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49-73
RESUMEN ABSTRACT
1
Ver diversos documentos do PCP, a maioria deles emitidos na época do Marcelismo e outros pos-
teriormente publicados (de Álvaro Cunhal), na obra: O governo de Marcelo Caetano, tentativa de salvar
a Ditadura. Cadernos de história do PCP 5. S.l., Editorial «Avante!», 1997.
2
A mesma ideia tem sido, por exemplo, e foi-o na época do Marcelismo, afirmada à saciedade por
Mário Soares ou, quanto ao caso específico das leis da imprensa, por Alberto Arons de Carvalho, no liv-
ro publicado em 1973, A Censura e as leis da Imprensa (Col. «Que país?» . Lisboa, Seara Nova,
1973), recentemente reeditado (Coimbra, Minerva, 1999). Recordem-se também as obras, implicitamente
críticas, de Moraes Editores, que constituíam a colecção «Hoje a Amanhã», publicadas em 1973-1974,
algumas já depois do «25 de Abril», da autoria, entre outros, de Francisco Sarsfield Cabral, Mário Mur-
teira, Rogério Fernandes.
3
Ver, por exemplo, o seu depoimento in Ser ou não ser deputado, Lisboa, Arcádia, 1973, pp. 7-41,
e a entrevista conduzida por Jaime Gama, publicada no jornal República, em 11 de Janeiro de 1972, e
que originou o opúsculo A liberalização bloqueada (Lisboa, Moraes Editores, 1972).
4
Trata-se da obra de autoria de Agathon (pseudónimo colectivo dos nacionalistas franceses ligados
à Action Française, Henri Massis, 1886-1970, e Afred de Tarde, 1880-1925), Les jeunes gens d’au-
jourd’hui. Le goût de l’action, la foi patriotique, une renaissance catholique, le réalisme politique. Paris, Li-
brairie Plon, 1913. A obra de Agathon era, desde o seu início, uma das obras aconselhadas pela revis-
ta integralista lusitana Nação Portuguesa (ver, por exemplo, Nação Portuguesa. Revista de Filosofia
Política, Coimbra, França e Arménio, Ano I, n.o 4, Julho de 1914, extratexto no fim do número, em pági-
nas azuis).
5
Cfr. Cartas Políticas. 2. Carta aberta ao Doutor Marcello Caetano, Lisboa, 1972, nomeadamente pp.
3-7.
6
Ob. cit., p. 11.
7
Idem, p. 8 ss.
8
Na hora da Verdade. Colonialismo e neo-colonialismo na proposta de lei de revisão constitucional,
Coimbra, Edição do Autor, 1971. Curiosamente Pacheco de Amorim participara no chamado «movimento
da Mealhada» de Outubro de 1946, que tem esse nome porque militares do Batalhão de Cavalaria 6, do
Porto, que se deslocavam em direcção a Lisboa com o sentido de fazer cair o governo de Salazar, aca-
baram por se render na Mealhada. Marcello, nas suas Memórias, alude a isso, só referindo curiosamente
o nome de Pacheco de Amorim e afirmando que «posteriormente continuaria a dar mostras do seu de-
sequilíbrio» (Minhas Memórias de Salazar. Lisboa, Verbo, 1977, p. 270)
9
Cfr. Portugal e o Futuro. Análise da conjuntura nacional, Lisboa, Arcádia, 1974, sobretudo os
caps. «Os fundamentos de uma estratégia nacional» e «Uma hipótese de estruturação política da
Nação». Ver, relativamente à «solução federativa», por ex., p. 160.
quando com ele não concordava. Ele era — nas suas próprias palavras — o
«amigo incómodo»10. Mas, por outro lado, deu a entender que desde cedo se
formou um grupo que se opunha às suas ideias e à sua acção, que contra ele
conspirava, considerando também como vítima dessa conspiração o próprio pre-
sidente da República, Craveiro Lopes. Tratava-se do grupo que identificava com os
«monárquicos» (nomeadamente Mário de Figueiredo e Santos Costa), que não lhe
terão perdoado a sua posição contrária em relação ao eventual regresso da Mo-
narquia. Não se debruçou então directamente sobre o seu governo, mas ficou a
ideia de que essa ala, transmudada, teria sido afinal aquela que não o deixara go-
vernar numa política mais liberal
Agora, quando se celebram 100 anos do nascimento de Marcello Caetano,
mantém-se uma tendência para entender o Marcelismo mais como uma «Prima-
vera», embora frustrada, que tem como referência imagética as suas «conversas
em família», do que como «Renovação na continuidade» do Salazarismo, esque-
cendo uma perspectiva mais alargada de Marcello, ou seja, o seu passado, o
que é fundamental para entender o Marcelismo. Ou, pelo menos, há a tendência
para falar de Marcello Caetano — conforme parece suceder de modo indirecto e
no contexto de um drama político-universitário dos anos sessenta (o drama passa-
se ficticiamente em Janeiro de 1962 e um ano depois), embora sem nunca nome-
ar o seu nome, com uma polémica peça de teatro de Diogo Freitas do Amaral11 —
como aquele que, tendo uma lógica de liberalização, na sua condição de reitor da
Universidade, acabou, na prática política, por «atraiçoar» essa sua posição a par-
tir do momento em que se tornou ministro, acabando por ser pressionado pelos
«ultra» e por «morrer» politicamente.
