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QUESTÕES DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL EM VIGOTSKI E

SEUS DESDOBRAMENTOS PARA EDUCAÇÃO

KOSHINO Ila Leão Ayres

MARTINS Joao Batista

Eixo Temático: Educação Infantil

Resumo

O objetivo deste texto é apresentar algumas ideias de Vigotski, enfatizando questões sobre o
processo do desenvolvimento infantil em Vigotski e seus desdobramentos para Educação.
Para ele, este processo se efetiva a partir das relações que as crianças estabelecem com seu
meio sócio-cultural, internalizando e desenvolvendo uma série de instrumentos simbólicos –
caracterizados pelas funções psicológicas superiores – que passam a mediar o
comportamento. O desenvolvimento destas funções é um processo extremamente pessoal e,
ao mesmo tempo, um processo profundamente social. Esta experiência – social, cultural,
histórica – possibilita à criança dominar e apropriar-se dos instrumentos culturais como a
linguagem, pensamento, conceitos, ideias, etc. que se desenvolve ao longo da sua história e da
história das relações estabelecidas com o universo social. As mudanças decorrentes deste
encontro – considerado por Vigotski como situações sociais de desenvolvimento – são
caracterizadas por momentos de estabilidade, entrecortadas por momentos de crise,
estabelecendo-se, assim, uma dialética ao longo do processo de desenvolvimento onde a
emergência do novo significa o desaparecimento do velho. Neste processo, o que muda e se
modifica são precisamente as relações, ou seja, o nexo das funções entre si, de maneira que
surgem novos agrupamentos desconhecidos no nível anterior. As novas formações que
aparecem neste processo podem ser consideradas de novas sínteses. Elas se efetivam na vida
da criança a partir das experiências que são oferecidas pelo seu entorno social. Disto resulta o
resgate da importância da educação e do educador em criar as condições para que tais
processos se consolidem.

Palavras-chave: Educação. Desenvolvimento Infantil. Dialética. Teoria Sócio-histórica-


cultural. Pensamento de Vigotski.

Introdução

Este estudo tem a intenção de explorar a dialética do pensamento de Vigotski, que


utilizou para estudar o processo de desenvolvimento infantil e sua importância no
desdobramento de uma educação que considera a complexidade e singularidade da criança
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como ser constituinte e constituído pela dimensão sócio-histórico-cultural. Nosso objetivo é


de articularmos alguns conceitos vigotskianos, o que nos ajudará a compreender um pouco
melhor a proposta deste autor acerca dos estudos do desenvolvimento infantil.
Cabe lembrar, num primeiro momento, que um dos principais objetivos da obra de
Vigotski foi caracterizar o desenvolvimento das funções psicológicas superiores
(VYGOTSKY, 1991). Suas preocupações estavam postas no estabelecimento das diferenças
entre os processos de desenvolvimento das funções psicológicas elementares (próprias dos
animais) e das funções psicológicas superiores (aquelas que se desenvolvem ao longo do
processo do desenvolvimento humano, tendo em vista as relações que se estabelecem entre os
seres humanos). Para tanto, ele estabeleceu um intenso diálogo com outros teóricos da
educação, psicologia e de campos afins (Freud, Pavlov, Piaget, Lewin, Kohler, Koffka,
Buhler, etc). Em suas considerações, sob a influência da obra de Marx/Engels e do
materialismo histórico dialético, assinala que as origens das formas superiores do
comportamento (lembrar, comparar, falar, pensar, memorizar, etc.) deveriam ser estudadas a
partir das relações sociais que os indivíduos estabelecem com o meio social em que vivem.
Para ele (VYGOTSKY, 1994), o meio social é fonte de desenvolvimento e,
essencialmente, social. Ele oferece os momentos de experiências e aprendizagens resultantes
da interação da criança com a cultura, com os adultos e da apropriação dos signos e símbolos.
Esta relação se amplia e se modifica num processo de construção e reconstrução do pensar
mais elementar ao mais complexo, estabelecendo-se assim modificações no desenvolvimento
tanto no sentido quantitativo quanto no qualitativo.
Em sua obra, vimos que Vigotski considera o ser humano como um organismo ativo,
cujo processo de desenvolvimento é constituído e constituinte pelo ambiente sócio-histórico-
cultural. Tal perspectiva fica evidente, quando ele estabelece a Lei Genética Geral do
Desenvolvimento Cultural, onde afirma que no desenvolvimento infantil toda função
psicológica aparece duas vezes: primeiro em nível social, e, depois, em nível individual.

