comparação
Coordenadores: Magda dos Santos Ribeiro (USP), Catarina Morawska Vianna (UFSCar)
Resumo: Este Seminário Temático pretende reunir pesquisas que reflitam sobre a
mobilização de saberes tecnopolíticos em órgãos estatais, organizações não-governamentais,
agências internacionais, institutos de pesquisa, laboratórios, empresas privadas. Serão
privilegiadas experimentações com materiais etnográficos e bibliográficos de modo a operar
comparações que tornem visíveis práticas de conhecimento distintas e/ou em relação. O
objetivo é fomentar o debate em torno da ideia de que a política nestas instâncias se dá a partir
do exercício de técnicas das mais variadas, como a estatística, a cartografia, a hermenêutica
jurídica, a biomedicina ou as tecnologias de informação. São de especial interesse trabalhos
que descrevam, por exemplo, a confecção e circulação de documentos na gestão de
populações e territórios; a diferença entre os saberes que referenciam documentos técnicos
(como laudos antropológicos e estudos de impacto ambiental) e os saberes dos grupos sobre
os quais os documentos discorrem; os saberes biomédicos que embasam a gestão dos corpos
por parte de órgãos públicos e privados; as disputas semânticas em torno das quais
transcorrem a elaboração de leis e os processos judiciais; os saberes biotécnicos e financeiros
que compõem o agronegócio. Trata-se de refletir conjuntamente e a partir de pesquisas
tematicamente diversas os desafios teórico-metodológicos postos à antropologia na medida
em que se toma a política como indissociável da técnica.
Resumo: “Será que podemos falar que a insegurança alimentar grave é um pleonasmo para fome?”
Essa pergunta, proferida por uma nutricionista em um congresso de pesquisadores em segurança
alimentar, foi o ponto de partida para pensar sobre o tema desta proposta de apresentação, isto é, a
fome enquanto múltipla, promulgando políticas públicas e fazendo e sendo feita pelo Estado.
No entanto, apesar de parecer uma pergunta simples, as categorias implicadas acerca da fome,
e mais ainda os diferentes saberes que cada uma dessas categorias mobiliza, propõem uma relevante
reflexão sobre o tema da comida e das políticas públicas de combate à fome.
Tendo como pano de fundo minha pesquisa de doutorado, na qual pretendo partir da análise
da trajetória do programa Fome Zero em relação à construção da categoria fome para realizar uma
etnografia das políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional, pretendo no presente artigo
discutir essas ações governamentais explorando as inter-relações construídas nesse processo, as
diferentes arenas em jogo e os diferentes sujeitos políticos, que são criados a partir de uma
praxiografia da fome.
Desta forma é objetivo central deste texto, inspirada pelas análises de Annemarie Mol,
compreender a partir da etnografia de saberes tecnopolíticos envolvidos na criação desta política
pública, como a fome é promulgada e em sua promulgação cria sujeitos e coloca em circulação a
noção de direitos, assistência, vulnerabilidade e bem-estar social, bem como a definição e criação do
próprio Estado. A nutrição, a segurança alimentar e a saúde pública, mas também a própria etnografia
são saberes em disputa na construção da fome enquanto múltipla.
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social na Universidade Estadual de Campinas
Que a palavra fome traz uma multiplicidade de significados e percepções muitos já sabem.
Além de todas as possibilidades citadas acima, a fome também é algo que nos passa despercebido por
ser mais uma das aflições cotidianas que muitos vivem.
O que está implicado quando se pergunta: “Insegurança alimentar grave seria um pleonasmo
da Fome”? Mais do que colocando termos em disputa, quando fazemos esse tipo de pergunta estamos
questionando os saberes tecnopolíticos envolvidos na criação de políticas públicas de combate a
Fome, e buscando entender esses saberes como práticas colocadas em relação.
Nesse sentido, é objetivo central deste texto compreender a partir da etnografia de saberes
tecnopolíticos envolvidos na criação do Fome Zero enquanto política pública, como a fome é
promulgada 3 e em sua promulgação cria sujeitos e coloca em circulação a noção de direitos,
2 A partir de uma discussão posta em debate no campo da Antropologia por Marylin Strathern, Annemarie Mol
propõe pensar o corpo e a aterosclerose (seu objeto de estudo no livro “The Body Multiple”) como múltiplo, isto é, indo
em contraposição a uma ideia de pluralidade que está associada a diferentes perspectivas sobre uma única coisa, uma
única realidade. A ideia de múltiplo busca compreender como uma entidade é construída a partir de um compósito de
singularidades, que podem ou não ser coordenadas, como ‘conexões parciais’, “mais do que um e menos que muitos”
(Strathern, 2004; 2006; 2013).
3 Annemarie Mol, através de um debate com a teoria da agência e Teoria Ator-Rede (TAR) propõe pensar os
objetos para além da clivagem entre ‘objetos que são estudados’ e ‘sujeitos que são atores dessa ação’. Para isso, utiliza
o termo em inglês ‘enact’, que busca ir além de uma ideia de criação, e articula a ideia de Goffman que usa linguagens
do teatro para pensar os humanos, conjuntamente com o referencial de Judith Butler, para pensar o termo ‘enact’, que
O tema da fome enquanto participante do debate público somente entrou na agenda dos
estados nacionais e dos organismos internacionais após meados do século XX, ou, mais precisamente,
após a segunda guerra mundial. Ao passo que o tema foi se tornando público em escala mundial, sua
definição passou a ser debatida e disputada, resultando assim na concepção de que “a maneira que a
fome é definida informa a maneira na qual as pessoas passam a compreender a categoria de fome”
(Klein, 2013, p.16).
Segundo Nancy Schepper-Hughes (citada por Klein, 2013), foi diante da situação dos
prisioneiros dos campos de concentração nazistas da segunda guerra mundial que o direito à
alimentação passou a ser tratado em todo o mundo e que os cientistas das mais diversas áreas tiveram
que debater e buscar compreender e analisar o tema a fundo.
Com a criação da FAO ONU (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação) a discussão acerca da segurança e soberania alimentar ganhou saliência enquanto
política pública seguindo duas principais motrizes: libertação das necessidades e a realização das
necessidades básicas para uma vida digna e a ideia de segurança nacional, isto é, o alimento pensado
enquanto poderosa arma política de uma nação (Tomazini e Leite, 2016, p.18).
Após esse período, durante os anos 70, em decorrência da crise econômica mundial, ocorreu
uma crise alimentar a qual afetou todos os países, incluindo potências mundiais que não pensavam
na possibilidade de falta de alimento. Foi nesse contexto que a noção de alimento e/ou comida passou
a ser politizada e discutida de forma rigorosa, mesmo que ainda vinculada à oferta de alimentos, o
que gerava uma noção de política de assistência alimentar.
propõe romper com a necessidade de um agente humano por trás de todas as ações. Neste texto usarei a tradução
‘promulgar’ e algumas vezes ‘perfomar’ como sinônimos de ‘enact’.
A partir de 1983, com a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos da ONU, as discussões
sobre o status dos direitos humanos gera uma mudança fundamental no paradigma da segurança
alimentar no Brasil, uma vez que passa a existir um processo de responsabilização política: “baseados
no princípio de direito à alimentação, os governos poderiam receber censuras em nível internacional,
por não garantir acesso dos seus cidadãos à alimentação” (Tomazini e Leite, 2016, p.19).
No Brasil, essa conferência teve um efeito direto, bem como uma aplicação singular e local,
inserida no contexto específico de uma concepção dos direitos humanos da América Latina, a qual
está diretamente relacionada com a solidariedade ligada a demandas socioeconômicas. Como, de
acordo com Klein, “um corpo faminto em oposição a um corpo doente, necessita de alguém ou algo
pelo qual este seja responsável, isto é, um corpo faminto existe como uma crítica potente a sociedade
que o cria” (Klein, 2013, p.40 – tradução livre), o péssimo quadro da fome brasileiro movimentou a
sociedade civil cobrando e criando ações para a garantia deste direito básico à população.
Para Josué de Castro, isso se dava porque as sociedades humanas normalmente chegam ao
ponto de inanição por forças culturais mais do que através de forças naturais, sendo a fome o resultado
de grandes erros e defeitos de organização social, o que de certa forma não era pensado pelas
instituições governamentais e internacionais, causando um “flagelo ainda misterioso”. Em sua obra
mais conhecida, “Geografia da Fome”, publicada em 1947, o autor afirma que: “um flagelo só é
inevitável quando permanece um mistério. Os males provenientes da falta de alimentos continuam
sendo um problema, mas não um mistério. Hoje já sabemos em que consistem as necessidades em
alimentos. Hoje já sabemos o que é alimentação” (Castro, 1957, p.37).
Segundo o autor, “um sistema de alimentação funciona para alimentar as pessoas, satisfazer
as necessidades biológicas de uma determinada população” (Castro, 1957, p.38). A fome, através de
uma perspectiva que pode ser vista como uma concepção de cultura que está fundada nas relações
funcionais entre níveis biológicos, psicológico, social e cultural (Geertz, 1973), é definida como uma
necessidade biológica a ser satisfeita de modo mais ou menos bem sucedido pelas instituições sociais,
econômicas e políticas. Sociedade e cultura, portanto, são pensadas como dimensões a serem
acionadas para resolver esse problema.
4 Josué Apolônio de Castro (Recife, 5 de setembro de 1908 - Paris, 24 de setembro de 1973), mais conhecido
como Josué de Castro, foi um influente médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor, ativista
brasileiro que dedicou sua vida ao combate à fome. Destacou-se no cenário brasileiro e internacional, não só pelos seus
trabalhos ecológicos sobre o problema da fome no mundo, mas também no plano político em vários organismos
internacionais. Disponível em: <http://www.josuedecastro.com.br/> Acessado em 13/10/2014.
Ao tomarmos como premissa a ideia de Audrey Richards em seu clássico estudo “Hunger and
Work in a savage tribe”, no qual a autora argumenta que “nutrição em uma sociedade humana não
pode ser pensada, de maneira alguma, fora do meio cultural na qual ela existe” (Richards, 1932, p.10
- tradução livre), considerando que “o início de qualquer atividade considerada humana, por si só, é
a existência de desejos” (Ibid., ibidem), não podemos pensar a fome a partir de um viés estritamente
social ou apenas biológico. É exatamente essa definição do que é fome que vai desenhando as
políticas para seu combate, ao passo que traz consequências diretamente determinadas com essa
disputa.
Em 1932, Audrey Richards afirmou em seu livro citado acima que a comida é na verdade um
objeto diferente para aquele que passa fome e para aquele o qual tem suas necessidades satisfeitas
(Richards,1932). Pensando a fome em relação ao objeto comida, ou ainda em relação ao objeto
definidor do sujeito, na citação de Richards, podemos dizer que no fazer cotidiano das políticas
públicas de combate à fome, esta também é um objeto5 diferente para aqueles que têm fome, para
aqueles que não, para as nutricionistas, para os gestores públicos e governantes, mas também para
nós, enquanto antropólogos.
5 Existe uma bibliografia que propõe o questionamento do termo ‘objeto’, como forma de questionar a separação
entre coisas e pessoas. No entanto, apesar desse artigo articular essa discussão com o questionamento proposto por
Annemarie Mol, preferi utilizar o termo ‘objeto’ assim como a autora o utiliza, isto é, sem trazer com ele a premissa de
que as coisas são passivas e são ‘objeto do estudo humano’. Isso, pois, sendo a perspectiva de Mol, na etnografia da
prática os objetos, sujeitos, conceitos, discursos são todos promulgadores de realidade. Para uma discussão mais
aprofundada ver: Henare, Amiria et al.(2007) Thinking through things: theorizing artefacts ethnographically.
London/New York: Routledge.
