contratar com o obrigado à preferência, desencadeando o


funcionamento do pacto, gera uma situação que deve ser tratada, nos termos gerais, no
regime da eficácia externa das obrigações.

Em sectores delimitados e havendo proximidade entre o terceiro e o obrigado faltoso à


preferência, poderá eventualmente haver tutela de terceiros. Menezes Cordeiro entende que
os deveres acessórios próprios do modus praelationis podem envolver terceiros, em razão de
uma relação de proximidade entre com as partes ou de outro factor que, de forma
equivalente, dê azo a uma situação de confiança.
Os procedimentos de preferência – a comunicação ao preferente

O direito de preferência mostra as suas potencialidades quando o obrigado à preferência


obtenha uma proposta firme, por parte de um terceiro. Nessa altura, entra-se num
procedimento, i.e., um conjunto articulado de actos, que poderá levar ao exercício da
preferência.
O procedimento de preferência é desencadeado perante uma verdadeira proposta de
contrato que se insira no objecto da preferência, desde que o obrigado à preferência esteja
interessado nela. Tal proposta será, em regra, formulada pelo terceiro; poderá ter sido
iniciativa do obrigado à preferência, obtendo a concordância do terceiro mas sem que, daí,
derive um contrato. Requer-se uma proposta firme e completa, de modo que, uma vez dada
a forma exigida, uma aceitação simples faça surgir o contrato.

Na posse dessa proposta, o obrigado à preferência deve comunicá-la ao preferente,


dispondo o art.º 416.º, n.º 1:
“Querendo vender a coisa que é objecto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o
projecto de venda e as cláusulas do respectivo contrato.”
A comunicação deverá ser feita pelo obrigado à preferência ou por alguém que, com poderes
bastantes, o represente.
A comunicação deve ser feita ao preferente, podendo haver vários preferentes, caso em que
a comunicação para preferência deve ser feita a todos.
Para Menezes Cordeiro, o projecto de negócio deve ser comunicado, nos seguintes termos:
i. A proposta – devidamente caracterizada enquanto tal e sobre a qual já exista um
acordo de princípio, embora, não o contrato; não chegam intenções não
definitivas nem projectos hipotéticos;
ii. Clausulado completo – ou, pelo menos, com todos os elementos essenciais que
relevem para a formação da vontade de preferir ou não preferir; a falta de factores
relevantes ou o facto de, depois da comunicação, se concluir o negócio com o
terceiro, mas em condições diferentes, invalida a comunicação feita;
iii. Identificando a pessoa do terceiro, nessa qualidade; também aqui a comunicação
ineficaz se, depois, o negócio definitivo for celebrado com pessoa diferente da
indicada na comunicação;
iv. Pedindo uma resposta, quanto ao exercício do direito de preferência – de outro
modo, poderá passar por uma mera informação;
v. Chegando a comunicação ao conhecimento efectivo do preferente.
Menezes Cordeiro admite que, apenas, na comunicação, não seja desde logo inserida a data
da escritura, uma vez que esta depende da colaboração entre os contratantes.

A comunicação da identidade do terceiro interessado tem levantado dúvidas, ainda que a


jurisprudência esteja consolidada no sentido de se entender que deve ser comunicada a
identidade do terceiro, advindo, no entanto, as dúvidas do facto da lei, expressamente, a não
exigir ou de ser procurarem distinguir as situações em que, pela presença de especiais
vínculos entre os envolvidos, essa indicação poderia ter relevância. Menezes Cordeiro
entende que a necessidade de se comunicar a identidade do terceiro interessado se funda na
gestão intrinsecamente privada dos interesses em jogo, pelas funções histórico-sociais da
preferência e pelas necessidades de controlo objectivo do processo.

A comunicação não está sujeita, por lei expressa, a nenhuma forma, entendendo até alguma
jurisprudência que esta pode ser mesmo verbal. Para uma comunicação relativa a um
contrato definitivo para o qual a lei exija documento, seja particular ou autêntico, exige-se,
porém, forma escrita (art.º 410.º, n.º 2, CC). A comunicação, a ser aceite pelo preferente,
gera um dever – contratual – de contratar ao qual se aplica o regime do contrato-promessa.
A comunicação pode, ainda, seguir a forma de notificação judicial, observando-se, nessa
altura, o disposto no art.º 1458.º do Código de Processo Civil.

A comunicação deve ser feita quando exista uma proposta contratual eficaz e enquanto tal
eficácia se mantiver ou, pelo menos, na presença de um projecto de contrato firme e sério.
A não se verificarem tais requisitos, das duas uma:
i. Ou o preferente prefere, convicto de que, se não o fizer, o terceiro ficará com o
negócio – estando enganado, já que o terceiro não celebraria tal contrato;
ii. Ou o preferente rejeita, deixando o negócio para o terceiro que, afinal, não o quer.
A lei fixa um prazo curto para que o preferente se pronuncie – oito dias (art.º 416.º, n.º 2, CC)
– a fim de assegurar que a proposta ou o projecto mantêm a sua actualidade.

A resposta do preferente; contrato definitivo

Recebida a comunicação para preferência, manda o art.º 416.º, n.º 2:


“(...) deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo
se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo.”
A fortiori, pode suceder que se tenha pactuado um prazo mais longo, altura em que este seja
o observável.

São possíveis enquadrar-se as seguintes atitudes do preferente:


i. Ou exerce a preferência – o que significa a aceitação pura e simples do contrato,
com o conteúdo indicado pelo obrigado;
ii. Ou renuncia à preferência – declarando que não está interessado;
iii. Ou nada faz e o seu direito extingue-se por caducidade.
A renúncia antecipada não é válida (art.º 809.º, n.º 1, CC), sendo apenas possível a renúncia
face a uma concreta situação de preferência, já formada e perante todos os elementos da
comunicação. Assim, a renúncia só é eficaz quando se reporte a uma transacção concreta,
quando, ao preferente, tiver sido dado conhecimento do projecto de venda e das cláusulas
do contrato e quando o preferente seja inequívoco e claro.
Na mesma linha, o prazo para a caducidade prevista no art.º 416.º, n.º 2, só começa a correr
perante uma comunicação completa e legitimamente feita e endereçada.
A aceitação da comunicação para preferência, com alterações, modificações ou reticências,
envolve, de pleno direito, a renúncia, por parte do preferente, ao seu direito. Qualquer outra
solução implicaria um acordo fora do direito de preferência em causa, valendo, neste caso, a
primeira parte do art.º 233.º.
Havendo aceitação da comunicação de preferência, perfila-se o contrato definitivo, i.e., o
contrato visualizado pelo pacto de preferência – ou pela preferência legal – e que, por opção
do beneficiário, se vem mesmo a concluir na esfera deste. Tem-se, assim, três sub-hipóteses:
i. Ou estão reunidas, pela comunicação/aceitação, os requisitos formais do
contrato definitivo, altura em que o mesmo se deve ter por concluído de imediato;
ii. Ou tal não sucede, mas por haver forma escrita, considera-se perfeito um
contrato-promessa relativo ao definitivo, cabendo a ambas seguir os seus
trâmites;
iii. Ou falta esse circunstancialismo e, por via da boa-fé negocial e dos competentes
deveres acessórios, caberá às partes formalizar o definitivo, sob pena, por parte
do obrigado, de violar a preferência e, do preferente, de violar os deveres
acessórios ao mesmo ligado.
Havendo contrato-promessa, a sua execução específica não oferece dúvidas, se necessária.

Se se tratar de notificação judicial para preferência (art.os 1028.º e ss., CPC), a lei exige que
o contrato preferível seja celebrado no prazo de vinte dias após o exercício da preferência.
Se tal não acontecer, deve o preferente, sob pena de perda do seu direito (art.º 1028.º, n.º 3,
CPC) “requerer, nos 10 dias subsequentes, que se designe dia e hora para a parte contrária
receber o preço por termo no processo, sob pena de ser depositado, podendo o preferente
depositá-lo no dia seguinte, se a parte contrária, devidamente notificada, não comparecer
ou se recusar a receber o preço” (art.º 1028.º, n.º 2, CPC). Efectuado o pagamento ou
depositado o preço, os bens são adjudicados pelo tribunal ao preferente, com eficácia
retroactiva à data do pagamento ou do depósito (art.º 1028.º, n.º 4, CPC).

Venda da coisa conjuntamente com outras

O art.º 417.º, n.º 1, prevê a hipótese de venda da coisa juntamente com outras, tratando-se
de um preceito dirigido à compra e venda:
“Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o
direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo
lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem
separáveis sem prejuízo apreciável.”
O regime da venda de coisa juntamente com outras aplica-se mesmo em casos de
preferência com eficácia real (art.º 417.º, n.º 2, CC).
A sequência será a seguinte:
i. O obrigado à preferência faz a comunicação da venda da coisa conjuntamente
com outras, não se considerando como tal a hipótese de vendas simultâneas com
valores individualizados, o que nem sempre será exacto – depende da vontade
das partes e da substância económica do negócio;
ii. Recebida a comunicação, o preferente pode exercer o seu direito em relação à
coisa-objecto, pelo preço que proporcionalmente lhe caiba: quando esteja este
indicado, não existe qualquer problema, embora se possa mostrar que não é ele
o valor venal; quando este não se encontrar indicado, o preferente depositará –
havendo lugar a depósito – o valor que, perante a boa-fé, achar razoável, fazendo
depois os ajustes decididos pelo tribunal, ou fazendo-se uma proporção simples
e relegando para execução de sentença o valor a pagar;
iii. Caso entenda que a separação lhe traz um prejuízo considerável, o que terá de
provar, pode o obrigado à preferência exigir que a preferência abranja todo o
conjunto – a discordância do preferente envolve oposição ao projecto e renúncia
à preferência.

Menezes Leitão entende que o art.º 417.º visaria as uniões de contratos e o art.º 418.º os
contratos mistos.

Prestação acessória; uniões de contratos e contratos mistos

O obrigado à preferência pode, no âmbito do negócio em que pretenda celebrar com o


terceiro, acordar uma prestação acessória – em bom rigor, secundária – que o preferente não
possa satisfazer (art.º 418º, n.º 1, 1.ª parte, CC), observando-se, neste caso, o seguinte (art.º
418.º, n.º 1, CC):
a. A prestação deve ser compensada em dinheiro;
b. Não sendo avaliável em dinheiro, é excluída a preferência;
c. A menos que seja “lícito presumir” que a venda seria efectuada mesmo sem a
prestação estipulada;
d. Ou que ela foi convencionada para afastar a preferência.
Neste último caso, mesmo quando avaliável em dinheiro, o preferente não é obrigado a
satisfazê-la. No caso de se tratar de uma prestação acessória não avaliável em dinheiro,
afasta-se, de facto, a preferência. Assim, a prova de que esta foi feita – apenas – com o intuito
de afastar a preferência é muito difícil, salvo completa chicana do obrigado e do terceiro.
Deve partir-se, desta forma, da regra de que tudo é avaliável em dinheiro e de que o ónus da
pessoalidade isenta compete ao obrigado à preferência.

As valorações subjacentes ao art.º 417.º apontam para as seguintes questões:


i. O contrato – ou a união – que inclua a matéria preferível é, ou não, divisível;
ii. E não sendo divisível, pode, ou não, o preferente satisfazê-lo.
A primeira questão abrange tanto as uniões de contratos como os contratos mistos.
Dependendo das circunstâncias, podem umas e outros ser desagregados, sem prejuízo para
o interessado. As valorações do art.º 417.º permitem, nesse caso, a divisão, de modo a que o
preferente exerça o seu direito no que lhe competia. À partida, os negócios e as uniões não
são divisíveis, pelo que existe, nesta situação, um beneficium divisionis a favor do preferente,
desde que este não prejudique o obrigado, sendo o critério o comum, o do valor ou da perda
do valor.
Sendo o negócio divisível, procede-se à desarticulação e ao exercício da preferência na
parcela respectiva; não o sendo, o preferente ou desiste ou prefere no conjunto.

A segunda valoração tem a ver com a fungibilidade do negócio projectado, pelo que, saindo
do estrito plano da preferência e, portanto, quando esta recaia em objecto ou em conteúdo
inseridos em negócio mais vasto e não sendo eles divisíveis, o exercício do direito do
preferente sobre o conjunto implica que o mesmo seja fungível. Sendo-o, ele preferirá, ou
não, sobre o conjunto, consoante a decisão jurídico-económica que possa ou entenda tomar.
Não o sendo, a lei permite:
i. Ou a conversão da parte não-fungível em dinheiro;
ii. Ou ao afastamento da preferência quando isso não seja possível;
iii. Ou o afastamento da parte não-fungível, quando não seja essencial ou quando
tenha fins fraudulentos.
O art.º 418.º contém doutrina que não se limita aos contratos complementares, devendo-se
antes estender a todo o universo das uniões de contratos e dos contratos mistos, quando não
sejam desagregáveis e se apresentem não-fungíveis.

Pluralidade de preferentes
O art.º 419.º soluciona, à luz dos princípios gerais, as hipóteses de pluralidade de titulares
do direito de preferência. Tem-se três possibilidades básicas, que abrem sempre na
indivisibilidade dos direitos – ou cada um exerceria a sua parte:
a. Preferências conjuntas – só podem ser exercidas por todos os preferentes, em bloco,
e o obrigado só perante todos eles se exonera (art.º 419.º, n.º 1, 1.ª parte, CC), mas se
o direito se extinguir em relação a algum deles ou ele não o quiser exercer, acresce
aos restantes (art.º 419.º, n.º 1, 2.ª parte, CC), v.g. comunhão.
b. Preferências disjuntas – só um deles pode exercer o direito, afastando, com isso, os
restantes – não existindo processo de escolha, abre-se licitação, revertendo o excesso
para o obrigado (art.º 419.º, n.º 2, CC), v.g. relações de vizinhança e arrendamento;
c. Preferências sucessivas – existe uma ordem de prevalência entre os diversos
preferentes, designadamente nas preferências legais – o direito é submetido ao
primeiro, passando ao segundo se ele não quiser exercê-lo e assim sucessivamente.
Em termos de comunicação, esta deve ser realizada, sempre, a todos os preferentes, só
depois se abrindo o processo de escolha entre eles. Não pode um preferente exercer
validamente o seu direito se não mostrar que todos os outros foram avisados e que não
quiseram ou não puderam preferir. Quanto muito, entender-se-á nas preferências
sucessivas, preferindo o de grau superior, não há que indagar de comunicações aos
restantes.

O direito e a obrigação convencionais de preferência não são transmissíveis nem em vida


nem por morte, salvo estipulação em contrário (art.º 420.º, CC). O direito de preferência é,
assim, intuitu personae, prevenindo-se o agravamento que adviria, para a posição do
obrigado à preferência, da passagem do direito a herdeiros e legatários.

Preferência com eficácia real – aspectos gerais

Havendo eficácia real, a preferência produz efeitos perante os terceiros adquirentes da coisa
em jogo, através de uma acção a tanto destinada – a acção de preferência, sendo esse o
sentido da remissão para o art.º 1410.º, feita no art.º 421.º, n.º 2.
Pactuada uma preferência com eficácia real, esta pode operar tanto para a primeira
transmissão como para sucessivas, dependendo da estipulação das partes. O registo
protegerá a confiança dos sucessivos adquirentes, os quais ficarão obrigados à competente
obrigação de comunicação. Nada dizendo, e dada a natureza real da preferência, entender-
se-á que, estando registada, ela perdura através das transmissões ulteriores.
Em todo o direito, enxameiam os casos de preferências legais, sabidamente de tipo real.
Assim, é a propósito de tais preferências que tem sido equacionada a eficácia real e testados
os seus meandros.

Âmbito da acção de preferência

A acção de preferência vem regulada no art.º 1410.º, aquando do direito de preferência do


comproprietário. Esta permite ao preferente, em caso de violação de uma preferência real,
fazer seu o negócio faltoso, i.e., afastar o terceiro adquirente e subingressar na posição dele.
Na sua redacção actual, o art.º 1410.º, n.º 1, dispõe:
“O comproprietário a quem não se dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o
direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a
contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o
preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção.”
Para a acção de preferência ter um efectivo papel, ela não é prejudicada, bem como o direito
de preferência que vise realizar, pela modificação ou distrate da alienação faltosa, ainda que
resultantes de confissão ou transacção judicial (art.º 1410.º, n.º 2, CC).

A acção de preferência tem como âmbito os diversos direitos de preferência real perante
qualquer contrato preferível.

A doutrina divide-se relativamente a quem tem legitimidade passiva, a saber:


i. A acção deverá ser intentada contra o adquirente e o alienante faltoso, em
litisconsórcio – defendida por Antunes Varela e Menezes Leitão;
ii. A acção deverá ser intentada apenas contra o actual possuidor da coisa –
defendida pela restante doutrina – defendida por Mota Pinto, Galvão Telles,
Almeida Costa, Ribeiro de Faria e Menezes Cordeiro.

O prazo e o alcance do depósito do preço


A acção de preferência deve ser intentada no prazo de seis meses a contar da data em que o
preferente teve conhecimento “dos elementos essenciais da alienação”.
Para se iniciar o decurso desse prazo, é, portanto, necessário que o preferente tenha acesso
ao objecto do contrato, ao preço e à identidade do adquirente. Em termos processuais, o
preferente, quando intente acção passados os seis meses sobre a alienação faltosa, sujeitar-
se-á a que lhe seja levantada a excepção da caducidade, cabendo-lhe, então, demonstrar o
momento em que teve conhecimento das condições essenciais da venda ou, pelo menos,
que dele não teve conhecimento há mais de seis meses sobre a data da acção.

É exigido, nos 15 dias subsequentes à propositura da acção, o depósito do preço devido. A


doutrina diverge relativamente àquilo que deve ser entendido por preço:
a O “preço” abrangeria outras despesas suportadas necessariamente pelo adquirente
– defendida por Antunes Varela e Almeida Costa;
b O preço estrito, i.e., a quantia paga ao alienante- defendida pela maioria da
jurisprudência.
Neste caso, Menezes Cordeiro entende que o que se encontra em causa não é a totalidade
daquilo que o preferente deva pagar, mas apenas um depósito inicial, a fim de que a acção
possa prosseguir. Esse depósito equivale, de resto, a um preço pago ad nutum, enquanto o
terceiro adquirente terá podido, possivelmente, fraccioná-lo, sendo também complexo
precisar o montante das outras despesas.

A jurisprudência tem também defendido que o preço deve ser depositado em dinheiro, não
bastando uma garantia bancária.

A simulação

A preferência com eficácia real e a daí derivada acção de preferência levantam o problema
relativo a quando a alienação feita pelo obrigado à preferência, a um terceiro, assente num
contrato simulado.
Há simulação quando se reúnam cumulativamente três requisitos (art.º 240.º, CC):
a. Um acordo entre o declarante e o declaratário;
b. No sentido de uma divergência entre a declaração e a vontade das partes;
c. Com o intuito de enganar terceiros.
Estes elementos devem ser invocados e provados por quem pretenda prevalecer-se da
simulação ou de aspectos do seu regime.
O acordo entre as partes é essencial para prevenir a confusão com o erro ou a reserva mental,
surgindo a divergência entre a vontade e a declaração como dado essencial da simulação e
prendendo-se o intuito de enganar terceiros com a criação de uma aparência. Terceiros são,
neste caso, quaisquer pessoas alheias ao conluio, não necessariamente ao contrato
simulado.

Existem diversos tipos de simulação, sendo esta fraudulenta quando vise prejudicar alguém
– animus nocendi ou animus decipiendi – ou inocente, quando não tenha tal escopo. A
simulação é absoluta quando as partes não pretendam celebrar qualquer negócio, ou
relativa, quando sob a simulação se esconda um negócio verdadeiramente pretendido – o
negócio dissimulado. A simulação diz-se objectiva quando a divergência voluntária recaia
sobre o objecto do negócio ou sobre o seu conteúdo, sendo subjectiva quando ela incida
sobre as próprias partes.

O negócio dissimulado e a posição dos terceiros

O art.º 240.º, n.º 2, considera, lapidarmente, o negócio simulado como nulo, não se
tratando, no entanto, de verdadeira nulidade, dado que esta não pode ser invocada por
qualquer interessado nem – a fortiori – ser declarada oficiosamente pelo tribunal (cf. Ac. STJ
25/03/2003). Assim, o negócio simulado não produz efeitos entre as partes e perante
terceiros que conheçam ou devessem conhecer a simulação.
A simulação não prejudica a validade do negócio dissimulado, dispondo-se apenas que,
quando tenha natureza formal, ele só seja válida se houver sido observada a forma exigida
pela lei (art.º 241.º, n.º 1, CC).

Os próprios simuladores, mesmo na simulação fraudulenta, têm legitimidade para arguir a


simulação (art.º 242.º, n.º 1, CC), tratando-se de um preceito que visa ladear a eventual
invocação do tu quoque. Os interessados prejudicados, nos seus direitos legitimários pela
sucessão, estão legitimados a arguir a simulação (art.º 242.º, n.º 2, CC). A nulidade é
invocável, nos termos gerais, por qualquer interessado (art.º 286.º, CC), contra os
simuladores ou os seus herdeiros.
No entanto, os simuladores não podem invocar a simulação contra terceiros de boa-fé (art.º
243.º, n.º 1, CC), ou seja, contra terceiros que desconheçam, sem culpa, a simulação.
Determina-se a má-fé do terceiro perante o registo da acção de simulação (art.º 243.º, n.º 3,
CC).

A regra da inoponibilidade da simulação a terceiros de boa-fé suscita um delicado problema


de justiça no seu confronto com as preferências com eficácia real, podendo gerar um
enriquecimento escandaloso para o preferente. Vaz Serra, Castro Mendes e Antunes Varela
vieram defender que a simulação é, em qualquer caso, inoponível a terceiros de boa-fé.
Menezes Leitão entende que existe um investimento de confiança por parte do titular da
preferência, levando a que fosse manifestamente iníquo que, tendo o preferente feito o
legalmente exigido para a procedência da acção de preferência, suportando despesas para o
efeito, que visse no fim a acção improceder, pelos simuladores virem, contrariamente ao
art.º 243.º, n.º 2, invocar a simulação de preço que eles próprios tinham declarado em
documento autêntico e em cuja exactidão o preferente confiou. Portanto, este Autor
entende que, em caso de celebração de negócio simulado, pode o titular da preferência
exercê-la pelo preço simulado. Contrariamente, Mota Pinto, Almeida Costa, Carvalho
Fernandes e Menezes Cordeiro defendem que o objectivo da lei, perante os interesses em
presença, nunca poderia ser o de facultar o enriquecimento do preferente, sendo esta última
posição sufragada.
Os terceiros preferentes não podem, para Menezes Cordeiro, invocar “boa-fé” para optarem
por um preço inferior ao real, inexistindo, portanto, para este Autor, qualquer investimento
de confiança, ressalvando, no entanto, a possibilidade do ressarcimento das despesas e
demais danos causados ao preferente, quando ele próprio esteja de boa-fé.
A simulação pode, nos termos gerais, ser constatada na própria acção de preferência, aí
sendo, então, declarada a competente nulidade, de modo a poder preferir-se pelo preço real.
Apenas na hipótese do surgimento de uma acção de simulação autónoma será necessário,
ao preferente, aguardar pelo trânsito em julgado de decisão que declare a nulidade, para
preferir por esse preço, podendo, em alternativa, preferir desde logo pelo preço real.
Quando as partes, a fim de afastarem o preferente, declaram um preço superior ao
efectivamente combinado e praticado, o preferente pode invocar a nulidade do negócio
simulado e preferir pelo preço real. Na mesma linha, o preferente pode invocar a nulidade de
uma doação, quando esta vise encobrir uma compra e venda dissimulada, tendo-se recorrido
a tal esquema justamente para afastar a preferência.

A prova da simulação

A prova testemunhal do acordo simulatório e do negócio dissimulado é aparentemente


proibida (art.º 394.º, n.º 2, CC).
De qualquer forma, a simulação é, só por si, difícil de provar, pelo que o impedimento da
prova testemunhal equivale, frequentemente, a restringir, de modo indirecto, a prescrição
do art.º 240.º, n.º 2, relativo à nulidade da simulação. A confiança de terceiros encontra-se,
no entanto, tutelada pelo art.º 243.º.
Assim, tem-se vindo a defender um entendimento restritivo do art.º 394.º, n.º 2, pelo que,
havendo um princípio de prova escrita, é admissível complementá-la através de
testemunhas, podendo até os próprios simuladores serem ouvidos sobre a simulação, em
depoimento de parte.

Menezes Leitão entende que é impossível a prova testemunhal do acordo simulatório e do


acordo dissimulado, visando evitar que, com base numa prova testemunhal de “conteúdo
altamente duvidoso, se venha pôr em causa, a fiabilidade do documento autêntico”. No
entanto, Menezes Cordeiro responde afirmando que o princípio da livre apreciação da prova
testemunhal dá toda a margem para o juiz não se deixar convencer.

A natureza da obrigação de preferência

Para Manuel de Andrade e Galvão Telles, a obrigação de preferência corresponde a uma


verdadeira obrigação de contratar, sujeita simultaneamente a uma condição potestativa a
parte debitoris, a de que o devedor tome a decisão de contratar, e a uma condição potestativa
a parte creditoris, de que o credor queira exercer a sua preferência – teoria da dupla condição.
Para Henrique Mesquita e Cardoso Guedes, a preferência não corresponderia a uma
obrigação, mas antes a uma sujeição, adquirindo o titular da preferência, no caso de o
obrigado decidir contratar com outrem, um direito potestativo a constituí-lo no dever de
celebrar o contrato – teoria do direito potestativo.
Para Menezes Leitão e Carlos Lacerda Barata, a obrigação de preferência teria antes um
conteúdo negativo: o de não celebrar com mais ninguém o contrato, em relação ao qual se
deu preferência, a não ser com o titular da preferência, salvo se este renunciar à preferência
– teoria do facto negativo.
Antunes Varela, Menezes Cordeiro e João Redinha entendem que não existirá na obrigação
de preferência nem uma obrigação de contratar, nem um negócio condicional, tendo,
porém, a obrigação conteúdo positivo – escolher o titular da preferência como contraparte,
no caso de se decidir a contratar – teoria do facto positivo.

Pacto de opção – noção básica

O pacto de opção é um contrato pelo qual uma das partes (o beneficiário, o titular ou o
optante) recebe o direito de, mediante uma simples declaração de vontade dirigida à outra
parte (o vinculado ou o adstrito à opção), fazer surgir o contrato entre ambas combinado – o
contrato definitivo.

Menezes Cordeiro entende que, à imagem da promessa, é possível introduzir o conceito de


“optabilidade”, i.e., a susceptibilidade que os contratos tenham de poder ser objecto de
pactos de opção.
No domínio do Direito das Obrigações vigora a autonomia privada, permitindo a liberdade
contratual (art.º 405.º, CC) às partes, em regra, introduzir em opção a conclusão de quaisquer
contratos. No entanto, a opção é, apesar de tudo, um minus relativamente ao contrato
definitivo, sendo que se as partes podem concluir certos contratos, poderão, relativamente,
fechar opções. Todavia, a opção está estruturalmente vocacionada para posições
patrimoniais disponíveis, aplicando-se, directamente ou por analogia, as regras sobre a
prometibilidade em sentido forte.
Não é possível a opção relativamente a contratos que excluam a execução específica ou que
exijam, na conclusão, operações que transcendam a mera declaração unilateral do optante.
Esta é excluída no contrato de trabalho (art.º 103.º, n.º 3, CT), sendo admissível quanto a
contratos reais quoad constitutionem se o optante – ou alguém por ele – já detiver o controlo
material da coisa.
A hipótese de uma “opção” que, uma vez exercida, obrigaria o adstrito a entregar a coisa
para, assim, se completar o definitivo é lícita e eficaz, não sendo, no entanto, uma opção.
Trata-se de uma figura atípica, próxima da opção, mas que não é de puro funcionamento
potestativo.

A opção representa, para o seu beneficiário, uma vantagem evidente, permitindo-lhe, por
sua exclusiva vontade, adquirir uma determinada posição jurídica, traduzindo, em
compensação, uma desvantagem de conteúdo inverso para o adstrito.
É compreensível, por isso, a existência de uma contrapartida monetária na concessão de
uma opção – um preço –, pagando o optante ao adstrito pela constituição da opção.
A cláusula de pagamento tem natureza acessória, podendo escapar à forma imposta à opção
(art.º 221.º, CC), sendo, no entanto, recomendada, por razões de clareza, de facilidade de
prova e de linearidade fiscal, a sua inserção no próprio pacto. No entanto, se, por razões de
negócios, for inconveniente o seu conhecimento no mercado, recomenda-se a sua inserção
num segundo documento.

Regime e construção dogmática

O regime do pacto de opção é enformado pelo princípio da equiparação, seguindo este o


regime do contrato definitivo, excepto no que tanja ao seu cumprimento.
A opção não é um tipo de contrato, sendo uma figura geral, i.e., um modo de estar de in
contrahendo.
Perante cada hipótese de opção, por mera declaração unilateral, dá azo ao contrato
definitivo, pelo que esta apenas será válida e eficaz se, perante o concreto contrato definitivo
em causa, ela reunir os diversos requisitos pré-figurados.
Pode-se precisar:
i Quanto à forma – aplica-se, sem aligeiramento, a forma do definitivo pois a
opção, tornando-se eficaz a declaração do optante, é o definitivo;
ii Quanto aos pressupostos – funcionam os do definitivo, podendo-se hesitar no
tocante à legitimidade, uma vez que esta, faltando ab initio, poderia ser
recuperada antes do exercício do direito; nessa eventualidade ter-se-ia o misto de
opção com o dever de adquirir a coisa;
iii Quanto à execução – a opção cessa com o seu exercício, passando a integrar o
definitivo; consequente e logicamente, as regras deste só nessa altura se
manifestam.
A aplicabilidade do princípio da equiparação é ainda reforçada pela proximidade entre a
opção e o inerente definitivo condicionado à vontade do beneficiário (si volet). Nessa
eventualidade, ter-se-ia um único negócio, com a cláusula si volet – uma condição
potestativa, ligada à pura opção do beneficiário e que poria em acção um contrato já
acordado.

A opção tem uma especialidade: normalmente pactuada pelas partes mas, em certos
domínios, ditada pela prática comum e apoiada nas circunstâncias que a rodeia. Esta dá azo,
na esfera do optante, a uma posição livremente disponível.

A opção integra-se, muitas vezes, em contratos mais vastos.

Direitos e deveres, execução e incumprimento

O pacto de opção origina direitos e deveres para ambas as partes. No que toca ao optante,
ele recebe o direito potestativo de, por uma simples manifestação da sua vontade, provocar
o aparecimento do contrato definitivo.
O direito de opção é exercível pelo tempo estipulado pelas partes, ocorrendo que, na
hipótese de as partes nada terem clausulado nesse domínio, Menezes Cordeiro entende que
se deve aplicar, por analogia, o art.º 411.º, pedindo o vinculado, ao tribunal, que fixe um
prazo razoável para o seu exercício.
O optante deve satisfazer as cláusulas acessórias a que, porventura, esteja sujeito, com
relevo para o pagamento do preço da opção, quando pactuado. Este fica também inserido
numa teia de deveres acessórios (art.º 762.º, n.º 2, CC) que, entre outros aspectos, o obrigam
a não complicar a posição do adstrito à opção.

O adstrito à opção fica imerso numa situação de sujeição, a qual é, pela natureza das coisas,
insusceptível de violação. No entanto, este fica vinculado a prestações secundárias e deveres
acessórios, de modo a permitir, ao optante, o exercício eventual da opção, retirando, dela,
todas as vantagens que, pela natureza das coisas, ela possa proporcionar.

A execução do pacto de opção centra-se na comunicação da opção – uma declaração


recipienda, dirigida pelo optante ao adstrito, com um conteúdo simples de exercício de
direito – opto. Esta declaração deve ser feita no prazo de eficácia da opção, divergindo a
doutrina relativamente à sua forma:
i. A declaração poderia ser meramente consensual – defendida por Baptista
Machado e Vaz Serra;
ii. A declaração deve assumir a forma exigida para o contrato definitivo – defendida
por Menezes Cordeiro e Tiago Soares da Fonseca.
A declaração de opção é um acto jurídico unilateral – comportando liberdade de celebração,
mas não de liberdade de estipulação, uma vez que tudo foi decidido no próprio pacto. É-lhe
aplicada o regime dos negócios, por via do art.º 295.º, mas na medida em que a analogia das
situações o justifiquem, segundo esse mesmo preceito. A declaração de opção é um acto
sobre um negócio, indo alterar a eficácia que já advinha deste, pelo que as razões especiais
que sustentem uma forma solene lhe são aplicáveis (art.º 221.º, n.º 2, CC).

A opção tem uma estrutura que não lhe permite encarar com facilidade o seu próprio
incumprimento, em virtude de se ter, no seu cerne, um direito potestativo e uma sujeição. O
incumprimento de uma opção residirá, fundamentalmente, na inobservância de prestações
secundárias que tenham sido pactuadas ou na desatenção pelos deveres acessórios que
recaiam, ex bona fide, em qualquer das partes.
No caso do adstrito à opção alienar a coisa que era suposto manter para o optante, aplica-
se, por analogia, o art.º 274.º, tornando-se a venda a terceiro ineficaz quando a opção seja
exercida – o optante adquire a propriedade da coisa onde quer que ela esteja, podendo exigir,
depois, a sua entrega. Ressalvam-se apenas as hipóteses de o terceiro poder, por razões
próprias, invocar a usucapião ou a aquisição tabular. Ocorre, em qualquer caso, violação de
prestações secundárias e de deveres acessórios, pelo que o adstrito deverá indemnizar o
optante pelas maiores despesas que tenha ocasionado.
A venda feita nestas condições é meramente ineficaz no caso de exercício da opção, sendo,
fora desse caso, válida e legítima, produzindo efeitos até ao exercício deste direito
potestativo.

