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REVISTA IHU ON-LINE

Nº 502 | Ano XVII | 10/4/2017

Sociabilidade 2.0 1
Relações humanas
nas redes digitais

Entrevistados
Fábio Malini
Henrique Antoun
Felipe de Oliveira
Eduardo Alves Leia também
Wilson Gomes ■ João Martins Ladeira
Adriana Amaral ■ Fabio Zanini
Raquel Recuero ■ Rita de Cássia Luckner
EDIÇÃO 502
EDITORIAL

Sociabilidade 2.0
Relações humanas nas redes digitais

R
edes sociais é algo que se estabelece no abrem a partir da polifônica narrativa web. Para
instante em que o ser humano passa a Wilson Gomes, professor da Universidade Fe-
viver em grupo. Essas relações vão se deral da Bahia, o uso das redes sociais depende
transformando com o desenvolvimento da hu- tanto do que as pessoas querem fazer com elas
manidade. Tal perspectiva desconstrói a ideia quanto das suas características inerentes e, por
de que o mundo digital trouxe novidade para isso, compreende que nada é efêmero, discreto
as relações entre as pessoas a partir das redes ou apagável no universo digital.
sociais digitais. Com a internet, o que passa Adriana Amaral, professora da Unisinos,
a haver é uma explosão “de possibilidades de propõe que se observe esse mundo digital não
modos de estar junto”, como define o profes- de forma descolada do mundo off-line. Por
sor Fábio Malini, da Universidade Federal isso, acredita que redes sociais digitais não
do Espírito Santo, um dos entrevistados dessa criam, mas potencializam relações e identida-
edição da IHU On-Line. Para ele, o interes- des já existentes. Raquel Recuero, professo-
sante dessa perspectiva em rede é a possibi- ra da Universidade Federal de Pelotas, foca o
lidade de infindáveis articulações sem a de- olhar nos efeitos que essa potencialização das
2 pendência de intermediários, sejam mídias ou relações nas redes digitais causa. Segundo ela,
organizações, pois, por exemplo, “não há mais há formação de uma modalidade de esfera pú-
a necessidade de um sindicato para produzir blica, criando bolhas que restringem circulação
uma mobilização”. de opiniões e ideias.
Na presente edição da revista IHU On-Li-
Também podem ser lidas nesta edição as en-
ne, além de Malini, pesquisadores e pesqui-
trevistas com o jornalista Fábio Zanini, que
sadoras debatem as redes sociais na internet e
descreve a política externa do Brasil, especial-
suas sociabilidades.
mente nos governos do presidente Lula, e com a
Henrique Antoun, professor da Universida- mestra em Ciências da Religião Rita de Cassia
de Federal do Rio de Janeiro, reconhece as in- Scocca Luckner, que analisa a obra Inciden-
findáveis possibilidades de relações a partir da te em Antares, de Erico Verissimo, desde uma
internet. Entretanto, chama atenção para o tipo perspectiva teológica.
de trabalho gerado a partir das redes digitais,
A todas e a todos, uma boa leitura e uma ex-
que trazem liberdade, mas que a todo instante
celente semana com os melhores votos de uma
tenta se cooptar esse trabalho imaterial pela ló-
Feliz Páscoa da Ressurreição.
gica do capital.
Felipe de Oliveira, doutor em Ciências da
Comunicação, observa que a enxurrada de in-
formação produzida pelas redes sociais digitais
atualiza o papel da imprensa. Para o pesquisa-
dor, apesar da complexidade diante de fluxos
comunicacionais do ambiente digital, é a im-
prensa que deve assumir o papel de curadoria
da informação. A IHU On-Line, por meio da
reportagem de Ricardo Machado, também
tenta compreender, nesse contexto, as chama-
das notícias falsas e a frágil bolha da verdade.
Eduardo Alves, do Observatório de Favelas,
Foto: Pavlina Rupova
analisa a potência criativa das periferias, que é Flickr Creative
amplificada pelas várias possibilidades que se Commons

10 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Livro | Fabio Zanini: Brasil e sua política externa pendular
14 ■ Entrevista | João Ladeira: Uma nova TV capturada pelo Vale do Silício e que alimenta o
resto do mundo
20 ■ Tema de capa | Fábio Malini: Internet é uma máquina que potencializa minorias
26 ■ Tema de capa | Henrique Antoun: Redes sociais querem se transformar em currais do
trabalho imaterial
30 ■ Tema de capa | Felipe de Oliveira: Jornalismo deve fazer mediação qualificada entre
acontecimentos e a sociedade
34 ■ Tema de capa | Reportagem | Ricardo Machado: O rastilho de pólvora das notícias falsas
no pavio da intolerância
37 ■ Tema de capa | Eduardo Alves: A potência criativa das periferias na construção de novas
narrativas web
42 ■ Tema de capa | Wilson Gomes: Nada é efêmero, discreto ou apagável no universo digital
46 ■ Tema de capa | Adriana Amaral: Indissociabilidade entre os mundos on e off-line
50 ■ Tema de capa | Raquel Recuero: Redes sociais formaram bolhas na internet que
restringem circulação de opiniões e ideias
54 ■ Teologia Pública | Rita de Cassia Scocca Luckner: Crítica social pela leitura 3
teológica-literária de Incidente em Antares
62 ■ Cinema | Vitor Necchi: A serenidade de Moonlight sobre os escombros do abandono
64 ■ Publicações | Carlos Frederico Guazzelli: A Justiça, Verdade e Memória: Comissão
Estadual da Verdade
65 ■ Publicações | Thyeles Moratti Precilio Borcarte Strelhow: A constituição da Dignidade
Humana: aportes para uma discussão pós-metafísica
67 ■ Outras edições

Diretor de Redação Atualização diária do sítio


Inácio Neutzling Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
(inacio@unisinos.br) Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,
Luísa Boéssio e William Gonçalves.
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Ricardo Machado - MTB 15.598/RS
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João Flores da Cunha - MTB 18.241/RS
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to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Vitor Necchi - MTB 7.466/RS Instituto Humanitas Unisinos - IHU
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conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Editoração Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Gustavo Guedes Weber (jacintos@unisinos.br)

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TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Sistema agroalimentar remove o sentido


original da agricultura
“Um Estado efetivamente comprometido com o direito humano à alimen-
tação e à nutrição adequadas promoveria ações regulatórias sobre a ação
das transnacionais e das grandes empresas, sobre a liberação de transgê-
nicos e o uso de agrotóxicos.”
Valéria Burity é advogada e mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba

Atlas Agropecuário permitirá relacionar


posse da terra com serviços ambientais
Por meio do Atlas poderemos “saber quem é o dono do carbono, da água,
da biodiversidade e vários outros serviços ambientais importantes. Pode-
mos saber também quem exatamente será afetado por uma obra de infra-
estrutura, ou pela criação de um hub logístico como um porto ou silo”.
Gerd Sparovek é graduado, mestre e doutor em Agronomia pela Universidade de São Paulo - USP

4
Equador está dividido, assim como toda a
América Latina
“Será pouco provável que Lenín consiga manter suas propostas com todo
o potencial que elas merecem, simplesmente porque o Equador passa por
seu momento de crise, devido à baixa dos preços do petróleo, que continu-
am sendo o motor do desenvolvimento do país.”
Elaine Santos é socióloga e professora da Rede Estadual em Santo André-SP, mestra em Energia e
atualmente cursa doutorado no Centro de Estudos Sociais em Coimbra

Maior ameaça ao Cerrado é considerar sua ve-


getação nativa um estorvo ao desenvolvimento
“Como o inverno seco pode durar quase seis meses, para muitos a secura
deste período seria a situação predominante. Entretanto, os verões chuvo-
sos, originalmente, podem trazer, em média, para a região cerca de 1.600
mm de chuva.”
José Felipe Ribeiro é graduado em Biologia pela Unicamp, mestre em Ecologia pela UnB e doutor
em Ecologia pela University of California

A Lava Jato é um fato, mas o judiciário por si


só não faz história
“Então, a sociedade brasileira tem uma estrutura produtiva que se reflete
na sua estrutura social e que se reflete na sua estrutura política. Para sair
dessa dança, é necessária uma mudança estrutural significativa.”
Carlos Lessa é doutor em Ciências Humanas pela Unicamp. Foi reitor da UFRJ e presidente
do BNDES

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Bill Gates se une Entre a cidade e a No Brasil, alfabetização


ao cerco contra o aldeia, jovem indígena entre crianças mais ricas
capitalismo dos robôs luta para salvar nação é seis vezes maior que
Assurini do Xingu entre as pobres

Benoît Hamon não está sozi- Entre dois mundos. É assim As desigualdades na quali-
nho. A proposta do socialista que Timei Assurini, de 22 dade da educação começam
francês de tributar robôs com anos, vive. Ele saiu da aldeia desde cedo. No Brasil, crian-
um imposto para compensar no Médio Xingu, localizado ças com famílias de níveis
os empregos destruídos pelas no município de Altamira, socioeconômicos mais altos
máquinas inteligentes está no estado do Pará, para ini- têm desempenho considerado
sendo debatido nas últimas ciar uma jornada em busca adequado desde a alfabetiza-
semanas com intensidade. E de conhecimento no mundo ção. Entre aquelas com nível
a culpa pelo alvoroço é em dos Karai [não indígenas]. A socioeconômico mais baixo, o
parte de Bill Gates. O funda- missão que se propôs a fazer percentual das que têm apren-
dor da Microsoft juntou-se ao era também uma forma de dizado considerado adequado
movimento do imposto sobre curar a depressão, doença chega a ser seis vezes menor.
robôs, que até agora parecia que veio acompanhada dos Os dados são de levantamen-
território exclusivo de socia- impactos ambientais e cultu- to feito pelo movimento Todos
listas e sindicalistas. rais na Amazônia. pela Educação (TPE).
A reportagem é de Ana Carbajosa, A reportagem é de Lilian Campelo, pu- A reportagem é de Mariana Tokarnia,
publicada por El País, reproduzida no blicada por Brasil de Fato, reproduzida publicada por Agência Brasil, reprodu- 5
sítio do IHU. no sítio do IHU. zida no sítio do IHU.

Guerras e fome: a A técnica não salvará De Martin Luther King


cegueira do Ocidente o homem. Artigo de a Maria Eduarda Alves,
Joseph Ratzinger a violência que
ameaça os sonhos

“A fome no mundo não é Foi publicado nesta terça- No último fim de semana, a
nenhuma maldição bíblica, -feira, 4 de abril, o livro Il adolescente Maria Eduarda,
nem uma fatalidade que seja tempo e la storia. Il senso de 13 anos, morreu atingida
necessário suportar, porque del nostro viaggio [O tem- por três “balas perdidas”,
o mundo dispõe de recursos po e a história. O senti- mesmo estando dentro da
suficientes para a enfrentar, do da nossa viagem] (180 escola, na Zona Norte do
caso consigamos (pressio- páginas), uma coleção de Rio. As balas são oriundas de
nando os governos, insistin- escritos de Joseph Ratzin- um confronto entre policiais
do na exigência de justiça e ger inéditos na Itália. São e bandidos na comunidade.
solidariedade, combatendo o textos dos anos 1970, ante- Mais uma vez, o debate se
imperialismo) que a ceguei- riores à nomeação episco- fecha na culpabilização dos
ra do Ocidente, diante dos pal do papa emérito, que indivíduos: saber de onde
desastres das guerras, deixe está prestes a completar, vieram as balas para saber
espaço para a maltratada, no próximo dia 16 de abril, se os responsáveis são trafi-
generosa e imprescindível 90 anos. cantes ou policiais.
fraternidade humana”. Um trecho do livro foi publicado por A reportagem é de Ronilso Pacheco,
Artigo de Higinio Polo, doutor em História La Stampa e reproduzido no sítio publicada por The Intercept, reproduzi-
Contemporânea pela Universidade de do IHU. da no sítio do IHU.
Barcelona, reproduzido no sítio do IHU.

EDIÇÃO 502
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Reconstruir em Os desafios do Impactos ambientais


campo minado. Ideias trabalho no mundo e contrassensos no
para uma esquerda contemporâneo pantanal brasileiro
pós-PT

12/abr 18/abr 18/abr


Horário Horário
Evento vinculado ao ciclo de Horário
19h30min às 22h 17h30min
debates às 19h30min
A reinvenção da polí- 19h30min às 22h
tica no Brasil contemporâneo.
Conferencista Conferencista
Limites e perspectivas Conferencista
Prof. Dr. Rodrigo Nunes – Prof. Dr. José Dari Krein –
Horário Profa. Dra. Carolina Joana
Unicamp às 22h
19h30min da Silva – UNEMAT
PUC-Rio
Conferencista
Local Local
Local SalaDr.
Prof. Ignacio
RodrigoEllacuría e
Nunes – Pon- Local: Sala Ignacio Ellacu-
Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros
tifícia Universidade–Católica
IHU do ría e Companheiros – IHU
Companheiros – IHU Campus
Rio Unisinos
de Janeiro São
– PUC-Rio Campus Unisinos
Campus Unisinos Leopoldo
Local São Leopoldo
São Leopoldo Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU
Campus Unisinos São Leopoldo

6
IHU Ideias: O EAD – Ciclo de A desidentificação
pampa invisível: a estudos Os Biomas da esquerda como
monopolização das Brasileiros e a Teia possibilidades na
terras e as populações da Vida política brasileira
invisibilizadas contemporânea

20/abr 24/abr a 28/abr 24/abr


Horário Semana 1 de 7 Horário
17h30min às 19h Bioma Pampa 19h30min às 22h
Palestrante Conferencista
Profa. Dra. Flavia Maria Prof. Dr. Moyses Pinto
Neto – Ulbra
Silva Rieth – UFPEL
Local
Local Sala Ignacio Ellacuría e
Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Companheiros – IHU Campus Unisinos
Campus Unisinos São Leopoldo
São Leopoldo

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Amazônia: IHU Ideias: Impactos A escalada da


biodiversidade da reestruturação violência diante dos
e os serviços produtiva no contexto avanços econômico-
ecossistêmicos do pós-industrial. Limites sociais na (re)produção
bioma Amazônia e possibilidades das metrópoles

26/abr 27/abr 27/abr


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 17h30min às 19h 19h30min às 22h
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. Antônio dos San- Prof. Dr. César Sanson – Prof. Dr. Luis Flávio Sapori
tos – UEA – PUC-Minas
UFRN
Local Local
Auditório Pe. Bruno Local Local: Sala Ignacio Ellacu-
Hammes Sala Ignacio Ellacuría e ría e Companheiros – IHU
Campus Unisinos Companheiros – IHU Campus Unisinos
São Leopoldo Campus Unisinos São Leopoldo
São Leopoldo

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LIVRO

Brasil e sua política externa pendular


Fabio Zanini analisa a política internacional da Era Lula,
o reposicionamento do Brasil no cenário mundial e as novas
configurações nas relações entre nações
João Vitor Santos

C
omo pêndulo de relógio, a polí- É, segundo o jornalista, a mesma lógica
tica externa brasileira se movi- pendular que embala a política interna
menta hora para uma direção, lulista. “A política externa ‘de esquerda’,
hora para outra. De um lado, as forças baseada no anti-imperialismo e na aju-
hegemônicas, como Estados Unidos e, da aos mais pobres, muitas vezes foi um
de outro, países mais periféricos, como contrapeso poderoso a políticas econô-
os da América Latina. É nessa perspec- micas ortodoxas que eram adotadas em
tiva que vai a análise do jornalista Fa- casa”, analisa.
bio Zanini. “O Brasil, por seu tamanho Fabio Zanini é
e diversidade, tem dificuldade de se jornalista, formado
encaixar num único modelo de diplo- pela Escola de Co-
macia”, pontua. Para ele, o país tem municações e Artes
vocação como potência regional, “mas da Universidade de
8
também não é absurdo almejarmos São Paulo - ECA-
um lugar mais privilegiado na mesa -USP, com mes-
dos ricos. Por nossos laços históricos, trado em relações
estamos em posição também de aspi- internacionais pela
rar o papel de líder do mundo subde- Universidade de
senvolvido”. Londres. No jornal
Zanini concilia sua experiência como Folha de São Paulo,
repórter de política e correspondente é editor do cader-
internacional para analisar o que consi- no Poder, que tra-
dera, de certa forma, uma fase dourada ta de assuntos de
da diplomacia brasileira durante os go- política. Ainda no
vernos do presidente Lula. Entretanto, mesmo jornal, foi
para conseguir esse lugar de destaque editor de Mundo,
no cenário internacional, acaba con- correspondente in-
trariando alguns princípios de esquer- ternacional (em Londres e Johanes-
da. “Em seu governo, Lula conseguiu burgo) e repórter de política em São
a façanha de embalar uma política ex- Paulo e Brasília. É autor de Euforia e
terna de cunho mercantil e, portanto, Fracasso do Brasil Grande. Política
capitalista, numa roupagem ideológica Externa e Multinacionais (São Pau-
de esquerda”, destaca em entrevista lo: Contexto, 2017).
concedida por e-mail à IHU On-Line. Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que o senhor Fabio Zanini – Entendo a eu- Lula1 e parte do primeiro governo
compreende por “euforia do foria como um período que, grosso
Governo Lula”? E no que con- modo, vai de 2003 a 2013, compre- 1 Luiz Inácio Lula da Silva [Lula] (1945): Trigési-
mo quinto presidente da República Federativa do
siste essa ideia de fracasso? endendo, portanto, os dois governos Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro

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“A troca de Lula por Dilma e


a saída de Amorim fizeram
a política externa descer
vários degraus na escala de
prioridades do governo”

Dilma2, em que uma série de fatores O fracasso acompanha o desmo- política externa?
coincidentes criou um clima propí- ronamento desse modelo, puxado
Fabio Zanini – O presidente
cio à expansão do Brasil. Os princi- por uma postura mais retraída do
Lula, ao assumir em 2003, colo-
pais foram o ciclo favorável das com- país. Isso também se deve a uma sé- cou a política externa como algo
modities, que levou à expansão das rie de motivos que espelham quase central. Raras vezes a diplomacia
exportações, a ambição de empresas que à perfeição o período anterior. teve papel tão preponderante para
brasileiras de se internacionalizar, Em desaceleração econômica brus- um governo, chegando a ser algo
um novo papel do Banco Nacional ca, que depois se transformou em que o definia política e ideologi-
de Desenvolvimento Econômico e recessão aguda, o Brasil teve que camente. Como repórter da Folha,
Social - BNDES de financiamento às recalibrar suas prioridades. Tor- cobri a primeira viagem do presi-
vendas para outros países e, como neiras de financiamento fecharam. dente Lula ao exterior, em janeiro
catalisador disso tudo, um presiden- A troca de Lula por Dilma e a saída de 2003, para o Equador. Lembro
te com ideias ambiciosas ladeado de Amorim fizeram a política ex- dele dizendo numa entrevista que 9
por um chanceler com visão estraté- terna descer vários degraus na es- o Brasil precisava “desabrochar na
gica, como foi Celso Amorim3. cala de prioridades do governo. Por América do Sul”. Ao longo de seu
fim, a Operação Lava Jato4 revelou mandato, uma política externa am-
de 2011. É cofundador e presidente de honra do
Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1990, foi um relações promíscuas de empreitei- biciosa tinha por objetivo reposi-
dos fundadores e organizadores do Foro de São
Paulo, que congrega parte dos movimentos polí- ras com governos e colocou todos cionar o Brasil como líder do Ter-
ticos de esquerda da América Latina e do Caribe. na defensiva. ceiro Mundo.
Foi candidato a presidente cinco vezes: em 1989
(perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994
(perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em Vejo uma analogia interessan-
1998 (novamente perdeu para Fernando Henrique te com a característica do próprio
Cardoso), e ganhou as eleições de 2002 (derrotan- IHU On-Line – Como compre-
do José Serra) e de 2006 (derrotando Geraldo Al- Lula, que surgiu na vida pública
ckmin). Lula bateu um recorde histórico de popu- ender essa relação do Governo
laridade durante seu mandato, conforme medido como um sindicalista. Como pre-
pelo Datafolha. Programas sociais como o Bolsa Lula com empreendedores da
sidente, sua ambição era levar o
Família e Fome Zero são marcas de seu governo, construção civil, do agrone-
programa este que teve seu reconhecimento por Brasil a ser uma espécie de “líder
parte da Organização das Nações Unidas como gócio e do setor petrolífero na sindical” das nações pobres junto
um país que saiu do mapa da fome. Lula teve um
papel de destaque na evolução recente das rela- às ricas. A expansão econômica e
ções internacionais, incluindo o programa nuclear teriores do Brasil. Influenciado pelo trabalho de
do Irã e do aquecimento global. É investigado na Ulysses Guimarães, filiou-se ao PMDB, mas não militar se tornou parte fundamen-
operação Lava Jato. (Nota da IHU On-Line) teve militância partidária. PT. Em 7 de outubro de
2 Dilma Rousseff (1947): economista e política 2009, David Rothkopf, um comentarista da revis- tal dessa estratégia. Lula e Amorim
brasileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores ta estadunidense Foreign Policy indicou Amorim aplicaram com rigor os manuais
(PT), presidente do Brasil de 2011 (primeiro man- como “o melhor chanceler do mundo”. No dia 5
dato) até 31 de agosto de 2016 (segundo ano de de março de 2015, recebeu o título de Doutor Ho- tradicionais de projeção de poder,
seu segundo mandato). Em 12 de maio de 2016, noris Causa pela Universidade Estadual da Paraí-
foi afastada de seu cargo durante o processo de ba. (Nota da IHU On-Line) em que o necessário é uma mescla
impeachment movido contra ela. No dia 31 de 4 Operação Lava Jato: investigação em anda- de influência “dura” (econômica e
agosto, o Senado Federal, por votação de 61 vo- mento pela Polícia Federal do Brasil, que defla-
tos favoráveis ao impeachment e 20 contra, afas- grou sua fase ostensiva em 17 de março de 2014, militar) com “suave” (a imagem do
tou Dilma definitivamente do cargo. O episódio cumprindo mais de cem mandados de busca e Brasil e sua influência como exem-
do impeachment foi amplamente debatido nas apreensão, prisão temporária, prisão preventiva e
Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por exem- condução coercitiva, visando apurar um esquema plo a ser seguido).
plo, a Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada de lavagem de dinheiro suspeito de movimentar
Os pacotes do Temer alimentarão a esquerda bra- mais de R$ 10 bilhões, podendo ser superior a
sileira e ela voltará ao poder, disponível em http:// R$ 40 bilhões, dos quais R$ 10 bilhões em pro-
bit.ly/2bLPiHK. Durante o governo do ex-presi- pinas. De acordo com investigações e delações
dente Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia recebidas pela força-tarefa da Lava Jato, estão en- IHU On-Line – A relação do
do Ministério de Minas e Energia e posteriormen- volvidos os maiores partidos do Brasil, como PP, poder público com empresas
te da Casa Civil. Em 2010, foi escolhida pelo PT PT, PMDB e PSDB, além de empresários e políticos
para concorrer à eleição presidencial. (Nota da de diversos partidos. A seção Notícias do Dia, do da construção civil, do agro-
IHU On-Line) sítio do IHU, vem publicando textos e análises so-
3 Celso Amorim (1942): Celso Luiz Nunes Amo- bre os movimentos realizados em cada uma das negócio e do setor petrolífero
rim é um diplomata brasileiro e ex-ministro da fases da Operação, que ainda segue em anda- não é novidade e não tem ori-
defesa. Ao longo de sua carreira, ocupou por mento. Confira em ihu.unisinos.br/noticias. (Nota
duas vezes o cargo de ministro das Relações Ex- da IHU On-Line) gem apenas no governo Lula.

EDIÇÃO 502
LIVRO

Como compreender essa rela- IHU On-Line – Sérgio Buar- nais brasileiras? No que elas se
ção de permissividade entre que de Holanda7 é autor do diferem e se associam às mul-
poder público e iniciativa pri- célebre e controverso concei- tinacionais com origem em ou-
vada ao longo da história polí- to de homem cordial8, aquele tros países?
tica no Brasil? com dificuldade de separar
Fabio Zanini – O Brasil histo-
os âmbitos estatais e priva-
Fabio Zanini – De fato, essa ricamente teve uma imagem benig-
dos/pessoais. Como o senhor
relação acompanha o Brasil desde na no exterior, e isso acompanhou
compreende o conceito? É
a metade do século XX, pelo me- suas multinacionais. Os brasilei-
possível perceber esse con-
nos. No regime militar, houve ecos ros, de forma geral, se destacam
da estratégia que Lula implemen- ceito na política brasileira do
dos concorrentes de outros países
tou, sobretudo a partir do governo nosso tempo?
favoravelmente. Os chineses na
Geisel5. A primeira onda de inter- Fabio Zanini – Sem dúvida. África, por exemplo, têm reputa-
nacionalização de empreiteiras, Estamos vendo isso diariamen- ção de fazer obras rapidamente e a
por exemplo, vem dessa época. A te nas acusações que têm vindo à baixo custo, mas de má qualidade.
Odebrecht6, para citar a mais em- tona na Operação Lava Jato. O ho- Também importam seus próprios
blemática, era uma empresa espe- mem público brasileiro continua trabalhadores, que vivem de for-
cializada em tocar obras do “Brasil com dificuldade de enxergar um ma isolada do restante do país, o
grande” e enxergou rapidamente limite entre o que é estatal e o que que provoca reações de antipatia,
que a expansão e a mudança de é privado. A cultura da propina, sobretudo em contextos de grande
patamar passavam por cruzar fron- do favor, da nomeação do apadri- desemprego local. Americanos car-
teiras. Sua primeira grande obra no nhado político permanece forte, regam a imagem de imperialismo
exterior, a hidrelétrica de Capanda, apesar dos avanços das últimas que os acompanha inevitavelmen-
em Angola, é da virada dos anos décadas. Mudar essa tônica é um te em qualquer parte do mundo,
1970/80. processo longo, que engloba edu- enquanto europeus, sobretudo na
cação, mudanças na lei eleitoral e África, sofrem com os rancores
No governo Lula, há uma segun-
criminal, reforma política, entre mal resolvidos da época colonial. É
10 da expansão, bastante marcada
outros pontos. bom lembrar que há meros 60 anos
pelo ativismo presidencial, como
a grande maioria dos países africa-
já mencionei. Penso que a permis-
sividade vem de uma série de fra-
gilidades institucionais que não
“Lula e Amo- nos eram colônias.
No caso do Brasil, há uma boa
cabem aqui detalhar. Mas destaco
uma: a falta, por exemplo, de uma
rim aplicaram vontade pela cultura das empre-
sas de tentar integrar-se aos paí-
lei específica que puna a corrupção com rigor os ses hospedeiros. De forma geral, a
praticada por empresas no exte-
manuais tradi-
reputação dos produtos e serviços
rior, como os EUA têm o Foreign oferecidos por empreiteiras como
Corrupt Practices Act - FCPA.
cionais de pro- a Odebrecht, mineradoras como a
Vale, além da Petrobras, continua

jeção de poder” inabalada. Mas, como eu mostro


no livro, sinto que essa imagem
5 Ernesto Geisel (1908-1996): ditador militar e
político brasileiro. Foi adido militar no Uruguai, corre riscos. Um sentimento con-
comandante da XI Região Militar em Brasília, che- IHU On-Line – Como compre- tra o imperialismo brasileiro cres-
fe do gabinete militar da Presidência da República
no governo Castelo Branco, ministro do Superior ender a lógica das multinacio- ce em locais como o Peru. Popula-
Tribunal Militar e presidente da Petrobras (1969-
1973). Eleito presidente da República por um ções afetadas por obras e projetos
Colégio Eleitoral (1973), indicado pelos militares,
tomou posse em 15 de março de 1974, como pe- 7 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982):
grandiosos já não veem com olhos
núltimo ditador militar depois do golpe de 1964. historiador brasileiro, também crítico literário e tão benignos a presença brasileira.
(Nota da IHU On-Line) jornalista. Entre outras obras, escreveu Raízes do
6 Organização Odebrecht: é um conglomerado Brasil, de 1936. Obteve notoriedade através do As recentes revelações de atos de
brasileiro de capital fechado que atua em diver- conceito de “homem cordial”, examinado nessa
sas partes do mundo nas áreas de construção e obra. A professora Dr.ª Eliane Fleck, do PPG em corrupção empresarial brasileira
engenharia, químicos e petroquímicos, energia, História da Unisinos, apresentou, no evento IHU provavelmente agravarão muito
saneamento, entre outros. A empresa foi fundada ideias, de 22-8-2002, o tema O homem cordial:
pelo engenheiro pernambucano Norberto Ode- Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e esse quadro.
brecht, no ano de 1944, em Salvador, no estado no dia 8-05-2003, a professora apresentou essa
da Bahia, e atualmente está presente em 21 países mesma obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil,
distribuídos por todo o Continente Americano, concedendo, nessa oportunidade, uma entrevista
na África, na Europa e no Oriente Médio. Envol- à IHU On-Line, publicada na edição nº 58, de 5-5-
vida em escândalos de corrupção, revelado pela 2003, disponível em http://bit.ly/152MP1v. Sobre IHU On-Line - Qual sua ava-
Operação Lava Jato, tem seu principal executivo Sérgio Buarque de Holanda, confira, ainda, a edi- liação sobre a política externa
herdeiro do fundador, Marcelo Odebrecht, preso ção 205 da IHU On-Line, de 20-11-2006, intitula-
preventivamente. Em dezembro de 2016, o gru- da Raízes do Brasil, disponível para download em brasileira e seus movimentos
po Odebrecht (o que inclui a Braskem) admitiu o http://bit.ly/SMypxY. (Nota da IHU On-Line)
pagamento de propina a 12 países e centenas de 8 A Revista IHU On-Line número 498, de 28- (ao longo de sua história) para
políticos, e firmou com os Estados Unidos, Suíça 11-2016, revisita a obra de Holanda e debate o se inscrever no cenário inter-
e Brasil o maior acordo de leniência do mundo. conceito de homem cordial. Acesse em http://bit.
(Nota da IHU On-Line) ly/2nDmdFE. (Nota da IHU On-Line) nacional?

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REVISTA IHU ON-LINE

Fabio Zanini – A política ex- petista, como o Bolsa Família, o IHU On-Line – O senhor es-
terna brasileira é pendular. O microcrédito e as ações afirmati- teve em países em que atu-
Brasil, por seu tamanho e diver- vas foram exportadas com relativo avam grandes empresas
sidade, tem dificuldade de se sucesso. O apoio a governos con- brasileiras que receberam
encaixar num único modelo de troversos, como Venezuela e Cuba, incentivo estatal. O que traz
diplomacia. Temos vocação para serviu como amálgama da esquer- dessa experiência?
sermos potência regional, mas da brasileira e deu a Lula cobertura Fabio Zanini – Vou dar o
também não é absurdo almejar- política para executar suas políti- exemplo de Angola, que me pa-
mos um lugar mais privilegiado cas. Muitas e muitas vezes a postu- rece o mais apropriado. Diversas
na mesa dos ricos. Por nossos la- ra com relação a Hugo Chávez9, por empresas brasileiras receberam
ços históricos, estamos em posi- exemplo, fez parte do arsenal retó- financiamento estatal (sobretudo,
ção também de aspirar o papel de rico do presidente contra a oposi- via BNDES) para realizar grandes
líder do mundo subdesenvolvido. ção tucana. obras. Uma delas, impressionan-
Ao mesmo tempo, dividimos com te, é a usina hidrelétrica de Laú-
os EUA a responsabilidade sobre ca, que eu visitei. Nesses países,
a manutenção da estabilidade na
América Latina.
“O homem houve também um momento de
euforia e depois fracasso. Cada
Por isso, o Brasil alterna momen- público brasi- visita de Lula a um país africano
sempre foi um evento compará-
tos em que se aproxima, por exem-
plo, dos EUA e dos parceiros euro- leiro continua vel a recebermos aqui o presiden-

com dificulda-
peus e outros em que a ênfase é no te dos EUA. O Brasil é visto, até
chamado Sul Global (América Lati- para surpresa minha, como uma
na, África e Oriente Médio). O fato
é que é difícil categorizar o Brasil, de de enxer- potência em diversas partes do
mundo. Muitas pessoas com quem
o que não é necessariamente ruim.
Nossa tradição de política externa,
gar um limite eu conversava tinham dificuldade
em acreditar que somos um país
dado esse cenário, sempre foi flexí-
vel, tolerante e pragmática.
entre o que é com bolsões de pobreza e profun-
damente desigual. E a chegada do
11

estatal e o que presidente trazendo promessas de


financiamento para obras, acom-
IHU On-Line - O senhor ava-
lia que, nos últimos anos, o
é privado” panhado de comitivas expressivas
de grandes empresários, sempre
Brasil usou a política externa teve impacto altamente favorável.
como instrumento de política Aliás, mesmo como ex-presiden-
interna. Gostaria que expli- te isso se manteve intocado, até
casse mais essa perspectiva. 9 Hugo Chávez Frías (1954-2013): político e mi- a Lava Jato começar. Quando a
litar venezuelano, tendo sido o 56º presidente da
Essa posição comprometeu o Venezuela, governando por 14 anos desde 1999 fonte seca, diversos governos sem
até sua morte em 2013. Líder da Revolução Boli-
cenário interno? variana, Chávez advogava a doutrina bolivarianis- capacidade de investimento ficam
ta, promovendo o que denominava de socialismo sem saber como dar sequência a
Fabio Zanini – Em seu governo, do século XXI. Chávez foi também um crítico do
projetos grandiosos.
neoliberalismo e da política externa dos Estados
Lula conseguiu a façanha de emba- Unidos. Oficial militar de carreira, Chávez fundou
lar uma política externa de cunho o Movimento Quinta República, da esquerda po-
lítica, depois de capitanear um golpe de estado
mercantil e, portanto, capitalista, malsucedido contra o governo de Carlos Andrés IHU On-Line - Gostaria, ain-
Pérez, em 1992. Chávez elegeu-se presidente em
numa roupagem ideológica de es- 1998, encerrando os 40 anos de vigência do Pacto da, que detalhasse sua expe-
querda. Isso foi possível por sua de Punto Fijo (firmado em 31 de outubro de 1958,
entre os três maiores partidos venezuelanos) com riência com países africanos.
extrema habilidade política, dotes uma campanha centrada no combate à pobreza. Como foi se relacionar com
Reelegeu-se, vencendo os pleitos de 2000 e 2006.
de negociador, pragmatismo, ora- Com suas políticas de inclusão social e transferên- aquela realidade? Que narra-
tória poderosa e pela biografia que cia de renda obteve enorme popularidade em seu
país. Durante a era Chávez, a pobreza entre os ve- tiva se constrói do Brasil des-
encantou o planeta e lhe deu a lati- nezuelanos caiu de 49,4%, em 1999, para 27,8%, de aqueles lugares?
em 2010. No plano político interno, Chávez fundiu
tude necessária para levar a efeito os vários partidos de esquerda no PSUV. Fortale-
ceu os movimentos e as organizações populares, Fabio Zanini – Tenho muita ex-
esse experimento. estabelecendo uma forte aliança com as classes
mais pobres. Nas várias eleições, realizadas ao
periência na África. Já perdi as con-
A política externa “de esquerda”, longo de aproximadamente 15 anos, a oposição tas de quantas vezes estive por lá.
foi derrotada. Inconformados, os adversários de
baseada no anti-imperialismo e Chávez promoveram um golpe de Estado, no iní- Conheço 25 países. Passei seis meses
na ajuda aos mais pobres, muitas cio de 2002, com apoio do governo dos Estados viajando pelo continente em 2008,
Unidos. Apesar de o governo norte-americano ter
vezes foi um contrapeso poderoso usado de sua influência para obter o reconheci- num período sabático que rendeu
mento imediato do novo governo, a comunidade
a políticas econômicas ortodoxas internacional – inclusive o Brasil, então governado meu primeiro livro, Pé na África (São
que eram adotadas em casa. Mar- por Fernando Henrique Cardoso – condenou o Paulo: Publifolha, 2009). O africano,
golpe. Chávez acabou voltando ao poder três dias
cas bem-sucedidas do governo depois. (Nota da IHU On-Line) em geral, gosta muito do Brasil. En-

EDIÇÃO 502
LIVRO

xergam-nos como um país amigável, reconhecer que houve certo suces- a pauta migrou muito para ques-
que pode fornecer ajuda econômica so. No Brasil, a tensão com ques- tões puramente comerciais, sem
e humanitária sem a carga negativa tões ambientais foi permanente, nenhum esboço de uma estratégia
que têm outras potências. mesmo com o país tendo uma mi- internacional comparável à que foi
nistra de Meio Ambiente respeita- de Lula.
Vejo a relação com o Brasil em
da, como era Marina Silva10. Para
três estágios: o primeiro, talvez
ambientalistas, os anos Lula fo-
até os anos 70, tinha no brasilei- IHU On-Line - Como o se-
ram decepcionantes, e foi impos-
ro um povo irmão, tanto na cor da nhor projeta o Brasil no cená-
sível competir com a formação de
pele quanto na cultura e no fute-
uma nova classe média e a expan- rio internacional nos próxi-
bol. É a época romântica. A segun-
são do agronegócio, por exemplo, mos anos?
da fase é a de ver o Brasil como
na lista de prioridades. Na política
um país forte economicamente. Fabio Zanini – A maior inser-
externa, esse discurso se repetiu.
E a terceira, ainda incipiente, é a ção do Brasil no mundo é inevitável.
A presença de questões ambien-
de perceber que os interesses dos Também acredito que a internacio-
tais no processo de internaciona-
brasileiros nem sempre coincidem nalização das empresas brasileiras é
lização brasileira foi pífia.
com os dos africanos. um movimento irrefreável, e que será
retomado quando o país voltar a cres-
IHU On-Line - Como avalia os cer. Com sorte, será um movimento

“Em seu go-


movimentos do governo de Mi- sob novas regras de transparência
chel Temer11 no cenário inter- e sem a promiscuidade que vem ca-

verno, Lula nacional?