Digo isso, pois desde o início do programa Fome Zero a fome é alvo de disputa. Entretanto,
essa disputa se dá sempre no plano dos significados e da representação. Assim, mesmo sendo a fome
vista como uma mazela social, a partir da leitura de Josué de Castro, enquanto política pública é
tratada como uma questão de saúde pública. Ainda estamos presos à ideia de que existe uma fome
real e muitas interpretações culturais para essa realidade que não pode se dissociar da materialidade
de suas mazelas.
Falar então, em fome múltipla significa levar a sério todas essas falas que constroem o
presente objeto e “ao invés de reduzir suas articulações a meras ‘perspectivas culturais’ ou crenças,
concebe-las como mundos ou naturezas diferentes” (Henare, Amiria et al, 2007, p.10 – tradução
livre), isto é, múltiplas ontologias em relação. Não podemos falar de fome sem falarmos de seus
6 Em seu estudo sobre aterosclerose Mol propõe que diferentes objetos podem ser adicionados, um aos outros e
se tornar um objeto múltiplo sem estar associado ou sem depender da existência prévia ou projetada de um único objeto.
Segundo a autora, a doença a ser tratada, no caso a aterosclerose é um objeto composto. Em sua análise sobre as
práticas médicas e a relação com as ciências sociais, “quando os cientistas sociais tratam de objetos de domínio das
biomedicina, muitas vezes, falam de significados e interpretações, deixando assim o ‘corpo físico’ intocável.
Multiplicando o observador mas não o objeto” (Mol, 2002, p.25).
A fome, muitas vezes concebida como insegurança alimentar grave, desnutrição ou falta de
nutriente é promulgada em relação a um corpo com uma materialidade específica e, assim, as
materialidades que outros objetos performam são deixadas de lado, por não tratarem de uma prática
diretamente relacionada com o corpo visto como singular.
Como apreender então, estas múltiplas realidades que criam e são criadas por objetos
múltiplos? Como podem a antropologia e a etnografia contribuir para compreensão da relação entre
esses saberes tecnopolíticos?
De acordo com Henare, Holbraad e Wastel (2007), algumas linguagens teóricas atuais
presumem uma distinção a priori entre pessoas e coisas, matéria e significado, representação e
realidade. Como disse acima, a fome, mesmo sendo compreendida com uma materialidade iminente,
7 Segundo pesquisadores da área de nutrição e saúde pública, que se debruçam sobre a temática das avaliações
de políticas públicas, os indicadores são “avaliações periódicas que permitem monitorar a magnitude do problema
social em determinado território, ao longo do tempo, garantindo, sempre que possível, a comparação com outros
territórios” (Pessanha, L., Vannier-Santos, M. C., & Mitchell, P. V, 2008), isto é, são configurados como métodos que
possibilitem uma comparação, muitas vezes quantitativa.
Em busca de começar a responder a pergunta anterior, é objetivo deste texto, seguir a proposta
de Henare et al (2007) alinhada à praxiografia de Annemarie Mol (2002), que incentiva capturar as
‘coisas’ encontradas no campo da maneira que elas mesmas se apresentam, ao invés de assumir que
elas significam ou representam outra coisa. “As coisas devem ser tratadas como significados sui
generis” (Henare, Amiria et al, 2007 p.04).
De acordo com essa proposta, que se define mais como um projeto metodológico no sentido
prático do termo do que uma teoria, as ‘coisas’ encontradas no campo podem ditar suas próprias
análises, incluindo novas premissas que contribuem para a criação de novas teorias. Nesse sentido,
“as coisas não devem ser delineadas antes do encontro etnográfico pelo qual elas emergem” (Ide,
ibidem).
Quando iniciei minha pesquisa de doutorado, tinha como projeto inicial compreender a
trajetória social do programa Fome Zero, e a partir deste locus das políticas públicas apreender a
polissemia da categoria de fome encontrada em campo. No entanto, desde que retomei os contatos
feitos em minha pesquisa de mestrado, quando informava sobre a temática analisada, todos os
interlocutores faziam a mesma pergunta: ah, mas você é da área da nutrição? Essa pergunta que
desde o mestrado se mantinha, questionando a possibilidade de falar sobre o tema que eu havia
escolhido, de certa forma foi o gatilho que me permitiu atentar mais para as coisas encontradas em
campo.
Comecei assim a perceber que nos diversos locais que a fome era promulgada, na Assembleia
do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Comusan – SP), no Encontro Nacional de Pesquisa
em Segurança Alimentar (ENPSAN), na Comissão da Câmara dos Deputados sobre Direito Humano
à Alimentação Adequada, e nos relatórios anuais acerca da alimentação no Brasil, havia uma
singularidade acerca do que cada um desses atores compreendia/dizia sobre a fome.
Passei então, a compreender a fome de forma análoga à comida, como dois objetos distintos
e a noção de híbrido (Latour, 1994) me pareceu como uma maneira interessante de descrever a fome,
um objeto que era simultaneamente natural e cultural, matéria e representação. A bibliografia sobre
essa temática também se alinhava a essa perspectiva.
Nancy Schepper-Hughes (1992), em seu clássico livro sobre a fome no Brasil, “Death without
weeping”, nos mostrava como a desnutrição era uma realidade no nordeste do país e como as pessoas
que a sofriam a interpretavam como uma ‘crise de nervos’. Pensando dessa forma, sob a perspectiva
do hibridismo (Latour, 1994), tanto a ‘crise de nervos’ como a desnutrição fariam parte deste híbrido,
e a fome, de uma perspectiva da cultura e da natureza.
Foi a partir de uma etnografia da prática que promulga a fome, isto é, da criação e articulação
das políticas públicas para seu combate, que a fome enquanto múltipla emergiu. Sua polissemia deu
lugar à uma reflexão fundamental desenvolvida por Foucault, na qual o discurso, ao invés de ser visto
como uma maneira distinta de organizar a realidade, de acordo com diferentes regimes de verdade, é
compreendido como “criador de novos objetos, no próprio ato de enunciar novos conceitos” (Foucault
apud Henare, Amiria et al, 2007, p. 13).
A fome passou a ser vista assim como “uma coisa manipulada na prática. E o conhecimento
produzido por ela e sobre ela, não é entendido como uma questão de referência, mas sim como uma
questão de manipulação” (Mol, 2002). Mas o que seria, nesse sentido, a fome manipulada na prática?
Que tipo de articulação e coordenação desses objetos tecnopolíticos vistos como ‘biológicos’
ou da área da saúde aconteceu para que eles passassem a ser incorporados no programa Fome Zero e
nas políticas de combate à fome? Como eles são articulados na prática?
8 Professor Emérito da Universidade Federal de Pernambuco (2008) e da Universidade Federal da Bahia (2010).
Doutorado em Saúde Pública pela Universidade Federal de São Paulo (1976). Bolsista 1A do CNPq e membro do
Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) por duas gestões. Distinguido com a medalha Oswaldo Cruz
(MS) e Honra ao Mérito (Anvisa). Ex-consultor da FAO, OMS e UNICEF para missões especiais em países da África e
América Latina, incluindo o Brasil. Ganhador do Prêmio Nacional de Segurança Alimentar da Fundação Bungue (São
Paulo). Distinguido com o prêmio Anísio Teixeira da Capes (MEC) 2016. Atualmente é docente da pós-graduação em
Saúde Integral Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira-IMIP. Tem experiência na área de Nutrição, com
ênfase em Epidemiologia da Nutrição, atuando principalmente nos seguintes temas: estado nutricional da população,
anemia, deficiência de vitamina A, alimentação e meio ambiente, políticas e programas de nutrição. (Texto informado
pelo autor e disponível para acesso em: http://lattes.cnpq.br/6920886439060825)
No entanto, para além da análise do Fome Zero enquanto ideia-força que possibilitou a criação
e efetivação de uma política específica de governo, na compreensão e análise da trajetória deste
programa a fome tem sido concebida como uma categoria extremamente relevante e em constante
disputa. Segundo as autoras mencionadas acima, “a fome aparece nos discursos para angariar apoio
político. Seu uso em detrimento da campanha pela Segurança Alimentar e Nutricional foi feito em
conjunto com imagens da seca e figuras como Betinho” (Tomazini e Leite, 2016, p.26). Em uma
entrevista feita com o professor Walter Belik (Diário de campo, setembro de 2015), um dos
idealizadores do programa, este também afirmou que durante as reuniões com o marqueteiro do
governo na época, após longas explicações acerca da importância da discussão sobre segurança
alimentar, foi decidido que fome seria uma ideia ou conceito muito mais acessível e capaz de unificar
o discurso e as ideias presentes no programa Fome Zero.
Essa fome, vista como um conceito se mostrava claramente como um objeto capaz de
promulgar uma realidade específica, primeiramente associada com questões claramente sociais, isto
é, a pobreza, a dificuldade de acesso aos alimentos, e a falta de trabalho e renda. Todavia, essas
questões estavam, de acordo com Tomazine e Leite (2016), diretamente associadas com um conjunto
de ideias mais intervencionistas do ponto de vista econômico, o que não se articulava bem com as
ideias dominantes do paradigma do capital humano9, compreendendo objetivos bem amplos e ações
em várias temporalidades.
Assim, para além da clivagem que ocorreu em meio aos próprios idealizadores do programa,
a ideia de fome foi se definindo como um discurso capaz de abarcar distintas políticas públicas, e
associa-las a uma só mazela social. Isso, pois, “ainda que a maioria da população em extrema pobreza
9 Segundo Tomazine e Leite (2006), o paradigma do capital humano compreende a pobreza a partir de um
sentido individual, que precisa ser combatida através de diferentes frentes que são alinhadas em diferentes
temporalidades. Assim, segundo Frei Betto: “ao descartar o Fome Zero e optar pelo Bolsa Família, o governo federal
escolheu o pacto federativo em detrimento da mobilização da sociedade” (Tomazini e Leite, 2016, p.26).
Entretanto, após o lançamento do programa, ou talvez da ‘marca’ Fome Zero, a categoria fome
foi se diluindo em diversas esferas, ficando restrita, na maioria dos casos, aos sujeitos que passaram
a reivindicar seus direitos em relação a uma alimentação adequada. Segundo Tomazine e Leite,
“talvez a utilização do termo ‘fome’ pode ter contribuído à incompreensão quanto aos objetivos do
programa e ao apelo ao direito à alimentação” (2016, p.26).
O objeto fome começa a apresentar aí seus ruídos e a mostrar que muitas vezes, ele não pode
ser totalmente coordenado para se tornar um. E é na prática que essas tentativas de coordenação
emergem. Quando o programa Fome Zero, se transforma de uma ideia em diversas políticas
coordenadas por um ministério, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (extinto
MDS), essa fome até então promulgada, precisa ser articulada com a fome alvo das políticas públicas.
É possível pensar, então, a saúde pública como um coordenador desta multiplicidade de fomes
e de todas essas realidades. No entanto, para que a fome possa ser compreendida através dos
Somente através de um exame clínico, o qual envolve o cálculo do índice de massa corpórea
11
(IMC) , ou ainda a avaliação de crescimento normal (dentro da média) no caso de crianças e
adolescentes, que se pode diagnosticar a desnutrição. Para se tratar de uma epidemia, como a fome
era vista na época do lançamento do Fome Zero, essa fome promulgada pelos exames clínicos não
fornecia elementos significativos que justificavam as políticas criadas. Além disso, não seria possível
encontrar evidências de que certas políticas tiveram influência direta na alteração do quadro da
desnutrição no Brasil.
10 Ver: Mol, Annemarie & Law, John. 1994. “Regions, Networks and fluids: anemia and social topology”.
Social studies of sciences, vol. 24, nº4.