Se o adstrito destruir a coisa ou se recusar a entrega-la, o optante pode exercer o seu direito
– o qual visa o contrato e não a coisa. Caso o exerça e a coisa haja sido destruída, verifica-se
a violação da propriedade e do contrato definitivo; de igual modo, a recusa da entrega da
coisa implica a inobservância do definitivo e o desrespeito pela propriedade. O optante pode,
neste caso, reagir usando os competentes institutos.

Actuada a opção, surge o contrato definitivo, o qual deve ser cumprido.

A natureza da opção

Na determinação da natureza da opção, encontram-se, na sua construção dogmática, duas


grandes teorias:
i. A teoria unitária;
ii. A teoria da separação.

Pela teoria unitária, a opção e o contrato principal constituiriam um único contrato, sendo a
opção, no fundo, um contrato condicionado à conclusão da vontade do optante.
A teoria da separação contrapõe o papel específico da opção, o seu teor criativo e a
descontinuidade entre a opção e o principal. Posta a questão nestes termos, a teoria da
separação é, no entender de Menezes Cordeiro, a recomendável, em virtude da opção
suscitar valorações próprias e um regime distinto, que não se dilui no definitivo.

Contrato a favor de terceiro – generalidades


O contrato a favor de terceiro é o contrato em que um dos contraentes (promitente) atribui,
por conta e à ordem do outro (promissário), uma vantagem a um terceiro (beneficiário),
estranho à relação contratual.
A vantagem traduz-se, em regra, numa prestação assente sobre o respectivo direito de
crédito, podendo, no entanto, consistir na liberação de um débito, na constituição,
modificação ou extinção de um direito real.
É essencial para o contrato a favor de terceiro, como figura típica autónoma, que os
contraentes procedam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (de crédito ou
real) a terceiro ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o
beneficiário.
Nos casos em que as partes celebrarem um contrato cuja prestação principal se destine a
terceiro, mas sem que este adquira previamente, segundo a intenção dos contraentes e o
próprio conteúdo do contrato, qualquer direito de crédito à prestação, estar-se-á perante um
contrato autorizativo da prestação a terceiro, sendo o único credor da prestação um dos
contraentes. Os terceiros reflexamente beneficiados não são titulares de qualquer direito
referente às prestações principais ou secundárias emergentes do contrato, mas dos direitos
correspondentes a alguns dos deveres acessórios de conduta que integram a respectiva
relação contratual.

Então, para que haja contratos a favor de terceiro, é necessário que o terceiro seja titular do
direito à prestação ou beneficiário directo da atribuição nascida do contrato.
Nos contratos a favor de terceiro, deve assinalar-se, em primeiro lugar, os dois contraentes:
o promitente (reus promittendi), a pessoa que promete realizar a prestação; e o estipulante
(reus stipulandi) ou promissário, a pessoa a quem a promessa é feita, perante quem ou à
ordem da qual a vantagem do terceiro é criada. O terceiro beneficiário adquire direito à
prestação ou a outro benefício, em regra desde a celebração do contrato.

O Código Vaz Serra não só reconheceu em termos muito amplos a validade das estipulações
a favor de terceiro, como traçou com bastante latitude o quadro das espécies que elas
abrangem, contrariamente à proibição histórica de estipulações a favor de terceiro (alteri
stipulari nemo potest).
O único requisito estabelecido para a validade do contrato é paralelo ao que vigora para a
constituição de qualquer obrigação, exigindo-se que o promissário ou estipulante tenha na
prestação prometida ao terceiro um interesse digno de protecção legal.
A lei consagra não apenas a eficácia dos contratos com eficácia obrigacional, mas também
a dos contratos liberatórios (art.º 443.º, n.º 2, CC) e a dos contratos constitutivos,
modificativos ou extintivos de direitos reais, que não envolvem nenhuma obrigação do
promitente em relação ao terceiro beneficiário. Através desses contratos, que contêm
verdadeiros actos de disposição a favor de terceiro, operam-se imediatamente na esfera
jurídica do terceiro os efeitos decorrentes do contrato.
Não é exigida a gratuitidade da vantagem proporcionada ao beneficiário.

Relação entre promissário e promitente

O contrato a favor de terceiro é, no seu aspecto instrumental, o meio de que o promissário


se serve para efectuar uma atribuição patrimonial indirecta – porque obtida através da
prestação do promitente – em benefício de terceiro.
A prestação usada para esse fim provém da relação já existente ou criada no momento do
contrato, entre o promissário e o promitente – relação essa que pode ter a mais variada
natureza –, chamando-se de relação de cobertura ou provisão.
No entanto, o direito atribuído ao beneficiário integra-se numa outra relação, estabelecida
entre o promissário e o terceiro beneficiário, chamada relação de valuta.
A relação de cobertura ou de provisão tem uma importância fundamental na fixação dos
direitos e deveres recíprocos do promitente e do promissário, bem como na determinação
dos meios de defesa que podem opor um ao outro. A relação de cobertura é também
fundamental na determinação das relações entre promitente e terceiro, dado que o
promitente pode opor a terceiro todos os meios de defesa derivados do contrato (art.º 449.º,
CC). Fica vedado ao promitente invocar os meios de defesa baseados em qualquer outra
relação entre ele e o promissário ou na relação de valuta entre promissário e terceiro.
Se tiver já cumprido, e o contrato que serve de cobertura à prestação vier a ser declarado
inválido ou perder, por outro motivo qualquer, a sua eficácia, o promitente não poderá, em
princípio, repetir a prestação já efectuada, se a relação de valuta se mantiver. A prestação só
será repetível nos termos do art.º 478.º, se forem verificados os pressupostos necessários.
Posição do terceiro. Relação entre o promissário e terceiro

O terceiro adquire direito à prestação como efeito imediato do contrato,


independentemente da aceitação ou até do conhecimento da celebração do contrato. Da
mesma forma, se o contrato revestir alguma das modalidades especialmente previstas no
n.º 2 do art.º 443.º, a eficácia opera-se independentemente da aceitação do terceiro. A
aceitação – adesão, na linguagem legislativa – tem, no entanto, o efeito de precludir a
revogação da promessa por parte do promissário (art.º 447.º, n.º 3, CC). A adesão tem de ser
declarada ao promitente, a quem incumbe realizar a prestação, e ao promissário, para que
não conte com a revogabilidade da promessa.
A aquisição do direito pode, no entanto, ser subordinada a condição ou sujeita a termo.
Enquanto a adesão não for comunicada ao promissário, mesmo que o seja ao promitente,
pode o primeiro revogar a promessa; se a adesão não for comunicada ao promitente, este
não incorrerá em mora, nem estará vinculado aos deveres secundários de conduta que só se
justifiquem após a adesão.
Mesmo após a adesão, o terceiro não se torna contraente, mas apenas titular definitivo do
direito que o contrato lhe conferiu, pelo que, sendo de carácter gratuito a atribuição feita
pelo promissário a terceiro, ela não está sujeita às formalidades próprias da doação.
Ao mesmo tempo que fica obrigado perante o terceiro, relativamente à prestação principal,
o promitente fica naturalmente adstrito a deveres acessórios de conduta.

Em lugar de aceitar o direito, aderindo ao contrato, o terceiro pode rejeitá-lo. Embora a


atribuição do direito represente para o beneficiário uma vantagem, entende-se que esta não
deve ser imposta contra sua vontade (invito non datur benefitum). A rejeição, feita mediante
declaração ao promitente, destrói retroactivamente os efeitos da aquisição imediata do
direito, reconstituindo a situação jurídica existente no momento anterior à celebração do
contrato.
Dado o seu carácter renunciativo, a rejeição está sujeita à impugnação pauliana por parte
dos credores do terceiro beneficiário.
O direito de resolução do contrato, por impossibilidade superveniente da prestação, não
cabe ao terceiro, mas ao promissário, por se tratar de uma faculdade exclusivamente
reservada aos contraentes.

O promissário tem o direito de exigir do promitente o cumprimento da promessa, salvo


estipulação em contrário (art.º 444.º, n.º 2, CC). A coexistência do direito do beneficiário à
prestação com o direito do promissário a exigir também o cumprimento da obrigação pode
suscitar dúvidas e embaraços, especialmente quando haja divergência sobre a forma de
cumprimento da prestação, devendo resolver-se tais dúvidas de forma harmoniosa com a
vontade expressa no contrato pelos contraentes. No entanto, na impossibilidade de tal, deve
atender-se à natureza dos dois direitos na economia da relação.
O direito do promissário a exigir o cumprimento da promessa é um poder instrumental,
acessório, ao serviço do interesse fundamental do terceiro beneficiário.
Quanto ao poder de disposição do terceiro sobre o direito que lhe é atribuído, o seu regime
dependerá das indicações que para o efeito facultaram as declarações dos contraentes e as
circunstâncias do contrato.
Não se pode reconhecer ao promissário, em princípio, a faculdade de, uma vez consolidado
o direito do beneficiário através da adesão, remitir a obrigação do promitente, nem de
autorizar por si só a modificação da prestação devida.
Na titularidade do promissário, além do direito a exigir a prestação a ser realizada a terceiro,
continuam os meios de defesa provenientes, quer da relação de cobertura, quer da relação
de valuta, e ainda o direito de resolução do contrato por falta de cumprimento do
promitente, pelo menos quando esta não prejudique o direito de indemnização a que o
terceiro tenha direito.
Tem ainda o promissário o direito de revogar a promessa, enquanto ela não for aceite pelo
beneficiário, ou enquanto vivo for, se ela se destinar a ser cumprida só após a sua morte.
Ressalvam-se, no entanto, os dois casos seguintes:
a. O de haver estipulação em contrário;
b. O de a promessa ser feita no interesse de ambos os outorgantes – neste caso, a
revogação dependerá também do consentimento do promitente.
Mesmo após a aquisição definitiva do direito por parte do terceiro, o promissário pode
invocar contra ela os vícios concernentes à relação da valuta.
Prestação em benefício de pessoa indeterminada ou no interesse público

O destinatário de uma prestação estipulada nos contratos a favor de terceiro é, em regra,


uma ou são várias pessoas determinadas. No entanto, pode suceder que a prestação vise
proteger um interesse público ou se destine a um conjunto indeterminado de pessoas.
Neste caso, reconhece-se uma legitimidade difusa para a exigência da prestação, podendo,
não apenas o promissário ou seus herdeiros exigir a realização da prestação, mas também as
entidades competentes para defender os interesses em causa (art.º 445.º, CC).
É vedada ao promissário, herdeiros e entidades competentes a disposição do direito à
prestação ou a autorização de qualquer modificação no seu objecto (art.º 446.º, n.º 1, CC).
Portanto, Menezes Leitão entende que não se trata de um direito de crédito mas de um mero
direito de reclamar a prestação do promitente.

Contrato para pessoa a nomear – noção e origem

Contrato para pessoa a nomear é aquele cujos termos permitem que uma das partes tenha
o direito de designar um terceiro que encabece os direitos e as obrigações dele derivados.
Num primeiro tempo, o contrato é concluído entre duas partes, podendo uma delas, porém,
indicar um terceiro que irá ocupar o seu lugar. No contexto do contrato para pessoa a
nomear, usa-se a seguinte terminologia:
i. Promitens ou promitente – a parte firme;
ii. Stipulans ou estipulante – a parte que pode nomear um terceiro, para ocupar o
seu lugar;
iii. Amicus – o terceiro;
iv. Eligendus – o amicus ou terceiro, antes de ter ocorrido a sua nomeação;
v. Electio ou electio amici – a escolha ou a escolha do amigo ou terceiro, para ocupar
o lugar definitivo no contrato;
vi. Electus ou amicus electus – o terceiro nomeado, que passa a parte definitiva, no
contrato;
vii. Facultas amicum eligendi – a faculdade de designar o terceiro ou amicus, para
integrar o contrato.
Funções e figuras afins

O contrato para pessoa a nomear servirá, naturalmente, as funções que as pessoas, nele
partes, hajam por convenientes. No entanto, existem as seguintes funções típicas:
i. Discrição – certas figuras públicas não podem surgir em público sem serem
incomodadas, sendo que a presença de procuradores nem sempre resolve o
problema;
ii. Vantagem negocial – o resguardo de conhecidos comerciantes ou intermediários
pode evitar perturbações no mercado;
iii. Negociação em dois tempos – um adquirente pode reservar-se a faculdade de
manter o bem para si ou de o passar a outrem;
iv. Rapidez – pretendendo concluir um negócio por conta de outrem e não tendo
poderes de representação, o agente pode recorrer ao contrato para pessoa a
nomear como modo expedito de, mais tarde, se redocumentar;
v. Benefício fiscal – a alternativa para uma contratação por conta de outrem, sem
representação, é o mandato, o qual obriga a uma dupla transmissão, com
duplicação fiscal.
O contrato para pessoa a nomear ocupa, em sobreposição, funções que podem ser
asseguradas por outros institutos, distinguindo-se:
i. Da representação – nesta, os efeitos produzem-se imediata e automaticamente na
esfera do representado e não, num primeiro momento, na do representante, não
requerendo uma actuação específica para passar à do representado;
ii. Da representação sem poderes – o “representante” actua em nome e por conta do
“representado”, embora lhe faltem os poderes; no contrato para pessoa a nomear, o
stipulans age em nome próprio;
iii. Da cessão da posição contratual – aqui, os contratantes iniciais são os definitivos, não
havendo cláusula de pessoa a nomear; ocorre simplesmente que, em momento
posterior e eventual, um deles, com o acordo do outro, cede a sua posição a um
terceiro (art.º 428.º, CC);
iv. Da venda de bens alheios – o alienante, quando eles sejam tomados por futuros (art.º
893.º, CC), deve procurar adquiri-los, para regularizar a situação; tal implica,
logicamente, um contrato distinto, inexistente no contrato para pessoa a nomear;
v. Do contrato a favor de terceiro – este é o beneficiário de um prestação, não
ocupando, mesmo quando adira ao contrato, a posição de parte;
vi. Do mandato sem representação – o mandante, em tal conjuntura, vem,
supervenientemente, a receber os direitos adquiridos por sua conta pelo mandatário,
não indo ocupar, ab initio, a posição deste;
vii. Da gestão de negócios – este instituto tem um âmbito mais vasto, sem que o gestor
venha a ocupar a posição do dominus.

Regime e efeitos

A cláusula para pessoa a nomear consta, em princípio, do próprio contrato que a contenha.
Nada obsta a que se insira num texto à parte ou, até, subsequente – no entanto, revestirá,
todavia, a forma exigida para o contrato em si, em virtude de procederem as razões
justificativas da forma (art.º 221.º, n.º 2, CC), para além da regra relativa à forma da
procuração (art.º 262.º, n.º 2, CC).
No entanto, nem todos os contratos comportam cláusula para pessoa a nomear, excluindo
a lei (art.º 452.º, n.º 2, CC):
i Os casos em que não é admitida a representação;
ii Aqueles em que a determinação dos contraentes é indispensável.
A representação é universalmente admitida, mesmo no casamento (cf. art.º 1620.º, CC),
desde que se indique, na procuração, o outro nubente e a modalidade do casamento.
Relativamente à “determinação dos contraentes”, pode-se apontar:
1. Negócios intuitu personae em que as qualidades pessoais da contraparte sejam
essenciais;
2. Negócios de tipo não-patrimonial
3. Negócios em que os valores subjacentes impliquem a imediata indicação do
contratante em jogo.
Menezes Cordeiro entende que deve ser realizada uma ponderação casuística sobre os
aspectos envolvidos.
Concluído o contrato para pessoa a nomear, inicia-se um procedimento que poderá culminar
na colocação do amicus na posição do stipulans, com a seguinte sequência:
a. Conclusão do contrato;
b. Concordância do amicus;
c. Electio.
A conclusão do contrato com cláusula de pessoa a nomear é o pressuposto básico de todo o
desenvolvimento subsequente. O amicus dará ou não o seu assentimento, sendo que, neste
último caso, o processo cessa. Embora a lei não o diga, a concordância do amicus é necessária
pelas regras gerais do Direito privado e pelo art.º 453.º, n.º 2, que manda seja a nomeação
acompanhada do instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à
celebração do próprio contrato.
Quanto à electio, esta deverá ser feita por escrito, ao outro contraente, no prazo
convencionado ou dentro dos cinco dias posteriores à conclusão do contrato (art.º 453.º, n.º
1, CC). Se o contrato não indicar outro prazo e mesmo havendo procuração anterior, a
nomeação deve ser feita do prazo de cinco dias, sob pena de o contrato produzir efeitos
perante os contratantes iniciais. No caso de se tratar de um contrato-promessa em que se
estipulou que o definitivo será concluído com o promitente em causa ou com quem ele
indicar, a electio pode ocorrer apenas na celebração do definitivo.

A ratificação deve constar de documento escrito (art.º 454.º, n.º 1, CC) ou de documento de
força probatória equivalente à do contrato, quando superior (art.º 454.º, n.º 2, CC).

Feita regularmente e comunicada a designação, a pessoa nomeada (amicus electus) adquire


os direitos e assume as obrigações decorrentes do contrato concluído a partir da celebração
(art.º 455.º, n.º 1, CC). A electio tem, pois, eficácia retroactiva.
Se a declaração de nomeação não for feita nos termos legais, o negócio consolida-se na
esfera do stipulans, produzindo efeitos relativamente ao contraente originário. Tal não
sucederá apenas se existir estipulação em contrário, caso em que o negócio fica sem efeito
(art.º 455.º, n.º 2, CC).
Estando o contrato sujeito a registo, pode o mesmo ser feito em nome do contraente
originário, com indicação da cláusula para pessoa a nomear, fazendo-se, depois, os
averbamentos necessários (art.º 456.º, n.º 1, CC), aplicando-se mutatis mutandis a mesma
regra a qualquer outra forma de publicidade a que o contrato esteja sujeito (art.º 456.º, n.º
2, CC).

Natureza

Existem as seguintes teorias sobre a natureza jurídica do contrato para pessoa a nomear:
i. Teoria da condição – o contrato para pessoa a nomear seria o contrato definitivo
sujeito a uma dupla condição – resolutiva quanto à aquisição pelo estipulante e
suspensiva quanto à aquisição pelo amicus – defendida por Guilherme Moreira,
Galvão Telles, Antunes Varela, Ribeiro de Faria e Menezes Leitão;
ii. Teoria do duplo contrato – o contrato para pessoa a nomear consistiria, em rigor, em
dois contratos, um celebrado entre o promitens e o stipulans e outro celebrado entre
o promitens e o eligendus. Num primeiro tempo, o promitens contrataria, a título
provisório, com o stipulans. Desde logo, porém, estaria subjacente um contrato,
agora definitivo, entre o promitens e o eligendus;
iii. Teoria da concentração subjectiva – o sujeito seria inicialmente indeterminado, até
ocorrer a imputação individualizante;
iv. Teoria da faculdade alternativa – a obrigação surgiria encabeçada pelo stipulans, mas
com a possibilidade, a cargo deste, de se fazer substituir;
v. Teoria da formação sucessiva – no contrato para pessoa a nomear, ter-se-ia, um
procedimento complexo, que culminaria com o contrato definitivo. Neste processo
encontrar-se-ia, sucessivamente: a dissociação entre a formação do acto e a
realização da relação, facultando a distinção entre partes num sentido formal e num
sentido substancial; a actuação sucessiva da previsão, que comporta, além do
contrato, a designação de um terceiro e a exibição dos necessários instrumentos de
legitimação; a suspensão provisória da relação;
vi. Teoria da sub-rogação legal – verificados os requisitos a que a lei submente a
desingação e a eficácia, não havendo lugar à representação, o terceiro ingressaria na
posição do stipulans, num típico fenómeno de sub-rogação;
vii. Teoria da autorização – a situação do promitens seria enfraquecida, autorizando a
que, do outro lado, operasse uma substituição da parte, com eficácia ex tunc;
viii. Teoria do negócio per relationem – o conjunto articulado dos estipulações que regem
os interesses das partes são visados no negócio, sendo o seu concreto objecto
determinado per relationem, i.e., por instruções ou indicações ulteriores;
ix. Teoria da representação – o contrato para pessoa a nomear andará na órbita da
representação.
Menezes Cordeiro entende que o contrato para pessoa a nomear consiste numa categoria
contratual típica e autónoma, implicando, num todo coerente, a cláusula para pessoa a
nomear, a electio com os seus requisitos com os seus requisitos ou alternativas: ou o amicus
electus, ou o stipulans ou a ineficácia do conjunto.

Negócios unilaterais – generalidades

A forma privilegiada de constituição de obrigações com base no princípio da autonomia


privada consiste na celebração de contratos, da qual decorre uma certa limitação à
constituição de obrigações por negócio unilateral, apresentando a doutrina as seguintes
objecções sobre a questão:
a. A constituição de obrigações por negócio unilateral implicaria a constituição de um
direito de crédito na esfera jurídica alheia sem o acordo do seu titular, violando-se
assim a regra invito beneficium non datur.
b. Admitir a eficácia dos negócios unilaterais como constitutivos de obrigações poderia
conduzir à criação de vinculações precipitadamente assumidas, em a prévia obtenção
do acordo das partes em relação a elas.
Menezes Leitão entende que a primeira objecção é facilmente torneável, bastando
consagrar em relação aos negócios unilaterais a solução que vigora no contrato a favor de
terceiro, em que o terceiro, embora adquira o direito, pode extingui-lo mediante a
comunicação da sua rejeição.
Dadas ambas as objecções, foi defendido o princípio do contrato, o qual consiste na ideia de
que apenas o contrato é forma idónea para a constituição de obrigações, exigindo-se que
exista uma declaração negocial do credor convergente com aquela do devedor.
O legislador não aceitou o princípio do contrato em termos absolutos, mas considerou, no
entanto, que só excepcionalmente o negócio unilateral seria fonte de obrigações (art.º 457.º,
CC), estabelecendo que “a promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos
previstos por lei”. Face a esta questão, Antunes Varela, Almeida Costa, Menezes Leitão e Rui
de Alarcão entendem que se trata de uma limitação à celebração de negócios unilaterais,
instituindo um sistema de numerus clausus.
Menezes Cordeiro defende a ausência de tipicidade dos negócios unilaterais com
fundamento no carácter totalmente livre da proposta contratual, negócio unilateral por
excelência. Sendo a proposta contratual um negócio unilateral, e sendo a sua celebração
possível em relação a qualquer contrato, o princípio da tipicidade fica esvaziado de conteúdo,
uma vez que a lei prevê um tipo de negócio unilateral suficientemente abrangente para
permitir uma atipicidade negocial.
Pais de Vasconcelos defende que a tipicidade do art.º 457.º apenas se aplica a negócios
unilaterais abstractos, uma vez que, em se tratando de negócios unilaterais causais, vigoraria
a regra do art.º 458.º, que estabeleceria o seu valor declaratório, levando a presumir a
respectiva causa.

Promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida

A promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida aparece no art.º 458.º, n.º 1:


“Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida,
sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja
existência se presume até prova em contrário.”
Ou seja, havendo uma declaração unilateral de existência de uma dívida, sem indicação da
sua fonte, fica o credor dispensado de a exibir, podendo o devedor, porém, ilidir a presunção
da sua existência, provando o contrário.

Menezes Cordeiro entende que o art.º 458.º, n.º 1, não origina qualquer obrigação nova,
limitando-se a permitir que se prometa uma “prestação”, comum ou pecuniária, devidas,
anteriormente, por força de qualquer outra fonte. O único papel desse preceito será, para
este Autor:
a. Dispensar o beneficiário de indicar a verdadeira fonte da obrigação em jogo;
b. Fonte essa cuja existência se presume, até prova em contrário.
Existe, neste caso, um negócio unilateral, ainda que com mera eficácia declarativa, limitada
à inversão do ónus da prova. Antes, caberia ao beneficiário que invocasse uma obrigação,
provasse a sua fonte ou origem; agora, pode este contentar-se com a apresentação da
“promessa” ou de “reconhecimento”, cabendo ao devedor demonstrar que, afinal, ela não
existia.
A declaração de promessa de cumprimento ou de reconhecimento de dívida tem um
destinatário – o próprio beneficiário, devendo ser interpretada nos termos normais (art.º
236.º, n.º 1, CC). Se da declaração resultar a existência de uma dívida, ainda que, a tanto, ela
não for primacialmente destinada, funciona a presunção do art.º 458.º.

Exige-se documento escrito para a declaração (art.º 458.º, n.º 2, CC), salvo “se outras
formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental”. Cabe-lhes, no
entanto a prova de que as tais formalidades são exigidas, em função da relação principal.

Promessa pública

O art.º 459.º ocupa-se da promessa pública, sendo que segundo o n.º 1 dessa norma:
a. Aquele que, por anúncio público;
b. Prometer uma prestação;
c. A quem se encontre em determinada situação ou pratique certo facto, positivo ou
negativo;
Fica desde logo vinculado à promessa. Este estará, salvo declaração em contrário, vinculado
mesmo em relação àqueles que se encontrem na situação prevista ou tenham praticado o
facto, sem atender à promessa ou na ignorância dela (art.º 459.º, n.º 2, CC).

A situação distingue-se, muito claramente, da oferta ao público (art.º 230.º, n.º 2, CC), sendo
que nesta, o destinatário apenas adquire o direito potestativo de, pela aceitação, constituir
o contrato, só nessa altura se constituindo, propriamente, obrigado; na promessa pública, o
beneficiário adquire imediatamente o direito à prestação, ficando, desde logo, o promitente
adstrito à sua efectivação.
Feita a promessa pública, o promitente queda obrigado:
a. Até que, surgindo alguém nas condições nela previstas, ele extinga, pelo
cumprimento, a sua obrigação;
b. Até que expire o prazo nela fixado (art.º 460.º, CC);
c. Até que a sua natureza ou o seu fim ditem a sua extinção (art.º 460.º, CC);
d. Até que, não tendo prazo, seja revogada (art.º 461.º, n.º 1, CC);
e. Até que, tendo prazo, seja revogada, antes dele, por haver justa causa (art.º 461.º, n.º
1, in fine, CC).
A justa causa será, neste caso, um motivo atendível, objectiva ou subjectivamente, que
torne a promessa inexigível, perante os valores fundamentais do sistema – a boa fé. Na
determinação da justa causa haverá, designadamente, que atender à confiança que ela
tenha suscitado no público a que se destine.

Colaborando várias pessoas na promessa do resultado previsto no concurso, a prestação


deverá ser equitativamente repartida, atendendo-se à parte que cada uma delas tenha tido
na produção do resultado (art.º 462.º, CC).

Concurso público

O art.º 463.º, relativo a concursos públicos, constitui uma especial modalidade de promessa
pública. A sua particularidade reside na atribuição da prestação operar a favor de quem vença
um concurso, a título de prémio. Deve-se proceder a articulação do regime do concurso
público com a figura da abertura de concurso para a celebração de um contrato.
A oferta da prestação pelo concurso só é válida se fixar um prazo para a apresentação dos
concorrentes (art.º 463.º, n.º 1, CC), de outra forma, o concurso ficaria indefinidamente
aberto, podendo surgir mais concorrentes, sem que nada de decidisse.
A decisão de admissão ao concurso ou de concessão do prémio compete, exclusivamente,
às pessoas designadas no anúncio – o “júri” – ou, na sua falta, ao promitente (art.º 463.º, n.º
2, CC).

Quando o anúncio de um concurso tenha um regulamento, o promitente fica vinculado ao


mesmo. A discricionariedade da decisão poderá, assim, ser reduzida. Também deve haver
respeito pelos concorrentes, devendo o concurso decorrer nos limites dos bons costumes e
da ordem pública.

No caso de erro na atribuição do prémio, se a ponderação for totalmente subjectiva, inexiste


qualquer controlo judicial possível. Sendo a prestação pedida objectiva, a desconsideração
desse facto configura um desrespeito pelos termos do concurso, assim sucedendo com
concursos que exijam respostas a questões históricas ou científicas (cf. Ac. RLx 8/7/2004).

Responsabilidade civil – generalidades

Responsabilidade civil é o instituto que é uma forma de constituição de obrigações pela qual
uma pessoa (o agente) fica adstrita a uma obrigação de indemnizar (a indemnização) outra
pessoa – o lesado (art.os 483.º a 510.º, CC).

A responsabilidade funciona numa de três situações:


i. Quando tenha sido praticado um facto ilícito ou delito que ocasione um dano – art.os
483.º a 498.º, CC – responsabilidade por facto ilícito;
ii. Quando tenha ocorrido um dano que o Direito determine que seja suportado por uma
pessoa diferente da que, inicialmente, o tenha sofrido – art.os 499.º a 510.º, CC –
responsabilidade pelo risco;
iii. Quando a lei permita que alguém provoque danos mas, não obstante, os deva, depois
e pelo menos em parte, compensar – responsabilidade pelo sacrifício.

A responsabilidade nuclear é a que advém da prática de factos ilícitos (art.os 483.º e ss., CC),
também chamada de responsabilidade aquiliana. Esta tem em comum com as
responsabilidades pelo risco e pelo sacrifício o facto de não pressupor, num momento prévio,
nenhuma ligação específica entre os intervenientes. Nesta importante dimensão contrapõe-
se à responsabilidade contratual, que emerge do incumprimento de um contrato, também
chamada, por poder derivar da violação de outras obrigações, que não contratuais, de
responsabilidade obrigacional (art.os 798.º e ss., CC).
A responsabilidade pressupõe sempre a ocorrência de um dano – a supressão de uma
vantagem tutelada pelo Direito – implicando distinções e subdistinções, além de regras
delicadas de compartimentação.
O dano é suportado pela pessoa a quem caibam as vantagens suprimidas ou é atribuído a
outrem tratando-se da imputação do dano, a qual poderá ser aquiliana (a quem praticou o
delito) ou contratual (a quem violou o contrato); imputação delitual (por facto ilícito), pelo
risco ou pelo sacrifício.

Mapa do Código Civil

No Código Civil, a matéria da responsabilidade civil surge muito disseminada, sendo


mencionada em mais de cem artigos. No entanto, sobressaem três núcleos fundamentais:
i. A responsabilidade aquiliana ou, simplesmente, responsabilidade civil, tratada como
a última das fontes das obrigações, após o enriquecimento sem causa, nos artigos
483.º a 510.º;
ii. A obrigação de indemnizar inserida entre as modalidades de obrigações, nos artigos
562.º a 572.º;
iii. A falta de cumprimento das obrigações e a mora imputáveis ao devedor, presente na
secção dedicada ao não cumprimento das obrigações, nos artigos 798.º a 812.º.

Modalidades e tipologias da responsabilidade civil

A responsabilidade civil constitui um universo inesgotável e em expansão, sendo infindáveis


os temas, suscitando, além disso, questões conexas que tendem a abarcar a totalidade do
ordenamento.
A responsabilidade obrigacional (art.os 798.º e ss., CC) intervém perante a inobservância,
pelo devedor, de uma obrigação, enquanto a aquiliana acorde em face da violação ilícita e
culposa de um direito ou interesse tutelado (art.º 483.º, n.º 1, CC). As principais diferenças
entre a responsabilidade aquiliana e obrigacional consistem, para Pessoa Jorge, nos
seguintes pontos:
1. Presume-se a culpa na obrigacional (art.º 799.º, n.º 1, CC), mas não na aquiliana (art.º
487.º, n.º 1, CC), existindo, todavia, nesta última, uma série de excepções, com
presunção de culpa (art.os 491.º, 492.º, n.º 1, e 493.º, CC);
2. Havendo pluralidade passiva, ter-se-ia solidariedade na delitual (art.º 497.º, CC), mas
não na obrigacional, salvo se a própria obrigação violada fosse solidária;
3. Surgiriam diferenças de competência territorial judicial e de normas de conflito
espacial.

A doutrina diverge quanto à questão sobre se a responsabilidade aquiliana e a obrigacional


devem ser objecto de um tratamento unitário, a saber:
a. Tratam-se de institutos de natureza diferentes, dado que a responsabilidade
aquiliana gera deveres primários de prestação e, consequentemente, consiste numa
fonte de obrigações, uma vez que através dela surge pela primeira vez uma relação
obrigacional legal. Pelo contrário, a responsabilidade obrigacional não geraria
deveres primários de prestação, mas apenas deveres secundários, uma vez que teria
como pressuposto uma obrigação já existente, de que o dever de indemnizar se
apresentaria como sucedâneo, em caso de incumprimento, ou como paralelo em
caso de mora – defendida por Guilherme Moreira, Manuel de Andrade, Galvão Telles,
Antunes Varela, Mota Pinto, Jorge Sinde Monteiro, João Calvão da Silva e Menezes
Cordeiro;
b. A obrigação de indemnização em caso de incumprimento ou mora não se identifica
com a obrigação inicialmente violada, uma vez que apresenta um fundamento
distinto. A responsabilidade obrigacional será, assim, uma fonte de obrigações, à
semelhança da responsabilidade aquiliana, e não como uma mera modificação da
obrigação inicialmente constituída. A sua especialidade resulta da circunstância de a
sua fonte ser a frustração ilícita de um direito de crédito, o qual é primariamente
tutelado através da acção de cumprimento – defendida por Manuel Gomes da Silva,
Paulo Cunha, Pessoa Jorge e Menezes Leitão.