Fabio Zanini – Ainda é cedo
racterizando a relação com o Brasil
e outros países. Onde o Brasil estará
conseguiu a para ter um quadro geral, mas já se
pode perceber uma ênfase voltada
vai depender muito de qual direção
tomará o cenário internacional.
façanha de para a boa relação com o mundo Se a vertente protecionista e na-
rico, de acordo com o movimen-
12 embalar uma to pendular que descrevi. A maior
cionalista triunfar, seguindo os
exemplos dos EUA e países euro-

política externa
ruptura foi a perda da “paciência peus, dificilmente o Brasil escapa-
estratégica” com a ala esquerdista rá de aderir a uma atitude de fecha-
de cunho mer- de governos sul-americanos (so-
bretudo Venezuela), e uma tenta-
mento de mercados e introspecção.
Caso contrário, poderá ser visto
cantil e, portan- tiva de restabelecer a relação com
a Argentina em bases econômicas
cada vez mais como um garantidor
de estabilidade e moderação. Em
to, capitalista, mais equânimes. qualquer caso, não vejo o Brasil
adotando práticas mais ambicio-
Mas o fato é que esse é um go-
numa roupa- verno frágil, que luta para se le- sas que seu tamanho e sua presen-
ça permitem, como ocorreu na era
gem ideológica
gitimar e se estabelecer politica-
mente, e não conseguiu ainda dar Lula. Os fatores que a tornaram ca-

de esquerda” importância à política externa.


Mesmo quando teve um chanceler
paz não retornarão mais.■

considerado peso pesado na polí- brasileiro, filiado ao Partido da Social Democracia


Brasileira (PSDB). Foi titular do Ministério de Rela-
tica interna, como foi José Serra12, ções Exteriores no governo de Michel Temer até o
início de 2017, quando voltou a ocupar sua cadei-
ra no senado. Foi o trigésimo terceiro governador
IHU On-Line - Uma das fragi- 10 Marina Silva (1958): política brasileira, am- de São Paulo entre 1º de janeiro de 2007 a 2 de
lidades dos governos petistas bientalista e pedagoga. Foi senadora pelo estado abril de 2010. Foi um dos fundadores da Ação Po-
do Acre durante 16 anos. Foi Ministra do Meio pular e foi presidente da União Nacional dos Es-
foi, segundo alguns especialis- Ambiente no Governo Lula do seu início (1-1- tudantes. Após o golpe militar de 1964, refugiou-
2003) até 13 de maio de 2008. Também foi can- se em embaixadas de outros países. Mais tarde
tas, apostar no desenvolvimen- didata à Presidência da República em 2010 pelo radicou-se no Chile, onde conheceu sua esposa,
tismo extremado, passando Partido Verde (PV), obtendo a terceira colocação Mónica Serra, com quem tem dois filhos nascidos
entre nove candidatos. Também foi candidata à lá. Neste mesmo período fez mestrado em Eco-
por cima de questões ambien- presidência em 2015 pelo PSB, depois da morte nomia pela Escola de Pós-Graduação em Econo-
de Eduardo Campos. Marina era vice de Campos mia da Universidade do Chile. Ficou no país até o
tais e apostando na inclusão e acabou assumindo a chapa. (Nota da IHU On golpe militar de 1973, quando foi para os Estados
pelo consumo. De que forma -Line) Unidos, onde concluiu um segundo mestrado e
11 Michel Temer [Michel Miguel Elias Temer Lu- um doutorado na Universidade de Cornell. Após
essas escolhas se manifestam lia](1940): político e advogado brasileiro, ex-pre- 14 anos exilado, Serra voltou ao Brasil e trabalhou
sidente do Partido do Movimento Democrático na Unicamp até 1983, quando foi nomeado pelo
na política internacional e, es- Brasileiro (PMDB). É o atual presidente do Brasil, governador Franco Montoro como secretário de
sencialmente, na relação com após a deposição por impeachment da presiden- Planejamento de São Paulo. Foi eleito deputa-
ta Dilma Rousseff naquilo que inúmeros setores do federal durante a Assembleia Constituinte de
países mais pobres? nacionais e internacionais denunciam como golpe 1988. Foi senador pelo PSDB, ministro da Saúde e
parlamentar. Foi deputado federal por seis legisla- Planejamento no governo de Fernando Henrique
Fabio Zanini – Desenvolvimento turas e presidente da Câmara dos Deputados por Cardoso, prefeito de São Paulo, governador do
duas vezes. (Nota da IHU On-Line) estado e candidato a presidente em 2002 e 2010.
foi o mantra dos anos Lula, e há de se 12 José Serra (1942): é um economista e político (Nota IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

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EDIÇÃO 502
ENTREVISTA

Uma nova TV capturada pelo Vale do


Silício e que alimenta o resto do mundo
João Ladeira analisa o streaming como outro momento da televisão e
destaca como essa tecnologia é apreendida por países desenvolvidos,
relegando aos demais uma periferia tecnológica e de conteúdo
Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

A
televisão surge e logo assume do Silício, por exemplo, é da América
seu papel de protagonista nos do Norte que emerge o maior número
meios de comunicação de mas- de produções. “O Brasil, com suas difi-
sa. O modelo broadcast de TV aberta culdades em tantos outros níveis, difi-
passa por certas crises de conteúdos e cilmente vai conseguir acompanhar o
a segmentação parece surgir como ver- mesmo ritmo”, pontua o professor, na
dadeiro mercado, tanto no sentido de entrevista concedida por e-mail à IHU
tecnologia como de conteúdo. Entre- On-Line. Para ele, um dos tantos ris-
tanto, esse modelo, ainda apoiado no cos que se corre no streaming é repe-
esquema broadcast, logo é substituído tir a experiência da TV paga, onde se
por uma tecnologia que não só muda investe em tecnologia de tráfego, mas
o suporte, mas também as formas de quase nada em geração de conteúdo. É
produção de conteúdo. É a era da TV assim que o Vale do Silício vai conse-
14 na internet, a TV por streaming. “O guindo “a façanha de transformar boa
broadcast introduziu uma experiên- parte do mundo em sua periferia”.
cia centrada no espaço doméstico, em João Martins Ladeira é professor
contraponto aos espetáculos públicos auxiliar do Programa de Pós-Gradu-
típicos do cinema. O streaming rompe ação em Comunicação da Unisinos.
com as barreiras a este território da Possui doutorado em Sociologia pelo
casa, lidando com uma intensa capaci- Instituto Universitário de Pesquisas
dade de conexão, produzida a partir da do Rio de Janeiro – Iuperj, mestrado e
associação invisível entre tablets/smar- graduação em Comunicação pela Uni-
tphones, televisores inteligentes, redes versidade Federal Fluminense – UFF.
de fibra e cabo coaxial, conexões sem Pesquisador associado aos grupos Uni-
fio”, explica o professor João Ladeira, sinos Tcav e Iesp Netsal, seus principais
que tem se dedicado a refletir sobre interesses de pesquisa são tecnologias
essa “nova TV”. da comunicação e informação, cultura
Ladeira explica que “a renovação téc- visual, indústria cultural, imagem, in-
nica da qual o streaming depende se dústrias criativas, globalização, teoria
assenta em tecnologias de informação social. É autor de Imitação do Excesso:
intensamente concentradas em cer- Televisão, Streaming e o Brasil (Rio de
tas regiões”. Assim, como essas novas Janeiro: Folio Digital, 2016).
tecnologias estão centradas no Vale Confira a entrevista.

IHU On-Line – No final do sé- texto, como compreender a te- ça no Brasil. Também é amplamente
culo XX, pesquisas apontavam levisão no Brasil na atualidade? conhecido que, em nosso país, aces-
que no Brasil havia mais apare- sa-se internet de modo voraz, recor-
lhos de TV que refrigeradores. João Martins Ladeira – Não é rendo a dispositivos móveis que se
Dados recentes mostram que o segredo para ninguém que a televi- tornaram objetos cobiçados de con-
país tem cerca de 170 milhões de são – especificamente a televisão sumo. Ambas as cifras indicam um
smartphones. Dentro deste con- aberta – possui uma imensa presen- imenso público voltado à imagem,

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REVISTA IHU ON-LINE

“O consumo de internet
no Brasil aponta para um
relacionamento com tal recurso
repleto de incoerências”

às redes ou à associação de ambas. produções brasileiras; mas qual a relação à modernidade e ao avanço
O que não significa que nossa apro- possibilidade, hoje, de produzir na técnico, do autoritarismo no interior
priação destas duas facetas da indús- escala que esta explosão de imagens do qual se deu.
tria cultural contemporânea deixe de demanda? Bem pouca, creio.
Ao longo dos anos de 1980 e 1990,
ocorrer de modo problemático.
este projeto de modernização cede
Um exemplo talvez torne mais cla- IHU On-Line – A expansão da espaço a outro contexto, no qual di-
ro o que quero dizer. Uma das cenas TV no Brasil, a partir da década versas forças ganham a cena. O Bra-
mais impactantes de Muito Além do de 1970, deu-se por meio de um sil passa a absorver uma transforma-
Cidadão Kane1 é um corte abrupto, ção técnica e cultural com a qual não
projeto autoritário dentro de
a certa altura do filme, entre uma pode lidar: a televisão segmentada,
um regime de exceção. Quais
publicidade brasileira de alimentos em franca expansão global, como
eram as estratégias políticas
e uma matéria jornalística na qual parte de um processo de mundializa-
em jogo naquela época e quais
se pergunta a um carregador se ele ção mais extenso. Os indispensáveis 15
são as atuais?
come a carne que transporta. O peso gastos em conteúdo e os investimen-
do “não”, na velocidade do corte no João Martins Ladeira – Numa tos em infraestrutura indicam um
interior do documentário, indica das interpretações mais precisas descompasso entre aquilo que aqui
uma tensão entre um mundo que se sobre a televisão no Brasil, Rena- se pretende e o que efetivamente
vê na tela da televisão e outro, típico to Ortiz3, em A Moderna Tradição veio a ocorrer.
da realidade. Brasileira4, indicou em que termos a
Ao sonho do “Brasil grande” se su-
consolidação deste meio tornou viá-
Se foi assim com as mídias conven- cede a incerteza da crise posterior,
vel uma expectativa antiga, presente
cionais, por qual razão se poderia um momento de insatisfação repleto
supor que, com os meios digitais, há tempos para aqueles que já pen-
de histórias de refluxo, inclusive na
as coisas correriam de modo distin- savam a cultura brasileira: a neces-
relação com as mídias, com a cul-
to? O consumo de internet no Bra- sidade de integrar o Brasil, de pro-
tura. Globo e Abril se viram ambas
sil aponta para um relacionamento duzir um senso de unidade para uma
frente a gigantescas dificuldades de
com tal recurso repleto de incoerên- população intensamente dispersa. levar adiante seus projetos. As ope-
cias. Vemos imagens produzidas em Foi um projeto intensamente bem- rações de tráfego construídas por
diversas partes do mundo, e apenas -sucedido, a despeito de suas múlti- estes velhos envolvidos com a in-
uma fração delas possui relação com plas contradições, de seus limites in- dústria cultural terminam vendidas
a nossa realidade. A capacidade de trínsecos, de seu caráter acrítico em para operações internacionais de te-
produzir audiovisual se expandiu lecomunicações, Telmex e Telefóni-
1997 nos Estados Unidos, a empresa surgiu como
enormemente, como se percebe, um serviço de entrega de DVDs pelo correio. A ca, respectivamente. As duas corpo-
por exemplo, numa rápida olhada expansão do streaming, disponível nos Estados
Unidos a partir de 2007, começou pelo Canadá rações adquirem importância como
no catálogo do Netflix2. De fato, há em 2010. Hoje, mais de 190 países têm acesso à parte deste mesmo processo de glo-
plataforma. (Nota da IHU On-Line)
3 Renato Ortiz (1947): professor titular da Uni- balização, através do qual em diver-
1 Muito Além do Cidadão Kane: (Beyond Citi- versidade Estadual de Campinas - Unicamp, tem
zen Kane, no título original): é um documentário graduação em Sociologia pela Université de Paris
sos países se privatizam as estrutu-
televisivo britânico de Simon Hartog exibido em VIII e doutorado em Sociologia/Antropologia pela ras de telecomunicações, estas que
1993 pelo Channel 4, emissora pública do Reino École des Hautes Études en Sciences Sociales.
Unido. O documentário mostra as relações entre Referência nos estudos sobre indústria cultural, se tornariam diretamente envolvidas
a mídia e o poder do Brasil, focando na análise da modernidade e mundialização, Ortiz foi professor
figura de Roberto Marinho. Embora o documen- visitante e convidado em diversas instituições fora com o audiovisual segmentado.
tário tenha sido censurado pela Justiça, a Record- do país, como New York University, Notre Dame
TV comprou os direitos de transmissão exclusiva University (Indiana), Stanford University, Institut Entre estes velhos personagens
por 20 mil dólares do produtor John Ellis. (Nota de l’Amerique Latine (Paris), Leiden University
do IHU On-Line) (Holanda) e Universidad de Buenos Aires. (Nota com a indústria cultural, apenas a
2 Netflix: é uma provedora global de filmes e sé- da IHU On-Line) Globo conseguiria levar adiante sa-
ries de televisão via streaming, atualmente com 4 São Paulo: Brasiliense, 1988. (Nota da IHU On
mais de 90 milhões de assinantes. Fundada em -Line) tisfatoriamente o seu projeto de or-

EDIÇÃO 502
ENTREVISTA

denar conteúdo segmentado, permi- essencial da modernidade se assen- teiras nacionais – indicava limites
tindo perceber um vácuo gigantesco ta na produção de cultura como um que a apropriação pelas tecnologias
entre recursos de difusão desenvol- instrumento importante não apenas digitais preza por eliminar. O fluxo
vidos com razoável sofisticação e a em termos de suas qualidades estéti- introduzido pela associação do au-
escassez de imagens disponíveis. cas, mas como recursos aptos a cir- diovisual com o digital conduz este
Trata-se da imitação de um excesso, cular, tornando palpável a extinção traço a outro patamar, numa dinâ-
presenciado alhures. Esta expan- das barreiras que caracteriza este pe- mica de expansão que não oferece si-
são podemos apenas observar como ríodo histórico. Parte relevante deste nais de esgotamento. É exatamente
uma consequência entre outras de processo, as imagens, por exemplo, neste momento que entra em cena o
certo projeto de modernização pelo vêm a se assentar não mais em sua streaming, como parte deste proces-
alto, falido em mais de um sentido. habilidade de marcar determinados so mais extenso, com o qual lida e, ao
Seus resultados se sentem até hoje, espaços em termos de uma distin- mesmo tempo, expande.
com um campeão nacional que não ção aristocrática inacessível para os
desfruta a importância de outrora e indivíduos cujo acesso a estes esta-
outros envolvidos com porte reduzi- mentos se encontra vetado. Podem IHU On-Line – Avançamos no
do, incapazes de afirmar uma tarefa até mesmo se justificar não apenas aspecto tecnológico, mas quais
que não podem cumprir. por sua capacidade de produzir pre- são os limites e possibilidades
tensas representações da realidade em termos de conteúdo?
dotadas de importância em termos
João Martins Ladeira – Os li-
restritos ao universo da arte.
“A televisão Estes objetos se ordenam como
mites mais claros, para o Brasil, refe-
rem-se a acompanhar esta expansão
como a conhe- gigantescos sistemas de bens, inter-
-relacionados de modo complexo,
e diversificação da imagem não ape-
nas como mero observador, se me
cíamos indica- cuja importância se mede através
de sua habilidade de trafegar sem
permite o trocadilho. Este processo
de ampliação não ocorre sem contra-
va limites que a limites, não mais restritos devido
a razões místicas, religiosas ou ce-
dições. Na verdade, trata-se de um
movimento intensamente desigual,
16
apropriação pe- rimoniais. A modernidade se cons-
titui como um momento complexo,
como toda dinâmica de moderniza-
ção. A nossa apropriação de técnicas
las tecnologias no qual se vai apropriar a produção depende de certa habilidade com
de representações. Estas imagens
digitais preza
que nos apropriamos de um cenário
sempre importaram conforme se que a semiperiferia não controla e no

por eliminar”
mostravam capazes de inserir neste qual não dispõe de margem muito
fluxo, reduzindo a importância de ampla de interferência.
qualquer tipo de valor de culto, de
importância outorgada pela tradi- A renovação técnica da qual o stre-
ção, distante como se encontram de aming depende se assenta em tecno-
IHU On-Line – Levando em logias de informação intensamente
qualquer sacralização.
conta a TV no Brasil nos dias concentradas em certas regiões. O
atuais, estamos diante de que No que diz respeito aos recursos Vale do Silício, com suas corpora-
tipo de paradigmas? Por que visuais construídos a partir de tec- ções já consolidadas, progressiva-
não se trata, simplesmente, de nologias elétricas, esta livre apro- mente importantes no que se refere
uma progressão técnica? priação da imagem ganha uma à imagem – Google, Apple, entre
dimensão difícil de superestimar. outras –, além de novas operações,
João Martins Ladeira – De-
Aquilo que se mostrava importante recém-surgidas, mas que dependem
certo, não se trata em absoluto de
para as artes visuais ou a fotografia do mesmo ambiente – Netflix, Hulu,
apenas uma renovação tecnológica.
se radicaliza com a televisão, meca- como exemplos –, conseguiu a fa-
Refere-se a algo que ultrapassa em
nismo de difusão com importância çanha de transformar boa parte do
muito este caráter, seja no Brasil
essencial durante o século XX. De mundo em sua periferia, ao menos
ou alhures. O audiovisual contem-
fato, nenhum instrumento se mos- quando se trata destas renovações.
porâneo oferece a possibilidade de
trou tão hábil em ilustrar claramente
lidar com quantidades imensas de Sei que este parece um argumento
esta autonomia de trânsito. Porém, a
bens culturais, numa proporção e forte, mas basta olhar para o esforço
televisão como a conhecíamos – as
segmentação anteriormente difíceis de corporações de telecomunicações
redes de broadcast restritas a fron-
de imaginar. para acompanhar o passo desta mu-
Autores importantes, como Bau- logo. Um dos importantes pensadores ociden- dança – Verizon, Comcast e AT&T,
tais da atualidade, é autor de vários livros entre
drillard5, indicaram que um traço os quais destacamos: A troca impossível (Rio de que merecem maior destaque – e
Janeiro: Nova Fronteira, 2002), A ilusão vital (Civi- o contexto fica mais claro. O mes-
lização Brasileira, 2001) e A sociedade do consumo
5 Jean Baudrillard (1929-2007): filósofo e soció- (Lisboa: Edições 70, 2000). (Nota da IHU On-Line) mo ocorre com fabricantes de equi-

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pamentos, e um caso nítido está arquiteturas distintas, que afirmam IHU On-Line – De que for-
nas iniciativas da Sony, com o seu lógicas variadas. Em velocidades ma a TV por broadcast opera
Playstation e a expectativa de atre- progressivamente maiores, o on-line na lógica disciplinar e a TV
lá-lo ao Vue. São esforços gigantes- promete a todos que tudo estará dis- por streaming, na lógica do
cos, que não encontram paralelo ponível a qualquer hora em qualquer controle? Em termos socioló-
fora deste ambiente. lugar. Decerto, a fantasia se mostra gicos, quais impactos podem
mais difícil de cumprir em certos ca- ser percebidos?
O Brasil, com suas dificuldades
sos que em outros. Contudo, impor-
em tantos outros níveis, dificil- João Martins Ladeira – O dia-
ta mais como um horizonte sobre o
mente vai conseguir acompanhar o grama do controle surge como um
que se pode esperar para este século.
mesmo ritmo, especialmente num desenho que ativa traços anterior-
momento como este de agora, de O broadcast se mostrou um ins- mente inviáveis dentro de uma or-
indecisão e incerteza em relação a trumento essencial para a cons- dem pautada pelas estratégias da
tantas outras instâncias da socieda- tituição da massa, afirmando, na disciplina. Estas redes ubíquas de
de. Iniciativas recentes em termos cultura, a tensão inexorável entre comunicação funcionam como ma-
de políticas públicas são notáveis, massificação e individualização. lhas no interior das quais operam es-
mas, além disso, parece existir uma Realizou esta tarefa a partir de truturas possíveis de se adaptar aos
intensa incerteza por parte dos pró- uma atenção a intervalos fixos de gostos mais diversos. A diversidade
prios empreendimentos de infraes- tempo, definidos por uma progra- de imagens toma parte nos esforços
trutura, por um lado, assim como mação imutável. Neste senso de para permitir a qualquer um ser o
de criadores de conteúdo, por ou- rotina e ordem, introduziu a expe- que quiser, conforme disponha da
tro, sobre como proceder. riência de um fluxo interminável autonomia para afirmar aquilo que
de imagens, repetindo-se ciclica- gosta ou deixa de gostar.
mente. Esta tarefa dependeu do
“O Brasil, com caráter intensamente homogêneo
de seu conteúdo, sempre guiado
A consequência mais clara desta
diferenciação se torna certa segmen-
suas dificulda- pela tentativa de ofender a menor tação, que, algumas vezes, tende à
confusão. Quando se busca iden-
quantidade possível de indivíduos. 17
des em tantos Este formato começou a se esface- tificar alguma experiência coletiva
compartilhada por todos, pessoas
outros níveis, lar com a expansão proporcionada
pelo multicanal, radicalizando-se da minha idade sentem certa dificul-
dade na relação com gerações mais
dificilmente no streaming.
O resultado se torna outra rela-
jovens. Digo certa, pois em socieda-
des com participação ainda duvido-
vai conseguir ção com processos essenciais de sa neste cenário, alguns traços da
uma subjetividade que se guia por
acompanhar o
massificação pregressa parecem du-
uma expectativa de diferenciação. ros de ceder. Tente perguntar para

mesmo ritmo”
Os intermináveis acervos de con- alguém sobre o campeonato brasi-
teúdo que se pode escolher com leiro de futebol e a resposta virá sem
intensa liberdade, que se assiste grandes dificuldades.
“em qualquer hora, em qualquer
lugar”, que se guiam por escolhas O mesmo não acontece quando se
IHU On-Line – Poderia expli-
pessoais que nada devem a pro- fala em filmes ou séries. Todos têm
car, basicamente, quais são as
gramadores afirmam sistematica- as suas preferidas, e alguns dos uni-
diferenças da TV que opera por
mente um desejo contemporâneo versos que se formam ao redor delas
broadcast e a TV que opera por
de consagrar certa autonomia. passa perto da incomunicabilidade.
streaming? Como esses modelos
Rapidamente se descobre que House
impactam nas subjetividades?
A partir desta ideia, ordena-se of Cards6 não faz muito sentido para
João Martins Ladeira – O bro- toda uma arquitetura para a ima- fãs de How I Met Your Mother7 e
adcast introduziu uma experiência gem. Consequentemente, ativa-se
centrada no espaço doméstico, em sujeitos dispostos nesta malha mol- 6 House of Cards: é uma série norte-americana
de drama político criada por Beau Willimon para o
contraponto aos espetáculos públi- dável de opções, vasculhando-as, serviço de streaming Netflix. Tem como protago-
cos típicos do cinema. O streaming numa motivação que parte da jus- nista Kevin Spacey, como Francis Underwood, um
político ambicioso que almeja um alto cargo pú-
rompe com as barreiras a este ter- tificativa de que o entretenimento blico em Washington, D.C. House of Cards é uma
adaptação do romance homônimo escrito por Mi-
ritório da casa, lidando com uma acessado decorre de uma escolha chael Dobbs e da minissérie britânica criada por
intensa capacidade de conexão, pro- pessoal, um ato livre de uma vonta- Andrew Davies. (Nota da IHU On-Line)
7 How I Met Your Mother (no Brasil, How I Met
duzida a partir da associação invisí- de autônoma. Não se trata mais das Your Mother ou Como Eu Conheci Sua Mãe): foi
uma premiada sitcom estadunidense da CBS cria-
vel entre tablets/smartphones, tele- mesmas estratégias de docilização da por Carter Bays e Craig Thomas. Estreou no dia
visores inteligentes, redes de fibra e caras ao século XX, mas de outras, 19 de setembro de 2005. A temporada 2013-14,
sua nona edição, é a última, encerrando-se em
cabo coaxial, conexões sem fio. São típicas ao contemporâneo. 31 de março de 2014, após 208 episódios. A série

EDIÇÃO 502
ENTREVISTA

que muita gente nem ouviu falar em tem práticas jornalísticas, mas – Esta tentativa, que se justifica por
Crisis in Six Scenes8, embora Woo- possivelmente – voltadas a visões adequar o on-line à Lei do SeAC,
dy Allen9 não seja exatamente um muito particulares, algumas delas trata-se da primeira oportunidade
novato desconhecido. ausentes de responsabilidade. para se criar alguma norma pos-
sível de administrar o streaming.
Converso com várias pessoas que Todos estes exemplos descrevem
Obviamente, encontra-se em pauta
não fazem ideia do que seja uma estratégias alinhadas com a tenta-
a obrigação tributária da ordem do
novela das oito, embora ainda se tiva de adestrar multiplicidades,
dia: o pagamento do Condecine12.
mostre difícil ignorar o peso que típicas de um momento histórico
Além disso, constroem-se regras
os programas de auditório e ves- pautado pelo diagrama do controle.
que podem surgir já com cheiro de
pertinos de entrevistas possuem no Esta intensa variação de material
velho. O assim chamado serviço de
dia a dia de boa parte da popula- procede não num lugar de liberda-
“comunicação audiovisual sob de-
ção brasileira. Mas opções baratas de, mas no interior de um ambiente
manda” (CAvD) se dividiria em dois
de entretenimento apresentam a fortemente administrado.
blocos: os serviços que oferecem um
chance de diversificação mesmo
acervo previamente delimitado ou
para aqueles que nunca tiveram
recursos ou disposição para arcar “O broadcast que lidam com conteúdo produzido
por usuários. Apenas os primeiros
com a televisão segmentada.
Esta mesma fragmentação ocor-
se mostrou um possuem obrigações em relação à
produção brasileira.
re, num outro exemplo, quando se
fala sobre política. Ao se ultrapas-
instrumento Esta distinção parece absoluta-
sar a barreira de gigantesca indife-
rença que muitas pessoas nutrem
essencial para mente contingencial, baseada no
que se conhece hoje da experiência
em relação a este tema, depara-se
com um público voltado a fontes
a constituição limitada, cara ao Brasil, mas que não
casa com as tendências que pare-
das mais idiossincráticas na pro-
dução de informações. O Jornal
da massa” cem guiar o streaming em ambien-
tes mais maduros. Põe-se o Netflix
18 num extremo e o YouTube no outro.
Nacional 10 ainda retém importân-
O contexto, visto com mais calma,
cia, mas convive com várias opini- IHU On-Line – Em termos não é assim tão claro. Ignora-se o
ões, algumas delas disseminadas a políticos, considerando o caso fato de que, talvez, uma distinção
partir de fontes não muito confi- brasileiro, como a atual confi- efetivamente importante resida em
áveis. Neste universo de informa- guração da TV no Brasil ajuda serviços que se apropriam de publi-
ção – ou, que sabe, de desinforma- a explicar o assédio das empre- cidade on-line ou que recorrem ou
ção – existem oportunidades para sas de telecomunicação em ten- não a assinaturas.
se afirmar posições das mais par- tar limitar a Internet de banda
ticulares, ainda que – alguns dirão larga fixa? Como enquadrar os multichannel
exatamente pelo fato de – várias networks neste cenário, ainda escas-
delas não façam sentido ou sejam João Martins Ladeira – A discus- sos no Brasil, mas um formato liga-
simplesmente mentiras. Neste ter- são em torno das franquias despertou do à profissionalização de conteúdo
reno, a situação vai se tornar ain- grande interesse, assim como outros nativo alhures? Se poderia incluir
da mais aguda quando surgirem debates que, no passado, alimentaram um produtor deste tipo no conteúdo
plataformas de streaming que imi- certa comoção, como aquele sobre o “criado pelo usuário”, embora, ao
padrão para a televisão digital. Ambos seu redor, já se constitua todo um
eram certamente importantes, mas universo profissional? Por que razão
mostra Ted Mosby em 2030 narrando aos seus fi-
lhos a história de como conheceu a mãe deles. não centrais. Decerto, a preocupação não se deve atentar em termos de
(Nota da IHU On-Line) com o possível aumento de cobran-
8 Crisis in Six Scenes: é uma minissérie de televi- políticas públicas para este tipo de
são americana escrita e dirigida por Woody Allen ças em serviços que já são caros, além conteúdo? Ele é menos importante?
para a Amazon Studios. Allen escreveu e dirigiu
seis episódios para a série de meia hora, marcan- de ruins, surge como um problema Não seria interessante investir de
do a primeira vez que ele fez isso para a televisão. para o consumidor. Mas eu chamaria
Está disponível exclusivamente na Amazon Video. nenhum modo em experiências com
A série é definida na década de 1960 durante os a atenção para outros debates, como os assim chamados “youtubers”?
tempos turbulentos nos Estados Unidos. Uma
família suburbana de classe média é visitada por a tentativa da Ancine11 em regular o
um convidado (interpretado por Miley Cyrus) que streaming. O texto permaneceu em Elas não poderiam se transformar
transforma sua casa completamente de cabeça em oportunidades para as produ-
para baixo. (Nota da IHU On-Line) consulta pública entre dezembro de
9 Woody Allen (1935): nome artístico de Allan
Stewart Königsberg, cineasta, roteirista, escritor, 2016 e março de 2017.
ator e músico americano. (Nota da IHU On-Line) 12 Contribuição para o Desenvolvimento da
10 Jornal Nacional: telejornal brasileiro, produzi- Indústria Cinematográfica Nacional - Conde-
do e exibido pela Rede Globo desde 1º de setem- 11 Agência Nacional do Cinema – Ancine: é um cine: tributo brasileiro do tipo Contribuição de In-
bro de 1969. Exibido em horário noturno, a partir órgão oficial do governo federal do Brasil, consti- tervenção no Domínio Econômico, instituído pela
das 20h30, de segunda-feira a sábado, é o telejor- tuída como agência reguladora, com sede na ci- Medida Provisória 2.228-1, em 6 de setembro de
nal mais assistido e reconhecido do país, tendo, dade de Brasília, cujo objetivo é fomentar, regular 2001 e cobrado efetivamente desde 2002. O pro-
ao longo de sua existência, acumulado diversos e fiscalizar a indústria cinematográfica e videofo- duto da sua arrecadação compõe o Fundo Seto-
prêmios. (Nota da IHU On-Line) nográfica nacional. (Nota da IHU On-Line) rial do Audiovisual – FSA. (Nota da IHU On-Line)

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ções de TVs públicas, prensadas pe- “efetiva democratização” diz respei- Brasil, poderia cumprir um papel
los baixos orçamentos, em busca por to a uma busca constante, e não uma compatível com estes personagens,
alternativas em termos de conteúdo receita que, depois de descoberta, frente à nossa indústria cultural
que as permita ocupar algum espaço bastaria tão somente repetir. Ques- subdesenvolvida? As redes de bro-
na rede? Qual a razão de uma uni- tão relevante reside em compreen- adcast? As produtoras voltadas a
versidade não investir na formação der que, ao contrário da televisão criação de alguns filmes, certos pro-
deste tipo de profissional voltado a segmentada brasileira, que no pas- gramas de televisão ou de anúncios
conteúdo nativo? Para que se possa sado gastou rios de dinheiro com a publicitários? Responder a esta per-
cogitar qualquer alternativa neste aquisição de material estrangeiro, gunta surge como tarefa essencial.
espírito, demanda-se espaço em ser- uma melhor opção seria produzir au-
viços que vão surgindo fora do Brasil diovisual. Um dos mistérios inexpli- Audiovisual contemporâneo
(go90, Watchable), centrados unica- cáveis em relação à nossa televisão
mente neste tipo de material, e que paga sempre foi o descompasso en- O audiovisual contemporâneo se as-
cedo ou tarde – mais cedo do que tre a imensa atenção ao investimen- senta na diversidade de oportunidades
tarde, espero – vão chegar aqui. Não to em infraestrutura para tráfego e para afirmar visões de mundo diferen-
o escasso interesse na diversificação ciadas. Pode-se apropriar nos termos
se precisa resguardar espaço neles?
de conteúdo. Com o streaming, algo mais variados as muitas posições que
semelhante se repete, porém, de as pessoas sentem prazer em afirmar. O