Há, por vezes, a intenção, na prática «branqueadora», de reforçar a ideia do in-
desmentível valor intelectual de Marcello, das suas qualidades de jurista, de pro-
fessor e de político dialogante, de resto um pouco na continuação do que sucedeu
no seu tempo. Tratando-se de um sucessor de Salazar — tal como o próprio
Marcello fez questão de afirmar no seu discurso de tomada de posse12 —, não se
omitiu, obviamente, nessa altura nem em outros momentos, o seu passado «sa-
lazarista» nem a ideia de «continuidade», mas desejou-se apresentá-lo de forma
«orientada», lembrando, acima de tudo, o homem «como os outros», o «Homem
de Diálogo». Assim sucede no denominado «apontamento para uma antologia»,
editado em 1969 pelas oficiosas «Edições Panorama» sob a forma de dicionário
político, ou seja uma selecção de textos seleccionados segundo esse critério, da
10
Minhas Memórias de Salazar, Lisboa, Verbo, 1977, p. 261.
11
O Magnífico Reitor, Lisboa, Gradiva, 2001.
12
O seu discurso de tomada de posse, em 27 de Setembro de 1968, começou com um elogio a Sa-
lazar. Mas, para marcar a diferença, Marcello apresentou-se como «um homem comum», ao contrário do
seu antecessor: «O País habituou-se durante largo período a ser conduzido por um homem de génio: de
hoje para diante tem de adaptar-se ao governo de homens como os outros» («Saibamos ser dignos des-
ta hora». Discurso pronunciado no Palácio de S. Bento, a 27 de Setembro de 1968», in Marcello Cae-
tano, Pelo futuro de Portugal, Lisboa, Verbo, 1969, p. 16).
autoria de Marcello Caetano, escritos entre 1936 a 196713, em que ficou de fora,
como era natural, a sua fase integralista, aquela que era, efectivamente, mais de-
monstrativa da sua posição de «nacionalista» mais radical e de «revolucionário de
direita».
Para se entender correctamente Marcello Caetano e o Marcelismo, há que
conhecer o seu passado, mais afastado e mais próximo. Mas, não apenas o seu
passado universitário, que, na verdade, pelo menos em reflexões que fez desde os
anos quarenta14, é demonstrativo de uma certa abertura aos problemas dos estu-
dantes, que marcou a sua imagem (no entanto, não esqueçamos — o que fre-
quentemente se omite — que também Salazar fora, tendo em conta a sua for-
mação, um pedagogo actualizado, modelado na obra de Demolins e da École des
Roches).
Importa recuar aos seus tempos de juventude, à direcção da revista Ordem
Nova, onde defendeu, arreigadamente e de forma polémica, doutrinas integralistas,
monárquicas, nacionalistas e católicas, de tipo tomista, para depois, de forma prag-
mática, vir (como se disse, em 1951) a retirar a última possibilidade de o regime as-
sumir uma via monárquica. É fundamental, igualmente, conhecer as suas posições
colonialistas, logo afirmadas em 1926. Só assim se entende bem as posições «co-
loniais» defendidas depois, ao longo da vida política, manifestando sérias reservas,
embora em nome dos «direitos indígenas», à passagem da designação oficial de
«colónias» a «províncias ultramarinas», para, «oportunisticamente» (embora com
«coerência», no dizer dos seus críticos de «extrema direita»), durante o seu go-
verno, se abrir à possibilidade de uma «autonomia», embora limitada, sem, todavia,
aceitar alguma vez o direito das «colónias», ou «províncias ultramarinas» (na lin-
guagem oficial), à autodeterminação e à independência. É relevante ainda conhecer
a sua ideologia corporativista, consideranda o Estado Novo como um verdadeiro
«sistema corporativo» sempre imperfeito e em busca de concretização, assim
como é necessário conhecer os seus discursos e textos sobre a Mocidade Portu-
guesa, de que foi Comissário Nacional, e sobre a importância de criar «dirigentes»,
um escol ao serviço do regime, o qual pensou o mais possível numa lógica «inte-
gralista», provavelmente com influências do modelo fascista, negadas nas memó-
rias15 mas que não podem deixar de se considerar, como veremos.
Desta forma, a expressão «Estado Social» que foi usada no Marcelismo16 —
mais do que a expressão consagrada do seu antecessor, «Estado Novo», em que
13
Marcello Caetano, Princípios e definições. Textos de 1936 a 1967. Compilados por António Maria
Zorro. Lisboa, Edições Panorama, 1969.
14
Ver, por exemplo, Universidade nova. O problema das relações entre professores e estudantes,
Coimbra, 1942, e «Universidade e investigação», in Ciência. Revista dos estudantes da Faculdade de
Ciências de Lisboa. Ano IV, n.o 7, pp. 3-6.
15
Por exemplo, Minhas Memórias, p. 72.
16
A expressão «Estado Social» foi usada oficialmente, por exemplo, no opúsculo Estado Social. Ex-
certos de discursos proferidos pelo Presidente do Conselho de Ministros Prof. Doutor Marcello Caetano,
Lisboa, Secretaria de Estado de Informação e Turismo, 1970.
se reviu na sua juventude e maturidade — tem afinal um sentido próprio que im-
porta não lateralizar, pois ela corresponde a uma opção política de princípio. Com
as devidas distâncias, e sem estabelecer confusão de planos políticos, trata-se de
algo idêntico ao que se passou com Mussolini, que optou pelo conceito de «Re-
pública Social» na sua ficcional República de Salò, depois da queda institucional do
«Fascismo».