O exemplo mais claro disto é a linguagem. No princípio, é um meio de vínculo


entre a criança e aqueles que a rodeiam, mas, no momento em que a criança começa
a falar para si, pode-se considerar como a transposição da forma coletiva de
comportamento, para a prática do comportamento individual (VIGOTSKI, 2004, p.
112).

O desenvolvimento da linguagem, assim como todas as funções psicológicas


superiores, é um processo extremamente pessoal e, ao mesmo tempo, um processo
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profundamente social. Esta experiência – social, cultural, histórica - possibilita à criança


dominar e apropriar-se dos instrumentos culturais como a linguagem, pensamento, conceitos,
ideias, etc.
Entende-se, nesse desenvolvimento, a linguagem egocêntrica da criança como a forma
transitória da linguagem exterior para linguagem interior, da social para individual.
Pressupõe, aqui, o movimento real do processo de desenvolvimento do pensamento infantil.
Existe, pois, a inter- relação constante de pensamento e linguagem. Posteriormente, a função
comunicativa da fala egocêntrica ajuda a antecipar e prever a ação, que se dá pelo estágio
intermediário entre a fala interna e social.

[...] essa linguagem é um momento composicional da atividade racional da criança,


que ela mesma se intelectualiza e ocupa a mente nessas ações primárias e racionais,
e começa a servir de meio de formação na intenção e do plano numa atividade mais
complexa da criança (VIGOSTKI, 2000, p. 71).

Percebe-se, então, o controle da linguagem sobre o comportamento da criança.


Quando fala egocentricamente, ela organiza sua atividade e constrói suas ações. A relação
pensamento e linguagem se dão no processo de construção e reconstrução do pensar mais
elementar à compreensão mais complexa do meio.
Portanto, esta relação entre pensamento e linguagem se modifica no processo de
desenvolvimento, determinado pelo meio cultural e pelas funções mentais nas mudanças da
visão de mundo, da personalidade da criança e do desenvolvimento da consciência. Estas
modificações se dão tanto no sentido quantitativo quanto no qualitativo.
Além de veicularem conhecimentos, a linguagem incorpora em si as transformações
cognitivas relativas à apropriação destes ao longo da história humana, determinando, assim,
alterações nas funções psicológicas superiores de todos aqueles que a utilizam, buscando
novas formas de pensar e conceber o mundo, bem como operar sobre ele.
Tal processo é explicitado por Vigotski através do mecanismo de internalização, ou
seja:

Chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação externa. [...]


Entretanto elas (funções) somente adquirem o caráter de processos internos como
resultados de um desenvolvimento prolongado. [...] A internalização de formas
culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica tendo
como base as operações com signos. [...] A internalização das atividades
socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto
característico da psicologia humana (Vygotsky, 1991, p. 63-65).
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Isto significa dizer que ao longo do processo de desenvolvimento, na medida em que


as crianças vão se apropriando dos “instrumentos culturais”, elas deixam de responder
impulsivamente às estimulações do meio, suas respostas passam a ser mediadas por símbolos
ou “instrumentos” simbólicos, apropriados a partir das relações sociais.
Esse desenvolvimento representa uma ruptura fundamental com a história natural do
comportamento e, logo, inicia a transição das funções elementares do comportamento para as
atividades intelectuais superiores. As mudanças na estrutura do comportamento da criança
relacionam-se às alterações básicas de suas necessidades e motivações com o auxílio da fala.
As operações com signos aparecem como resultado de um processo prolongado e complexo.

