•REVISTA DE HISTORIA
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UNICAMP
INVERNO - i991
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DOSSIÊ
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Lawrence Stone
I ) Ninguém está sendo instado a jogar fora sua calculadora e contar uma estória e
seu enfoque central diz respeito ao homem, e não às circunstâncias. Portanto, ela
trata do particuIar e do específico. de preferência ao coletivo e ao estatístico. A
narrativa é uma modalidade de escrita histórica modalidade esta. porém. que
também afeta e é afetada pelo conteúdo e pelo método.
O tipo de narrativa em que estou pensando não é o do simples cronista ou analista
de coisas passadas. E a narrativa orientada por algum “princípio fecundo”. e que
possui um tema e um argumento. O tema de Tucídides eram as guerras do
Peloponeso e seus efeitos catastróficos sobre a sociedade e a política gregas: o
de Gibbon e o declínio e queda o Império Romano: o de Macaubal. o surgimento
de uma disposição participativa liberal nas correntes da política revolucionária. Os
biógrafos contam a estória de uma vida, desde o nascimento até a morte. Nenhum
historiador narrativo, no sentido em que aqui os define, deixa a análise totalmente
de lado. mas ela não constitui o arcabouço de sustentação em torno do qual
constroem sua obra. E, por fim, eles estão profundamente preocupados com os
aspectos retóricos de sua apresentação. Quer suas tentativas dêem certo ou não,
eles certamente pretendem alcançar concisão, espírito e elegância estilística. Não
se contentam em lançar palavras numa página e ali deixá-las, pensando que, na
medida em que a história é uma ciência, dispensa o auxilio de qualquer arte.
Não se deve considerar que as correntes aqui identificadas se aplicam a grande
massa dos historiadores. O que se tenta é apenas assinalar uma mudança
perceptível de conteúdo, método e estilo entre uma parcela muito reduzida, mas
desproporcionalmente destacada, da profissão histórica como um todo. A história
sempre teve muitas sedes e assim deve continuar para prosperar no futuro. O
triunfo de um gênero ou escola sempre acaba levando a um sectarismo estreito,
ao narcisismo e autobajulação, ao desprezo ou tirania em relação aos de fora. e
outras características desagradáveis e contraproducentes. Todos nós
conhecemos exemplos disso. Em alguns países e instituições, foi pernicioso que,
nos últimos trinta anos, os novos historiadores” tenham conseguido se impor de tal
maneira, e será igualmente pernicioso se a nova corrente, se é que é uma
corrente, alcançar, aqui e ali, um mesmo tipo de dominação.
E também fundamental estabelecer de uma vez por todas que este ensaio tenta
mapear transformações observadas no estilo histórico, sem fazer juízos de valor
sobre as modalidades boas e, as não tão boas, de escrita histórica. Em qualquer
estudo historiográfico. é difícil evitar juízos de valor, mas este ensaio não pretende
erguer qualquer bandeira nem conflagrar uma revolução.