“Uma ‘efetiva modo ainda mais grave: não passou


e nem passará pela cabeça de nin-
streaming permite uma diversificação
que se mostrava difícil de ocorrer em
democratiza- guém a ideia de um Netflix brasilei-
ro, uma estrutura de tráfego própria.
outras instâncias. Não significa a reedi-
ção de fantasias passadas, imaginando
ção’ diz respeito Qual o impasse para a criação
que canais segmentados regionais de
televisão representariam um sinônimo
a uma busca de material novo? Um problema
essencial se torna buscar fontes
para a diversidade de conteúdo.

constante, e de financiamento para a criação


deste conteúdo. Sempre tive difi-
Porém, o que impede, por exemplo,
a produção de novos serviços de jor- 19
não uma recei- culdades de entender por que as
corporações de telecomunicações,
nalismo, a não ser uma certa carência
de clareza sobre como estas tecnolo-
ta que, depois no Brasil, não podem se envolver
com a criação de audiovisual. Não
gias operam, além das dificuldades
de financiamento recorrentes a uma
de descoberta, poderiam elas se tornar relevantes indústria cultural em dificuldades
difíceis de escapar? Este caso, um
para a criação de material voltado
bastaria tão so- ao on-line, já que o nosso país não tema isolado entre outros vários, per-
mitiria a circulação de novas visões
mente repetir”
possui conglomerados de mídia ap-
tos a gastar o necessário nestas ati- de mundo num país profundamente
incerto sobre seu próprio futuro, mas
vidades? Já não passou o tempo de
ansioso por novas direções. As ques-
abandonar a blindagem dos grupos
IHU On-Line – Quais os prin- tões em torno do tema vão se avolu-
de mídia convencionais?
mando, e as complexidades em pau-
cipais desafios para a democra-
Nos EUA, os criadores profissio- ta apenas começaram a se mostrar.
tização efetiva da comunicação
nais voltados a “conteúdo nativo” Enquanto elas não se tornam mais
no Brasil e como esse debate
fazem parte de corporações como claras, vamos continuar assistindo
passa pelos processos relacio-
a Disney (no caso da Maker) ou a a federações de futebol bloqueando
nados às novas especificidades
Warner (no que diz respeito à Ma- transmissões de jogos dos times que
da TV no país?
chinima); receberam investimen- ousam utilizar o streaming como uma
João Martins Ladeira – Esta tos de operação de tecnologias de alternativa, recorrendo a desculpas
não é uma resposta fácil, especial- informação (como o Google) ou de esfarrapadas sobre o credenciamento
mente devido ao fato de que uma firmas de capital de risco. Quem, no de profissionais...■

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

Internet é uma máquina que


potencializa minorias
Fábio Malini acredita que a rede proporciona uma
diversificação de vozes, embora algumas plataformas
e dispositivos incidam e tentem regular essa profusão

João Vitor Santos

P
ara o professor Fábio Malini, “as rede pode gerar uma produção de li-
redes sociais digitais explodem deranças múltiplas e não mais uma
uma série de possibilidades de única liderança”, diz. Entretanto, em-
modos de estar junto” e, com isso, re- bora reconheça a internet como “uma
configuram uma série de relações. Um máquina de produção de minorias”, o
dos efeitos mais instantâneos é o de professor problematiza que “isso tem
permitir que vozes possam se manifes- uma dimensão diferente quando es-
tar sem a necessidade de mediações. É sas vozes estão dentro de uma dinâ-
o caso de determinadas classes que, até mica comunicacional dependente de
bem pouco tempo, precisavam de um determinadas plataformas, como por
agente aglutinador. “É a ideia de que, exemplo o Facebook, que se baseia
sem intermediários, é possível se indig- num processo de lógica algorítmica”.
nar”, pontua. “Muitas vezes, não há mais
20 a necessidade de um sindicato para pro- Fábio Malini é professor do Depar-
duzir uma mobilização, não há necessi- tamento de Comunicação da Universi-
dade de se pedir autorização para qual- dade Federal do Espírito Santo – Ufes.
quer entidade para se indignar e realizar Coordena o Laboratório de Estudos
atos de rua no mundo”, explica. sobre Imagem e Cultura – Labic/Ufes,
onde desenvolve pesquisas sobre ci-
Malini, que concedeu a entrevista
ência de dados, movimentos sociais e
à IHU On-Line através de mensa-
redes sociais (com especialidade em
gens de voz gravadas e enviadas pelo
coleta, processamento e visualização de
aplicativo WhatsApp, é enfático: “a
megadados). Escreveu, em coautoria
internet é, sem dúvida, o dispositivo
com Henrique Antoun, da Universida-
mais importante para as minorias”.
de Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, o
Para ele, é pela lógica da rede que os
livro A internet e a Rua (Porto Alegre:
movimentos passam a ser repensa-
dos. “Há uma ideia, que ainda veio Sulina, 2013).
da internet, de que a construção de Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que forma de internet, a partir das redes sociais. rança na internet, que mobilizam e
sociabilidade emerge com as Ou seja, tem um papel muito gran- coordenam ações. É claro que essa
redes sociais digitais? de de coordenação de ação, seja ela sociabilidade fez com que os nossos
uma mobilização social, uma partida encontros e ações no mundo real,
Fábio Malini – As redes sociais no mundo off-line, fossem também
de futebol ou uma ação cultural. A
digitais explodem uma série de pos- acelerados. Então, além das tomadas
lógica dos perfis tem esse potencial.
sibilidades de modos de estar junto. de decisões aceleradas, as relações
Tem-se uma sociabilidade muito Não é à toa que muitos movimen- que são estabelecidas e os encontros
marcada pela lógica de coordenação tos surgem a partir da própria li- que acontecem também são acele-
das ações de rua através da própria berdade até de construção de lide- rados. Há uma dinâmica própria de

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“As redes sociais digitais


explodem uma série
de possibilidades de
modos de estar junto”

efemeridade que acontece nas redes estáveis. Por exemplo, o processo de repete no mundo off-line, a ideia de
sociais. Por exemplo: se pegarmos o deliberação do voto tem uma lógica uma claque de pessoas que aplau-
campo da opinião, da maneira como pautada na ideia de que cada pessoa dem e bajulam continuamente, que
as pessoas consomem informação, vota e se posiciona sobre um candi- produzem informações demagógi-
vamos notar que existe um conjunto dato, uma marca. A internet vai ex- cas continuamente como modo de
de ações de consumo marcada pela plodir essa estabilidade, vai permitir inflar um candidato. E aí temos um
efemeridade. Então, os grandes fatos que existam curtos-circuitos dentro perigo do ponto de vista democráti-
sociais nascem, explodem de intera- dessa lógica para o bem e para o mal. co. Mas, ao mesmo tempo, esses ro-
ções e duram pouco também. bôs políticos e ideológicos também
Por um dos lados, os robôs têm a antecipam ações e pontos de vista
Muitas vezes vemos situações polí- característica de fazer com que um daqueles candidatos ou políticos
ticas, como vimos agora a partir do manancial de informações, o exces- que lhe agradam. E faz com que os
escândalo da carne1, em que o tema so de informação, seja sistematizado planos desses políticos também se-
surge rapidamente e também se es- por processos de automação que lhe jam vistos mais estrategicamente. 21
palha muito rapidamente. Entretan- dê característica qualitativa em ter- É uma faca de dois gumes, pois, de
to, é substituído por outro também mos do uso e consumo da informa- um lado, infla o candidato, mas, de
de forma muito rápida. Temos aí ção. Assim, a automação, o papel dos outro, antecipa estratégias que mui-
uma dinâmica de aceleração própria robôs no consumo da informação e tas vezes o candidato não faria com
da lógica das redes sociais porque também da produção da informa- seus perfis pessoais.
ela é baseada na estrutura de crono- ção, vai se dar a partir de uma lógica
logia inversa. Os temas atuais e mais curatorial. Os robôs têm esse papel Há, também, uma complexidade
novos preponderam em relação aos de filtro do que há de interessante nisso tudo: os perfis de políticos
temas antigos. É isso que, de certa e, também, de produzir interações não são muitas vezes produzidos
maneira, produz uma forma de vida, baseadas nesse filtro. Por exemplo: por eles próprios, o que cria tam-
uma sociabilidade, também com se determinada pessoa acompanhar bém um certo simulacro de perfor-
base na celeridade. os temas sobre mudanças nos pro- mance e atuação dos políticos. No
cessos genéticos humanos, os robôs, fim das contas, vamos percebendo
ou perfis criados – pois são perfis que a internet também é um local
IHU On-Line – Qual o papel muito ficcionado. E essa ficção vira
criados, embora considerados falsos
dos robôs e dos perfis falsos um terreno para a construção de
– que produzem informação sobre
que fazem circular informa- outros personagens, outras ações,
esse tema que você gosta de estudar,
ções nas redes sociais? Como em que o humor, sobretudo o hu-
vão trabalhar nesse sentido. Se ele
influenciam a sociabilidade do mor crítico, se revela como uma
identifica informações novas sobre
ciberespaço? das maiores potências da internet.
o tema, ele republica também essas
Fábio Malini – A internet tem informações. Os boots vão ter uma Então, tem esse campo ficcional, e
uma capacidade de também curto- assim, como toda e qualquer fic-
característica muito grande de cura-
-circuitar um conjunto muito grande ção, do ponto de vista narrativo,
doria da informação on-line.
de processos que eram considerados o usuário pode errar. A ficção dá
Claro, com o processo político, essa possibilidade de erro, e com
1 O entrevistado se refere à Operação Carne Fra- essa ideia de automação ganhou ou- isso a internet vira um espaço para
ca, desencadeada pela polícia federal em março tra característica, de valorização de a produção de narrativas das mais
de 2017. O IHU, na seção Notícias do Dia, no seu
sítio, vem publicando uma série de análises e re- temas, ou melhor, de candidatos, de complexas, que passa pelos usuá-
flexões a partir da Operação, entre elas A Opera-
ção Carne Fraca da Polícia Federal – cardápio indi- um certo tipo de circuito ideológi- rios reais, ficcionados, simulados,
gesto, reproduzido em 27-3-2017, disponível em co. Com isso, temos uma ação que robôs, e tantas formas assim de se
http://bit.ly/2oiChfH. Leia mais em ihu.unisinos.
br/maisnoticias/noticias. (Nota da IHU On-Line) se repete on-line, daquilo que já se produzir informação.

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Como compre- bém de uma estrutura comunicativa, convocar. Quando o ato acontece, já
ender o ativismo em rede? O que faz chegar a um conjunto mais tem o streaming, que mostra o que
que o aproxima e o que o dis- diversificado de pessoas a suas lutas. as pessoas estão pensando sobre o
socia das manifestações que to- Isso acaba explodindo falas que esta- ato enquanto ele vai acontecendo. E,
mam as ruas? vam silenciadas. Existe uma relação enfim, tem o pós-ato.
muito intensa com as ruas nesse sen-
Fábio Malini – O ativismo em Todas essas dimensões comunica-
tido, porque a internet possibilita a
rede também faz parte de um de- cionais acabam gerando no espaço
produção de minorias continuamen-
senvolvimento, como os próprios público novas razões, novas agen-
te na rua.
veículos e meios que foram se cons- das, que contaminam também as
tituindo ao longo da história da in- pessoas na rede, de forma que pos-
Mutações no ativismo
ternet. Nos anos 1990, por exemplo, sibilita o aumento da qualidade da
o ativismo tinha uma característica Também mudou muita coisa no mentalidade pública sobre determi-
muito forte da internet dos gru- ativismo. Há uma ideia, que veio nada agenda.
pos, das comunidades virtuais, dos da internet, de que a construção de
grupos de discussão, caracterizado rede pode gerar uma produção de li-
muito mais como uma construção IHU On-Line – Recentemen-
deranças múltiplas e não mais uma
de espaços mais identitários, por- te, o senhor analisou as ma-
única, como era a liderança vertica-
que as comunidades são focadas nifestações de familiares de
lizada nos movimentos de massa. É
em interesses comuns, ideologias policiais militares no Espírito
uma multiplicidade de lideranças
comuns e práticas comuns. Assim, Santo2 no ciberespaço e tam-
para também responder a esse con-
é período em que os grupos têm um bém vivenciou toda a parali-
junto interacional que a sociedade
papel importante e as relações en- sação da PM. Que nexos pode-
em rede produz.
tre eles acontece de maneira muito mos estabelecer entre o que
menor, em uma velocidade muito E há, ainda, modelos muito diversi- ocorria em redes sociais e nas
menor, porque as comunidades vir- ficados na construção de lideranças. ruas de Vitória?
tuais fazem com que haja um certo Ou seja, há modelos de comando
Fábio Malini – No caso da para-
com poucas lideranças produzindo a
22 tipo de fragmentação social. lisação da polícia militar do Espírito
lógica de rede, há movimentos numa
Com o papel e a entrada da web Santo, existe uma outra dimensão a
lógica mais distribuída de comando,
e, por consequência, o seu aprimo- ser explorada nessa relação internet e
de maneira que as lideranças acon-
ramento do ponto de vista técnico, rua, que tem a ver com a construção
tecem ad hoc. É uma diversidade
com o surgimento de meios em que da ideia do medo. O medo é um dos
muito grande de possibilidades de
os usuários possam se conectar en- elementos mais valorizados dos meios
construção ativista em que a própria
tre si, e não mais viver em ilhas co- de comunicação de massa, sobretudo
internet não é só espaço de distribui-
munitárias, o ativismo se multiplica da televisão – é a fabricação do medo,
ção de informações e de ações do ati-
e se intensifica no sentido de valo- principalmente no campo do jornalis-
vismo que vai acontecer na rua, mas
rização dos discursos minoritários. mo. O jornalismo dos últimos 20 anos
é também a produção ativista, onde
tem dado ao noticiário um tom maior
As minorias passam a ter um papel acontecem atos propriamente ditos.
para aqueles fatos relacionados a ho-
muito importante de produzir atos É o caso, por exemplo, de vários mo-
micídios e acidentes de trânsito. Essa
de rua e esses atos podem se aglo- vimentos hackers.
fabricação contínua do medo produz
merar, como aconteceu em Seattle
A internet possibilitou, também, no imaginário coletivo a necessidade
(Estados Unidos), como também
que a relação se tornasse mais in- contínua de segurança. E essa segu-
podem se realizar vários atos de
tensa, e o conflito com as instâncias rança se traduz, muitas vezes, numa
maneira isolada. De qualquer for-
de poder também passou a se dar blindagem residencial. Vai desde o au-
ma, o ativismo foi também qualifi-
de formas mais aceleradas. O po- mento dos muros das casas, passando
cado pela ação direta que a internet
der e suas estruturas, sobretudo do pelos sistemas de vigilância com câ-
e as redes sociais possibilitaram. É
Estado, tiveram que responder, e a meras por toda a cidade, até a constru-
a ideia de que, sem intermediários,
aprender a responder, às demandas ção de territórios de segregação, e que
é possível se indignar. Não há mais,
sociais de maneira mais acelerada. são necessários reprimir, sobretudo as
muitas vezes, a necessidade de um
Afinal, hoje, fazer movimento é algo periferias das cidades.
sindicato para produzir uma mo-
que também acontece de forma mais
bilização, não há necessidade de
veloz. Monta-se rapidamente um
se pedir autorização para qualquer Então, essa fabricação do medo é
grupo no WhatsApp e de lá se levan-
entidade para se indignar e realizar uma das principais metas da cons-
tam os recursos necessários para ir
atos de rua no mundo.
ao ato; assim, os atos são organiza-
2 A análise do entrevistado está contemplada na
Então, isso tem uma implicação, dos dentro do aplicativo. Dentro dos entrevista Espírito Santo: o modelo de uma tra-
que também é uma diversificação e grupos de discussão do Facebook, gédia brasileira, concedida ao IHU e publicada
nas Notícias do Dia de 14-2-2017, disponível em
intensificação dos movimentos, tam- as páginas começam a mobilizar e http://bit.ly/2o9qhAd. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

trução da comunicação de massa em alguns para produzir o medo no ou- uma multidão para se produzir
sua história, mas isso se radicalizou tro. Entretanto, ainda tem esse fun- uma ação coletiva nas ruas.
nos últimos anos. A internet não fica do de acolhimento das pessoas em
O #VemPraRua, assim como
fora disso. Embora ela satirize, de- função de que elas próprias, sobre-
#ContraTarifa, tem a dimensão da
boche, escrache essa sociedade do tudo aquelas que vivem nas classes
construção de um lastro social ba-
risco que o telejornalismo impõe, a mais altas da sociedade, estão presas
seado na produção de direitos. Tem
internet também reflete essas ins- a um modelo social que, para garan-
relação com a criação de uma outra
tâncias mediadoras que estão fora tir seus privilégios, produzem esse
mentalidade coletiva, de uma outra
dela. É a mediação feita do medo efeito colateral nelas próprias - que
mentalidade pública, que institua
do outro. Medo do outro, como diz é viver continuamente sob a ideia do
uma nova agenda social, no caso,
o antropólogo Eduardo Viveiros de risco e a vigência do medo.
passe livre e redução da tarifa do
Castro3, marca o homem moderno. transporte público; ou seja, está
Daí a necessidade desse homem em num plano de construção política
construir um ente fora dele, o Esta-
do, para mediar esse medo que tem “No fim das de direitos.
No caso da produção política que
contas, vamos
do outro.
acontece em função da greve dos
Nesse sentido, quando os policiais PMs, existe uma exploração do medo
militares no Espírito Santo saem
das ruas, a internet é tomada, no
percebendo na internet, nas redes sociais. Isso é
muito curioso porque se reprime a
seu primeiro momento, por um
conjunto de boatos que reforçam o
que a inter- construção do direito a partir da ge-

medo social. Esses boatos produ- net também é ração do pavor, do medo nas pesso-
as. Então, enquanto o #VemPraRua
zem, imediatamente, um aprisiona-
mento domiciliar das pessoas, e esse um local mui- e tantos outros movimentos constro-
em uma relação mais de solidarieda-
aprisionamento produz também di-
vulgações de situações de risco de to ficcionado” de, de produção de novas mentali-
dades políticas, no caso do Espírito
violência que a população passa por Santo isso não ocorre. É como se um 23
não haver força policial. Passa a se movimento se baseasse no amor e o
dar, também, uma reivindicação por outro, no pavor.
uma força policial mais agressiva, IHU On-Line – No que a ex-
a saber: o Exército, para policiar as periência das manifestações de
regiões, em especial as mais ricas, PMs e seus familiares no Espíri- IHU On-Line – Como se dá o
onde um crime contra a propriedade to Santo se associa e se dissocia uso de redes sociais digitais
é mais recorrente, enquanto o crime de movimentos como #VemPra- pela população das periferias?
contra a vida, sobretudo nas perife- Rua e #ContraTarifa4?
Fábio Malini – De fato, temos
rias, é negligenciado. Fábio Malini – São movimen- também um certo tipo de exclusão
tos bastante distintos. Existe digital a reduzir. Ainda há uma dí-
Essa hierarquização informacional,
toda uma cultura de exploração vida digital, no sentido do uso pleno
o boato e o surgimento dele, deriva
do medo, da circulação do medo das tecnologias, e não apenas numa
também de um conjunto de sujeitos
como um processo de tensiona- lógica de consumo, num acesso de
sociais que reivindicam que a te-
mento social para gerar emoção download em que todos precisam
mática dessa segurança baseada no
política na rede a partir desse de internet para baixar música. É
aprisionamento e na vigilância possa
imaginário coletivo baseado no re- preciso também uma perspectiva
se manter na realidade social. Pode-
ceio da violência. É algo frequen- da produção de conteúdo, para que
mos ler o boato, muitas vezes, ape-
temente ligado ao pavor das pes- todos possam ser perfis e possam fa-
nas como uma situação perversa de
soas de classe média com relação zer críticas, produções e construções
3 Eduardo Viveiros de Castro (1951): antropó-
ao saque de seus bens, à proteção de ambientes multimídia, de tecno-
logo brasileiro, professor do Museu Nacional do de seus filhos. Mas tem também o logias e de plataformas, ambientes.
Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Concedeu a entrevista O conceito elemento comum, que é o fato da Toda essa cultura da programação,
vira grife, e o pensador vira proprietário de grife utilização do dispositivo de rede
à edição 161 da IHU On-Line, de 24-10-2005, da produção, também é uma dimen-
disponível em http://bit.ly/ihuon161.” Entre outras como um modo de construção de são central em que a dívida digital
publicações, escreveu Arawete: O Povo do Ipixuna
(São Paulo: CEDI, 1992), A inconstância da alma não contempla um amplo espectro
selvagem (e outros ensaios de antropologia). (São 4 São movimentos que ganharam notoriedade
Paulo: Cosac & Naify, 2002) e Métaphysiques can- nas jornadas de junho de 2013. O IHU vem publi- de sujeitos sociais produzindo.
nibales. Lignes d’anthropologie post-structurale cando uma série de reflexões sobre os movimen-
(Paris: Presses Universitaires de France, 2009). Ele tos. Entre elas, #VEMpraRUA: Outono Brasileiro? As periferias das cidades sofrem
também é autor do prefácio do livro A Queda Do Leituras, Cadernos IHU ideias nº 191, que reúne
Céu - Palavras de um xamã yanomami, de Davi a análise de diversos professores e pesquisadores, também de certo tipo de segregação
Kopenawa e Bruce Albert (São Paulo: Companhia disponível em http://bit.ly/1NDdpKa. Leia mais so- de banda, do ponto de vista de inter-
das Letras, 2015). Confira um trecho da obra em bre os movimentos em ihu.unisinos.br/maisnoti-
http://bit.ly/1Q0Fg5u. (Nota da IHU On-Line) cias/noticias. (Nota da IHU On-Line) net, que tem a ver com o fato de que

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TEMA DE CAPA

parte da banda larga proporcionada agendas permanentes que ampli- nossas opções de dar atenção a um
do ponto de vista do consumo é ofer- ficam ou qualificam aquelas pau- conjunto de sujeitos; o que faz com
tada a regiões centrais, regiões de tas sociais que carregam. Por isso a gente fique preso a esse conjunto
mercado de consumo elevado. En- chamo de betamovimento, inspi- de sujeitos, sejam páginas ou pes-
tão, tem uma dívida que passa pela rado na discussão da própria ideia soas. Mas, ao mesmo tempo, essa
infraestrutura tecnológica excluden- do que é internet. relação de circunvizinhança que o
te que nós temos, tanto de um ponto Facebook produz, de o algoritmo
Eu me refiro a essa internet par-
de vista litoral x interior, como do marcar como relevante aqueles que
ticipativa 2.0, que se caracteriza
ponto de vista das regiões centrais são nossos vizinhos, nossos mais
também como uma internet con-
da cidade para com as periferias. próximos, e esses mais próximos
tinuamente em transformação,
serem uma eleição definida pelos
Mas essa dinâmica, de certa forma, porque os serviços tecnológicos
nossos rastros baseados em likes,
é atravessada por curtos-circuitos que são disponibilizados são sem-
comentários e compartilhamentos,
que a própria população mais pobre pre beta, são serviços que sempre
é contrabalançada por outras di-
produz. É o aparecimento do “gato funcionam continuamente update,
mensões. Quando um determinado
net” e de uma série de práticas so- como são os aplicativos. Eles são
conteúdo consegue entrar nessa he-
ciais que vai, muitas vezes na clan- instalados nos nossos celulares,
terogeneidade das bolhas ideológi-
destinidade, trazer a internet. Claro mas há continuamente atualiza-
cas, passa também a ter uma força
que também com a popularização ções que os melhoram. Esse modo
muito maior de mobilização.
da telefonia móvel, embora ela seja de performar nas ruas, quando
restrita à lógica do pré-pago, à lógica ativadas pelas redes, traz também É sempre uma faca de dois gumes,
dos pacotes, vai se popularizando a a cultura dessa nova internet, de é sempre ambígua a questão da bo-
internet para aquele sujeito que tem contínua atualização, de ser aberta, lha. Por um lado, fecha o sujeito
acesso a partir do celular. Hoje, o Fa- de ser extremamente participativa, dentro de suas dimensões ideoló-
cebook, por exemplo, tem uma par- e isso cria uma nova qualidade nos gicas, mas, por outro lado, quando
cela significativa de acessos que são movimentos sociais, que tem a ver essa dimensão é contaminada por
feitos pelo celular. Há uma dinâmi- por eles serem continuamente mu- outros, ganha um certo tipo de rele-
24 ca, que é underground, que também tantes. Claro que a característica vância grande. É óbvio também que
faz com que essa dívida digital seja, do ser contemporâneo, ou mesmo há outros dispositivos – Twitter,
de certa maneira, reduzida a uma moderno, tem a ver com o fato de Instagram, Snapchat, blogs – que
dinâmica de mercado, a qual, obvia- eles serem seres em movimento. também têm características em suas
mente, é parcial do ponto de vista do Parece que a internet casa muito interfaces que permitem outros ti-
direito à comunicação. bem com as dinâmicas manifes- pos de uso. No final das contas, essa
tadas pela inteligência coletiva da super, hiperinflação informacional
rede e das ruas. produz uma dieta de mídia que faz
IHU On-Line – Como as redes com que os assuntos do momen-
políticas se constituem dentro to sejam uma construção cada vez
de determinados grupos? E o
que são e como interpretar o “A internet pos- mais coletiva do que determinada
por um conjunto de editores. Isso
que o senhor chama de betamo-
vimentos dentro dessas redes? sibilita a produ- modifica a forma como as minorias
performam e definem suas pautas,
Fábio Malini – Os movimentos
são seres em movimento. Ou seja,
ção de minorias na medida em que elas podem per-
formar em diferentes lugares, crian-
existe dentro deles uma certa auto-
dinamização baseada também nos
continuamen- do assim uma relação de presença
nas suas pautas que, até então, não
conflitos que eles carregam, tanto te na rua” conseguiam ter.
em relação aos seus antagonistas
como também no que diz respeito
IHU On-Line – As redes so-
a suas relações internas conflitu-
ciais digitais diversificam vozes
osas derivadas da diversidade de
IHU On-Line – Como compre- e perspectivas ou apenas propi-
sujeitos sociais que os compõem.
ender as chamadas bolhas das ciam a formação de bolhas?
Esse campo de tensão, que é a
redes sociais, especialmente
própria característica da dinâmi- Fábio Malini – Sem dúvida al-
Facebook, desde a articulação
ca dos movimentos sociais que se guma, diversificam vozes. A inter-
entre os seus integrantes até a
baseiam na rede e na rua, faz com net é uma máquina de produção de
conexão com outras bolhas?
que os movimentos nunca estejam minorias. Ela cria essa possibilidade
fechados. São movimentos aber- Fábio Malini – As bolhas são, na de concessão de comunidades que
tos no sentido de incorporação de verdade, movimentos concretos das se baseiam em interesses próprios,

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e isso cria uma dinâmica de impli- que explicitam as diferenças políti- das plataformas, como por exemplo
cação de um conjunto de públicos cas, culturais e sociais de um conjun- o Facebook, o qual se baseia num
que se baseiam também numa lógica to ou de uma população pequena ou processo de lógica algorítmica que
identitária. Baseia-se, ainda, numa mesmo grande. E isso implica novos valoriza aquilo que é produto de
perspectiva de difusão de vozes mi- tipos de política. uma relevância dada pelos usuários
noritárias. A internet é, sem dúvida, a partir de sua movimentação, que
o dispositivo mais importante para As novas pautas políticas, as novas
pautas sociais passam por uma atu- se dá através de likes, compartilha-
as minorias, embora obviamente a
alização que acontece muito em fun- mentos, e processos de seguir deter-
radiodifusão tenha a característica
ção dessa participação pública das minadas pessoas ou não. Então, essa
de que uma única mensagem chega
a muitas pessoas, e por isso as mino- minorias que difundem, se articulam algoritmização da escolha baseada
rias também adotam como estratégia e coordenam ações pela internet. É na lógica da relevância produz um
ocupar o espaço da radiodifusão. No claro que isso tem uma dimensão certo tipo de tautologia em que nós
entanto a internet acaba se tornando diferente quando essas vozes estão ficamos presos a nossas bolhas ide-
também um meio com custo muito dentro de uma dinâmica comuni- ológicas. Mas, de certa forma, a vida
baixo para a produção de notícias cacional dependente de determina- é marcada por essa característica.■

Leia mais
- Espírito Santo: o modelo de uma tragédia brasileira. Entrevista Especial com Fábio Ma-
lini, publicada nas Notícias do Dia de 14-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/2o9qhAd.
- “Quanto mais democracia, mais desenvolvimento”. Entrevista especial com Fábio Ma-
lini, publicada nas Notícias do Dia de 8-2-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – 25
IHU, disponível em http://bit.ly/2oenWEw.
- As manifestações de 13/15 de março e a artificialização das redes sociais. Entrevista
especial com Fábio Malini, publicada nas Notícias do Dia de 15-3-2015, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2nOXUX9.
- Mídia Ninja. “A disputa pelo poder midiático’’. Entrevista especial com Fábio Malini, pu-
blicada nas Notícias do Dia de 10-7-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2mSzYTB.

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

Redes sociais querem se transformar


em currais do trabalho imaterial
Henrique Antoun chama atenção para o tipo de trabalho
gerado a partir das redes, que pode dar liberdade, mas que
a todo instante tenta ser cooptado pela lógica do capital
Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

N
o meio do expediente, exaurido dacooptação, da fama, do sucesso, do
do trabalho, você abre o Face- comando para quebrar a integrida-
book, checa as mensagens do de colaborativa, ao mesmo tempo que
WhatsApp para relaxar. Mas sabia que desregulam os territórios sociais crian-
nessas ações você continua vendendo do gigantescos desníveis de proteção e
sua força de trabalho? O professor da justiça”. Por isso, considera que “as re-
Universidade Federal do Rio de Ja- des sociais querem se transformar em
neiro, Henrique Antoun, destaca esse megafazendas, gigantescos currais que
ponto que parece imperceptível para capturem todo este trabalho”.
a maioria dos usuários. “Estamos, de
Henrique Antoun é graduado em
fato, trabalhando todo o tempo que
Desenho Industrial pela Universidade
permanecemos nas redes sociais. As
redes são consideradas o chão de fá- do Estado do Rio de Janeiro – UERJ,
brica do trabalho imaterial nas metró- possui mestrado em Filosofia pela
26 poles”, aponta. Ele explica que a rede é Pontifícia Universidade Católica do
capaz de cooptar nosso trabalho e não Rio de Janeiro – PUC-RJ, doutorado
somente o que produzimos nela como em Comunicação pela Universidade
músicas, imagens, texto, etc. Através Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
de “nossos compartilhamentos, nossas com estágio doutoral em Sociologia
colaborações e nossos rastros, somos da Comunicação pela Université de
operados, abduzidos, recortados, dis- Paris V e pós-doutorado no McLuhan
tribuídos pelos dispositivos de controle Program in Culture and Technology da
do biopoder”. Universidade de Toronto. Atualmente
é professor da UFRJ. Atualmente co-
Na entrevista, concedida por e-mail
ordena o Cibercult – laboratório de co-
à IHU On-Line, Antoun reconhece
municação distribuída e transforma-
que essa perspectiva das redes concebe
ção política na Escola de Comunicação
um trabalho imaterial que faz emergir
da UFRJ. Juntamente com Fábio Mali-
a autonomia na produção colaborativa
ni, é autor de A internet e a Rua (Porto
dos coletivos e a infindável colaboração
em rede. Entretanto, “o capital inves- Alegre: Sulina, 2013).
te a sedução monetária corrompedora Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a identi- e por agentes de rede que operam definindo junto dos algoritmos que
dade de si emerge no contexto o big data1 que é gerado por nossas decidem o que veremos, com quem
das redes sociais? produções e por nossos rastros. Na falaremos, quem estará em nossa
medida que o big data dos perfis é proximidade e quem ficará distan-
 Henrique Antoun – Não é pro- operado pela rede, os perfis vão se te. A mineração, os agentes e os al-
priamente uma “identidade”. Nas re-
goritmos constituem os dispositivos
des sociais, estamos dividuados nos
de um biopoder que operam aqueles
perfis. Somos diferentes amostra- 1 Big Data: (“megadados” em português), em
tecnologia da informação, refere-se a um grande que penetram as redes.
gens repartidas em um sem número armazenamento de dados e maior velocidade. Di-
de bancos de dados. E os perfis são z-se que o Big Data se baseia em 5 “V”: velocida- Entretanto, por mais que nos apon-
de, volume, variedade, veracidade e valor. (Nota
definidos pela mineração de dados da IHU On-Line) tem como flaneurs, ou como dândis,

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“A mineração, os agentes e
os algoritmos constituem os
dispositivos de um biopoder
que operam aqueles que
penetram as redes”

que atribuam à nossa presença na simbólico ou de criação - forma um controle empreendem uma ativa
rede um vagar gratuito em um espa- mercado colaborativo ou cooperati- captura do trabalho, gerando funes-
ço sem direção, estamos, de fato, tra- vo que é negociado sem cessar pela tos desejos de propriedade, rique-
balhando todo o tempo que perma- ativa corrupção dos dispositivos za, segurança que vão determinar
necemos nas redes sociais. As redes de controle. As técnicas de rede se submissões e colaborações com o
são consideradas o chão de fábrica aliam a outros aparatos técnicos mi- capital, subjetivações que aceitam
do trabalho imaterial2 nas metrópo- diáticos para fazer valer um biopo- as disputas por exclusão e os ter-
les. Ao mesmo tempo que produzi- der que exprime a subsunção do real ritórios de eliminação social como
mos com nossos programas, nossos ao capital. O propalado determinis- parte do jogo da lei metropolitana.
aplicativos, nossos textos, nossas mo tecnológico mede de fato o grau Ao mesmo tempo em que o trabalho
imagens, nossos audiovisuais, nos- de eficácia da captura do trabalho imaterial faz valer sua autonomia na
sas músicas, nossas invenções, nos- vivo pelos meios de produção. produção colaborativa dos coletivos
sos compartilhamentos, nossas co- e na ilimitada cooperação das redes,
laborações e nossos rastros, somos Ora, mesmo que as técnicas do bio- o capital investe a sedução monetá-
operados, abduzidos, recortados, poder, do poder pastoral de controle, ria corrompedora da cooptação, da
27
distribuídos pelos dispositivos de façam valer a exploração do trabalho fama, do sucesso, do comando para
controle do biopoder. submetendo as subjetivações, nada quebrar a integridade colaborati-
impede que o trabalho possa gerar va, ao mesmo tempo que desregu-
uma técnica de governo de si que as lam os territórios sociais criando
IHU On-Line – Até que pon- desvie da dominação e transforme gigantescos desníveis de proteção
to a construção de si, nos es- estes que se deixam operar por elas e justiça, gerando fortes demandas
paços web, é definida pelo em coisas com um alto grau de in- de segurança para a saúde e para o
determinismo tecnológico e determinação. Se historicamente as convívio social.
até que ponto é definida pelo tecnologias fazem o sujeito aparecer
próprio sujeito? A ameaçadora propagação das
como o produto passivo das técnicas
doenças e as ameaçadoras violên-
Henrique Antoun – A constru- de dominação histórica, cultural e
cias no território da metrópole
ção de si exige que nos cuidemos e psicológica, uma avaliação genealó-
tornam a eliminação da pobreza
nos governemos. Na medida em que gica que se pergunte pelas condições
como fator de risco uma demanda
o trabalhador imaterial pertence a e indefinidas possibilidades de trans-
onipresente politicamente. A co-
alguma classe de renda e oferece formação do sujeito poderá encontrar
municação distribuída em rede in-
seus serviços como um produto ele técnicas de si historicamente consti-
terativa, entretanto, permite a ge-
é um precário à margem das leis tuídas geradoras de uma relação con-
ração de técnicas de si nascidas da
trabalhistas que funciona por “tram- sigo em um sujeito. Estas técnicas de
colaboração e da cooperação que
pos” ou adesão a projetos. Seu ser- si vão se compor com as técnicas de produzem as novas subjetivações.
viço especializado - seja ele afetivo, dominação fazendo o sujeito emergir Estas inventam canais que permi-
no entrecruzamento de uma técnica tem vazar a informação oculta dos
2 Trabalho Imaterial: conceito aplicado na li- de dominação do biopoder com uma governos, revelando suas verdades,
nha do pensamento de Negri e Lazzaratto. São
aquelas atividades que possuem como conteúdo técnica de si biopolítica. operam pelo anonimato o desvio
principal a comunicação, a cooperação, o conhe-
cimento e o saber. Leia mais sobre o conceito em da atenção do público, lançando
Capitalismo cognitivo e trabalho imaterial. Entre-
vista com Maurizio Lazzarato, publicada em No- luz nas operações que buscam a
tícias do Dia, de 6-12-2006, no sítio do IHU, dis-
IHU On-Line – Que jogos de
obscuridade para serem proces-
ponível em http://bit.ly/1LejOsv; As Revoluções do (bio)poder estão implicados
Capitalismo. Um novo livro de Maurizio Lazzarato. sadas; e ocupam espaços públicos
Reportagem publicada em Notícias do Dia, de nestas dinâmicas?
6-12-2006, no sítio do IHU, disponível em http:// transformando-os em gigantescos
bit.ly/1GXuMlq. Mais reflexões sobre o conceito Henrique Antoun – Os atuais acampamentos de transformação
estão disponíveis em ihu.unisinos.br/maisnoti-
cias/noticias. (Nota da IHU On-Line) dispositivos comunicacionais de cultural e política.