Em conclusão, a nosso ver, o Marcelismo esteve sempre próximo de uma ma-
triz de «terceira via» de tipo «corporativista», com traços da influência «fascista»,
e de uma visão «colonial» de encarar o território português. Marcello Caetano, de-
vido à sua vivência familiar, lisboeta e pequeno-burguesa, mas bem próxima da
grande burguesia, que representava o seu amigo Pedro Theotónio Pereira17 —
apesar da natural lógica «anti-burguesa» (em termos de mentalidade) do seu ide-
ário inicial —, e às suas experiências de reflexão política como intelectual, jurista,
professor e reitor, num mundo bem diferente dos anos trinta e quarenta, poderá ter
tentado completar, actualizar e modernizar o regime, mas nunca o terá pretendido
transformar. Pesem embora as ilusões de muitos e o significado que afinal acabou
por ter essa «modernização» para a queda do próprio regime. Por outras palavras,
o Marcello Caetano do Marcelismo, no final da década de sessenta e no início da
década de setenta, não é muito diferente do Marcello Caetano dos decénios an-
teriores. O que se passou é que o «pragmatismo» e o «oportunismo» (em sentido
politológico) puderam nele manifestar-se de modo diferente ao de Salazar, que go-
vernou o país noutro tempo, de 1932 a 1968, e que era mais velho do que Marce-
llo cerca de 17 anos. No fundo, há um salazarismo-marcelista antes do Marcelismo
ou um Marcelismo que deriva do salazarismo-marcelista. Rolão Preto não es-
queceu, na referida «carta» a Marcello, o significado que teve a sua experiência
universitária18 (digamos: fundamentalmente a sua experiência de professor de Di-
reito, Direito Corporativo, Direito Administrativo e Direito Constitucional, e, de-
pois, a sua experiência de reitor da Universidade da capital do país), pelo que es-
perou — ou disse «esperar» — a abertura de Marcelo ao pluripartidarismo. Poderia
ser que, sequencialmente e em teoria, se pudesse ter verificado esse percurso.
Mas, ele não era possível, na prática, em ambiente de «guerra colonial», e da in-
sistência em manter incólume a posse do território ultramarino, pelo que a sua «Pri-
mavera» teria de ser sempre ilusória e acabaria, contraditoriamente, por impedir
toda e qualquer abertura, com excepção daquela que não era de ordem política es-
sencial e poderia parecer actualizar o regime. Essa actualização verificava-se
pela via «popular» ou populista (recordemos a nova nomenclatura marcelista para
a União Nacional — Acção Nacional Popular), ou por uma via mais «elitista»: na
educação, numa fórmula ainda hesitante mas que tinha o sentido de «educação
para todos», no aumento de regalias sociais para os cidadãos (daí o Estado mar-
17
Sobre a biografia de Pedro Theotónio Pereira, e das suas relações com Marcello Caetano, ver Fer-
nando Manuel Santos Martins, Pedro Theotónio Pereira. Uma biografia (1902-1972). 2 vols. Dissertação
de doutoramento apresentada na Universidade de Évora, 2004.
18
Cfr.Carta a Marcello Caetano cit., p. 4
celista se chamar «Estado Social»), numa certa abertura controlada a uma «cultura
europeia», mesmo no domínio da imprensa periódica (recordem-se os casos da
Vida Mundial e do Expresso), no desenvolvimento económico possível — por
oposição à imagem conservadora e agrária do regime de Salazar, que, no entan-
to, teve também momentos de afirmação desenvolvimentista, como seria próprio
de um regime que se pretendeu tradicional mas «moderno», e personalidades que
apontavam nesse sentido — e nas novas relações internacionais, que fazia es-
quecer a imagem pungente do «orgulhosamente sós» do discurso de Salazar de
196519.
Em resumo, o que separa o Salazarismo do Marcelismo é — segundo a nossa
interpretação e parafraseando, se nos é permitido, o título do filme de Terrence Ma-
lik — uma «fina linha vermelha» (ou «azul», se se entender mais apropriado)20, que
difere mais pela «imagem urbana» do segundo do que pela realidade das in-
tenções. Mas, para se perceber isso, será necessário conhecer um pouco melhor
ou lembrar Marcello Caetano antes do Marcelismo. Fá-lo-emos apenas para apre-
sentar uma hipótese de trabalho, a completar ou a suplementar outros ensaios já
publicados, a ser infirmada ou confirmada.
19
«Erros e fracassos da era política», discurso proferido na posse da Comissão Executiva da União
Nacional, em 18 de Fevereiro de 1965, in Oliveira Salazar, Discursos. 1959-1966. Coimbra, Coimbra Edi-
tora, 1967, vol. VI, p. 368.
20
The thin red line (1998) — o filme, que retoma um título clássico sobre a guerra, teve em português
o nome de A barreira invisível. Trata-se de uma reflexão «filosófica» sobre a diferença ténue das possi-
bilidades da paz, com todo o seu sentido paradisíaco, e as possibilidades da guerra, com toda a sua
violência. A utilização desta imagem só se justifica pela riqueza do seu significado e pelo nosso constante
interesse pelo cinema. É, no entanto, apenas uma extrapolação vocabular.