11 O Índice de Massa Corporal é uma medida utilizada para medir a obesidade adotada pela Organização Mundial
de Saúde (OMS). É o padrão internacional para avaliar o grau de obesidade. Hoje em dia, o IMC é utilizado como forma
de comparar a saúde de populações, ou até mesmo definir prescrição de medicações. Disponível em:
http://www.calculoimc.com.br/o-que-e-imc/ Acessado em:10/04/2017
12 A avaliação da condição nutricional aplicada em estudos populacionais quase sempre utiliza dados
antropométricos associados ou não a inquéritos alimentares e exames bioquímicos. Na avaliação individual, os
seguintes parâmetros devem ser levados em conta: 1. Anamnese clínica e nutricional (quantitativa e qualitativa). 2.
São as nutricionistas13, enquanto o saber legitimado para tratar da nutrição ou falta de nutrição
de um corpo, que organizam os indicadores e medidores possíveis de alcançar a fome enquanto
sinônimo de desnutrição, sendo que por uma questão financeira e de tempo é impossível a realização
de exames laboratoriais que tragam as informações necessárias para a constatação desta fome.
Foi nesse contexto que a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) foi pensada e
criada. De acordo com seus criadores, a EBIA “é um instrumento auxiliar das políticas públicas de
combate à fome no Brasil, que permitiu o primeiro diagnóstico nacional de acesso à alimentação em
termos de qualidade e quantidade” (Correa, 2007. p. 143). A partir desta escala outra fome passou a
compor a fome múltipla.
Segundo Correa (2007), no pós-segunda guerra mundial, a Organização das Nações Unidas
para Alimentação e Agricultura (FAO- ONU) propôs indicadores de medida padronizados a partir da
disponibilidade calórica per capita, para acompanhar as tendências históricas e estabelecer conexões
entre países. No entanto, de acordo com os criadores da EBIA (Correa, 2007), com o passar do tempo
houve um aumento na complexidade do conceito de Segurança Alimentar, e com isso a necessidade
de incorporação de outros indicadores.
Exame físico detalhado (busca de sinais clínicos relacionados a distúrbios nutricionais). Aferição dos parâmetros
antropométricos. 3. Avaliação da composição corporal (antropometria e exames subsidiários). 4. Exames bioquímicos.
Disponível em: http://www.sbp.com.br/pdfs/manual-aval-nutr2009.pdf
13 Digo nutricionistas, no feminino, porque em sua grande maioria as nutricionistas são mulheres.
Nesse sentido, assim como propõe Mol (2002), para entender a fome múltipla, é preciso
mobilizar ‘uma ciência social’ que “não é convencional no sentido estrito da palavra”. Aqui, de
maneira análoga com a promulgação da Aterosclerose, analisada e descrita por Mol, pretendo trazer
“uma história sobre práticas. Sobre eventos. Ingredientes heterogêneos que de forma conjunta
permitem falar sobre fome. Sobre o que ela é” (Mol, 2002, p.53).
Dito isso é interessante pensar como o evento de criação da EBIA promulgou uma nova fome.
O saber tecnopolítico da nutrição trouxe mais um ingrediente para a definição de fome, e foi a partir
da segurança alimentar que essa fome passou a ser performada. A segurança alimentar definida como
a garantia a todos os brasileiros de acesso a uma alimentação adequada à sobrevivência e à saúde em
termos de quantidade, qualidade e regularidade (Belik, 2003, p.12), proporcionou o desenvolvimento
de uma escala que além de medir a magnitude do problema da insegurança alimentar na população,
identifica diferentes graus de acesso aos alimentos,
No entanto, a fome que no momento de elaboração do Fome Zero era uma fome
individualizada, como aponta Frei Betto (Tomazine e Leite, 2016, p.26), passou a ser tratada como
um problema de população, principalmente por ser promulgada através da noção de segurança
alimentar, conceito criado nos pós segunda guerra, e diretamente associado a uma crescente
preocupação com a soberania nacional.
A EBIA foi pensada como uma colaboração entre os múltiplos objetos fome, tentando, através
da colaboração de gestores da saúde pública e nutricionistas de diversas universidades do país,
compreender as experiências dos moradores de algumas regiões do Brasil em relação à fome e ao
mesmo tempo analisar a correlação dos gradientes de insegurança alimentar com diferenças de renda.
As diversas fomes performadas aí tiveram que ser coordenadas pelos criadores dessa escala, que
concluíram que “a insegurança alimentar grave seria uma restrição quantitativa importante de
alimentos, permitindo concluir a existência da fome” (Correa, 2007, p.145).
Nesse sentido, coordenar a fome, como insegurança alimentar, em relação à fome como
dificuldade de acesso aos alimentos por falta de renda, ou situação de pobreza e miséria, bem como
a fome enquanto experiência individual, promulgou assim uma outra fome, a fome como medida para
verificação das políticas públicas associadas ao Fome Zero. Isso, pois, de acordo com a definição de
segurança alimentar adotada pelo programa, “se considera socialmente inaceitável que as pessoas
vivam longos períodos sustentadas por cestas básicas, outros tipos de ajuda ou outros arranjos.
Quando se discute segurança alimentar, o que está implícito é que haja condições de vida e condições
nutricionais adequadas” (Correa, 2007, p.144).
Nesse momento, outra fome é articulada na criação da fome múltipla: a fome experiência. E
é exatamente nesta ocasião que a etnografia passa a ser incorporada na performance da fome. No
entanto, essa experiência da fome que é “tomada como medida valiosa de segurança alimentar”
(Correa, 2007), é coordenada pelas nutricionistas que associam a etnografia como uma possibilidade
de transformar a experiência individual de um corpo que passa fome em uma experiência de um grupo
específico de pessoas, com características culturais marcadas.
A fome no Fome Zero é múltipla de acordo com suas localizações geográficas, mas
principalmente em sua temporalidade. A partir do momento em que a fome, enquanto epidemia
comprometedora da soberania de um país, foi de certa maneira erradicada14 , e a fome enquanto
experiência individual não pode ser medida como instrumento de saúde pública, é a fome em
situações culturais específicas que passa a ser performada.
Tendo em vista que “a percepção é um fenômeno subjetivo, mas pode ser objetivamente
quantificada e usada como recurso de monitoramento” (Correa, 2007, p.147), os gestores da saúde
pública passaram a incorporar descrições e perguntas ‘etnográficas’ como um instrumento de controle
da realidade, e assim uma nova realidade da fome é promulgada. Esse momento que poderia ser um
momento de ruído entre as fomes, foi coordenado de tal forma que o domínio da experiência
14 O Brasil saiu, no ano de 2014, do mapa da fome. Segundo o relatório desenvolvido pela Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola
(FIDA) e pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA) “nos últimos 10 anos, o Brasil reduziu pela metade a parcela da
população que sofre com a fome. Os órgãos da ONU destacaram que a taxa de desnutrição no Brasil caiu de 10,7% para
menos de 5% desde 2003 (Kepple, 2014). Em comunicado oficial, Tereza Campello, ministra do Desenvolvimento
Social, sustentou que isso foi possível “graças a um conjunto de políticas públicas que garantiram o aumento de renda
dos mais pobres e um aumento da oferta de alimentos, que consolidaram a rede de proteção social” (Portal Brasil,
2014).
O presente texto tem como proposição central, através de uma etnografia da fome como
múltipla, demarcada temporalmente e territorialmente pela trajetória do programa Fome Zero,
mostrar como a etnografia de políticas públicas de combate à fome se tornou um estudo sobre a
coexistência de múltiplas entidades, nomeadas (muitas vezes) da mesma maneira (Mol, 2008). E que
assim, no decorrer da etnografia de uma prática, isto é, a elaboração, aplicação e avaliação de políticas
públicas, um objeto aparentemente único, ou talvez um objeto visto como interdisciplinar ou ainda
híbrido, foi descrito e analisado como parte das práticas nas quais ele é promulgado (Mol, 2008).
Nesse sentido, a própria fome e suas tecnicalidades, mostram que “em seus detalhes mais
íntimos não são somente tecnicamente determinadas” (Mol,2002), isto é, mesmo os saberes técnicos
que promulgam a fome dependem de questões sociais, como as praticalidades, contingências, poder
e tradições.
Assim, a fome promulgada no Fome Zero, em todas as suas multiplicidades, se coloca como
um objeto ímpar para a compreensão da criação de políticas públicas no Brasil, principalmente
aquelas que se propõem como um caráter amplo e interdisciplinar, além de ser também um locus
privilegiado para entender como se dão as dinâmicas de feitura do próprio Estado, sem deixar de lado
hierarquias de poder, construções de conhecimento e criação de sujeitos de direito. A fome que
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15 Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estudante
associado ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT) da mesma universidade. E-mail:
wittmann.marcus@gmail.com
“O arqueólogo é como Midas, tudo que ele toca vira patrimônio”. Essa frase foi dita por um
arqueólogo que trabalha há mais de uma década em projetos de licenciamento ambiental no Rio
Grande do Sul durante uma entrevista a qual foi concedida para a pesquisa de Mestrado aqui
apresentada. Nessa passagem talvez tenhamos o melhor resumo sobre o tema desse artigo, em onze
palavras é abordado a questão da constituição de uma entidade por um cientista e o valor que essa
pode ter. Contudo, o arqueólogo entrevistado também apontou para a problemática da divulgação e
extroversão desse patrimônio, de sua importância, seu valor, sua história e sua própria existência.
Esse jogo entre constituição “científica” de um patrimônio cultural e sua constituição como um bem
cultural visível nos faz adentrar na relação entre ciência e estado.
Essa relação entre poder estatal, história de um país e a ciência arqueológica se mantém até
os dias de hoje, todavia agora ela ocorre de maneira um pouco diferente. As pesquisas arqueológicas
A pesquisa aqui apresentada faz parte de uma dissertação que está em processo de escrita,
sendo assim os dados e resultados ainda são preliminares. As informações e as análises aqui
apresentados são referentes as entrevistas feitas com arqueólogos que atuam no estado do Rio Grande
do Sul e ao estudo de documentos burocráticos que constituem uma das etapas do fazer arqueológico
no licenciamento ambiental. A primeira parte desse artigo se focará em uma antropologia da
burocracia, dos documentos e da ciência, lançando luz em algumas ideias básicas para a análise aqui
proposta. Na segunda parte focaremos nosso olhar nos documentos jurídicos e legislativos que
abrangem os conceitos de patrimônio e sítio arqueológico e como eles atuam na constituição de
relatórios técnicos.
Um dos conceitos chave para pensarmos o tema proposto vem dos estudos antropológicos
sobre a Ciência, as Redes Sóciotécnicas. Latour propõe entender as relações entre os diferentes
agentes que compõe o campo científico, sejam eles humanos (os atores) ou não humanos (os actantes),
através de uma rede que os interliga. Em termos analíticos isso leva nosso olhar não apenas aos atores
propriamente ditos, mas também aos efeitos que causam e a Rede como um todo. Deste modo,
transitamos entre o Ator e a Rede, entre aqueles que atuam e produzem efeitos e os modos de
deslocamento e abrangência destes (LATOUR, 2011). A questão é não partir de pressupostos, nem
de agência nem de efeitos, mas sim descrever e justificar essas agências e esses efeitos produzidos
pelos atores e como ocorre sua circulação nessas Redes Sóciotécnicas. A análise do que transita entre
os pontos da Rede, os aliados humanos e não-humanos angariados pelos diferentes atores e como as
assimetrias de poder, estabilizações e “caixas-pretas” são produzidas, podem nos abrir caminhos
importantes para entendermos as relações de poder, os interesses em jogo e como objetos, produtos
e conhecimentos são construídos ao longo dessas Redes (DOMENECH, TIRADO, 1998; CALLON,
LAW, 1998).