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – De que ma- infinitamente mais livre do que a cem as estratégias de denúncia da
neira as tecnologias de pro- vida que se submetia ao panóptico política representativa que aposta
dução e divulgação de conteú- das fábricas disciplinares. Mesmo em uma grande governabilidade, a
do web, muito impulsionadas sua exploração se faz de modo mó- construção de um amplo palanque
pela produção individual, aca- vel e tateante, pois as estratégias de a partir da definição de estraté-
bam produzindo uma espécie corrupção do capital não possuem gias comuns de ação definidas por
de panóptico3 digital capaz de a mesma potência que as técnicas grandes programas ou megaeven-
capturar a maior parte da vida de organização panóptica da pro- tos. Candidaturas que se apresen-
em sociedade? dução que dominavam o trabalho tem como antipolíticas ou não po-
material assalariado. líticas ganham a adesão daqueles
Henrique Antoun – A vida cap-
que se consideram prejudicados
turada nas redes sociais está de fato
pelas políticas de conciliação re-
no chão de fábrica da produção em- IHU On-Line – Como as presentativa. Mesmo porque para
preendida pelo trabalho imaterial. redes sociais impactam no que se possa conciliar interesses
Não fossem as redes e a metrópo- processo de participação de- estranhos e distantes precisa-se
le, o trabalhador imaterial jamais mocrática? Quais suas poten- pôr de lado um verdadeiro bene-
teria consciência de sua potência e cialidades e limites? fício para as diferentes demandas
de seu valor. As redes sociais, en-
Henrique Antoun – A demo- dos movimentos sociais.
tretanto, querem se transformar em
megafazendas, gigantescos currais cracia participativa, o ativismo e É por esta insatisfação generaliza-
que capturem todo este trabalho. E, a ação direta são amplamente be- da que as campanhas identificadas
para evitar que haja defecção, ge- neficiados nos processos de comu- com diferentes formas de intolerân-
ram filtros que distribuem e recor- nicação distribuída das redes inte- cia têm ganhado um espaço cada
tam os perfis de modo a gerar uma rativas. Aqueles que sabem gerar vez mais ameaçador na política. Le
pequena bolha de conforto para as técnicas de si que sedimentam Pen6, Brexit7, Bolsonaro8 ou Trump9
cada um habitar. sua comunicação e suas chamadas
para ação recebem imenso benefí-
Ao contrário de um panóptico que 6 Marion Anne Perrine Le Pen (1968): mais co-
cio. Em 2008, o fenômeno Obama4 nhecida como Marine Le Pen, é uma advogada e
28 dá plena visibilidade ao olhar do e na eleição de 2016 a campanha política de direita da França. Deputada do Parla-
mento Europeu desde 2004, foi eleita presidente
poder para os corpos distribuídos de Sanders5 são sinalizações claras da Frente Nacional em 16 de janeiro de 2011, em
nas celas da prisão, esses algorit- substituição a seu pai, Jean-Marie Le Pen. É tam-
de um processo ao mesmo tem- bém conselheira regional de Nord-Pas-de-Calais
mos derivados da mineração dos po evolutivo e amplificador que desde março de 2010 e conselheira municipal de
Hénin-Beaumont desde março de 2008. (Nota da
agentes no big data tornam a plena se movimenta na direção de uma IHU On-Line)
visibilidade impossível. A cada ope- 7 Brexit: a saída do Reino Unido da União Euro-
municipalização e parceirização peia é apelidada de Brexit, palavra-valise origina-
ração o território da visibilidade se da política. Cresce a demanda pela da na língua inglesa resultante da fusão das pala-
vras Britain (Grã-Bretanha) e exit (saída). A saída
modifica e o efeito global se trans- franqueza nesta comunicação que do Reino Unido da União Europeia tem sido um
forma. Mesmo porque outros agen- se faz entre parceiros.
objetivo político perseguido por vários indivíduos,
grupos de interesse e partidos políticos, desde
tes invadem este espaço em busca 1973, quando o Reino Unido ingressou na Comu-
de efeitos globais dentro desta gi- As parcerias se fazem ao gerar nidade Econômica Europeia, a precursora da UE.
A saída da União é um direito dos estados-mem-
gantesca segmentação móvel que um meio de gênese que beneficie bros segundo o Tratado da União Europeia. Em
suas individuações, mais do que 2106, a saída foi aprovada por referendo realizado
se tornaram. A vida tida como cap- em junho 2016, no qual 52% dos votos foram a fa-
turada nas redes sociais é uma vida comunhão ideológica de modos vor de deixar a UE. O Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, na seção Notícias do Dia de seu site, vem
de pensar. Por outro lado, cres- publicando uma série de análises sobre o tema.
Entre elas, A alma da Europa depois do Brexit, ar-
3 Panóptico: termo utilizado para designar uma tigo de Roberto Esposito, publicado no jornal La
penitenciária ideal, concebida pelo filósofo e ju- 4 Barack Obama [Barack Hussein Obama II] Repubblica e reproduzido nas Notícias do Dia de
rista inglês Jeremy Bentham em 1785. Ela permite (1961): advogado e político estadunidense. Foi 01-07-2016, disponível em http://bit.ly/2gazMuF;
a um único vigilante observar todos os prisionei- o 44º presidente dos Estados Unidos, tendo go- e O Brexit e a globalização, artigo de Luiz Gonzaga
ros, sem que eles saibam que estão ou não sendo vernado o país entre 2009 e 2017. (Nota da IHU Belluzzo, publicado por CartaCapital e reproduzi-
observados. O sistema teria, segundo Bentham, a On-Line) do nas Notícias do Dia de 12-07-2016, disponível
vantagem de ser mais barato do que o adotado 5 Bernard “Bernie” Sanders (1941): é um polí- em http://bit.ly/2eY4F68. Confira mais textos em
nas prisões de sua época, pois necessitaria de tico estadunidense, atualmente servindo como ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line)
menos vigilantes. Ele seria aplicável não apenas senador júnior dos EUA pelo estado de Vermont. 8 Jair Bolsonaro [Jair Messias Bolsonaro]
a prisões, mas a qualquer outro tipo de estabe- Filiado ao Partido Democrata desde 2015, ele foi o (1955): militar da reserva e deputado federal bra-
lecimento baseado na disciplina e no controle. O político independente com mais tempo de man- sileiro. De orientação política de direita, cumpre
termo foi resgatado pelo filósofo Michel Foucault. dato na história do Congresso dos Estados Uni- sua sexta legislatura na Câmara, eleito pelo Par-
Conforme ele, no século 18 se inicia um proces- dos, embora sua coligação com os democratas tido Progressista. Foi o deputado mais votado do
so de disseminação sistemática de dispositivos permitiu-lhe postos em comissões parlamentares estado do Rio de Janeiro nas eleições gerais de
disciplinares, a exemplo do panóptico, permi- e, por vezes, deu maioria ao partido em votações. 2014. Ficou conhecido pela luta contra os direitos
tindo vigilância e controle social cada vez mais Sanders representa a minoria na Comissão de LGBT. (Nota da IHU On-Line)
eficientes, embora não necessariamente com os Orçamento do Senado desde janeiro de 2015 e, 9 Donald John Trump (1946): é um empresário,
mesmos objetivos de Bentham. O filósofo utilizou anteriormente, serviu por dois anos como pre- ex-apresentador de reality show e atual presiden-
o termo em sua obra Vigiar e Punir (1975) para sidente da Comissão dos Veteranos de Guerra. te dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump
tratar da sociedade disciplinar. Novas tecnologias Sanders concorreu às eleições primárias que de- foi eleito o 45º presidente norte-americano pelo
de comunicação e informação permitiram novas finiram o candidato democrata à presidência dos Partido Republicano, ao derrotar a candidata de-
formas de vigilância nem sempre percebidas pe- Estados Unidos no pleito de 2016. Derrotado nas mocrata Hillary Clinton no número de delegados
los indivíduos. Teóricos como Pierre Lévy e Dwight urnas pelos eleitores de Hillary Clinton, Sanders do colégio eleitoral; no entanto, perdeu no voto
Howard Rheingold também utilizam o termo pa- acabou reconhecendo a derrota em julho de 2016 popular. Trump tomará posse em 20 de janeiro
nóptico para designar o controle exercido pelos e declarou apoio à ex-Secretária de Estado nas de 2017 e, aos 70 anos de idade, será a pessoa
controladores dos novos meios de informação eleições presidenciais daquele ano. (Nota da IHU mais velha a assumir a presidência. Entre suas
sobre os utilizadores. (Nota da IHU On-Line) On-Line) bandeiras estão o protecionismo norte-america-

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vem preencher este território de bloqueios e vitupérios se sucedem as conversações substituem na so-
insatisfação generalizada com uma nesta decepção do uso dos filtros ciedade as contratuações e diálogos
política incapaz de fazer algo que que deveriam impedir o indeseja- da mídia irradiada. A verdade que
não seja beneficiar e ampliar a ri- do invasor. Na internet, eu quero cada vez mais ganha apreço é aque-
queza das megacorporações. estar no controle do território nar- la do jogo da franqueza que domina
rativo que habito. a conversa dos parceiros.
Podemos ver como exemplar, por
exemplo, a estratégia da trollagem
sem fim e da megainvasão de fakes
que sedimentaram a vitória de “Estamos, de IHU On-Line – Qual o papel
das redes sociais na intensa ra-
Trump na eleição americana. Mas
ela rapidamente se esgota em função
fato, trabalhan- dicalização e polarização políti-
ca, que tende às generalizações
dos novos filtros e dos novos opera-
dores que se apresentam para neu-
do todo o tem- e imposições de uma espécie de
“pré-identidade”, geralmente
tralizá-la ou capturá-la. po que perma- expressa nos termos “petralha”
e “coxinha”?

IHU On-Line – De que forma


necemos nas Henrique Antoun – No caso
podemos compreender dois
fenômenos hegemônicos, mas
redes sociais” destas polarizações, a rede social
exprime em seu território aquilo
aparentemente contraditórios que as mídias irradiativas de mas-
entre si como a criação de “bo- sa e as instituições sociais produzi-
IHU On-Line – Quais os im- ram para operar sua política. Uma
lhas sociais digitais” e o aumen- pactos dos modos de agir no
to da intolerância? Como esses divisão é operada a partir de um
espaço digital nas formas de gigantesco e inusitado efeito global
dois acontecimentos interagem vida off-line?
entre si? da comunicação em rede que foram
Henrique Antoun –  Os movi- as megamanifestações de 2013. A
Henrique Antoun – As bolhas ameaça daquela multidão fez com
mentos sociais têm cada vez maior 29
são estratégias da administração que ela fosse segmentada pelas
importância na política metropoli-
das redes sociais para reduzir o iniciativas institucionais e partidá-
tana. Eles se sustentam em inúme-
risco de defecção. Os algoritmos rias. Grupos que faziam parte dos
ros coletivos. São as alianças entre
gerados pela mineração dos agen- partidos governantes nas cidades e
os diferentes coletivos que fazem
tes sobre o big data procuram ge- no país se bateram nas manifesta-
as bases da mobilização política. A
rar pequenos grupos confortáveis ções contra aqueles que não tinham
política mais e mais se apresenta
para os perfis de rede verem e con- apreço pelas organizações partidá-
como movimentação. Em Barcelona
versarem. Isto gera a impressão de rias. Estas, por seu lado, vendo o
um governo vai emergir das lutas
que todo mundo interpreta como movimento sem lideranças da polí-
do 15M10 sob a batuta de uma ati-
você os fenômenos com que você tica institucional, tentaram se apre-
vista que vai gerar inúmeros expe-
interage. A continuidade reiterati- sentar como os legítimos represen-
rimentos no governo da metrópole.
va desta impressão pode produzir tantes do movimento.
Sua imagem apresentada como a de
forte intolerância com a manifes-
uma ativista radical pelos adversá- Movimentos vinculados aos parti-
tação divergente.
rios cresceu e ganhou confiança na dos nos governos entraram em cho-
Na mídia irradiada, há um alto medida em que ela promovia uma que com os manifestantes e aplaudi-
teor de invasividade, estamos ampla conversação sobre os pla- ram as ações de repressão policial.
sempre sendo coagidos pelos for- nos de governo e ouvia os coletivos Os agentes políticos investiram vio-
madores de opinião a aderir à opi- incorporando suas demandas aos lentamente em um grande processo
nião ofertada como a opinião de seus planos. Sua radicalidade trans- de segmentação para quebrar a inte-
todos. Na comunicação distribuí- formou-se em franqueza que fez gridade multitudinária. A multidão
da, pelo contrário, possuo um sem com que muitos passassem a con- original acabou repartida em dois
número de instrumentos e estraté- fiar no que ela dizia. As parcerias e grupos que em tudo eram apresen-
gias para impedir a invasão e a co- tados como antípodas pelas novas
ação. A irritação explode toda vez 10 15M: O Movimento 15-M, também chamado
de “Movimiento de los indignados”, é um movi-
lideranças. Mas a fonte da radicali-
que me sinto invadido. Insultos, mento popular formado na sequência da mani- zação e polarização são os violentos
festação de 15 de maio de 2011 (organizada por
diversos coletivos), quando depois que 40 pes- processos de desregulamentação
no, por onde passam questões econômicas e so- soas decidiram acampar uma noite na Puerta del promovidos por ambos os grupos
ciais, como a relação com imigrantes nos Estados Sol espontaneamente, houve uma série de pro-
Unidos. Trump é presidente do conglomerado testos pacíficos na Espanha. O objetivo foi promo- sob demanda de grandes corpora-
The Trump Organization e fundador da Trump ver uma democracia mais participativa longe do
Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de bipartidarismo e do domínio de bancos e corpo- ções empresariais. Os dois grupos
marcas, vida pessoal, riqueza e modo de se pro- rações, bem como uma “verdadeira separação de acabaram identificados por cores: o
nunciar contribuíram para torná-lo famoso. (Nota poderes” e outras medidas destinadas a melhorar
da IHU On-Line) o sistema democrático. (Nota da IHU On-Line) vermelho e o verde e amarelo.■

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

Jornalismo deve fazer


mediação qualificada entre
acontecimentos e a sociedade
Para Felipe de Oliveira, a imprensa ainda lida perplexa
com fluxos comunicacionais do ambiente digital
Vitor Necchi

A
disseminação das redes sociais ções que circulam. Para Oliveira, nesse
digitais obrigou a imprensa a cenário, há um debate fulcral acerca do
repensar suas dinâmicas. Para que caberia ao jornalismo. No seu en-
o doutor em Ciências da Comunicação tendimento, parte da resposta refere-se
Felipe de Oliveira, “o jornalismo tem à noção de curadoria, “habilidade que
sido, potencialmente, beneficiado pelas se espera do jornalista”.
redes sociais”. Mas há uma tensão nes-
Frente à crise que o jornalismo en-
se processo, porque o jornalismo “ain-
frenta em razão das “novas formas de
da lida com perplexidade com fluxos
intervenção social no espaço público
comunicacionais do ambiente digital;
contemporâneo”, Oliveira aponta que
reage de forma meramente instintiva”.
“sai o verbo transmitir, entra mediar”.
Ao mesmo tempo, “as redes sociais di-
No seu entendimento, “o jornalismo
gitais têm se constituído como uma es-
30 ocuparia um lugar de mediação qualifi-
pécie de extensão das redações”, e isso
cada entre os acontecimentos públicos
se refere “não apenas para a descoberta
e a sociedade”. Este seria o papel do
de pautas”, mas também para apuração
jornalismo no espaço público contem-
de informações.
porâneo.
A repercussão de determinado acon-
Felipe de Oliveira é doutor e mestre
tecimento no âmbito das redes sociais
em Ciências da Comunicação e gradu-
acaba gerando um novo acontecimento.
ado em Jornalismo pela Universidade
Nestas situações, “é preciso que, da pri-
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
meira à última ‘vida’ do acontecimento,
Em sua tese, discute processos sociais
a cobertura respeite os princípios éticos
e deontológicos do campo, de modo que e suas implicações sobre o jornalismo
a notícia, finalmente, não seja frágil”, contemporâneo a partir de incursões às
afirma em entrevista concedida por e- redações dos jornais Folha de S. Paulo
-mail à IHU On-Line. No entanto, ob- (Brasil), El País (Espanha) e The New
serva-se que o jornalismo tenta dispu- York Times (EUA). Leciona na Faculda-
tar com as redes sociais no que tange à de São Francisco de Assis – Unifin.
velocidade e à abundância de informa- Confira a entrevista.

IHU On-Line – O jornalismo comunicacionais do ambiente di- plo, quando fora perceptível a aten-
tem se beneficiado das redes gital; reage de forma meramente ção que as chefias de reportagem
sociais? instintiva. Por outro lado, as redes davam a esse novo espaço de arti-
Felipe de Oliveira – Eu diria que sociais digitais têm se constituído culação e interação social. Ora para
uma afirmação mais precisa indica- como uma espécie de extensão das saber quando e onde ocorreriam
ria que o jornalismo tem sido, po- redações. E não apenas para a des- manifestações, ora para investigar
tencialmente, beneficiado pelas re- coberta de pautas, mas também de quem as promovia. O passo seguinte
des sociais. Isso quer dizer que não apuração de informações. Estive na é que é preciso pensar: como siste-
se trata de um benefício estimulado redação da  Folha de S. Paulo, em matizar processos que contribuam
pelo próprio jornalismo, que ainda 2013, acompanhando a cobertura para uma narrativa mais complexa
lida com perplexidade com fluxos das  Jornadas de Junho, por exem- dos acontecimentos.

10 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“O jornalismo tem sido,


potencialmente, beneficiado
pelas redes sociais”

IHU On-Line – A repercus- à pergunta, é preciso que, da pri- Henn, do Programa de Pós-Gradua-
são de determinado aconte- meira à última “vida” do aconte- ção em Ciências da Comunicação da
cimento no âmbito das redes cimento, a cobertura respeite os Unisinos, chama de  ciberaconteci-
sociais acaba gerando um princípios éticos e deontológicos mento (acontecimentos cujo “acon-
novo acontecimento. As notí- do campo, de modo que a notícia, tecer” se dá no ambiente digital), me
cias que decorrem disso não finalmente, não seja frágil. parece, inclusive, um elemento im-
são frágeis demais? portante com vistas à superação dos
conflitos sociais. A própria pergunta,
Felipe de Oliveira – Prefiro IHU On-Line – Denúncias contudo, já indica o caminho para
pensar a questão na perspectiva feitas em redes sociais têm o jornalismo: apuração. Ou investe
de teorias que concebem uma “se- pautado a imprensa que, com nesse princípio, ou perderá a legi-
gunda vida” do acontecimento no frequência, publica a própria timidade que alcançou ao longo da
espaço midiático. É o caso do so- denúncia, sem antes proce- história no espaço público.
ciólogo francês Louis Quéré1, que der a uma apuração criterio- 31
defende que o acontecimento, ao sa que deveria subsidiar a de-
afetar “a” alguém, dispara sentidos cisão de publicar ou não uma IHU On-Line – Grande parte
e revela campos problemáticos; reportagem sobre o assunto. da leitura de conteúdos publica-
demanda explicações de causa e O jornalismo virou refém das dos em sites de jornais ocorre a
efeito que dependem do contexto redes sociais? partir de links compartilhados
ao qual é associado. Na sua históri- em redes sociais. O que isso im-
ca necessidade de rápida contextu- Felipe de Oliveira – Mais do que
pacta nas rotinas jornalísticas?
alização, o jornalismo encerrou o refém das redes sociais, o jornalismo
acontecimento em representações tem sido atravessado pelas lógicas Felipe de Oliveira – Se é verdade
que não ultrapassam a sua epider- de uma nova espacialidade – em a afirmação que dá lastro à pergunta,
me. Quando esse acontecimento sentido de tempo e espaço – cons- também é verdade que essa leitura,
ganha, então, a “segunda vida” nas tituída pela incidência do ambiente majoritariamente, tem base em con-
redes sociais digitais, revela outros digital em todos os seus processos teúdos produzidos pelo jornalismo
sentidos, num movimento de ca- de produção. Isso implica em proce- hegemônico. Tomando novamente
racterística viral. E o jornalismo se dimentos empreendidos por portais como exemplo as Jornadas de Ju-
vê compelido, sob pena de perder de notícias, por exemplo, que deter- nho, em 2013, chegamos a dados do
em credibilidade, a se ocupar no- minam dois minutos como tempo site Topsy que revelam que 80% do
vamente dele, incorporando senti- padrão entre o acontecimento e uma conteúdo compartilhado durante as
dos que, eventualmente, omitiu na primeira representação dele na for- manifestações era oriundo de por-
representação inicial. Numa ten- ma da notícia. Há uma clara tenta- tais de jornais brasileiros de referên-
tativa de responder objetivamente tiva do jornalismo de concorrer com cia. Mais: apenas 5% eram de blogs
a velocidade e abundância de infor- independentes. Decorre disso uma
1 Louis Quéré (1947): nascido na França, é soció- mações que circulam nas redes so- demanda crescente sobre os jornais
logo, professor e pesquisador do Centre d’Étu- ciais. Esse me parece ser um proble- por narrativas que atendam às dinâ-
des des Mouvements Sociaux - CEMS da École
des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS ma mais grave do que a descoberta micas do ambiente digital. O risco
de Paris. Em suas reflexões, trata da teoria dos
problemas públicos de Jürgen Habermas, a et- de eventuais denúncias no ambiente que se corre, pois, na relação com a
nometodologia de Harold Garfinkel, a hermenêu- digital. A possibilidade de denúncias pergunta anterior, é que tenhamos
tica narrativa de Paul Ricoeur e o pragmatismo
norte-americano de George Herbert Mead, John que afetam o jornalismo, e por ele notícias que prezem mais pela lógica
Dewey e Charles Sanders Peirce. Dedica-se aos es-
tudos da teoria do acontecimento desde o início são potencializadas, especialmente a do consumo rápido – que, a propósi-
da década de 1990. Escreveu vários livros, desta- partir do recurso que o denuncian- to, não é novidade; é típica da Indús-
cando-se Des miroirs équivoques (1982). (Nota da
IHU On-Line) te faz do que o professor Ronaldo tria Cultural que se estabeleceu em

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

meados do século passado – em de- ao definir seu conceito de esfera Felipe de Oliveira – Tenho
trimento da qualidade do conteúdo. pública, escrutinar a força do me- defendido, num esforço de com-
lhor argumento, a partir da outor- preensão da crise que o jornalismo
ga que lhe é conferida pela socie- enfrenta face a novas formas de in-
IHU On-Line – As redes sociais dade e da formação como campo tervenção social no espaço público
tomaram um espaço que era social e profissional, entre aqueles contemporâneo, uma reflexão, de
próprio dos jornais, no que se que circulam em abundância nas natureza dialética, sobre o seu prin-
refere à circulação de notícias? redes sociais digitais – tendo sem- cipal ofício. Sai o verbo transmitir,
Felipe de Oliveira – Não. Defi- pre o bem-comum habermasiano entra mediar. O jornalismo ocupa-
nitivamente, não. Por mais asserti- como fim teleológico. ria um lugar de mediação qualifi-
va que seja a resposta, dá conta de cada entre os acontecimentos pú-
demarcar um lugar de fala a partir blicos e a sociedade. É um exercício
IHU On-Line – Há muito a se que implica um deslocamento da
do qual o entendimento é menos ob-
ler, sem necessariamente estar objetividade, hoje princípio deon-
jetivo, porém convicto: as redes so-
preservada a qualidade e a cre- tológico. O fim da atividade (social
ciais tensionam o espaço próprio do
dibilidade da informação. Nes- e profissional) não seria meramen-
jornalismo na circulação de notícias
te sentido, a ideia de curadoria te transmitir o acontecimento à so-
no espaço público. É o que denota,
de informação ganha força no ciedade – o que pelas perspectivas
por exemplo, a fala do editor-chefe
jornalismo? da linguagem com as quais trabalho
da versão digital do jornal  El País,
da Espanha, a quem entrevistei em Felipe de Oliveira – Também no é, inclusive, impossível. Seria, sim,
2015. “As pessoas estão nas redes contexto da questão anterior, esse representar o acontecimento numa
sociais. Nós temos que estar. Temos me parece ser o debate fulcral que notícia que contenha o que é dele
que extrair informações, mas, ao se impõe ao jornalismo em meio ao mais essencial; singular, na defini-
mesmo, ampliar as regras do nosso ambiente digital. O que caberia ao ção de Adelmo Genro Filho3. A ob-
jornalismo. Temos que entender o jornalismo em meio à abundância jetividade, nessa proposta, por um
que é importante para as pessoas”, de informações no ambiente digital? movimento epistemológico, com-
é o que diz Bernardo Marín, em di- Entendo a curadoria como parte da poria a dimensão metodológica do
32 álogo com a ideia do ambiente digi- resposta; habilidade que se espe- estatuto do jornalismo. A objetivi-
tal como extensão das redações. A ra do jornalista. Em entrevista que dade como método, não como fim.
questão reside nessa ampliação das também realizei em 2015, dessa vez É uma função, pois, que só o jorna-
regras, em sentido de sobrevivência com Michel Roston, editor de Mídias lismo, por força de um investimen-
no espaço público mesmo. Sociais do jornal  The New York Ti- to profícuo em formação, poderia
mes, dos Estados Unidos, essa ideia cumprir. A mediação qualificada se
fica muito evidente: “Os jornalistas constituiria, metaforicamente, na
IHU On-Line – As redes so- são mais capazes de contar a histó- toga que caracteriza o campo jurí-
ciais são um filtro precário? ria como ela é, e não como eles que- dico ou na tribuna, no caso do cam-
rem que ela seja. Um manifestante po político, como exemplos com os
Felipe de Oliveira – Na mi-
pode estar dizendo parte da verdade, quais trabalha o professor Adriano
nha avaliação, as redes sociais não
mesmo em seu favor. Mas suspeito Rodrigues, da Universidade Nova
são um filtro. Pelo contrário, elas
que não está dizendo tudo”. É ab- de Lisboa.
rompem com a lógica dos filtros
no espaço público. São, na verda- solutamente legítimo, e alvissareiro
de, um ambiente de profusão de do ponto de vista do exercício da
IHU On-Line – O governo ale-
sentido, muitas vezes antagônicos democracia, que os cidadãos pos-
mão está discutindo uma legis-
aos produzidos pelo jornalismo; sam se expressar, em seu favor, nas
lação severa contra empresas
se constituem no locus em que se redes sociais. Ao jornalismo cabe,
que não coíbam notícias falsas
concretiza uma intensa disputa de retomando Habermas e em perspec-
ou a disseminação de ódio. A
sentidos entre os atores sociais. O tiva de um projeto ideal, escrutinar
produção de notícias falsas
jornalismo deixa de ostentar a cha- (como sinônimo da ação de cura-
está relacionada a uma fragi-
ve de acesso aos debates públicos. doria) aquilo que mais atenderia ao
lidade da imprensa ou, antes
Caberia a ele, como concebe o so- bem-comum na esfera pública.
ciólogo alemão Jürgen Habermas2,
3 Adelmo Genro Filho (1951-1988): jornalista,
IHU On-Line – Qual a relevân- teórico e político brasileiro. Jornalista pela Univer-
2 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, prin- cia do jornalismo em tempos de sidade Federal de Santa Maria - UFSM e mestre
cipal estudioso da segunda geração da Escola de em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Frankfurt. Herdando as discussões da Escola de instantaneidade e volatilidade Santa Catarina - UFSC. Sua dissertação resultou
Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa na publicação do livro O Segredo da Pirâmide:
como superação da razão iluminista transforma- da informação? Para uma teoria marxista do jornalismo, uma das
da num novo mito, o qual encobre a dominação principais referências sobre teoria do jornalismo
burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos na América Latina. Lecionou na UFSC, onde o cen-
deve se construir pela troca de ideias, opiniões e cendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se para tro acadêmico do curso de Jornalismo é batizado
informações entre os sujeitos históricos, estabele- o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line) com seu nome. (Nota da IHU On-Line)

10 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

disso, a uma crise mais ampla descimento do fascismo é expressão IHU On-Line – Costuma-se
da sociedade? desse movimento, exemplificado na dizer que as bolhas podem ser
popularidade que alcançam nas re- negativas, pois acabam redu-
Felipe de Oliveira – Antes de
des sociais figuras como o deputa- zindo o alcance de interações
começar uma resposta mais objeti-
do federal Jair Bolsonaro. As redes e de novas perspectivas. Mas
va, convém dizer que ainda não me
sociais aproximam seguidores, os isso não pode ser positivo tam-
apropriei suficientemente do debate
encorajam; possibilitam que suas bém, na medida em que as bo-
sobre “notícias falsas” – do termo em
ideias ganhem em visibilidade. lhas criam zonas de diálogo e
inglês “fake news”, famoso desde a amparo em tempos de tanto
eleição de Donald Trump4 nos Esta- ódio e belicosidade?
dos Unidos, pelo menos. Entretanto, IHU On-Line – Em tempos de
antecipo uma tendência a conside- Felipe de Oliveira – Eu não
self e de autopromoção, há jor-
rá-lo ontologicamente inadequado, faria juízo de valor sobre a reper-
nalistas que usam redes sociais
na medida em que as mais clássicas cussão social das chamadas “bo-
para enaltecer seus trabalhos e
definições de notícia demandam re- lhas” que se constituem nas redes
relatar suas rotinas. Isso não de- sociais. Não por me furtar da ques-
lação com acontecimentos da ordem
nota perda de foco ou de papel? tão, mas porque entendo que pode
da realidade. Em relação à pergunta
propriamente dita, me parece, sim, Felipe de Oliveira – Não é exa- ser positiva ou negativa. Por outro
que a crise é mais ampla. Ao mesmo tamente um tema sobre o qual te- lado, me parecem ser, as bolhas,
tempo em que as redes sociais digi- nho me dedicado nas pesquisas que um dos elementos que geram dis-
tais são espaço de concretização de empreendo atualmente, mas arrisco ruptura sobre o ethos do jornalis-
debates com fins legítimos, com vis- uma resposta – provavelmente, de- mo contemporâneo. Pesquisa pu-
tas à superação de conflitos sociais, corrente desse contexto, não das mais blicada no ano passado pelo Knight
também são espaço de circulação precisas. Sim, teríamos, nos exem- Center apresentou ao campo o
de sentidos conservadores, prolife- plos que a pergunta se refere, desvio conceito de “notícia incidental”. O
ração de ódio e preconceito. Numa de foco em relação ao que defendo ser consumo de notícias pelas novas
aproximação com a ideia de “me- o papel do jornalismo no espaço pú- gerações atende justamente à ló-
mórias subterrâneas” do historiador blico contemporâneo. Lembremos: gica das bolhas; não é mais hierar- 33
austríaco Michael Pollak5, o recru- exercer uma mediação qualificada quizada pela capa do jornal, pela
entre os acontecimentos públicos e escalada do telejornal, tampouco
4 Donald Trump (1946): Donald John Trump é a sociedade. Isso porque jornalistas pela primeira página dos portais.
um empresário, ex-apresentador de reality show Se dá pelo compartilhamento que
e atual presidente dos Estados Unidos. Na eleição que atuam com base na autopromo-
de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente norte se desenrola nas suas bolhas. Ca-
-americano pelo Partido Republicano, ao derrotar ção acabam por se constituir em mais
a candidata democrata Hillary Clinton no número beria ao jornalismo, nesse cenário,
de delegados do colégio eleitoral; no entanto,
um agente que disputa sentidos. In-
encontrar formas de alcançar esses
perdeu no voto popular. Trump tomou posse em viabiliza, com isso, a tarefa de escruti-
20 de janeiro de 2017 e, aos 70 anos de idade, é públicos de modo que estimulasse
a pessoa mais velha a assumir a presidência. Entre nar a força do melhor argumento, ao
suas bandeiras estão o protecionismo norte-ame- o debate em torno dos temas que
passo que o que fazem é, justamente,
ricano, por onde passam questões econômicas e considera os mais importantes no
sociais, como a relação com imigrantes nos Esta- produzir argumentos em torno dos
dos Unidos. Trump é presidente do conglomera- tempo presente – como pretendeu
do The Trump Organization e fundador da Trump acontecimentos. Manifestações de
Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de fazer historicamente. Por que acio-
marcas, vida pessoal, riqueza e modo de se pro- colunistas de política no Brasil ante no novamente o jornalismo para
nunciar contribuíram para torná-lo famoso. (Nota o golpe midiático-civil-parlamentar esta resposta? Porque entendo,
da IHU On-Line)
5 Michael Pollak (1948-1992): sociólogo natural que vivemos, com implicações diárias fundamentalmente, que é também
da Áustria e radicado na França. Foi pesquisador
do Centre National de Recherches Scientifiques – concretizadas na subtração de direi- seu papel oferecer as condições
CNRS, ligado ao Institut d’Histoire du Temps Pre- tos sociais, são pródigas em exemplos para as zonas de diálogo em tem-
sent e ao Groupe de Sociologie Politique et Mo-
rale. Estudou as relações entre política e ciências desse movimento. pos de ódio a que a pergunta faz re-
sociais. Também desenvolveu pesquisas sobre so-
breviventes dos campos de concentração e sobre ferência. O problema, no entanto, é
a aids. Em seu doutorado, orientado por Pierre como professor visitante do Centro de Pesquisa
Bourdieu na École Pratique des Hautes Études, e Documentação de História Contemporânea do que o que ele mais tem feito é exa-
estabeleceu uma reflexão teórica sobre o proble- Brasil – CPDOC e do Programa de Pós-Graduação tamente o inverso: contribuir para
ma da identidade social em situações limites. Es- em Antropologia Social do Museu Nacional. (Nota
teve no Brasil entre outubro e dezembro de 1987 da IHU On-Line) o crescimento da belicosidade.■