21
Ambos, com Pedro Theotónio Pereira, pertenceram à União Católica dos Estudantes Portugueses,
organizada em Março - Abril de 1924 no Centro Académico de Democracia Cristã (CADC), de Coimbra.
22
Iniciada em Março de 1926 — antes, portanto, da depois chamada «Revolução Nacional» de 28 de
Maio 1926 — teve o seu último número em Fevereiro de 1927, no qual se inseriu o «Índice do vol. 1..o
23
Cfr. a nota de redacção do n.o 3, Maio de 1926, p. 98 ss.
24
Cfr. Ordem Nova, n.o 12, Fevereiro 1927, p. 392.
25
Nota de redacção assinada por Marcello Caetano, «As directrizes da “Ordem Nova”», in n.o 1,
Março de 1926, pp. 35-37.
26
Marcello Caetano, «Anunciação», in revista cit., n.o 1, Março de 1926, pp. 11-12.
27
Marcello Caetano, «A nossa “adesão”», in revista cit., n.o 5, Junho-Julho de 1926, p. 148.
28
Cfr. O fascismo, o anti-fascismo e a Monarquia hereditária, Coimbra, Imprensa Académica/Junta
Escolar de Coimbra do Integralismo Lusitano, 1926, p. 5. A redacção deu todo o apoio ao seu correli-
gionário, citando o seu opúsculo na Ordem Nova («A ditadura», n.o 3, Maio de 1926, p. 98).
29
Pedro Theotónio Pereira, «A alavanca do Progresso», revista cit., n.o 7, Setembro de 1926, p. 204.
30
Idem, p. 210.
31
«A chaga da literatice», revista cit., n.o 9-10, Novembro - Dezembro de 1926, pp. 267-271. Sobre
a Itália, ver p. 268. Esta posição contra os «intelectuais» é comum, não só na revista Ordem Nova como
na crítica literária que manteve no jornal Ideia Nacional. Por exemplo, apoiou — no seu dizer — a «cre-
mação daquela papelada imunda que inunda a cidade», concretamente as Canções, de António Botto,
Sodoma Divinizada, de Raúl Leal, ou Decadência, de Judith Teixeira. A «cremação» pode ter sido um
exagero, em relação ao que se passara de facto (segundo o testemunho de Theotónio Pereira; que par-
ticipara nessa acção), mas, de qualquer modo, era bastante simbólica a utilização da palavra. Também
Marcello Caetano criticara Raul Brandão, não só a sua peça O Gebo e a Sombra, mas também a que foi
considerada a sua obra-prima Humus: «O Humus, em qualquer país civilizado, seria um documento de-
cisivo para um processo de interdição por demência».
32
«Preocupações legalistas», revista cit., n.o 11, Janeiro de 1927, pp. 345-350.
33
Sobre estes e outros aspectos da vida de Marcello Caetano, naturalmente com a respectiva in-
terpretação, ver Fernando Rosas, entrada «Caetano, Marcello José das Neves Caetano (1906-1980)»,
in Fernando Rosas e J. M. Brandão de Brito, Dicionário de História do Estado Novo, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1996, vol. I, p. 110, Vasco Pulido Valente, entrada «Caetano, Marcello José das Neves Cae-
tano (Lisboa, 17-8-1906 - Rio de Janeiro, 26-10-1980)», in António Barreto e Maria Filomena Mónica
(Coord.), Dicionário de História de Portugal, Suplemento, Lisboa - Porto, Figueirinhas, 1999, vol. I,
Mas, não se vai ficar por aqui o seu pragmatismo. Marcello vai — como se dis-
se e ele próprio atesta nas suas Memórias — justificar a manutenção do regime re-
publicano nos meios políticos (era então presidente da Câmara Corporativa), por
altura da revisão constitucional, a partir de Abril de 1951 e concretizada em Junho
seguinte34, da morte de Carmona em 18 desse mesmo mês de Abril, e especial-
mente no Congresso da União Nacional de 1951, no seu discurso de 23 de No-
vembro, conhecido por «discurso de Coimbra»35. E a sua justificação terá como
sempre a argúcia de uma reflexão histórica de tipo pragmático, em que recorre
mesmo a um texto anterior — aquele que vimos na Ordem Nova sobre a sua
«adesão» à Ditadura — para alterar a sua posição. Para ele, o Estado Novo era
verdadeiramente «um regime», ou seja, «um sistema de regras institucionais»
que permitia «a regularidade do governo da Nação». Portanto, a obra de Salazar,
«Mestre» e «Chefe», não se reduzia à sua vida, nem o sistema seria fraco por ser
de tipo republicano, mesmo que as suas convicções pessoais o impelissem, na-
turalmente, para a «restauração monárquica», dado que, como afirmara anos
atrás, «as ditaduras só podiam alcançar sentido nacional quando apoiadas no
espírito de continuidade e na consciência da responsabilidade dinástica de um mo-
narca». O que lhe parecia agora é que tudo evoluíra e teria de concluir que oiten-
ta anos de Monarquia constitucional — «república coroada» — acabara por que-
brar a tradição monárquica portuguesa. Por outro lado, a história estava — a seu
ver — a gerar «novos regimes de governo», que não se confinavam à classificação
clássica em «regimes de chefe de Estado hereditário» (monarquias) e «regimes de
chefe de Estado electivo» (repúblicas). Além disso, era preciso ter presente que «a
monarquia não é só um chefe de Estado vitalício e hereditário»: «este tem de co-
rresponder ao remate de toda uma organização social e política, sem a qual a con-
tradição das instituições torna, inevitavelmente, precária a posição do monarca».