Os documentos que serão aqui analisados podem ser tanto denominados como actantes, ao
participar e ter efeitos nas redes, mas também como artefatos, no sentido dado por Strathern, como
constituidores de corpos, pessoas, sentimentos e entidades (STRATHERN, 2014). Essas entidades,
no caso, o patrimônio arqueológico, também atuam como atores na rede, passando por processos de
mediação. Sendo a ação compartilhada pelos diversos actantes e atores, não sendo responsabilidade
única de um deles, a constituição dessas entidades é mediada por relações de simetria e hibridismo
entre esses agentes (LATOUR, 1994). Não são apenas os documentos legislativos que formam o
“patrimônio cultural material”, mas sim essa rede que abarca outros agentes como os arqueólogos, o
IPHAN e o próprio sítio arqueológico em si. Contudo, aqui teremos que recortar essa rede, nos
focando apenas em alguns dos atores e suas ações constitutivas.
Das Redes Sóciotécnicas, partimos para uma análise do método científico, pesquisando como
fatos e entidades são formados através e por ele. John Law (2004) procura refletir sobre como pensar
o método dentro de um mundo que não é singular, estático e linear, mas sim, confuso, múltiplo e
fluído; ou seja, Law desconstrói a visão metafísica euro-americana vendo e discutindo como o método
Para adentrarmos mais a fundo na máquina estatal e sua burocracia, devemos olhar para os
atores que atuam e performam ela. Gupta (2012), analisando o contexto indiano, mostra como a
relação entre a racionalização do poder, ou seja, a arbitrariedade do processo burocrático é
emaranhada com a contingência, com o caos. Dessa situação, nota-se que a burocracia, no que tange
os agentes burocratas, a comunicação entre eles, os locais de atuação, os processos e formulários e a
relação e atuação da população pobre, é um aparato dito “racional” no qual nem sempre as decisões
são tomadas por meios racionais, puramente “técnicos” (GUPTA, 2012, p. 14). Na perspectiva dessa
pesquisa, entender o modo de atuação do IPHAN, como uma instituição, e também de seus técnicos
e arqueólogos, como cientistas e burocratas, é de extrema importância para pensarmos os caminhos
e interpretações que constituem um patrimônio arqueológico.
Refletindo acerca da burocracia, podemos olhar tanto para seus atores e suas relações
interpessoais, como Gupta faz, quanto para os documentos burocráticos utilizados e construídos por
esses atores. Esta última proposta é a que Hull (2012) se propõe a fazer. Quebrando com a perspectiva
antropológica de estudar aqueles atingidos pela burocracia, propõe analisar os documentos em si,
tanto em suas características formais, imagéticas, materiais e textuais, ou seja, como documentos
gráficos, quanto seu processo sócio técnico de produção. A proposta é olhar para e não olhar através
dos documentos. Deste modo, pensa esses documentos como mediadores, criando uma relação de
transformação, distorção, tradução, modificação entre aquilo que pretendem descrever e as
instituições, órgãos, agentes e o Estado que se apropriam desses documentos. Dentro dessa
perspectiva, Hull resgata a materialidade desses documentos, indo além do texto em si, pensando
também arquivos, gráficos, formulários, entre outros. Logo, nota-se esses documentos como
formadores de leis, normas, ideologias, conhecimentos e práticas burocráticas, e não apenas como
instrumentos dessa lógica. Os documentos burocráticos, na visão de Hull, são formadores de
sociabilidades, no que tange a organização e controle do Estado e de instituições. Deste modo eles
A legislação vigente pressupõe definições para o que é patrimônio cultural e o que é um sítio
arqueológico, definições essas que possuem intrinsicamente nelas uma metodologia de pesquisa pré-
estabelecida. A arqueologia nesse contexto não é meramente um fazer científico, mas também um
fazer burocrático, saber escavar um sítio é tão importante quanto saber preencher uma ficha de
registro. Sem ela aquele não é legível para o estado, ele não existe. Analisaremos a seguir alguns
documentos legisladores que tratam a respeito do patrimônio arqueológico no âmbito brasileiro e
quais seus efeitos no fazer cientifico no licenciamento ambiental.
Patrimônio nesses diferentes documentos, contextos, práticas, saberes e fazeres aparece como
uma caixa-preta, no sentido latouriano (2011). Ele é um objetivo, um fim, a ser alcançado, mas sua
definição é fugaz. Analisando os diferentes documentos legisladores que abarcam o patrimônio
cultural brasileiro, nos deparemos com termos como “bem cultural material”, “bens arqueológicos”,
“bens tombados”, “bens valorados”, “bens registrados”, dentre outros. São esses documentos e esses
termos que apresentaremos a seguir. Não serão analisadas as cartas patrimoniais, por se tratarem de
documentos não legislativos, por serem internacionais e pelo grande número delas.
17 O Decreto 6844 de 2009, o qual estrutura o regimento interno do IPHAN, utiliza essa mesma definição para o
patrimônio cultural material brasileiro.
18 A Constituição Federal de 1988 abrange assim um escopo maior do que seria um sítio arqueológico, abrindo
espaço para concepções não apenas de uma arqueologia “pré-histórica”, mas também “histórica”, urbana e de
quilombos.
As fichas informam os diferentes nomes dos sítios arqueológicos, como o cadastro em uma
instituição, no IPHAN e um nome popular, por exemplo. O primeiro item para ser preenchido na
ficha de registro é uma descrição sumária, na qual devem ser inseridas as “características
morfológicas e culturais observáveis sem intervenção”. Essas duas informações são as mais
A terceira parte, por assim dizer, da ficha é reservada para informações sobre a salvaguarda
do sítio arqueológico. Deve se informar o “grau de integridade” do mesmo, o qual varia apenas entre
três opções: menos de 25%; entre 25% e 75%; mais de 75%. Os “fatores de destruição” do sítio devem
ser indicados respeitando a divisão entre fatores naturais e antrópicos, como: erosão eólica; erosão
pluvial; erosão fluvial; construção de estradas; vandalismo; atividades agrícolas; construção de
moradias; outros. Além disso, as “possibilidades de destruição” também devem ser listadas, estas
geralmente são ligadas a empreendimentos que ocorrerão na área. O arqueólogo responsável pelo
preenchimento da ficha de registro tem espaço para indicar “medidas para preservação” do sítio
arqueológico, o efeito prático dessa opção é desconhecido. O último item dessa seção é “relevância
do sítio”, a qual possui as opções “alta”, “média” e “baixa”. A importância do sítio arqueológico é,
segundo o que consta no manual de preenchimento, “diretamente proporcional ao seu estado de
conservação, ao seu potencial científico - presença de material orgânico, esqueletos, profundidade
temporal grande, arte rupestre, etc. – e à importância que lhe é atribuída pela comunidade”. Como
vimos anteriormente na legislação acerca do patrimônio arqueológico, este era indicado como
possuindo gradações de importância e relevância para a sociedade brasileira, é na ficha de registro de
sítios arqueológicos que vemos como isso é calculado e quais fatores são levados em conta. Como
pode-se ver, primeiramente o estado de conservação do sítio é o indicador para sua preservação,
Das diversas fichas de registro consultadas para o estado do Rio Grande do Sul pelo site do
IPHAN, nota-se que a maioria das informações não está preenchida. Geralmente se encontra apenas
as diferentes denominações do sítio, o material encontrado (cerâmico ou lítico), a filiação cultural, o
grau de integridade e o pesquisador responsável pela pesquisa.
Em 18 de maio de 2016 foi promulgada a portaria 196, a qual rege sobre outra ficha de
cadastro, dessa vez a de “bem arqueológico móvel”, ou seja, os artefatos recolhidos de um sítio. O
anexo II da portaria consiste na ficha em si e as especificações de seu preenchimento, a qual aprofunda
as especificações da cultura material já identificada na ficha de registro de sítio arqueológico. Os
“bens arqueológicos móveis” são identificados por categorias e sub-categorias. As primeiras são: 1)
artefato; 2) ecofato; 3) bioarqueológico; 4) estrutura/feição; 5) sedimento/solo; 6) arqueobotânico; 7)
zooarqueológico; 8) outro. Já as subcategorias são divididas em: 1) construção/arquitetônico; 2)
insígnias; 3) Objetos cerimoniais; 4) transporte; 5) objetos pessoais; 6) Castigo/penitência; 7)
Medição/registro/observação/processamento; 8) embalagens/recipientes; 9) amostras/fragmentos;
10) alimentação; 11) medicinal; 12) pintura; 13) escultura; 14) indeterminado; 15) outros. Nota-se
que não há definição exata de cada categoria e sub-categoria, todavia elas inserem opções que são
mais voltadas para uma interpretação do bem cultural, e não apenas para sua tipologia, como na ficha
de registro de sítio arqueológico. Esse documento abre mais espaço também para o registro de
artefatos arqueológicos “histórico” ou “urbanos”, tanto em suas categorias quanto nas opções de
materiais, as quais são: 1) borracha; 2) carvão; 3) cerâmica; 4) faiança; 5) porcelana; 6) couro; 7)
fóssil; 8) lítico; 9), madeira; 10) malacológico; 11) metal; 12) osso; 13) papel; 14) sedimento; 15)
plástico; 16) têxtil; 17) flora; 18) fauna; 19) vidro; 20) indeterminado; 21) outros. Esse maior grau de
especificidade acerca dos artefatos é refletido também nas opções das “técnicas de produção”: 1)
lascado; 2) perfurado; 3) taxidermizado; 4) forjado; 5) picoteado; 6) polido; 7) modelado; 8) roletado;
9) torneado; 10) moldado; 11) tecido; 12) assoprado; 13) fundido; 14) indeterminado; 15) outros.
Além da técnica de produção deve se indicar o tipo de decoração que a pela possui, podendo ser: 1)
alisado; 2) brunido; 3) corrugado; 4) escovado; 5) ungulado; 6) incisão; 7) impressão; 8) plástica; 9)
Mais para o final da ficha encontramos as opções acerca do “estado de conservação” dos bens
culturais, os quais, diferentemente da ficha de registro de sítio arqueológico, não estão divididos por
porcentagens, mas sim qualitativamente em quatro níveis: Bom (sem deterioração); regular (não
compromete o todo. Ex.: fissuras, esmaecimento, afloramento de sais, esfarelamento etc.); Ruim
(compromete o todo. Ex.: quebradiço, com manchas, alto grau de corrosão); Péssimo (perdas
irreversíveis). Nessa seção pode se indicar também quais intervenções de higienização, restauro e
estabilização já forma efetuadas nas peças e quais recomendações de conservação são indicadas. As
duas últimas categorias de cadastro da ficha de bens arqueológicos móveis são, curiosamente, duas
informações de grande importância nas fichas de registro de sítios: a filiação cultural das peças, na
qual não há opção pré-definida a ser preenchida, e as medidas do objeto.
Esse maior grau de definição das características dos bens arqueológicos não são apenas reflexo
de uma política de salvaguarda, mas também remetem às pesquisas no licenciamento ambiental que
cada vez mais trabalham em áreas urbanas, as quais não possuíam tanto escopo nos registros
anteriores. Além disso, essa ficha de cadastro atua como uma ferramenta de controle do saber
arqueológico produzido no licenciamento ambiental, pois define o mínimo a ser descrito e analisado.
Mínimo que geralmente também é o máximo que se faz nesses casos. Essa prática de identificação,
registro e cadastro através do preenchimento de lacunas em fichas é nomeada por alguns arqueólogos
como uma “arqueologia burocrática”.