Isso significa que a atividade de utilização de signos nas crianças não é inventada
tampouco ensinada pelos adultos; ao invés disso, ela surge de algo que
originalmente não é uma operação com signos, tornando-se uma operação desse
tipo somente após uma série de transformações qualitativas (VYGOTSKY, 1991, p.
51-52).

Tais transformações, segundo Vigotski, criam novas condições para o aparecimento de


novas mudanças, próprias de uma determinada etapa do desenvolvimento, que são em si
mesmas condicionadas pelos estágios anteriores; desta forma, as transformações estão ligadas
como estágios de um mesmo processo e são, quanto a sua natureza, históricas.

Pensamento e palavra: fenômeno da unidade

Vigotski (2000), em seus estudos, condena a metodologia de investigações que


determina o pensamento e a palavra como dois processos, dois elementos autônomos,
independentes e isolados, porque para explicar as propriedades do pensamento discursivo
como uma totalidade seria incorreta. Elas não podem ser consideradas como duas forças
independentes que fluem e atuam paralelamente uma à outra ou se cruzam em determinados
pontos da sua trajetória, entrando em interação mecânica, associativa.
Ele define o significado da palavra a uma unidade indecomponível de ambos os
processos: a unidade do pensamento e da linguagem, pois não se pode dizer que seja um
fenômeno da linguagem ou um fenômeno do pensamento. Entende “a palavra desprovida de
significado não é palavra, é um som vazio. Logo, o significado é um traço constitutivo
indispensável da palavra [...]. Deste modo, parece que temos todo o fundamento para
considerá-la como um fenômeno do discurso” (VIGOTSKI, 2000, p. 398).
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Depois, conclui:

[...] o significado da palavra só é um fenômeno de pensamento na medida em que o


pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-versa: é um
fenômeno de discursos [...]. É um fenômeno do pensamento do discursivo ou da
palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento (VIGOTSKI, 2000,
p. 398).

Pressupõe, aqui, o pensamento vinculado a uma rede de conceitos: abstração,


consciência, linguagem, percepção, ação, imagem. Através da palavra como fenômeno, a
criança vai exercitando o conceito, a partir dele, ela o estende. Ao ampliá-lo, alcança novos
sentidos. O significado da palavra é, portanto, inconstante e se modifica no processo de
desenvolvimento da criança.
Esse pensamento dialético é mediatizado quando se constrói hipóteses e se faz
abstrações. Ele se dá no movimento do pensamento à palavra e da palavra ao pensamento –
processo em desenvolvimento.

Todo pensamento procura unificar alguma coisa, estabelecer uma relação entre
coisas. Todo pensamento tem um movimento, um fluxo, um desdobramento, em
suma, o pensamento cumpre alguma função, executa algum trabalho, resolve alguma
tarefa. Esse fluxo de pensamento se realiza como movimento interno, através de
uma série de planos, como uma transição do pensamento para a palavra e da palavra
para o pensamento (VIGOTSKI, 2000, p. 409-410).

Unificar é fazer convergir para um só fim; é reunir-se em um só todo. Na concepção


de Vigoski, o pensamento da criança se desmembra e passa construir a partir de unidade, ou
seja, ele caminha das partes para o todo, desmembrado em sua linguagem. Pode também
ocorrer no sentido contrário: passa das unidades para o todo decomposto na oração – no
pensamento. Entre pensamento e palavra existe antes uma contradição que uma concordância.
“Ao transformar-se em linguagem, o pensamento se reestrutura e modifica. O pensamento
não se expressa, mas se realiza na palavra” (VIGOTSKI, 2000, p. 412).
Atenta-se a referência histórica entre a relação pensamento e palavra. É importante
estudá-la, porque esta relação surge ao longo do desenvolvimento infantil e modifica, pois a
criança se constitui e se desenvolve através das relações sociais, por intermédio da linguagem.
Vigotski conclui em dizer que a palavra lhe parece o estágio supremo do
desenvolvimento da criança. Ao definir pensamento, compara-o a uma nuvem parada que
descarrega uma chuva de palavras. “É por isso que o processo de transição do pensamento
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para a linguagem é um processo sumamente complexo de decomposição do pensamento e sua


recriação em palavras” (VIGOTSKI, 2000, p. 478).
Entender e estudar a complexidade dialética desse processo contribui para pensar em
ações metodológicas que ampliem o desenvolvimento da criança e de suas relações enquanto
seres em devir.