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA | REPORTAGEM

O rastilho de pólvora das notícias


falsas no pavio da intolerância
Nas novas sociabilidades web, as redes sociais permitiram
a criação de um terreno fértil para a propagação da
desinformação de modo exponencial
Ricardo Machado

A
“pós-verdade” foi a palavra do de Donald Trump (http://bit.ly/opi-
ano em 2016, segundo o di- niaoface, em inglês).
cionário Oxford. Também pu-
Embora Mark Zuckerberg tenha
dera. A corrida eleitoral nos Estados
classificado como “uma bobagem”
Unidos, que levou Donald Trump
a ideia de que o compartilhamento
ao posto de presidente de uma das
de notícias falsas no Facebook tenha
maiores potências mundiais, foi de
influenciado o resultado da eleição
intensa disputa desde as primárias
presidencial nos Estados Unidos, foi
dos partidos Democrata e Republi-
ele próprio quem reconheceu que é
cano. As redes sociais, entretanto, ti-
necessário criar um algoritmo mais
veram papel importante na disputa.
sofisticado de identificação de notí-
34 Durante esse período, uma notícia
cias falsas. O recuo de Zuckerberg se
chamou atenção, não por sua den-
deu em meio à contestação de enge-
sidade factual, mas por seu engaja-
nheiros que trabalham no Facebook
mento no Facebook, com mais de 1
e que concederam entrevista anoni-
milhão de interações, de acordo com
informações públicas divulgadas mamente ao Buzzfeed News.
pela própria rede social. O título da Ao analisar o fenômeno, 0 pro-
matéria era “Papa Francisco choca fessor e coordenador do curso de
o mundo e anuncia apoio a Donald Comunicação Digital da Unisinos,
Trump” e versava sobre uma supos- Daniel Bittencourt, em entrevista
ta crítica do pontífice à ineficiência por e-mail à IHU On-Line, com-
do FBI em investigar Hilary Clinton, plexifica a abordagem. “Não cabe ao
adversária no pleito. Facebook resolver essa questão, até
Mergulhado no centro da disputa porque ele se beneficia dessa lógica
presidencial dos Estados Unidos, o entrópica dos sites de redes sociais
papa Francisco, que por diferentes - as pessoas passam mais tempo
razões tem chamado atenção em âm- discutindo a veracidade ou não das
bito global por sua atuação geopolí- informações que ali são comparti-
tica, tornou-se, de acordo com esta lhadas”, explica. No entanto, chama
notícia, “cabo eleitoral” de Trump. O atenção para a necessidade de pen-
problema, no entanto, é que a notí- sarmos menos no sentido tecnoló-
cia é falsa. Assim como eram menti- gico e mais no âmbito social. “Com
rosos milhares de outros conteúdos bom mcluhaniano, não acredito que
que circularam na rede. Na era da a resposta seja técnica ou tecnoló-
comunicação instantânea, comparti- gica. McLuhan falava, na década de
lhar tornou-se um imperativo muito 1960, numa espécie de letramento
mais forte que apurar. Isso decorre, da audiência sobre os meios de co-
entre outros motivos, do fato que o municação. Sempre acreditei no po-
Facebook e seu algoritmo levam a sé- der mediador das pessoas, em sua
rio a desinformação, como o próprio capacidade de discernimento e de
Zuckerberg escreveu em uma posta- aprendizado ao longo do tempo. Pas-
gem dias após o resultado da eleição sa por um amplo processo cultural,

10 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“As metrópoles contemporâneas


funcionam ao modo de rede, menos
hierarquizadas e com uma capacidade
de penetração mais dispersa,
embora não menos impactante”

e todo processo cultural leva algum O fenômeno brasileiro


tempo”, aponta.
Para se ter uma dimensão mais No Brasil, qualquer semelhança
precisa do que significa a propaga- com o caso dos Estados Unidos não
ção das chamadas fake news, tome- é mera coincidência. De acordo com
mos em conta o seguinte cenário. dados apurados pelo Buzzfeed Bra-
No primeiro trimestre da campanha sil, o número de compartilhamen-
eleitoral nos Estados Unidos, entre tos de notícias falsas relacionadas
fevereiro e março de 2016, o engaja- à operação Lava Jato, em 2016, foi
mento nas redes sociais de notícias cerca de um terço maior que as ver-
baseadas em fatos reais era de 12 mi- dadeiras. Enquanto o engajamento
lhões de interações, contra 3 milhões no conteúdo falso foi de 3,9 milhões, 35
das notícias falsas. À medida que o as notícias apuradas e fundamenta-
dia da eleição foi se aproximando, as das de modo empírico tiveram 2,7
proporções inverteram-se, até que milhões de interações. Embora as
na semana da votação as notícias fal- médias de acessos apresentem um
sas alcançaram 8,7 milhões de com- panorama geral, elas não ajudam
partilhamentos e ultrapassaram as muito na interpretação do fenôme-
verdadeiras, com 7,3 milhões de in- no. Isso porque na lista das dez notí-
terações. A apuração leva em conta cias verdadeiras mais acessadas, so-
o relatório apresentado pelo site bu- mente a matéria do G1 “Por 10 votos
zzsumo.com, que mede engajamento a 0, STF decide aceitar denúncia, e
de conteúdos web. Eduardo Cunha vira réu” soma mais
de 1,1 milhão de compartilhamentos.
Para Ralph Keyes, autor do livro
Todas as demais notícias verdadei-
The post-truth era (New York: St.
ras mais compartilhadas não somam
Martin’s Press, 2004), a prevalência
mais que 350 mil interações.
das notícias falsas na web torna ain-
da mais difícil as definições do que é, Já no que se refere às notícias fal-
de fato, verdadeiro. Keyes conversou sas, há um equilíbrio maior entre o
com a reportagem da IHU On-Line volume de compartilhamento dos
por e-mail, em que considerou que conteúdos. A notícia com maior
“a perda da confiança é a principal acesso, atualmente fora do ar, tinha
desvantagem na era da pós-verdade, como manchete “URGENTE: Bol-
tanto na política quanto em outras sonaro é citado na Lava Jato”, com
áreas”. Ao analisar particularmente mais de meio milhão de interações.
o fenômeno Trump, o autor sustenta Na listagem completa, acessível no
que muito de sua popularidade ocor- link http://bit.ly/notfalsas, pelo
reu porque ele “deu voz a muitas menos quatro notícias têm mais
queixas dizendo o que eles [a popu- de 400 mil compartilhamentos
lação] queriam ouvir, não importan- e outras quatro mais de 300 mil.
do se as informações eram verdadei- Dispersas na rede, há, porém, uma
ras ou não”. infinidade de artigos e conteúdos

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA | REPORTAGEM

totalmente desprovidos de valores isto é, tendem a aparecer com mais


noticiosos, apuração jornalística e frequência na página dos usuários
até mesmo de relação com o mun- aqueles conteúdos compartilhados
do concreto. Essa miríade forma a pelas pessoas com as quais mais
constelação de notícias falsas que nos relacionamos. É nesta dinâmi-
iluminam uma parte significativa ca que as fake news encontram um
do debate público nas redes sociais. ambiente propício para se dissemi-
Ainda que tais conteúdos sejam re- narem. “Compartilhamos com mais
lativamente impermeáveis aos seto- frequência aquilo que tem relação
res mais esclarecidos, embora eles direta com o nosso credo, e des-
não estejam imunes, tais produções qualificamos o que confronta nos-
são capazes de alimentar todo um sas convicções”, frisa. “Para alguns
imaginário coletivo baseado sim- segmentos da sociedade e de usu-
plesmente em mentiras, mas com ários de sites de redes sociais, há,
implicações sociais verdadeiras. ainda, a Suspensão da Verdade – a
“informação” é dividida com seus
Evidentemente a produção de no- seguidores independentemente de
tícias falsas serve aos mais variados guardar relação e proximidade com
interesses políticos. No entanto, essa fatos reais. Esses dois fatores – um
prática é reveladora de um aspecto ético e outro estético – funcionam
social ainda mais decisivo em nosso para impulsionar a proliferação
tempo, que é a dimensão do inten- de boatos, notícias falsas ou fatos
so controle micropolítico na era da distorcidos para que caibam no
web. Isso se deve à forma pela qual Campo de Distorção da Realidade
os sites e as redes sociais são cons- de cada um de nós – termo tão bem
truídos tecnicamente, permitindo a cunhado pelo biógrafo de Steve
produção de relatórios detalhados Jobs, Walter Isaacson, para expli-
36 de acesso, o que gera, por sua vez, a car por que as histórias do funda-
venda de espaços publicitários nas dor da Apple eram moldadas sob
páginas com volumes expressivos um ângulo que melhor o favoreces-
de visitas. Diferente das sociedades se (não importando se fosse verda-
de comunicação de massa, pautadas de ou não)”, complementa.
mais pela lógica da disciplinaridade,
A convergência tecno-estética de
as metrópoles contemporâneas fun-
nosso tempo nos jogou em um espa-
cionam ao modo de rede, menos hie-
ço digital favorável para a propaga-
rarquizadas e com uma capacidade
ção de conteúdos falsos, impulsio-
de penetração mais dispersa, embo-
nado, também, pela velocidade em
ra não menos impactante.
que tais trocas de informação ocor-
Outro efeito bastante decisivo nas rem. “As notícias falsas se propagam
sociedades das interações media- numa velocidade impressionante -
das por dispositivos conectados à tanto por quem nelas acredita, quan-
internet é a criação de “bolhas so- to por quem as combate. É um ras-
ciais”, a quais funcionam a partir tilho de pólvora aceso dentro de um
das lógicas dos algoritmos de redes paiol coberto de munição. E redes
sociais, como Facebook e Twitter, como Facebook são o melhor lugar
que apresentam a linha do tempo para que se toque fogo nesse pavio”,
com base no perfil de interações; pondera Daniel.■

10 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

A potência criativa das periferias na


construção de novas narrativas web
Eduardo Alves chama atenção para os tensionamentos que os moradores
das favelas produzem ao difundir conteúdos informativos sobre si próprios
Ricardo Machado

N
a narrativa hegemônica, da Tal dificuldade, resultado da profun-
mídia e do senso comum, as da desigualdade social que caracteriza
periferias são zonas de medo e a sociedade brasileira, é superada em
carência, o que deriva de uma produção certa medida pelo uso de computado-
simbólica pobre, sem levar em conta res de mão, os chamados smartpho-
toda a complexidade destes territórios. nes. “É importante registrar que esse
Com a web, esse discurso encontra um novo ambiente sociocultural permitiu
contraponto, ainda que disperso, rico a ampliação da mobilidade simbólica”,
sobre a potência criativa das favelas. pondera o entrevistado. “Para os terri-
“As periferias são zonas centrais; estão tórios populares, para as periferias, o
na centralidade das artes, de ações em- grande desafio está na utilização da in-
preendedoras criativas, das invenções ternet, principalmente as redes sociais,
de relações que reforçam a convivên- no Brasil, para ampliação dos direitos e
construção de novas narrativas na cida- 37
cia. O reconhecimento como periferia
não apresenta uma visão de territórios de”, complementa.
separados da cidade ou em suas beiras Eduardo Alves cursou Ciências
e pontas”, destaca Eduardo Alves, em Econômicas pela Universidade Federal
entrevista por e-mail à IHU On-Line. Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ e Ci-
Evidentemente há diferenças subs- ências Sociais na Universidade Federal
tanciais no acesso aos meios digitais do Rio de Janeiro – UFRJ. É membro
por parte das populações periféricas, da direção do Observatório de Favelas,
sobretudo porque o uso de banda larga, onde atua como coordenador de comu-
por exemplo, nem sempre é acessível nicação.
geograficamente e economicamente. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como as redes é marcante, pois criou-se a possibili- De alguma forma, os ambientes so-
sociais web reorganizam a rela- dade de abertura de ambientes e ca- cioculturais chamados de redes so-
ção entre as pessoas nas favelas? nais para que os setores populares se ciais impactam na relação das pesso-
expressassem diretamente e não fi- as em toda a cidade. E é fundamental
Eduardo Alves – Tanto a tecno- cassem dependendo apenas da gran- destacar que a internet não é o lugar
logia da informática (computadores de mídia para isso. Registra-se que dos chamados “espaços virtuais”,
de mesa, smartphone, smart tv), todos os setores sociais e políticos como se fossem sem efeitos reais. As
quanto as novas linguagens, os no- se expressam por meio das redes, a redes, assim como todos os espaços
vos conceitos, os novos ambientes diferença principal, no caso das peri- de comunicação via internet (tecno-
socioculturais criados (redes sociais ferias, está na constituição de canais logias, linguagens e conceitos), com
e web) abriram possibilidades abso- próprios. Os canais da grande mídia a variedade de recursos que possui,
lutamente novas no século 21. Para são, hegemonicamente, dos setores já acumularam muito efeito real na
as periferias, na cidade, esse impacto poderosos e dos “donos do poder”. vida, nas relações, em atitudes, gos-

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

tos, preferências artísticas, partici- territórios1 periféricos, mais que em que ultrapassa fronteiras de tempo
pação política etc. E esse movimento outros territórios da cidade, os en- e espaço. No caso das periferias, é
só tende a ampliar (uma tendência contros dos corpos. muito importante superar a visão
não inexorável, mas uma tendên- hegemônica de que são territórios
cia). Coloca-se, para as periferias, o do medo e da carência. O Observa-
desafio de disputar cada vez mais tal IHU On-Line – A internet, es- tório de Favelas já afirma, faz algum
ambiente sociocultural do século 21. pecialmente as redes sociais, tempo, que esses territórios são po-
possibilita às periferias um tências inventivas na cidade.
É muito importante, portanto, maior protagonismo social?
destacar a centralidade dessa nova Como isso se dá? São sim territórios com menos in-
vaga de conexão (comunicação, con- vestimentos do Estado, utilizados
tatos, divulgação de pensamento, Eduardo Alves – O upload múl- para ampliação do lucro do mercado,
apresentação de peças multimídia, tiplo, as novas linguagens e os novos com seus moradores vivendo as con-
sons e de artes em geral), por meio conceitos permitem às periferias, sequências da exploração, opressão
da qual as periferias possam mos- assim como a todos os territórios da e discriminação. São sim territórios
trar sua potência, apresentar novas cidade, uma maior possibilidade de no qual a violência do Estado e dos
instrumentos e canais para apresen- grupos criminosos armados ocorre
narrativas sobre a cidade, disputar
tar uma narrativa própria. Os ati- com incidência muito superior, se
os símbolos e reivindicar mais in-
vistas do passinho fizeram isso, por comparados aos outros territórios
vestimentos do Estado. Apresentar
exemplo, via Youtube. O Observató- de toda a cidade. No ano de 2016,
as periferias, entre as quais estão as
rio de Favelas faz isso, principalmen- somente na favela da Maré, se ficou
favelas, como lugar de encontros,
te, por meio do Facebook. A possibi- 18 dias sem escola e postos de saúde,
criação, inventividade é importan-
lidade de apresentar olhares, arte, foram assassinadas 17 pessoas e 28
te para a disputa de hegemonia da
recortes, articulados com narrativas sofreram várias formas de violência.
cidade. Mais que isso, atuar nos
originárias dos territórios populares, Isso não é natural, nem tampouco
novos canais para apresentar uma
criando sobre todas as variações que pode ser visto como normal.
narrativa contemporânea sobre a
a internet disponibiliza é uma ação
violência que os moradores sofrem, Utilizar as redes para conquistar
estratégica para o período. No Brasil
38 como consequência da política he- uma convivência ampla, com res-
há destaque para as várias redes e o
gemônica do Estado e do mercado. peito à diferença e que amplie a vida
www, mas é um desafio avançar para
Este movimento, que busca alterar nesses territórios, alterando a prá-
outros modelos de conexão, como o
cultura e estética, é decisivo no mo- tica hegemônica do Estado, é uma
P2P (Peer-to-peer), pouco usado no
mento atual. Brasil. Trata-se de ações contem- ação urgente e decisiva. Trata-se da
Os moradores das periferias ainda porâneas que podem potencializar defesa da vida, em todos os seus sen-
possuem na presença dos corpos, a construção da cidadania ativa e a tidos e significados, pois as pessoas
por meio de interação dos vizinhos, conquista de uma cidade de direitos. precisam viver, e com dignidade.
familiares, amigos, algo muito ca- As organizações da sociedade civil, Fica, portanto, colocado o desafio de
racterístico e marcante no territó- assim como as pessoas, possuem ampliar os direitos, conquistar mais
rio. Ainda que, em certa medida, o instrumentos que podem ampliar os investimentos, mas, também, de
fato de estarem conectados, majori- raios de alcance e as conexões. apresentar uma nova narrativa sobre
tariamente, via computador de mão as periferias, apresentando-as como
A ampliação dos repertórios varia- espaço de potência e seus morado-
(chamados de celular ou smartpho- dos sobre as diferentes tecnologias
ne), principalmente a juventude, res como sujeitos estratégicos para
digitais, as técnicas de utilização, os conquistar uma cidade de direitos.
demonstre a consequência de uma conceitos e a expressão multimídia,
desigualdade que restringe acessos E, principalmente, que o restante da
é um dos grandes desafios da atua- cidade não considere “normal” um
aos computadores de mesa e à ban- lidade para avançar nesse sentido.
da larga. Mas é importante registrar jovem, negro, pobre, morrer em ter-
Vale destacar que, seja a expressão ritórios periféricos. Juventude deve
que esse novo ambiente sociocultu- multimídia uma nova linguagem ou ser compreendida sempre como um
ral permitiu a ampliação da mobi- uma nova organização dos símbolos verbo de vida em todos os territórios
lidade simbólica. Os territórios da das variadas línguas existentes, tais
cidade, de forma “positiva” ou “ne- da cidade.
reportórios ocupam papel central
gativa”, realizam novas formas de Destaca-se, nesse sentido, a impor-
comunicação e conexão e as perife- 1 O conceito de território aqui utilizado é basea- tante e grandiosa iniciativa que teve
do em Milton Santos. Eis aqui o de escrita mais
rias não ficaram de fora. Muito pelo reduzida por mim encontrada, retirada do livro o Observatório de Favelas, a Redes
contrário, os moradores, os coleti- TERRITÓRIO, TERRITÓRIOS – ENSAIOS SOBRE O da Maré e o Instituto Maria e João
ORDENAMENTO TERRITORIAL, editora Lampa-
vos e as organizações das periferias rina: “O território é o lugar em que desembocam Aleixo em organizar o importante
todas as ações, todas as paixões, todos os poderes,
construíram canais que ampliam e todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a e grandioso Seminário Internacio-
apresentam a potência desses ter- história do homem plenamente se realiza a par- nal das Periferias, que contou com
tir das manifestações da sua existência”. (Nota do
ritórios. Mas ainda é marcante nos entrevistado) a presença de estudiosos e ativistas

10 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

de 15 países e mais de 20 estados pelo que é inventado e praticado tâncias distintas. Destacam-se prin-
brasileiros. Unificados, com vários nas periferias existentes. cipalmente as atrocidades que fize-
ensinamentos sobre as questões e os ram com o Amarildo.
No caso dos “marcadores das de-
desafios das periferias, dedicaram-
sigualdades”, não se trata de serem Há, no entanto, vários aspectos de
-se em responder a questão-chave
preservados nas redes sociais, e sim encontros e desencontros dos ter-
e provocativa do encontro: O que é
da presença em todos os elementos ritórios das cidades. Tais exemplos
periferia, afinal, e qual seu lugar na
econômicos e sociais, como traba- demonstram, de um lado, a diversi-
cidade? Neste encontro foi aprova-
lho, estudo, moradia, saneamen- dade existente nos territórios e entre
da a Carta da Maré, Rio de Janei-
to, transporte etc. Isso aparece nos os territórios. A maneira pela qual as
ro – Manifesto das periferias: as
discursos marcados pela denúncia redes sociais criaram um raio muito
periferias e seu lugar na cidade.
e naqueles que incidem sobre uma mais amplo para as manifestações
Documento, já disponível na in-
ação afirmativa. O Observatório rea- de ideias e das práticas cotidianas,
ternet2, que, entre outras questões
lizou uma campanha marcante, com pois ampliam o raio de alcance para
fundamentais, para pensar, atuar
os jovens da Escola Popular de Co- informações, mensagens e conexões.
e construir o lugar da periferia na
municação Crítica - Espocc, chama- Tal ampliação, tanto da velocidade
cidade, afirma: “a definição de pe-
da Juventude marcada para viver. quanto do alcance, por sua vez, não
riferias não deve ser construída em
Colocar a importância da defesa dos significa, automaticamente, uma
torno do que elas não possuiriam
jovens, pobres, negros, que são os mudança do mundo. As redes po-
em relação ao modelo dominante na
que mais sofrem as consequências dem, por exemplo, servir para am-
dinâmica socioterritorial ou da dis-
da violência letal com um olhar afir- pliar preconceitos e intolerâncias,
tância física em relação a um centro
mativo, apresentando propostas de como servir para criar a convivência
hegemônico. Elas devem ser reco-
políticas públicas e culturais, assim das diferenças em várias dimensões
nhecidas pelo conjunto de práticas
como uma nova narrativa sobre o da vida. Para os territórios popula-
cotidianas que materializam uma
genocídio que sofrem os jovens das res, para as periferias, o grande de-
organização genuína do tecido so-
periferias, principalmente os negros, safio está na utilização da internet
cial com suas potências inventivas,
foi uma ação fundamental para mos- (principalmente as redes sociais, no
formas diferenciadas de ocupação
trar tais contradições. A cidade é um caso do Brasil) para ampliação dos 39
do espaço e arranjos comunicati-
lugar de conflitos e enfrentar tais direitos e construção de novas nar-
vos contra-hegemônicos e próprios
conflitos com direitos, respeitando rativas na cidade.
de cada território”. Trata-se de um
as diferenças, apostando na convi-
marco fundamental para construir
vência, na empatia e na dignidade
narrativas e práticas estruturan- IHU On-Line – De que forma o
humana, é um passo fundamental
tes em escala internacional, com o acesso à internet e às redes so-
para conquistar uma cidade de direi-
objetivo de ampliar a potência das ciais atualiza o “ser” na periferia?
tos. Isso demonstra que ainda que as
periferias e fortalecer a disputa por
desigualdades sejam hegemônicas Eduardo Alves – O “ser” na pe-
uma cidade de direitos.
nos territórios populares, também riferia está em constantes mudan-
se faz marcante a potência de ação e ças. E ainda bem que as mudanças
IHU On-Line – As redes so- transformação que desses emergem. são possíveis e são inventadas por
ciais preservam os marcadores homens e mulheres. Não há nada
sociais entre a periferia e as zo- de natural em como são as pessoas
IHU On-Line – Como as redes
nas centrais? e em suas relações. Desnaturalizar
sociais aproximam e distan-
o que aparece como “natural”, tor-
Eduardo Alves – As periferias ciam as pautas das periferias
nar inaceitável o que pode ser visto
são zonas centrais; estão na centra- com as pautas das zonas mais
como “comum”, principalmente a
lidade das artes, de ações empre- abastadas da cidade, como o
violência letal, são ações urgentes
endedoras criativas, das invenções caso Amarildo, de um lado, e as
e fundamentais. Desnaturalizar a
de relações que reforçam a convi- manifestações “verde-amare-
violência, desnaturalizar a miséria,
vência. O reconhecimento como lo”, de outro?
desnaturalizar as várias discrimi-
periferia não apresenta uma visão
Eduardo Alves – As várias foto- nações, desnaturalizar o centro.
de territórios separados da cidade
grafias da cidade, em todos os seus As periferias não podem ser vistas
ou em suas beiras e pontas. Não é a
territórios, que demonstram a di- e muito menos narradas como um
localização dos territórios que as fa-
versidade existente em cada local lugar de medo, de violência, de
zem se conformar como periferias,
e entre os vários espaços da cida- miséria. Há muita beleza, criação,
indicando que estão afastadas do
de, são importantes para o conhe- invenção e sorrisos que tomam es-
centro. O centro de ações políticas
cimento e para vida. Os exemplos sas ruas e é necessário ampliar os
e socioculturais, na cidade, passa
citados na pergunta foram emble- direitos nesses territórios para su-
2 O documento pode ser acessado através do link
máticos nas redes e desenvolveram perar progressivamente tamanha
http://bit.ly/2oy1W77 (Nota do entrevistado) campanhas que alcançaram impor- desigualdade que possuem em rela-

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

ção ao conjunto da cidade. Por isso, fluxo de dados variados) como das século 21, das várias redes conheci-
também, é importante apresentar e tecnologias, não permitem ver a in- das e das tais redes sociais, tão dis-
construir as periferias como centros ternet, por si só, como espaço demo- seminadas e discutidas no Brasil,
de potência para a construção de crático. Mas sua chegada, principal- em particular. 
uma cidade de direitos. mente com o www e as redes sociais
O crescimento (e as chamadas re-
(no caso do Brasil de hoje), criou sim
voluções do século 21 no ambiente
um novo ambiente sociocultural ine-
IHU On-Line – Ainda há da internet) se deu em conceitos e
xistente até o século passado. Volto
nas favelas do Rio de Janeiro tecnologia. Quanto maior o reper-
a lembrar, o P2P é, praticamente,
muitas lan houses? Qual foi tório, os conceitos e as tecnologias
inexistente no Brasil e é uma arqui- serão manipulados com mais quali-
(ou é) a importância desses tetura de rede na qual, cada ponto,
espaços para a sociabilidade dade e poderão ser superados para
cada computador, funciona tanto os vários objetivos. As periferias são
destas populações? como emissor e receptor de dados e territórios de novos personagens em
Eduardo Alves – Ainda há lan mensagens quant0 como servidor. cena para superar esse conjunto de
houses nas favelas cariocas. Mas, Algo que não depende de mediações coisas a favor das pessoas na cons-
sem dúvida, hoje as pessoas es- e servidores centrais, como a grande trução de uma cidade de direitos.
tão conectadas principalmente via maioria das redes sociais que conhe-
computador de mão, os chamados cemos por aqui possuem. Portanto, Lançando mão das alterações na
smartphones. Esse é o instrumento a internet como temos no século 21, linguagem, da estética da comuni-
(ou aparelho) tecnológico que mais por sua novidade em tempo e esca- cação e da possibilidade de realiza-
garante as conexões. Hoje em dia la, é um ambiente que muito há para ções de upload, temos insumos para
seria importante inverter e não per- desvendar, descobrir e inventar. alterações fundamentais nesse novo
guntar quando as pessoas se conec- século. Objetivamos, por um lado,
Há um grande percurso histórico criar uma ferramenta fértil para a
tam na internet; o mais importante
quando falamos de internet. Esse desnaturalização das práticas so-
seria perguntar em que momento
processo de mudanças, em escala ciais e culturais hegemônicas e, por
não estão conectadas na internet ou
mundial, vem ocorrendo desde o outro, potencializar a ação criativa e
40 rompem com suas conexões. Colo-
fim da Segunda Guerra Mundial3 transformadora dos novos sujeitos
ca o corpo em uma dimensão mui-
e deu um grande salto quando, na em cena.
to diferente em relação aos séculos
década de 1960, ocorreu a primeira
passados, nos quais os encontros
ação do que seria conhecido logo em
dependiam da aproximação dos IHU On-Line – Quais são os
seguida como internet. A ARPAnet4
corpos. Essa é uma questão muito principais desafios a serem en-
foi fundamental, surgiu com a cria-
importante que precisa estar colo- frentados pelas comunidades
ção da ARPA em 1957, e foi lançada
cada sempre. E, para as periferias, das favelas no ambiente digital?
em 1969, ganhando terreno durante
onde os encontros dos corpos ainda Que tipos de preconceitos se
toda a década de 1970. A partir de
são momentos marcantes com vizi- perpetuam em novas formas?
1990, com a criação e divulgação da
nhos, parentes, amigos, é ainda mais
internet como conhecemos hoje – Eduardo Alves – Ainda há uma
simbólico. Cabe ressaltar que as de-
World Wide Web (www) –, foi dado visão hegemônica na cidade que as
sigualdades da cidade, que coloca a
um salto decisivo para a criação, no periferias, favelas entre elas, são lu-
periferia em condições adversas dos
outros territórios, atingem seus mo- gar de medo, de bandidos, de deso-
3 Segunda Guerra Mundial: conflito iniciado em
radores também no caso da inter- 1939 e encerrado em 1945. Mais de 100 milhões cupados; espaços de dor. O livro de
de pessoas, entre militares e civis, morreram em Jailson de Souza e Silva e de Jorge
net, pois banda larga de fibra ótica e decorrência de seus desdobramentos. Opôs os
computadores de mesa são escassos Aliados (Grã-Bretanha, Estados Unidos, China, Luiz Barbosa, ambos fundadores e
França e União Soviética) às Potências do Eixo
ou inexistentes. (Alemanha, Itália e Japão). O líder alemão Adolf da direção do Observatório de Fave-
Hitler pretendia criar uma “nova ordem” na Eu- las, lançado em 2005, já apresentava
ropa, baseada nos princípios nazistas da supe-
rioridade alemã, na exclusão - eliminação física tal narrativa. O título do livro é Fa-
incluída - de minorias étnicas e religiosas, como
IHU On-Line – A internet, por judeus e ciganos, além de homossexuais, na su- vela: alegria e dor na cidade (Rio de
definição um espaço potencial- pressão das liberdades e dos direitos individuais e Janeiro: Editora SENAC RJ, 2005).
na perseguição de ideologias liberais, socialistas e
mente democrático, permitiu a comunistas. Essa ideologia culminou com o Holo-
causto. (Nota da IHU On-Line) Apresentar esses territórios de peri-
ampliação dos modos de vida e 4 ArpaNet: é a sigla para Advanced Research
ferias como espaços de potência, am-
culturas das periferias no espa- Projects Agency Network, do Departamento de
Defesa dos Estados Unidos, que foi a primeira pliar o que já apresentam para cidade
ço digital? Como isso ocorreu? rede operacional de computadores à base de
comutação de pacotes, e o precursor da Internet, como encontros com alegria, inventi-
O que isso significa? tendo sido criada inicialmente para fins militares.
Desenvolvida pela agência Americana ARPA (Ad-
vidade, tecnologias de vários tipos e
Eduardo Alves – A internet, por vanced Research and Projects Agency - Agência formas, é um grande desafio para o
de Pesquisas em Projetos Avançados) em 1969,
si só, não é um espaço democrático. tinha o objetivo de interligar as bases militares e contemporâneo. Conquistar direitos
As desigualdades de acesso, tanto os departamentos de pesquisa do governo dos que garantam a dignidade da vida e
Estados Unidos. Esta rede teve o seu berço dentro
das bandas largas (que permitem o do Pentágono. (Nota da IHU On-Line) uma nova representação simbólica

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dos territórios de periferias são gran- Encontre-se em cada ferida Reinvenção que brota no solo
des desafios para o momento atual.
No som que agora chegou Chão ocupado, inventado, ilimitado
Arte que brota do chão Assim se transforma a vida
IHU On-Line – Deseja acres-
centar algo? Temas lançados de mão em mão No longo encontro presente

Eduardo Alves – Agradeço o Frases que são decoradas Com imaginário popular
convite e o espaço gentilmente ofe- Monte a própria versão Com os nervos e músculos candentes
recido. Se for possível concluir com
uma de minhas poesias (que gosto Cada encontro repentino Narrativas humanas para desenhar
de chamar de “junção ou arranjo de Essa é a favela da gente
Chegadas com sorrisos ou sustos
letrinhas”), assim o farei:
Com corpos gratinados por sol e lua É nessa que vamos entrar
OLHA AÍ: A FAVELA É mais que bemol na vida É nessa que o corpo dança e se alegra
Olha o que é a favela Mais que um hasteg na trilha E deixo assim o convite
Veja suas próprias cores Sustenidos dissonantes no ar Para o seu olhar, sobre a favela, se
transformar
Descubra a identidade da vida Há alegra os afetos despedaçando
Para a presença ativa revolucio-
Deixe aberto o canal de amor distopias
nar a cidade
Passe na rua ocupada Grito de potência da esperança
Mudar você e o lugar
Chegue de casa em casa Reanima a lembrança
Descubra a convivência diversa Com o território múltiplo e singular Eduardo Alves

41

EDIÇÃO 502
TEMA DE CAPA

Nada é efêmero, discreto ou


apagável no universo digital
Para Wilson Gomes, o uso das redes sociais depende
tanto do que as pessoas querem fazer com elas
quanto das suas características inerentes
Vitor Necchi

A
s redes sociais digitais podem existência de arenas em que haja atrito
propiciar a sensação de que, de pensamento, contraste de ideias e a
nelas, há mais discussão, mais formação de uma opinião esclarecida”.
agressividade. Não é bem assim. “Não
Um dos problemas é o excesso de
foram inventadas novas formas de
polarização e o ódio. “A formação de
odiar, humilhar, linchar pessoas. Nós
redes sociais por afinidade em meios
sempre fomos muito bons nisso”, res-
digitais é campo fecundo para que in-
salva o professor Wilson Gomes, em
divíduos formem ou se agreguem em
entrevista concedida por e-mail à IHU
coletivos com identidades bem demar-
On-Line. “O que acontece hoje é que
cadas e muito homogêneas”, descreve
todas as formas de interações e de redes
Gomes. No entanto, “facilmente se
sociais podem ser digitalizadas, ganhar
forma em ambientes digitais ou ter am- passa da constatação da diferença para
42 bientes digitais como suas extensões.”
a afirmação de que há divergência, e
do registro da divergência para a mar-
Gomes salienta que “o ódio circula cação da hostilidade”.
muito facilmente por qualquer rede ou
ambiente social e não apenas nos sites Wilson Gomes é doutor em Filo-
de mídias sociais”. No entanto, “a dife- sofia, professor do Programa de Pós-
rença dos meios digitais é o fato de que -Graduação em Comunicação e Cultura
qualquer ato, qualquer fala, qualquer Contemporâneas da Universidade Fe-
comportamento de ódio deixa rastros”. deral da Bahia e coordenador do Insti-
tuto Nacional de Ciência e Tecnologia
Por conta da ampla disseminação, “os
em Democracia Digital – INCT.DD.
meios e os ambientes digitais podem
Autor de Transformações da política
ser empregados de muitos modos e
na era da comunicação de massa (Pau-
com muitas finalidades”, explica. O que
lus), Jornalismo, fatos e interesses (In-
decorre deles “depende tanto do que as
sular) e A política na timeline (Edufba),
pessoas querem fazer com eles quan-
além de coautor, com Rousiley Maia, de
to das suas características inerentes”.
Comunicação & democracia: proble-
Uma possibilidade é em prol da demo-
cracia, “um sistema de gerenciamento mas e perspectivas (Paulus).
das diferenças que supõe claramente a Confira a entrevista.