Emaranhando conclusões
A ciência arqueológica nunca esteve fora do estado, participa desde seu início na constituição
diária e constante dele. Não foi através das pesquisas arqueológicas obrigatórias para o licenciamento
ambiental que uma nova lógica teórica e metodológica surgiu na arqueologia. Claro que o crescimento
do mercado profissional dentro desse contexto modificou vários pontos no que concerne a formação
de arqueólogos no Brasil, seja o surgimento de diversos cursos de graduação e pós-graduação, seja
um novo corpo legislativo e jurídico acerca da prática arqueológica para com o patrimônio. Todavia,
a arqueologia é uma ciência de identificação de bens culturais materiais nacionais, seja em pesquisas
Na definição dos arqueólogos entrevistados para o que seria um sítio arqueológico não
aparece, por exemplo, as questões de formação da sociedade brasileira, mas sim dados mais voltados
para o contexto arqueológico e sobre a ocupação de uma certa região por grupos humanos. Nesse
sentido, podemos pensar que o conceito e definição de patrimônio, bem cultural e sítio arqueológico
não se encontra nas legislações, as quais são bem vagas nesse sentido, mas sim em um processo de
constrangimento burocrático através de documentos que possibilitam que eles “existam”
materialmente e sejam legíveis para o estado, ou seja, nas fichas de registro. Contudo, a constituição
de uma entidade como o patrimônio em um documento burocrático a faz legível para o estado, mas
não necessariamente legível e visível no estado. A constituição desse bem cultural, como um
patrimônio no sentido lato, para a população local transcorre por outras negociações. Aqui estamos
levando em conta que um patrimônio específico não seja valorado e (re)conhecido pela população,
como é o caso de muitos sítios arqueológicos.
Vemos assim como a legislação estatal, vinculada a um instituto ligado ao patrimônio, história
e artes, constrói um certo tipo de patrimônio. Apontamos também para o fato de que quem analisa
esses registros, tanto as fichas quanto os relatórios técnicos são arqueólogos do IPHAN. O diálogo
interpretativo, deste modo, é travado entre cientistas, os quais possuem suas diferentes visões teóricas,
interpretativas e metodológicas, todavia restringidos, em diferentes graus, por uma certa arqueologia
preconizada pelos documentos legislativos e burocráticos. A proposta etnográfica aqui não é olhar
para o estado como força homogeneizadora e de controle, mas observar os cientistas, os arqueólogos,
que atuam no, para e na margem do estado.
Nessas diferentes disputas entre discursos, saberes e práticas para definir o que é patrimônio
arqueológico e bens culturais notamos que os atores envolvidos mais diretamente são cientistas,
burocratas e empreendedores. A disputa gira em torno de documentos, relatórios, prazos, orçamentos,
interesses políticos e sociais, já as populações locais – sejam indígenas, quilombolas, ribeirinhas,
dentre outras – não participam ativamente na constituição desses documentos, não tem uma agência
simétrica na produção dessas trilhas de papel que, ao fim e a cabo, definem o que é o passado, o que
é a história e o que é a memória. A questão não é apenas a quem pertence o passado e quem o gere
(HAMILAKIS, 2007, p. 26), mas como esse passado é constituído e por quem.
19 Essas atividades variam muito de formato e abrangência dependendo do tipo de empreendimento, do prazo e
do orçamento.
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Resumo: O foco desse trabalho é a análise da produção de uma linha editorial do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea), as Notas Técnicas (NT). Elas são um instrumento considerado objetivo,
pressupõe uma pesquisa realizada anteriormente e têm a finalidade de intervenção em debates
púbicos. A instituição, que passou por uma série de mudanças no período recente, foi fundado em
1964, após o golpe militar, para realizar pesquisas, elaborar propostas de planejamento e
desenvolvimento econômico a longo prazo. Os Técnicos de Planejamento e Pesquisa (TPPs) exercem
um tipo de trabalho sui generis que os diferencia tanto dos pesquisadores acadêmicos, como de
diversos funcionários da burocracia estatal. As diferentes inserções da instituição em públicos alvos
diversos é possível por conta das especificidades de suas linhas editorias. Cada uma delas permite
redes de diálogos específicas e a possibilidade de tradução de um tipo de publicação para outro é um
elemento importante. No caso discutido, a NT é resultado da tradução de parte dos argumentos
produzidos em uma outra linha editorial do Ipea, os Livros. Cada um desses trabalhos possuía
públicos específicos (sociedade e pares, respectivamente) e a transição entre diferentes linhas
editoriais implica em mudanças significativas tanto na forma como na construção dos argumentos.
Introdução
O foco desse trabalho é a análise da produção de uma linha editorial do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), as Notas Técnicas (NT). O Ipea foi fundado em foi fundado em
1964, após o golpe militar, para realizar pesquisas, elaborar propostas de planejamento e
desenvolvimento econômico a longo prazo. Os Técnicos de Planejamento e Pesquisa (TPPs) são a
20 Doutor PPGAS/UnB.
Na ocasião em que o Ipea comemorou 40 anos de sua fundação, em 2004, foi lançado um
livro intitulado “Ipea 40 anos” (D’ARAUJO; FARIAS; HIPPOLITO, 2005). Suas organizadoras
realizaram uma série de entrevistas com “ipeanos ilustres”, de diferentes momentos da instituição.
Uma das perguntas obrigatórias dizia respeito a uma comparação entre os braços do Rio de Janeiro e
de Brasília. Apesar dos TPPs produzirem um conhecimento reconhecido como policy oriented os
depoimentos consolidam a versão de que o braço fluminense realizava pesquisas mais teóricas,
enquanto os da capital nacional fazia trabalhos mais aplicados. Há um consenso entre os TPPs de que
essa oposição perdeu força a partir dos concursos realizados desde os anos 1990. Ouvi referências
21 Esse trabalho foi desenvolvido após pesquisa etnográfica realizada na instituição a partir do projeto “Ipea:
uma etnografia institucional”. Por conta desse projeto frequentei o Ipea durante janeiro de 2014 e setembro de 2015.
Entendo que ao contrário do que alguns TPPs afirmam um trabalho mais voltado para a
academia (teórico) não necessariamente exclui uma atuação que produza trabalhos de intervenção.
Meu esforço nesse trabalho justamente o de mostrar essa dferenciação relaciona-se mais a momentos
diferentes do que dois perfis de TPPs. Ou seja, não dizem respeito a tipos uma vez que um mesmo
TPP pode transitar entre os diferentes formatos.
As diferentes inserções da instituição em públicos alvos diversos é possível por conta das
especificidades de suas linhas editorias. Cada uma delas permite redes de diálogos específicas e a
possibilidade de tradução de um tipo de publicação para outro é um elemento importante. Nesse caso,
tanto a NT como o livro possuíam públicos específicos (sociedade e pares, respectivamente) e a
transição entre diferentes linhas editoriais implica em mudanças significativas tanto na forma como
na construção dos argumentos.
Senso de oportunidade
Nesse caso, o pedido do Diretor Adjunto da Diest foi um disparador do processo, mas
havia alguns outros elementos no contexto. No ano de 2011 um livro com um tema próximo também
foi publicado pela Diest. Seu título era: “Burocracia e Ocupação no Setor Público Brasileiro”(Cardoso
Jr, 2011). O senso de oportunidade sugerido pelo diretor adjunto da Diest não se materializou
unicamente na solicitação ao autor da NT em resumir os argumentos de seu livro. Ele também
solicitou a um segundo TPP, coautor do livro publicado pela Diest em 2011, que atualizasse os dados
referentes a esse antigo trabalho e publicasse uma segunda NT.
Apesar dessa segunda NT não ter se materializado em um texto público, ela faz parte
desse processo. O Diretor Adjunto da Diest expos os argumentos das duas NTs em um seminário
Estão presentes aqui o tom negativo da noção de “politização da gestão pública” e uma
relação direta com baixa eficiência. As noções de técnica e política são acionadas para descrever esse
universo e estão descritas aqui em relação, de forma a problematizar uma separação estanque em
polos opostos. São conceitos analíticos inseridos em um contexto. Nele, a descrição do objeto
analisado e uma proposta de intervenção no universo social estão entrelaçados. Há um desafio
proposto: a combinação ótima entre uma politização (com a garantia de espaço para tomada de
É possível perceber nos cinco capítulos do livro a presença dessa forma de organização
do problema enunciado pelo então presidente da instituição (Jessé Souza). Desse modo, enfatizo que
há um alinhamento quanto aos pressupostos mais gerais dos autores e a visão sobre esse tema por
parte do presidente do Ipea. Digo isso por dois motivos: 1) é legítima para os ipeanos a ausência dessa
relação de alinhamento na ocasião da publicação de livros com o selo do Ipea; 2) o fato de existir o
alinhamento, nesse caso, é fundamental para a efetivação do convite de transformação de parte de seu
conteúdo em uma Nota Técnica.
O convite feito pelo Diretor Adjunto da Diest para a confecção de uma NT indica uma
afinidade tanto no reconhecimento da relevância do tema como em sua abordagem. Ao mesmo tempo,
também esclarece os públicos diferenciados que cada instrumento objetiva atingir. A questão passa
agora a ser: Para quem se fala? Quem são os interlocutores desses instrumentos?
O livro possui um total de nove autores, sendo apenas um deles TPP. Somente pela
informação disponibilizada nas apresentações não foi possível saber se algum deles foi ipeano por
algum período. Dentre as várias formas de pertencimento à instituição, bolsistas e consultores são
algumas delas. Se algum desses autores possuiu alguma dessas categorias temporárias em algum
momento, não julgaram conveniente explicitar. Foi explicitada somente a identidade com sua
instituição de origem.
Um pouco mais à frente no texto são apresentadas dez hipóteses, algumas auto
excludentes. Elas são testadas segundo o modelo econométrico proposto. São trazidas variáveis
dependentes (rotatividade) e explicativas (mudança ministerial, ideologia, efeito do mandato
presidencial, controles básicos dos ministérios, ciclo eleitoral,). Cada um dos termos é destrinchado.
Ainda assim, permanece a questão. Para quem esse instrumento fala? Uma vez que algum
nível de “não ditos”, de termos que não precisam ser explicados, também estarão presentes na NT. A
ideia inicial que lhe fora proposta era de fazer um “resumo” da argumentação do livro, mas a tradução
de um instrumento a outro deu outras ênfases ao produto final. “A NT passou a ser uma coisa diferente
do livro. O que antes era um projeto de sintetizar os argumentos do livro, mostrar o efeito da
rotatividade... No livro, qual é a discussão? A discussão é sobre rotatividade dos cargos. A NT é sobre
profissionalismo do perfil dos servidores. A NT foi ganhando um caráter diferente”.
Como pôde ser visto nesse tópico, a tradução de um texto voltado a uma rede de
especialistas para outro direcionado a um público não especializado é possível e contemplado nas
linhas editoriais do Ipea. Nesse caso o processo de modificações foi além da forma. Na visão do autor,
um resumo do livro seria inadequado, uma vez que o público alvo da NT, não especialista, enxerga o
problema por uma ótica que prioriza outros incômodos.
A diminuição das demandas por relatórios pode ser interpretada como um dos sinais de
afastamento da instituição do círculo decisório e uma aproximação com o tipo de trabalho
desempenhado nas universidades22, se essa for compreendida como um espaço que privilegia o debate
22 Os relatórios são um exemplo desse tipo de relação que desejo realçar, que está em acordo com as versões dos
TPPs acerca das mudanças pelas quais a instituição atravessou, principalmente, desde a década de 1980. Eles podem ter
As NTs são dirigidas à sociedade e os gestores públicos podem ser implicados tanto como
gestores, quanto como membros da sociedade. Ou seja, dependendo das redes pessoais
(personograma) e institucionais que os TPPs acessem ou não no processo de divulgação de uma NT,
seus argumentos podem chegar aos gestores públicos de uma forma direta (por relações prévias
estabelecidas) ou mediada (em que a imprensa é um ator importante). Qualquer que seja o caso, a NT
não terá falado apenas para os gestores, a sociedade foi necessariamente incluída. Assim sendo, ao
atravessar as paredes do Ipea, a NT circula como um documento elaborado por uma instituição que
produz conhecimento de interesse público e que, exatamente por esse motivo, essas publicações
devem atingir o maior espectro de pessoas possível.
Além disso, essa relação indireta entre produções do Ipea e o governo central pressupõe
a existência de um debate em um contexto democrático. Como exposto anteriormente, a confluência
de um tema relevante em discussão na sociedade e uma pesquisa já realizada na instituição
proporciona uma conjunção que pode ser percebida como uma oportunidade que cabe aos ipeanos
sentirem para que um texto de intervenção seja produzido.