A dialética do desenvolvimento

Dentro de um processo geral de desenvolvimento, existem “duas linhas


qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto à sua origem: de um lado,
os processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as funções psicológicas
superiores de origem sócio-cultural” (VYGOTSKY, 1991, p. 52).
A história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento dessas duas linhas.
Entre o nível elementar e os níveis superiores existem sistemas psicológicos de transição, que
Vigotski estuda dialeticamente.
A compreensão desse autor acerca do contato da criança com o meio, denota a sua
concepção dialética do desenvolvimento, caracterizada por conexões, avanços e retrocessos,
por fases de estabilidades entrecortadas por momentos de crises, de idas e vindas.
Com base nas idéias de Blonski, Vigotski afirma: os períodos de desenvolvimento são
marcados por períodos de estabilidade (caracterizados por mudanças graduais e lentas) e por
períodos de crise.

Em algumas idades o desenvolvimento se distingue [...] por um curso lento,


evolutivo. Em ditas idades a personalidade da criança muda muito lentamente,
frequentemente de forma imperceptível, interna; são mudanças decorrentes de
insignificantes ganhos ”moleculares”. Durante um lapso de tempo mais ou menos
amplo – habitualmente de vários anos – não se produzem mudanças bruscas nem
desvios importantes capazes de reestruturar a personalidade inteira da criança. As
mudanças mais ou menos notáveis que se originam na personalidade da criança são
os resultados de um amplo e oculto processo “molecular”. Ditas mudanças se
exteriorizam e podem ser diretamente observadas somente com o término de
prolongados processos de desenvolvimento latente (Vygotski, 1932-1934/1996, p.
255).

As crises se distinguem por traços opostos às idades estáveis.

Nelas, e ao longo de um tempo relativamente curto [...], se produzem bruscas e


fundamentais mudanças e deslocamentos, modificações e rupturas na personalidade
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da criança. Num muito breve de tempo a criança muda por inteiro, se modifica os
traços básicos de sua personalidade. Desenvolve de forma brusca, impetuosa, que
adquire, em certas situações, características de catástrofe; lembra o curso de
acontecimentos revolucionários tanto pelo ritmo das mudanças como pelo
significado dos mesmos. São pontos de viragem no desenvolvimento infantil que
tem, às vezes, a forma de agudas crises (Vygotski, 1932-1934/1996, p. 256).

Os períodos – de estabilidade e de crise – se intercalam ao longo do processo de


desenvolvimento, caracterizando-se enquanto um processo dialético, onde a superação de um
estágio para outro se efetiva de forma revolucionária. Vigotski (Vygotski, 1932-1934/1996)
caracteriza o desenvolvimento infantil identificando os momentos de estabilidade e os
momentos de crise.

A crise pós-natal separa o período embrionário do desenvolvimento do primeiro


ano. A crise do primeiro ano delimita o primeiro ano da vida inicial. A crise dos
três anos é a passagem da infância inicial para a idade pré-escolar. A crise dos sete
anos configura o marco de enlace entre a idade pré-escolar e a escolar. E,
finalmente, a crise dos treze anos coincide com uma viragem no desenvolvimento
quando a criança passa da idade escolar a puberdade. Temos, portanto, um quadro
lógico, regulado por determinadas leis. Os períodos de crise que se intercalam entre
os estáveis, configuram pontos críticos, de viragem, no desenvolvimento,
confirmando uma vez mais que o desenvolvimento da criança é um processo
dialético onde a passagem de um estádio para outro não se realiza por via evolutiva,
mas revolucionária (VYGOTSKI, 1932-1934/1996, p. 258).

Inspirando-se em Engels, ele reafirma o caráter dialético desse movimento.