Menezes Cordeiro aponta para o facto da obrigação ser considerada actualmente uma
relação complexa, compreendendo o dever de prestar, os deveres secundários e os deveres
acessórios. Assim, o seu incumprimento-padrão traduz-se na não-execução definitiva ou na
impossibilitação do dever de prestar principal, subsistindo a obrigação, sendo-lhe apenas
enxertado o dever de indemnizar. Portanto, poderá ocorrer uma readaptação das prestações
secundárias e dos deveres acessórios, mantendo a obrigação a sua identidade e sendo
impensável dispensar a sua fonte original.
A responsabilidade obrigacional está ao serviço do valor “contrato”, de que é um lógico
prolongamento. A responsabilidade aquiliana cobre uma área distinta, não derivando de
prévias obrigações específicas, com o seu conteúdo complexo e o seu séquito de deveres,
antes emergindo da inobservância de deveres genéricos de respeito, estruturalmente
distintos e varáveis em função das circunstâncias. O relacionamento específico entre os
envolvidos surge apenas com o facto ilícito e os demais pressupostos, servindo o valor
“propriedade lato sensu”.

A diferença genética projecta-se na diferenciação funcional apontada:


i. Enquanto a responsabilidade obrigacional visa, na sua matriz, assegurar e
prolongar a função do contrato, assente na criação e na circulação da riqueza;
ii. A responsabilidade aquiliana procura tutelar a função dos direitos subjectivos,
assente na defesa da riqueza já obtida.

As diferenças de regime

A diferenciação dos regimes da responsabilidade aquiliana e obrigacional funda-se nas


diferenças genéticas entre ambas. Na responsabilidade obrigacional deve lidar-se sempre
com a fonte original da obrigação em jogo e com o “facto ilícito” do seu incumprimento,
sendo o ponto de partida, neste caso, a constituição da obrigação dado o todo o processo
necessário até à indemnização. Na responsabilidade aquiliana, basta o facto e demais
pressupostos, sendo o momento zero o da perpetração do facto em causa devendo, a partir
daí, construir-se toda uma relação entre o agente e o lesado.

Havendo, entre as partes, uma obrigação específica, cabe ao devedor executar a prestação
principal. O dever dele é o bem do credor, atribuído e legitimado pelo ordenamento. Não
cumprindo o devedor, é grave, dado que este está a frustrar, pela sua conduta, precisamente
o valor que o Direito atribuíra ao credor. Em face do incumprimento, o devedor é
automaticamente condenado a indemnizar, i.e., a prosseguir, no plano indemnizatório, o
dever de prestar principal que inadimpliu.
A fim de se tutelar a posição do credor, coloca-se o ónus da prova no devedor, ao qual
competirá:
a. Ou provar o cumprimento, tratando-se de um facto extintivo, cujo ónus probatório
lhe assiste (art.º 342.º, n.º 2, CC);
b. Ou provar que tinha uma qualquer causa de justificação ou de excusa para não
cumprir (art.º 799.º, n.º 1, CC).
A “presunção de culpa” do art.º 799.º, n.º 1, é, de facto, uma presunção de culpa e de
ilicitude, pelo que quando haja inadimplência, presume-se que esta ocorreu ilicitamente e
com culpa (dolo).

Pelo contrário, na falta de uma obrigação específica prévia, a eventualidade da


responsabilidade aquiliana é gravosa para as pessoas e para a sua liberdade. Num mundo de
contactos intensivos, qualquer pessoa pode, ad nutum, ser confrontada com danos
alegadamente provocados a terceiros. Portanto, o legislador limitou a responsabilidade,
cabendo ao lesado provar os diversos elementos constitutivos da invocada responsabilidade,
incluindo os factos de onde se retire o juízo de culpa (art.º 487.º, n.º 1, CC).
Disto decorre que a responsabilidade obrigacional é dotada de uma maior eficácia.

Existem, porém, outras diferenças:


1. As obrigações, mesmo quando incumpridas e, sobretudo, se incumpridas,
prescrevem no prazo ordinário de vinte anos (art.º 309.º, CC), enquanto a obrigação
aquiliana de indemnização prescreve, regra geral, em três anos (art.º 498.º, CC);
2. Na responsabilidade obrigacional, o devedor é automática e plenamente responsável
pelos actos dos seus representantes legais e auxiliares (art.º 800.º, n.º 1, CC),
enquanto, na aquiliana, funciona o regime da responsabilidade do comitente (art.º
500.º, n.º 1, CC) – o principal só responde se, sobre o comissário, recair, também,
obrigação de indemnizar;
3. Na responsabilidade obrigacional funcionam as regras comuns da capacidade de
exercício e do suprimento de incapacidades (art.os 122.º, 123.º e 124.º, CC), na
aquiliana existe uma regra geral de capacidade (imputabilidade), apenas se
presumindo a sua ausência nos menores de sete anos e em interditos por anomalia
psíquica (art.º 488.º, n.º 2, CC);
4. Na responsabilidade obrigacional, o devedor é sempre plenamente obrigado à
indemnização, na aquiliana, havendo mera culpa (negligência), a indemnização pode
ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos
causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste
e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (art.º 494.º, CC);
5. A cláusula penal reporta-se à responsabilidade obrigacional (art.os 810.º a 812.º, CC),
funcionando para a aquiliana a regra da proibição da renúncia antecipada aos direitos
(art.º 809.º, CC);
6. Numa situação de complexidade subjectiva aplica-se, na responsabilidade
obrigacional, supletivamente, a regra da parciariedade (art.º 513.º, CC), na aquiliana,
a regra geral é a da solidariedade (art.os 490.º e 499.º, CC);
7. A responsabilidade obrigacional é complementada por deveres acessórios, a
aquiliana pelos deveres do tráfego.

O fenómeno da interpenetração

Não obstante as diferenças existentes entre os regimes da responsabilidade aquiliana e


obrigacional, existe uma interpenetração entre ambas, a qual resulta, essencialmente, de
dois fenómenos:
i. De o legislador de 1966, seguindo o modelo alemão, ter dado um aparente
tratamento unitário à obrigação de indemnizar (art.os 562.º a 572.º, CC);
ii. De o mesmo legislador, no capítulo reservado à responsabilidade aquiliana, ter
inserido diversas obrigações legais.

A obrigação de indemnização está matricialmente virada para a responsabilidade aquiliana.


De facto, na responsabilidade obrigacional, o devedor inadimplente deve repor o
equivalente à prestação principal em falta, podendo os artigos 562.º e 563.º ser aplicados,
mas sem um grande alcance. Os artigos 566.º e 567.º cedem perante as regras da execução
específica (art.os 827.º a 830.º, CC). O art.º 571.º opera na responsabilidade obrigacional e
não na responsabilidade aquiliana, sob pena de conflito com o art.º 500.º.
Mais significativo é o facto de o legislador, a propósito da responsabilidade aquiliana, ter
previsto diversas obrigações legais ou ter assentado na prévia existência de contratos:
a. O art.º 485.º, n.º 1, configura situações derivadas de prévios negócios ou obrigações
de informar – responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações;
b. O art.º 486.º refere a hipótese de, por lei ou negócio, haver o dever jurídico
(específico) de praticar o acto omitido;
c. O art.º 491.º reporta-se à responsabilidade das pessoas que, por lei ou negócio
jurídico, estejam obrigadas a vigiar outras, por incapacidade natural destas e pelos
danos que pratiquem, “salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância
...” – uma autêntica presunção de culpa (faute);
d. O art.º 492.º, n.º 1, postula uma obrigação do proprietário ou do possuidor de
tomarem as medidas necessárias para evitar o desmoronar, total ou parcial, do
edifício ou outra obra, donde a presunção de culpa; o n.º 2 aplica-se ao terceiro que,
por lei ou negócio, esteja obrigado a essa conservação;
e. O art.º 493.º, n.º 1, assenta numa obrigação de vigiar coisas, animais ou actividades
e de ela não ser cumprida, disto decorrendo uma presunção de culpa.
Estes denominados “delitos específicos” são, de facto, obrigações legais ou negociais,
ocorrendo que, nestes casos, por expressas injunções legais, ser-lhes aplicável o regime da
responsabilidade obrigacional.

O concurso

É possível que um evento preencha, em simultâneo, os pressupostos da responsabilidade


aquiliana e obrigacional.
Deve proceder-se, em primeiro lugar, a uma depuração liminar: o art.º 483.º, n.º 1, não pode
ser interpretado de modo a abranger, ad nutum, o incumprimento. Ou seja, o devedor que
não cumpra integra, tecnicamente, a previsão de incumprimento do art.º 798.º e não a de
violação ilícita do direito alheio.

Para Teixeira de Sousa e Menezes Cordeiro, inexiste uma relação de especialidade que
permita a prevalência da imputação obrigacional, verificando-se, antes, um concurso de
títulos de aquisição de pretensões, de tal modo que o autor pode invocar cada um deles – ou
todos – cabendo ao defendente repelir cada um deles. Seria posteriormente necessário
ponderar caso a caso os termos divergentes dos regimes.

A questão da responsabilidade de terceira via

O confronto entre as responsabilidades aquiliana e obrigacional leva a que alguns Autores


referenciem a chamada terceira via.
A fim de enquadrar as situações de responsabilidade por proximidade negocial ou similar
nos institutos da culpa in contrahendo, da violação positiva do contrato, da subsistência da
obrigação sem dever de prestar principal e da culpa post pactum finitum, Canaris, no contexto
do BGB pré-reforma, defendeu a existência de uma vinculação especial, traduzida num dever
de protecção unitário, de base legal. A sua violação situar-se-ia entre as responsabilidades
obrigacional e aquiliana – a terceira pista –, embora o regime a aplicar fosse, no essencial, o
da primeira. Esta ideia foi posteriormente retomada por Picker, o qual entende, no essencial,
que a natureza lacunosa da tutela delitual alemã deixaria espaço para se tutelarem os danos
puramente patrimoniais, i.e., os que não disporiam, em primeira linha, de uma protecção
explícita, justificando-se, especialmente na culpa in contrahendo e na violação positiva do
contrato, uma linha de protecção.

Na Doutrina portuguesa, a ideia de uma responsabilidade de terceira via foi defendida


implicitamente por Baptista Machado e por Sinde Monteiro e explicitamente por Carneiro
da Frada e Menezes Leitão. Este último dá-lhe um alcance sistemático de grande relevo, uma
vez que o conceito lhe permite agrupar os institutos da responsabilidade pré-contratual e da
culpa post pactum finitum, do contrato com protecção de terceiros e da relação corrente de
negócios.
Almeida Costa e Menezes Cordeiro colocam-se contra a ideia de uma responsabilidade de
terceira via, entendendo que esta, ainda que apreciável, é desnecessária perante o Código
Civil, remetendo-se a questão para a responsabilidade aquiliana.

Menezes Cordeiro aponta para que os institutos ligados às relações obrigacionais sem dever
de prestar principal encontram fundamento na boa-fé, explicitamente prevista para o efeito
nos artigos 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2. Estas visam, em virtude de uma especial conexão entre
as partes, proporcionar determinadas tutelas, através da actuação dos envolvidos. Trata-se
de orientar, pela positiva, a actuação das pessoas e não de as responsabilizar ab initio.
Para este Autor, a noção de “terceira via” terá vantagens na área dos deveres do tráfego, os
quais emanam da responsabilidade aquiliana, visando reforçar os bens nela em jogo. Tais
deveres são específicos, sendo muito gravosos para a liberdade das pessoas, escapando
totalmente à sua vontade – directa (contrato) ou indirecta (contacto social e
paracontratualidade). Por isso, apesar da especificidade, quem, por eles e pela sua alegada
inobservância, queira ser indemnizado, terá de provar a sua existência, a ilicitude da violação
e a culpa do agente. Aí o regime será, de facto, intermédio.
Portanto, Menezes Cordeiro situa a “terceira via” numa dependência da responsabilidade
aquiliana.

Responsabilidade por factos ilícitos, pelo risco e pelo sacrifício

A responsabilidade por factos ilícitos, também dita delitual, corresponde à previsão do art.º
483.º, n.º 1, assentando na violação ilícita e culposa de direitos subjectivos ou de normas
destinadas a proteger interesses alheios. Surge como figura nuclear, descendente directa da
lex aquilia, em torno da qual se articulam os pressupostos da responsabilidade civil.

A responsabilidade pelo risco, também chamada de imputação ou responsabilidade


objectiva, equivale à transferência, por razões político-sociais, de um dano, de uma esfera
para a outra, através de uma obrigação de indemnizar. Trata-se de uma situação muito
delicada, apenas possível nos casos expressamente previstos na lei (art.º 483.º, n.º 2, CC) e
sujeitos a um particular controlo de constitucionalidade.
O art.º 499.º manda aplicar, à responsabilidade pelo risco, “na parte aplicável e na falta de
preceitos legais em contrário”, as disposições relativas à responsabilidade por factos ilícitos.
No entanto, na responsabilidade pelo risco não há nem culpa, nem ilicitude, inexistindo, em
regra, “facto”, no sentido de actuação livre e consciente do responsabilizado, capaz de
originar um dano. Tanto basta para que a causalidade e o próprio cálculo da indemnização
tenham de seguir regras diferenciadas.
A “responsabilidade pelo risco” é, para Menezes Cordeiro, um tipo autónomo de
responsabilização, com todo um subsistema diferenciado de pressupostos e de
consequências.

A responsabilidade pelo sacrifício ou por factos lícitos não vem genericamente referida na
lei civil, implicando a prática de um acto voluntário que, apesar de danoso, o Direito admite,
mercê das circunstâncias em que seja levado a cabo. Apesar da ilicitude, ele pode originar
um dever de indemnizar.
Existem, na responsabilidade pelo sacrifício, pressupostos diferentes dos da
responsabilidade delitual e que obrigam à construção de um subsistema coerente.

A responsabilidade por factos ilícitos, pelo risco e pelo sacrifício pertencem ao tipo mais
geral da responsabilidade aquiliana, tratando-se, todavia, no tocante às últimas duas
modalidades, de subtipos desfocados, uma vez que só com adaptações seguem o regime
material. Este fenómeno só é captável com recurso às ordenações e à doutrina dos tipos.

Classificações em função dos pressupostos

Os pressupostos da responsabilidade civil (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo causal) dão
azo a diversas classificações.
De acordo com o facto, a responsabilidade diz-se por acção ou por omissão. Pode, ainda, ser
singular ou conjunta, em função dos autores do facto, tendo-se, nesse plano, a
responsabilidade pessoal e as responsabilidades por actos do representante, do mandatário,
do comissário ou do auxiliar. Existe a responsabilidade da pessoa singular e a das pessoas
colectivas. Existem as responsabilidades profissionais e a do produtor, dotada de um regime
especial.
A responsabilidade pode também ser por facto próprio ou por facto de terceiro. O facto pode
ter relevância apenas civil ou, também, penal, ocorrendo as responsabilidades simples ou
conexa com a criminal.
No campo da ilicitude e em função dela, distingue-se as responsabilidades por violação de
um direito subjectivo ou por inobservância de normas de protecção, existindo nesta última o
subtipo da responsabilidade por violação de deveres de cuidado (deveres do tráfego).
O tipo de direito subjectivo permite ainda referir a responsabilidade do terceiro pela violação
do crédito, a responsabilidade pela violação de direitos de personalidade, reais, familiares ou
relativos a bens intelectuais, entre outros.

A culpa permite distinguir a responsabilidade pelo dolo ou por negligência. A negligência


pode ser, pelo menos, leve ou grave.

O dano pode ser moral ou patrimonial, directo ou indirecto, emergente ou lucro cessante,
presente ou futuro, indemnizável ou compensável. Existe ainda a responsabilidade por
danos meramente patrimoniais, a qual se reporta àqueles que não correspondam a
vantagens tuteladas pela inclusão no conteúdo de um direito subjectivo.
A causalidade permite falar na responsabilidade isolada ou concordante, real ou hipotética,
efectiva ou virtual.

Figuras afins

A responsabilidade civil distingue-se da responsabilidade penal pelo facto da primeira visar


ressarcir ou compensar um dano, enquanto que a segunda se dirige à aplicação de uma pena.
Têm também âmbitos próprios as responsabilidades administrativa, tributária, fiscal ou
política. Nuns casos avocam-se princípios próprios dos da responsabilidade civil, noutros
ocorre apenas uma imagem da imputação delitual.

A responsabilidade civil distingue-se do enriquecimento sem causa, dado que a primeira lida
com danos e a segunda com enriquecimentos, tendo pressupostos próprios e regimes
diferenciados, integrando dogmáticas inconfundíveis.

A responsabilidade civil distingue-se da responsabilidade patrimonial, consistindo o último


instituto naquele pelo qual o património do devedor responde pelo cumprimento das suas
obrigações (art.º 601.º, CC).
[pp. 409-428]

Pressupostos da responsabilidade civil delitual

Originalmente, Menezes Cordeiro defendera que os pressupostos gerais da


responsabilidade civil eram o dano e a imputação com base no respectivo tipo (delitual, pelo
risco ou pelo sacrifício).
No entanto, a generalidade da doutrina (Galvão Telles, Almeida Costa, Antunes Varela,
Ribeiro de Faria e Menezes Leitão) e da jurisprudência defendem que os pressupostos da
responsabilidade civil são:
1. Facto;
2. Ilicitude;
3. Culpa;
4. Dano;
5. Nexo de causalidade.
O facto da esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência assentarem na
pentapartição dos pressupostos da responsabilidade civil levou Menezes Cordeiro a
abandonar a sua anterior posição a fim de evitar querelas terminológicas, sem que, no
entanto, considere que a posição original esteja errada. Para este Autor, os pressupostos
defendidos pela generalidade da doutrina são apenas aplicáveis à imputação delitual dos
danos.

Os pressupostos da responsabilidade civil foram moldados, por motivos histórico-culturais


com base na matriz delitual.

O facto – acção e omissão

O facto é designado, no contexto da responsabilidade civil, como o acto ou facto humano


que subjaz a qualquer imputação delitual.
A acção é um facto humano, correspondendo a um desencadear de meios materiais e
humanos, determinado pelo cérebro do agente, para prosseguir um determinado fim. O
agente intervém em dois pontos: na escolha do fim que visa prosseguir e na selecção dos
meios que tem por admissíveis e adequados, para esse efeito.
Dependendo dos circunstancialismos existentes, o agente pode prosseguir e alcançar o seu
objectivo justamente não fazendo nada. Portanto, o “facto”, para além de integrar as acções
humanas efectivamente levadas a cabo pelo agente, pode abarcar omissões, desde que
exista, num momento prévio, o dever de praticar o acto omitido (art.º 486.º, CC).

A obrigação derivada de negócio jurídico e que seja desrespeitada por omissão dá azo a
responsabilidade obrigacional. Da mesma forma, a inobservância de obrigações legais
explícitas conduz a esse tipo de responsabilidade – é o caso dos chamados “delitos
tipificados” (art.os 491.º, 492.º e 493.º, CC), que, inclusive, prevêem uma presunção de
“culpa”.
Nas situações de negligência, em que o bem protegido é atingido pela inobservância de
certos deveres de cautela que se impusessem, a omissão é determinada pela violação, por
um agente, de um direito subjectivo ou de uma norma de protecção (art.º 483.º, n.º 1, CC).
No caso dos deveres de tráfego, i.e., os deveres que protegem certos bens delicados ou que
impendem sobre quem tenha o controlo de fontes de perigo, tem-se uma construção
derivada da responsabilidade aquiliana e que pode integrar a chamada “terceira via”.

Em termos ontológicos, a conduta e o resultado são inseparáveis, constituindo uma


evidente unidade, sendo estes, portanto, úteis elementos para conhecer o facto.

A imputabilidade

A presença de um facto com relevância civil, para efeitos de imputação delitual, requer que
o agente se tenha, efectivamente, autodeterminado. Portanto, as suas acções ou omissões
correspondem a duas capacidades suas:
a. A capacidade de entender;
b. A capacidade de querer.
Inexistirá a primeira se, por falta ou deficiência das capacidades cognitivas, naturais ou
artificiais, o agente não tinha a possibilidade de aprender o significado das suas actuações,
faltando a segunda se o agente, por constrições externas, não dispunha de liberdade.
Presume-se que todas as pessoas são imputáveis, sendo ainda imputáveis aquelas, que
violando deveres de cuidado, se coloquem transitoriamente num estado de inimputabilidade
(art.º 488.º, n.º 1, 2.ª parte, CC). Qualquer verdadeira inimputabilidade deverá ser provada
por quem, dela, se queira prevalecer.
Não há limites de idade, para efeitos de imputação delitual, presumindo-se apenas a falta
de imputabilidade nos menores de sete anos e nos interditos por anomalia psíquica (art.º
488.º, n.º 2, CC).

A ilicitude – delimitações positiva e negativa

O art.º 483.º, n.º 1, refere, de modo expresso:


“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição
legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos
resultantes da violação.”
A ilicitude implica, simplesmente, a inobservância do direito, sendo ilícito, só por si, a
violação de direitos subjectivos e normas de protecção.
No entanto, a ilicitude pode ser, em certos casos, legitimada, tornando-se lícita. São as
chamadas causas de justificação: acção directa, legítima defesa e estado de necessidade,
podendo somar-se ainda o cumprimento de um dever e o consentimento do lesado. Por isso,
para haver ilicitude, exige-se, ainda, a ausência de causas de justificação.
Ou seja, pela positiva, a ilicitude advém da violação de direitos subjectivos e de norma de
protecção; pela negativa, ela postula que não existam causas de justificação. Esta orientação
é defendida pela generalidade da Doutrina, designadamente Menezes Cordeiro, Menezes
Leitão, Ribeiro de Faria e Pinto de Oliveira.

A violação do direito de outrem

A primeira modalidade de ilicitude advém da violação de “... o direito de outrem...”. Os


direitos subjectivos aqui abrangidos são principalmente, para Antunes Varela, os direitos
absolutos (o não-cumprimento, o cumprimento tardio e o cumprimento defeituoso dos
direitos de crédito são abrangidos pela responsabilidade obrigacional), designadamente os
direitos de personalidade, os direitos reais, os direitos familiares e a propriedade intelectual.
Entre os direitos reais avulta o direito de propriedade, cuja violação pode revestir os mais
variados aspectos – a privação do uso ou fruição da coisa, imposta ao titular; a apropriação,
deterioração ou destruição da coisa; a disposição indevida dela; a subtracção dela; a
perturbação do exercício do direito do proprietário.
No caso dos direitos de personalidade, a sua violação pode dar lugar à obrigação de
indemnizar, ocorrendo que nos direitos de autor é mais frequente a violação dos direitos
patrimoniais do que do direito moral.
A violação dos direitos familiares patrimoniais pode também determinar a obrigação de
indemnizar. No entanto, a doutrina maioritária entende que inexiste obrigação de
indemnizar nos direitos de carácter pessoal.

Para Menezes Cordeiro, a contraposição feita no art.º 483.º, n.º 1, entre direitos e “...
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios...” inculca que “direitos”
são, neste caso, o direito subjectivo proprio sensu. A tutela aquiliana é concedida, apenas,
perante permissões específicas de aproveitamento de bens. As permissões genéricas, desde
que não se contundam com direitos de personalidade não se encontram abrangidas pela
responsabilidade aquiliana.
Excluem-se também da tutela aquiliana dos direitos de outrem os denominados danos
puramente patrimoniais, i.e., os danos que não passem pela violação de um direito
subjectivo.

A violação da norma de protecção

Como segunda modalidade de ilicitude tem-se, seguindo o art.º 483.º, n.º 1, o “... violar ...
qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios...”.
As normas de protecção são actualmente entendidas como “correias de transmissão” de
valores apurados, noutros âmbitos jurídicos, para o domínio aquiliano. O Direito Civil estatui,
predominantemente, com recurso a direitos subjectivos – às pessoas são confiadas posições
vantajosas que lhes permitem o específico aproveitamento de certos bens. Assim, a ilicitude
tipicamente civil tem a ver com a violação de direitos subjectivos.
Noutras áreas normativas, as normas jurídicas prescrevem regras de conduta, no interesse
geral e de cada um, mas sem delimitar porções axiológicas entregues, em exclusividade, a
certas pessoas. Tal ocorre, por exemplo, com normas penais e contra-ordenacionais.
Quando a violação de tais normas provoque danos, embora não se tenham propriamente
violado direitos subjectivos, pode caber o dever de indemnizar, desde que verificados os
demais requisitos. Estão em causa, entre outras, as normas que visem afastar os perigos
abstractos.

Para a aplicação do art.º 483.º, n.º 1, relativamente às normas de protecção, são necessários
os seguintes requisitos:
1. Requer-se a presença de uma norma de conduta, devidamente aplicável;
2. Essa norma deve destinar-se a proteger determinados interesses alheios, como tal se
entendendo vantagens juridicamente protegidas e cuja supressão dê azo a um dano;
3. A adopção, pelo agente, de um comportamento contrário à referida norma de
conduta;
4. De tal maneira que sejam precisamente atingidos os interesses protegidos pela
norma violada.
As normas de protecção não têm de advir de leis expressas, podendo ser construídas por
elaboração jurídico-científica, predominando, ainda, regras de direito público.

A natureza da ilicitude

A ilicitude implica uma pura desconformidade da conduta com a estatuição normativa.


A ilicitude incide sobre uma acção humana, voluntária e imputável. Cabem nesta todos os
elementos subjectivos necessários para compreender plenamente o sentido de uma acção
humana.

O lesado interessado deverá alegar e provar todos os elementos materiais, objectivos ou


subjectivos, que permitirão depois, ao juiz, pronunciar-se no sentido da ilicitude.

As causas de justificação
A ilicitude ocorre, pela positiva, quando se viole um direito subjectivo ou uma norma de
protecção e, pela negativa, se o agente não se prevalecer de uma causa de justificação.
Causa de justificação será, assim, a eventualidade que torne permitida a implicação de um
dano.

Existem as seguintes causas de justificação:


a. Colisão de direitos;
b. Legítima defesa;
c. Estado de necessidade;
d. Acção directa
e. Consentimento do lesado

A colisão de direitos

Pode ocorrer que alguém disponha de um direito cujo exercício vá causar danos a outrem,
contradizendo direitos subjectivos do lesado ou inobservando normas de protecção
destinadas a proteger precisamente os interesses atingidos pelo exercício em jogo. Ou,
ainda, pode acontecer que o destinatário de um dever se encontre na contingência de, para
o cumprir, ter de violar um direito alheio ou uma norma de protecção.

Na colisão de direitos, extrapolável para a de obrigações, há que atender, perante o art.º


335.º, ao facto de serem diferentes ou de igual natureza. Sendo diferentes, prevalece o que
se deva considerar superior (art.º 335.º, n.º 2, CC).; sendo iguais, os titulares devem ceder na
medida do necessário para que todos produzam, igualmente, o seu efeito, sem mais
detrimento para qualquer das partes (art.º 335.º, n.º 1, CC).

Os critérios de prevalência são:


1. A antiguidade relativa;
2. Os danos previsíveis;
3. As vantagens envolvidas.
Num conflito de direitos, o que primeiro se constitua prefere, à partida (prior tempore, potior
jure). Quando não resolva, cederá a posição cujo sacrifício envolva menores danos. Não
havendo danos ou não sendo possível, por essa via, solucionar o problema, contabilizar-se-
ão as vantagens perdidas, optando-se pela solução que sacrifique menos riqueza futura.
Não sendo possível encontrar uma saída pelos critérios de prevalência, dever-se-á apreciar
os direitos in abstracto. Não havendo saída, sacrificar-se-ão igualmente as posições ou serão
realizadas composições aleatórias. Menezes Cordeiro entende que os critérios de
prevalência devem ser articulados nos termos de um sistema móvel.

Tratando-se de direitos (ou obrigações), aplica-se o art.º 335.º, n.º 1, 2.ª parte, cedendo
todos na medida do necessário, para que todos produzam o seu efeito, sem maior
detrimento para qualquer das partes. Pressupõe-se, assim, que sejam possíveis “cedências”
e “exercícios parcelares”.

A legítima defesa

O art.º 337.º, n.º 1, faculta uma noção de legítima defesa:


“Considera-se justificado o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e contrária à lei contra
a pessoa ou património do agente ou de terceiro, desde que não seja possível fazê-lo pelos meios
normais e o prejuízo causado pelo acto não seja manifestamente superior ao que pode resultar da
agressão.”

Assim, o núcleo da legítima defesa é o acto destinado a afastar qualquer agressão actual e
contrária à lei, pautando-se o preceito pelo prisma das causas de justificação. São
pressupostos da legítima defesa:
a. Uma agressão actual e contrária à lei, contra a pessoa ou património do agente ou de
terceiro;
b. Um acto de defesa necessário;
c. O prejuízo causado pelo acto não ser manifestamente superior ao que pode resultar da
agressão.

O estado de necessidade
O estado de necessidade é a situação na qual uma pessoa se veja constrangida a destruir ou
a danificar coisa alheia, com o fim de remover o perigo de um dano manifestamente superior,
quer do agente, quer de um terceiro (art.º 339.º, n.º 1, CC).
Os pressupostos do estado de necessidade podem extrair-se do art.º 339.º, n.º 1:
i. Um perigo actual de um dano, para o agente ou para um terceiro;
ii. Dano esse que seja manifestamente superior ao dano causado pelo agente;
iii. Um comportamento danoso, destinado a remover esse perigo.

A exigência de perigo de um dano, para o agente ou para terceiros, constitui a base do


estado de necessidade. O dano poderá ser patrimonial, pessoal ou moral, referindo a lei um
“perigo actual”, o qual poderá ser um dano já em curso, mas minorável, ou um dano
iminente. A isto subjaz a ideia da impossibilidade de afastar o perigo, sem a actuação em
necessidade, designadamente a inviabilidade de avisar, em tempo útil, as autoridades
competentes para remover o perigo.
A proporcionalidade – em termos tais que o dano evitado seja manifestamente superior ao
causado pelo agente – será o resultado de uma ponderação feita pelo próprio agente, de
acordo com os elementos disponíveis no momento. Assim, bastará que, nesse juízo, o dano
a prevenir se apresente como muito provável, na sua concretização e no seu montante. A
valoração dos danos em jogo deverá operar de acordo com bitolas gerais de valor, não
segundo escalas privativas do agente.
A acção implicada pelo agente deverá ser a necessária, quer quanto à sua efectivação, quer
quanto aos meios utilizados, devendo, portanto, ser objectivamente adequada à remoção
do dano, contendo-se nos limites exigíveis.
Será um comportamento danoso, podendo ser causados danos a quaisquer bens jurídicos,
desde que para evitar um dano desmesuradamente maior.
Contra uma actuação em estado de necessidade, não pode haver legítima defesa dado que
falta o pressuposto básico da agressão ilícita.

Verificada a situação de necessidade, a acção do agente é lícita, não podendo o dano


causado ser-lhe imputado a título aquiliano. O art.º 339.º, n.º 2, dispõe sobre o destino ou a
repartição desse dano, prevendo:
a. A sua imputação ao agente, quando o perigo tenha sido provocado por sua culpa
exclusiva;
b. A sua imputação equitativa ao próprio agente, àqueles que tenham tirado proveito
do acto ou que hajam contribuído para o estado de necessidade.

A lei não contempla a hipótese de excesso de estado de necessidade, podendo-se, no caso


de excesso de zelo que leve a atingir bens que não seria necessário danificar para esconjurar
o perigo, fixar uma indemnização pelo sacrifício, desde que inexistente uma avaliação
culposa por parte do agente.
No caso do estado de necessidade putativo, no qual o agente se comporta na convicção, não
culposa, de se verificarem os pressupostos que levaram à acção, Menezes Cordeiro entende
que o regime do art.º 338 é aplicável.
Perante o estado de necessidade pode sempre haver, depois, uma (re)distribuição equitativa
dos danos (art.º 339.º, n.º 2, CC), de tal modo que ninguém saia injustamente prejudicado,
para além do risco normal em que todos incorrem.
Na prática do estado de necessidade, verifica-se que a generalidade das decisões que se lhe
reportam acabam por recorrer à colisão de direitos.