De onde concluía, pensando no Estado Novo de Salazar, cujas qualidades havia
elogiado, logo no início do discurso: «o comando único — o comando de um só —
apoiado no sentimento e na vontade da nação, cujos anseios profundos e legítimas
aspirações interpreta, exprime e realiza, essa é que é a forma que o novo tipo de
Estado solicita, para poder corresponder à extensão e profundidade das tarefas
que os homens esperam».
Habilmente, António Sardinha é citado no princípio do seu discurso e é com ele
que termina. Simples referências sem grande significado, apenas para marcar a
sua ligação originariamente monárquica… O mais importante é afinal a consta-
tação do seu próprio pragmatismo, o pragmatismo, de tipo inglês, da «lógica polí-
pp. 198-216, Joaquim Vieira, Marcello Caetano. Fotobiografias do Século XX. Lisboa, Círculo de Leito-
res, 2002. É também muito importante conhecer a obra citada Minhas Memórias de Salazar, em que
Marcello dá testemunho da sua vida.
34
A alteração da Constituição de 1933, formalizada pela lei da Assembleia Nacional de 11 de Junho
de 1951, limita-se, neste particular, a confirmar a estrutura «republicana» do Estado.
35
Cfr. Minhas Memórias de Salazar, p. 361 ss. Deve dizer-se que desde os finais dos anos quarenta
que Marcello apresentava essa opinião, que justificava a sua defesa da candidatura de Salazar para Pre-
sidente da República (ob. cit., por exemplo, p.320).
tica»: «a lógica política é uma lógica pragmática: são os resultados que fornecem
o critério de julgamento da exactidão. É pelos frutos que se distinguem as boas ár-
vores das más».36
A posição política de Marcello Caetano consiste, pois, na defesa de um regime
que, sendo uma «República», tem um conteúdo político — baseado na Autoridade
do Chefe — e «social» de tipo corporativo. Se o corporativismo tinha na filosofia in-
tegralista, de todas as gerações, a começar na que foi exposta na revista Nação
Portuguesa, uma grande importância, o certo é que o corporativismo que foi de-
fendido por Marcello Caetano haveria de ter um sentido próprio, motivado por
outras influências que foram entretanto surgindo depois de 1914 (data do início da
publicação da revista referida) ou de 1926 (data da publicação da Ordem Nova).
Marcello foi, sem dúvida, um dos mais fervorosos e consequentes corporati-
vistas do regime, a ponto de não ter aceite a criação do Ministério das Corpo-
rações37 exactamente porque entendia que um «sistema corporativo» não deveria
ter no governo um ministério que actuasse naquilo que constituía a sua própria
essência e porque, deste modo, todos os ministérios deveriam exercer afinal uma
acção corporativa38. Por outro lado, e isso teria sido uma das causas das suas tão
propaladas dissensões com Salazar, entendia que o corporativismo era uma rea-
lidade sempre incompleta e imperfeita. Sabe-se, de resto, como ele e o seu amigo
Pedro Theotónio Pereira, o primeiro subsecretário das Corporações e Previdência
Social39 (cargo que Marcello parece não ter querido aceitar, por razões ligadas à
carreira universitária40), pretendiam apressar todo o sistema de reformas tendentes
à constituição do «Estado Corporativo», que era para eles uma questão funda-
mental do regime. E conhece-se o desassombro de Marcello ao enviar cartas a Sa-
lazar, por exemplo em 1943 ou em 1944, criticando o facto de o corporativismo não
avançar no seu processo de organização, o que originava grande descontenta-
mento entre os vários grupos profissionais41.
Logo em 1935 publicava o seu manual Lições de Direito Corporativo. Nele afir-
mava peremptoriamente que não havia ainda em Portugal Estado Corporativo42,
mas continuava a dizer o mesmo ao longo do tempo, mesmo em 1950, quando
proferiu uma conferência, no dia 23 de Março, no Gabinete de Estudos Corporati-
36
Cfr. este discurso (supomos em versão integral) — que não se encontra publicado nas actas do
Congresso — in Diário de Notícias, 24 de Novembro de 1951.
37
Criado pelo decreto-lei n.o 37 909, de 1 de Agosto de 1950, tendo sido José Soares da Fonseca o
primeiro titular da pasta.
38
Minhas Memórias, p. 345.
39
Foi empossado logo no dia da promulgação da Constituição de 1933, 11 de Abril de 1933.
40
Segundo nos diz nas suas Memórias, esse teria sido o convite «mais honroso», pois tinha apenas
26 anos. Estava — segundo acrescentava — «à beira de prestar provas de concurso para Professor da
Faculdade de Direito de Lisboa, com dissertação impressa e data marcada» (Memórias cits., p. 58).
41
Ver, por exemplo, cartas a Salazar de Novembro ou Dezembro de 1943 e de 10 de Fevereiro de
1944, in José Freire Antunes, Salazar e Caetano. Cartas secretas. 1932-1968, Lisboa, Círculo de Lei-
tores, 1993, pp. 116 e 118-119.
42
Lições de Direito Corporativo, Lisboa, 1935, p. 148.