A expectativa é influenciar o debate, mas é crucial enfatizar que a meta é descrita dessa
forma por ter como referência um modelo de tomada de decisões que foge ao padrão tecnocrático. O
pressuposto é o de que as melhores decisões serão as resultantes dos debates públicos e não mais
aquelas escolhidas por um conjunto de especialistas em diálogo direto com outros membros do
Estado. Assim, a sociedade é munida de melhores informações sobre os caminhos possíveis para os
rumos do país por trabalhos com o selo do Ipea. Nesse sentido, argumentos técnicos seriam um dos
elementos de pressão da ação política e governamental em uma direção ou outra. Feitas essas
ponderações, passo agora para a interface dessa NT com a imprensa.
sido substituídos por outros instrumentos, mas seria necessário uma análise mais aprofundada de textos correlatos para
compreender a amplitude das modificações introduzidas desses outros potenciais documentos.
Esse foi um diálogo muito produtivo e, mais uma vez, relacionado à especificidade de ter
como objeto de pesquisa interlocutores fluentes em metodologia científica. Nesse caso, um
compartilhar também de categorias sociológicas. Utilizo a noção de “reificado” para indicar uma
contextualização da imprensa como algo externo ao Ipea, que ganha um determinado corpo e possui
o pressuposto de agência.
O TPP concordou com minha leitura e especificou o sentido atribuído à imprensa em sua
fala. Falou de alguns temas que aparecem na grande mídia praticamente sem alteração de
posicionamentos, especialmente de como a acusação de aparelhamento surgia na mídia. O autor da
Nota falava, portanto, sobre o modo como realizava o diálogo com esse interlocutor. Ele dirigia-se a
esse discurso, com tons aparentemente homogêneos, emitidos pelos grandes meios de comunicação.
O tema da NT e a forma como foi escrito estavam diretamente relacionados a isso.
23 Sociedade aqui compreendida como uma categoria nativa descrita na finalidade da instituição, como exposto
do Ipea promulgado em 2010. “(...) oferecer à sociedade elementos para o conhecimento e solução de problemas e dos
desafios do desenvolvimento brasileiro” (artigo 2º).
Existem alguns argumentos que o autor da NT, como pesquisador que estuda um
determinado objeto empírico, considera como importantes e centrais na sua argumentação.
Entretanto, as ênfases encontradas no debate público podem não ser coincidentes com suas opções de
análise. Dessa forma, ao escrever a NT, ele se sente obrigado a desenvolver algumas linhas de
argumentação que não receberam uma grande atenção na ocasião da publicação do livro. Em função
da mudança do receptor da mensagem, uma determinada noção de imprensa, os argumentos do livro
e da NT se diferenciam.
Essa é uma discussão que não está colocada, nesses termos no livro. E nesse caso não
apenas uma questão de ênfase como “rotatividade” ou “profissionalização”, a discussão está ausente.
Esse foi um trecho escrito especificamente para o diálogo com a imprensa, por ser um debate que
acontece nesses termos na imprensa. O autor contrapõe com dados uma discussão que o senso comum
divulgaria sem pesquisas empíricas. A suposta ideia a ser combatida é a de que os DAS são ocupados
por apadrinhados políticos, por pessoas sem capacidade técnica.
24 A matéria “30% dos cargos de confiança federais são de servidores não concursados”, foi publicada em
28/10/2015. http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/10/30-dos-cargos-de-confianca-federais-sao-servidores-nao-
concursados.html (acesso em10/01/2017). (G1, 2015)A manchete atribuída à Folha de São Paulo pelo autor da NT foi
publicada no portal de notícias UOL também em 28/10/2015, vinculado ao jornal paulista. “Presidência tem maior
número de cargos comissionados sem vínculo, diz Ipea”. http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-
noticias/2015/10/28/presidencia-tem-maior-numero-de-comissionados-nao-funcionarios-diz-ipea.htm (acesso em
11/01/2017). (UOL, 2015)
Como Bourdieu (1997) aponta ao descrever o campo jornalístico, seus profissionais são
treinados a escrever notícias que fogem às formulações cotidianas. Essa prática pode ser um elemento
relativizador das noções de boa e má fé. A ênfase em 30% ou 70% também poderia ser lida como a
escolha de uma manchete com tendências mais excepcionais. Correspondem a formas de organização
do pensamento e percepção de mundo daqueles que integram esse universo. Esse seria um motivo a
mais para que o Ipea tenha funcionários lotados na área meio com a função de realizar traduções e
mediações entre o que os TPPs escrevem e publicam.
Entretanto, é interessante notar que mesmo com uma série de críticas quanto a
apropriações indevidas por parte dos órgãos de imprensa, eles permanecem como um interlocutor
válido. Em primeiro lugar, a imprensa é reconhecida no Ipea como o mediador legítimo dos
consumidores de notícias, que também podem ser nomeados por TPPs como a sociedade. Em uma
situação de entrevista, quando conversávamos sobre o tema, um TPP nomeou a imprensa como um
órgão mais “neutro” na divulgação de certas notícias, quando comparado ao governo.
O autor da NT diz que esse não é o seu caso. Em função dessa NT e de pesquisas
anteriormente divulgadas ele concedeu diversas entrevistas, mas faz uma ressalva sobre sua relação
pessoal com o resultado das mesmas. Ele afirma que após concedê-las não verifica a reportagem
Quando discutíamos os possíveis rumos de meu capítulo apresentei a ele uma dúvida em
relação ao possível título do capítulo. Perguntei se a discussão em torno da publicação da NT seria
mais bem representada como: “pesquisa e aplicação a um debate” ou “pesquisa e aplicação e um
debate”. A utilização da preposição “a” ou da conjunção “e” implica uma relação mais ou menos
direta em referência ao debate público. Ou seja, a NT poderia ter uma lógica mais próxima a um
resumo do livro com a conjunção “e” ou de uma intervenção direta com a preposição. Sua resposta
resume essa função do instrumento, mas, além disso, também explicita um tipo de atuação pública
pretendida pelo Ipea.
“(...) agora que estão falando em reforma é um ótimo tema. Mas não só porque
permite você intervir, e aí eu acho que nesse caso era a ‘aplicação a um debate’. Não é ‘e
um debate’. Nesse caso era assim: o debate está em curso, a gente quer intervir e mostrar
que tem argumentos distorcidos. Mas junta-se a isso, é muito importante o senso de
oportunidade. Mais do que você poder intervir em um debate, é o fato de mostrar também
para os órgãos de administração que o Ipea tem coisas relevantes. Está fazendo coisas
relevantes e não deveria ser extinto (risos). Isso é uma coisa importante também. Porque
você quer mostrar sua relevância também. Ao contrário, sei lá... eu imagino... de órgãos
como IBGE, que não precisa... Ninguém fala: ‘vamos extinguir o IBGE’. O Ipea tem
sempre uma discussão, que você viu nessa etnografia. Agora o ministério do
planejamento está discutindo se vai enxugar o Ipea, se vai fatiar o Ipea, se vai manter o
Ipea assim ou assado”. (entrevista com o autor da NT).
O IBGE foi uma instituição escolhida para comparação. Diferentemente do Ipea, ele
possui uma missão claramente definida e considerada relevante. Pode-se discutir se o IBGE cumpre
ou não a missão que lhe foi atribuída, mas não há questionamentos públicos sobre ela. Além de
possuir uma dupla missão ampla, de acordo com os TPPs, o Ipea ainda não tem instrumentos de
medição interna do maior ou menor cumprimento de sua missão de assessoria. Algumas avaliações
são realizadas caso a caso. A título de exemplo, a publicação do “Marco Regulatório das
Organizações da Sociedade Civil”25, implementado oficialmente em janeiro de 2016 pela Presidência
da República, é um dos casos bem sucedidos da atuação do Ipea no papel de assessor do governo.
Alguns TPPs participaram de forma ativa de várias de suas etapas. Do momento inicial até a
materialização como um marco instituído, transcorreram alguns anos de pesquisas, publicações,
discussões e reuniões com diferentes atores envolvidos.
Entretanto, só é possível classificar esse caso como “sucesso” ao olhá-lo do presente para
o passado. No momento em que ipeanos realizavam as primeiras observações nas conferências
nacionais, liam as atas produzidas, testavam correlações, avaliavam medidas efetivamente
implementadas e escreviam textos em que não era possível supor seus futuros desdobramentos
práticos; não era possível estabelecer que aquele trabalho inicial subsidiaria aquelas discussões
Nesse sentido, quando pesquisas realizadas no Ipea são veiculadas pela imprensa o
objetivo de que suas análises e conclusões transpassem as paredes da instituição é cumprido. Boa
parte da relação entre TPPs e integrantes de outros órgãos da administração pública pode ser
compreendida no par: pesquisa e assessoria. A relação descrita por alguns TPPs entre Ipea e
sociedade talvez possa ser definida como pesquisa e comunicados. Esse par é mediado pela imprensa
e é significativo que na última década alguns diretores sejam TPPs reconhecidos pelos demais como
bem sucedidos no diálogo com esse setor. Alguns são descritos como pessoas com “bons contatos na
imprensa”.
Se por um lado houve uma política do Ipea recente em aumentar a interlocução com a
imprensa, outros veículos de informação também passaram a buscar nas pesquisas realizadas fonte
para pautar matérias jornalísticas. Isso é possível de ser percebido a partir dos embargos solicitados
em relação à NT discutida nesse artigo. Assim o autor me explicou o significado da expressão:
“Tem uma coisa que descobri agora chamado embargo. Você sabe o que é
um embargo? Os jornalistas... O Ipea diz: ‘vai sair uma NT sobre nomeações para cargos
DAS’. Tem um monte de jornalistas interessados. Eles falam: ‘quero o texto, me manda
o texto para eu produzir as matérias e tal, tal, tal’. E você dá sob condição de embargo.
Você dá, mas ele só pode ser tornar público no dia da divulgação normal. Quando essa
NT foi lançada parece que tinham 40 embargos. Ou seja, 40 diferentes órgãos de
comunicação já tinham o texto e estavam segurando. Iam divulgar no dia na NT, que é
Dessa forma, a linha editorial NT pode ser compreendida como uma ação do Ipea visando
a publicização de suas pesquisas em consonância com o ideal de pesquisa aplicada. Faz parte dos
direcionamentos priorizados especialmente nos últimos 10 anos. É também uma forma de enfatizar a
relevância da instituição diante de uma missão demasiadamente ampla.
Destaco aqui o lugar de mediador exercido pela imprensa entre os argumentos técnicos
produzidos pelos pesquisadores do Ipea e os potenciais atores que tomarão posição no referido campo
de disputas. Nesse caso, a expectativa é de que uma posição considerada como técnico-científica, e
contrária a facilitar o porte de arma, insira-se no debate. Ao publicizar a pesquisa, os meios de
comunicação de massa mediam o contato entre potenciais atores políticos que poderiam valer-se deles
para contrapor outros atores políticos que desejam facilitar o acesso. Nesse caso, o debate chegou ao
congresso e o pesquisador do Ipea foi um dos especialistas chamados a discutir o tema na comissão
parlamentar que avaliava o assunto.
Uma determinada posição sobre o tema “facilitar ou não o porte de armas”, defendida em
um instrumento institucional (NT), resultado de anos de pesquisas anteriores e com dados atualizados,
esteve presente no debate que deliberou sobre o assunto no Congresso Nacional. Ou seja, um
especialista no tema, um Técnico de Planejamento e Pesquisa, do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada, autarquia então vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos apresentou dados técnico-
científicos que qualificaram a discussão, que introduzem um elemento de pressão sobre a tomada de
decisão. Portanto, através de um TPP, a relevância e importância do Ipea foi reafirmada nesse evento
público.