A acção directa

Na legítima defesa, o Direito permite que o particular afaste, pela força, uma agressão ilícita;
no estado de necessidade, pode o mesmo atingir bens jurídicos, para prevenir um dano
iminente. A acção directa consiste na possibilidade de recorrer à força para realizar ou
assegurar o próprio direito (art.º 336.º, n.º 1, CC).
Em princípio, a acção directa coloca-se nas antípodas do modo de ser do Direito, não
podendo ninguém ser juiz em causa própria. São pressupostos da acção directa:
i. A necessidade de realizar ou de assegurar o próprio direito;
ii. O recurso à própria força;
iii. A contenção nos meios usados.
A necessidade de realizar ou de assegurar o próprio direito afere-se por dois parâmetros
(art.º 336.º, n.º 1, CC):
a. A urgência, de modo a evitar a inutilização prática do direito em causa;
b. A impossibilidade de recorrer, em tempo útil, aos meios coercivos normais.
A referência ao “próprio direito” deve ser tomada em termos latos: a acção directa tem
cabimento para defender quaisquer posições activas, desde que suficientemente precisas
para permitirem as conexões subsequentes. A posição jurídica a defender deverá ser
susceptível de coerção jurídica, podendo a necessidade ser ditada por facto humano ou
natural.
O recurso à própria força representa o cerne da acção directa, exigindo-se uma específica
vontade de auto-ajuda ou acção directa, requerendo um máximo de racionalidade, por parte
do agente.
A acção directa pode dirigir-se contra coisas ou contra pessoas, devendo a actuação por ela
pressuposta ser duplamente contida:
1. Não pode exceder o que for necessário para evitar o prejuízo (art.º 336.º, n.º 1, in fine,
CC);
2. Não deve sacrificar interesses superiores aos que o agente vise realizar ou assegurar
(art.º 336.º, n.º 3, CC).

A acção directa é lícita e legitimadora, não tendo o agente, verificados os seus pressupostos,
qualquer dever de indemnizar os danos que dela decorram. Estes serão imputáveis ou ao
“resistente” ou a quem haja ocasionado a situação ou, finalmente, ao risco próprio dos
circunstantes.
O excesso de acção directa verificar-se-á quando o agente ultrapassasse, na sua acção, o que
for necessário para evitar a inutilização prática da posição a tutelar ou, em qualquer caso,
quando sacrifique interesses superiores aos que visava realizar ou assegurar (art.º 336.º, n.º
1, in fine e n.º 3, CC). O excesso é ilícito, com as devidas consequências, admitindo Menezes
Cordeiro a desculpabilidade do excesso, quando os factos ocorram em ambiente de especial
tensão, havendo, contudo, que providenciar quanto aos danos.

O art.º 338.º prevê expressamente a acção directa putativa, na qual o agente age na
suposição errónea de se verificarem os pressupostos que justificam a acção directa. O erro é
possível perante qualquer um dos pressupostos da acção directa. Assim, pode ocorrer que o
agente suponha agir em legítima defesa, quando o caso seja de acção directa, e
inversamente.
O juízo de desculpabilidade seguirá, nos termos gerais (art.º 487.º, n.º 2, CC), a bitola do
bonus pater familias, colocado na concreta posição do agente. Quando tal juízo seja negativo,
o agente não tem cobertura jurídica, devendo indemnizar.
Qualquer um corre o risco de ver, contra si, formar-se uma aparência de acção directa.

O consentimento do lesado

O acto lesivo dos direitos de outrem, é lícito, desde que este tenha consentido na lesão (art.º
340.º, n.º 1, CC). Assim, são pressupostos do consentimento do lesado:
i. Um direito disponível;
ii. Um acto de consentimento;
iii. Um acto lesivo.
A disponibilidade do direito é um requisito basilar, sendo que o consentimento do lesado
não exclui a ilicitude do acto quando este for contrário a uma proibição legal ou aos bons
costumes (art.º 340.º, n.º 2, CC).
Existem, assim, as hipóteses da indisponibilidade de um direito e as hipóteses de, havendo
embora disponibilidade, o consentimento do lesado se revelar ineficaz, para efeitos de
justificação de ilicitude, por o concreto acto ofensivo ser, por si, contrário à lei ou aos bons
costumes. As hipóteses de proibição legal são mais extensas do que poderia parecer,
abrangendo designadamente:
a. Os direitos de personalidade, nos quais existem restrições ponderosas (art.º 81.º, CC);
b. Nos direitos de crédito, onde não é permitida uma renúncia prévia aos direitos do
credor (art.º 809.º, CC), tendo a remissão, sempre, natureza contratual (art.º 863.º,
n.º 1, CC);
c. Não é possível a doação de bens futuros (art.º 942.º, n.º 1, CC);
d. No Direito da Família trabalha-se, em regra, com situações indisponíveis.
O art.º 340.º só opera perante a responsabilidade aquiliana (art.º 483.º, n.º 1, CC),
especialmente com direitos reais e – nas devidas margens – com direitos de personalidade.

O acto de consentimento será, em rigor, um acto unilateral. Não se exclui, no entanto, uma
natureza negocial: o dominus poderá estipular os termos e o alcance da autorização dada,
havendo, nessa eventualidade, liberdade de celebração e liberdade de estipulação.
Dependendo das circunstâncias (art.º 127.º, CC), o consentimento do lesado exigirá
legitimidade, capacidade de gozo e capacidade de exercício. Integrará uma declaração de
vontade, expressa ou tácita, e deverá passar pelo crivo das regras sobre a perfeição e a
eficácia das declarações de vontade.
Se o “lesado” não se encontrar em condições de consentir na lesão, mas esta é do seu
interesse e corresponde à sua vontade plausível (art.º 340.º, n.º 3, CC), o consentimento tem-
se por verificado.
Perante o consentimento do interessado, será levado a cabo um acto lesivo, em sentido
amplo, o qual pode consistir:
i. Num acto que provoque um dano efectivo, de tipo patrimonial ou moral;
ii. Num acto que não seja danoso, mas que integre, todavia, um núcleo de bens aos
quais os terceiros não devam aceder.
O acto lesivo não poderá ir além do consentido. Havendo excesso ou ocorrendo um
consentimento putativo, o agente será responsável pelos danos, salva a hipótese de falta de
culpa.

O consentimento do lesado encontra a sua justificação básica na liberdade pressuposta


pelos direitos subjectivos. Em termos gerais, o consentimento do lesado – neste caso, do
“ofendido” – pode ser construído de diversas formas e, designadamente, como factor que
ponha em causa a tipicidade penal da acção ou como verdadeira causa de justificação. Em
moldes civis, distinguir-se-ão as seguintes situações:
a. O exercício normal do direito, que habilita os terceiros a agir;
b. O exercício anormal, mas lícito, do direito, em termos que permitam actuações de
outro modo vedadas;
c. A obtenção de uma vantagem, numa área reservada, porém, ao titular do direito;
d. O efectivo sofrimento de um dano, que o lesado decide suportar.

Culpa – aspectos gerais

A ideia de culpa está no cerne da imputação delitual, i.e., na efectivação normativa de


mandar que alguém, através de uma indemnização, suporte os danos primeiro ocorridos
numa esfera jurídica alheia. A culpa permite:
a. Formular o juízo geral de legitimidade no despojar alguém de alguns dos seus bens e
entregá-los a outrem;
b. Decidir quem merece sofrer esse tratamento e quem é o beneficiário.

No Código Civil, Menezes Cordeiro aponta para a existência de oito acepções tendenciais de
culpa:
1. Culpa como negligência, contraposta ao dolo;
2. Culpa como dolo ou negligência, contraposta à ilicitude;
3. Culpa como dolo, negligência, ilicitude e, nalguns casos, a causalidade;
4. Culpa como dolo, negligência, ilicitude e causalidade;
5. Culpa como ignorância censurável – má-fé subjectiva;
6. Culpa como inobservância de deveres específicos de cuidado e de actuação;
7. Culpa como imputabilidade de algo a alguém, incluindo a título objectivo;
8. Culpa como imputação jurisdicional de responsabilidade a um cônjuge, pela
separação ou divórcio.

Menezes Cordeiro entende que o sentido dogmaticamente mais apurado e abaixo utilizado
é o do pressuposto da responsabilidade aquiliana, contraposto à ilicitude, ou seja, uma culpa
em sentido amplo, sem se confundir com a faute. A “mera culpa” deverá ser chamada de
negligência. Assim, define-se culpa como o juízo de censura ao agente por ter adoptado a
conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar
conduta diferente.

O dolo

O dolo trata-se de uma graduação da culpa em sentido amplo, agindo com dolo aquele que
procede voluntariamente contra a norma jurídica cuja violação acarreta o dano.
Existem três tipos de dolo:
i. Dolo directo – o agente actua directamente contra a norma;
ii. Dolo necessário – o agente actua em determinado sentido que, não sendo
propriamente a norma violada, implica, no entanto, a inobservância voluntária desta;
iii. Dolo eventual – o agente actua em determinado sentido que, não sendo o da violação
da norma, pode implicar a inobservância voluntária desta. Menezes Cordeiro entende
que há dolo eventual quando a conduta do agente ainda possa ser reconduzida à
violação da norma e não à simples inobservância de deveres de cuidado. Para tal,
basta averiguar se a conduta do agente era norteada de antemão pela possibilidade
de violação, sendo esta aceite como fim, ainda que instrumental.

Negligência (ou mera culpa)

A culpa traduz o juízo de censura que recai sobre aquele cuja actuação é reprovada pelo
Direito – culpa lato sensu.
Actualmente, a mera culpa ou negligência tem sido entendida como a violação (objectiva)
de uma norma por inobservância de deveres de cuidado ou, conforme explícito no Código
alemão, por violação do cuidado necessário no tráfego.

No decurso da sua actuação na sociedade, as pessoas devem observar determinadas regras


de cuidado, de prudência, de atenção ou de diligência para que não violem, ainda que
involuntariamente, normas jurídicas. A não observância desses cuidados elementares pode
provocar uma violação, ainda que não incluída a título directo, necessário ou eventual na
actuação do agente. Verifica-se, assim, o delito negligente, i.e., aquele cuja previsão reside
nos deveres de cuidado.
Portanto, aceitam-se dois graus de negligência:
a. Negligência consciente – o agente tem conhecimento da existência dos deveres de
cuidado mas, não obstante, não os acata, esperando que não haja danos;
b. Negligência inconsciente – o agente desconhece os deveres de cuidado.

O Código Civil refere-se no seu art.º 487.º, n.º 2, relativo à negligência, à diligência do bonus
pater familias, ao invés dos deveres de cuidado.
Contrariamente ao dolo, o qual é de fácil apreciação em virtude de ser suficiente a
constatação de que existiu vontade de prevaricar, a negligência ocorre em situações em que
a violação danosa emerge simplesmente de um desrespeito por deveres de precaução que a
causou.
Os deveres de cuidado e a medida de esforço exigida ao agente são dados pelo art.º 487.º,
n.º 2, o qual define o critério de apreciação da culpa como derivando:
1. Da diligência do bonus pater familias;
2. Em face das circunstâncias de cada caso concreto.
Assim, quem, inobservando a diligência do bonus pater familias, violar objectivamente uma
norma, age com negligência.

Quando o comportamento do agente seja destinado à violação de cláusulas gerais, com


produção de danos, há dolo; quando esse comportamento se dirija a cláusulas que acautelam
a violação, por inadvertência, há negligência.

Dolo e negligência no Direito Civil

Contrariamente ao que ocorre no Direito Penal, em que o tipo negligente tem um âmbito de
aplicação mais estrito (art.º 13.º, CP), no Direito Civil a distinção entre dolo e negligência é
pouco relevante para efeitos de imputação delitual (art.º 483.º, n.º 1, CC).
No entanto, a determinação do montante da obrigação varia em razão da culpa ser por dolo
ou por negligência (art.º 494.º, CC), ocorrendo que na imputação delitual dolosa, a obrigação
de indemnização deve equivaler ao montante do dano, enquanto que na imputação
negligente, o juiz pode determinar uma indemnização inferior, conforme as circunstâncias.

Na indagação da culpa, deve recorrer-se a todos os indícios admitidos em Direito, para


determinar o sentido da actuação do agente. A fim de se facilitar o funcionamento da
imputação delitual, dada a complexidade do processo indagatório, o Direito estabelece um
regime de presunções, distribuindo o ónus da prova da culpa.
A regra geral é que compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão (art.º 487.º, n.º 1,
CC). No entanto, a culpa é um juízo de valor, sendo, portanto, insusceptível de prova. A prova
recai sobre os factos que, fixando a ilicitude, permitam tal juízo.
As presunções de culpa mais notáveis são:
a. Contra quem esteja obrigado a vigiar outrem, pelos danos que este provocar (art.º
491.º, CC);
b. Contra aquele cujo edifício ou obra desabar, provocando danos (art.º 492.º, n.º 1, CC);
c. Contra quem deva vigiar animal ou outra coisa, pelos danos, por eles provocados
(art.º 493.º, n.º 1, CC);
d. Contra quem provoque danos a outrem, no exercício de uma actividade perigosa
(art.º 493.º, n.º 2, CC);
e. Contra o devedor, por danos emergentes do incumprimento da obrigação (art.º
799.º, n.º 1, CC).
Dada a equiparação de regimes realizada pelo art.º 483.º, n.º 1, entre a culpa e a negligência,
deve entender-se que a presunção de culpa funciona em relação ao dolo e à negligência. Não
bastará, ao agente sobre quem recaia a presunção de culpa, provar que não agiu com dolo,
pois funcionaria a imputação delitual negligente, devendo, portanto, demonstrar que os
deveres de cuidado exigíveis foram observados.

As causas de excusa

A imputação aquiliana de estilo germânico pressupõe, além de um juízo de ilicitude, um juízo


axiológico de censura, i.e., de culpa. Trata-se de uma instância global de controlo sobre a
decisão grave de mandar indemnizar, implicando uma ponderação à luz de toda a ordem
jurídica e da generalidade dos elementos que têm a ver com o agente.
Sendo um juízo de censura, este não está pré-determinado: de outro modo, não teria
autonomia, dissolvendo-se na própria ilicitude. O intérprete-aplicador deverá, portanto,
optar pela presença de dolo ou de negligência. Se inexistir culpa, não haverá dever de
indemnizar, por não se encontrarem reunidos os pressupostos requeridos, o que se trata de
uma ocorrência grave, por deixar danos ilícitos por ressarcir. A lei civil não tipifica causas de
desculpabilidade ou de excusa, tendo de ser inferidas dos princípios gerais.

É, no Direito Civil, causa de excusa todo o factor que, apesar de não integrar propriamente
a impossibilidade de entender e de querer, consubstanciadora de inimputabilidade, conduz,
no entanto, a uma tal perturbação da vontade do agente que evita o juízo de desvalor,
integrante da ideia de culpabilidade, ou seja, havendo causa de excusa, não há culpa.
Pessoa Jorge consagrou as seguintes modalidades de causas de excusa:
i. O erro desculpável;
ii. O medo invencível;
iii. A desculpabilidade.
Por erro desculpável deve entender-se o falso entendimento, por parte do agente, dos
elementos condicionantes que ditaram a sua atitude objectivamente contrária à norma,
quando não existisse nenhum dever de cautela, em ordem a evitar o engano. O erro deve,
desta forma, recair sobre factores determinantes da conduta – essencialmente – e não deve
ser, ele próprio, fruto de violação de deveres de cuidado – desculpabilidade.
Em princípio, também, o erro não deve recair sobre elementos da ordem jurídica, mas tão-
só sobre elementos de facto.

O medo invencível também exclui a reprovação do agente, pela afectação que acarreta à sua
vontade, que se pretende livre e esclarecida. Necessário é, no entanto, que o medo recaia
em aspectos verdadeiramente condicionantes do comportamento do agente –
essencialidade – e que seja de molde a, em termos de normalidade, explicar o desvio da
vontade – invencibilidade. Quando o medo resulta de uma atitude humana, pode falar-se em
coacção psicológica; quando derive de circunstâncias diversas, a hipótese é de estado de
necessidade subjectivo.

A desculpabilidade, finalmente, surge como factor que, não podendo ser qualificado de erro
ou de medo é, no entanto, de tal natureza que, face ao sentir geral, impede a reprovação do
Direito, com referência a determinada conduta.
A desculpabilidade explica-se como cláusula de segurança, em situações extremas, contra o
rigor das normas de que resultariam efeitos nunca queridos pelo Direito. Assim, a
desculpabilidade manifesta-se quando, por qualquer razão ponderosa, a exigência, ao
agente, do acatamento da conduta devida, ofenda gravemente o princípio da boa-fé.

O dano – generalidades

O dano é a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida


pelo Direito.
O nível axiológico do dano pode advir de uma de duas situações:
i. Ou a de existir um bem atribuído, em termos permissivos, a uma pessoa, i.e., um
direito subjectivo;
ii. Ou a de vingar, simplesmente, uma vantagem atribuída pelo Direito, mas que ou
por não corporizar um bem, ou por não assumir a forma de uma permissão
específica, surge, simplesmente, como interesse protegido.
Normalmente, o dano jurídico vem aferido à lesão de interesses jurídicos tutelados pelo
Direito ou, se se quiser, à perturbação de bens juridicamente protegidos. No entanto, pode
existir dano sem que exista quer um direito subjectivo quer um interesse protegido.
Assim, o dano em sentido jurídico deve ser aferido à chamada ilicitude objectiva, i.e., às
soluções preconizadas pelo Direito para o ordenamento, desde que tomadas em abstracto e
consideradas independentemente da vicissitude da violação voluntária. Apenas uma
valoração legal é susceptível de identificar o sujeito prejudicado pela ocorrência do dano: se
não for considerada a norma que, em termos de direito subjectivo ou outros, reserva, para
alguém, determinada vantagem, é impossível de apurar quem veio a ser prejudicado pela
ocorrência.

O dano real é o prejuízo correspondente às efectivas vantagens – materiais ou espirituais –


que foram desviadas do seu destinatário jurídico. O dano de cálculo é a expressão monetária
do dano real.

Danos patrimoniais e danos morais

Um dano é patrimonial quando a situação vantajosa prejudicada tenha natureza económica.


Quando assuma simplesmente natureza espiritual, o dano diz-se não patrimonial ou moral.
Ou seja, o dano moral reporta-se a vantagens que o Direito não admite que sejam trocáveis
por dinheiro, admitindo-se, naturalmente, a sua compensação, em sede de responsabilidade
civil.
Esta distinção opera, em primeira linha, com referência à natureza da vantagem afectada, e
não de acordo com o tipo de direito ou de norma, lesado pela ocorrência danosa. Assim,
podem advir danos morais da violação de direitos patrimoniais e a ocorrência de danos
patrimoniais oriundos da violação de direitos de personalidade.

A existência de danos morais, para efeitos de responsabilidade civil, levantou dúvidas na


doutrina, advindo a problemática da aparente contradição entre a natureza não patrimonial
dos danos em causa e a essência necessariamente patrimonial da obrigação de
indemnização.
Assim, contraditando-se a possibilidade de, para efeitos de responsabilidade civil, imputar
os danos morais, tem-se dito, nomeadamente:
a. Que seria impossível obter, do dano moral, um dano de cálculo, condição necessária
para o funcionamento da responsabilidade civil;
b. Que seria atentatório à própria essência dos valores morais admitir a possibilidade da
sua compensação através da atribuição de direitos pecuniários.
Respondeu-se a tal argumentação, em primeira linha, que a indemnização por danos morais
não tinha, forçosamente, de ser pecuniária, podendo o juiz, muito simplesmente, determinar
uma reparação também moral. Por outro lado, a atribuição de somas pecuniárias à vítima
moral seria ainda possível, a título de pena civil.

A tendência actual, nos diversos ordenamentos, vai no sentido de admitir o dano moral
como dano proprio sensu. Constata-se que a responsabilidade civil não tem exclusiva função
reconstitutiva, podendo contentar-se com simples papel compensatório.
A questão da imoralidade por recepção de dinheiro, a troco de valores morais pretendidos,
tem sido afastada em virtude do crescente dinamismo do Direito das Obrigações, como
disciplina predominantemente patrimonial, tendendo os princípios patrimoniais a penetrar
todos os meandros do Direito. Por abstracção, o dinheiro nunca é imoral.
Seria também totalmente injusto deixar sem qualquer reparação civil os danos morais, cuja
ocorrência inflingiria autêntico sofrimento ao lesado. Não se pode negar, no entanto, que a
cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um
sofrimento para o obrigado, pelo que, nessa medida, a indemnização por danos morais
reveste uma certa injunção punitiva, à semelhança, aliás, de qualquer indemnização.

O Código Civil acolhe a ideia de dano não patrimonial, no n.º 1 do art.º 496.º, merecendo a
redacção do preceito críticas da parte de Menezes Cordeiro. No entanto, este Autor entende
que, contrariamente ao que a letra da lei faz parecer, o dano não patrimonial é um dano
autónomo, sendo qualquer um que tenha essas características.

A morte como dano


A doutrina e a jurisprudência levantam dúvidas relativamente à natureza da morte enquanto
dano. Existem três questões fundamentais que Menezes Cordeiro coloca no tocante a esta
questão:
1. Se a morte de uma pessoa é um dano;
2. Que prejuízos são danos;
3. Como são imputados os danos.
Para Menezes Cordeiro, a morte é definitivamente um dano, correspondendo ao bem
jurídico mais importante. Portanto, e para este Autor, a morte deve ser indemnizável ao
lesado, ainda que, naturalmente, esse direito passe aos sucessores do de cuius. No entanto,
pela natureza intrinsecamente social do homem, a vida de uma pessoa não é, apenas, um
bem pessoal de cada um, antes beneficiando, além do próprio, todos os elementos da
comunidade, principalmente os mais próximos – pais, filhos, cônjuge, etc. A sua supressão
causa dor moral a todos, sendo, nessa dimensão social, também tutelado, i.e., pode originar
compensações pelos desgostos que a sua supressão acarreta.
Os eventos que provocam a supressão do bem-vida são dotados de especial intensidade,
não se limitando, por isso, a danificar a vida do agente, antes atingindo vários outros bens
conexos. Assim, os danos derivados de tratamentos ou tentativas de evitar a morte,
transportes, funerais, aqueles advenientes do sofrimento que todo o processo de lesão que
conduz à morte, os danos patrimoniais e morais suportados pela própria vítima, devem ser
considerados danos.
A morte de uma pessoa constitui um dano, uma vez que a vida é um bem juridicamente
tutelado através do direito à vida; trata-se de um dano com aspectos morais e patrimoniais;
além disso, é um dano infligido ao morto e, reflexamente, a certos elementos que o rodeiam,
nos aludidos aspectos morais e patrimoniais; o ressarcimento de que beneficie a vítima
transmite-se, pela morte, aos seus sucessores.

O art.º 495.º trata da imputação por danos patrimoniais provocados nas pessoas que
rodeavam o morto. Estão cobertos os danos derivados das tentativas de salvar o morto, do
funeral e as demais (art.º 495.º, n.º 1, CC) e que recaiam sobre os intervenientes (art.º 495.º,
n.º 2, CC). Estão, ainda, cobertos os danos provocados nas pessoas que dependiam
economicamente do falecido (art.º 405.º, n.º 3, CC).
O art.º 496.º versa sobre os danos não patrimoniais causados, também, nas pessoas mais
próximas do morto. A morte de uma pessoa que provoque, efectivamente, danos morais
complexos nas pessoas que a rodearam, levanta delicados problemas atinentes a dois
pontos:
i. Quem sofre os danos;
ii. Como calcular esses danos.
Em rigor, a morte de uma pessoa pode causar desgosto a um número indeterminado de
pessoas, pelo que o legislador sentiu, então, a necessidade de delimitar, precisamente, quem
sofreu danos, para efeitos de Direito, sob pena de se perder qualquer indemnização útil,
esvaída num sem fim de prejudicados. Portanto, os danos apenas ocorrem nas esferas do
cônjuge não separado, dos filhos e outros descendentes e, na sua falta, os pais e outros
ascendentes e, finalmente, os irmãos ou sobrinhos (art.º 496.º, n.º 2, CC), admitindo
Menezes Cordeiro, em virtude dos valores em jogo e do espírito da lei, uma prudente
interpretação extensiva.
O n.º 4 do art.º 496.º vem dar várias indicações ao juiz, para o cálculo da indemnização, o
qual tenderá a ser fortemente variável, consoante as circunstâncias. Assim, além de se ter
em conta a fórmula dolosa ou negligente da imputação, por remissão para o art.º 494.º,
manda a lei atender aos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e aos sofridos pelos
beneficiários acima referidos nos n.os 2 e 3 do mesmo artigo.
Menezes Cordeiro entende que os danos referidos no art.º 496.º, n.º 4, são todos os danos
morais que emergem da morte de uma pessoa – que não directamente a morte, sendo que
a morte é a base da indemnização. Para a delimitação da morte deve atender-se ao tipo
desta. Fala-se em danos sofridos pela vítima e pelas próprias pessoas, apesar de estarem
apenas em causa os danos sofridos por estas, porque não é indiferente, para avaliar o
sofrimento dos sobreviventes, o padecimento da vítima de que todos tiveram
conhecimento. Assim, para computar os danos sofridos pelas pessoas referidas no art.º
496.º, n.º 2, há que computar não só o sofrimento delas, mas o próprio sofrimento do morto.

Os artigos 495.º e 496.º não tratam, nem tinham de tratar, dos danos sofridos pelo próprio
morto, os quais, podendo ser patrimoniais ou morais, derivam das normas que garantem a
sua propriedade (em sentido amplo) e os seus bens de personalidade, conjuntamente com
as cláusulas gerais dos art.os 483.º, n.º 1, e 496.º, n.º 1. Nos termos gerais do fenómeno
sucessório, as indemnizações a que tais danos dêem lugar transmitem-se aos sucessores do
morto que podem coincidir, ou não, com as pessoas referidas no art.º 496.º, n.º 2. Havendo
coincidência, as pessoas visadas acumularão indemnizações: directamente, pelos danos por
elas sofridos e a título de sucessão, pelos danos suportados pelo morto.

A doutrina divide-se na questão de saber se, entre os danos sentidos pelo morto que se
transmitem aos sucessores, na óptica da indemnização, se compreende a própria morte.
Para Menezes Cordeiro, se a morte dá lugar a um dano imputável face à própria vítima, em
termos de originar responsabilidade civil, é evidente que o direito à indemnização se
transmite aos sucessores.
No entanto, existe doutrina que duvida da existência de tal dano dado que a morte sobrevém
com a extinção da personalidade da vítima, pelo que esta já não seria pessoa em termos de
poder sofrer o dano-morte e porque o artigo 496.º, n.º 2, ao determinar os beneficiários da
indemnização por morte, excluiria quaisquer outros, por via sucessória. Menezes Cordeiro
responde que o último argumento é completamente inoportuno, dado que nada no art.º
496.º exclui a possibilidade da vítima de uma lesão que lhe cause a morte sofrer danos
ressarcíveis, patrimoniais e morais. Para este Autor, o primeiro argumento não pesa dado
que basta o reconhecimento do direito à vida para existir tal lesão.
Assim, a morte de uma pessoa é, para esta, um dano que pode dar lugar a imputação, sendo
o destino da indemnização, depois, uma questão de Direito das Sucessões.

O art.º 496.º, n.º 2, visa, apenas delimitar os beneficiários, iure proprio, de determinadas
indemnizações por morte de pessoa próxima. É, no entanto, um mapa rígido, que escapa,
inclusive, à própria vontade do morto, o qual, por testamento, por exemplo, poderá querer
indicar o beneficiário da indemnização pela sua própria morte. A consagração de uma
indemnização ao próprio morto permite reforçar o dispositivo do art.º 496.º, n.º 2, tornando-
o mais maleável e permitindo à vítima, nos esquemas do Direito das Sucessões, beneficiar
quem entender.
A solução da querela tem de ser procurada através de uma interpretação valorativa e não de
um esquema aparentado à jurisprudência dos conceitos. Portanto, a questão de saber se o
dano morte é, ou não, indemnizável não pode ficar dependente de lucubrações teóricas,
assentes em exercícios silogísticos formais. O Direito civil não pode deixar de sancionar o
dano-morte. Concomitantemente, consegue-se um esquema que permite a atribuição de
indemnizações complementares.

Existe uma posição – defendida por Antunes Varela, Oliveira Ascensão, Ribeiro de Faria e
Pamplona Corte-Real – que contesta que o direito à vida possa ser indemnizável a favor do
lesado, fazendo-o com os seguintes argumentos:
1. Com a morte cessa a personalidade; logo, não se pode constituir um direito em algo
que já não existe;
2. Os trabalhos preparatórios e o cuidado posto (por Antunes Varela) em contraditar as
iniciativas iniciais de Vaz Serra, favoráveis ao dano-morte, mostrariam que a lei não
consagraria tal solução;
3. O art.º 496.º esgota o universo dos danos indemnizáveis e dos seus beneficiários.
Menezes Cordeiro responde a esta argumentação afirmando que:
1. Se a morte não é ressarcível, então a vida não é um direito subjectivo, representando
tal, por puras razões conceptuais, um enorme retrocesso na defesa da dignidade
humana, alcançada nas últimas décadas;
2. Os trabalhos preparatórios mostram apenas a intenção subjectiva de quem os fez,
não tendo a intenção em análise obtido assento final no Código;
3. O art.º 496.º não esgota o universo a que se aplica, funcionando, ao seu lado, os
artigos 70.º, n.º 1, 483.º, n.º 1, e 2024.º.

Existe uma outra posição – defendida por Galvão Telles, Almeida Costa, Leite de Campos,
Menezes Cordeiro e Menezes Leitão – favorável a que, para além das indemnizações
atribuídas por via do art.º 496.º, ainda haja outras, por danos morais e pela supressão do
direito à vida, do próprio lesado, e que seguem, depois, por via hereditária. Fundamentam
esta posição os seguintes argumentos:
a. Não faz sentido descobrir “direitos” e, depois, negar-lhes o regime; se existe um
direito à vida, então há que dotá-lo da competente tutela aquiliana, logicamente a
favor do seu titular;
b. A actual responsabilidade civil tem funções retributivas e preventivas; ora tais
funções perder-se-ão quando se admitam direitos que desapareçam logo que sejam
violados;
c. A mera aplicação do art.º 496.º, n.º 2, desarticulado do resto do ordenamento,
conduz a resultados inaceitáveis;
d. As indemnizações arbitradas pelos tribunais portugueses são, para Menezes
Cordeiro, totalmente insatisfatórias.
A jurisprudência envereda, na sua larga maioria, pelo caminho de que a morte é um dano
indemnizável, transmissível iure hereditario.

Danos emergentes e lucros cessantes

No universo dos danos, remonta ao Direito romano a distinção entre danos emergentes e
lucros cessantes. O dano emergente é o que resulta da frustração de uma vantagem já
existente; o lucro cessante advém da não concretização de uma vantagem que, doutra
forma, operaria.
De Cupis coloca a tónica desta distinção no momento presente ou futuro em que se
verifiquem os interesses atingidos pelo dano, considerando Menezes Cordeiro que tal
asserção é admissível. No entanto, Pessoa Jorge afirma que os danos emergentes são
presentes e os lucros cessantes futuros, estando esta distinção consignada no art.º 564.º, n.º
1. Neste quadro, o lucro cessante consiste no lesado ter a titularidade de um direito que lhe
facultaria um ganho futuro.
Gomes da Silva propõe uma classificação diferente, isolando quatro tipos de danos:
i. A perda ou deterioração de um bem existente no património do ofendido;
ii. Os gastos extraordinários que o ofendido é obrigado a fazer, por força da lesão;
iii. O desaproveitamento de despesas já feitas;
iv. Os lucros cessantes.
Menezes Cordeiro entende que é possível reconduzir os gastos extraordinários e o
desaproveitamento de despesas aos danos emergentes, dado que em ambos os casos se
verifica a frustração de vantagens já existentes, sem contrapartida e por força da lesão.
Esta distinção tem, praticamente, mero interesse descritivo, uma vez que a lei trata, regra
geral, os dois tipos de danos de uma forma unitária.

A natureza do dano
Menezes Cordeiro define o dano como a diminuição de uma qualquer vantagem tutelada
pelo Direito, existindo fundamentalmente duas orientações sobre a sua natureza jurídica:
a. Dano abstracto;
b. Dano concreto.
A teoria do dano abstracto diria que o dano consistiria na diferença de valores existentes no
património, antes ou depois da lesão ou, se se quiser, na diferença entre o valor real do
património com a lesão e o seu valor hipotético se lesão alguma tivesse ocorrido. A teoria do
dano concreto defende, simplesmente, que o mesmo se traduz na lesão de um determinado
bem.
Castro Mendes propõe, em alternativa, a seguinte sistematização para as teorias
explicativas da natureza do dano:
i. Subjectivas;
ii. Objectivas;
iii. Intermédias.
As teses subjectivas defendem que o dano teria por objecto a pessoa ou algo que se define
em função dela, sendo que a sua principal modalidade explicitá-lo-ia como uma lesão a um
interesse subjectivo. As teorias objectivas defendem que o dano implicaria a perda de valor
de um património ou a lesão de uma coisa ou de um interesse (objectivo). As teses
intermédias são de três tipos: as que misturam elementos objectivos e subjectivos, “por
carência de análise”; as que constroem dois conceitos de dano, um objectivo e um subjectivo,
“inutilmente”; as que apresentam o objecto do dano como algo de intermédio entre a pessoa
e o bem.

Manuel Gomes da Silva entende que “dano é a privação de um ou mais benefícios


concretamente considerados, ou de uma generalidade de benefícios; deve assim, ser
tomado concretamente, embora deva ser apreciado em relação ao conjunto do património
da pessoa”. Castro Mendes, preocupado com a distinção entre o objecto do dano e a sua
causa de relevância, entende-o como o “saldo da contraposição de auxílios e resistências
com que o homem lida para prosseguir os seus fins” (objecto), “pela quebra da justa
proporção de auxílio que o homem deve receber para a prossecução dos seus fins” (causa).
Pessoa Jorge, defende a concepção do dano em concreto, fazendo notar que a aparente
recepção, pelo art.º 566.º, n.º 2, do Código, da teoria da diferença tem a ver com a
determinação do montante da indemnização e não com a natureza do dano em si.