43
Posição actual do corporativismo português, Lisboa, Império, 1950, p. 12.
44
O Sistema Corporativo, Lisboa, s. ed., 1938
45
Ob. cit., p. 21 ss. Em relação a Mihail Manoilesco cita a sua célebre obra, muito divulgada em Por-
tugal, Le siècle du corporatisme: doctrine du corporatisme intégral et pur, Paris, Félix Alcan, 1934
46
Le parti unique. 3.a ed.. Paris, Imp. de Lagny, Emmanuel Grevin et Fils, 1937.
Não creio no sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a di-
ferenciação humana. Não creio na igualdade, mas na hierarquia. Os homens, na
minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero perigoso atribuir a to-
dos os mesmos direitos políticos.
Se o liberalismo consiste em construir toda a sociedade sobre as liberdades in-
dividuais, então eu considero mentira o liberalismo. Não creio na liberdade, mas
47
Pensava Marcello, obviamente, no caso da Monarquia italiana e de outras monarquias, mas,
acima de tudo, ainda desejava que tal se viesse a verificar numa Monarquia portuguesa, marcada por
uma lógica integralista e não demoliberal, como fora a Monarquia Constitucional caída em 1910.
48
O Sistema Corporativo, pp. 51-52.
49
«A constituição das Câmaras na evolução da política portuguesa», discurso radiodifundido da
União Nacional, em 9 de Dezembro de 1934, para as sessões de propaganda realizadas em todo o país,
in Salazar, Discursos, vol. I, pp. 381-382.
nas liberdades. A liberdade que não se inclina perante o interesse nacional chama-
se anarquia e destruirá a nação.50
Por sua vez, recorde-se, para melhor entender a posição de Marcello Caetano
em 1938, que, se a eleição para presidente da República contou com candidatos
da oposição a partir de 1949, não poderiam, de acordo expressamente com lei de
revisão constitucional de 1951, concorrer se não oferecessem «garantias de res-
peito e fidelidade aos princípios fundamentais da ordem política e social consig-
nada na Constituição»51, o que levou ao afastamento, nesse ano, do candidato Rui
Luís Gomes, e só em 1958 um candidato se abalançou a ir às urnas, o general
Humberto Delgado, que fora um dos apoiantes do Estado Novo no início do regi-
me. Posto isto, a Constituição foi outra vez alterada em 1959, passando o Chefe de
Estado a ser votado, indirecta e «corporativamente», por um colégio eleitoral (lei
2100, de 29 de Agosto, artigo 72.o)52, o que, obviamente, não foi alterado na última
revisão da nossa lei fundamental, no tempo do Marcelismo, em 1971 (lei n.o 3/71,
de 16 de Agosto). De acordo com as ideias de Marcello — como de Salazar — só
se entenderia a «eleição» do Presidente da Republica em termos de «adesão» a
uma proposta do «partido único» (designação que Salazar e muitos salazaristas
não empregaram). E o mesmo se pensava, afinal, das «eleições» para a Assem-
bleia Nacional, a que os oposicionistas só deram verdadeira importância depois
das citadas modificações produzidas no respeitante às «eleições» para o Chefe do
Estado, em 1959.
Fundamentalmente o que — como já se aludiu — originava as discordância
de Marcello Caetano relativamente a Salazar era uma questão de prática, ou do
ritmo com que se verificavam as reformas. Por isso esteve sempre presente em
Marcello a ideia de que o «Estado Corporativo» não estava ainda construído. Na
verdade, a criação de Corporações, ou seja, as organizações corporativas de cú-
pula, com a presença de operários e patrões, numa lógica de entendimento mú-
tuo, que desempenhavam a mesma função nacional, no âmbito económico ou
económico-cultural e no âmbito cultural e moral, só foram constituídas nos anos
cinquenta (através da lei n.o 2 086, de 22 de Agosto de 1956), supostamente au-
tónomas da intervenção estatal, o que só em teoria sucedia53. E será o próprio
Marcello Caetano, como presidente do Conselho, ainda a modificar algumas das
instituições corporativas54, num tempo em já não era possível nem fazer com efi-
cácia nem (por via interna) desfazer um Estado que não tinha mais hipóteses de
subsistir. Seja como for, ao longo do seu mandato de seis anos continuava a falar
do Estado Corporativo.
50
Tradução da entrevista publicada no Le Figaro, em 2 e 3 de Setembro de 1958, in António de Oli-
veira Salazar, Discursos, vol. VI, Coimbra, Coimbra Editora, 1958. p. 41.
51
Cfr. lei n.o 2 048, de 11 de Junho de 1951, artigo 73.o, §1..o
52
Ver lei n.o 2 100, de 29 de Agosto de 1959, artigo 7.o, que altera o artigo 72.o da Constituição.
53
Cfr. Manuel de Lucena, A evolução do sistema corporativo português, tomo I, O Salazarismo, Lis-
boa, Perspectivas & Realidades, 1976, p. 316 ss.
54
Ver Manuel de Lucena, ob. cit., tomo II, O Marcelismo, Lisboa, Perspectivas & Realidades, 1976.
55
Já citado atrás, na nota 14.
56
Ver I Congresso da Juventude Universitária. Boletim de Informação, n.o 3, 3 de Dezembro de 1953,
s/ página, título «Prepara-te para o Congresso, lendo…».