O nascimento de um novo desenvolvimento significa irremediavelmente o


desaparecimento do velho. A passagem de uma nova idade culmina sempre com o
ocaso da anterior. Os processos de desenvolvimento inverso, a extinção do velho
se concentra sobre tudo nas idades críticas (VYGOTSKI, 1932-1934/1996, p. 259).

Cabe registrar que os momentos de crise, muitas vezes considerados de forma


negativa, têm para Vigotski um caráter positivo, uma vez que tal situação potencializa o
desenvolvimento infantil e promove a reorganização do processo de desenvolvimento em
novos patamares, diferentes daqueles que era posto anteriormente.
A partir das considerações anteriores, podemos dizer que o processo de
desenvolvimento da criança é marcado por uma série de mudanças ao longo da sua vida,
marcado por momentos de estabilidade e momentos de crise, o que nos indica o olhar
dialético e histórico de Vigotski sobre o desenvolvimento. Tais mudanças, por sua vez, são
situações, vivências que modificam a relação da criança com o meio e consigo mesmo. Dizer
que a relação da criança com o meio se modifica, significa assinalar que o próprio meio já é
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distinto e, portanto, o curso do desenvolvimento da criança mudou – pois se tem chegado a


um novo momento em seu desenvolvimento.
Situação social do desenvolvimento

Vigotski, em sua compreensão do processo de desenvolvimento infantil, desenvolveu


a noção de situação social de desenvolvimento (VYGOTSKI, 1932-1934/1996) como sendo
“motor” de desenvolvimento. Isto significa dizer que ao longo de sua vida a criança, ao
estabelecer uma relação com o meio ambiente – com o adulto, pares mais desenvolvidos –
passa por determinadas situações em que ela se desenvolve, ela se modifica. Tais situações
são denominadas de situação social de desenvolvimento.

A situação social de desenvolvimento é o ponto de partida para todas as mudanças


dinâmicas que se produzem no desenvolvimento durante o período de cada idade.
Determina plenamente e por inteiro as formas e a trajetória que permitem a criança
adquirir novas propriedades da personalidade, já que a realidade social é verdadeira
fonte do desenvolvimento, a possibilidade de que o social se transforme em
individual (VYGOTSKY, 1932-1934/1996, p. 264).

Esse desenvolvimento se refere à natureza do contato pessoal entre a criança e o adulto


em determinado período de tempo. A natureza da situação social de desenvolvimento, no
entanto, não é constante e suas mudanças introduzem novos períodos de desenvolvimento,
delineando a estrutura e a dinâmica das mudanças.
A partir do início da vida da criança, os adultos, de certa forma, determinam os modos
como à criança se relaciona com o meio: eles a carregam de um lado para o outro, mostram
esta ou aquela “paisagem”, oferecerem um conjunto de palavras e significados – apesar do
comportamento infantil indicar uma forte necessidade de se comunicar, a criança não tem o
discurso que atinja este comunicar. Com o domínio progressivo da linguagem, esta relação
com o adulto se modifica, a partir daí, a criança começa a dirigir a sua própria ação e a
interferir na vida dos adultos – ela desenvolve a fala autônoma, ela pode se comunicar com os
adultos em um novo patamar de compreensão. A situação social do desenvolvimento –
representada pelas situações onde a criança se apropriou da linguagem – mudou a relação que
a mesma estabelece com o meio social, uma vez que, a fala autônoma infantil, embora
limitada, abre as portas no desenvolvimento da criança para dialogar com o adulto.
Vigotski descreve a situação social de desenvolvimento como a gênese, um ‘momento
inicial’ para todas as dinâmicas de desenvolvimento das mudanças em um determinado
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período. Esta situação de desenvolvimento determina as relações entre a criança e o meio,


dela surge e se desenvolve as novas formações próprias da idade. “As mudanças na
consciência da criança se devem a uma forma determinada de sua existência social, própria da
idade dada. Por isso as novas formações amadurecem sempre no final de uma idade e não no
início” (VYGOTSKI, 1932-1934/1996, p. 264).
Isso significa dizer que nos períodos das idades, ocorre uma reconstrução no processo
de desenvolvimento infantil, marcada inicialmente por uma situação social de
desenvolvimento, e que ao final de uma idade dada, a criança se converte num ser
completamente distinto do que era ao princípio da mesma.