O nexo de causalidade – problemática geral

Entre os pressupostos da responsabilidade civil, cabe ainda examinar o chamado nexo


causal ou nexo de causalidade. Entre a violação ilícita e culposa de um direito subjectivo ou
de uma norma de protecção e o dano ocorrido, deve haver uma certa relação. A doutrina tem
apresentado, como critérios para o estabelecimento do nexo de causalidade, as seguintes
teorias:
a. Teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non;
b. Teoria da última condição;
c. Teoria da causalidade adequada;
d. Teoria do escopo da norma violada;
e. Teoria da condição eficiente.

A teoria da equivalência das condições ou da conditio sine qua non defende que o prejuízo
deveria ser considerado como provocado por quaisquer eventos cuja não verificação tivesse
acarretado a inexistência de dano, i.e., o nexo causal dar-se-ia a favor de qualquer evento
que fosse condição necessária do dano.
Menezes Leitão entende que, aplicada ao Direito, a teoria conduz a resultados absurdos.
Efectivamente, ao se afirmar a relevância de todas as condições para o processo causal, já
que per se nenhuma teria força suficiente para afastar a outra, o resultado é abdicar-se de
efectuar uma selecção das condições juridicamente relevantes.
A teoria da última condição só considera como causa do evento a última condição que se
verificou antes de este ocorrer e que, portanto, o precede directamente. Esta orientação não
tem sido acolhida, dado que pode surgir como última condição uma conduta que, em termos
valorativos, pouco ou nada tenha a ver com o dano.
A teoria da condição eficiente pretende que para descobrir a causa do dano terá que ser
efectuada uma avaliação quantitativa da eficiência das diversas condições do processo
causal, para averiguar qual a que se apresenta mais relevante em termos causais. Esta teoria
não fornece, para Menezes Leitão, um verdadeiro critério para o estabelecimento do nexo
causal, ado que a escolha da condição mais eficiente em termos causais apenas é possível
remetendo para o ponto de vista do julgador, o que acaba por redundar num subjectivismo
integral, totalmente inadequado para a construção jurídica.
A teoria da causalidade adequada, defendida pela maioria da Doutrina, designadamente por
Antunes Varela, entende que para que exista nexo de causalidade entre o facto e o dano não
basta que o facto tenha sido em concreto causa do dano, em termos de conditio sine qua non.
É também necessário que, em abstracto, seja também adequado a produzi-lo, segundo o
curso normal das coisas.
A averiguação da adequação abstracta do facto a produzir o dano só pode ser realizada a
posteriori, através da avaliação de se seria previsível que a prática daquele facto originasse
aquele dano (prognose póstuma). A doutrina da adequação aceita que essa aceita que essa
avaliação tome por base não apenas as circunstâncias normais que levariam um observador
externo a efectuar um juízo de previsibilidade, mas também circunstâncias anormais, desde
que recognoscíveis ou conhecidas pelo agente. Tal implica que a doutrina da causalidade
adequada remeta, no fundo, para questões de imputação subjectiva.
Para Menezes Leitão, a teoria da causalidade adequada subjaz ao art.º 563.º do Código Civil,
entendendo, pelo contrário, Menezes Cordeiro que não existe no preceito supra-referido
referência a qualquer adequação.
A teoria do escopo da norma violada defende, pelo contrário, que para o estabelecimento
do nexo de causalidade é apenas necessário averiguar se os danos que resultaram do facto
correspondem à frustração das utilidades que a norma visava conferir ao sujeito através do
direito subjectivo ou da norma de protecção. Assim, a questão da determinação do nexo de
causalidade acaba por se reconduzir a um problema de interpretação do conteúdo e fim
específico da norma que serviu de base à imputação dos danos. Trata-se da posição
defendida por Menezes Leitão.

Menezes Cordeiro entende que no nexo de causalidade requerido pela responsabilidade


aquiliana, inexistem fórmulas universais válidas. O art.º 563.º do Código Civil, a propósito da
obrigação de indemnização, dispõe:
“A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não
teria sofrido se não fosse a lesão.”
Pode-se distinguir, no domínio da causalidade, dois planos, para efeitos de análise:
i. A causalidade enquanto pressuposto de responsabilidade civil;
ii. A causalidade como bitola de indemnização.
No primeiro plano, a causalidade opera como filtro negativo, a conditio sine qua non: se o
facto ilícito for indiferente para a produção do dano, não há como imputá-lo ao agente. No
entanto, este é insuficiente, pelo que é necessário que, pela positiva, se formule um juízo
humano de implicação – dadas as condições existentes, era compaginável, para a pessoa
normal, colocada na situação de agente, que a conduta deste teria como resultado
razoavelmente provável ou, simplesmente, possível, a produção do dano. A “pessoa normal”
é uma pessoa social, integrada no meio onde o problema se ponha. Tem-se, aqui, uma ideia
de adequação, que pode ser enriquecida ao infinito com múltiplas considerações.
Para este Autor, a filtragem negativa e positiva operada pela causalidade é insuficiente,
dado que, esta pode não ser “socialmente adequada”, mas ter sido voluntariamente
montada para se conseguir, ainda que por via anómala, o resultado. Tem-se, então, a
causalidade provocada. Assim, o elemento decisivo para fixar a causalidade será o escopo da
norma violada.
A causalidade, para Menezes Cordeiro, enquanto pressuposto da responsabilidade civil,
operará em quatro tempos:
i. Conditio sine qua non;
ii. Adequada, em termos de normalidade social; ou
iii. Provocada pelo agente, para obter o seu fim;
iv. Consoante os valores tutelados pela norma violada.

Enquanto bitola de indemnização, a causalidade vai permitir responder a questões deste


tipo:
a. Há que contar com danos indirectos ou, apenas, com os directos?
b. O que sucede perante sequências causais anómalas não provocadas?
c. Como conjugar concursos de causas ou, mais latamente, de imputações?
d. A causalidade virtual releva e, sendo a resposta afirmativa: positiva ou
negativamente?

Situações aquilianas em especial – ofensa do crédito e do bom nome


O Código de 1966, tendo fixado, no art.º 483.º, n.º 1, a cláusula geral de responsabilidade
aquiliana, passa a tratar situações especiais – aquelas que, no entendimento do legislador,
apresentam uma compleição que suscita regras diferenciadas, em relação ao que já derivaria
do princípio geral. A primeira destas situações encontra-se expressa no art.º 484.º, relativo à
“ofensa do crédito ou do bom nome”:
“Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer
pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.”
A esta norma subjaz a tutela civil do direito à honra.

O art.º 484.º prevê a ocorrência de alguém “afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar
o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa”, sendo “facto”, neste caso, uma afirmação ou
uma insinuação, feita pela palavra (escrita ou oral), pela imagem ou pelo som, que impliquem
ou possam implicar desprimor para o visado. Este resultará – ou poderá resultar – apoucado,
aviltado ou, por qualquer outro modo, diminuído na consideração social ou naquela que ele
se tenha a si mesmo. A pessoa média normal – bonus pater familias – é a bitola da avaliação
do facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome do visado.

A doutrina diverge relativamente a se o facto atentatório do crédito ou do bom nome, capaz


de desencadear a responsabilidade, deve ser falso ou pode ser verdadeiro. Pessoa Jorge
entende que o art.º 484.º exige, para a responsabilidade, a natureza não-verídica dos factos
imputados, enquanto que Menezes Cordeiro e Antunes Varela entendem, ladeados pela
jurisprudência, que não se exige a falsidade dos factos imputados para a existência de
responsabilidade.
Podem gerar responsabilidade, a título de exemplo, as seguintes afirmações:
i. Afirmações falsas só por si – contêm uma asserção que não corresponde à
verdade; a falsidade poderá ser imputável ao agente ou ter sido perpetrada de
boa-fé;
ii. Afirmações dubitativas – será que certa pessoa é honesta?
iii. Afirmações verdadeiras, mas que inculcam o contrário do que digam ou que
insinuem coisa diversa;
iv. Afirmações verdadeiras, mas sem contexto;
v. Afirmações verdadeiras, mas desinseridas de um contexto;
vi. Afirmações verdadeiras, mas protegidas;
vii. Afirmações totalmente verdadeiras.
Tudo o que seja amputar a verdade, transmiti-la a sugerir algo diverso do que dela resulte,
redigi-la de modo a provocar valorações tendenciosas, levantar dúvidas ou reticências ou
fabricar notícias por qualquer modo, não pode reivindicar a veritas. Assim sendo, será ilícito
desde que atinja a honra de alguém.
A afirmação totalmente verdadeira pode atentar contra a honra das pessoas, dado que nem
tudo o que sucede, existe ou se faz tem de ser revelado. Mesmo não estando em causa a
intimidade privada, protegida por um direito específico, há um juízo de oportunidade a fazer.
Assim, Menezes Cordeiro entende que a afirmação verdadeira pode ser particularmente
indicada para atingir a honra, não sendo a exceptio veritatis, só por si, justificativa.

A defesa do crédito e do bom nome de cada pessoa pode entrar em colisão com
prerrogativas constitucionalmente garantidas e, designadamente, com a liberdade de
informação ou, pelo prisma subjectivo, com o direito, de cada um, à informação.
Deve ter-se presente que o direito à honra é um direito de personalidade, marcando um
círculo em que o interesse da pessoa beneficiária prevalece sobre quaiquer pretensos valores
superiores.
Quanto se refere a liberdade de informação, há que reportá-la a algo de socialmente útil ou
relevante.

A violação do direito ao crédito ou ao bom nome pode determinar danos patrimoniais e não-
patrimoniais, sendo que os primeiros devem ser ressarcidos, até ao montante do prejuízo,
sendo ainda computáveis danos emergentes e lucros cessantes. Os segundos colocam um
problema de danos morais, a arbitrar de acordo com o art.º 496.º, n.º 3, 1.ª parte. A
indemnização deve, para Menezes Cordeiro, ser suficientemente pesada, para exprimir a
reprovação do Direito e ter efeitos no futuro.
No entanto, a tutela indemnizatória é insuficiente, sendo, em regra, mais importante a
reposição da verdade ou a reparação da ofensa feita.

Conselhos, recomendações ou informações – a desresponsabilização


Segundo o art.º 485.º, n.º 1, do Código Civil:
“Os simples conselhos, recomendações ou informações não responsabilizam quem os dá, ainda que
haja negligência da sua parte.”
O n.º 2 tenta delimitar esta regra, fixando que, afinal, o dever de indemnizar existe em três
circunstâncias:
a. Quando se tenha assumido a responsabilidade pelos danos;
b. Quando havia o dever jurídico de dar conselho, recomendação ou informação e se
tenha procedido com negligência ou intenção de prejudicar;
c. Quando o procedimento do agente constitua facto punível.
O art.º 485.º, n.º 1, parte de um postulado de desresponsabilização de quem dê conselhos,
recomendações ou informações: mesmo quando haja negligência da sua parte e sejam quais
forem as consequências. Almeida Costa e Pessoa Jorge alargam doutrinariamente esta
desresponsabilização aos casos em que exista dolo.

Para Menezes Cordeiro, o art.º 485.º, n.º 1, não desresponsabiliza (todos) os conselhos,
recomendações ou informações, reportando-se (apenas), aos simples conselhos,
recomendações ou informações, distinguindo-se entre:
i. Indicações circunstanciais, sem consistência aparente e, nessa medida,
insusceptíveis de criar uma situação de confiança na pessoa normal;
ii. Verdadeiros conselhos, recomendações ou informações, nas quais quaisquer
pessoas acreditam e que são susceptíveis de determinar, da parte destas,
efectivas actuações.
Assim, este preceito leva, pois, a distinguir situações “simples”, que não ocasionem
confiança legítima nem induzam condutas, de outras, mais poderosas, em que o informado
se vai auto-determinar (razoavelmente) pelo que ouviu. No primeiro caso justifica-se uma
certa desresponsabilização, no segundo, não.

A sequência vocabular do art.º 485.º, n.º 1, sugere que a desresponsabilização apenas ocorre
em relação ao resultado normalmente ligado à informação prestada. Se o iter desencadeado
pelos conselhos, recomendações ou informações puder esconder perigos ou danos, que o
“aconselhante” conheça (dolo), ou deva conhecer (negligência), já haverá responsabilidade.
Apenas a negligência leve é causa de desresponsabilização.

O art.º 485.º, n.º 2, prevê explícitas situações de responsabilidade por conselhos,


recomendações ou informações. Têm-se, sintetizando, três hipóteses:
i. Foi assumida a responsabilidade pelos danos;
ii. Havia o dever jurídico de dar conselhos, recomendações ou informações;
iii. O procedimento constitui facto punível.
Em qualquer dos casos, deverá haver dolo ou negligência. Naturalmente, na presença de
deveres específicos, a “culpa” presume-se (art.º 799.º, n.º 1, CC), equivalente à faute. No
primeiro caso, existe um contrato, no qual o informante assegura o resultado, pressupondo-
se a aceitação, nos termos gerais, tratando-se de uma responsabilidade obrigacional.
No segundo caso, está-se perante um dos numerosos deveres de informação com que
trabalha o moderno direito das obrigações: deveres acessórios com ou sem prestação
principal, prestação principal de informar e deveres de informação de tipo paracontratual.
Todo este universo implica responsabilidade obrigacional.
No terceiro caso, a referência à punibilidade de facto, apela às normas de protecção. As
informações falsas, erradas ou insuficientes irão provocar danos em interesses protegidos
pelas normas violadas pelo (mau) informador.

A prevenção do perigo (deveres do tráfego) – aspectos gerais

Numa primeira abordagem, a tutela aquiliana contentar-se-ia com a abstenção do agente:


quem nada fizesse, não poderia integrar a previsão do art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil. No
entanto, desde o princípio do século XX, verificou-se, todavia, que, em certos casos, os danos
poderiam sobrevir, de modo adequado e merecedor de censura jurídica, não, apenas de
acções, mas, também, de omissões. Para tanto, seria necessário entender que a tutela
aquiliana pode implicar, para certas pessoas, a observância de deveres destinados a prevenir
determinados perigos – deveres do tráfego.
No Direito Civil, esta matéria foi introduzida judicialmente, ficando, como liderantes, duas
decisões do Reichsgericht, tomadas no princípio do século XX, relativas aos perigos
específicos de locais públicos.
Na evolução subsequente, os deveres do tráfego vieram assumir um papel de prevenção do
perigo e a adoptar um alargamento de protecção requerido por esse escopo, tendo-se três
pontos ou fases de evolução:
a. Passou-se dos perigos específicos de locais públicos para riscos atinentes a sítios
privados, quando seja de prever a intromissão de estranhos no local perigoso;
b. Alargou-se a responsabilidade a danos negligentemente causados por terceiros, em
conexão com o âmbito do garante;
c. Chegando a cobrir perigos provocados pela própria actuação dolosa de terceiros.
Os deveres do tráfego são, hoje, derivados do art.º 483.º, n.º 1, surgindo,
fundamentalmente, quando alguém crie ou controle uma fonte de perigo. Cabem-lhe,
então, as medidas necessárias para prevenir ou evitar os danos.
A matéria dá lugar a extensas seriações de ocorrências relevantes, podendo-se elencar:
i. A criação do perigo – aquele que dê azo ao perigo deve tomar as medidas
adequadas;
ii. A responsabilidade pelo espaço – quem controla um espaço deve prevenir os
perigos que lá ocorram ou possam ocorrer: quem tem a vantagem do lugar deve
assumir os deveres que daí decorram;
iii. A abertura ao tráfego – quem tenha um local aberto ao tráfego deve garantir a
sua segurança;
iv. A assunção de uma tarefa – o arquitecto e o construtor não respondem apenas
perante o parceiro no contrato por vício da obra; garantem a segurança de
quaisquer terceiros;
v. A introdução de bens no tráfego – o seu autor responde pelos danos daí
resultantes (responsabilidade do produtor, dotada de regime explícito);
vi. A responsabilidade do Estado;
vii. A responsabilidade pelo governo da casa – quem o tenha deve assegurar-se que,
daí, não resultam danos.
O conteúdo dos deveres do tráfego é multifacetado, dependendo do caso concreto, como
por exemplo:
1. Deveres de aviso e de proibição de acesso ao local do perigo,
2. Deveres de instrução das pessoas sujeitas à fonte do perigo;
3. Deveres de controlo do perigo, tomando medidas físicas para a sua confinação;
4. Deveres de escolha criteriosa de colaboradores e de organização;
5. Deveres de formação profissional;
6. Deveres de avisar e pedir auxílio, em tempo útil, às autoridades públicas
competentes;
7. Deveres de assistência e de cuidado reportados a pessoas.

Pessoas obrigadas à vigilância de outrem

Existem manifestações concretas, legalmente fixadas, de deveres de prevenção do perigo,


sendo a primeira a responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância de outrem (culpa in
vigilando), disciplinada pelo art.º 491.º:
“As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da
incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se
mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que
o tivessem cumprido.”

O art.º 491.º prevê:


a. Pessoas obrigadas, por lei ou por negócio jurídico, a vigiar outras, por virtude da
incapacidade natural destas;
b. Danos que as incapazes causem a terceiro.
Tem-se, efectivamente, uma relação jurídica, de base legal ou especial, entre o vigilante e o
vigiado ou entre o vigilante e os promissários e o vigiado, quando a situação se construa
como um contrato a favor de terceiro. No entanto, a tutela legal não se destina,
directamente, a acautelar essa relação, antes protegendo os terceiros que, por via da
actuação do incapaz, venham a sofrer danos. O inimputável não é responsável (art.º 488.º,
n.º 1, CC), salvo o especial circunstancialismo do art.º 489.º e com os limites aí prescritos.
O vigilante pode evitar a responsabilidade:
i. Ou provando que cumpriu o seu dever de vigilância;
ii. Ou demonstrando que os danos se teriam dado de qualquer maneira (relevância
negativa da causa virtual).

Danos causados por edifícios ou outras obras


O art.º 492.º relativo aos danos causados por edifícios ou outras obras, dispõe:
1. O proprietário ou possuidor de edifício ou de outra obra que ruir, no todo ou em parte, por
vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se
provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não
teriam evitado os danos;
2. A pessoa obrigada, por lei ou por negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra responde,
em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a
defeito de conservação.
Os requisitos para a existência de responsabilidade são os seguintes:
i. Um proprietário ou possuidor – ficam afastados detentores ou, em geral, pessoas
em cujos poderes não se incluem os de fazer as obras de manutenção;
ii. Cujo edifício ou obra ruir, no todo ou em parte – figura-se uma súbita modificação
da coisa, que tenha por defeito o deixar jogar a lei da gravidade;
iii. Por vício de construção ou defeito de conservação – estão em causa vícios ou
causas atinentes ao edifício ou à obra em causa, por oposição a causas
extrínsecas.
Perante isso, o proprietário ou possuidor implicados respondem pelos danos causados, mas
com duas ressalvas:
a. Ou de ele provar que não houve culpa da sua parte;
b. Ou que, mesmo com a diligência devida, não se teriam evitado os danos.
A culpa é um juízo de valor formulado pelo ordenamento, que não pode existir se não tiver
ocorrido a (prévia) violação de normas, i.e., a ilicitude. “Provar que não houve culpa”, pode
significar uma de duas coisas:
1. Ou provar que não houve incumprimento de deveres aplicáveis (ilicitude), sendo, por
aí, inviável o juízo de culpa;
2. Ou que, apesar desse incumprimento, não era exigível, ao visado, outra conduta –
verificar-se-ia uma causa de excusa.

O legislador, no confronto entre os artigos 491.º, 492.º e 493.º, deu mostras de flutuações
de linguagem que, no fundo, traduzem uma certa dificuldade em descolar da linguagem
napoleónica.
O elemento substancial que dá corpo ao art.º 492.º é uma clara obrigação de prevenir o
perigo dos desmoronamentos: seja evitando vícios de construção, através de uma adequada
observância das regras da arte, seja procedendo à conservação que se mostre necessária. O
conteúdo desta obrigação é totalmente variável, em função das circunstâncias.
A ilisão segue uma de duas vias: ou a prova do cumprimento, ou a demonstração da
procedência de uma causa de excusa.
O final do art.º 492.º, n.º 1, compreende uma hipótese de relevância negativa da causa
virtual – o edifício ruiu por vício ou por falta de manutenção; todavia, verifica-se que os danos
assim ocasionados adviriam, igualmente, de uma outra causa, que não chega a manifestar-
se (a causa virtual), com isso se evitando a responsabilidade (relevância negativa).

O art.º 492.º, n.º 2, convola para a pessoa obrigada, por lei ou por negócio jurídico, a
conservar o edifício ou obra, a responsabilidade por defeito de construção. O dever do
tráfego, passa, como é lógico, para esta.

Danos causados por coisas ou animais

O art.º 493.º, relativo a danos causados por coisas, animais ou actividades, diz no seu
primeiro número:
“Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver
assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os
animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se
teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
O n.º 2 diz respeito a actividades perigosas.

No tocante a animais, o preceito-base é o art.º 502.º: o dono deles ou qualquer outra pessoa
que os utilize no próprio interesse, responde pelos danos que eles causarem, desde que
resultem do perigo especial que envolva a sua utilização. Este preceito trata de
responsabilidade objectiva, que não pode ser afastada.
O art.º 493.º, n.º 1, trata de algo diferente, prevendo:
i. Alguém que tenha em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar;
ii. Ou tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais,
Responde pelos danos que as coisas ou os animais causarem. O dever de vigilância, que se
deveria manter inter partes, projecta-se, protegendo terceiros. Ficam em aberto duas
hipóteses de alijamento da responsabilidade:
1. A de o vigilante provar que “nenhuma culpa houve da sua parte”;
2. Ou “que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
Assim como ocorre no art.º 492.º, n.º 1, a “presunção de culpa” neste preceito é uma
presunção de ilicitude, i.e., perante os danos, postula-se ter havido inobservância do dever
de vigiar. Com isto, estando em causa animais, a lei visou prevenir o proliferar de danos: o
proprietário, não usando os animais no interesse próprio, sairia da previsão do art.º 502.º.
Quando a coisas: a não haver uma autónoma responsabilidade civil do vigilante, este poderia
ser descuidado, com prejuízo para terceiros.
As “coisas e animais” só podem causar danos em sentido naturalístico, devendo-se, pois,
subentender um tipo de causalidade natural, ligada aos especiais riscos que envolvam.

Danos causados por actividades perigosas

O art.º 493.º, n.º 2, tem o maior interesse, por computar, subjacente, o princípio geral das
actividades perigosas, dispondo:
“Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou
pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou
todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.”
Havendo uma actividade perigosa, a pessoa que dela se sirva ou que a desencadeie tem
deveres de prevenção e de cuidado a seu cargo: os deveres do tráfego. Tais deveres têm o
conteúdo de, nas condições existentes e de acordo com as (boas) técnicas aplicáveis,
prevenirem danos, pessoais ou materiais.
Quando a actividade seja perigosa e dela decorra danos, é ao beneficiário que cumpre provar
o efectivo cumprimento de tais deveres: tal é o concreto sentido que, aqui, assume a
presunção de culpa.

Os deveres do tráfego
Na base dos deveres do tráfego, tem-se uma situação potencialmente danosa para os
membros da comunidade jurídica e designadamente:
i. Pessoas inimputáveis (“incapacidade natural”) e, como tal, duplamente perigosa:
por poderem apresentar condutas irracionais e, como tal, imprevisíveis e
agressivas e por não responderem, elas próprias e em princípio, pelos danos (art.º
491.º, CC);
ii. Edifícios ou outras obras, que podem sofrer de vícios de construção ou de defeitos
de conservação, não-aparentes e, como tal, susceptíveis de atingir terceiros (art.º
492.º, CC);
iii. Coisas ou animais que estejam sob vigia, postulando, desde logo, o facto de
estarem sob vigilância a eventualidade do perigo, ficando a segurança de
terceiros dependente do vigilante (art.º 493.º, n.º 1, CC);
iv. Actividades perigosas, por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados
(art.º 493.º, n.º 2, CC).
Estas situações podem advir de relações jurídicas específicas (obrigações), legais ou
negociais. No entanto, o que está em causa não é a protecção das partes nas relações
existentes – para isso, valeria a responsabilidade obrigacional – mas sim a de terceiros. Tem
um conteúdo variável até ao infinito.
Para prevenir o perigo, a lei prevê os deveres do tráfego, os quais não são, todavia, pré-
determinados, nem nos seus sujeitos, nem no seu conteúdo, de modo a poderem dar azo a
uma verdadeira obrigação. Eles antes nascem ao sabor das muitas circunstâncias que podem
acompanhar cada uma das situações em presença, disto resultando a inversão do ónus da
prova: é ao lesante que compete fazer prova da sua correcta execução.
Subjacente está uma dupla ideia do legislador: a de incentivar a que, no momento próprio,
sejam tomadas as devidas precauções e a de fazer correr, pelos beneficiários do perigo, o
risco dos danos. Como contrapeso, é-lhes conferida a hipótese de se prevalecerem da
relevância negativa de causas virtuais.
Os deveres do tráfego têm natureza aquiliana, sendo puramente defensivos, visando evitar
danos, não tendo nem sujeitos nem conteúdo pré-determinado. O seu incumprimento, para
Menezes Cordeiro, Carneiro da Frada e Adelaide Menezes Leitão, só releva havendo danos.

A responsabilidade pelo risco – generalidades


A responsabilidade pelo risco, também chamada de responsabilidade objectiva ou
imputação sem culpa, é a situação na qual uma pessoa – o imputado ou respondente – fica
adstrita a ressarcir outra, por um determinado dano, independentemente de, ilicitamente e
com culpa, o ter originado. Trata-se de uma figura delicada, uma vez que prescinde da culpa:
quer como elemento individualizador da pessoa que irá ficar obrigada a indemnizar, quer
como factor significativo-ideológico justificante da própria situação de responsabilidade.
A responsabilidade pelo risco desenvolveu-se como um reflexo da imputação delitual: certas
actividades perigosas deveriam, havendo danos, dar azo a deveres de indemnizar. Nalguns
casos, ainda se poderia construir ou pressupor uma culpa mais ou menos fictícia; noutros,
isso não seria credível.

Faltando o princípio da culpa, existem duas linhas de fundamentação da imputação


objectiva:
i. A justiça distributiva;
ii. A ilicitude imperfeita.
A justiça distributiva diz que o risco deve estar associado à vantagem, explicando este
vector, em princípio, que, na falta de um fundamento de imputação, o risco deva correr pelo
titular do direito que venha a ser suprimido ou constrangido. Em certos casos, poderá haver
outras saídas, respondendo quem tem uma especial conexão com certos bens pelos danos
que eles possam causar. No fundo, reconhece-se a necessidade de prolongar, pela
responsabilidade, o âmbito de direitos subjectivos que, pela natureza ou pelas
circunstâncias, possam funcionar em termos expansivos.
A ilicitude imperfeita recorda que, no fundo, o Direito pretende que não haja danos. Assim,
embora em certos casos não seja possível imputá-los a título de delito, a imputação objectiva
é um poderoso incentivo para que sejam tomadas medidas preventivas atempadas.

A imputação objectiva é, frequentemente, dobrada pelo seguro de responsabilidade civil.


Através da técnica da responsabilidade civil, o risco de certos danos acaba por ser suportado
pelo sistema, havendo um máximo de justificação distributiva.

Responsabilidade do comitente – generalidades e pressupostos


Segundo a sistematização do Código Civil, a primeira hipótese responsabilidade pelo risco é
a responsabilidade do comitente (art.º 500.º, n.º 1, CC):
“Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa,
pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este também recaia a obrigação de
indemnizar.”
Existem três pressupostos elencados no art.º 500.º, n.º 1:
i. A comissão;
ii. Danos, causalidade e imputação ao comissário;
iii. No exercício da função.

A comissão

O primeiro pressuposto inserido no art.º 500.º, n.º 1, para a responsabilidade do comitente,


é a situação de alguém encarregar outrem de uma comissão ou, se se quiser, o acto e o efeito
de comitir. Podem distinguir-se os elementos seguintes:
i. A presença de liberdade de escolha do comitente;
ii. A incumbência de uma comissão a outrem;
iii. A aceitação dessa incumbência, pelo escolhido que, assim, se torna comissário ou
comitido;
iv. A existência de uma relação, daí resultante;
v. A actuação do comissário, no âmbito da comissão, por conta do comitente.
A liberdade de escolha do comitente é o ponto de partida para a aplicação desta figura. Na
sua falta haverá uma relação legal ou uma gestão de negócios, consoante a relação derive da
lei ou da iniciativa do próprio agente, verificados os competentes pressupostos.
Para além da escolha, o comitente deverá ter incumbido o eleito de uma determinada
actuação ou comissão. A lei é muito abrangente, podendo ser um acto isolado ou um
desempenho continuado, de natureza jurídica, material ou mista, gratuito ou oneroso,
manual ou intelectual. A incumbência pode – ou não – ser acompanhada da concessão de
poderes de representação, gerando o mandato, na em princípio, uma situação de comissão.
A incumbência pode derivar de um contrato, entre ambos concluído, de um acto unilateral
operado no âmbito de uma relação previamente constituída ou de uma pura indicação de
facto, que são se deixe validamente reconduzir a um figurino jurídico. Apenas se requer que
o comitente tenha a possibilidade de se exprimir e que o seu facto seja, enquanto tal,
devidamente tomado pelo seu destinatário, i.e., o comissário.

A incumbência deve ser aceite, sendo que se assim não for, o comissário irá agir como
terceiro estranho, respondendo, nos termos gerais, pelas decisões que tome e ponha em
prática, mas sem com isso envolver a responsabilidade do comitente. Não se exige ao
comissário qualquer aceitação juridicamente operacional, em termos de dar azo a um
contrato, sendo-lhe apenas exigida a imputabilidade geral (art.º 488.º, CC).
Da incumbência e da sua aceitação decorre uma relação entre as partes, entendendo
Antunes Varela que se exige um nexo de subordinação entre o comitente e o comissário, a
qual poderá ter carácter permanente ou duradouro, assim como pode ser puramente
transitória, ocasional, limitada a actos materiais ou jurídicos de curta duração. Para Menezes
Cordeiro, a comissão existe quando alguém encarrgue outrem de agir por conta do primeiro.

Danos, causalidade e imputação ao comissário

Havendo comissão, o art.º 500.º, n.º 1, depende, ainda, dos seguintes pressupostos:
i. A ocorrência de danos – danos;
ii. Causados pelo comissário – causalidade;
iii. Desde que, sbore este, recaia também a obrigação de indemnizar – imputação ao
comissário.
A ocorrência de danos é o ponto de partida de qualquer situação de responsabilidade civil,
não especificando o art.º 500.º, n.º 1, qualquer tipo de danos. Portanto, incluem-se, nos
termos gerais, todos os tipos de danos, incluindo os morais. No entanto, só relevam os danos
que ocorram no âmbito da comissão em jogo.

Os danos resultantes devem ter sido causados pelo próprio comissário, exigindo-se, para
que seja operável a imputação pelo risco sobre o comitente, que também sobre o primeiro
recaia a obrigação de indemnizar (art.º 500.º, n.º 1, in fine, CC). A doutrina divide-se no
tocante ao título de imputação que deverá recair sobre o comissário:
i. O comissário deveria incorrer em responsabilidade delitual – defendida por
Antunes Varela, Rui de Alarcão e Pedro Nunes de Carvalho;
ii. Basta que o comissário incorra em responsabilidade, no âmbito da sua comissão
e isso quer tal suceda a título delitual, quer pelo risco – defendida por Menezes
Cordeiro, Almeida Costa, Sofia Galvão;
iii. Basta que recaia sobre o comissário uma presunção de culpa, sendo, no entanto,
duvidosa a possibilidade de aqui serem abrangidas a responsabilidade pelo risco
ou pelo sacrifício praticado pelo comissário – defendida por Menezes Leitão e
Ribeiro de Faria.
Menezes Leitão nega a possibilidade de a imputação ao comissário ser puramente objectiva
dado que isso impediria a existência do direito de regresso do comitente contra o comissário,
atendendo ao n.º 3 do art.º 500.º, visando a responsabilidade do comitente apenas a garantia
do pagamento da indemnização ao lesado. Menezes Cordeiro, admitindo que, em termos
práticos, a responsabilidade do comitente garanta a do comissário, entende que inexiste,
numa perspectiva técnica, qualquer obrigação de garantia, antes existindo uma clara
obrigação principal.
Para este Autor, o n.º 3 do art.º 500.º deve ser lido no seu contexto, significando que se o
comitente responder pelo comissário responsável pelo risco sobre este recai também a
obrigação de indemnizar.

No exercício da função

Relativamente à responsabilidade do comitente, o n.º 2 do art.º 500.º faz a seguinte


precisão:
“A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda
que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.”
Com este preceito, o legislador delimita o âmbito do risco que vai recair sobre o comitente,
divergindo a doutrina relativamente à concreta extensão deste:
i. A fronteira do risco será restritiva, devendo haver um nexo funcional entre os
danos e a própria função do comissário – defendida por Antunes Varela;
ii. A fronteira do risco será extensiva, bastando que os danos sejam causados no
exercício da função e não por causa desse exercício – defendida por Menezes
Leitão e Menezes Cordeiro.
A jurisprudência do STJ explica que a fórmula do art.º 500.º, n.º 2, apenas visou afastar, da
responsabilidade do comitente, os actos que apenas tenham um nexo temporal ou local com
a comissão.