IHU On-Line – As redes so- tais que eles proporcionam depende número de coisas, dentre as quais
ciais digitais podem fomentar tanto do que as pessoas querem fazer destaco o livre mercado de ideias
ou transformar a democracia? com eles quanto das suas caracterís- proporcionado pelos novos ambien-
Wilson Gomes – Os meios e os ticas inerentes. Assim, há certamen- tes sociais. Os sites de mídias sociais
ambientes digitais podem ser em- te um número muito grande e muito no Brasil se tornaram um ambiente
pregados de muitos modos e com bem documentado de empregos das muito usado para a discussão da po-
muitas finalidades. O que decorre mídias sociais em benefício da vida lítica, para a politização das questões
desses meios e dos ambientes digi- democrática. Isto inclui um grande sociais e para a circulação e comen-

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REVISTA IHU ON-LINE

“Os sites de mídias sociais no Brasil se


tornaram um ambiente muito usado para
a discussão da política, para a politização
das questões sociais e para a circulação
e comentário de informação política”

tário de informação política. Há nologias móveis para a conexão e Feliciano1, Silas Malafaia2, Lobão3 e
como que uma atualização da es- dos aplicativos de mídias sociais. Olavo de Carvalho4. No interior des-
fera pública política, estrutura es- A diferença dos meios digitais é o
sencial da democracia liberal, nes- fato de que qualquer ato, qualquer 1 Marco Feliciano (1972): pastor da Catedral do
ses novos ambientes digitais, com Avivamento, igreja neopentecostal ligada à As-
fala, qualquer comportamento sembleia de Deus, e deputado federal brasileiro.
ampla circulação de informação, de ódio deixa rastros e, portanto, Eleito pelo Partido Social Cristão (PSC) em 2010
com 212 mil votos, foi o segundo político evan-
intenso contraste de opinião, ofer- pode ser encontrado, registrado, gélico com maior número de votos no país e o
tas de oportunidade de expressão 12° entre os 70 deputados eleitos pelo estado de
arquivado, distribuído em gran- São Paulo. Elegeu-se presidente da Comissão de
e agrupamento dos mais variados de velocidade e para um número Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara
dos Deputados, cargo que exerceu durante o ano
pontos de vista. grande de pessoas. Nada é real- de 2013, gerando controvérsia pelas suas diversas
declarações polêmicas, principalmente em rela-
A democracia é um sistema de mente efêmero, discreto ou apagá- ção a temas como direitos dos homossexuais e
vel no universo das coisas digitais. ao aborto. Além de pastor, Feliciano é empresário,
gerenciamento das diferenças que autor de 18 livros e produtor de DVDs com men-
supõe claramente a existência Tudo pode ser ampliado, monito- sagens de autoajuda que venderam cerca de 600
43
mil cópias. (Nota da IHU On-Line)
de arenas em que haja atrito de rado e replicado indefinidamente, 2 Silas Malafaia (1958): pastor pentecostal líder
do ministério Vitória em Cristo, ligado à Assem-
pensamento, contraste de ideias mesmo o ódio. E mesmo a conde- bleia de Deus. Televangelista, graduado em psico-
nação do ódio. logia, presidente da editora Central Gospel, vice
e a formação de uma opinião es- -presidente do Conselho Interdenominacional de
clarecida. Gostemos ou não da Por outro lado, a formação de re-
Ministros Evangélicos do Brasil (CIMEB), entidade
que agrega cerca de 8 mil pastores de quase to-
qualidade da divergência online des sociais por afinidade em meios das as denominações evangélicas brasileiras. Ma-
lafaia se tornou muito conhecido por sua crítica
ou da opinião que as pessoas ne- digitais é campo fecundo para que a temas como direitos dos homossexuais e ao
las formam, as arenas digitais re- aborto, bem como por defender a chamada teo-
indivíduos formem ou se agreguem logia da prosperidade. Em janeiro de 2013, uma
presentam uma renovação muito reportagem da revista Forbes, dos Estados Uni-
em coletivos com identidades bem dos, o classificou como o terceiro pastor mais rico
importante do interesse político e do Brasil, com um patrimônio estimado em 150
demarcadas e muito homogêneas.
do engajamento na discussão dos milhões de dólares. Malafaia negou a informação
E isso sem que precisem sair da sua no programa De Frente com Gabi, quando afir-
problemas nacionais de públicos mou que seu patrimônio girava em torno de R$ 6
zona de conforto e dos seus próprios milhões. (Nota da IHU On-Line)
pouco dispostos para empregar os 3 Lobão (1957): cantor, compositor, escritor, mul-
ambientes sociais no trabalho ou na
meios tradicionais de participa- ti-instrumentista, editor de revista e apresenta-
família, por exemplo. Digamos que dor de televisão brasileiro. Sua carreira musical é
ção política, além de produzir um marcada por grandes parcerias; compôs sucessos
eu seja um conservador radical, mas como Me chama, muito famosa na voz de vários
aumento considerável da atenção intérpretes, e Vida louca vida, conhecida na voz
pública ao que acontece no campo conviva em um ambiente liberal no de Cazuza. Apesar de ter surgido e conseguido
político e na sociedade. bairro, na universidade e no esporte, sucesso no ambiente marginal e underground do
rock brasileiro nos anos 1980, Lobão vem dialo-
de forma que posso ser levado a fil- gando com diversos gêneros, como o samba, ao
longo de sua carreira. Tem emitido opiniões con-
trar muito o que eu digo em público servadoras e polêmicas, ao mesmo tempo em que
por saber que isso vai criar atritos elogia Olavo de Carvalho e o Instituto Ludwig von
Mises Brasil. Apresentou-se em palcos de mani-
IHU On-Line – Por que o ódio e enfrentar contestação dos outros festações pelo impeachment de Dilma Rousseff.
circula tão facilmente nas re- com quem convivo. Mas em ambien-
(Nota da IHU On-Line)
4 Olavo de Carvalho (1947): não tem nenhum tí-
des sociais? tes sociais digitais eu não preciso tulo acadêmico formal. Costuma ser apresentado
como escritor, conferencista, ensaísta, jornalista,
Wilson Gomes – O ódio circu- conviver com os colegas da faculda- filósofo e ex-astrólogo. É um dos principais no-
mes no discurso do conservadorismo brasileiro.
la muito facilmente por qualquer de, com a minha mãe ou tia que me Militou no PCB de 1966 a 1968, mas posterior-
reprimem ou contestam, de modo mente decepcionou-se com a ideologia e tornou-
rede ou ambiente social e não ape- se anticomunista convicto. Trabalhou em revistas
nas nos sites de mídias sociais. O que posso facilmente me relacionar e periódicos, passando por veículos como Folha
de S.Paulo, Planeta, Bravo!, Primeira Leitura, Jor-
preconceito, a intolerância, o dis- exclusivamente ou principalmente nal do Brasil, Jornal da Tarde, O Globo, Época e
Zero Hora. Atualmente escreve para o Diário do
curso e as práticas de ódios são com grupos que pensam como eu e Comércio na coluna Mundo Real. Seu primeiro
nossos velhos conhecidos muito que estão aglomerados ao redor de livro, A imagem do homem na astrologia, foi lan-
çado em 1980. O mínimo que você precisa saber
antes da disseminação das tec- estrelas conservadoras como Marco para não ser um idiota é de 2013 e vendeu algo

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TEMA DE CAPA

ta nova rede social, a minha posição tes: facilmente se passa da consta- acordos de reciprocidade e confiança
conservadora não apenas é tolera- tação da diferença para a afirmação mútua, que permite que indivíduos e
da, mas incentivada. A minha co- de que há divergência, e do registro grupos cooperem em benefício pró-
ragem de expressar as minhas con- da divergência para a marcação da prio. Capital social é parte dos recur-
vicções é incentivada e quanto mais hostilidade. Minha causa é minha sos necessários para a vida humana,
radical for o que publico, mais serei vida e, pelo menos no meu turno de de forma que redes sociais são das
recompensado pelo meu novo gru- guarda, “eles”, os outros, os-que- coisas mais disseminadas na histó-
po de referência. Troque-se “con- -não-são-nós, não prevalecerão. ria humana.
servador radical” por “feminista Assim, se passa rapidamente do re-
Os sites e aplicativos para redes so-
radical”, “esquerdista radical” etc. gistro da diferença para a certeza de
ciais são uma inovação do início do
e o sistema identitário (“encontrei a que os outros em geral – ou alguns
século 21 e só são realmente popula-
minha turma”) se replica do mesmo “outros” específicos – são nossos
res há pouco mais de dez anos. Não
jeito, com o incentivo à expressão e inimigos, e o inimigo se trata com
há como diagnosticar que a socie-
à publicação da opinião em confor- hostilidade. O ódio, portanto, não
dade simplesmente enlouqueceu na
midade com o novo ambiente social surge fortuitamente de eventuais
última década e apenas por causa de
de referência e com os sistemas de discordâncias, mas é o resultado
uns sites que permitem às pessoas
apoio e recompensas à base de likes inevitável da formação de coletivos
e compartilhamentos. construírem novas redes de contatos
baseados em identidades em uma
e publicar, consumir e compartilhar
Em um momento em que há extre- situação de polarização política e
conteúdo produzido para e pelas
ma polarização com relação a temas social, definida como aquela em que
pessoas da sua rede. Não foram in-
políticos (esquerda x direita, petistas os nervos estão tensos e as mínimas
ventadas novas formas de odiar, hu-
x antipetistas) ou temas politizáveis divergências, aceitáveis em outras
milhar, linchar pessoas. Nós sempre
(a questão homossexual, o feminis- circunstâncias, são uma diferença
fomos muito bons nisso. As redes
mo, o aborto, os valores familiares), inaceitável, uma provocação. O ódio
sociais baseadas em vínculos religio-
é muito fácil o sujeito ser atraído e as rusgas digitais (as “tretas”) são
sos, as igrejas e formas semelhantes,
para redes baseadas em identidades uma consequência, então, da for-
por exemplo, foram usadas por mi-
políticas fortes e voltadas para con- mação de redes identitárias e da
44 polarização ou extremo tensiona-
lênios para fazer este trabalho. Os
frontar qualquer posição diferente, ambientes escolares, por exemplo,
divergente ou adversária. Assim, vão mento da vida pública, que são fe-
sempre foram muito empregados
se formando ambientes digitais com nômenos muito contemporâneos e
para o trabalho de assédio, humi-
ideias e causas muito homogêneas e que ganham particular importância
lhação, difamação e destruição de
com sistemas de distribuição inter- em ambientes digitais.
reputação de pessoas, como o sabe
na de recompensas (afetos, likes), muito bem a minha geração, muito
de prestígio e de distinção disponí- IHU On-Line – O escritor Mi- antes que contássemos com o auxílio
veis para quem compartilhar wmais chel Laub lançou no final do de mídias digitais e de outros modos
fortemente os valores do grupo e ano passado o romance O tri- de comunicação baseados em tecno-
a quem contrastar mais agressi- bunal da quinta-feira (Compa- logias digitais. E continuamos muito
vamente “os outros”, a este ponto nhia das Letras), que trata de hábeis em empregar a mais eficaz
transformados em adversários ou intolerância e do julgamento das redes de comunicação, a fofoca,
inimigos. Redes identitárias traçam sumário a que algumas pessoas para linchamentos rápidos e eficazes
um círculo ao seu redor e estabele- são submetidas nas redes so- de pessoas.
cem um “nós” por contraste com ciais. Os linchamentos virtuais
“eles” e confirmam a identidade das O que acontece hoje é que todas as
são rápidos. O que isso diz so-
próprias convicções nesta contrapo- formas de interações e de redes so-
bre as nossas sociedades?
sição básicas – “eles não são como ciais podem ser digitalizadas, ganhar
nós”. Redes desta natureza não são Wilson Gomes – O conceito de forma em ambientes digitais ou ter
baseadas apenas em homogeneidade “redes sociais” foi inventado muito ambientes digitais como suas exten-
de opinião, mas em identidades so- antes de podermos falar de mídias sões. Lembrem-se que o Facebook
ciais: eu me defino como X e, a partir digitais e de sites para redes sociais. foi inventado para ser uma extensão
do modo como me defino, eu acho Refere-se apenas ao conjunto de da vida escolar de uma universidade
a minha turma, um estilo de vida e amigos, colegas e contatos pesso- americana, como dispositivo auxiliar
uma posição existencial. ais que uma pessoa tem e da rede para uma das atividades típicas des-
de interações entre eles. É parte do ses ambientes, que é arrumar parcei-
Em situações de polarização, que é necessário para a produção ros para o amor e o sexo. A “digi-
“eles” os “outros” não contrastam de capital social, definido como um talização” das interações sociais vai
conosco apenas porque são diferen- conjunto de “ativos” socialmente assimilando tudo, da fofoca ao con-
disponíveis, decorrentes de vínculos, sumo de informações publicadas em
próximo de 320 mil exemplares. (Nota da IHU
On-Line) contatos, valores compartilhados, jornais, das redes sociais do Ensino

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Médio às redes de contatos de fami- nos poderiam oferecer. Deste modo, exclusivamente nas características
liares dispersos geograficamente, do também a nossa maldade tem o bra- das novas tecnologias digitais de co-
ambiente religioso ao ambiente de ço mais longo e chega a pessoas que, municação. Por outro lado, também
trabalho. Assim, o que fazíamos an- em outra época, estariam fora do a punição foi possível em decorrên-
tes por meio de outras redes sociais nosso alcance. Em um recente episó- cia do fato de que nada se faz em am-
e em outros ambientes, o fazemos dio de ofensas racistas postadas con- bientes digitais sem que se deixem
agora em ambientes digitais e por tra a atriz Taís Araújo e a jornalista pegadas que podem ser rastreadas.
meio de sites de mídias digitais. In- Maria Júlia Coutinho, foram presos Não obstante isso, o digital pode ter
clusive o básico humano do assédio, indivíduos que moravam em Bru- provido o meio e a oportunidade,
da humilhação, da difamação. mado (BA), Sertãozinho (SP), Jandi- mas não a motivação, o ódio racial.
Há características específicas do ra (SP) e Porto Alegre (RS). É claro Ódio que, inclusive, sempre tem en-
digital envolvidas nos linchamentos que a probabilidade de uma rede contrado meios de ferir e humilhar,
que hoje fazemos? Certamente. As formada por pessoas que moram de um jeito ou de outro, tanto por
tecnologias digitais nos deram hoje tão distantes umas das outras e tão meio de um post do Facebook como
um alcance que outras redes sociais distantes das suas vítimas, às quais por meio de uma inscrição numa pa-
e ambientes sociais nem de longe jamais viram pessoalmente, repousa rede ou um cartaz de cartolina.■

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TEMA DE CAPA

Indissociabilidade entre
os mundos on e off-line
Adriana Amaral acredita que redes sociais digitais
não criam, mas potencializam relações e identidades
já existentes no mundo concreto
João Vitor Santos

A
s gerações mais jovens, usuários das pessoas para viver no ‘mundo virtu-
nativos das redes sociais digi- al’. A comunicação móvel desconstruiu
tais, tendem a ver o mundo pela bastante essa noção”, acrescenta.
timeline do perfil de sua rede social. A
Adriana Amaral é doutora em Co-
professora Adriana Amaral alerta para
municação Social pela Pontifícia Uni-
os riscos dessas perspectivas de forma
versidade Católica do Rio Grande do
bem-humorada: “o mundo é maior que
a timeline”. Por isso, defende que se Sul – PUCRS, com estágio de douto-
tenha consciência das chamadas bo- rado em Sociologia da Comunicação
lhas das redes. “As bolhas criam nossas pelo Boston College, EUA. Fez estágio
próprias zonas de conforto, nas quais pós-doutoral em Mídia, Cultura e Co-
nos relacionamos com pessoas que pos- municação pela University of Surrey,
suem os mesmos gostos e postam con- no Reino Unido. É professora e pesqui-
46 teúdos similares”, explica. Entretanto, sadora do Programa de Pós-graduação
assim como os jovens, pesquisadores em Ciências da Comunicação da Uni-
desse campo podem acreditar que esse sinos. Na mesma instituição, é coor-
ambiente cria novidade nas relações. denadora da Especialização em Cultu-
ra Digital e Redes Sociais. Entre suas
Na entrevista a seguir, concedida por publicações, destacamos Cultura pop
e-mail à IHU On-Line, Adriana prefe- digital brasileira: em busca de rastros
re tratar as redes sociais digitais como político-identitários em redes (Revista
um terreno de apropriações e não in- EcoPós, V.19, n.3, 2016) e “De Weste-
venções. “O importante é pensar que ros no #vemprarua à shippagem do
esses processos de sociabilidade são beijo gay na TV brasileira”. Ativismo
tanto determinados pelas tecnologias de fãs: conceitos, resistências e práti-
quanto pelos agentes humanos”, aler- cas na cultura digital (Galáxia. Revis-
ta. Para ela, “não há uma separação tão ta do Programa de Pós-Graduação em
dura entre o presencial e os ambientes Comunicação e Semiótica. N. 29, 2015).
on-line”. “Alguns autores acreditavam e
apostavam que haveria um isolamento Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que tipo de so- nados tanto pelas tecnologias quanto etc. A partir da geolocalização, que
ciabilidade as redes sociais do pelos agentes humanos. Como um é uma questão importante, ele vai
ambiente digital proporcionam? exemplo disso temos os “aplicativos nos mostrar uma lista de pessoas
de pegação” como Tinder1, Grindr2 diferentes de acordo com os lugares.
Adriana Amaral – É impossível
falar sobre um tipo de sociabilidade, É um tipo de apropriação e uma so-
1 Tinder: é uma aplicação multiplataforma de lo-
e sim de sociabilidades de acordo calização de pessoas para encontros românticos, ciabilidade específica, que difere, por
cruzando informações do Facebook e localizando
com diferentes usos, apropriações as pessoas geograficamente próximas. Esta apli- exemplo, de um site de rede social
cação está disponível para os sistemas Android e
de diferentes grupos e culturas. O iOS. (Nota da IHU On-Line)
importante é pensar que esses pro- 2 Grindr: é uma rede geossocial que pode ser usa- calização, que permite aos usuários acessar outros
da no Android, iPhone, iPod touch, iPad, Blackber- gays e homens bissexuais que estejam numa área
cessos de sociabilidade são determi- ry OS. O aplicativo faz uso do dispositivo geolo- próxima. (Nota da IHU On-Line)

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“Processos de sociabilidade
são determinados tanto
pelas tecnologias quanto
pelos agentes humanos”

focado em livros, ou do grupo da fa- de ativistas de esquerda ou de fãs dos estilos e grupos sempre existiu,
mília do Whatsapp e seus encontros de seriados, tendo a pensar que essa mas são amplificadas via internet.
ou de redes mais genéricas como Fa- proporção é a mesma no âmbito da
cebook, Twitter etc. rua. E isso não é necessariamente
verdade. É o que chamo, em tom IHU On-Line – O que compre-
À medida que negociamos nos- ende como ativismo em rede?
de brincadeira, de paradigma do “o
sas informações com essas redes, Como ele se dá hoje?
mundo é maior que a timeline”.
temos tipos de sociabilidades que
podem tanto ser diferentes quanto Então, nada substituiu a multiplici- Adriana Amaral – O ativismo
ser utilizadas de uma forma similar. dade de pensamentos, por mais que em rede é um conjunto de práticas
Relações mais ou menos efêmeras, muitos deles nos mostrem uma face políticas que acontece desde os pri-
encontros com desconhecidos ou cruel com a qual talvez não saibamos mórdios das BBS3 e outras formas
aprofundamento de conhecimento ou não consigamos dialogar. A possi- históricas da internet. Não é uma
de amigos, laços sociais mais fortes bilidade de não se fechar em bolha é invenção de agora ou privilégio da 47
ou mais fracos com que está mais compreender melhor as alteridades. geração do “lacre4 e do textão5”.
longe ou mais perto, tudo deriva da Acredito que aconteceram muitos
forma com que nos relacionamos avanços e que o fato de que temos
com essas mediações. IHU On-Line – O ciberespaço acesso a uma variedade grande de
proporciona o surgimento de informações – se elas são confiáveis
novas identidades? Por quê? ou não é outro ponto – é muito posi-
IHU On-Line – Quais os limi- tivo e demonstra o quanto crescemos
Adriana Amaral – Muitos pes-
tes e as possibilidades das cha- enquanto sociedade. Ainda acredito
quisadores têm discutido os aspec-
madas bolhas de relações nas na importância da luta política on-
tos relacionados a identidades e
redes sociais digitais? -line, embora nesse momento a veja
subjetividades desde os primeiros
Adriana Amaral – Os limites e as agrupamentos proporcionados pela – em alguns casos – esvaziada por
possibilidades são configurados tan- internet e pelas comunidades virtu- um excesso de performatização em
to a partir dos elementos humanos ais, como chamávamos nos anos 90. rede e pouca pragmática. Acredito
– o tipo de informações, conteúdos e Acho complexo atribuir à materiali- que as práticas ativistas estão muito
engajamentos que temos - quanto de dade dos ambientes digitais a cons- mais próximas das lógicas de fãs6 e
elementos não humanos como dos tituição de “novas identidades”, uma atividades que eram feitas em ou-
sistemas de recomendações, algorit- vez que a fluidez ou não das mesmas tros espectros da vida pública, o que
mos etc. As bolhas criam nossas pró- depende muito mais da relação en- mostra o quanto a política e o entre-
prias zonas de conforto, nas quais tre os pares, entre os grupos em um
3 Bulletin board system (BBS): é um sistema
nos relacionamos com pessoas que determinado contexto que é cultural, informático, um software, que permite a ligação
possuem os mesmos gostos e pos- social etc. (conexão) via telefone a um sistema através do
seu computador e interagir com ele, tal como
tam conteúdos similares, o que de hoje se faz com a internet. (Nota da IHU On-Line)
A internet permite, de repente, que 4 Lacre, lacrou: expressão do jargão popular. É
certa forma é importante para man- pessoas com determinados contex- uma maneira de dizer que a pessoa foi bem em
algo. Realizou algo e obteve sucesso. (Nota da
ter nossa identidade coletiva/grupal. tos identitários se encontrem e pos- IHU On-Line)
5 Textão: expressão do jargão popular para defi-
O aspecto negativo disso é que sam se fortalecer em grupo, mas não nir texto considerado inconveniente devido à sua
muitas vezes tendemos a perder a vejo isso como uma “nova identida- extensão e interpretado como pedantismo nas
redes sociais. (Nota da IHU On-Line)
noção de acontecimentos globais ou de”. Aparecem rótulos, desdobra- 6 A entrevistada compreende que lógicas de fãs
“são as formas como eles se organizam na produ-
de entendimento de outros públicos mentos que são mais facilmente vi- ção de conteúdo e materiais midiáticos, além de
e tipos de pessoas. Se a minha Time- sualizados ali, isso sim. A vontade de mobilizações como por exemplo escrever usando
uma hashtag como #ajojusto ou #lacrou”. (Nota
Line é constituída por uma maioria pertencimento ou não a determina- da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

tenimento estão interseccionados sobre Star Trek9, por exemplo, e ou- fanvídeos. Enfim, a cultura pop pau-
e ao mesmo tempo nos demonstra tros formatos de mídia underground ta as redes sociais e as redes sociais se
essa polarização em que nos senti- produzidos por fãs ou por produto- utilizam da cultura pop em sua lingua-
mos cada vez que lemos uma thread res de cenas musicais também cum- gem e de diversas formas.
(debate) em rede. priam esse papel, mas numa escala
de menor alcance.
IHU On-Line – É possível
IHU On-Line – As redes sociais fazer cultura pop – e fazer
fomentam a democracia? Como? “Nada substi- todos os seus produtos e va-
lores circularem – sem consi-
Adriana Amaral – Num pri-
meiro momento, pelo fato de ela tuiu a multipli- derar o ambiente virtual das
redes sociais?
proporcionar e amplificar uma mul-
tiplicidade de vozes, podemos dizer cidade de pen- Adriana Amaral – Há uma ques-
que sim. No entanto, com o tempo
e as apropriações mercadológicas,
samentos, por tão apontada pelo teórico Marcel Da-
nesi11 que é de ordem histórica. Para
as lógicas de visibilidade transfor-
mam as ideias sobre a política (so-
mais que mui- ele, há um relacionamento entre os
estágios das mídias (não num sentido
bretudo nas lógicas identitárias) em
commodities. A questão das curti-
tos deles nos hierárquico) para a entrega da cul-
tura pop em seus mais variados for-
das e compartilhamentos, ou seja,
a aferição numérica, personaliza o
mostrem uma matos e conteúdo da própria cultura
pop. A ideia de cultura pop, enquanto
debate político. Isso acaba, muitas
vezes, tirando o foco do conteúdo
face cruel com experimento e ao mesmo tempo um
padrão inconsciente, que se retroali-
para uma discussão em que quem a qual talvez menta e é retroalimentada pela mídia
é útil para pensarmos na continuida-
dá a resposta mais curtida “ganha”
o debate. A democracia também fo- não saibamos de da mesma ao longo dos anos.
mentou as redes sociais.
48 ou não consiga- É essa característica – ser demo-
crática mas de certa forma também
IHU On-Line – De que forma mos dialogar” padronizada – que faz com que seus
valores circulem. Não há mais como
as redes sociais atualizam o
conceito de cultura pop para o pensar cultura pop e internet de
nosso tempo? formas separadas. Um caso como o
IHU On-Line – Qual a influên- sucesso do K-POP (Pop Coreano) no
Adriana Amaral – Uma das ca- cia das redes sociais nos produ- Brasil é um exemplo disso. É um fe-
racterísticas mais marcantes da cul- tos de cultura pop? nômeno que depende da circulação
tura pop é o fato de ela ser acessível on-line e que por retroalimentação
Adriana Amaral – A influência é
e democrática, ao mesmo tempo que tem feito muitos jovens estudarem
decisiva tanto no que diz respeito ao
também é padronizada. Essa carac- coreano e até mesmo se interessa-
consumo e à própria discussão dos
terística garante sua sobrevivência rem pela cultura do país.
produtos. Casos de representativi-
nas lógicas das plataformas de redes
dades étnicas, sociais, de gênero, por
sociais e nos memes7, pois a repeti-
exemplo, têm sido debatidas exausti-
ção (reboots, remakes, prequels, se- IHU On-Line – Qual é o im-
vamente on-line. A força e a pressão
quels, referências etc.) sempre fize- pacto das redes sociais na rela-
que os fãs têm exercido aparece de vá-
ram parte dela e agora acharam seu ção entre fã e ídolo?
rias formas, desde pequenos boicotes
ambiente mais propício. Mas torno a
até a escrita de fanfics10, a produção de
lembrar que os fanzines8 dos anos 60 por fãs em blogs, sites e em outras plataformas
pertencentes ao ciberespaço, que parte da apro-
priação de personagens e enredos provenientes
9 Star Trek: é uma franquia de entretenimento de produtos midiáticos como filmes, séries, qua-
norte-americana criada por Gene Roddenberry. A drinhos, videogames, etc. sem que haja a inten-
franquia iniciou-se como uma série de televisão ção de ferir direitos autorais ou obter de lucros.
7 Memes: termo grego que significa imitação. em 1966, originalmente chamada Star Trek mas Portanto, tem como finalidade a construção de
Mas, no ambiente de internet, é uma imitação que posteriormente renomeada para Star Trek: The um universo paralelo ao original e também a
ganha imensa proporção de popularidade, que se Original Series. Essa série levou à criação dos spin- ampliação do contato dos fãs com as obras que
espalha rapidamente. Pode ser uma ideia, pessoa, offs Star Trek: The Animated Series, Star Trek: The apreciam para limites mais extensos. (Nota da
imagem, música ,etc. O conceito de “meme” foi Next Generation, Star Trek: Deep Space Nine, Star IHU On-Line)
criado pelo zoólogo e escritor Richard Dawkins, Trek: Voyager e Star Trek: Enterprise. As seis séries 11 Marcel Danesi (1946): professor de Semiótica
em 1976, quando escreveu no livro “The Selfish de televisão são consideradas parte da mitologia e Antropologia Linguística na Universidade de To-
Gene” (O Gene Egoísta). Tal como o gene, o meme de Star Trek, apesar de existir um debate acerca ronto, no Canadá. É conhecido por seu trabalho
é uma unidade de informação com capacidade de da posição de The Animated Series no cânone da em linguagem, comunicação e semiótica, sendo
se multiplicar, através das ideias e informações franquia. Em 2017 virá ao ar a sétima série de te- diretor do Programa em Semiótica e Teoria da
que se propagam de indivíduo para indivíduo. levisão derivada, sob o título Star Trek: Discovery. Comunicação. Ele também ocupou cargos na
(Nota da IHU On-Line) O cânone de Star Trek também inclui uma série de Universidade Rutgers (1972), na Universidade de
8 Fanzine: Aquilo que é organizado por fãs de filmes. (Nota da IHU On-Line) Roma “La Sapienza” (1988), na Universidade Cató-
um determinado tema, destinado a fãs do mesmo 10 Fanfiction, fanfic, ficção de fã ou ainda fic- lica de Milão (1990) e na Universidade de Lugano.
tema. (Nota da IHU On-Line) fã: é uma narrativa ficcional, escrita e divulgada (Nota da IHU On-Line)

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Adriana Amaral – É uma rela- e depois foi convidado a conhecê-la Adriana Amaral – As interações
ção de intimidade e performance em um show. Nesse sentido é uma em redes estão bastante relaciona-
mediada entre fãs e ídolos, embora relação bastante distinta da relação das às ocupações e à promoção de
cada caso deva ser pensado e anali- estabelecida entre fãs e ídolos nas eventos, embora não necessaria-
sado de forma distinta. Por um lado, mídias convencionais onde o acesso mente uma coisa vá apenas levar à
temos a busca pelas informações era mais restrito. outra. No início dos anos 1990, al-
sobre os artistas: datas de shows, ál- guns autores acreditavam e aposta-
buns etc. Por outro, há uma intimi- vam que haveria um isolamento das
dade performatizada pelos artistas IHU On-Line – Como, em tem- pessoas para viver no “mundo virtu-
ao se colocarem em um plano mais pos de redes sociais, as mídias al”. A comunicação móvel descons-
próximo dos fãs. Lady Gaga12 no Ins- tradicionais se reconfiguram? truiu bastante essa noção, embora
tagram, tomando café em sua casa, obviamente isso sempre tenha sido
Adriana Amaral – Assim como
por exemplo. O artista que posta
no início da internet ela remedia- uma falácia, pois não há uma sepa-
a foto no camarim antes do show,
va o impresso, o rádio e a TV, as ração tão dura entre o presencial e
Justin Bieber13 bloqueando o Ins-
mídias tradicionais também se re- os ambientes on-line. Estamos na
tagram porque xingaram sua nova
configuraram com as redes sociais rua e estamos on-line. Se você ob-
namorada... Cada ato performativo
da internet, sobretudo em tentati- servar muitas das pessoas que es-
amplifica essa relação na qual há
vas de linguagens e formatos que tão utilizando troca de mensagens,
evidentemente um gerenciamento
das impressões, daquilo que o artista articulam a participação da audi- estão combinando encontros com
quer comunicar com o público. ência on-line. Um bom exemplo é os amigos, saídas, namoros, idas a
o MasterChef 14. shows, eventos.
Por outro lado, o fã também se uti-
liza desse expediente, por exemplo, Claro, há também que se conside-
retuitando quando o ídolo o respon- IHU On-Line – De que forma rar que quem tem tendências ao iso-
de, publicando a foto do encontro na é possível relacionar as intera- lamento, vai ter mais facilidade para
rua, ou até em um nível como o do fã ções no ciberespaço com a ocu- não sair. A questão da ocupação dos
de Beyonce que fez um vídeo paródia pação de espaços públicos e a espaços públicos é um fenômeno 49
promoção de eventos sociais? mais complexo do que só a promo-
12 Lady Gaga (1986): Stefani Joanne Angelina ção dos eventos em redes; tem a ver
Germanotta, mais conhecida pelo nome artísti-
co Lady Gaga, é uma cantora, atriz, compositora, 14 MasterChef Brasil: é um talent show de culi- com questões que passam por polí-
produtora musical, modelo, ativista e dançarina nária brasileiro exibido pela Rede Bandeirantes,
estadunidense. (Nota da IHU On-Line) baseado no consagrado formato original de mes- ticas públicas, cidadania, gentrifica-
13 Justin Drew Bieber (1994): é um cantor e com- mo nome exibido pela BBC no Reino Unido. Em ção, cidades inteligentes, entre ou-
positor de música pop e R&B e ator canadense. Portugal, é exibido no canal SIC Mulher. (Nota da
(Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) tras questões.■

Leia mais
- Perfil de Adriana Amaral, publicado na seção IHU Repórter, da revista IHU On-Line nº 359,
de 2-5-2011, disponível em http://bit.ly/2nfcFzz.
- A superficialidade e as relações sociais na web. Entrevista especial com Adriana Amaral,
publicada nas Notícias do Dia de 5-2-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2ndI7gQ.
- Twitter: a nova via da revolução? Entrevista especial com Sandra Montardo, Pollyana
Ferrari, Adriana Amaral e Matheus Lock dos Santos, publicada nas Notícias do Dia de 29-
3-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2nfcq7q.