57
Balilla era o nome da figura lendária de um jovem genovês que, em 1746, morreu numa revolta
anti-austríaca.
58
Cfr. «Mousinho, capitão da Mocidade. Discurso pronunciado junto da campa de Mousinho de Al-
buquerque, na cerimónia comemorativa de Chaimite, em 28 de Dezembro de 1940», in Por Amor da Ju-
ventude, Lisboa, s. ed., 1944, p. 80.
59
Ver o discurso pronunciado no dia 1 de Dezembro de 1927 na sede da Juventude Católica de Lis-
boa, intitulado «A Restauração de Portugal», in Ordem Nova, n.o 9-10, Novembro-Dezembro de 1927, p.
303 ss.
Continuando a nossa análise, diremos que Marcello afirmava, num óbvio es-
pírito nacionalista de «originalidade» (sempre proclamada por Salazar para o seu
regime), que a MP tinha uma «inconfundível personalidade» entre as organi-
zações da mocidade do mundo63. Ela defendia, no seu dizer, a «Civilização Cristã»
e a independência nacional. Por isso, como afirmava no prefácio da obra, repetin-
do as afirmações basilares de um discurso preferido em Outubro de 1943:
sim, uma escola de elites, de dirigentes, conforme dizia Marcello nos seus discur-
sos66, desenvolvendo o tema num livro com várias edições, A missão dos dirigen-
tes, publicado pela primeira vez em 1942 e pela última em 196667. Ali se falava do
«espírito heróico contra o espírito burguês», como súmula de todos os princípios
da «revolução» (entre os quais destacamos a «unidade nacional contra o espírito
de partido ou de classe» e «a disciplina e a lealdade ao Chefe contra a desordem
de um Estado acéfalo e de mil opiniões diversas»)68. Seria dentro destes princípios
que se poderia e deveria criar uma «geração nova», bem diferente, porém, no con-
teúdo do vocabulário vulgarmente usado. Vejamos este texto e, através dele, po-
deríamos recordar as suas lutas e dos seus companheiros (como Theotónio Pe-
reira69) em prol da moral:
Dentro destes princípios é que poderemos criar uma nova geração portuguesa.
Quantas vezes se fala nas novas gerações sem que a expressão tenha sentido
algum!
Gerações novas porque são as mais recentes, — mas velhas, velhíssimas no
espírito, nos hábitos e nos costumes.
Gerações sem grandeza, sem ideal, sem elevação, — apegadas à tristeza do
fado70, ao vicio da crítica, ao ambiente do café, à descrença mórbida e às doenças
venéreas.
Gerações para quem a sífilis é uma glória e a caspa uma condecoração, e cul-
tivam com os mesmos cuidados o comunismo ou liberalismo e a dispepsia.
A geração nova que nós temos de criar há-de separar-se do passado pela
vontade enérgica de vencer, pela serenidade de ânimo na adversidade ou nas sim-
ples contrariedades, e pelo idealismo puro servido por virtudes positivas e práti-
cas.71
66
Ver, para além dos discurso anterior, o texto «Grandeza e responsabilidade da missão do gra-
duado. Alocução proferida na cerimónia da entrega das insígnias ao VII Curso de Comandantes de Cas-
telo da Escola Central de Graduados em Agosto de 1940», in ob. cit., sobretudo p. 116.
67
A missão dos dirigentes: reflexões & directivas. Ed. do Comissário Nacional da Mocidade Portu-
guesa, Lisboa, Mocidade Portuguesa, 1942. A última edição (4.a edição) e as anteriores têm o título A
Missão dos Dirigentes: Reflexões e Directivas sobre a Mocidade Portuguesa. Utilizámos a 3.a edição, de
1952.
68
A Missão dos Dirigentes: Reflexões e Directivas sobre a Mocidade Portuguesa, pp. 14-15.
69
Ver a citada tese sobre Theotónio Pereira, de Fernando Manuel Santos Martins, Pedro Theotónio
Pereira. Uma biografia (1902-1972), cap. II, «…uma cruzada de salvação pública», p. 83 ss.
70
Note-se esta desvalorização do fado, muito comum entre a direita, e não só, que vemos também
nas páginas da Ordem Nova, pela pena de Ribeiro da Silva: «Guerra ao fado», in revista cit., n.o 7, Agos-
to de 1926, pp. 219-221.
71
A Missão dos Dirigentes, «Preparemos uma Geração Nova!», p. 16.
— a missão dos graduados deveria estar «ao serviço do Império», como dizia
num discurso de Agosto de 194372 — não se alteraria, afinal, tanto, como poderia
parecer. Mas, o que pensava realmente Marcello Caetano das «colónias» ou
«províncias ultramarinas», que constituíram o seu grande problema nos anos
sessenta e setenta?
4. A QUESTÃO ULTRAMARINA
Por sua vez, no título VII, «Das Províncias Ultramarinas», o artigo 133.o passou
a ser assim, sendo a novidade a «autonomia» e a possibilidade de serem as ditas
províncias chamadas «Estados» (na designação tradicional, e meramente honorí-
fica, tal como acontecera com o «Estado da Índia»):
Porém, para não haver dúvida e confirmar o carácter unitário do Estado, o ar-
tigo 136.o tinha agora o seguinte texto:
72
«Ao serviço do Império. Alocução proferida na abertura dos Cursos de Verão da Escola Central de
Graduados em 2 de Agosto de 1943, no Instituto dos Pupilos do Exército (antigo Convento de S. Do-
mingos de Benfica)», in Por Amor da Juventude, p. 173 ss.