O direito de regresso do comitente

O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso


de tudo quanto haja pago (art.º 500.º, n.º 3, 1.ª parte, CC), tratando-se tal posição jurídica de
um direito de regresso.
Na lógica do art.º 500.º, a responsabilidade do comitente é uma obrigação principal,
funcionando de modo autónomo, com regras de configuração que não equivalem,
necessariamente, à imputação feita ao comissário.

Se houver, da parte do comitente, “também culpa”, aplica-se o n.º 2 do art.º 497.º, existindo
o direito de regresso na medida das respectivas culpas e das consequências que delas
advierem, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis (art.º 500.º, n.º 3, 2.ª
parte, CC). Menezes Cordeiro nota que a expressão “também culpa” deve ser interpretada
em sentido amplo, significando “imputação”, seja qual for o título. Assim, a lei prevê a
hipótese de o dano, imputável ao comitente a título de comissão, poder ser-lhe também
imputado, directamente, a qualquer outro título, surgindo várias hipóteses:
a. Que o dano seja imputável a ambos, comitente e comissário, a título de ilicitude e
culpa;
b. Que seja imputável ao comitente, a título de culpa, e ao comissário, a título de risco;
c. Que seja imputável ao comitente a título de risco, por um instituto diverso daquele
do art.º 500.º, e ao comissário, a título de ilicitude e culpa ou, até, a título de risco.
Assim, nestas eventualidades, o direito de regresso do comitente ficará diminuído, havendo
que valorar a medida das imputações em concurso presumindo-se iguais, quando certa saída
não se imponha.
A natureza da responsabilidade do comitente

Existem as seguintes teses que tentam explicar a natureza da responsabilidade do


comitente:
1. Tese da culpa in eligendo;
2. Tese da representação;
3. Tese da garantia;
4. Tese do risco;
5. Tese da ilicitude imperfeita.
A tese da culpa in eligendo sustenta que o comitente vai ser responsabilizado por não ter tido
cuidado na escolha do comissário.
A tese da representação sustenta a presença de um vínculo de imputação derivado da
própria comissão. Ao agir por conta do comitente e no âmbito da incumbência deste
recebida, o comissário faria repercutir, na esfera daquele, automaticamente, determinados
efeitos, sobretudo quando estivessem em causa terceiros – Menezes Cordeiro entende que
esta orientação abdica da ideia técnica de representação, pelo que deve ser evitada.
A teoria da garantia – defendida por Antunes Varela e Menezes Leitão – explica que o
legislador pretendeu garantir a indemnização do lesado, fixando, para além da
responsabilidade do próprio agente, aquela do comitente. Este é devedor, mas para efeitos
externos, uma vez que, no plano dos internos, ele tem o regresso contra o comissário.
Menezes Cordeiro entende que a teoria da garantia tem sentido na medida em que uma das
preocupações do legislador terá sido a de facultar uma efectiva reparação do dano, para
tanto chamando o comitente. No entanto, existem outros aspectos, com relevo para o
preventivo, que a ideia de garantia, puramente patológica, não refere. A obrigação do
comitente é principal, não sendo secundária, ocorrendo que quando o comitente pague há
regresso, não sub-rogação.
A teoria do risco exprime a essência da imputação objectiva, entendendo o legislador que,
tendo o comitente os cómodos de poder atingir os seus objectivos encarregando comissários
de os prosseguirem, por sua conta, é justo que assuma os riscos envolvidos para terceiros.
Ao responsabilizá-lo, o Direito desloca para o comitente o risco que, de outro modo, caberia
ao lesado: o de se disputar com o comissário que, em regra, não tem margem económica
para pagar indemnizações.
A teoria da ilicitude imperfeita defende que o legislador pretende que não haja danos
suplementares para as pessoas, por via da existência de vínculos de comissão, podendo tal
suceder por diversos motivos. Pela natureza das coisas, o comitente terá mais poder
económico que o comissário, pretendendo o legislador, pela imputação objectiva, levar a que
os comitentes escolham bons comissários, lhes dêem boas missões, que os acompanhem
como deve ser, que os motivem e que lhes confiram conforto económico. Trata-se de um
modo indirecto de orientar as condutas em sociedade, envolvendo o seu desrespeito a
chamada ilicitude imperfeita, a qual gera o dever de indemnizar.

A responsabilidade das pessoas colectivas

Os representantes das pessoas colectivas respondem civilmente pelos actos ou omissões


dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos termos em que os comitentes
respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários (art.º 165.º, CC, art.º 998.º, n.º 1,
CC e art.º 6.º, n.º 5, CSC).
As pessoas colectivas, sendo dotadas de personalidade jurídica, podem integrar, para
Menezes Cordeiro, a previsão do art.º 483.º. Assim, a culpa, enquanto juízo de censura, ser-
lhe-á directamente aplicável.
O art.º 165.º não tem a ver com a responsabilidade das pessoas colectivas por actos dos seus
órgãos, sendo antes aplicável aos actos dos seus representantes, eventualmente
constituídos para determinados efeitos, dos seus agentes e dos seus mandatários. Neste
caso, já fará sentido apelar para a imputação ao comitente.

Os danos causados por animais – culpa in vigilando e risco; pressupostos

Para os efeitos do art.º 502.º, deve considerar-se como “animal” o ser vivo não-humano que,
em termos de normalidade social, como tal é considerado. Assim, excluem-se as plantas e
os micro-organismos, as quais são objecto, em certos casos, de regras especiais. Faltando
estas, aplicam-se as regras gerais e, sendo o caso, fazendo o apelo aos deveres do tráfego,
pelo manuseio de material perigoso.
A lei faz uma contraposição fundamental, em termos de responsabilidade:
i. Alguém tem em seu poder um animal com o encargo da vigilância (art.º 493.º, n.º
1, CC) – responde pelos danos que ele causar, salvo provando que agiu sem culpa
ou que os danos se teriam, do mesmo modo, produzido;
ii. Alguém utiliza no seu próprio interesse quaisquer animais (art.º 502.º, CC) –
responde pelos danos que estes causarem, desde que resultem do perigo especial
que envolve a sua utilização.
No primeiro caso, há uma situação específica com presunção de “culpa”, mais
especificamente culpa in vigilando; no segundo, a imputação é verdadeiramente objectiva ou
pelo risco.

Os pressupostos são distintos, assentando a imputação pelo risco, relativa a animais, em


três pontos:
i. A utilização de animais por uma pessoa;
ii. No seu próprio interesse;
iii. Danos resultantes do perigo especial que envolva a sua utilização.
A utilização de animais pressupõe a existência, sobre eles, de um controlo material, podendo
tratar-se de um proprietário, de um locador, de um comodatário ou de um simples possuidor,
mesmo de má-fé. Esse controlo deve operar no seu próprio interesse, visando a expressão
evitar a imputação quando o animal seja usado por um comissário. No caso de alguém pedir
a outra pessoa que lhe guarde o animal, a qual aceite, trata-se da hipótese do n.º 1 do art.º
493.º, existindo dever de vigilância. São apenas indemnizáveis os danos resultantes de
perigo especial envolvido.

A imputação derivada do art.º 502.º pode concorrer com a do art.º 493.º, n.º 1. Assim, o dono
de um cão perigoso tem o dever de o vigiar, presumindo-se, se ele causar danos, a culpa in
vigilando do art.º 493.º, n.º 1, respondendo este pelo risco, se esta presunção for ilidida.
Se alguma causa fortuita ou actuação de terceiro potenciar o perigo, estas enquadrar-se-ão,
da mesma forma, no “perigo especial” envolvido pela utilização do animal, funcionando a
responsabilidade objectiva em pleno. Assim, o descontrolo súbito do animal integra o risco
imputado pelo art.º 502.º.
Além dos danos físicos e patrimoniais, outros relevam e são indemnizáveis.
Natureza; regimes especiais para cães perigosos

No domínio dos danos causados por animais, o art.º 502.º, correspondendo a uma antiga
tradição, consagra um esquema de responsabilidade pelo risco. Independentemente de
saber se o dono ou detentor do animal observou os deveres de cuidado que coubessem e
mesmo que se mostre que os cumpriu, ele responde pelo risco envolvido. Os arestos
jurisdicionais tornam notório que a ordem jurídica sanciona os donos, ficando subjacente,
ainda que de modo indirecto, se houve danos, foi porque não se tomaram as precauções
necessárias, tendo-se, pois, presente, a ideia de ilicitude imperfeita.
Actualmente, existem problemas causados por raças especialmente agressivas de cães que,
ainda que o art.º 493.º, n.º 1, dobrado pelo art.º 502.º, chegassem para a imputação de
danos, levaram o legislador a produzir o Decreto-Lei n.º 315/2009, relativo a animais
perigosos ou potencialmente perigosos, funcionando tais normas como normas de
protecção.

Os acidentes de viação – problemática geral e evolução

Acidentes de viação é a expressão consagrada para designar a ocorrência de danos com


intervenção de veículos, em regra motorizados.
No domínio dos acidentes de viação, há que partir sempre das imputações básicas, assim
(art.º 483.º, n.º 1, CC):
i. Aquele que, usando um veículo automóvel, ilicitamente, com dolo ou negligência,
viole um direito alheio, é obrigado a indemnizar;
ii. O mesmo sucede se, independente de um direito, for violada uma norma de
protecção.
Além disso, o condutor incorre em responsabilidade contratual, quando o acidente que
provoque redunde no incumprimento de obrigações específicas previamente assumidas.
As normas do Código da Estrada são, tecnicamente, normas de protecção, ocorrendo que,
em regra, os danos causados por veículos atingem direitos subjectivos, pelo que a hipótese
“normas de protecção” é consumida.
A ilicitude resulta clara perante os danos que traduzam a violação dos direitos subjectivos,
sendo que a prova exigida pelo art.º 487.º, n.º 1, apenas exige a demonstração de factos de
onde se infira a causalidade.

A aplicação da comissão

No concreto domínio dos acidentes rodoviários, cumpre salientar a aplicação intensa, aí


feita, do instituto da responsabilidade do comitente. Com efeito, pode-se distinguir, na
circulação de um veículo sob condução humana, três possíveis intervenientes:
i. O proprietário do veículo ou, mais latamente, a pessoa que detenha o poder de
decidir da sua utilização;
ii. O condutor material do veículo;
iii. A pessoa por conta da qual (ou no interesse da qual) se processe a condução.
As três apontadas qualidades podem coincidir, podendo o veículo ser conduzido pelo seu
dono e no seu próprio interesse. Em tal eventualidade, as consequências dos danos, ilícitos e
culposos que ele possa provocar são imputáveis ao agente único. No entanto, podem
igualmente divergir, sendo que a atribuição, nessa altura, os danos apenas ao condutor
poderá ser fraca solução, dado que se multiplicariam os condutores sem critério e sem
património, com grave proliferação de danos.
O primeiro esquema é o da aplicação da comissão, sendo referida no n.º 1 do art.º 503.º,
operando nos termos gerais: deve haver uma comissão, com danos imputáveis ao comissário
e causados por este no exercício da sua função.

A presunção de culpa do comissário

O art.º 503.º, n.º 3, formula uma presunção de culpa contra o comissário:


“Aquele que conduzir o veículo por contra de outrem responde pelos danos que causar, salvo se
provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções
de comissário, responde nos termos do n.º 1.”
A sucessão é clara: quando um veículo conduzido por um comissário se envolva num
acidente, presume-se que a culpa é dele. E sendo a responsabilidade do comissário, responde
o comitente, nos termos do art.º 500.º. Infere-se ainda que conduzindo o veículo fora das
suas funções de comissário, este passa a detentor, respondendo pelo risco nos termos do n.º
1 do art.º 503.º.

Perante a presunção de culpa do comissário, a qual se repercute no comitente, os tribunais


têm sido mais restritivos na caracterização da comissão. Assim, a culpa do condutor só se
presume quando o conduza por conta de outrem e não quando apenas conduza um veículo
alheio.
A presunção funciona desde que se saiba que o condutor era comissário e isso mesmo
quando não seja possível identificá-lo concretamente.

A responsabilidade pelo risco

O art.º 503.º, n.º 1, fixa um caso significativo de responsabilidade pelo risco:


“Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu
próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos
riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.”
Tem-se, como requisitos:
i. A direcção efectiva do veículo;
ii. A sua utilização no próprio interesse.
A “direcção efectiva” equivale ao controlo material do veículo, a título de posse ou de
detenção. A propriedade do veículo faz presumir a direcção efectiva e o interesse na sua
utilização pelo dono – uma presunção hominis.
A “utilização no próprio interesse” justifica-se para evitar a imputação ao comissário. Sobre
este recairá a responsabilidade for acto ilícito, depois repercutida na esfera do comitente;
mas não a responsabilidade pelo risco, que apenas a este diz respeito, na valoração legal.
A causalidade reporta-se ao âmbito dos “riscos próprios do veículo”, sendo estes tudo o que
tenha a ver com a circulação. Além disso, fenómenos como a autocombustão de um veículo
armazenado ou a destravagem inexplicada de um veículo parado são “riscos próprios”,
sendo, de igual modo, riscos próprios as deficiências que possam suceder ao condutor.

Subjacente à imputação pelo risco por danos causados por veículos está a ideia da ilicitude
imperfeita, dirigindo-se o risco contra quem tem a “direcção efectiva” do veículo e, portanto,
contra a pessoa que pode prevenir danos, tomando antecipadamente todas as medidas que,
para tanto, sejam necessárias. Tratando-se de pessoa não imputável, a responsabilidade é
filtrada pelo art.º 489.º, imputada a pessoa a quem incumbe a vigilância – e que, aqui, deveria
ter tomado as medidas preventivas necessárias – e isso por forma a não privar o não-
imputável dos alimentos necessários (art.º 503.º, n.º 2, CC).

Os beneficiários e exclusão da responsabilidade

Havendo responsabilidade por danos causados por veículos, seja por via delitual, seja por via
do risco, as indemnizações caberão, à partida, aos lesados. No entanto, é possível a exclusão
ou limitação, por contrato, no tocante aos danos que atinjam os bens (art.º 504.º, n.º 4, CC,
a contrario).

A ideia básica da lei é a de que, no tocante a acidentes de viação, não deve haver danos por
indemnizar. Dada a generalização do uso de veículos motorizados e os riscos envolvidos,
pretende-se uma socialização lata dos danos envolvidos. O art.º 505.º fixa três casos de
exclusão de responsabilidade:
i. A aplicação do art.º 570.º;
ii. A imputação do acidente ao lesado ou a terceiro;
iii. O caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
A aplicação do art.º 570.º consome a imputação do acidente ao lesado, pelo menos quando
haja culpa deste. Além disso, fixa algumas consequências de ordem geral, para a hipótese do
concurso de “culpas”. A exclusão de culpa opera quando o acidente for, no todo, imputável
ao lesado, com ou sem culpa deste.
Causas de força maior estranhas ao veículo seriam, por exemplo, o desmoronamento da
berma, o atentado terrorista que projectasse a viatura contra um prédio, etc.

A colisão de veículos

O art.º 506.º, n.º 1, regula os casos em que sobrevenha uma colisão de veículos, mas sem ser
possível imputá-la à culpa de nenhum dos condutores intervenientes. Tal eventualidade
pode advir de se verificar que, de facto, nenhum teve culpa ou, muito simplesmente, não se
ter conseguido provar, ou atribuir, a qualquer deles, a causa do acidente.
Prevêem-se duas hipóteses:
a. Ambos os veículos contribuíram para os danos;
b. Apenas um deles lhes deu azo.
Na primeira hipótese, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada
um dos veículos houver contribuído para os danos. Estes são computados conjuntamente,
fazendo-se depois a repartição. Quanto à medida do risco, esta será calculada em função da
perigosidade típica de cada veículo, implicando um camião mais riscos do que um misto.
Na segunda hipótese, a responsabilidade corre por quem, a qualquer título, responda pelo
veículo causador.

O preceito funciona, também, perante os danos que a colisão tenha ocasionado em


terceiros, sem que se apure a culpa de nenhum dos condutores envolvidos. Os terceiros em
causa serão indemnizados pelos envolvidos na colisão, na proporção dos riscos respectivos.
Em casos de dúvida, seja na repartição dos riscos, seja na de culpas, estas devem ser
consideradas iguais (art.º 506.º, n.º 2, CC).

A solidariedade

Quando a responsabilidade pelo risco recaia sobre várias pessoas, mesmo quando haja culpa
de alguma ou de algumas, a obrigação de indemnizar é solidária (art.º 507.º, n.º 1, CC). Se a
“culpa” fosse de todas, já haveria solidariedade ex vi art.º 497.º, n.º 1.
Quando algum dos co-responsáveis solidários seja chamado a indemnizar, o que pague tem
direito de regresso contra os demais (art.º 524.º, CC), nos seguintes termos (art.º 507.º, n.º
2, CC):
1. Se todos respondem pelo risco, a indemnização reparte-se entre os responsáveis de
harmonia com o interesse de cada um na utilização do veículo;
2. Se houver culpa de algum ou alguns deles, apenas os culpados respondem; tendo os
restantes o “direito de regresso pleno” contra eles;
3. Se houver vários culpados, há que atentar na medida das culpas respectivas (art.º
497.º, n.º 2, CC).
Quando não se consiga determinar a medida do interesse de cada um, eles presumem-se
iguais, presumindo-se essa mesma igualdade no tocante à medida das culpas (art.º 497.º, n.º
2, in fine, ou art.º 506.º, n.º 2, CC).

Limites máximos; o seguro obrigatório

O art.º 508.º estabelece limites máximos para a indemnização em casos de acidentes de


viação:
1. A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável,
tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil
automóvel.
2. Se o acidente for causado por veículo utilizado em transporte colectivo, a indemnização
tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil
automóvel estabelecido para os transportes colectivos.
3. Se o acidente por causado por veículo utilizado em transporte ferroviário, a indemnização
tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil
estabelecido para essa situação em legislação especial.

Instalações de gás e electricidade

O art.º 509.º, n.º 1, dispõe o seguinte:


“Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia
eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que
derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria
instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor
e em perfeito estado de conservação.”
São manifestos os paralelos entre o art.º 509.º, n.º 1, e o art.º 503.º, n.º 1, requerendo-se,
para a responsabilização por instalações de gás e de electricidade:
a. A direcção efectiva dessas instalações;
b. A sua utilização no interesse próprio.
A direcção efectiva implica a posse ou a detenção das instalações; a utilização no interesse
próprio afasta o regime da imputação ao comitente: de outro modo, a responsabilidade do
art.º 509.º, n.º 1, acabaria por recair sobre os próprios trabalhadores.
Os danos imputados são os que resultem da condução ou entrega de electricidade ou do gás
e, ainda, os derivados da própria instalação. No entanto, a responsabilidade é afastada:
i. Quando a instalação esteja de acordo com as regras técnicas em vigor e em
perfeito estado de funcionamento (art.º 509.º, n.º 1, in fine, CC);
ii. Quando os danos derivem de causa de força maior (art.º 509.º, n.º 2, CC);
iii. Quando se trate de danos causados por utensílios de uso de energia (art.º 509.º,
n.º 3, CC).
A jurisprudência aponta para que o respeito pelas regras técnicas e perfeito estado de
funcionamento da instalação só releva quanto a danos provocados pela própria instalação e
não pelos causados pela condução ou pela entrega de energia.
A imputação pelo risco prevista no art.º 509.º assenta numa ideia clara de ilicitude
imperfeita.

A limitação da responsabilidade

O art.º 510.º vem limitar a responsabilidade, estabelecendo o seguinte:


“A indemnização fundada na responsabilidade a que se refere o artigo precedente, quando não haja
culpa do responsável, tem, para cada acidente, como limite máximo o estabelecido no n.º 1 do art.º
508.º, salvo se, havendo seguro obrigatório, diploma especial estabelecer um capital mínimo de
seguro, caso em que a indemnização tem como limite máximo esse capital.”

A responsabilidade pelo sacrifício – aspectos gerais

Há responsabilidade pelo sacrifício sempre que o Direito admita, como lícita, a prática de
determinados danos mas, não obstante, confira ao lesado o direito a uma indemnização. Por
isso, fala-se, também, em responsabilidade por factos lícitos.
A ideia de base é a de que o Direito, de acordo com critérios nominalmente enformados pelo
interesse público exige, em cetos casos, sacrifícios selectivos que envolvem a supressão ou a
compressão de direitos privados ou o postergar de interesses seus legalmente protegidos.
Quando tal suceda, impõe-se compensar o atingido.
Existem dois requisitos para a fixação de directrizes de ordem geral:
i. A permissão de causar um dano, através da inobservância de direitos subjectivos
ou de interesses juridicamente tutelados;
ii. A imposição de um dever de indemnizar.
A permissão de causar um dano é, seguramente, excepcional. Uma autorização geral para
lesar as pessoas, em áreas de tutela jurídica, não surge compaginável com uma ideia
consistente de ordenamento civil. Pode-se, portanto, falar numa tipicidade de situações de
possível imputação pelo sacrifício, a qual se pode inferir do n.º 2 do art.º 483.º.

As previsões de sacrifício

Existem três blocos de previsões de imputação pelo sacrifício:


i. O estado de necessidade;
ii. A lesão ao direito de propriedade;
iii. O incumprimento de contratos.
O estado de necessidade permite destruir ou danificar coisa alheia com o fim de remover o
perigo actual de um dano manifestamente superior, do agente ou de terceiro. Quanto à
indemnização, a lei é muito lalta:
i. Ela é integral e recai sobre o agente, quando o perigo for provocado por sua
“culpa” exclusiva, sendo “culpa”, neste caso, qualquer circunstancialismo que lhe
seja imputável;
ii. Ela pode ser (apenas) equitativa, cabendo ao agente e, ainda, aos que tiraram
proveito do acto ou contribuíram para o estado de necessidade.
A indemnização “equitativa” vai sedimentar-se, na parte em que não cubra os danos
efectivos, como prejuízo definitivo do lesado. Só será justa na medida em que, ao próprio
lesado, possam ser atribuídas “culpas” no surgimento do perigo ou benefícios derivados da
actuação do agente.
Nas hipóteses de lesões a direitos reais, existem inúmeros casos legalmente previstos.
Nestes, o saber se se está perante uma imputação pelo risco ou uma imputação pelo
sacrifício depende de determinar se, imaginando que os danos fossem previsíveis, é lícito ou
não provocá-los. No primeiro, há sacrifício; no segundo, risco, se faltar “culpa”.
A responsabilidade pelo sacrifício ocorre ainda em casos nos quais seja permitido o não-
cumprimento de um contrato, tendo, então, natureza obrigacional.

Regime geral e natureza

A possibilidade de causar licitamente danos na esfera alheia é um verdadeiro privilégio, que


deve ser visto com cuidado, tendo natureza excepcional. Na determinação dos danos a
indemnizar, há que avantajar a causalidade normativa, sendo imputáveis todos os danos
correspondentes aos bens jurídicos tutelados que, excepcionalmente, a lei permita que
sejam atingidos.

A responsabilidade pelo sacrifício é uma responsabilidade sem ilicitude e sem culpa,


pretendendo a ordem jurídica, no entanto, prevenir os danos. Desta forma, é possível o apelo
à ideia da ilicitude imperfeita.

O regime do dever de indemnizar – generalidades

Dentro do sistema da responsabilidade civil, a indemnização pode traduzir:


i. A obrigação de indemnizar;
ii. O objecto da obrigação de indemnizar, i.e., a sua prestação;
iii. A situação jurídica que compreende um fenómeno de responsabilidade civil,
depois de consubstanciada determinada imputação.
Analiticamente, pode tomar-se a indemnização, compreendendo, agora, os seus aspectos
multifacetados, como a estatuição da norma de que a imputação do dano funciona como
previsão.
Efectivamente, quando os danos, mercê de alguma das causas de imputação, devam ser
imputados a pessoa diferente daquela que inicialmente os sofra, constitui-se uma obrigação
cujo pólo activo é o lesado e o passivo a pessoa integrada pela previsão de imputação, a título
delitual, de risco ou de sacrifício.
A obrigação de indemnizar surge, desta forma, como um vínculo estruturalmente creditício,
em tudo semelhante aos restantes. Apresenta, no entanto, características próprias que
justificam a sua autonomização pela doutrina, assim:
a. Tem, como fonte, um simples facto jurídico – o que integre qualquer imputação –
uma vez que a respectiva constituição não depende da vontade humana, considerada
como tal;
b. Tem, como sujeitos, o lesado e o imputado, sendo o primeiro, credor e, o segundo,
devedor;
c. Tem, como conteúdo, uma prestação que se traduz na actividade necessária à
supressão do dano;
d. Tem, por escopo, a aludida supressão.
A obrigação de indemnização surge, no Código Civil, nos artigos 562.º a 572.º, inserida no
capítulo sobre as modalidades de obrigações, ficando, assim, separada tanto da
responsabilidade aquiliana como da obrigacional. Os preceitos sobre a obrigação de
indemnização são de ordem geral, conhecendo, depois, concretizações distintas, consoante
se trate de responsabilidade obrigacional ou de responsabilidade aquiliana. E dentro desta,
há ainda orientações diferentes consoante o título de imputação em jogo.
A obrigação de indemnizar traduz o epílogo lógico de toda a responsabilidade civil,
podendo-se construir todo o sistema deste instituto em torno da indemnização, ainda que
essa não seja a tradição lusófona.

Modalidades da obrigação de indemnizar

A indemnização, enquanto vínculo obrigacional, pode ser classificada em várias


modalidades, de acordo com diversos critérios, designadamente:
i. O dos sujeitos;
ii. O do tipo de imputação;
iii. O da espécie de dano;
iv. O do conteúdo;
v. O do escopo.
Quanto aos sujeitos, pode-se considerar a indemnização como plural ou singular, consoante
se verifique, ou não, um fenómeno de complexidade subjectiva. A indemnização plural pode
ser solidária ou parciária, conforme os regimes concretamente aplicáveis. A indemnização
plural implica, normalmente, que na respectiva imputação genética ocorra um fenómeno de
concurso.
Quanto ao tipo de imputação, a indemnização é delitual, pelo risco, ou pelo sacrifício. A ser
delitual, a respectiva ilicitude pode ser induzida da violação de normas de personalidade,
reais, ou outras, manifestando-se, concretamente, como ilicitude dolosa ou negligente.
Quanto à espécie de danos a ressarcir, a indemnização pode ser por danos morais ou por
danos patrimonais, por danos emergentes ou por lucros cessantes.
Quanto ao conteúdo, a indemnização pode ser:
1. Específica;
2. Pecuniária.
Diz-se específica quando a respectiva prestação implique a entrega, ao lesado, de um bem
igual ao prejudicado; é pecuniária quando haja, apenas, lugar à restituição do valor
correspondente ao da lesão, normalmente através de uma entrega em dinheiro.
Quanto ao escopo, a indemnização pode ser reconstitutiva, quando vise colocar o lesado na
situação idêntica à da ausência da lesão ou, tão-só, compensatória, quando pretenda
conceder, ao ofendido, bens a título de compensação.

O legislador manifestou uma clara preferência pela indemnização específica, considerada


mais perfeita do ponto de vista da reparação do dano (art.º 566.º, n.º 1, CC), tendo esta lugar
como regra, só não se aplicando:
i. Quando seja impossível;
ii. Quando não repare integralmente os danos;
iii. Quando seja excessivamente onerosa para o devedor, i.e., para a pessoa obrigada
à indemnização.
A indemnização específica não é, de um modo geral, possível, sempre que o bem lesado não
seja fungível, v.g. danos morais.
A hipótese de, através de uma entrega específica, não se conseguir uma reparação integral
de danos deriva de que, muitas vezes a lesão de um bem provoca danos conexos com a
própria lesão em si, os quais, naturalmente, não desaparecem retroactivamente, com a
substituição do bem lesado. Não se deve concluir, da letra da lei, que em tal eventualidade,
toda a indemnização deva ser paga em dinheiro, podendo ocorrer uma indemnização
específica e, nos danos remanescentes, uma entrega pecuniária compensatória.
A indemnização específica, sendo possível, pode acarretar, para o obrigado a indemnizar,
um esforço que não tenha qualquer equivalência com a vantagem do lesado, podendo-se,
então, recorrer à indemnização pecuniária. Menezes Cordeiro entende que a “excessiva
onerosidade para o devedor” ocorre quando a sua exigência atente gravemente contra os
princípios da boa-fé.

Determinação; indemnização provisória e indemnização em renda

A obrigação de indemnização visa a remoção do dano imputado. Assim, a medida da


indemnização será, simplesmente, a do dano efectivamente imputado ao sujeito, por
qualquer das formas de imputação admitidas pelo ordenamento. Quando esse dano, uma
vez determinado, não tenha expressão em dinheiro, deve proceder-se a um cálculo
equitativo.
Desta forma, transcendem a simples problemática da determinação da indemnização
questões como a do chamado nexo de causalidade ou a da cobertura dos danos emergentes
e dos lucros cessantes.
A primeira resulta do requisito da adequação geral ou concreta aos danos verificados e do
escopo da norma, quando a imputação seja delitual ou pelo sacrifício, ou da simples
correspondência entre o dano e a perigosidade, quando haja imputação pelo risco.
A segunda tem a ver com classificações dos danos, que não se circunscreverem,
simplesmente, à dos danos emergentes e lucros cessantes. De qualquer forma, todos os
danos imputados devem ser cobertos.

A indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do


lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data
se não existissem danos (art.º 566.º, n.º 2, CC).
A fim de se realizar a contraprova, Pereira Coelho, Vaz Serra, Antunes Varela e Menezes
Cordeiro recorrem ao seguinte exemplo:
“A danifica um objecto, reduzindo-o a metade do seu valor normal, valor esse que era de 300 no
momento do dano e seria de 500 no momento da apreciação judicial.”
Existem quatro formas de se calcular a indemnização:
a. A diferença entre a situação anterior ao facto (300) e a vigente no momento da
apreciação judicial (250, metade de 500) – ou seja, 50;
b. A diferença entre a situação anterior ao facto (300) e a situação imediatamente
posterior ao mesmo facto (150, metade de 300) – ou seja, 150;
c. A diferença entre a situação que existiria sem o facto, data da apreciação judicial (500)
e a situação anterior ao facto (300) – ou seja, 200;
d. A diferença entre a situação hipotética actual, se não houvesse dano (500), e a
situação actual, com o dano (250) – ou seja, 250.
A primeira possibilidade tem sido rejeitada por esquecer o lucro cessante; a segunda, por
esquecer o lucro cessante e a repercussão actual do dano; a terceira, por esquecer o valor
que, efectivamente, ficou a existir no património do lesado.
Desta forma, resta a quarta diferença, a qual proporciona a exacta medida do dano, sendo a
consagrada no Código Civil (art.º 566.º, n.º 2, CC).

Pode ocorrer a situação de indemnização provisória e de indemnização em renda,


verificando-se, em ambos os casos, a presença de danos diferidos no tempo, i.e., de danos
que implicam prejuízos continuados ou de repercussão reflexa que se prolonga. É possível
que o devedor seja condenado pelo tribunal em indemnização provisória, nos casos em que
o dano vá aumentando até ao momento em que seja totalmente ressarcido, remetendo-se
para momento oportuno a fixação da indemnização definitiva; quando a verificação de
indemnização provisória venha diminuir o dano efectivo, tal facto deve ser levado em conta
na indemnização definitiva.
Pode, também, suceder que um dano tenha natureza continuada, podendo o juiz arbitrar
uma indemnização em renda periódica.

Delimitações; compensatio lucri cum damno; culpa do lesado

A regra geral no tocante à determinação é a da equivalência ao montante do dano imputado,


existindo, no entanto, diversas excepções a esse princípio que, operando como autênticas
delimitações ao princípio fundamental, conduzem a que a indemnização seja inferior aos
danos verificados.
Na imputação delitual inexiste, geralmente, quaisquer limitações, salvo o caso da imputação
a título de mera negligência (art.º 494.º, CC), podendo-se então fixar equitativamente a
indemnização, em montante inferior ao que corresponder aos danos causados.
Contrariamente ao que ocorre na imputação delitual, é frequente, na imputação objectiva,
nomeadamente pelo risco, a existência de limites às indemnizações que, dessa forma,
podem ficar aquém dos danos. Assim, no caso das indemnizações assacadas a inimputáveis,
devem as mesmas ser calculadas “(...) por forma a não privar a pessoa não imputável dos
alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis
para cumprir os seus deveres legais de alimentos.” (art.º 489.º, n.º 2, CC).

O instituto da compensatio lucri cum damno, ainda que não consubstancie, em sentido
próprio, uma limitação à indemnização, delimita-a. Assim, os “lucros” da lesão devem influir
no cálcuo da indemnização ou, em alternativa, pode o responsável exigir ao lesado, no
momento do pagamento da indemnização ou posteriormente, a cedência dos direitos que
lhe advenham da lesão, pagando, neste caso, o valor completo da indemnização (art.º 568.º,
CC).