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TEMA DE CAPA

Redes sociais formaram bolhas


na internet que restringem
circulação de opiniões e ideias
Nesses ambientes, a professora Raquel Recuero identifica
a formação de uma modalidade de esfera pública
João Vitor Santos | Edição: Vitor Necchi

A
o refletir sobre a maneira como Conforme Raquel, se percebe, nas re-
as pessoas se comportam nas des sociais digitais, “um acirramento
redes sociais digitais, a professo- dos posicionamentos políticos, segui-
ra Raquel Recuero evita falar em nova do por uma apatia generalizada após o
sociabilidade. “O que acontece é que início do governo Michel Temer”. Nos
os processos de criação e manutenção últimos tempos, verifica-se “uma apa-
dos laços sociais podem ser diferentes”, tia muito grande quanto aos grandes
explica. Essas redes, de modo geral, temas”, como se houvesse um esgota-
“formam uma modalidade de esfera mento. “Veremos de modo mais claro
pública porque proporcionam um es- como o processo de impeachment e o
paço público onde há circulação de in- governo atual impactaram nesses dis-
formações, debate e onde as opiniões cursos, creio, agora em 2018”, projeta.
públicas são formadas (e, muitas vezes, Raquel Recuero é doutora e mes-
50 acirradas)”. No seu entendimento, é tra em Comunicação e Informação pela
possível falar também em microesferas Universidade Federal do Rio Grande do
públicas, “pois as redes sociais passa- Sul – UFRGS e graduada em Comuni-
ram a fragmentar-se ideologicamente, cação Social – Jornalismo pela Univer-
constituindo ‘bolhas’ onde apenas al- sidade Católica de Pelotas – UCPel e em
gumas opiniões e ideias circulam livre- Direito pela Universidade Federal de
mente”. Pelotas – UFPel. Professora e pesqui-
Em relação às mídias tradicionais, ela sadora dos cursos de Jornalismo e do
acredita que as redes sociais digitais Programa de Pós-Graduação em Letras
têm com elas uma relação de comple- da UFPel e do Programa de Pós-Gra-
mentaridade. “A mídia social circula duação em Comunicação e Informação
informação (nem sempre fidedigna) da UFRGS. Autora de Redes sociais na
e cabe aos veículos jornalísticos, por internet (Sulina, 2009) e coautora, com
exemplo, apontar quais dessas infor- Marco Toledo Bastos e Gabriela Zago,
mações são verídicas e quais não são”, de Análise de redes para mídia social
observa em entrevista concedida por e- (Sulina, 2015).
-mail à IHU On-Line. Confira a entrevista.

IHU On-Line – As redes so- exemplo, é possível você conhecer conhece fisicamente. A manutenção
ciais digitais proporcionam alguém on-line primeiro, conhecen- dos laços também se dá de modo
uma nova sociabilidade? do as ideias e os posicionamentos diferente, uma vez que os sites de
Raquel Recuero – Não sei se po- deste ator, e apenas conhecê-lo pes- rede social mantêm essas conexões
demos falar em “nova sociabilidade”. soalmente depois. Ou seja, primeiro e você recebe informações sobre os
O que acontece é que os processos você conhece como a pessoa pensa atores por eles. Esses dois processos
de criação e manutenção dos laços e constrói sua visão de como é sua são diferentes off-line: você preci-
sociais podem ser diferentes. Por personalidade e somente depois a sa primeiro conhecer alguém fisi-

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“A mídia social circula informação


(nem sempre fidedigna) e cabe aos
veículos jornalísticos, por exemplo,
apontar quais dessas informações
são verídicas e quais não são”

camente para depois conhecer sua IHU On-Line – Que mudan- No caso da vinheta de Carnaval, há
personalidade. Para manter o laço ças as redes sociais digitais discussões positivas sobre o papel
nesse contexto, é preciso interação, impõem às mídias tradicionais da mulher negra, por exemplo, bem
é preciso conversar com as pessoas. (rádio, TV e jornal), desde a como comentários negativos, mas
O acesso ao capital social também se produção de conteúdo até a re- vemos um embate discursivo rele-
dá de modo diferente, e o ambiente lação com seus públicos? vante sobre a exploração do corpo
on-line também proporciona formas das mulheres. Há um debate que,
Raquel Recuero – Creio que
de acesso a valores diferentes. Então até então, não aparecia nessas fer-
têm sido complementares. A mí-
há uma série de diferenças em ter- ramentas. Ao mesmo tempo, tam-
dia social circula informação (nem
mos sociais.  bém observamos, desde 2014, uma
sempre fidedigna) e cabe aos ve-
polarização nos debates políticos na
ículos jornalísticos, por exemplo,
mídia social, um acirramento e radi-
IHU On-Line – As redes so- apontar quais dessas informações
calização dos discursos políticos. Ou
ciais na internet constituem são verídicas e quais não são. A mí-
seja, vemos esses espaços como es- 51
uma esfera pública? Por quê? dia social também tem sido vista
como câmara de eco para a televi- feras públicas onde podemos obser-
Raquel Recuero – Acredito que são, onde é possível compreender var a constituição e a mudança dos
sim, levando em conta o segundo como as pessoas assistem à TV, o discursos na sociedade, através des-
conceito de Habermas1 (há dife- que veem e o que comentam.  sas conversações. Essas mudanças
rentes conceitos de esfera pública). refletem outras mudanças sociais,
Mas, de modo geral, essas redes mas não sei se podemos dizer que
formam uma modalidade de esfera IHU On-Line – Recentemen- são causas. Há sim, nas redes sociais
pública porque proporcionam um te, a senhora produziu uma na internet, uma exposição maior a
espaço público onde há circulação de reflexão a partir da discussão discursos diferentes, mas também
informações, debate e onde as opini- que gerou nas redes sociais a uma resistência muito grande a eles.
ões públicas são formadas (e, muitas mudança da vinheta de Carna-
vezes, acirradas). Hoje, podemos fa- val da Rede Globo2. O que todo
lar também em microesferas públi- esse episódio revela sobre as IHU On-Line – As redes so-
cas, pois as redes sociais passaram discussões nas redes sociais? E ciais digitais endossam discur-
a fragmentar-se ideologicamente, que associações podemos fazer sos sociais padrões, reiterando
constituindo “bolhas” onde apenas com os acalorados debates po- preconceitos, por exemplo, so-
algumas opiniões e ideias circulam líticos polarizados? bre gênero e identidade sexu-
livremente. Há uma mudança em al, ou podem apresentar novas
Raquel Recuero – Há uma as-
curso, que precisa ser analisada em perspectivas? Por quê?
sociação entre as redes sociais na
termos de impacto na sociedade nes- internet e um novo tipo de esfera Raquel Recuero – Temos vis-
sas bolhas. pública que constitui e reverbera to, desde 2014, por exemplo, uma
discursos. As pessoas discutem, co- mudança importante na descrição
mentam, apontam elementos sobre das mulheres no Dia Internacional
1 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, prin- o que acreditam ou não nos sites de da Mulher. O conceito de feminis-
cipal estudioso da segunda geração da Escola de
Frankfurt. Herdando as discussões da Escola de rede social, talvez, até mesmo, com mo cresceu muito nas discussões,
Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa menos escrúpulos do que nesses enquanto outros posicionamentos
como superação da razão iluminista transforma-
da num novo mito, o qual encobre a dominação debates e discussões presenciais. mais conservadores foram desapa-
burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos
deve se construir pela troca de ideias, opiniões e recendo. A ideia de que o dia da mu-
informações entre os sujeitos históricos, estabele- 2 http://www.raquelrecuero.com/arquivos/2017/ lher é propício para flores, bombons
cendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se para 01/a-nova-vinheta-da-globeleza-e-o-discurso-
o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line) no-twitter.html ou a redução da mulher a estereó-

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TEMA DE CAPA

tipos (bela, recatada e do lar, vadia curso, é fundamental para que com- à luz das manifestações de rua?
etc.). A descrição mudou bastante. preendamos como a violência física
Raquel Recuero – Vimos um
Os temas associados também. Ou aparece e como se correlacionam.
acirramento dos posicionamentos
seja, podemos ver que há mudanças Este é um projeto que temos em an-
políticos, seguido por uma apatia
nos discursos que são aceitos e não damento, mas ainda não há resulta-
generalizada após o início do go-
aceitos pela sociedade, entre o que dos finais. verno Michel Temer3. Até pouco
se “pode” ou não dizer. Mas não sei
tempo após o impeachment4, havia
se podemos ver isso como uma con-
sequência da mídia social, ou se é “Há sim, nas muita coisa sobre política e contra
e a favor do PT. O que temos ob-
simplesmente um sintoma de uma
mudança maior. redes sociais servado agora é uma redução des-
se acirramento, uma apatia muito
na internet, grande quanto aos grandes temas.
Há manifestações contra a reforma
IHU On-Line – Como a violên-
cia contra a mulher é atualiza- uma exposição da previdência, por exemplo. Mas
não vemos mais manifestações
maior a discur-
da no ambiente de redes sociais
digitais? Quais os desafios para partidárias, parece que houve um
esgotamento. Veremos de modo
se proteger e denunciar? Que
analogias podemos fazer com o sos diferentes, mais claro como o processo de im-
peachment e o governo atual im-
mundo off-line?
mas também pactaram nesses discursos, creio,
Raquel Recuero – Acredito que
existe um reflexo na mídia social das uma resistên- agora em 2018.■

cia muito gran-


ideias presentes na sociedade sobre 3 Michel Temer (1940): Michel Miguel Elias Temer
Lulia é político e advogado brasileiro, ex-presi-
as mulheres. O que se “diz” ali é o dente do Partido do Movimento Democrático

de a eles”
que se vê como aceitável, o que se Brasileiro (PMDB). Atual presidente do Brasil,
após a deposição por impeachment da presiden-
escuta sobre gênero, raça e identi- ta Dilma Rousseff naquilo que inúmeros setores
nacionais e internacionais denunciam como golpe
52 dade sexual. Assim, os discursos que parlamentar. Foi deputado federal por seis legisla-
circulam estão ali. E penso que na turas e presidente da Câmara dos Deputados por
duas vezes. (Nota da IHU On-Line)
base da violência contra as mulheres IHU On-Line – Como analisa 4 Impeachment: a economista e política bra-
sileira Dilma Rousseff (1947), filiada ao Partido
(e minorias) está esse discurso. Por os movimentos e manifestações dos Trabalhadores (PT), foi presidente do Brasil
isso, quando podemos observá-lo, políticas no Brasil desde o início de 2011 (primeiro mandato) até 31 de agosto de
2016 (segundo ano de seu segundo mandato). Em
podemos compreender as raízes da do processo de impeachment de 12 de maio de 2016, foi afastada de seu cargo du-
rante o processo de impeachment movido contra
violência física, que é apenas um dos Dilma Rousseff até agora, nas re- ela. No dia 31 de agosto, o Senado Federal, por
vários tipos de violência. A violência des sociais pela internet? E como votação de 61 votos favoráveis ao impeachment
e 20 contra, afastou Dilma definitivamente do car-
simbólica, assim, a violência do dis- compreender esses movimentos go. (Nota da IHU On-Line)

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EDIÇÃO 502
TEOLOGIA PÚBLICA

Crítica social pela leitura teológica-


literária de Incidente em Antares
Rita de Cassia Luckner demonstra como as perspectivas
do bem e do mal na obra de Erico Verissimo se associam
aos conceitos de Tomás de Aquino
Patricia Fachin e João Vitor Santos

L
iteratura e Teologia são campos greve ocorrida na fictícia Antares afir-
que se cotejam. Para a professo- mou-se como convocação democráti-
ra Rita de Cassia Scocca Luck- ca, pela qual os trabalhadores exercem
ner, mestra em Ciências da Religião, a pressão sobre a força empresarial para
Literatura pode ser um caminho para negociação, buscando conquistar me-
se aproximar de conceitos e dogmas lhores condições de trabalho”, pontua.
tratados na Teologia. São esses os mo- Para ela, a Literatura se permite uma
vimentos que faz na análise minuciosa liberdade de crítica, que sempre moti-
da obra Incidente em Antares, de Eri- va reflexões mais densas acerca de uma
co Verissimo. “Linguagem simbólica, ética humana. E, para isso, busca uma
própria da Literatura e da Teologia, ancoragem contextualizadora na reali-
possibilita observar elementos dentro dade que se vive. “Erico Verissimo dá
da obra que indiquem a ambivalência voz a pensamentos e questões sociais
54 da natureza humana, em que o Bem que faziam parte do seu contexto, mas
(virtudes) e o Mal (pecados) inevita- também de contextos passados e que se
velmente coexistem”, destaca. É uma estendem ao contexto presente, visto
articulação, segundo a professora, que que a desigualdade social e problemas
aproxima Verissimo de Tomás de Aqui- relacionados à política continuam sen-
no. “A articulação das pontuações de do aspectos da realidade atual”, analisa.
Tomás de Aquino acerca dos sete pe- Rita de Cassia Scocca Luckner
cados capitais, para a releitura da obra possui graduação em Letras – Por-
Incidente em Antares, permite uma re- tuguês e Inglês pela Universidade do
flexão sobre o comportamento humano Grande ABC. Também é especialista em
por meio de uma analogia com os per- Língua Inglesa e mestra em Ciências da
sonagens da trama”, completa. Religião pela Universidade Metodista
Na entrevista, concedida por e-mail à de São Paulo – Umesp. Tem experiên-
IHU On-Line, Rita também destaca a cia na área de Educação, com ênfase em
crítica social presente na subjetividade projetos educacionais.
da história contado por Verissimo. “A Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a ambi- Rita de Cassia Scocca Luck- para os problemas de sua realidade
valência da natureza humana ner – Erico Verissimo, assim como imediata, devido principalmente ao
acerca do bem e do mal é ex- os demais escritores modernistas da momento de efervescência política
pressa na obra Incidente em década de 1930, voltou sua atenção pelo qual o país passou em sua épo-
Antares1, de Erico Verissimo2? ca, o que ocasionou o surgimento de
gundo Tempo Modernista (1930-1940), período
uma literatura regional, caracteri-
1 Porto Alegre: Globo, 1975. (Nota da IHU On-Li- em que a literatura brasileira refletiu os proble- zada pela crítica e denúncia social.
ne) mas sociais do país. A obra de Érico costuma ser
2 Erico Verissimo (1905-1975): um dos mais im- dividida em três fases: Romance urbano; Romance Porém, Erico Verissimo foi além
portantes escritores brasileiros. Em 1932, o autor histórico e Romance político. Na segunda, encon-
publica uma coletânea de contos “Fantoche”, sua tra-se o épico O tempo e o vento, trilogia (O Con- dos problemas relacionados à polí-
estreia na literatura. Recebeu o Prêmio Machado tinente, O Retrato e O Arquipélago) que cobre 200 tica, compondo obras diversificadas,
de Assis, com Música ao Longe, e o Prêmio Graça anos da história do Rio Grande do Sul, de 1745 a
Aranha, com Caminhos Cruzados. Integra o Se- 1945. (Nota da IHU On-Line) carregadas de humanidade e valores

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“A morte representa o
final da vida, a inevitável
transitoriedade à qual o ser
humano está submetido

éticos. A obra Incidente em Antares, dos personagens da trama para rela- foram proferidas com tom de de-
último romance de Verissimo, es- cionar-se à vida real, visto que o ser boche, o que tornou o encontro na
crita em 1971, mistura fatos da vida humano é um ser que carrega em si praça central de Antares uma arena
real, vivenciados pela sociedade da o bem, pois, por ser criação de Deus, de comicidade.
época do autor, com fatos ficcionais, é, em essência, pleno de virtude, po-
O conceito de carnavalização foi
próprios da farsa fantástica. Traba- rém possui o livre-arbítrio e isso lhe
elaborado a partir das observâncias
lha com a linguagem de paradoxos: confere as escolhas para a vida, que
feitas por Mikhail Bakhtin3 sobre a
fato X ficção, novo X velho, opresso- quando são feitas de forma incorre-
obra de Rabelais, escrita na Idade
res X oprimidos, vida X morte, Bem ta podem servir de porta de entrada
Média, em que o conjunto de ele-
X Mal etc., assim como a linguagem para o mal.
mentos carnavalescos, dentro da
própria da realidade humana.
visão oficial do inferno, passa a ser
Incidente em Antares retrata, entre IHU On-Line – Como a mor- chamado de Carnavalização do in-
outros acontecimentos, o surgimen- te é personificada na obra? Em ferno: o inferno visto como símbolo 55
to de uma cidade que sempre esteve que medida ela é posta como da cultura oficial, como encarnação
permeada pela violência e pelo auto- depuração de todo o mal? do acerto de contas, como imagem
ritarismo. Após vários anos sofrendo do fim da vida e do julgamento defi-
Rita de Cassia Scocca Luckner
injustiças, a classe carente e desfa- nitivo sobre ela, que é transformado
– A morte representa o final da vida,
vorecida da cidade, composta prin- em um alegre espetáculo, ideal para
a inevitável transitoriedade à qual o
cipalmente pelos operários e funcio- ser montado em praça pública e no
ser humano está submetido, mas que
nários das empresas localizadas na qual o medo é vencido pelo riso gra-
se torna cômica na obra com o sur-
cidade fictícia de Antares, resolve fa- ças à ambivalência dessas imagens.
gimento de sete defuntos com seus
zer uma greve geral para reivindicar
corpos em deterioração, que agem O riso literário, na Idade Média,
seus direitos. Devido ao ocorrido,
como se estivessem vivos: andam, não era permitido dentro dos domí-
sete defuntos deixam de ser sepulta-
falam, visitam familiares e amigos. nios sacros, mas a nobreza e o clero
dos pela paralisação de todos os se-
Sendo assim, torna-se uma inversão não tinham como controlar a ora-
tores, inclusive o dos coveiros.
do sentido da morte a partir do mo- lidade cômica criada e propagada
Deixados ao relento, os defuntos mento em que os cidadãos encaram pelo povo, inclusive como forma de
levantaram-se um a um de seus es- o incidente como sendo algo aceitá- libertação do dogmatismo religio-
quifes e marcharam em direção ao vel e inclusive concordam em com- so imposto na época e da realidade
centro da cidade para uma conversa, parecer ao encontro marcado pelos
em particular, com as autoridades de defuntos. Tal encontro em praça pú- 3 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975): lin-
Antares. Naquele dia 13, sérias reve- guista russo. Seu trabalho é considerado influente
blica e a revelação feita pelos mortos na área de teoria literária, crítica literária, análise
lações foram proferidas, como uma sobre as faltas cometidas por eles do discurso e semiótica. Bakhtin também é consi-
derado como filósofo da linguagem, e sua linguís-
espécie de julgamento e de confis- e pelos poderosos de Antares, que tica é uma “translinguística” porque ela ultrapassa
a visão de língua como sistema. Isso porque, para
são, feitas pelos defuntos, por causa remete a um julgamento, acabam Bakhtin, não se pode entender a língua isolada-
da liberdade que a morte lhes dava. por ser motivo de riso para alguns mente, mas qualquer análise linguística deve in-
cluir fatores extralinguisticos como contexto de
Livres de convenções, os defuntos moradores da cidade, tornando-se fala, intenção do falante, a relação do falante com
o ouvinte, momento histórico. Bakhtin professa
deixam as suas “máscaras caírem” uma carnavalização do inferno: a uma abordagem marxista da língua e da linguís-
e desmascaram os demais cidadãos, declaração dos pecados dos mortos e tica, pois para ele “a palavra é o signo ideológico
por excelência” e também “uma ponte entre mim
provocando arrependimentos ou re- de seus cúmplices, o sofrimento das e o outro”. Alguns conceitos fundamentais de
Bakhtin são o dialogismo, a polifonia, a hetero-
sistência diante das revelações fei- vítimas perante a crueldade de seus glossia e o carnavalesco. Entre suas obras, desta-
tas. Assim, vão conferindo a ambiva- malfeitores, as injustiças e crimes, camos Problemas da poética de Dostoievski (2ª ed.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997). (Nota
lência humana, que parte das ações entre outras faltas cometidas, que da IHU On-Line)

EDIÇÃO 502
TEOLOGIA PÚBLICA

que enfrentavam aqueles que per- dos capitais e virtudes morais humano pensar e agir de forma pre-
tenciam às camadas inferiores da listados por Tomás de Aquino5? judicial a si mesmo e às outras pes-
sociedade em contraste ao poder da soas. O pecado é especificamente um
Rita de Cassia Scocca Luck-
riqueza aristocrática. A sátira meni- bem que foi pervertido por ele.
ner – Uma obra literária como a
peia4 é um gênero que possui a es-
de Erico Verissimo está sempre Tomás de Aquino analisou e elabo-
trutura carnavalesca e sua caracte-
aberta para novas (re)leituras, o rou uma lista contendo os sete peca-
rística particular é a capacidade de
que a torna sempre atual. Ela é tam- dos capitais, finalizando-a da seguin-
abranger elementos relacionados ao
bém profética e escatológica, pois é te forma: Vaidade, avareza, inveja,
céu, terra e inferno, que podem in-
uma ligação da realidade para algo ira, luxúria, gula e acídia. A palavra
dicar morte simbólica ou alegre, ou
ainda maior; dessa forma, a vida capital vem de caput, latim, relativo
paródia do corpo humano. A morte
não é vista como apenas realidade à cabeça, e pode significar: principal,
simbólica é significativa, pois repre-
dogmática, mas como possibilida- líder, chefe, aquele que comanda. É
senta a morte do antigo regime e o
de de questionamentos e de novas nesse sentido que Tomás de Aquino,
nascimento de outro, e incorpora
possibilidades. É possível observar que uniu pensamentos filosóficos
elementos da utopia social, pois aba-
a linguagem alegórica em Incidente aos pensamentos cristãos, refere-se
la o poder do sistema e estimula a
em Antares, onde os personagens aos pecados capitais, pois seriam os
mudança ou denúncia de um estado
mortos trazem um significado mais chefes que comandam outros peca-
de acomodação.
amplo que apenas a indicação da dos, isto é, dão origem a outros ví-
A obra Incidente em Antares se transitoriedade do ser humano. Nos cios que são condicionamentos para
aproxima dessas características, pois conflitos entre os poderosos e a po- o humano agir mal.
indica um desejo de transformação, pulação pobre de Antares, que são
tempo de novos pensamentos com- narrados desde a primeira parte do Bem e mal em si
plementarem as tradições, ou mes- livro, já é uma prova de ira, soberba,
mo substituírem o antigo visando inveja e até mesmo de gula, não por Outra pressuposição tomista é que
melhorias coletivas. Para que a dis- comida, mas por poder, fama, terras o ser humano é um ser ambivalente
paridade econômica que somente que carrega em si o bem, porém, que
ou outros bens materiais.
pode agir pelo mal que corrompe
56 existe em função de interesses po-
Assim, o incidente com os sete parcialmente suas virtudes. A partir
líticos, sociais e econômicos pudes-
mortos servirá para representar os do axioma da simbologia do número
se dar lugar à igualdade de direitos
pecados capitais que desde o início sete como número ambivalente, em
e oportunidades independente de
do povoamento de Antares foram que se revelam o divino e o infernal,
classe social, a greve ocorrida na fic-
demonstrados, e que, por meio da e considerando que Erico Verissimo
tícia Antares afirmou-se como con-
linguagem simbólica, própria da li- cria sete personagens defuntos, veri-
vocação democrática, pelo qual os
teratura e da teologia, possibilita fica-se que não somente os pecados
trabalhadores exercem pressão so-
observar elementos dentro da obra podem ser listados dentro da obra
bre a força empresarial para negocia-
que indiquem a ambivalência da Incidente em Antares, mas também
ção, buscando conquistar melhores
natureza humana, em que o Bem as virtudes. As virtudes são conside-
condições de trabalho. Encontra-se
(virtudes) e o Mal (pecados) inevi- radas, seguindo os estudos tomistas,
na morte em Antares a representa-
tavelmente coexistem. A articulação habitus operativos bons no sentido
ção da crítica político-social, como
das pontuações de Tomás de Aquino de serem aspectos naturais do ser
reflexo da sociedade, como também
acerca dos sete pecados capitais, humano. Hábitos (habitus) huma-
crítica ao comportamento humano,
para a releitura da obra Incidente nos são predisposições que se inter-
e, para tanto, o autor coloca a morte
em Antares, permite uma reflexão põem entre as faculdades humanas e
para confrontar os vivos, como um
sobre o comportamento humano por os atos humanos.
meio de reforçar a ideia de que as
meio de uma analogia com os perso-
boas mudanças partem das reflexões Tomás de Aquino divide as virtu-
nagens da trama. A busca pela feli-
das ações humanas. des em três: intelectuais, morais e
cidade traz ao homem desejos que
teologais, mas, segundo o aquina-
podem ser guiados pelo bem ou pelo
te, toda virtude pode ser definida
IHU On-Line – Que relações mal. Desejar algo excessivamente
por sua relação com o bem, assim,
você estabelece entre essa obra provoca um desequilíbrio e faz o ser
outras virtudes também podem
de Erico Verissimo e os peca- fazer parte da natureza humana,
5 São Tomás de Aquino (1225-1274): padre do-
minicano, teólogo, distinto expoente da escolás- como a contemplação, delicade-
4 Sátira menipeia: é uma forma de sátira escrita tica, proclamado santo e cognominado Doctor
geralmente em prosa, com extensão e estrutura Communis ou Doctor Angelicus pela Igreja Cató- za, equidade, ética, indignação,
similar a um romance, caracterizada pela crítica às lica. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo sobriedade, solidariedade, tole-
atitudes mentais ao invés de a indivíduos especí- com a visão aristotélica do mundo, introduzin-
ficos. Teria sido criada por Menipo, escritor grego do o aristotelismo, sendo redescoberto na Ida- rância, as quais estão relacionadas
antigo cujas obras não restaram, mas foi princi- de Média, na escolástica anterior. Em suas duas
palmente mantida por Luciano de Samósata e “Summae”, sistematizou o conhecimento teológi- diretamente às três classificações
Marco Terêncio Varrão. Outras características são co e filosófico de sua época: são elas a Summa das virtudes feitas por ele. O per-
as diferentes formas de paródia e crítica aos mitos Theologiae e a Summa Contra Gentiles. (Nota da
da cultura tradicional. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) sonagem padre Pedro-Paulo, figu-

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ra virtuosa na trama, tem em sua gligenciada é mais um indicativo sos de pós-graduação em Ciências da
natureza, entre as virtudes que lhe de suas qualidades voltadas para o Religião e Teologia, cujos trabalhos
podem ser direcionadas, a contem- bem e que representam as virtudes: acadêmicos produzidos, como teses
plação, delicadeza e equidade. O indignação – pois ele não aceitou e dissertações, são de grande valia,
jovem padre busca refletir sobre os passivamente que se cometessem in- visto que teologia e literatura dialo-
questionamentos quanto às injusti- justiças; sobriedade – porque o bem gam entre si sem perderem suas es-
ças as quais ele observa e, por meio comum era uma de suas metas; so- sências. Aproximam-se uma da ou-
do amor ao ser humano, ele busca lidariedade – ao se dispor a ajudar tra tanto pela linguagem simbólica e
defender aqueles que são negligen- o próximo; e tolerância – pois sua metafórica de suas estruturas, como
ciados pelas autoridades, porém, é luta também inclui a defesa dos que também pelo caráter antropológico
no amor divino que ele se fortalece sofrem intolerância. em que temas religiosos e criativos
para lutar pelos necessitados. permeiam ambos os textos – teológi-
A obra Incidente em Antares apre-
co e literário – e permitem reflexões
A literatura também oferece aber- senta a luta de indivíduos que são
sobre o ser humano e sua relação
tura para o exercício da indignação, tratados com desigualdade e des-
com o próximo e com o meio, que
pois é o espaço de dramatização respeito, mas que não se encontram
abrange seus valores e limites.
dos saberes, pensamentos e senti- sozinhos. Personagens como o padre
mentos humanos, que são lidos e Pedro-Paulo, padre Gerôncio, Zózi- Com a releitura da obra, constatou-
atualizados pelos leitores. Tal as- mo, João da Paz, professor Martim, -se que os personagens criados por
pecto pode ser também observado entre outros, se apresentam tanto Erico Verissimo escolheram cami-
na obra de Erico Verissimo, sendo pelo sofrimento como em solidarie- nhos diferentes para o seu mundo
que a crítica social, em que há in- dade aos que sofrem, mesmo que de ficção. Dessa forma, pode-se pen-
dignação perante as injustiças, está manifestações de virtudes apareçam sar teologicamente no ser humano
fortemente marcada por seus perso- em níveis diferentes. do mundo real, visto que o conhe-
nagens marginalizados. cimento sobre a natureza humana
pode surpreender, mas em sentido
Sobriedade duplo, negativo e positivo, o que lhe

A sobriedade é uma qualidade re-


“A greve ocor- dá a escolha para construir e afirmar
a sua fé.
57
lacionada às outras virtudes. Pois,
indivíduos que vivem em uma socie-
rida na fictícia Devido à greve geral ocorrida em
dade virtuosa, em que há bondade e
justiças, colaboram com o aperfeiço-
Antares afir- Antares, os coveiros se recusaram a
realizar o sepultamento dos sete fa-
amento do todo, tornando-o sóbrio. mou-se como lecidos naquele dia, ficando assim,
enfileirados os esquifes de onde sa-
A solidariedade é vista como uma
das maiores manifestações de amor, convocação íram os corpos já em estado de pu-
trefação, como que despertados do
em que há a disponibilidade para
o outro, pelos direitos comuns e o democrática” sono. Dona Quitéria, Cícero Branco,
Menandro Olinda, José Ruiz, Pu-
empenho pelo bem-estar e compre-
ensão do próximo. Na obra de Ve- dim de Cachaça, Erotildes e João da
rissimo, observa-se o relato de que a Paz olharam-se tentando entender
notícia sobre o incidente correu para a situação. Entre eles, em vida, ha-
fora dos limites de Antares, e cha- IHU On-Line – Como, desde via um distanciamento em relação à
mou a atenção de repórteres e fotó- uma perspectiva teológica, é classe social, uns viveram uma vida
grafos de jornais de Porto Alegre que possível pensar o ser humano a de poder aquisitivo, outros de mi-
chegaram à cidade para conferirem partir dos personagens de Eri- séria e descaso. No entanto, com a
os tais fatos insólitos. Tentaram en- co Verissimo? Como compre- condição de mortos, nada mais os
trevistar, em vão, diversos cidadãos, ender a representação de cada diferenciava. A morte simboliza o
inclusive foram até a Vila Operária um dos personagens defuntos? aspecto perecível e destrutível da
para falarem com o padre Pedro- existência, mas também é indicado-
Rita de Cassia Scocca Luck- ra de revelação e introdução. Segun-
-Paulo, que lhes disse: “– Querem
ner – Refletir sobre o ser humano do Chevalier6 & Gheerbrant7 (2008),
um conselho? Deixem os mortos em
e seu modo de agir na sociedade,
paz. Tratem dos vivos ou, antes, dos
que abrangem seus valores e limi- 6 Jean Chevalier (1906-1993): um escritor , filó-
subvivos... Os marginais que se en- sofo e teólogo francês. Ele é conhecido por suas
tes, e recriar a realidade por meio da colaborações no Dictionary of Symbols, publicado
contram numa condição mais ani- pela primeira vez em 1969, pela Éditions Robert
linguagem simbólica, são aspectos
mal do que humana. Os nossos fave- Laffont. O Dicionário de Símbolos, coescrito pelo
que indicam a relação dialógica en- poeta francês Alain Gheerbrant, é uma obra en-
lados”. (VERISSIMO, 2005, p. 403). ciclopédica de antropologia cultural dedicado ao
tre literatura e teologia. As relações simbolismo de mitos, sonhos, costumes, gestos,
Essa preocupação de Pedro-Paulo entre tais saberes têm sido temas de formas, figuras, cores e números encontrados na
mitologia e folclore. (Nota da IHU On-Line)
com a comunidade carente e ne- várias pesquisas, sobretudo em cur- 7 Alain Gheerbrant (1920-2013): um poeta , es-