No Ipea existem algumas versões legítimas sobre o tipo de trabalho que os TPPs
desenvolvem e qual deveria ser o Ipea ideal. É interessante notar que essas versões, mesmo que sob
determinado ponto de vista sejam contrastantes, convivem e cada uma pode ser acionada em
diferentes contextos. Esse TPP repete aqui um modelo de separação ideal, em termos opositivos do
que seriam dois polos de atuação na instituição. Pessoas que se enxergariam em um deles defenderiam
suas opções de práticas institucionais. Em alguma medida esse é o modelo que descreve as atuações
de TPPs no Rio de Janeiro e em Brasília no passado do Ipea. Nesse arquétipo as preocupações estão
colocadas de modo que cada um desses perfis de atuação é realizado por pessoas diferentes.
Entretanto, logo depois de apresentar essa diferenciação, esse TPP lembra outro discurso que constrói
um determinado tipo de TPP ideal. Nele, o pesquisador ipeano congregaria essas duas facetas em um
mesmo corpo. Depois de apresentar esse segundo modelo, esse TPP inicia uma reflexão em seus
próprios termos:
“TPP: coloco de forma contrastada. Eu acho que existe. Mas existem pessoas aqui dentro
que defendem que o contraste não existe. Existem os dois altamente misturados na prática.
E que as duas coisas só podem ser bem feitas se misturados. Embora eu acredite que viva
um dilema entre esses dois pontos, eu não acho que se misturam muito bem.
TPP: mistura se você olhar para trás em longos períodos. Mas hoje não. Hoje é
competição por tempo e recursos escassos. Ou estou escrevendo artigo para ser publicado
em periódico. Ou um relatório que vai ser lido por burocratas. São coisas muito diferentes.
Coisas que exigem estratégias, linguagens.. imaginações.. diferentes”. (Entrevista, TPP).
Essa é uma análise que trata da execução de dois perfis ideais de ipeanos passível de ser
vivenciado em momentos temporais diferenciados. No entendimento desse TPP, em um primeiro
momento o trabalho de um ipeano seria o de compreender determinado fenômeno, e isso
Como mostrei no caso da NT, diálogos com o universo acadêmico são ainda importantes,
mas dele podem ser produzidas publicações voltadas a um universo de não especialistas. Nesse
sentido, a vocação aplicada do Ipea seria exercida em meio a processos de tradução de um tipo de
linguagem para outra. Nessas transformações, não apenas a linguagem e a forma são modificadas,
mas também diferentes públicos atribuem pesos desiguais a um mesmo objeto. Desse modo, um livro
construído sobre a “rotatividade dos cargos de confiança” transformou-se em uma NT sobre a
“profissionalização” da burocracia brasileira. Esse trabalho criativo de tradução foi resultado de
trabalhos em temporalidades diferentes. O TPP que o produziu o reconheceu como fruto de esforços
intelectuais de tipos distintos e subsequentes. O ideal do Ipea de produção de conhecimentos para a
intervenção foi atingido com sucesso, se a meta for sua publicidade e o alto grau de inteligibilidade
(suposta) para seu público-alvo (os gestores públicos).
Bibliografia
BRASIL. Dilma anuncia reforma com redução de oito ministérios e corte de 3 mil cargos
comissionados. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/governo/2015/10/dilma-anuncia-
CARDOSO JR, J. C. Burocracia e ocupação no setor público brasileiro. Rio de Janeiro: Ipea,
2011.
D’ARAUJO, M. C.; FARIAS, I. C. DE; HIPPOLITO, L. (EDS.). IPEA 40 anos: uma trajetória
voltada para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2005.
G1. G1 - 30% dos cargos de confiança federais são de servidores não concursados - notícias
em Política. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/10/30-dos-cargos-de-
confianca-federais-sao-servidores-nao-concursados.html>. Acesso em: 10 jan. 2017.
LOPEZ, F. G. Evolução e perfil dos nomeados para cargos DAS na administração pública
federal (1999-2014): Nota Técnica. Brasília: Ipea, out. 2015b. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/151209_nota_tecnica_cargos_de
_confianca_final.pdf>. Acesso em: 1 out. 2017.
Resumo
O artigo se insere no campo dos estudos sociais das ciências da conservação e discute as incertezas
na produção de conhecimento em ciência pesqueira e suas consequências na organização de políticas
de conservação marinha no Brasil. Para isso segue a controvérsia científica sobre o estado atual dos
estoques pesqueiros e demonstra que, apesar do argumento da existência de uma crise ecológica
marinha global ser incerto e questionável, ele tem direcionado as políticas de conservação no país e
gerado embates entre segmento pesqueiro e órgãos ambientais. A relação entre essa controvérsia
global e os embates nacionais ficou evidente com a publicação da Portaria MMA 445/2014, que
proíbe a captura e comércio de 475 espécies de peixes e invertebrados marinhos considerados
ameaçados de extinção pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). A análise das tensões e disputas
no Brasil evidenciou forte influência do argumento da crise ecológica marinha global sobre as
decisões políticas do MMA. Na opinião de pesquisadores e ambientalistas, a carência absoluta de
informações sobre a biodiversidade marinha no Brasil tem gerado um padrão de comportamento das
agências governamentais, as quais seguem tendências internacionais a partir do estabelecimento de
medidas emergenciais de restrição à pesca, sem considerar os reflexos sociais negativos dessas
imposições. Por fim se discute o papel do Estado na promoção de um ambiente informacional local
contínuo e estável capaz de embasar decisões políticas de conservação marinha consistentes e
adaptadas à realidade brasileira.
26
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de
Santa Catarina (CFH/UFSC) e Pesquisadora do Instituto de Pesquisa em Risco e Sustentabilidade (IRIS) da UFSC.
andrezamartins@hotmail.com
27
Professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC (SCP/UFSC) e coordenadora do IRIS.
Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. juliaguivant@gmail.com
1 - INTRODUZINDO O TEMA
Brasil, janeiro, verão de 2015
Vamos cuidar e proteger o mar, sim, mas com Não houve transparência por parte do
pesquisas sérias. Se nos provarem que essas ministério em relação às informações
medidas estão corretas, apoiaremos. Mas não pesquisadas e o que foi divulgado nos
podem nos empurrar goela abaixo uma lei relatórios não é a realidade das pesquisas a
sem que sejamos ouvidos (Pedro Marins, bordo feita pelo SINDIPI em parceria com
Presidente Colônia de Pescadores Z13 de a Universidade do Vale do Itajaí (Univali)
Copacabana)28. (O SOL DIÁRIO, 2014).
28
Entrevista disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-01-06/portaria-do-ministerio-do-meio-
ambiente-revolta-pescadores-de-todo-o-brasil.html, Acessado em 14 de abril de 2017.
Os manifestantes pediam a revogação da 445 que, segundo eles, prejudica a atividade do setor
que emprega, aproximadamente, 60 mil pessoas em Santa Catarina e produz cerca de 25% do pescado
in natura e 80% do pescado congelado consumido internamente no país. Para o presidente do
SINDIPI, a portaria compromete 50% do volume de pescarias na região litoral Norte de Santa
Catarina, maior polo de pesca industrial brasileiro (O SOL DIÁRIO, 2015a, b). Ele questiona “toda a
lista, pois [...] as pesquisas foram feitas dentro do escritório, queremos que a pesquisa seja feita com os
recursos abundantes no mar” (G1, 2015).
29
Roberta Aguiar dos Santos, representante do CEPSUL/MMA, “A pesca extrativa marinha e as licenças de
pesca”, Seminário Novos Rumos para Pesca Industrial, organizado por SINDIPI, 24 de junho de 2015.
O MMA cedeu aos protestos do segmento produtivo e constituiu um Grupo de Trabalho (GT)
composto por integrantes do antigo Ministério da Aquicultura e Pesca (MPA), especialistas em
ciência pesqueira e representantes dos sindicatos dos pescadores (artesanais e industriais) e dos
trabalhadores dos transportes aquaviários para revisar a portaria 445. O GT não conseguiu chegar a
um acordo e a Justiça Federal foi chamada para decidir sobre a manutenção ou revogação da portaria.
Em junho de 2015, o desembargador responsável pelo caso sustou a 445/2014, sob o argumento de
que o MMA não deveria ter editado sozinho essa normativa (ECODEBATE, 2015). Desde então, a
445 é alvo de diversos recursos em diferentes instâncias judiciais, movidos por segmentos favoráveis
à manutenção da norma e por aqueles contrários. A última decisão válida até o momento foi publicada
em dezembro de 2016 e determina o restabelecimento da vigência da 445/2014.
Com efeito, a gestão pública marinha brasileira é influenciada por atores e disputas
organizados em espaços transnacionais de ação. O emprego, pelo MMA, de dados e avaliações da
FAO e IUCN para definir parâmetros sobre o estado da fauna marinha no Brasil, revela a influência
dessas agências reguladoras nas práticas nacionais de governança pesqueira. Os diagnósticos da FAO
e IUCN não constituem, entretanto, um consenso dentro da comunidade científica e têm gerado uma
série de publicações discordantes.
Este artigo procura compreender como os conhecimentos e disputas produzidos nos espaços
transnacionais de produção de informação em conservação marinha e ciência pesqueira “navegam”
até os peixes, pescadores e agentes públicos responsáveis pela conservação marinha e manejo
pesqueiro no Brasil. Que tipo de práticas pesqueiras (de gestão, de pescarias, de comércio e de
consumo) são organizadas a partir desses conhecimentos? Seu propósito consiste em evidenciar os
principais elementos subjetivos (lógicas argumentativas, interesses, etc) e objetivos (leis, normas,
Para tanto, seguimos a trajetória das informações produzidas no âmbito das diferentes redes de
pesquisadores implicados na controvérsia sobre a definição do estado atual dos estoques pesqueiros
mundiais, buscando seus rastros no território nacional. A metodologia integra três procedimentos
qualitativos realizados entre 2014 e 2016: análise documental, entrevistas e observação participante.
O artigo está dividido em três partes, além desta introdução e das considerações finais. A
primeira apresenta o referencial teórico que deu suporte às análises. A segunda segue a controvérsia
tecnocientífica em torno das avaliações dos estoques pesqueiros globais. Por fim, a análise se volta
para o caso brasileiro e discute os limites da adoção dos macro-diagnósticos produzidos pela FAO e
IUCN para a promoção de políticas de governança marinha no Brasil que favoreçam,
concomitantemente, a conservação dos estoques pesqueiros e a democratização do acesso a esses
recursos.
Entretanto, essa é apenas uma das distintas realidades engendradas pela questão pesqueira e,
por este motivo, não pode ser tomada como única. No que se refere ao campo teórico de produção de
informação e conhecimento, diferentes perspectivas teóricas têm sido adotadas para o estudo das
tensões e disputas internas ao campo científico, a exemplo da sociologia crítica de Pierre Bourdieu
(1983; 1994), da arqueologia do saber de Michel Foucault (1995) e do enfoque dos estudos sociais
da ciência e tecnologia, ou Science and Technology Studies (STS) dentre outros. Nossa análise, está
Como uma alternativa a esse modelo representacional, alguns estudos propuseram um olhar
diferente sobre as relações entre natureza e cultura a partir da análise da dimensão ontológica da
“realidade” prática. Questões como, qual a origem, quem cria, quando e onde começou “a realidade”
ou “o real” são centrais e aparecem diretamente associadas à fenômenos que organizam nosso
cotidiano. Esse enfoque, dentro dos STS, ficou conhecido como modelo ontológico de análise, o qual
defende a existência de uma relação direta entre práticas/ação e geração de realidades, destacando a
dimensão política desta relação (MOL, 2008; WOOLGAR; LEZAUN, 2013).