Se o lesado contribuir para o facto danoso, ainda que involuntária ou licitamente, a


indemnização será reduzida ou anulada (art.º 570.º, n.º 1, CC), excluindo-se a indemnização
nos casos em que a responsabilidade se fundar numa presunção de culpa (art.º 570.º, n.º 2,
CC). A culpa do lesado deverá ser provada por quem a alegue, embora o tribunal possa
conhecer oficiosamente da sua verificação (art.º 572.º, CC). Nestes casos, inexiste qualquer
limitação da indemnização, mas apenas uma delimitação dos danos que, ao agente, devam
ser imputados.

Sujeitos da indemnização; complexidade subjectiva; terceiro violador da obrigação

Em princípio, são sujeitos da indemnização o lesado e a pessoa a quem os danos sejam


imputados. Assim, se a determinação do titular da indemnização é, normalmente, de
apreensão imediata, só através das regras de imputação se torna possível reconhecer o
devedor da mesma indemnização.
De qualquer forma, na imputação delitual, é obrigado o autor da lesão, surgindo, na
imputação objectiva, como responsável o beneficiário do processo que originou os danos.
No campo da responsabilidade delitual, pode acontecer que a imputação recaia sobre várias
pessoas, todas reconhecidas como autoras da lesão. Nesse contexto, estabelece-se uma
regra de complexidade subjectiva na respectiva obrigação de indemnização, com regime de
solidariedade (art.º 497.º, n.º 1, CC). Como, porém, os ilícitos praticados pelos co-
responsáveis podem ser objecto de valorações diferentes, os respectivos regressos devem
ter em conta as aludidas valorações (art.º 497.º, n.º 2, CC).
A imputação delitual a várias pessoas funciona tanto em casos de co-autoria, como
relativamente aos instigadores ou auxiliares do acto ilícito (art.º 490.º, CC).

A complexidade subjectiva na indemnização, na forma de solidariedade, surge, ainda, na


responsabilidade pelo risco em sede de colisão de veículos, respondendo solidariamente os
autores da lesão (art.º 507.º, n.º 1, CC). Neste caso, verifica-se que, excepcionalmente, a
responsabilidade objectiva opera mesmo quando se integre uma previsão de imputação
delitual (art.º 507.º, n.º 1, in fine, CC). No entanto, a regra geral de que a culpa afasta o risco
ressurge no direito de regresso (art.º 507.º, n.º 2, CC), o qual recairá apenas sobre os
“culpados”.

A indemnização solidária só surge quando prescrita por lei (art.º 513.º, CC), ou quando
acordada pelas partes. Nos restantes casos de complexidade subjectiva, aplicar-se-á o
regime supletivo da parciariedade.

Menezes Cordeiro, rejeitando a total relatividade das obrigações, entende que qualquer
terceiro que viole um crédito ou, de alguma forma, colabore com o devedor em tal violação,
é responsável, nos termos gerais, pelos prejuízos causados, desde que se verifiquem os
requisitos da imputação delitual.

O concurso de imputações – generalidades

Diz-se, em Direito Penal, que há concurso de infracções quando uma pessoa, na mesma
ocasião, pratique vários crimes. A teoria naturalística distingue o concurso real do concurso
ideal:
i. No concurso real, verifica-se que várias acções violam várias normas jurídicas;
ii. No concurso ideal, verifica-se que uma acção viola uma pluralidade de normas.
A ideia do critério da unidade da acção tem vindo a ser abandonada em favor de uma
construção jurídica, mandando não o número de acções verificadas, mas antes o número de
juízos de valor concitados por determinado comportamento juridicamente reprovado,
decidindo o número de tipos legais de crimes praticados pelo agente.
Esta questão é reconduzível a um problema de concurso de normas, uma vez que falar em
pluralidade de juízos de valor legais equivale à menção da pluralidade de previsões
normativas realizadas pela actuação do agente, tendo, quando transplantada para a
responsabilidade civil, uma importância bem menor do que aquela detida no Direito Penal.
Podem, no entanto, ocorrer na responsabilidade civil fenómenos de concurso de normas
merecedoras de atenção por parte da doutrina.

Modalidades; o concurso subjectivo

O concurso de imputações pode resultar de conjunturas bastante variadas.


Há concurso homogéneo quando o mesmo dano provoque imputações diversas, mas todas
do mesmo tipo. O concurso heterogéneo derivará do facto de, do mesmo dano, emergirem
imputações várias, de tipo diverso.
Normalmente, o concurso heterogéneo é tão-só aparente, uma vez que o ordenamento
prescreve uma determinada hierarquização para as diversas imputações, de tal forma que ou
apenas uma delas funciona, ou ambas funcionam em momentos diferentes. Existem, no
entanto, hipóteses de concurso real, quando o mesmo dano seja imputável a várias pessoas.
Há concurso subjectivo nas situações em que o mesmo dano é imputado a várias pessoas.

Concurso objectivo

No concurso subjectivo, a diversidade de imputações é aferida em função da multiplicidade


de sujeitos a quem são assacados os diversos danos. Pode-se retomar a questão do concurso
de imputações analisando o concurso objectivo, ou seja, aferindo-a não apenas em face da
multiplicidade de sujeitos a quem os danos sejam assacados, mas, simplesmente, perante a
variedade de eventualidades que aos mesmos danos conduzam.
No concurso objectivo, é possível distinguir-se:
i. O concurso necessário;
ii. O concurso cumulativo;
iii. O concurso alternativo.
No concurso necessário, dois ou mais eventos concorrem para a produção de um dano,
sendo essa concorrência condição essencial para a verificação do mesmo. Neste caso,
inexiste qualquer dúvida relativa ao surgimento de uma obrigação de indemnizar
subjectivamente complexa, a cargo dos agentes responsáveis (art.º 497.º, CC).
No concurso cumulativo, dois ou mais eventos provocam um dano, sendo certo que bastaria
a ocorrência de qualquer um deles para o mesmo dano se verificar. Neste caso, surgirá uma
obrigação de indemnizar subjectivamente complexa (art.º 497.º, CC).
No concurso alternativo, dois ou mais eventos incidem sobre uma situação de dano, sendo
impossível demonstrar qual deles, concretamente, o provocou. Nesta situação, o ofendido
encontra-se impossibilitado de demonstrar a culpa de algum dos agentes (art.º 487.º, n.º 1,
CC), uma vez que nem sequer é capaz de demonstrar o comportamento danoso. Mesmo
quando haja presunção de culpa contra algum dos intervenientes em concurso alternativo,
esta não pode funcionar por não ser possível elucidar contra quem funciona tal presunção.
Assim, não haverá qualquer imputação, devendo-se salientar que o verdadeiro concurso
alternativo pressupõe um efectivo desconhecimento quanto ao comportamento danoso e
não quanto à “culpa”.

O concurso virtual; problemas e teses em confronto

Dentro do concurso objectivo de imputações, pode-se distinguir o concurso efectivo do


concurso virtual. No concurso efectivo, um mesmo dano é imputado a duas ou mais
eventualidades; no concurso virtual, um dano é imputado a uma eventualidade, sendo certo
que, a esta não ter existido, o dano ocorreria na mesma, sendo, então, imputado a
eventualidade diferente.
Normalmente o concurso virtual é, também, subjectivo, ainda que não o seja forçosamente.
O concurso virtual pode ser homogéneo ou heterogéneo, consoante os tipos de imputações
em jogo. O concurso pode ser também entre uma imputação ou o próprio risco natural que
corre por conta do lesado, sem imputação proprio sensu.
No concurso virtual, o problema da relevância da segunda imputação – imputação virtual –
pode ser colocado em termos de:
i. Relevância positiva;
ii. Relevância negativa.
Havendo relevância positiva, o lesado poderia pedir contas ao destinatário da imputação
virtual; havendo relevância negativa, o destinatário da imputação efectiva poderia libertar-
se da responsabilidade, alegando a imputação virtual.
A Doutrina, normalmente, pronuncia-se pela irrelevância positiva da imputação virtual,
dado que o n.º 1 do art.º 483.º fala inequivocamente em danos resultantes da violação. A
imputação virtual, por definição, reporta-se a um comportamento não efectivado.

O Código Civil, sem se pronunciar globalmente sobre a relevância da imputação virtual,


indicia, por vezes, uma posição favorável à relevância negativa, pelo que:
a. As pessoas obrigadas a vigiar outras que causem danos podem eximir-se à
responsabilidade se provarem que os danos se teriam verificado ainda que a
obrigação tivesse sido cumprida (art.º 491.º, CC);
b. O responsável por danos causados por edifício pode evitar a responsabilidade
provando que os mesmos se teriam verificado ainda que ele tivesse usado da
diligência devida (art.º 492.º, n.º 1, CC);
c. O responsável por danos causados por animais ou coisas à sua guarda pode liberar-
se de responsabilidade provado que os danos se teriam igualmente verificado, ainda
que não houvesse culpa sua (art.º 493.º, n.º 1, CC);
d. O devedor que esteja em mora – i.e., que não tenha cumprido, no prazo devido, a
obrigação – pode eximir-se a suportar os prejuízos causados ao credor provando que
este teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido cumprida em
tempo (art.º 807.º, n.º 2, CC).

Pereira Coelho entende que as disposições que admitem a relevância negativa da causa
virtual não são excepcionais quando sedimentem a teoria da diferença no cálculo da
indemnização. No entanto, serão excepcionais na medida em que mandem atender, na
determinação do dano, a circunstâncias posteriores à real verificação do dano. Assim, a regra
seria a da irrelevância, ainda que o Autor aceite a aplicação analógica dos casos
consubstanciados na lei como de relevância, a outras hipóteses.
Pessoa Jorge pronuncia-se, pelo contrário, pela relevância da imputação virtual. Este Autor
faz, fundamentalmente, apelo à teoria da diferença: se, estabelecida a diferença entre a
situação real de um património e a sua situação hipotética sem o dano, verificar que, mercê
da intromissão de outro evento, não há qualquer diferença, não haveria responsabilidade.
Antunes Varela, por seu turno, defende a irrelevância negativa da causa virtual, salvo a
hipótese de disposição legal excepcional em contrário. No entanto, este Autor entende que
tal não obsta a que a causa virtual do dano seja tomada na devida conta, quer no cálculo do
lucro cessante, quer na adaptação da indemnização em renda às circunstâncias que vão
sendo conhecidas pelos interessados.

Menezes Cordeiro entende que da lei não se extrai, directamente, qualquer conclusão. As
previsões limitadas de relevância negativa, já referidas, tanto podem conduzir ao aflorar de
uma regra geral como à consagração de simples excepções, insusceptíveis de extensão.
A imputação delitual deriva da cominação, ao autor de um delito, do dever de indemnizar o
dano provocado. Para tanto, basta que o dano seja prefigurado como fim, pelo agente, e que
advenha da utilização, pelo mesmo agente, dos meios postos ao serviço desse fim. Sobre o
todo recai, depois, a previsão da ilicitude, com a culpa. Este Autor não vê como este esquema
possa ser perturbado pelo concurso virtual, mantendo-se todo o processo delitual incólume
ainda quando se estabeleça que, na sua ausência, teria operado uma outra imputação de
dano idêntico.
Na imputação objectiva verifica-se, com as adaptações necessárias, outro tanto. Um dano
é, aí, imputado a uma pessoa, independentemente da prática de qualquer delito, surgindo
os esquemas de imputação objectiva em previsões normativas singulares (art.º 483.º, n.º 2,
CC). Estas previsões singulares cobrem a totalidade da imputação em si, pelo que este Autor
entende que a relevância virtual de qualquer outra eventualidade teria de constar das
respectivas previsões, o que, normalmente, não se verifica.
A primeira conclusão traçada por este Autor é que, a nível factual, o substrato das
imputações delitual ou objectiva em nada é alterado pela eventualidade de concurso virtual.
Salvo nos casos dos artigos 491.º, 492.º, n.º 1, , 493.º, n.º 1 e 802.º, um delito não deixa de o
ser, i.e., não perde a natureza de acto ilícito, sempre que o dano por ele provocado viesse a
emergir de um outro factor nem a imputação objectiva é paralisada em circunstâncias
equivalentes. Assim, Menezes Cordeiro opta pela irrelevância negativa da imputação virtual.

O escopo da responsabilidade civil é a reparação de danos, sendo esta finalidade melhor


conseguida através da irrelevância negativa uma vez que, a ser outra a solução, proliferariam
os danos sem qualquer ressarcimento. A teoria da diferença tem a ver com o cálculo da
indemnização e não com a imputação em si, pelo que quando, mercê das regras da
imputação, se tenha concluído pela imputação de certo dano a determinada pesssoa, não é
lícito vir, em momento necessariamente posterior, subverter a lógica da imputação fazendo
intervir elementos com ela relacionados no cálculo da indemnização.

Montante e natureza da obrigação de indemnizar – generalidades

A responsabilidade civil tradicional visava o ressarcimento do dano. Este moldava, assim, a


indemnização, tornando-se num conceito central de todo o sistema. A ampliação dos fins da
responsabilidade civil veio relativizar o dano e flexibilizar a indemnização. Esta, em princípio,
não deve diminuí-la. O dano a considerar e o quantum da indemnização não devem, pois,
cingir-se às regras específicas, a eles destinadas, ainda que importantes – devem, pois, ter
presente o conteúdo geral do sistema, no sector visado, bem como a política da lei,
devidamente vertida nas normas a aplicar.

A hipótese de responsabilidade civil deve, sempre, acompanhar quaisquer outras sanções


que se estabeleçam, prevenindo-se, a nível legislativo ou a qualquer outro, a sua exclusão. A
redução da responsabilidade suscitará, pela mesma razão, sempre reservas, não podendo
ser admitida se não se basear em razões materiais consistentes.
Na falta de indemnização, são desamparados, no caso de danos patrimoniais, a garantia da
propriedade (art.º 62.º, n.º 1, CRP) e, no dos danos morais, os próprios direitos fundamentais.
Se necessário, as competentes normas constitucionais aplicam-se directamente.

Prescrição
Tal como acontece com o art.º 482.º, no enriquecimento sem causa, também o art.º 498.º,
ao fixar a prescrição do “direito à indemnização”, distingue duas realidades substantivas:
i. O direito potestativo de, uma vez reunidos os diversos requisitos, invocar uma
situação de responsabilidade civil, fazendo nascer a obrigação de indemnizar –
prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve
conhecimento do seu direito, embora com desconhecimento da pessoa do
responsável e da extensão integral dos danos (art.º 498.º, n.º 1, CC);
ii. A situação global de responsabilidade civil prescreve no prazo de 20 anos a contar
do facto danoso (art.º 498.º, n.º 1, in fine, CC).
Menezes Cordeiro acrescenta uma terceira realidade substantiva – a obrigação de
indemnizar prescreve no prazo de 20 anos após a sua constituição (art.º 309.º, CC).

A razão de ser deste preceito reside na seguinte ideia: perante um dano que dê azo a um
dever de indemnizar, a lei pretende uma solução rápida. A incerteza é prejudicial, enquanto
as delongas vão dificultar a reconstituição dos elementos que rodeiem e expliquem o facto
danoso.
O direito de regresso entre os responsáveis prescreve no prazo de três anos (art.º 498.º, n.º
2, CC) – a pessoa chamada por via do regresso deve, quanto possível, estar próxima do facto
danoso.
O prazo trienal liga-se ainda, às perspectivas actuais que descobrem, na responsabilidade
civil, importantes dimensões preventivas e retributivas.

É previsto o alongamento do prazo quando o facto ilícito constituir crime para o qual a lei
estabeleça um prazo mais longo, sendo esse último o aplicável (art.º 498.º, n.º 3, CC). A
aplicação de tal prazo depende apenas de os factos serem subsumíveis numa previsão penal,
sendo que esse alargamento também se aplica ao direito de regresso.

A prescrição do direito à indemnização não implica prescrição da acção de reivindicação,


nem da acção de restituição do enriquecimento, quando a elas haja lugar (art.º 498.º, n.º 4,
CC). No entanto, Menezes Cordeiro entende que o art.º 498.º não se aplica à
responsabilidade obrigacional, dispondo esta de prazos próprios.
A natureza

A obrigação de indemnizar é, estruturalmente, um vínculo obrigacional complexo. Como tal,


ela dispõe de um dever de prestar principal, de prestações secundárias e de deveres
acessórios.

O dever de prestar principal é fixado não pelo seu conteúdo, mas pela sua finalidade – a
supressão do dano. Está-se, assim, perante um vínculo finalisticamente determinado: ao
devedor (ao agente) cabe fazer tudo o que seja necessário para suprimir o dano.
Infere-se daqui que, à partida, o conteúdo concreto da prestação não é conhecido – apenas
se apreende o dano que ela visa afastar. A regra básica, é, sempre, a do princípio da reparação
total. De outro modo, ficará ainda uma parcela de dano por ressarcir, não tendo sido
cumprido o dever de indemnizar.
Por isso e entre outros aspectos:
i. Quando a reparação de um bem não seja viável, a indemnização não deve ser o
do seu valor venal, mas sim o custo da sua substituição;
ii. Prevalece, nos termos legais, a reparação natural, cabendo ao lesado justificar o
porquê de um pedido em dinheiro; a passagem a uma indemnização a dinheiro só
ocorre quando se verifiquem os requisitos legais;
iii. A aplicação do art.º 562.º envolve a actualização do valor em jogo, só sobre ele se
aplicando juros; a obrigação de indemnização é uma obrigação de valor.

O dever de prestar principal, numa obrigação de indemnização, é ainda enformado pelas


funções preventivas e retributivas que hoje se atribuem à responsabilidade civil e pelo papel
compensatório, sempre que o dano não seja ressarcível. Também neste ponto se encontram
argumentos para pôr termo ao miserabilismo registado na fixação das indemnizações.
Ontologicamente, a indemnização simbólica ou deprimida não realiza o escopo da
obrigação de indemnizar.

O dever de prestar principal é, ainda, acompanhado pelas obrigações instrumentais


necessárias à sua efectivação. As demoras no pagamento das indemnizações são, só por si,
uma negação dos valores em jogo. Nesta linha, cumpre ainda inserir a indemnização
provisória referida no art.º 565.º, a qual visa prevenir maiores danos.

Por fim, tem-se os deveres acessórios, que retransmitem, para a obrigação de indemnizar,
os valores fundamentais do ordenamento. Ambos os sujeitos ficam ligados a deveres de
protecção, de lealdade e de informação. Tudo deve ser feito para conter os danos, sendo
trocados todos os elementos necessários para uma correcta reparação.

A obrigação de indemnização tem, por tudo isto, uma natureza própria e um regime
específico. A sua fonte é a responsabilidade civil e a sua estrutura e o seu funcionamento
estão dominados por considerações funcionais e teleológicas.

Gestão de negócios – generalidades

O Código Civil consagra a seguinte definição de gestão de negócios (art.º 464.º, CC):
“Dá-se a gestão de negócios, quando uma pessoa assume a direcção de negócio alheio no interesse
e por conta do respectivo dono, sem para tal estar autorizada.”
Trata-se de uma forma específica de constituição de obrigações, que não se reconduz nem
a um contrato, nem a um negócio unilateral.

Os requisitos e as acções

Os requisitos romanos do negotium gestum são praticamente idênticos aos actuais,


podendo-se apontar:
i. A prática de actos ou de séries de actos, materiais ou jurídicos, que importem
gestão de negócios alheios;
ii. A falta de mandato ou de uma relação similar, que habilite o gestor a agir;
iii. A intenção de agir por contra de outrem ou animus aliena negotia gerendi;
iv. Uma actuação útil para o dono do negócio (utiliter coeptum).
A alienidade do negócio parece óbvia. Inicialmente, o instituto precisou-se em torno do
absens (ausente), contra o qual fosse intentada uma demanda e que ficasse sem defesa. As
questões práticas suscitadas por tal eventualidade tinham de encontrar saídas concretas e
previsíveis, sendo indispensável a intervenção racional do pretor. Posteriormente,
assinalam-se actuações tendentes ao cumprimento de obrigações alheias, de modo a
prevenir os agressivos procedimentos executivos, então em vigor. O alargamento da figura
seria a última fase da sua evolução, ficando fora do instituto a hipótese da alienidade
aparente: constatada a legitimidade do gestor, as actiones negotiorum gestorum perderiam
o seu campo de aplicação.
A falta de mandato ou de uma relação similar, como a tutela, constitui um requisito
negativo.
O animus aliena negotia gerendi ou intenção de gerir negócios alheios era mais um elemento,
na composição do modelo negotia gesta. Todavia, não era então possível isolá-lo da própria
alienidade do negócio, com a qual formaria um todo indissociável. A hipótese de uma gestão
de negócio alheio, julgado próprio, não seria prejudicada pela falta de animus, desde que se
verificassem os demais requisitos. Não é necessária a efectiva obtenção do resultado
procurado com a iniciativa.
A acção do gestor contra o dono do negócio dependeria, ainda, da utilidade da iniciativa,
i.e., de a mesma ter sido vantajosa.

As consagrações legislativas – o Código Civil

A gestão de negócios preenche os artigos 464.º a 472.º do Código Civil, tendo-se o seguinte
quadro:
i. Noção – art.º 464.º;
ii. Posição do gestor – art.os 465.º a 467.º;
iii. Posição do dono do negócio – art.os 468.º a 472.º.
As repercussões da gestão relativamente a terceiros devem ser construídas a partir dos
preceitos referentes ao dono do negócio e na base dos princípios gerais.

Modalidades

A gestão de negócios reporta-se a uma actividade humana que envolve, como serviço, o
ocupar-se de assuntos próprios de uma outra pessoa: o gerido ou gestido. Assim, distingue-
se:
a. A gestão lato sensu, que envolve todas as situações nas quais alguém se ocupe de
negócios alheios;
b. A gestão stricto sensu, que se restringe à intervenção não autorizada, por lei ou pelo
visado, em negócios alheios.
A gestão envolve, em regra, ainda que não exclusiva ou necessariamente, uma prestação de
serviço, por parte do gestor. Tem-se uma série de distinções que operam na base das
possíveis actuações em causa, podendo a gestão ser:
i. Material, jurídica ou mista, consoante envolva a prática de actos materiais,
jurídicos ou mistos;
ii. Momentânea ou continuada, conforme implique a prática de um acto isolado ou
uma alteração prolongada;
iii. Pessoal ou patrimonial, em função da natureza pessoal ou patrimonial;
iv. Simples ou conexa, de acordo com a natureza, exclusivamente alheia do negócio
gestido ou conjuntamente alheia e própria;
v. Pessoal ou profissional, segundo a confluência da actuação desenvolvida com a
própria profissão do gestor: alheia à profissão, no primeiro caso ou própria dela,
no segundo;
vi. Civil, processual, fiscal ou administrativa, seguindo a natureza dos actos que
sejam praticados pelo gestor;
vii. Comum ou de emergência, dependendo de se ter iniciado em circunstâncias
normais ou com vista à prevenção de um perigo eminente ou ao seu
agravamento.

Em função da postura do gestor, a gestão pode ser:


a. Própria ou autêntica – o gestor actua no negócio alheio por conta do dono, com a
intenção de curar dos interesses dele;
b. Imprópria ou não-autêntica – o gestor fá-lo mas por conta própria, com a intenção de
se beneficiar a si mesmo;
c. Em erro – o gestor ocupa-se do negócio alheio, pensando ser próprio (art.º 472.º, CC).
Em obediência a outros factores circundantes, a gestão pode ser:
1. Representativa – os actos praticados pelo gestor são-no em nome do dono;
2. Não-representativa – o gestor actua em nome próprio, sem referir o dono.
O objectivo da gestão permite contrapor:
i. A gestão de lucro capiendo – pretende-se, com ela, obter para o dono um lucro
que, de outro modo, se perderia ou poderia perder;
ii. A gestão de damno evitando – procura prevenir ou minimizar um dano que, de
outro modo, se perfilaria.

As consequências jurídicas da gestão possibilitam a distinção entre:


a. A gestão legítima, quando reúna todas as condições fixadas na lei, aquando do seu
início;
b. A gestão ilegítima, quando tal não suceda.
Independentemente do modo legítimo ou ilegítimo por que se tenha iniciado, a gestão pode
desenrolar-se de acordo com o Direito ou em violação deste, dizendo-se, então e
respectivamente:
1. Gestão lícita;
2. Gestão ilícita – inclui-se, nesta, a gestão irregular, i.e., embora respeitando as
obrigações principais do gestor, ela não teve em conta obrigações secundárias ou
deveres acessórios.

A vontade, real ou presumida, do dono, pode desempenhar um papel, tendo-se:


i. A gestão conforme com a vontade real do dono, quando seja conhecida e quando
ela a respeite;
ii. A gestão conforme com a vontade presumível do dono, sempre que em termos
de normalidade, esta seja representável e surja obedecida;
iii. A gestão desconforme com tais elementos.

O dono pode reagir diversamente, perante uma gestão alheia dos seus negócios, tendo-se:
a. A gestão aprovada quando ele declare estar genericamente de acordo com o que
tenha sido feito;
b. A gestão não-aprovada, na hipótese inversa.
No último caso, a não-aprovação poderá resultar do puro silêncio do dono ou, pelo contrário,
de uma expressa declaração de discordância. No entanto, esta distinção não se confunde
com outra, a qual tem a ver, em rigor, com os actos praticados pelo gestor em nome do dono,
os quais poderão ser:
1. Ratificados, sempre que o dono os faça seus, operando os seus efeitos perante
terceiros;
2. Não-ratificados, no caso contrário, não operando os seus efeitos contra terceiros.

Pelos seus efeitos, a gestão poderá revelar-se:


i. Útil ou vantajosa para o dono;
ii. Inútil, se não originar vantagens;
iii. Prejudicial, quando cause prejuízos.

Figuras afins

A gestão de negócios anda próxima de todas as figuras em que alguém se ocupe de negócios
alheios, distinguindo-se de todas essas situações pelo facto de não pressupor qualquer título
jurídico – contratual ou legal – que habilite o gestor a agir, tendendo também a assumir um
âmbito mais vasto de possíveis actuações.
A gestão de negócios distingue-se, sem prejuízo das potenciais sobreposições de figuras e
das distinções operadas na base do empirismo ou de critérios flutuantes, das seguintes
figuras:
i. Do mandato (art.º 1157.º, CC) – o gestor não celebra um contrato prévio e não
está obrigado a praticar os actos que leve a cabo; além disso, o mandato é
circunscrito a actos jurídicos, enquanto a gestão pode envolver actos materiais;
ii. Da empreitada (art.º 1207.º, CC) – além da falta do contrato, o gestor tem um
campo de actuação que supera o da mera realização de uma obra;
iii. Do depósito (art.º 1185.º, CC) – não há contrato e actuação em jogo não se
circunscreve à guarda de uma coisa;
iv. Da prestação de serviço (art.º 1154.º, CC) – a gestão pode ser uma prestação de
serviço, mas não necessariamente nem pactuada, em momento prévio;
v. Das responsabilidades parentais (art.os 1877.º e ss., CC) – a gestão não é pré-
determinada pela lei, nem envolve deveres automáticos para os gestores;
vi. Da tutela (art.º 1935.º, CC) – a qual substitui, em certos casos, as
responsabilidades parentais.

A gestão implica a prática de actos por conta do dono, devendo ser contraposta:
a. À representação (art.os 258.º e ss., CC) – esta pressupõe a prática de actos jurídicos
em nome do representado (contemplatio domini), por conta dele e havendo poderes
de representação; na gestão, estes actos podem não ser jurídicos, pode não haver
contemplatio domini e não há poderes de representação;
b. À representação sem poderes (art.º 268.º, CC) – o acto é praticado em nome e por
conta do dono, mas sem poderes de representação. Pode haver, neste caso, gestão
(representativa), mas a gestão tem um âmbito mais amplo, ocupando-se da actuação
do gestor e não apenas dos actos que sejam levados a cabo no seu âmbito;
c. No abuso de representação (art.º 269.º, CC) – funcionam os elementos distintivos
indicados para a representação sem poderes;
d. À administração, designadamente de sociedades (art.º 985.º, CC) – o administrador
pratica actos jurídicos e materiais (poder de gestão), repercutindo-os na própria
sociedade (poder de representação), tendo o direito e o dever de o fazer; o gestor não
tem poderes de representação, não tem título para agir e não tem o dever de o fazer.

O gestor actua (ou pode actuar) com terceiros, em benefício do dono. No entanto, tal não
se confunde com um contrato a favor de terceiro, dado que a gestão tem um âmbito que
transcende, ou pode transcender, a mera contratação, com o terceiro, em benefício do dono;
este pode não obter, apenas, o direito a uma prestação; o enquadramento geral da figura
não é contratual e não segue o regime do contrato a favor de terceiro.

A gestão de negócios origina situações que são enquadráveis noutros institutos, como:
1. O enriquecimento sem causa (art.º 473.º, CC) – a gestão pode provocar deslocações
patrimoniais que traduzam o enriquecimento do dono e o empobrecimento do
gestor; os pressupostos do enriquecimento são, todavia, distintos, centrando-se todo
o instituto em efeitos e não ,propriamente, no modo de conduzir a actividade dos
intervenientes;
2. A responsabilidade civil (art.º 483.º, n.º 1, CC) – o gestor, agindo sem título na esfera
do dono, pode provocar danos ou, de todo o modo, pode mover-se num estado de
coisas que o próprio dono pretendesse manter incólume; no entanto, os pressupostos
da responsabilidade civil são distintos.
A gestão de negócios, se devidamente iniciada e conduzida, funciona, na prática, como
causa de justificação – torna lícita uma conduta que, de outra forma, não o seria, inibindo o
dever de indemnizar. No entanto, não se confunde com o estado de necessidade, em virtude
das diferenças nos seus pressupostos:
i. O estado de necessidade requer que o dano a evitar seja manifestamente superior
ao que seja causado para o evitar (art.º 339.º, CC);
ii. A gestão de negócios exige uma consonância com o interesse objectivo do dono
(evitar o perigo) mas não deixa de o ser quando o resultado não seja obtido.

Requisitos – generalidades

O art.º 464.º do Código Civil, dando uma noção de gestão de negócios, fixa os seus requisitos
legais, os quais derivam em linha recta do Direito romano, podendo distinguir-se:
i. A direcção de negócio;
ii. A alienidade;
iii. O exercício;
iv. Por conta do dono;
v. No interesse do dono;
vi. A falta de autorização.

A direcção de negócio

A direcção de negócio referida no art.º 464.º deve ser tomada em sentido amplo,
abrangendo uma actuação directa do gestor e, ainda, uma actuação que, juridicamente, lhe
seja imputável. Pode-se configurar casos nos quais:
a. O gestor se faça representar, para efeitos de gestão;
b. O gestor actua com recurso a auxiliares;
c. O gestor seja uma pessoa colectiva, que actue através dos seus administradores.
“Direcção” traduz ainda a ideia de uma actuação controlada pelo próprio gestor, por
oposição a meras situações de decurso aleatório ou entregues a terceiros.

A ideia de “negócio” deve ser tomada em termos amplos, não se tratando de um negócio
jurídico em sentido técnico, i.e., um facto humano dotado de liberdade de celebração e de
liberdade de estipulação, antes ficando abrangidos:
1. Negócios proprio sensu;
2. Actos jurídicos não negociais;
3. Actos materiais.
O “negócio” abrange, ainda, actuações complexas que redundem em múltiplos actos
jurídicos ou em actuações materiais variadas, falando-se, então, numa única gestão de
negócios sempre que as conexões existentes entre os actos em causa permitam, em termos
operacionais para a determinação do regime, considerar a presença de uma única gestão.

A “direcção de negócio” pode traduzir-se numa abstenção ou numa suportação, sendo que,
conceptualmente, tanto uma como outra podem surgir como objecto de obrigações.

A alienidade

O requisito da alienidade do negócio surge, de modo expresso, no art.º 464.º.


À partida, dir-se-ia que não há alienidade sempre que o negócio em jogo se inscreva na
esfera do próprio dono, o que equivaleria à reabertura da distinção entre:
i. Alienidade objectiva – o negócio é alheio porquanto se inscreva na esfera do
dono. Indo-se mais longe, falta a alienidade objectiva sempre que o negócio se
insira no âmbito do próprio gestor;
ii. Alienidade subjectiva – o negócio surgiria como alheio mercê da conduta
intencional do gestor; este, ao adquirir bens que destinaria ao dono, estaria a
coloca-los fora da sua esfera, apenas por acção da vontade.
O segundo núcleo absorve claramente o primeiro: o “gestor” que se apropria de um objecto
do dono e, nele, pratique diversos actos, não está a gerir negócio “alheio” uma vez que
ilicitamente o colocou na sua esfera. Na mesma linha, o negócio “próprio” do gestor pode
surgir como “alheio”.
Em abstracto, qualquer negócio pode ser tomado como alheio, sendo que o conceito de
“alienidade” não surge, no contexto da gestão de negócios, numa acepção técnica, devendo
esta ser reportada ao sentido da acção final do gestor. Vise, esta, contemplar as
necessidades do dono e os meios por ela desencadeados apresentar-se-ão como “negócio
alheio”.
Analiticamente, este requisito é configurável como o agir no âmbito de uma permissão,
específica ou genérica ou de uma imposição específica, que assista ao terceiro. Mas apenas
a natureza final da acção do gestor permitirá determinar o local da sua inserção, na plêiade
das permissões que rodeiam todos os sujeitos de Direito.