Uma outra razão adicional para que vários “novos historiadores” estejam voltando
à narrativa parece consistir na vontade de tornarem suas descobertas novamente
acessíveis a um público leitor inteligente, mas não especialista, muito disposto a
aprender o que revelam essas questões, métodos e dados inovadores, mas sem
estômago para tabelas estatísticas indigestas, argumentos analíticos áridos e
cheio de jargões. Os historiadores estruturais, analíticos e quantitativos estão
cada vez mais falando apenas entre eles, e com mais ninguém. Suas descobertas
aparecem em revistas profissionais ou em monografias tão caras, e com edições
tão reduzidas (menos de mil exemplares), que na prática são quase que
inteiramente compradas apenas por bibliotecas. E no entanto o sucesso de
periódicos históricos populares, como !liatorp Today e L'histoire, demonstra que
existe um grande público disposto a ouvir, e os “novos historiadores”
agora estão ansiosos em falar para essa audiência, em vez de deixar
que ela se alimente de manuais e biografias populares. As questões que
estão sendo colocadas pelos “novos historiadores são, afinal, as que nos
preocupam a todos atualmente, a natureza do poder, da autoridade e da liderança
carismática. a relação entre as instituições políticas e s padrões sociais e sistemas
de valores subjacentes, as atitudes frente à juventude, à velhice, à doença e à
morte; o sexo, o casamento e o concubinato; o nascimento, a contracepção e o
aborto; o trabalho , o lazer e o consumo desenfreado; a relação entre a religião, a
ciência e a magia como modelos explicativos da realidade; a força e a direção das
emoções do amor, medo, luxúria e ódio; o impacto de alfabetização e da
educação sobre a vida das pessoas e o modo de encarar o mundo; a importância
relativa atribuídas á diferentes grupos sociais, como a família, o parentesco, a
comunidade, a nação, a classe e a raça; a força e o significado do ritual, do
símbolo e do costume como formas de dar coesão a uma comunidade; as
abordagens morais e filosóficas do crime e do castigo; padrões de submissão e
surtos de igualitarismo; os conflitos estruturais entre classes ou grupos sociais; os
meios, possibilidades e limitações da mobilidade social; a natureza e o significado
do protesto popular e das esperanças milenaristas; as alterações no equilíbrio
ecológico entre o homem e a natureza, as causas e efeitos da doença. São todas
questões candentes na atualidade, e dizem respeito às massas, mais do que às
elites. Têm maior relação com nossas próprias vidas do que os efeitos de reis,
presidentes e generais mortos.
É claro que uma única palavra como ”narrativa”, principalmente tendo uma história
tão complicada por detrás, é inadequada para descrever o que, na verdade,
constitui um amplo leque de transformações na natureza do discurso histórico.
Existem sinais de mudança quanto à questão central na história, desde
circunstâncias que cercam o homem até o homem nas circunstâncias: nos
problemas estudados, desde os econômicos e demográficos aos culturais e
emocionais; nas fontes básicas de influência, desde a sociologia, economia e
demografla à antropologia e psicologia; no tema, do grupo ao individuo; nos
modelos explicativos da transformação histórica, desde os estratificados e
monocausais aos interligados e multicausais; na metodologia, desde a
quantificação em série ao exemplo individual; na organização, da analítica à
descritiva: na conceitualização da função do historiador, da científica à literária.
Essas mudanças multifacetadas em conteúdo, objetivo, método e estilo de
escrever história, que estão ocorrendo todas ao mesmo tempo, têm claras
afinidades eletivas entre si: todas se encaixam perfeitamente. Nenhuma palavra é
capaz, sozinha, de resumi-las todas, e assim, por enquanto, a “narrativa” terá de
servir como uma senha taquigráfica para tudo o que está se passando.
Eric J. Hobsbawn
Mas, uma vez voltando a tais itens de suas agendas, os historiadores podem
preferir orientar sua explicação coerente da transformação no passado de uma
maneira, por assim dizer, ecológica, ao invés de geológica. Podem preferir
começar pelo estudo de uma “situação” que encarna e exemplifica a estrutura
estratificada de uma sociedade, mas concentrando o pensamento nas
complexidades e interconexões da história efetiva, e não tanto no estudo da
estrutura em si, principalmente se, para tanto, podem se apoiar em parte sobre
obras anteriores. É o que, como reconhece Stone, encontra-se na origem da
admiração de alguns historiadores por trabalhos como a “leitura atenta” de Clifford
Geertz sobre uma rinha balinesa de galos. Isso não supõe necessariamente uma
escolha entre a monocausalidade e a multicausalidade, e certamente não significa
nenhum conflito entre um modelo onde alguns determinantes históricos são tidos
como mais poderosos do que outros, e o reconhecimento de interconexões, tanto
verticais quanto horizontais. Uma situação ”pode ser um ponto de partida
conveniente, como no estudo de Ginzburg sobre a ideologia popular, através do
caso de um único aldeão ateu do século XVI ou de um único grupo de
camponeses do Friuli, acusados de feitiçaria”. Esses tópicos também poderiam ser
abordados de outras maneiras. Pode ser um ponto de partida necessário em
outros casos, como no belo estudo de Agulhon sobre o modo como aldeões
franceses, num determinado tempo espaço, converteram-se do tradicionalismo
católico ao republicanismo militante. De qualquer forma, é provável que os
historiadores, para certas finalidades, escolham-na como ponto de partida.