EDIÇÃO 502
TEOLOGIA PÚBLICA

a morte indica que o ser humano profissional, e demais frustrações, nos personagens de Antares?
precisa chegar ainda mais longe e comete suicídio.
Rita de Cassia Scocca Luck-
que ela é a própria condição para
O senhor José Ruiz, o sapateiro co- ner – A correlação de Incidentes
o progresso e para a vida. Ela dá a
nhecido como Barcelona, pode ser em Antares com os pecados capitais
estrutura familiar e da sociedade,
associado à inveja. Sempre estava requer maior reflexão sobre a noção
pois é fim e recomeço; para que uns
julgando e comentando sobre a vida de pecado, que, embora repleta de
nasçam, outros precisam morrer, é
alheia, se alegrava com a desgraça significados que variam com os con-
o ciclo natural da vida, sendo algo
do outro, diminuía as qualidades textos históricos e culturais, associa-
também positivo.
do próximo, falando mal dele pela da a faltas e vícios pode remeter ao
murmuração, fofoca, ou abertamen- cristianismo e temas bíblicos sobre
Os personagens e os pecados
te, detração. O bêbado, Pudim de culpa e redenção. Porém, na maioria
Pode-se apontar que na obra In- Cachaça, com a gula. Ele que não dos sistemas religiosos ou tradições
cidente em Antares os sete mortos tinha moderação pela bebida, estava espirituais encontram-se debates e
indicam não apenas a podridão de sempre embriagado e por esse moti- reflexões sobre as atitudes humanas
suas falhas, mas o tempo de renova- vo tinha a perda da razão, o que pro- que se apresentam tanto como re-
ção, como uma chance que lhes foi voca falatórios supérfluos, a alegria ferências daquilo que se considera
dada para uma necessária reflexão. néscia, a imundície e a expansivida- como representação do mal. Portan-
A partir de informações recolhidas de debochada nos gestos por falta de to, são condenáveis porque signifi-
no texto de Verissimo, nota-se que o compostura. A prostituta Erotildes, cam distanciamento daquilo que é
autor construiu um caráter para cada nome que pode sugerir “erotismo”, ou se relaciona com o bem. Podem
um dos personagens defuntos, o que relacionada à luxúria. levar o ser humano ao sofrimento
possibilita que sejam relacionados a tanto de si mesmo como do próximo.
O jovem João da Paz pode ser asso-
um pecado capital: Dona Quitéria,
ciado à ira. Irar-se nem sempre pode Portanto, a reflexão dessas noções
a matriarca da família Campolar-
ser considerado um ato pecaminoso, pela literatura é válida, uma vez
go, pode ser relacionada à soberba.
pois segundo Tomás de Aquino, as- que em diversos excertos notam-
Por ser descendente de uma das fa-
sim como os sentidos, a ira pertence -se nuances de religiosidade ou que
58 mílias mais poderosas de Antares,
à natureza humana, é a força dada demonstram certo sentido espiritu-
ela fazia parte da burguesia local e
pelo Criador que permite atacar um al, que é o sentimento que impul-
julgava-se superior principalmente
mal adverso. Porém, tornou-se um siona o ser humano a reconhecer a
por seus conhecimentos em relação
pecado capital em João da Paz, pois divindade independentemente de
à política, acreditava estar sempre
sendo uma pessoa de baixa condição culto ou doutrinas determinadas.
certa em suas opiniões e gostava de
e dependente de outras, isto é, do go- Ou seja, em que não é referida essa
dar ordens e lição de moral. Seus
verno e leis, sente-se injustiçado pela ou aquela religião, mas a força que
atos de caridade eram apenas para
falta de assistência com igualdade confere esperança ao ser humano.
demonstrar que era boa cristã, mas
entre as classes sociais, revoltou-se e Moser8 (2012) afirma9 que a ideia
eram poucos, comparados ao que
não mediu as consequências ao pôr de pecado, além de remeter para o
poderia fazer com todo o prestígio
em prática seus planos de vingança. mistério da condição humana, tam-
e poder financeiro que possuía, po-
Nesse momento, a ira deixa de ser da bém interroga todo o seu modo de
rém a presença de pessoas humildes
natureza vinda da benevolência de ser e de agir. Dessa forma, quando
nunca lhe foi agradável, a menos que
Deus e passa a ser denominada um se fala em pecado, fala-se também
fosse para prestar-lhe serviços.
pecado capital. em responsabilidade. O ser humano
O advogado, Dr. Cícero Branco, se distancia dos planos divinos para
pode ser associado à avareza. Era Tais analogias não se dão de forma
trilhar seus próprios caminhos por
desonesto em seus atos, para con- explícita, mas implicitamente por
seus próprios planos. A partir dessa
seguir dinheiro forjava documen- meio dos símbolos e analogias aponta-
desvinculação com a criação, em vez
tos aos clientes que transgrediam das no texto literário, que são os cami-
de caminhar solidariamente para
as leis. Para ele não bastava traba- nhos para perceber as diversas inter-
combater o mal em todas as suas
lhar como um advogado e ganhar pretações que ele pode suscitar e que
formas, o ser humano aciona o mal,
o que lhe era cabível honestamen- se renova a cada releitura. Entende-se,
tornando-se responsável por ele: a
te, mas sim trapacear no que fos- por tais considerações, que o encontro
guerra, a morte, a fome, a miséria,
se preciso para adquirir mais. O entre vivos e mortos não apenas é um
maestro Menandro Olinda pode julgamento, mas uma conscientização 8 Antônio Moser: falecido em 2016, foi diretor
ser relacionado à acídia, pois, sem acerca da natureza humana e uma va- -presidente da Editora e do Editorial Vozes, pro-
fessor de Teologia Moral e Bioética no Instituto
coragem de enfrentar os proble- lorização da própria existência. Teológico Franciscano - ITF) em Petrópolis, Rio de
Janeiro, pároco da Igreja de Santa Clara, Diretor
mas da vida, solidão e fracasso do Centro Educacional Terra Santa. (Nota da IHU
On-Line)
IHU On-Line – O que repre- 9 MOSER, Antônio. O Pecado: do descrédito ao
critor , pensador e editor francês . (Nota da IHU aprofundamento. 5.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
On-Line) sentam os vícios materializados (Nota da entrevistada)

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a marginalização, a poluição, a igno- apresentam sem limites, inacaba- os problemas de ordem prática e que
rância, a doença, o desespero. dos, pois, eles se encontram e se se relacionam diretamente à comu-
renovam. No movimento dialógico nidade pobre, o que permite uma
Visita ao pecado em vida do texto existem sentidos que por analogia com preceitos da Teologia
um tempo permanecem esquecidos, da Libertação.
Em Incidente em Antares, enquan- mas que, em determinados momen-
to os defuntos esperavam pela hora Considerando os estudos acerca do
tos, tais sentidos são relembrados e
do encontro na praça central, eles livre-arbítrio utilizados na análise da
renovados para reviverem em novo
resolveram ir “rever seus afetos e obra, percebe-se o impacto do poder
contexto. Dessa forma, tanto a lei-
assombrar os seus desafetos”. Nes- das escolhas na vida humana. O ser
tura acerca dos pecados capitais,
sa visita aos antigos lares, os per- humano foi apontado por Tomás de
como também das virtudes, dentro
sonagens defuntos se deparam com Aquino como um ser essencialmente
da obra pode surgir de diferentes
a realidade: os pecados que come- ético, a partir da análise de sua ca-
maneiras e intensidades.
teram em vida, naquele momento pacidade de agir, dando a si mesmo
lhes eram nítidos e vieram em suas Para Bakhtin, o romance é um gê- uma orientação intelectual, livre e
mentes como que uma punição para nero literário plurilinguístico, que responsável, elementos que estão re-
suas almas. Eles puderam observar o carrega em si os demais gêneros e lacionados às virtudes. Mas, apesar
modo como viviam, pois a condição é uma ruptura da representação do de seu caráter negativo, considerado
de mortos lhes eliminava os deve- mundo fechado, definido, do pas- como ausência do bem, o pecado se
res ou obrigações para com a socie- sado que já terminou. O romance inscreve em todo ser humano, atin-
dade, e perceberam não só as suas possibilita, pelo seu plurilinguis- gindo todas as suas capacidades, po-
mo, o espaço em que se misturam dendo modificá-lo. Sendo o livre-ar-
próprias, mas também as falhas ou
diferentes discursos com gradações bítrio uma potência de escolha (vis
vícios das pessoas próximas a eles.
diversas, uma tensão entre vozes electiva), ele é o expoente da razão
Na ocasião do encontro na praça,
sociais. Assim, várias leituras sobre e da vontade, sendo que a vontade,
após terem sido acusados de traze-
a virtude podem ser feitas dentro da por seu poder de escolha enquanto
rem males à cidade de Antares pela
obra e uma delas é que está repre- atingida pela razão, pode e deve ten-
podridão e terem sido comunicados
sentada nas passagens que envolvem der para meios que ensejam o alcan- 59
que os sepultamentos não seriam
o personagem Pedro-Paulo. Ele, jun- ce do bem como um fim. As boas es-
feitos devido à greve, os defuntos de-
tamente com o personagem padre colhas seriam um indicativo para se
cidem explorar também a podridão
Gerôncio, têm posições importantes, alcançar a virtuosidade, porém não
dos vivos.
pois representam a Igreja e a religião se pode deixar de reconhecer que o
Dr. Cícero Branco, representante Católica em fases diferentes da sua ser humano é ambivalente, portanto
dos mortos, exclamou: “– Hipócri- história, apresentando uma contra- está sujeito a cometer falhas.
tas! – Impostores! Simuladores! Eis posição do passado e do presente, e
o que sois... Vista deste coreto, do as eclesiologias do pré e pós-Concílio
meu ângulo de defunto, a vida mais Vaticano II. IHU On-Line – Em Incidente
me parece um baile de máscaras... em Antares, como a capacidade
A trama narrada no livro, o “inci- de escolha entre o bem e o mal
Ninguém usa a sua face natural...”.
dente” coincide com a realização se dá? E, nesse sentido da capa-
Dessa forma, os personagens de-
do Concílio Ecumênico Vaticano II cidade humana de escolha, que
funtos “retiraram” as máscaras da da Igreja Católica Romana, que foi
população antarense, revelando sua reflexões a obra suscita?
aberto sob o pontificado de João
própria condição. A podridão de XXIII, no dia 11 de outubro de 1962, Rita de Cassia Scocca Luckner
seus corpos representava a podri- e finalizado no dia 8 de dezembro de – A obra Incidente em Antares, por
dão da sociedade corrompida pela 1965, no papado de Paulo VI. Segun- seu aspecto plurilinguístico, se apre-
ganância, falsidade, desamor, enfim, do o romance, “O incidente” ocorreu senta como espaço dialógico, onde
pelos vícios. na sexta-feira 13 de dezembro do ano diversas vozes sociais se mesclam ou
de 1963. A obra demonstra, por meio se afrontam. Os diálogos de um tex-
do padre Pedro-Paulo, a mudança to literário se estendem ao passado e
IHU On-Line – De que forma a
da religião Católica para uma Igreja ao futuro, pois não possuem limites
virtude, e a busca por ela, apa-
aberta e próxima dos acontecimen- e nessa dinâmica eles se encontram e
recem na obra? Quem são os
tos do mundo e problemas da so- se renovam. Os sete defuntos – sen-
virtuosos e o que é preciso fa-
ciedade, que era algo essencial para do o número sete um número simbo-
zer para se tornar um?
que a sociedade cristã estivesse mais licamente ambivalente – podem re-
Rita de Cassia Scocca Luckner ligada à religião na sua busca de res- presentar os sete pecados capitais e a
– O texto literário deve ser observa- postas para as questões existenciais. finitude. A natureza humana é ambí-
do como texto implícito. Os diálogos O jovem padre se apresenta na obra gua porque é resultado do livre-arbí-
de um texto literário se estendem com pensamento contemporâneo e trio, das escolhas boas ou más do ser
ao passado e ao futuro em que se como o mais engajado, voltado para humano. Por meio da ficção de Erico

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TEOLOGIA PÚBLICA

Verissimo, em que são os mortos que pode ser a causa do mal, assim como conta do paradoxo: o bem e o mal
julgam os vivos, observa-se que o ser a liberdade finita pode ser causa da sendo elementos constituidores de
humano é o responsável por suas aparição do mal quando são adota- seu ser, uma possível indicação é a
ações. Elas acarretam resultados que das decisões incorretas, e, por essa esperança, que aparece na obra de
podem lhe trazer uma vida de har- ótica, é possível pensar que as boas Erico Verissimo pelas ações e pa-
monia e realizações, voltada para o escolhas são um caminho para uma lavras do padre Pedro-Paulo, pelo
bem; ou uma vida de angústias que vida sem arrependimentos. Se o ele- arrependimento de alguns perso-
só é falsamente recompensada com mento que gera o mal é a finitude, nagens que representam também
o poder e bens materiais os quais são Verissimo coloca a morte, represen- a vontade de mudança, pelas pa-
prazeres momentâneos. tada pelos sete defuntos, para inte- lavras pichadas nos muros de An-
ragir com os vivos, provando que tares por jovens que não queriam
O confronto entre mortos e vivos,
não se pode almejar que as respos- que suas opiniões fossem esque-
pela simbologia das mensagens
tas para as questões existenciais ve- cidas depois do incidente, e pelo
apontadas pelo verbo literário, de-
nham direta e unicamente de Deus. filho do personagem João da Paz,
monstra na obra essa condição do
Mas, o ser que é vivente do mundo como representação de uma nova
ser humano de fazer escolhas, e pelo
de humanos, inspirados no Amor vida. Como nas palavras do próprio
grotesco, isto é, pelos corpos em de-
que é do Criador, e sendo essencial- personagem, Ritinha poderia fazer
composição, indica que as boas esco-
mente virtuoso, ele encontra diver- do filho deles “um homem para que
lhas devem ser feitas neste mundo,
sas das respostas que procura nas um dia possa ajudar as criaturas de
e para tanto, é necessário retirar as
próprias relações humanas. boa vontade a criar um mundo me-
“máscaras” e encarar a “feiura” das
lhor e mais justo do que o de hoje”.
próprias ações e maneiras como se O encontro dos defuntos com os vi-
E ainda: “Não perca a fé no futuro.
busca viver. vos no centro da cidade, que é narra-
Quem foi que escreveu que o pior
do com ironia e comicidade, torna-se pecado é o pecado contra a espe-
uma reversão do sentido da morte, e
“A obra Inciden- dessa forma, são os mortos que ar-
rança?”. O filho que estava ainda
para nascer é a representação do
te em Antares
gumentam numa espécie de julga- que é amado e esperado, que pela
60 mento deles próprios e dos vivos. fé busca-se alcançar.
apresenta a A morte remete à finitude, porém
a simbologia da morte indica reno-

luta de indiví- vação. Já o Centro, a praça central


onde ocorre o confronto entre vida
IHU On-Line – Que outras re-
flexões teológicas Incidente em
duos que são e morte, simboliza recomeço. Pode-
-se, então, interpretar o incidente
Antares suscita?

tratados com
Rita de Cassia Scocca Lu-
que culmina no encontro dos mortos
ckner – Por intermédio de uma
com os vivos como um espaço não
desigualdade apenas de revelação – as denúncias
feitas pelos mortos – mas também
análise teológico-literária da obra,
encontramos analogias e simbolo-

e desrespeito, de renovação.
gias que indicam que o ser humano
não está livre de fazer o mal, porém
mas que não Outra simbologia que se desvela na
obra é a correspondente ao sepul-
pode aprender com suas faltas a se
tornar eticamente melhor. Ademais,
se encontram tamento, que aponta uma espera,
pois no pensamento cristão a morte
pode incitar uma reflexão acerca do
comportamento humano, de ontem
sozinhos” indica uma nova vida, inspirado nos
relatos dos Evangelhos sobre Cris-
e de hoje, e sua força e/ ou fraqueza
diante das situações e vicissitudes
to, que morreu e ressuscitou; assim, da vida. Erico Verissimo dá voz a
essa espera está relacionada à espe- pensamentos e questões sociais que
IHU On-Line – Qual é a lei- rança. Pela ideia de que o mal está faziam parte do seu contexto, mas
tura simbólica que você faz do presente no mundo e o mundo é algo também de contextos passados e
encontro entre vivos e mortos da realidade humana, entende-se que se estende ao contexto presente,
na obra Incidente em Antares? que ele faz parte da sua natureza, e visto que a desigualdade social e pro-
Por que esse encontro sinaliza dessa forma, para o ser humano dar blemas relacionados à política conti-
uma ideia de “esperança”? nuam sendo aspectos da realidade
go de Compostela e na Universidade de Comillas, atual, o que confere a esse romance
Rita de Cassia Scocca Luckner passou dois anos em Roma realizando a sua tese.
Foi professor de Teologia no Instituto Teolóxico a propriedade de obra universal e
– Para Queiruga10 (2011), a finitude Compostelán e de Filosofia da Religião na Univer-
atemporal, por tratar de problemas
sidade de Santiago de Compostela. É membro da
Real Academia Galega e do Consello da Cultura existenciais do ser humano que ul-
10 Andrés Torres Queiruga (1940): teólogo e es- Galega; foi um dos fundadores e diretor da revista
critor espanhol. Estudou no seminário de Santia- Encrucillada. (Nota da IHU On-Line) trapassam o espaço e o tempo.

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IHU On-Line – A narrativa da Divórcios, cobranças, surtos, entre que podem ser analisados e perce-
obra se dá em dois momentos: outras ocorrências que acabaram bidos na obra, e juntamente com a
a crítica social à sociedade lo- por desestruturar não apenas algu- multiplicidade de vozes sociais que
cal, e o incidente propriamen- mas famílias, como também as au- ecoam dentro do texto, permitem
te dito. Como a perspectiva toridades da cidade. Os governantes, novas possibilidades de significação
do bem e do mal se articulam donos de fábricas, comerciantes e os do verbo literário. As articulações
como crítica social, tanto na representantes das famílias mais po- dos estudos de Tomás de Aquino
apresentação daquela socieda- derosas de Antares, decidiram que o com a obra de Verissimo indicam
de como depois do incidente? ocorrido deveria ser esquecido para um diálogo entre passado e presen-
o bem de todos (ou de uma parte) da te, que proporciona ao ser humano
Rita de Cassia Scocca Luckner
cidade, e introduziram a “Operação perspectivas para o futuro, a partir
– Nesse romance o uso da ironia
borracha”, visando tirar dos anais, da compreensão quanto à ampli-
como forma de denúncia é uma forte
e mesmo da memória da sociedade tude que podem alcançar as suas
característica, mas apesar da comi-
antarense qualquer fator que lem- boas escolhas no presente. O olhar
cidade, sua linguagem se caracteriza
brasse o ocorrido. Porém, nos muros teológico que se debruça sobre a
também pelo interesse aos proble-
eram sempre pintadas frases politi- obra literária Incidente em Antares
mas sociais e, assim como em outras
camente subversivas e que remetiam demonstra que mesmo o texto con-
de suas obras, além dos problemas
aos defuntos denunciantes da “po- tendo uma linguagem que é diferen-
relacionados à política, Verissimo
dridão” da sociedade burguesa. As te da religiosa, ao emergir aspectos
abordou a vida cotidiana, a condição
humana, a luta das classes humildes, pichações mostram uma força opo- importantes da vida humana e de
a importância da família, e questões sitiva a essa situação de estagnação suas relações, é também o espaço
ligadas à moral. A primeira parte e de silêncio da sociedade. Assim, o em que o divino se revela.
da obra está relacionada a aconteci- autor, de forma implícita, demons-
mentos marcantes para o país, tanto tra que haverá sempre uma voz
clamando por liberdade, e essa voz IHU On-Line – Deseja acres-
políticos dos quais podemos citar o centar algo?
período de ditadura militar, como (mesmo que muitas vezes truncada)
demonstra a esperança ao ser huma- Rita de Cassia Scocca Luck-
também religioso, como o Concílio
no para lidar com o bem e o mal que
61
Vaticano II, que é citado na obra. ner – Devido ao tema significati-
se manifestam nas ações humanas. vo envolvendo o bem (virtudes) e o
A ficção e a história real se mistu- mal (pecados) nas ações humanas,
ram e se complementam, sendo que a reflexão a ser despertada em nos-
o incidente narrado na segunda par- IHU On-Line – De que modo,
sas pesquisas pode não ser esgota-
te da obra remete a um apelo para a tanto na obra de Verissimo
da em sua totalidade, mas iniciada
saída do estado de estagnação que como na de Tomás de Aquino,
com entusiasmo e substancialidade,
se encontrava a cidade de Antares, é possível compreender que o
dando abertura para novas releitu-
apelo que é revelado pelo movimen- bem e o mal são aspectos in-
ras da obra Incidente em Antares
to dos mortos. Como um aviso de trínsecos à natureza humana
que possam evidenciar ainda mais a
que a população, mesmo não estan- e estabelecer uma compreen-
linguagem artística como também a
do morta, estaria apodrecendo com são literário-teológica acerca
social do autor. A interface teologia
seus vícios, em que o descontrole de desse tema?
e literatura nos ajuda a pensar que
seus desejos permitiu que o mal cor-
Rita de Cassia Scocca Luck- a linguagem conceitual limita e frag-
rompesse o bem que lhe era natural.
ner – A simbologia transcende os menta a percepção humana, mas a
Após o incidente e o sepultamen- significados objetivos dentro do linguagem simbólica encontrada na
to dos mortos, foram analisadas as texto, assim como os elementos re- arte e na religião nos toca espiritu-
consequências daquela experiência ligiosos e espirituais transcendem almente, e amplia nosso posiciona-
vivida pelos cidadãos de Antares. o tempo e espaço, que são aspectos mento e nossa visão da realidade.■

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CINEMA

O garoto Chiron (Alex Hibbert) encontra no traficante Juan (Mahershala Ali) uma possibilidade de amparo e de cuidado

62

A serenidade de Moonlight
sobre os escombros do abandono
Vitor Necchi

Moonlight (2016), dirigido e escrito por Barry Jenkins, é um filme de identidade, de auto-
descoberta, mas vai além, ao tratar da combinação de estigmas e preconceitos. A obra, que
recebeu a honraria máxima da edição de 2017 do Oscar, apresenta o quanto uma vida, em
sua singularidade, resulta da relação de nuanças e traços próprios da experiência humana.
Trata-se de uma narrativa importante e necessária porque combina pelo menos dois marca-
dores sociais carregados de estigma: a negritude e a homossexualidade. A arte, neste caso,
subsidia um conceito que vem crescendo em importância, que é o de interseccionalidade, ou
seja, a análise de uma situação a partir da articulação das diferenças e das desigualdades.
Não há como tratar gênero, por exemplo, sem articulá-lo com outras categorias como raça,
sexualidade e classe.
Jenkins se baseou no texto da peça teatral In moonlight black boys look blue, de Tarell Alvin
McCraney. O título, que pode ser traduzido como “sob a luz do luar, garotos negros parecem
azuis”, faz um trocadilho com blue, palavra que remete tanto a azul quanto a triste. Jenkins e
McCraney cresceram em um subúrbio pobre de Miami nos anos 1980 e tinham mães viciadas
em crack. No filme, os negros vivem na mesma região, em guetos, sem perspectivas, à margem.
Embora questões como drogas e violência perpassem o longa, o que se sobressai são as subjeti-

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vidades, aquilo que habita as camadas mais intrínsecas dos personagens: os afetos, os desejos,
os medos, as frustrações. A cidade e suas violências são cenário, e não protagonistas.
A primeira música que aparece no filme dá o tom das intenções. “Every nigger is a star”, ou
todo crioulo é uma estrela, conforme os versos do jamaicano Boris Gardiner, cantor e compo-
sitor que usa a palavra nigger, pejorativa, para projetar o orgulho de ser negro. Esse processo
de ressignificação é similar ao das mulheres que idealizaram a marcha das vadias: se apro-
priam da alcunha ofensiva para reafirmar sua condição e exigir respeito.
Com uma abordagem intimista e melancólica, Moonlight se sustenta em diálogos – e na au-
sência de falas também – para desvelar a história de Chiron, um negro gay em uma sociedade
racista e homofóbica. Tudo se dá em três fases: a infância (Chiron é interpretado por Alex Hib-
bert) e a adolescência (Ashton Sanders) em uma zona pobre de Miami e a vida adulta (Trevante
Rhodes) em Atlanta, quando o personagem tem cerca de 30 anos, trafica e é chamado de Black.
Nas duas primeiras fases, a vulnerabilidade do personagem domina a tela. A qualquer tempo,
sobressai-se o profundo silêncio dele, o olhar revelando um desamparo oceânico e a tentativa de
se descobrir e sobreviver aos escombros domésticos.
Há, no entanto, outros fatores que tornam mais complexa a vida dele: ausência do pai,
mãe viciada (Naomie Harris) e falta de dinheiro. E a criança, que fica vulnerável às ruas
por conta da fragilidade familiar, acaba acolhida e cuidada pelo traficante cubano Juan
(Mahershala Ali) e sua namorada, Teresa (Janelle Monae), estabelecendo uma ambiva-
lência interessante, porque é justamente o criminoso e sua companheira que propiciam ao
pequeno Chiron uma possibilidade de amparo e de cuidado, assim como a oportunidade
de ter uma casa-refúgio relativamente estruturada para quando o tormento da mãe viciada
torna insuportável o lar original.
É desse vínculo aparentemente improvável entre um traficante e um garoto sem lar seguro que
surge uma das cenas mais lindas e delicadas do filme – e reveladora dos afetos que se estruturam 63
sobre as ruínas da tragédia contida no abandono: Juan leva Chiron para o mar e sustenta o corpo
frágil do garoto, para que ele aprenda a desafiar as águas e boiar, sob o olhar atento e amparado
pelos braços fortes do traficante. Não seria uma associação tola se essa cena fosse imaginada
como uma espécie de batizado.
A construção do personagem Chiron carrega uma grande potência ao evidenciar que, para
muitas pessoas, os estigmas e as penúrias não se processam de maneira isolada, e esse cru-
zamento impacta no quão tortuosa e difícil será a vida em um mundo de desagregação e
ódio. Essa questão é oportuna para se pensar a realidade brasileira e o ativismo. Há negros
gays que não se sentem contemplados pelas expressões mais em voga do movimento LGBT
porque, conforme a percepção deles, esta modalidade de militância age em prol dos brancos
de classe média. Por exemplo: direito ao casamento e à adoção, duas das principais bandei-
ras, não é prioridade para negros gays e pobres que estão preocupados, sobretudo, em não
serem agredidos e mortos nas ruas.
Voltando ao filme: durante o período escolar, Chiron se esquiva das provocações e agres-
sões dos colegas, que se aproveitam da fragilidade da criança e da insegurança do adoles-
cente para constrangê-lo diariamente, estabelecendo um processo que nos últimos anos
recebeu a denominação de bullying, embora a prática sempre tenha existido, indepen-
dentemente de haver um termo específico para designá-la. O garoto é chamado de bicha
pelos colegas, sabe que fazem isso para ofendê-lo, mas ele nem compreende o significado
da palavra.
A violência de colegas torna ainda mais complicada a já difícil trajetória de pessoas cuja
sexualidade destoe da heteronormatividade. Crianças e adolescentes gays, lésbicas, tra-
vestis e trans enfrentam, durante o processo de construção da sua identidade, percalços
extras, por conta do preconceito, da intolerância, da ignorância e do ódio manifestados
cotidianamente nos mais diversos círculos, muitos deles compulsórios, como família e
escola. A discriminação é tão grave e perversa que, para além das violências simbólicas e
físicas, gera processos de exclusão que desestruturam a vida das vítimas. Não por menos,
90% das mulheres trans são profissionais do sexo. Não se trata de julgar ou refutar o sexo

EDIÇÃO 502
CINEMA

por dinheiro. O trágico é quando alguém se prostitui não por opção, mas por falta de opor-
tunidade ou por coação.
A sexualidade é um dos eixos estruturantes do filme, e o que se desenrola a partir daí é uma
história de solidão, medo e culpa – ingredientes recorrentes na trajetória de boa parte dos ga-
rotos gays que precisam se constituir em meio a adversidades e hostilidades. E, neste salto de
trampolim que é a descoberta e a vivência da sexualidade, Chiron experimenta o primeiro passo,
a primeira vertigem do gozo, com seu amigo Kevin (Jaden Piner, na primeira fase, e Jharrel Je-
rome, na segunda). Ambos acabam afastados na adolescência, até que Chiron, já adulto, atende
ao chamado de Kevin (Andre Holland) e vai encontrá-lo.
Além de seus atributos artísticos e culturais inatos, o filme ganhou mais notoriedade por conta
de uma gafe ocorrida durante a cerimônia de entrega do Oscar de 2017: o prêmio de melhor
filme foi atribuído inicialmente para La la land, mas tratava-se de um equívoco. Moonlight era
o vencedor, distinção anunciada depois que os organizadores descobriram a trapalhada. Isso
fez dele a primeira produção a ganhar o Oscar de melhor filme com um elenco de negros, sem
nenhum ator branco, criando um contraponto às contundentes críticas à edição anterior do cer-
tame, marcada pela ausência de afrodescendentes. Além do prêmio máximo, Moonlight ganhou
mais duas estatuetas, das oito indicações que teve: melhor ator coadjuvante, para Mahershala
Ali, e melhor roteiro adaptado, para Berry Jenkins.
Moonlight é um filme de negros, feito por negros, mas evita estereótipos recorrentes em
filmes de negros. Há a mulher dependente de crack que negligencia o próprio filho – e isso
poderia ser considerado um estereótipo, tanto que Naomie Harris inicialmente recusou
o convite para interpretar Paula, a mãe de Chiron, alegando que negras viciadas já havia
em profusão no cinema. A ela, interessavam papéis de negras fortes, que trouxessem uma
perspectiva positiva. O diretor, no entanto, insistiu, alegando que não se tratava de um
64 clichê, mas da história da sua própria mãe que ele precisava contar. Então Naomie mudou
de ideia.
Algumas das rupturas com a previsibilidade que pauta filmes de negros referem-se à terceira
fase de Chiron que, embora grandalhão, forte e com cara de mau, é sensível, contido e refém
da solidão, e à trilha, que não é dominada pelo que se chama genericamente de black music. A
bela música original, composição de Nicholas Britell, estabelece uma atmosfera propícia para
o desenvolvimento da história, lembrando peças do estoniano Arvo Pärt, um dos mais impor-
tantes compositores contemporâneos do repertório erudito.
A banda sonora ainda apresenta uma seleção de referências variadas: a já citada Every
nigger is a star, de Boris Gardiner; Laudate domi-
num, de Mozart; Hello stranger, com Barbars Lewis; e
Cucurrucucú Paloma, com Caetano Veloso, cuja inter-
pretação já havia marcado presença em outros três fil-
mes (Felizes juntos, de Wong Kar-Wai, em 1997; Fale
com ela, de Pedro Almodóvar, em 2002; e Meu filho,
olha o que fizeste!, de Werner Herzog, em 2009).
Cabe ainda um registro à fotografia de James Laxton, per-
meada de tons azulados e contrastes que evidenciam a be-
leza da pele negra. A partir de uma câmera digital, ele criou
um tom próprio para cada uma das três partes em que o
filme é dividido, emulando o resultado de diferentes pelícu-
las, respectivamente Fuji, Agfa e Kodak. Uma câmera firme,
sem o tremor recorrente em muitas produções independen-
tes, o que amplia a serenidade da narrativa. Sim, Moonlight
é um filme sereno, mesmo que a história contada transbor-
de solidão, abandono e medo – ingredientes próprios de
um mundo violento, mas que, ao final, abre espaço para a Moonlight (2016), de Barry Jenkins
suavidade de um encontro adiado. ■

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A Justiça, Verdade e Memória:


Comissão Estadual da Verdade

A
edição 252 do Cadernos IHU ideias publica o ensaio A Justiça, Ver-
dade e Memória: Comissão Estadual da Verdade, de Carlos Frederico
Guazzelli, professor da Escola Superior da Defensoria Pública do Rio
Grande do Sul. O texto pretende apresentar, ainda que de forma sintética, as
principais apurações e os resultados colhidos pela Comissão Estadual da Verda-
de do Rio Grande do Sul, entre sua instalação, em setembro de 2012, e o encer-
ramento de suas atividades, em dezembro de 2014.

Esta obra remonta aos 21 anos de


duração da ditadura implantada no
Brasil com o golpe cívico-militar de
1º de abril de 1964, quando foram co-
metidas inúmeras e graves violações
aos direitos humanos de milhares
de brasileiros e brasileiras. A partir
65
dos dados consolidados da Comissão
de Anistia do Ministério da Justiça,
pode-se afirmar que mais de 60 mil
pessoas foram sequestradas, presas
ilegalmente, torturadas e, até mes-
mo, mortas e desaparecidas – além
de cassadas, demitidas, perseguidas
e exiladas.
Esta e outras edições do Ca-
dernos IHU ideias podem ser
obtidas diretamente no Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, no
campus São Leopoldo da Unisinos
(Av. Unisinos, 950), ou solicitadas
pelo endereço humanitas@unisi-
nos.br. Informações pelo telefone
(51) 3590-8213.

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PUBLICAÇÕES

A constituição da Dignidade
Humana: aportes para uma
discussão pós-metafísica

A
edição 119 do Cadernos Teologia Pública apresenta o artigo A
constituição da Dignidade Humana: aportes para uma discussão
pós-metafísica, de Thyeles Moratti Precilio Borcarte Strelhow, das
Faculdades EST. O objetivo do texto é discutir o conceito de dignidade hu-
mana numa perspectiva relacional coletiva que aponte caminhos para a ela-
boração de uma cidadania participativa.

O conceito de dignidade humana é elemento chave nas discussões de


direitos humanos. É ele que, de certa forma, embasa e rege a constituição dos
direitos da humanidade. Por outro lado, por seu uso indiscriminado, o termo
dignidade humana parece estar esvaziado de sentido. Há muito se tornou um
elemento presente em praticamente todos os
discursos humanitários, mas sem efetivida-
de concreta, acabando por nada dizer. Isto
porque comumente os direitos humanos são
66
pisoteados e esfolados na vida das pessoas,
principalmente dos mais pobres. A pretensa
igualdade já não dá respostas aos desafios
atuais, pelo contrário, o que se percebe é a
agudização da desigualdade econômica, so-
cial e política.

Neste sentido, é mister que se rein-


terprete a dignidade humana na perspec-
tiva da coletividade, com sua construção a
partir das relações sociais. Desta forma, é
possível discutir uma cidadania participa-
tiva elaborada para além da representação.
As representatividades já não conseguem
responder às necessidades reais de pessoas
reais. Estas também já não se contentam
apenas com o direito ao sufrágio universal.
Há que se ter como prioridade prática, não
apenas discursiva, elementos que atendam
aos anseios sociais da maioria e não apenas
das corporações.

Esta e outras edições do Cadernos


Teologia Pública podem ser obtidas dire-
tamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leo-
poldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humani-
tas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Jornalismo pós-industrial. Caminhos para


um pós-jornalismo

Edição 447 | Ano XIV | 30-6-2014

“Essa edição da IHU On-Line debate as mudanças que têm afetado o


ecossistema midiático nos últimos anos. As novas mídias, a tecnologia
ubíqua e as redes sociais permitiram a articulação de uma sociedade mi-
diatizada, e tensionam o jornalismo tradicional em diversas instâncias.
Para pensar os dilemas da imprensa na contemporaneidade e a emer-
gência de um possível pós-jornalismo, pesquisadoras e pesquisadores de
diversas universidades participam da discussão.”

Twitter, Facebook, MySpace e Orkut. As


redes sociais na web 67

Edição 290 | Ano IX | 20-4-2009

“Entender melhor a formação de redes sociais na web, a partir do uso de


ferramentas como Twitter, Facebook, My Space e Orkut, é o tema desta
edição da IHU On-Line. À época da publicação, março de 2009, o Face-
book atingiu mais de 200 milhões de pessoas registradas, confirmando-se
como a maior comunidade online do mundo. Num cenário similar ao dos
dias de hoje, Facebook enfrentava a concorrência de outras redes sociais
como Twitter. Hoje, a disputa segue com outras surgidas depois de 2009.”

Weblogs: narrativas do eu e novas


experiências de informação

Edição145 | Ano V | 11-6-2005

“Em abril de 2005, a existência de weblogs era estimada em 31,6 mi-


lhões. A blogosfera, que vinha cada vez mais se tornando uma realida-
de e chamando atenção de especialistas de várias áreas do saber, foi o
tema desse número da IHU On-Line. A revista buscou discutir este,
considerado na época, novo meio de comunicação na web.”

EDIÇÃO 502
68

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