A situação de desenvolvimento anterior se desintegra à medida que a criança se


desenvolve e se configura em traços gerais, e, proporcionalmente, o seu
desenvolvimento à nova situação de desenvolvimento passa a converter no ponto de
partida para a idade seguinte (VYGOTSKI, 1932-1934/1996, p. 265).

Ou seja:
As forças que movem o desenvolvimento da criança, em uma ou outra idade,
acabam por negar e destruir a própria base de desenvolvimento de toda idade;
determinando, com a necessidade interna, o fim da situação social de
desenvolvimento, o fim da etapa dada de desenvolvimento e o passo para a
seguinte, ou ao período superior da idade (VYGOTSKI, 1932-1934/1996, p. 265).

Cada avanço no desenvolvimento infantil expressa um processo interno e externo de


mudanças. A crise resume-se na reestruturação das necessidades da criança com o meio. Os
novos motivos, as novas necessidades e impulsos ganham novos significados e valores para a
criança, que promoverão arranjos e rearranjos para a etapa seguinte. Fatalmente, surgirão
novas atividades, novos valores e sínteses como motores da próxima etapa.

O processo de desenvolvimento e dialética do sistema funcional

Ao longo deste processo de desenvolvimento vão ocorrer mudanças nas relações das
funções psicológicas superiores. Cada idade vai se caracterizar por um tipo de relação
diferente. As situações de crises revelam a dinâmica do processo do desenvolvimento ao
promover mudanças radicais nas articulações entre as funções psicológicas que estão em jogo.
Em 1930, Vigotski introduziu, em suas reflexões, uma noção que redireciona seu
olhar sobre as relações entre as funções psicológicas superiores e, consequentemente, sobre
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sua compreensão do processo de desenvolvimento infantil. Trata-se da noção de sistema


funcional (VIGOTSKI, 2004).
Tal noção permite a Vigotski um novo olhar sobre os avanços no processo de
desenvolvimento das funções psicológicas superiores, a partir do qual ele afirma;

[...] o que muda não são tanto as funções [...], nem sua estrutura, nem sua parte de
desenvolvimento, mas o que muda e se modifica são precisamente as relações, ou
seja, o nexo das funções entre si, de maneira que surgem novos agrupamentos
desconhecidos no nível anterior (VIGOTSKI, 2004, p. 105).

Essas mudanças, alterações e todas as conexões estruturais que se encontram no


processo de desenvolvimento e de substituição de funções de um estágio ao outro se chama
sistema. “Denominaremos sistema psicológico o aparecimento dessas novas e mutáveis
relações nas quais se situam as funções, dando-lhe o mesmo conteúdo que se costuma dar a
esse conceito – infelizmente amplo demais” (VIGOTSKI, 2004, p. 106).
A essência do sistema do desenvolvimento psicológico não se baseia no
desenvolvimento posterior, mas na mudança de conexões. Por exemplo, ao estudar a evolução
do pensamento e da linguagem na idade infantil, ele argumenta:

O processo de desenvolvimento dessas funções não consiste, fundamentalmente, no


fato de que dentro de cada uma delas se produza uma mudança, mas em que a
mudança é o nexo inicial entre elas; o que é característico tanto da filogênese no
plano zoológico quanto do desenvolvimento da criança na idade mais precoce
(VIGOTSKI, 2004, p. 105).

Tal ideia também está implícita na abordagem de Vigotski com relação à percepção.

Desenrola-se um determinado processo de ‘interiorização’ dos procedimentos com


a ajuda dos quais à criança que percebe um objeto o compara com outro e assim por
diante. [...] o desenvolvimento posterior da percepção consiste em estabelecer uma
complicada síntese com outras funções concretamente com a da linguagem
(VIGTOSKI, 2004, p 109).

