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A (1M)POSSIBILTDADE DA ESCRITA FEMININA LOCIA CASTELLO BRANCO* pana Ruth, que me deu o titule e o paetexto RESUMO Este texto procura discutir alguns elementos que possivelmente determinem a especificidade da es cerita feminina e analisar o conto “Lucas,Naim", de Hilda Hilst, nos moldes dessa escrita. (Apre sentado no Circulo Psicanalitico de Minas Ge- rais, em maio de 1985, durante o curso "LITERA- TURA E SEXUALIDADE!, ministrado por Ruth Silvia- no Brandao Lopes e, Wander Melo Miranda) . © desejo de ler o texto da mulher, buscando identificar ali tragos que apontem em diregao a uma especificidade da es- cerita feminina surge-me, a principio, como uma inquietante Provocagdo. Ndo ha como manter o “distanciamento critico"quan do o objeto de andlise corre o risco de se misturar ao sujei- to, quando o coxpus de pesquisa & um corpo flutuante em que é Preciso tocar sem reter, interferir sem ferir. “Ver 0 sexo de minha mae: isso me chocara. Para mim, nado havia corpo que existisse menos do que o dela; mais ainda, nao existia", a- firma Simone de Beauvoir diante da imagem da mae semi-morta. Como acercar-se da escrita feminina sem o sentimento constran gedor de algo muito antigo, muito familiar, que retorna, e a constatagio de um estranho vazio que nos escapa e nos arreba- ta como uma apariglo? A primeira vaga hipétese que me ocorre consiste na exis- téncia de uma linguagem feminina que certamente nao se codifi ca nos moldes da masculina. Anterior 4 Lei do Pai, a lingua- gem feminina configuraria um universo pré-discursivo, que a voZ, © corpo e o toque da mae funcionam como significantes, imprimindo um significado em contato com o corpo da crianga?, Nesse sentido, a escrita feminina consistiria de fato num pro jeto impossivel, enquanto registro verbal de um processo aver ime ce de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, (4)> p. 30-42 1985, 31 bal. Mas o titulo deste texto-"a (im)possibilidade da escrita feminina" -, com o prefixo acanhado, entre parénteses, suge- rindo a possibilidade, ainda que utépica, dessa escrita, tem a vantagem de nos remeter a uma outra leitura, que aponta nao para o aquém desse discurso, mas para o seu afém: em lugar de uma impossibilidade da escrita, a escrita de uma impossibili- dade. Pratica do que nao se verbaliza, do que nao se pensa: escrita do indizivel e do impossivel, voz delirante que se langa no vazio da pagina?. A tentativa de dizer o indizivel parece ser, de fato, um trago recorrente da escrita feminina. Simbélica, enquanto lin guagem verbal, essa escrita resiste, entretanto, 4 mediacao lingiifstica, buscando "enconstar" a palavra 4 coisa e atingir © além do signo: "Atras do pensamento nao ha palavras - é-se. Minha pintura nado tem palavras: fica atras do pensamento.Nes se terreno do é-se sou puro éxtase cristalino. E-se. Sou-me. Tu te &s."4 Nesse sentido, a escrita feminina percorre uma trajetéria suicida, desembocando fatalmente em sua déstruigao, enquanto discurso: ao se auto-devorar, o que resta do signo senfo seu préprio vazio? Na implosdo da linguagem, j4 ndéo ha palavras e coisas - apenas o siléncio "que se evola sutil do entrechoque das frases." (AV. p. 8-9) Nesse processo de "dessimbolizagao" da linguagem, onde outro registro se insinua, 0 corpo feminino ocupa lugar privi legiado; a palavra busca afirmar-se no apenas como coisa,mas como uma coisa que 6 o corpo do narrador, desafiando o corpo anGnimo do leitor a também ingressar neste projeto delirante: “Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando u ma seta que se finca no ponto tenro e nevralgico da palavra. Meu corpo incdgnito te diz: dinossauros,ictiossauros e ples- siossauros, com sentido apenas auditivo, sem que por isso se tornem palha seca, e sim imida (...) Ouve-me entéo com teu corpo inteiro.” (AV, p. 10-12) E talvez por isso essa escrita busque se afirmar como fa la, j& que, em sua modalidade oral, a linguagem verbal conta necessariamente com a presenga (e com a linguagem) do corpo: 0 Eixo @ a Roda, Belo Horizonte, (4): p. 30-41 ,1985. 32 "Escute uma mulher falar numa assembléia (se ela nao perdeu dolorosamente o félego): ela nao "fala", ela langa no ar seu corpo fremente, ela se abandona, voa, & toda inteira que -ela se coloca através de sua voz, & com seu corpo que ela susten- ta vitalmente a "légica" de seu discurso."* De fato, 6 essa tentativa que se percebe no discurso feminino: "Escrevo por acrobaticas e aéreas piruetas - escrevo por profundamente te querer falar“. (AV, p. 12) Escrita que se inscreve num corpo significante - como a caricia da mae no corpo da crianga - ,o discurso feminino insinua~se como um registro que pretende ser ouvido e nao exatamente lido: "Eu te escrevo com minha voz(...) Ouve-me entao com teu corpo inteiro." (AV, p. 21-2) Segundo Béatrice Didier, essa caracteristica oralizante do texto feminino funda~se numa pratica secular - a tradigado oral - onde a mulher, sobretudo a avd, com suas histérias e cantigas de ninar, ocupou papel determinante. Tal "oralitude” (a autora prefere este termo a “oralidade", por razdes Gbvias), imprimiria ao texto feminino ritmo e tempo peculiares, que o afastariam radicalmente da narrativa tradicional: "Tempo ci- clico, sempre recomegado, mas com suas rupturas, sua monoto- nia e sua descontinuidade. Assim se explicaria que o ritmo de sua frase (na medida em que se possa falar de uma frase da mu lher, pois ha tantos estilos quanto mulheres) possa parecer, paradoxalmente, como mais lento e mais precipitado".® Com relagdo a esse "tempo feminino”, a narrativa de Agua Viva & exemplar: "Neste instante - jd estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de refle xos de sol na Agua que corre da bica na relva de um jardim to do maduro de perfumes, jardim e sombras que invento 34 e ago- xa e@ que sao o meio concreto de falar. neste meu instante de vida". (AV, p. 17) A quase auséncia de pontuagao, a prolifera go de significantes e a redundancia das imagens sugerem essa condugéo simultaneamente lenta e precipitada do tempo, dando origem a uma narrativa que, sob uma 6tica masculina, & comu- mente interpretada como prolixa: "O que se tem chamado de pro lixidade feminina é talvez a marca de uma criatividade extra- vasada e de forcas vivas da mulher acedendo 4 escrita, mas 0 Eixo e a Roda, Belo Horizonte, {4}: p. 30-42 ,1985.

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