Por exemplo, no modelo de análise ontológico adotado por Holm (2001) para o caso da
governança pesqueira da Noruega, as políticas pesqueiras são analisadas como atividades que criam
novas realidades para as pescarias e os pescadores, dentre outros agentes envolvidos, e conferem
existência aos peixes, ao mar e ao próprio sistema de manejo das pescarias. A partir da análise das
transformações institucionais ocorridas na década de 1980 e 1990 nos sistemas de gestão pesqueira
desse país, esse sociólogo da conservação identificou largas implicações sociais.
O trabalho de Holm inspirou diversos pesquisadores que sob o mesmo enfoque teórico têm
aprofundado as análises de gestão pesqueira no contexto do Atlântico Norte, reforçando o argumento
No enfoque ontológico, o peixe e o mar não são pensados como entes externos às culturas e
como uma realidade a priori, de modo que o problema ontológico da natureza é elaborado em termos
práticos, ou seja, no curso da ação das entidades que o organizam. A existência da natureza e de todos
os fenômenos e estruturas materiais nela implicados, é “performada” (enacted), ou trazida a efeito,
nas práticas (Mol, 2008; 2002). A noção de performance é central nessa abordagem porque sublinha
a ideia de que os eventos e coletivos estudados são criados nas e a partir de suas práticas. Ao invés
de um caráter estrutural e imutável, a existência desses coletivos é tida como processual e fluida,
sendo organizada a partir da atuação e desempenho dos diferentes atores. Diz-se que atores humanos
e não-humanos performam juntos para produzir efeitos particulares (LAW, SINGLETON, 2000).
Sugere assim, uma realidade que é co-produzida ao invés de apenas observada. Em lugar de ser vista
por uma pluralidade de olhos, mantendo-se intocada no centro, como é vista na abordagem
representacional, as realidades são manipuladas por meio de vários artefatos (instrumentos), no curso
de uma série de diferentes práticas (MOL, 1999; 1998).
30
Nas embarcações de grandes corporações pesqueiras industriais é frequente a prática de processar, isto é
transformar e conservar o pescado capturado no próprio navio em alto mar. Os chamados barcos-fábrica têm autonomia
para ficarem até 180 dias em alto-mar sem reabastecer e com capacidade para estocar até 360 toneladas de pescado já
processado (PORTAL DO SOL, 2013).
A associação entre pesca, natureza e populações humanas só nas últimas décadas passou a ser
vinculada às incertezas ambientais e como uma ameaça aos recursos pesqueiros. Até meados do
século XX, a atividade pesqueira permanecia fortemente associada à base de sustentação de culturas
e economias costeiras e à provisão alimentar. Assim, a pesca, mesmo a de base industrial, não era
tida como um problema, mas sim como uma solução que agregava valor econômico e sociocultural
às populações costeiras (ELLIS, 1969).
O período compreendido entre as décadas de 60 e meados de 80 do século XX marca o início
de expressivas transformações econômicas, políticas, geográficas e ambientais no planeta
(HANNIGAN, 2009). A década de 1990 demarca novas inflexões no cenário geopolítico e ambiental
global que sofre expressivas alterações associadas à penetração do projeto neoliberal nas políticas
econômicas. A conferência Eco92, que aconteceu no Rio de Janeiro, consolida a entrada oficial da
agenda “verde” nas políticas governamentais e projetos empresariais e sinaliza a possibilidade de um
acordo conciliatório entre desenvolvimento e conservação ambiental. A partir da difusão do relatório
Brundtland (1987), ou “Nosso Futuro Comum”, a noção de desenvolvimento sustentável ganha
notoriedade e aderência alterando significativamente a percepção da problemática ambiental,
sobretudo nas arenas políticas e empresarial (JATOBÁ et al. 2009; VIOLA; LEIS, 1992). Nesse
31
Existem dois tipos de atividade pesqueira: a pesca extrativa e a não extrativa. Na pesca não extrativa, a produção
é obtida por meio de cultivos marinhos ou de água-doce particulares, enquanto que na atividade extrativa os recursos são
retirados diretamente dos estoques naturais (MARTINS, 2012).
32
Informações mais detalhadas disponíveis em: http://www.oceanhealthindex.org/ . Acessado em: 10 de outubro
de 2015.
De um lado, se encontram aqueles que assumem que os dados de captura refletem, de uma
maneira geral, a abundância dos estoques, conforme defendido pela FAO e IUCN, os quais devem,
portanto, ser utilizados para avaliar a saúde dos oceanos (BELHABIB et al., 2014; HALPERN et al.,
33
Para um panorama atualizado da controvérsia, ver Chaboud et al. (2015), Belhabib et al. (2014, 2015) e Pauly;
Hilborn; Branch (2013).
Uma parcela dos cientistas do primeiro grupo afirma, inclusive, que a maioria dos dados da
FAO está subdimensionada e que a situação dos estoques pesqueiros mundiais é ainda mais crítica
do que aquela desenhada pela organização. Esse é o caso dos cientistas do projeto independente
intitulado “O Mar a Nossa Volta”, liderado por Daniel Pauly, uma das principais referências nesse
debate. O projeto se propõe a monitorar o impacto das pescarias nos ecossistemas marinhos mundiais
e avaliar todo o levantamento de dados coletados pela FAO desde 1950 (CRESSEY, 2015;
WATSON; PAULY, 2001). Pauly (2013) ressalta que os resultados preliminares do projeto sugerem
que as capturas nacionais, com exceção da China, estão sub-informadas pela FAO em,
aproximadamente, 100 a 500% em muitos países em desenvolvimento e em 30 a 50% nos países
desenvolvidos. Entretanto, segundo os pesquisadores do Projeto, ainda que os dados da FAO estejam
subdimensionados, eles são absolutamente indispensáveis para pensar sobre como reverter a
tendência de depleção dos estoques (CRESSEY, 2015; PAULY; HILBORN; BRANCH, 2013).
Mas como essa controvérsia é, de fato, traduzida em práticas de pesca no Brasil? Nos
contextos localizados dos estados/nação, as divergências científicas em torno da validade dos dados
de captura para inferir o estado dos estoques refletem de forma diversa na governança marinha e
especificamente pesqueira. No geral, o grupo que se posiciona em favor da utilização de dados de
captura como um sinal central para avaliar a saúde dos oceanos tende a defender a aplicação de
medidas extremas de restrição das pescarias, traduzidas nos cenários políticos localizados, na forma
de medidas de bloqueio e/ou desestímulo das pescarias extrativas, especialmente em escala industrial.
Em contraponto, o outro grupo defende que a utilização exclusiva de dados de captura não reflete a
quantidade de peixes presentes no mar e insiste na adoção de programas públicos de manejo dos
recursos pesqueiros associado ao desenvolvimento de práticas pesqueiras sustentáveis do ponto de
vista biológico para recuperar os estoques.
No Brasil, o Ministério do Meio Ambiente tem adotado uma política de restrição e/ou
proibição da captura de algumas espécies pesqueiras de interesse comercial. No geral, as medidas
legais que restringem as pescarias baseiam-se nas análises da FAO, em pesquisas realizadas por
ONGs ambientalistas de expressiva influência nas arenas ambientais, a exemplo da lista mundial de
espécies ameaçadas de extinção publicada pela IUCN, bem como em análises ecológicas pontuais da
costa brasileira realizadas por especialistas do MMA e consultores contratados36.
Contudo, nossos estudos sobre o tema indicam que o segmento produtivo da pesca questiona
os dados utilizados pelo MMA para embasar as proibições listadas na portaria 445. Seu principal
argumento é de que as análises são insuficientes e não refletem a realidade da abundância dos estoques
pesqueiros nacionais (NEVES, 2015). Na opinião do ex-presidente do SINDIPI, o MMA tem
manejado os recursos pesqueiros sem medir as consequências futuras de suas ações e colocado em
risco a atividade pesqueira extrativa no Brasil (MONTEIRO, 2015).
Para a maior parte dos pesquisadores e representantes do setor produtivo entrevistados, a
preponderância das normas de cunho conservacionista editadas pelo MMA sob as ações políticas do
antigo Ministério da Pesca e Aquicultura, mais do que espelhar a preocupação de nossos estadistas
com a conservação marinha e pesqueira da costa brasileira, representam o reflexo de um ambiente
institucional confuso e, de certa forma, caótico. Em sua opinião, ao invés de servir aos objetivos
36
Depoimento de Roberta Aguiar dos Santos, representante do CEPSUL/MMA, concedido as autoras em 16 de
agosto de 2016.
Criado em 2003, primeiro sob a forma de uma Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca
(SEAP), transformada em 2009 em Ministério da Aquicultura e Pesca, o MPA teve sete gestores
diferentes até ser extinto em outubro de 2015. Entre 2009 e 2015, esteve sob responsabilidade de
cinco ministros diferentes. Após sua extinção, suas responsabilidades políticas passaram para a
gerência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e ali permaneceram até março de
2017, quando foram transferidas para a gerência do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e
Serviços (MIDIC).
Entretanto, para a maior parte dos representantes das agências políticas ambientais
entrevistados nesta pesquisa, a publicação da portaria 445/2014 representa o resultado do aumento
das pressões da opinião pública pela conservação marinha no país. Os debates travados nas arenas
internacionais sobre mudanças climáticas e sobrepesca, em sua opinião, não podem ser
desconsiderados e têm pressionado os governantes brasileiros ao estabelecimento de medias de
conservação marinha.
Ainda que concorde com a atuação do MMA no que tange à publicação da portaria 445, a
posição da ONG OCEANA/Brasil sobre a gestão pesqueira é taxativa: precisamos “proteger os
oceanos para nutrir o mundo”. Para isso, é preciso gerar informações sobre o estado dos estoques
pesqueiros nacionais e sobre a biodiversidade marinha brasileira; só assim será possível estabelecer
medidas adequadas de manejo desses estoques e definir cotas de captura para a pesca.
O sistema de cotas de captura, defendido pela ONG OCEANA/BRASIL para ser aplicado ao
Brasil tem sido sistematicamente criticado pelo seu potencial concentrador de renda e gerador de
exclusão social. Para Holm e colaboradores (2005), se o sistema de cotas de captura obteve êxito na
preservação dos estoques pesqueiros, ele tem falhado radicalmente na democratização do acesso a
natureza. Neste sentido é importante questionar as limitações da importação de modelos prontos e/ou
adaptados de realidades muito diferentes das realidades locais.
5 – Considerações finais
O que as análises globais sobre o estado dos estoques pesqueiros dizem sobre a realidade
brasileira? Os dados pesqueiros produzidos no Brasil estão defasados e distantes de expressar o
cenário atual. Nesse sentido, o MMA tem assumido uma postura precautória e trabalhado para
conservar estoques que, segundo seus dados assumidamente frágeis, demonstram a sobrepesca e/ou
perigo de extinção de muitas espécies marinhas.
Vimos também que os dados internacionais sobre o estado atual dos estoques pesqueiros são
alvo de intensos debates acadêmicos que não asseguram a veracidade das informações produzidas,
Assim, antes de perguntar que tipo de cenários futuros desejamos para a conservação marinha
e a pesca no Brasil, é importante questionar os processos envolvidos na construção das necessidades
de um país. De fato, a temática ambiental é a “bola da vez” e, de certo, essencial para pensar os rumos
do crescimento do Brasil. Mas será que ela deve sobrepor-se à problemática social? A lógica
discursiva do desenvolvimento sustentável parece ter selado um acordo conciliatório entre
desenvolvimento econômico e conservação. A despeito de toda a pertinência do ambientalismo é
válido destacar seu potencial segregador e manipulador para evitar cair na armadilha de supor que
desenvolvimento e conservação são fenômenos excludentes. Em tempos atuais, talvez mais urgente
do que questionar sobre que tipo de desenvolvimento queremos, seja perguntar-se sobre que tipo de
ambientalismo estamos utilizando como modelo para orientar os rumos de nosso país.
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