Segundo ele, essa mudança no desenvolvimento ocorre porque a percepção estabelece


novas relações com outras funções. “Entra em complicadas combinações com novas funções
e começa a atuar em conjunto com elas como um sistema novo, que se revela bastante difícil
de decompor e cuja desintegração só pode ser observada na patologia” (VIGOTSKI, 2004, p.
110).
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A linguagem, para o autor, desempenha um papel fundamental no processo de


desenvolvimento, no entanto, tal papel não se esgota no desenvolvimento posterior, mas na
promoção de mudanças de conexões entre as funções psicológicas. É dentro deste contexto
que ele afirma a importância dos signos no processo de articulação das funções psicológicas.
Isso significa dizer, no que tange ao processo de desenvolvimento, as mudanças que
ocorrem ao longo do tempo, serão caracterizadas pelas situações sociais de desenvolvimento,
Estas mudanças expressam não só uma nova forma da criança se relacionar com o meio social
e consigo mesma, mas também um novo arranjo entre as funções psicológicas superiores –
novas conexões são produzidas em cada situação de mudança.

Considerações finais

A partir das considerações anteriores, podemos depreender que o desenvolvimento


infantil se caracteriza por um processo dialético complexo caracterizado pela periodicidade e
desigualdade entre as estruturas psicológicas e pelas possíveis conexões que se organizam
num sistema psicológico funcional.
Vigotski salienta que, a cada tentativa da criança em resolver uma tarefa implica na
formação de novas conexões entre as funções psicológicas envolvidas e, desta forma, o
conhecimento infantil sobre o objeto em questão se enriquece, uma vez que ele está em
conexão com outros objetos. O conceito construído nesse processo se organiza num sistema
de apreciações reduzidas a uma determinada conexão regular. Ele inclui em si uma relação no
que diz respeito a um sistema muito mais amplo.
Essa perspectiva fica muito evidente, quando Vigotski analisa uma situação
experimental. Trata-se do experimento desenvolvido por Levina, onde foi apresentada para
criança a tarefa de pegar um doce num armário. A solução para tal tarefa é assim descrita por
ele:

pediu-se a uma menina de quatro anos e meio que pegasse o doce, usando como
possíveis instrumentos um banco e uma vara. A descrição de Levina é a seguinte:
(parada ao lado de um banco, olhando e, com a vara, tentando sentir algo sobre o
armário.) “Subir no banco.” (Olha para o experimentador, muda a vara de mão.)
“Aquilo é mesmo um doce?” (Hesita.) “Eu posso pegá-lo com aquele outro banco,
subo e pego.” (Pega o outro banco.) “Não, não dá. Eu poderia usar a vara.” (Pega a
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vara e esbarra no doce.) “Ele vai mexer agora.” (Acerta o doce.) “Moveu-se, eu não
consegui pegá-lo com o banco, mas a vara funcionou (VYGOTSKY, 1991, p. 28).

Após tecer algumas considerações sobre a importância da fala e da ação na resolução


de problemas, apontando que ambas fazem parte de uma mesma função psicológica
complexa, o autor afirma:

Essas observações me levam a concluir que as crianças resolvem suas tarefas


práticas com a ajuda da fala, assim como dos olhos e das mãos. Essa unidade de
percepção, fala e ação, que, em última instância, provoca a internalização do campo
visual, constitui o objeto central de qualquer análise da origem das formas
caracteristicamente humanas de comportamento (VYGOTSKY, 1991, p. 28 –
negrito inserido por nós).