Por conta do dono

Actuar “por conta” de uma pessoa é expressão retirada do mandato (art.º 1157.º, CC) e que
significa praticar actos destinados à esfera jurídica do beneficiário, existindo três teorias
sobre esta actuação:
i. Teoria objectiva;
ii. Teoria subjectiva;
iii. Teoria da combinação.
De acordo com a teoria objectiva, a actuação por conta do dono surgiria logo que o gestor
agisse no âmbito deste, i.e., “por conta de outrem” adviria da própria alienidade do negócio.
Segundo a teoria subjectiva, apenas a intenção do gestor permite qualificar uma sua
conduta como “para outrem” ou “por conta de outrem”.
A teoria da combinação apela a elementos objectivos e subjectivos, entendendo Menezes
Cordeiro que se trata da teoria mais adequada.

A gestão de negócios assenta numa actuação do gestor, uma acção humana, sendo, por
conseguinte, voluntária e pré-modelada para o seu fim. A intenção só, por si, não é acção,
não sendo juridicamente relevante nem, consequentemente, para a gestão de negócios. E a
sequência não-intencional tão-pouco será acção nem, a fortiori, “gestão” seja do que for.
A acção humana, porque humana e porque acção, não é causal, i.e., não surge como
consequência inelutável de um circunstancialismo natural que a anteceda. Antes deve ser
entendida como acção final, i.e., como uma sequência desencadeada para a obtenção do fim
prosseguido pelo agente. Tudo isto é aproveitável para a explicação da ideia da actuação por
conta de outrem.

Não é possível, para Menezes Cordeiro, a construção de um modelo puramente objectivo de


gestão de negócios. O gestor actua por conta do dono na medida em que adopte um
comportamento que, objectiva e subjectivamente – aspectos incindíveis –, vise inscrever-se
na esfera do beneficiário. Assim, o animus aliena negotia gerendi é a consciência da
alienidade.
Havendo alienidade objectiva, surge uma presunção hominis de que a actuação foi
desencadeada por conta do dono, titular dos valores visados; na sua falta, caberá ao gestor
demonstrar o sentido da sua actuação.

Estas considerações são comprovadas através do regime da gestão não-autêntica, i.e., da


gestão de negócio alheio julgado próprio (art.º 472.º, CC). Aí, por definição, o gestor não
pode, por falta de vontade, actuar por conta do dono. Consequentemente e salvo aprovação
(o que envolve o acordo deste), não se aplicam as regras da gestão – antes as do
enriquecimento sem causa ou quaisquer outras, que ao caso caibam (art.º 472.º, n.º 1, in fine,
CC), incluindo as da responsabilidade civil.
Não há uma actuação por conta do dono nas situações de usurpação de negócio, i.e., aquelas
em que alguém, usando de qualquer subterfúgio, logre colocar-se na posição de titular
efectivo dos interesses em causa. Tal eventualidade concita, antes, a aplicação das regras da
responsabilidade civil.

No interesse do dono

Existem, no contexto da gestão de negócios, dois interesses, classicamente reconhecidos e


apontados:
i. O utiliter coeptum, com o sentido de que a gestão, para o ser, deve iniciar-se como
uma actividade útil;
ii. O utiliter gestum, que exprime o dever de, depois de iniciada a gestão, o gestor
manter uma actuação proveitosa para o dono do negócio.
A gestão de negócios, para o ser, deve iniciar-se de forma útil para o dono. O termo
“interesse”, inserido no art.º 464.º, vem utilizado em sentido objectivo (susceptibilidade de
um quid satisfazer necessidades do sujeito). Não ocorre em sentido subjectivo (relação de
apetência entre um sujeito e certo quid), nem em sentido técnico-jurídico (valores protegidos
pelo Direito de tal modo que a sua supressão implique um dano).
Não pode estar em causa o referido sentido subjectivo de interesse, i.e., uma relação de
apetência que se estabeleça entre um sujeito e algo que ele deseje e que até pode ser
pernicioso: nesta acepção, além de todos os riscos de segurança imaginados, a prossecução
do interesse poderia envolver prejuízos e, até, a disposição de bens futuros; o Direito não
pode, pela gestão, legitimar tais feitos, exigindo-se, pelo menos, um contrato em boa e
devida forma ou o assentimento (em sentido técnico) do ofendido, para que lhe fosse
causado um dano.
Não se joga o também reportado sentido técnico-jurídico de interesse pois, ao agir, o gestor
não tem, necessariamente, de prosseguir valores protegidos, podendo colocar-se num plano
neutro, lidar com valores próprios ou de terceiros ou até atingir valores tutelados, do
dominus.
Assim, Menezes Cordeiro entende que a gestão deve iniciar-se de forma objectivamente útil
para o dono, devendo esta utilidade ser relevada segundo o sentir geral da comunidade e à
luz dos valores fundamentais do ordenamento (boa-fé). Quem desencadeie uma actuação
objectivamente nociva ou, até, apenas inútil não pode acolher-se ao véu da gestão de
negócios. De outro modo, corre-se o risco de transformar a gestão num instituto puramente
formal, insensível aos valores sociais expressos no ordenamento.

A falta de autorização

A “falta de autorização” referida no art.º 464.º apresenta um sentido muito lato, devendo o
gestor agir fora de qualquer relação jurídica pré-existente que legitime a sua actuação.
Assim, deve excluir-se:
i. O mandato ou qualquer outro contrato, concluído entre gestor e dono e no seio
do qual se inscreva a actuação levada a cabo;
ii. Uma procuração que, independentemente do dever de praticar o acto, lhe dê,
desde logo, como destino, a esfera do dominus;
iii. Um status (responsabilidades parentais, qualidade de administrador ou de
incumbido da gestão) que o habilite à actuação em jogo;
iv. Uma norma legal que determine a actuação;
v. Uma permissão específica de agir – legítima defesa, acção directa ou estado de
necessidade.

A gestão de negócios não é um instituto subsidiário, que é aplicável na inexistência de


qualquer facto legitimador, entendendo Menezes Cordeiro que o recorte dogmático da
gestão implica que esta ocorra como opção própria do gestor, totalmente livre de normas de
imposição ou de permissão específica.
Quando tais normas existam e estejam disponíveis, nada obsta a que os interessados optem
pela gestão, em detrimento de outros esquemas eventualmente aplicáveis.
Só não se admitem actos que, violando cláusulas gerais, como a da boa-fé, possam
prejudicar terceiros.

A situação do gestor – generalidades; a conformação com o interesse e a vontade do


dono

A gestão de negócios é um instituto complexo que desencadeia – ou pode desencadear –


efeitos entre três intervenientes: o gestor, o dono do negócio e o terceiro. No entanto, tais
efeitos são, na base, apenas bilaterais.
Tem-se:
i. Relação gestor-dono, com a actio contraria do gestor contra o dominus e a actio
directa deste contra aquele;
ii. Relação gestor-terceiro a qual, dependendo do pactuado, pode originar direitos
e deveres recíprocos;
iii. Relação entre o dono e o terceiro, resultante, em regra, de haver uma ratificação.
Há também que contar com os deveres acessórios, provenientes do sistema (boa fé) e que
podem envolver terceiros (protecção de terceiros): seja o terceiro nas relações gestor-dono;
seja o dono nas relações gestor-terceiro; seja ainda um terceiro estranho ao triângulo gestor-
dono-terceiro.
O primeiro dever do gestor é o de se conformar com o interesse e a vontade, real ou
presumível, do dono do negócio, sempre que esta não seja contrária à lei ou à ordem pública,
ou ofensiva dos bons costumes (art.º 465.º, al a), CC).
Não é curial assimilar o “interesse” do art.º 465.º, alínea a), ao interesse do art.º 464.º,
havendo, aqui, uma vincada deriva linguística, mercê da qual, no subsistema da gestão de
negócios, os diversos conceitos assumem colaborações próprias. Assim:
a. No art.º 464.º, “interesse” sempre no sentido comum objectivo de aptidão de um quid
satisfazer necessidades do sujeito – é o utiliter coeptum;
b. No art.º 465.º, al a), interesse ocorre no sentido técnico-jurídico de bitola geral de
conduta, deixada à discricionariedade do gestor, mas que se apresente, na sua
globalidade, como objectivamente adequada perante as razões que ditaram o início
da gestão – é o utiliter gestum.
A natureza técnico-jurídica de “interesse”, no art.º 465.º, alínea a), contraposta à noção
objectiva comum do art.º 464.º é uma conclusão retirada de duas ordens de factores:
1. Se o “interesse” exigido para o início da gestão desaparecesse, mercê da actuação do
sujeito, não haveria gestão nem, logo, deveres a observar que implicassem o respeito
pelo interesse; quanto muito, ficaria vedada uma conduta sinuosa, que traduzisse,
num primeiro momento, o respeito pelo interesse do dono e, num segundo, o
desrespeito por tal interesse; mas isso poria em crise a unidade de cada gestão e a
globalidade do juízo de valor que se lhe reporte;
2. Admitir que, durante a gestão, o gestor deveria procurar o preciso interesse objectivo
do dono, de modo a prossegui-lo, equivaleria à funcionalização da sua posição,
colocando-o numa situação fiduciária equivalente à dos administradores das
sociedade; ir-se-ia, com isso, contra o espírito da gestão e, sobretudo, contra o
regime vigente, que deixa total liberdade, ao dono, de aprovar ou não aprovar a
gestão e de ratificar ou não ratificar os actos praticados pelo gestor.

O interesse do art.º 465.º, alínea a), promove a delimitação negativa da actuação do gestor,
não devendo este atentar contra os interesses protegidos do dono, conduzindo tal a
responsabilidade civil.

A vontade referida no art.º 465.º, alínea a), abrange:


i. A vontade real, i.e., a vontade naturalística, quando, porventura, seja conhecida
pelo gestor;
ii. A vontade provável (“presumível”), i.e., aquela que, de acordo com as
circunstâncias e o que se saiba do gestor, seja provável que ele tenha.
Não está em jogo a vontade hipotética prevista, ocorrendo que, na falta de elementos, a
vontade presumível do dono tenderá a aproximar-se do utiliter gestum.

A doutrina diverge relativamente à questão de como proceder quando o interesse do dono


se oponha à sua vontade, real ou presumível:
1. Perante o conflito interesse/vontade, o gestor deveria abster-se de agir – defendida
por Galvão Telles;
2. Deve dar-se prevalência ao interesse do dono – defendida por Vaz Serra e Ribeiro
Mendes;
3. Deve apelar-se a um sistema móvel, que permita uma solução caso a caso, embora
com predominância da vontade – defendida por Menezes Leitão.
4. Deve dar-se prevalência à vontade do dono – defendida por Menezes Cordeiro.
Menezes Cordeiro entende que, atendendo a natureza do “interesse” como bitola geral de
conduta que apenas delimita negativamente a actuação do gestor, o gestor disporá, a partir
daí, de discricionariedade. No entanto, esta discricionariedade não é total, não podendo a
vontade do dono ser contrariada, só podendo ser ignorada pelo gestor quando for contrária
à lei ou à ordem pública ou ofensiva dos bons costumes ou, então, quando, de todo, sobre
ela não haja elementos.
Tem-se, assim, o quadro seguinte:
a. No desenvolvimento da gestão, o gestor deve seguir, como directrizes, a vontade real
ou a vontade presumível do dono;
b. Salvo quando contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes, i.e., a limites
que o próprio dono não pode, por si, ultrapassar;
c. Na falta de vontade ou de vontade conhecida, o gestor actuará de modo
discricionário, mas não podendo contundir com os interesses protegidos do dono.

A actividade principal do gestor é auto-determinada: ninguém lhe dá instruções, cabendo-


lhe, por definição, a iniciativa do que faça e de como o faça.
Os deveres de aviso, de informação e de prestação de contas

O art.º 465.º, em três sucessivas alíneas, fixa deveres de aviso, de prestação de contas e de
informação:
b. Avisar o dono do negócio, logo que seja possível, de que assumiu a gestão;
c. Prestar contas, findo o negócio ou interrompida a gestão, ou quando o dono as exigir;
d. Prestar a este todas as informações relativas à gestão;

O aviso de que o gestor assumiu a gestão é óbvio: de outro modo, poderá haver duplicações
de esforços e maiores prejuízos. Além disso, deve ser dada a possibilidade ao dono do
negócio de se ocupar do assunto, interrompendo a gestão, chamando-as a si, ratificando ou
não os actos praticados em seu nome ou nada fazendo. A obrigação de aviso, “logo que
possível”, é o sucedânceo da de realizar os actos previstos no mandato ou de executar
quaisquer serviços de conteúdo não jurídico.

O dever de prestar todas as informações relativas à gestão, imposto pelo art.º 465.º, alínea
d), sempre se imporia por via da boa-fé (art.º 762.º, n.º 2, CC) ou, mais directamente, pelo
dever legal de informar (art.º 573.º, CC), caso estejam em causa elementos que o dono não
possa, desde logo e por si, sem esforço, apreender. O preceito não fixa o momento em que
as informações devam ser prestadas, sendo possível distinguir:
i. Logo no momento do aviso ao dono do negócio, devem ser prestadas todas as
informações pertinentes, designadamente as necessárias para se apreender a
matéria em jogo e os actos praticados;
ii. Sempre que, prosseguindo a gestão, surjam elementos novos, capazes de levar o
dono a intervir ou, em qualquer caso, susceptíveis de representar, para este, um
factor relevante; eles devem ser comunicados ao dominus;
iii. Quando o dono as peça.
As informações a prestar são “todas”, mas desde que razoáveis e pertinentes.

A prestação de contas é uma sub-espécie reforçada do dever de informar, tendo,


normalmente, lugar no termo da actuação a que se reporte. No entanto, esta pode ocorrer
antes disso, sempre que o interessado o solicite e tenha, a tanto, um direito. O art.º 465.º,
alínea c), dispõe três possíveis momentos para a prestação de contas:
a. No termo da gestão;
b. Na hipótese de interrupção da gestão;
c. Quando o dono as peça.
Nos dois primeiros casos, ela é automática, incorrendo o gestor em mora se não as prestar
de imediato ou, pelo menos, no prazo razoavelmente necessário para o seu aprontamento.
No terceiro caso, ela depende de interpelação do dono, devendo, depois disso, ocorrer num
prazo também razoável para que, dadas as circunstâncias, ela possa ser preparada.

O dever de entrega

O gestor deve entregar ao dominus tudo o que tenha recebido de terceiros no exercício da
gestão ou o saldo das respectivas contas, com os juros legais, relativamente às quantias em
dinheiro, a partir do momento em que a entrega haja de ser efectuada (art.º 465.º, al e), CC).
O dever de entrega, ao dono, é um corolário lógico da actuação havida, por conta dele,
tendo-se várias hipóteses, consoante as circunstâncias:
1. A entrega de coisas corpóreas, obtidas com a gestão;
2. A transmissão, para o dono, de direitos adquiridos pelo gestor, em nome próprio, mas
por conta do dono e no âmbito da gestão;
3. A transferência, para o dono, de posições contratuais ou de débitos, resultantes da
gestão;
4. A manutenção de uma conta-corrente, quando haja entregas e recebimentos de bens
homogéneos ou de valores, com a restituição do saldo a que haja lugar;
5. O pagamento dos juros legais, relativamente às importâncias em dinheiro que o
gestor tenha detido, por conta do dono,
A determinação da exacta obrigação de entrega depende do destino que tenham os actos
celebrados pelo gestor com os terceiros. Ter-se-á, pois, de se indagar se houve, ou não,
aprovação, se ocorreu ratificação e se o dono exerceu as facultades que cabem ao mandante
sem representação.

O dever de continuar a gestão


Nos direitos francês e italiano existem preceitos expressos que estabelecem para o gestor
um dever de, iniciada uma gestão, prossegui-la e acabá-la até que o proprietário possa
providenciar. Contrariamente, o direito alemão não acolheu tal dever, entendendo a
Doutrina e a jurisprudência que, ao abrigo das regras gerais, o gestor pode responder quando
o não-prosseguimento da gestão implique um dano culposo.
O Código Civil português acolheu a solução germânica no n.º 1 do art.º 466.º, entendendo
Antunes Varela e Ribeiro Mendes que, no entanto, o gestor deve prosseguir a gestão até que
o negócio chegue a bom termo ou o dono possa prover por si mesmo.
Menezes Cordeiro e Menezes Leitão entendem que o preceito supra-mencionado não
pressupõe um dever de continuar a gestão iniciada, postulando apenas um dever de não a
interromper injustificadamente, tratando-se, assim, de uma obrigação sem dever de prestar
principal, em cujo teor se inscrevem os deveres de segurança destinados a que a intervenção
interrompida não se traduza por maiores prejuízos.

A responsabilidade do gestor

O princípio básico na responsabilidade do gestor é o da responsabilidade aquiliana do gestor


(art.º 466.º, n.º 1, 1.ª parte, CC), designadamente perante o dono do negócio, por todos os
prejuízos que lhe cause, com culpa, no âmbito da gestão. Estão em causa, nos termos gerais,
os danos causados com violação dos direitos subjectivos do dono do negócio ou das normas
destinadas a proteger os seus interesses (art.º 483.º, n.º 1, CC), jogando-se o dever geral de
respeito. Caberá ainda, nos termos gerais, ao dono atingido invocar e provar os danos, os
factos ilícitos e os elementos de onde emerja a culpa do gestor (art.º 487.º, n.º 1, CC).

O gestor poderá ainda incorrer em responsabilidade obrigacional pelo incumprimento de


deveres específicos, sendo estes, desde logo:
i. Os deveres de aviso, de prestação de contas e de informação (art.º 465.º, als b),
c) e d), CC);
ii. Os deveres de entrega (art.º 465.º, al e), CC);
iii. O dever de segurança pressuposto pela não-interrupção injustificada da gestão
(art.º 466.º, n.º 1, 2.ª parte, CC).
Nestes casos, provada a violação dos deveres em causa, presume-se a culpa do gestor (art.º
799.º, n.º 1, CC).

Presume-se a culpa do gestor, quando este agir em desconformidade com o interesse ou a


vontade, real ou presumível, do dono do negócio (art.º 466.º, n.º 2, CC), entendendo
Menezes Cordeiro que se trata de uma obrigação sem dever de prestar principal, ao abrigo
de cujos deveres específicos de segurança se delimita a acção do gestor.

A culpa é, para Menezes Cordeiro, ponderada, nos termos gerais, ao abrigo do n.º 4.º do
art.º 487.º, aplicável à responsabilidade obrigacional (art.º 799.º, n.º 2, CC). No entanto,
Antunes Varela apela para aquilo que faria o dono do negócio e não o bom pai de família,
invocando a culpa in concreto, considerando Ribeiro de Faria que não se deveria exigir um
grau de diligência superior àquele de que o gestor é capaz. Almeida Costa defende que não
se deve exigir ao gestor um zelo superior ao que este põe nos seus próprios negócios, dado
o “carácter espontâneo e altruísta da gestão de negócios”, tal não se aplicando quando o
gestor actue no âmbito da sua actividade profissional ou quando, ainda que de boa-fé, ele
tivesse afastado da gestão, outra pessoa.

Quando duas ou mais pessoas actuem conjuntamente como gestoras, de certo negócio, as
obrigações delas para com o dono são solidárias (art.º 467.º, CC). No entanto, no caso inverso
– o de haver vários donos de negócio – inexiste base legal para a fixação de uma regra de
solidariedade.

A situação do dono – o dever de reembolso e de indemnização

Segundo o art.º 468.º, n.º 1, do Código Civil:


“Se a gestão tiver sido exercida em conformidade com o interesse e a vontade, real ou presumível,
do dono do negócio, é este obrigado a reembolsar o gestor das despesas que ele fundadamente
tenha considerado indispensáveis, com juros legais a contar do momento em que foram feitas, e a
indemnizá-lo do prejuízo que haja sofrido.”
Tem-se, neste preceito, a antiga actio contraria ou acção do gestor contra o dono, estando,
todavia, consignada em termos muito amplos que, uma vez analisados, se vêm a revelar
muito mais estritos.

O gestor não tem nenhuma linha pré-fixada de actuação, só podendo este iniciar a gestão
se for objectivamente útil e, tendo-o feito, ele deve respeitar os interesses juridicamente
protegidos do dono do negócio e, ainda, a sua vontade real ou presumida. Assim sendo,
chegar-se-ia a uma situação em que, parente uma gestão puramente danosa, o dono ainda
teria que reembolsar despesas e indemnizar prejuízos, o que não é conformar-se com o
interesse do dono.
Assim, ainda que a lei não o diga expressamente, há, sempre, que proceder a um cálculo
custos/benefícios, antes de condenar o dono a reembolsar as despesas do gestor.

A lei não conduz a uma apreciação de mérito sobre a gestão levada a cabo, assistindo ao
gestor um espaço discricionário de gestão. Por isso se compreende que as despesas a
reembolsar, verificados os requisitos, sejam todas as que o próprio gestor tenha
considerado, fundadamente, indispensáveis (art.º 468.º, n.º 1, CC). Quanto ao “prejuízo”: o
gestor, no seu esforço, pode ser levado a gastar dinheiro (despesas) ou a sacrificar outras
vantagens, patrimoniais ou pessoais, que lhe deveriam caber (prejuízo), devendo estes
também ser indemnizados, pela mesma ordem de motivos e com os limites apontados às
despesas. O dono é responsável pelo (mero) risco, o que envolve, necessariamente, cautelas
e limites.

Se a gestão não for regular, i.e., se, tendo-se iniciado em termos úteis, ela não respeitar o
interesse do dono ou a sua vontade, real ou presumível, não há lugar ao reembolso das
despesas. Para além da responsabilidade fixada no art.º 466.º, n.º 1, apenas poderá haver
azo à aplicação do enriquecimento sem causa (art.º 468.º, n.º 2, CC). Com o seguinte alcance
prático: o dono, tendo obtido efectivas vantagens com a actuação do gestor, deve devolver
a este não as despesas, mas apenas aquilo com que tenha beneficiado, descontadas todas as
desvantagens, com a actuação do gestor, ficando ressalvada a hipótese de, não obstante,
haver aprovação da gestão pelo dono (art.º 468.º, n.º 2, in fine, CC).
A remuneração do gestor

O dono apenas deve remunerar o gestor quando a gestão corresponda ao exercício da


actividade profissional deste (art.º 470.º, n.º 1, CC), sendo aplicável o regime da remuneração
do mandatário: não havendo ajuste, recorre-se às tarifas profissionais; na falta destas, aos
usos; na falta de umas e outras, à equidade (art.º 1158.º, n.º 2 ex vi 470.º, n.º 2, CC).
No entanto, Menezes Cordeiro defende uma interpretação restritiva, devendo considerar-
se o próprio esforço do gestor como uma despesa a ter em conta.

Direitos do dono

O dono detém algumas posições activas, as quais correspondem, de um modo geral, aos
deveres do gestor. Assim, assistem ao dono:
i. A pretensão genérica de que o seu interesse e a sua vontade, real ou presumível,
sejam respeitados (art.º 465.º, al a), CC);
ii. O direito a ser avisado da assunção da gestão (art.º 465.º, al b), CC);
iii. O direito à prestação de contas, findo o negócio ou interrompida a gestão (art.º
465.º, al c), CC);
iv. O direito a pedir a prestação de contas (art.º 465.º, al c), CC);
v. O direito a obter todas as informações relativas à gestão (art.º 465.º, al d), CC);
vi. O direito a haver quanto o gestor tenha recebido de terceiros, no exercício da
gestão, ou o saldo das respectivas contas (art.º 465.º, al e), CC);
vii. O direito aos juros legais relativos às importâncias em jogo, desde o momento da
sua percepção (art.º 465.º, al e), CC).

O dono tem os direitos potestativos de:


1. Pedir uma indemnização pelos danos causados, com culpa, no exercício da gestão,
pelo gestor (art.º 466.º, n.º 1, CC);
2. Desencadear a responsabilidade civil pelos danos derivados da injustificada
interrupção da gestão (art.º 466.º, n.º 1, CC);
3. Lançar mão das vias permitidas pela solidariedade, quando haja mais do que um
gestor (art.º 467.º, CC).
O dono tem, finalmente, mais dois importantes direitos potestativos:

a. O de aprovar a gestão (art.º 469.º, CC);


b. O de ratificar os actos praticados no seu âmbito (art.º 471.º, CC).

A aprovação da gestão

A aprovação da gestão traduz, da parte do dono do negócio, a prática de um acto unilateral


que exprime a sua concordância com a iniciativa do gestor. No fundo, esta equivale a uma
projecção da vontade real do dono que, a posteriori, vem aderir à gestão efectivada.
A aprovação tem duas importantes consequências (art.º 469.º, CC):
i. Implica uma renúncia ao direito à indemnização pelos danos devidos a culpa do
gestor, renúncia essa a alargar ao direito à indemnização pela injustificada
interrupção da gestão, caso tal tenha ocorrido;
ii. Vale como reconhecimento dos deveres de reembolsar o gestor das despesas que
este fundadamente tenha considerado indispensáveis, com os juros legais e do
dever de o indemnizar do prejuízo que haja sofrido, sendo aplicáveis as regras do
reconhecimento de dívida (art.º 458.º, CC), dispensando-se, assim, o gestor de
alegar e provar seja o que for.

A aprovação da gestão não se confunde com a ratificação dos actos que tenham sido
praticados pelo gestor em nome do dono (art.º 268.º ex vi art.º 471.º, CC), ocorrendo que:
1. A aprovação reporta-se à gestão, em bloco; a ratificação, a determinados actos,
selectivamente;
2. A aprovação implica renúncia a indemnizações e reconhecimento de deveres de
reembolso e de compensação por um prejuízo; a ratificação conduz ao acolhimento,
na própria esfera do dono, de actos praticados pelo gestor em seu nome;
3. Pode haver aprovação sem ratificação e inversamente: exprimem institutos distintos,
com regimes próprios.

A situação dos terceiros – aspectos gerais


São terceiros todas as pessoas que, relativamente a uma considerada gestão de negócios,
não sejam nem dono, nem gestor. É possível distinguir, à partida:
i. Terceiros estranhos – aqueles que não tenham concluído, com o gestor, nenhum
acto jurídico;
ii. Terceiros interessados – os que, pelo contrário, hajam concluído, com o gestor,
algum contrato.
Os primeiros podem ser envolvidos na gestão através de deveres acessórios e,
designadamente, aqueles que tenham, por conteúdo, a protecção de terceiros. Tais deveres
serão assacados ao gestor ou ao dono consoante o que suceda às obrigações a que eles se
acolham.
Os segundos ficam, por definição, no âmbito da gestão, havendo que procurar, para os actos
que concluam, um regime adequado.

Quando contratem com o gestor, existem duas hipóteses:


i. Ou o gestor contratou, com eles, em nome próprio;
ii. Ou tal sucedeu em nome do dono do negócio.
No primeiro caso, o contrato é válido, mas apenas produz efeitos entre o próprio gestor e o
terceiro. No segundo, o contrato é ineficaz, relativamente ao dono, devendo seguir-se o
regime do art.º 268.º.

Representação sem poderes

Aos negócios celebrados entre o gestor, em nome do dono, com terceiros, aplica-se o art.º
268.º (ex vi art.º 471.º, 1.ª parte, CC). O art.º 268.º, por seu turno, diz respeito à representação
sem poderes:
1 Tem-se um acto praticado em nome de outra pessoa (contemplatio domini);
2 Por conta dela;
3 Mas sem os necessários poderes de representação.

Na falta de poderes, a primeira constatação é a de que o negócio não produz efeitos em


relação ao dono enquanto não for, por este, ratificado (art.º 268.º, n.º 1, CC). A ratificação
está sujeita à forma exigida para a procuração (art.º 268.º, n.º 2, 1.ª parte, CC), a qual é, em
princípio, a forma requerida para o negócio que esteja em causa (art.º 262.º, n.º 2, CC).
Quando ocorra, este tem eficácia retroactiva, sem prejuízo de direitos do terceiro (art.º
268.º, n.º 2, CC).
A ratificação é inteiramente livre.

No tocante ao terceiro, o conhecimento da falta de poderes releva na seguinte medida:


a. Se o terceiro desconhecia a falta de poderes do gestor, tem ele a faculdade de, a todo
o tempo, revogar ou rejeitar o negócio (art.º 268.º, n.º 4, 1.ª parte, CC);
b. Se o terceiro conhecia tal falta, pode fixar um prazo para que sobrevenha a
ratificação, considerando-se esta negada se não ocorrer neste prazo (art.º 268.º, n.º
3 e 4, in fine, CC), não produzindo o negócio quaisquer efeitos.

Mandato sem representação

O regime do mandato sem representação funciona, na parte aplicável, sempre que o gestor
tenha concluído negócio com terceiros em seu próprio nome (art.º 471.º, 2.ª parte, CC).
Nessa eventualidade, a primeira constatação é a de que o contrato produz os seus efeitos
entre o gestor e o terceiro (art.º 1180.º, CC). Na hipótese de tal contrato não interessar ao
gestor, revelando-se, para ele, como um encargo inútil, poderá o mesmo ser computado
como “prejuízo” para efeitos de ser indemnizado pelo dono, nas hipóteses de a gestão ser
regular (art.º 468.º, n.º 1, in fine, CC) ou de o dono a ter aprovado (art.º 469.º, CC).

O gestor fica obrigado a transferir, para o dono, os direitos adquiridos no âmbito da gestão
(art.º 1181.º, n.º 1, CC), tratando-se de um poder do dono, que este usará como entender.
Salvo limites impostos pela boa-fé, pode o dono recusar acolher mesmo os negócios que,
para ele, sejam vantajosos.

Situações de emergência e actos de socorro

A gestão de negócios pode aplicar-se nos casos em que o gestor procure enfrentar situações
de emergência, suportando despesas e prejuízos para evitar (ou tentar evitar) danos
patrimoniais e pessoais noutras pessoas. Nessa eventualidade, a pessoas em cuja esfera se
evita a provocação de danos são “donas do negócio”.
A Doutrina tem ordenado os diversos elementos que podem conduzir a uma gestão de
emergência:
1. Um perigo eminente de verificação muito provável de um dano, para cuja remoção
ou prevenção não seja possível obter o prévio assentimento do “dono”;
2. Relativo ao património ou à pessoa do “dono do negócio”, admitindo-se que possam
estar em causa pessoas especialmente próximas do dono, como os filhos ou
trabalhadores;
3. Operando-se sempre uma verificação no plano da proporcionalidade do
perigo/custos.
À partida, o regime do estado de necessidade é mais adequado, sendo que, com efeito, uma
actuação de emergência destinada a remover perigos é, em geral, causa de danos e não
(apenas) de despesas. Quanto aos danos, só por excepção eles se limitarão à própria esfera
do agente/”gestor”. Impõe-se também um enquadramento em termos de licitude, que
somente o art.º 339.º pode assegurar.
Relativamente ao regime, este deve ser muito flexível, podendo as circunstâncias ser tão
variáveis que rodeiem o surgimento do perigo e as medidas possíveis para o remover ou
atenuar.

A gestão de negócios pode sobrepôr-se, total ou parcialmente, com outras figuras, nada
permitindo considera-la como um instituto subsidiário. Assim sendo, pode uma determinada
factualidade integrar, além do estado de necessidade, a própria gestão de negócios.
Assim, quando uma factualidade de base integre o estado de necessidade e a gestão de
negócios, podem os interessados escolher a gestão, na margem em que esta, por não exigir
danos a evitar muito superiores aos causados, tenha um âmbito mais extenso de aplicação.
Havendo dúvidas, podem-se invocar os dois institutos em alternativa ou a título subsidiário,
competindo ao tribunal decidir. A Doutrina sublinha a especial versatilidade da gestão de
negócios: à disposição dos interessados.

Súmula das obrigações gestórias


A gestão de negócios tem, na base, uma actuação dirigida a uma esfera alheia,
objectivamente útil para o dono e sem adequada cobertura específica – contratual ou legal.
Daí resultam, para o gestor:
i. Um espaço de auto-determinação dobrado por um dever genérico de respeitar os
interesses protegidos do dono e a sua vontade, real ou presumível;
ii. Deveres de aviso, de informação, de prestação de contas e de entrega de coisas e
valores;
iii. Deveres específicos e genéricos de não provocar maiores danos.
Para o dono, emergem, verificados os pressupostos:
1. Deveres de reembolso de despesas, de indemnização de prejuízos e de remuneração
do gestor;
2. Direitos de haver o benefício da gestão.

Relativamente a terceiros, a gestão de negócios limita-se a remeter para as regras gerais da


representação e, sendo esse o caso, do mandato sem representação.

Todo o edifício da gestão de negócios é devidamente emoldurado por deveres acessórios


(de protecção, de lealdade e de informação), que recaem sobre o gestor e sobre o dono e que
os adstringem a respeitar, em todas as vicissitudes, os valores básicos do ordenamento. Tais
deveres não são passivos, articulando-se de modo funcional, por forma a conduzir ao êxito
da gestão, com um máximo de benefício para o dono (e para o gestor) e um mínimo de custos
para todos os intervenientes.

Natureza da gestão

A gestão de negócios não deixa de invocar a ideia de uma relação de facto, colocando-se o
gestor, social e valorativamente, numa situação tal que não pode deixar de, dele, se esperar
o desenvolvimento de uma actividade útil.
Enquanto fonte de obrigações, a gestão é, analiticamente, um acto stricto sensu uma vez
que os seus efeitos são os da lei, sendo a relação gestor-dono uma obrigação complexa, que
os une sem dever de prestar principal. Assenta, assim, em múltiplos deveres secundários, de
base legal e num dever acessório básico, de protecção.

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