A unidade em questão caracteriza uma estrutura psicológica integrada, onde estão


implicadas funções psicológicas superiores da criança, que se articulam na resolução do
problema, oportunizando a integração de elementos que podem ser contraditórios.
A análise implementada por esta perspectiva, portanto, é holística, uma vez que os
elementos vão adquirindo novos significados quando, no processo histórico, são colocados
em relação com o todo em que estão integrados.
Cabe registrar, no entanto, que não estamos diante de situações que implicam somente
os aspectos cognitivos. Vigotski amplia sua compreensão contemplando os sentimentos
envolvidos nas situações infantis, estabelecendo a ideia de que existe uma relação entre os
sentimentos e o pensamento. “Se dizemos que desprezamos alguém, o fato de nomear os
sentimentos fazem com que estes variem, já que mantêm certa relação com nossos
pensamentos” (VIGOTSKI, 2004, p. 126). Esta relação expressa um novo momento na
organização do sistema, uma vez que, “A vida do ser humano reside nesta síntese [...] o
desenvolvimento histórico dos afetos ou das emoções consiste fundamentalmente em que se
alteram as conexões iniciais em que se produziram e surgem uma nova ordem e novas
conexões” (VIGOTSKI, 2004, p. 127).
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Para Vigotski, o estudo dos sistemas e das funções é muito instrutivo não apenas para
compreendermos o processo de desenvolvimento da criança e da construção dos processos
psíquicos, mas também no caso de sua desintegração1.
Todos os sistemas, a que esse autor se refere, são sistemas de origem social, fundam-
se na atitude social para consigo mesmo e se caracterizam pelo trabalho das relações coletivas
para o interior da personalidade. Para ele, “o esquizofrênico perde suas relações sociais com
aqueles que o rodeia, perde-as para consigo mesmo. [...] Ele não deixa apenas de compreender
os demais e de falar com eles, mas deixa de se dirigir a si mesmo através da linguagem”
(VIGOTSKI, 2004, p. 129).
Postula-se a partir dessas considerações, que é a estrutura do comportamento e da
consciência que determinam o destino do sistema. Vigotski considera a mudança da
consciência em seu conjunto como explicação de qualquer mudança interfuncional. Neste
sentido, a palavra, ao crescer na consciência da criança (mundo interno), modifica todas as
relações e todos os processos em função da consciência para o mundo externo.
As sínteses decorrentes das relações que se travam em torno das funções psicológicas
superiores têm relações específicas entre as conexões, no entanto, este processo de mudança
acontece no âmbito da consciência da criança. O que nos faz pensar que a promoção das
mudanças ao longo do processo está relacionada com as possibilidades (situação social de
desenvolvimento) da criança em se apropriar dos signos oferecidos pelo seu entorno cultural.
Tais situações têm um impacto muito grande sobre a criança, pois a partir delas
ocorrerão os processos de internalização – situações onde a criança tem a oportunidade de se
apropriar da cultura, tendo como base novos conceitos, novas significações.
Olhar para esses fatores de mudanças, para a organização das estruturas funcionais que
acontecem no processo de desenvolvimento criança e compreendê-los – têm um
desdobramento pedagógico: um re-pensar a educação, especialmente, na atuação do educador
junto às crianças e adolescentes, pois ele será a peça principal para oferecer as condições de
mudanças, entendendo que ele não modifica o processo, mas possibilita-o no sentido mais
amplo do desenvolvimento.

1
A desintegração, para Vigotski, aqui, se refere às atitudes do esquizofrênico de perder a conexão com o pensamento,
produzindo alterações débeis no cérebro, tais como: inabilidade afetiva, a desintegração intelectual, a irritabilidade
(VIGOTSKI, 2004).
3127

REFERÊNCIAS

VIGOSTSKI, L. S. (2004). Sobre os sistemas psicológicos. In: Teoria e método em


psicologia (3 ed., ). São Paulo: Martins Fontes.

VIGOTSKI, L. S. (2000). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:


Martins Fontes.

VYGOTSKI, L. S. (1932-1934/1996). El problema de la edade. In: Obras Escogidas IV:


Psicología infantil (pp. 251-276). Madrid: Visor.

VYGOTSKY, L. S. (1991). A formação social da mente (3 ed.). São Paulo: Martins Fontes.

VYGOTSKY, L. S. (1994). The problem of the environment. In. R. van der Veer & J.
Valsiner (Eds.). The Vygotsky Reader (pp. p. 338-354). Cambridge, M. A.: Backweell.

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