73
Francisco Sá Carneiro faz esta referência na sua entrevista , integrada no livro, que já citámos, Ser
ou não ser deputado, pp. 10-11.
Sim ou não Portugal, amputado das suas colónias, perderá toda a razão de ser
como povo independente no conserto europeu?
74
Ver Razões da presença de Portugal no Ultramar. Excertos de discursos proferidos pelo Presi-
dente do Conselho de Ministros Prof. Marcello Caetano. 4.a edição com índice ideográfico. Lisboa,
SEIT, 1973.
75
Minhas Memórias de Salazar, pp. 514-518.
76
O próprio Salazar, mesmo no final dos anos cinquenta, continuava a gostar do uso da palavra «co-
lónia», conforme dizia na entrevista citada ao jornal Le Figaro de 1958: «Para nós, a palavra colónia no
seu mais puro significado continua a ser respeitável» (entrevista cit. a Serge Groussard, in Discursos, vol.
VI, p. 11). E, no domínio das ideias, mantinha a mesma ideologia colonialista, de tipo «proteccionista»:
«Nós cremos que há raças , decadentes ou atrasadas, como se queira, em relação às quais perfilhámos
o dever de chamá-las à civilização…» («A Atmosfera Mundial e os Problemas Nacionais», discurso pro-
ferido em 1 de Novembro de 1957, ao microfone da Emissora Nacional, Discursos, vol. V, p. 427).
77
Augusto da Costa, Portugal vasto Império. Um inquérito nacional, Lisboa, Imprensa da Universi-
dade, 1934, p. 49 ss.
viamente, dependente das colónias: «A razão de ser de Portugal não está nas co-
lónias, mas na diferenciação geográfica, étnica e histórica que o separa do resto da
península». Na segunda hipótese, isto é, se Portugal, perdendo as colónias, per-
deria a sua força e a sua identidade e mesmo a sua «ordem», respondeu, numa
reflexão conjuntural (tendo em conta o passado/presente republicano):
Ou seja, num momento em que Portugal estaria ainda numa situação de «de-
sordem» (1926, quando o inquérito foi realizado) e num tempo (1934, ano da pu-
blicação oficial do inquérito em livro, pela Imprensa Nacional), em que era ainda
possível falar na possibilidade ou na certeza da independência das colónias a cer-
to prazo, sobretudo de Angola, que viria a ser um «novo Brasil», e enquanto outros
falavam já da integração das colónias, ou «províncias ultramarinas» (aliás na tra-
dição vocabular monárquica e republicana portuguesa até aos anos vinte), no
espaço político e oficial português, Marcello Caetano, pragmaticamente, apenas
parece ter visto a questão colonial como um factor de complementaridade nacional.
Isso, porém, não exclui que tivesse, de forma vaga e ambígua ou de forma ex-
pressiva no plano da posse e do estatuto «imperial» de Portugal, louvado os prin-
cípios e os métodos da colonização portuguesa79 e que não considerasse, como vi-
mos, a colonização e o «Império» como realidades portuguesas em que os jovens
se deveriam empenhar. Recordemos o seu papel de historiador e de administrati-
vista que o levava a pensar nesses problemas.
No plano das opções e dos sentimentos políticas — não esqueçamos que Mar-
cello, em diversas situações, mais ou menos oficiais, fez várias viagens ao Ultra-
mar, começando com uma, em 1935, na qualidade de director pedagógico e cul-
tural de um cruzeiro de férias para jovens, e que foi vogal do Conselho do Império
Colonial, ministro das Colónias de 1944 a 1947 e, acima de tudo, foi chamado, no
início dos anos cinquenta, a dar o seu parecer sobre as grandes alterações da po-
lítica colonial ou ultramarina, como membro e presidente da Câmara Corporativa —
verificamos que a sua tendência, alegadamente em nome dos direitos especiais
dos «indígenas» e contrariando a ideia assimilacionista, não era favorável, no ín-
timo, a uma modificação profunda na política portuguesa.
A mudança mais sensível opera-se em 195180, por altura da revisão constitu-
cional (Lei n.o 2 048, de 11 de Junho). É então revogado o Acto Colonial de 1930,
integrando-se as disposições sobre o «Ultramar» no título VII da própria Consti-
78
Ob. cit., p. 51.
79
Ver Tradições, princípios e métodos da colonização portuguesa, Lisboa, Agência Geral do Ultra-
mar, 1951.
80
Sobre os temas que a seguir serão tratados, ver o nosso artigo «“Muitas raças, uma nação” ou o
mito de Portugal multirracial na «Europa» do Estado Novo», in Estudos do Século XX, n.o 2, «Europa-Uto-
pia. Europa-Realidade». Coimbra, Quarteto - CEIS20, 2002, pp. 147-165.
tuição, exactamente intitulado «Do Ultramar Português». Mas não há grandes al-
terações para além das modificações cosméticas que foram peculiares ao regime
no pós-guerra. Com efeito, se, por pressões do tempo e para contrariar o proces-
so de descolonização que então se iniciava, se altera o nome de «Colónias»,
voltando a chamar-se «Províncias Ultramarinas» (artigos 134.o e 135.o), e se eli-
mina a designação de «Império» atribuída aos domínios ultramarinos portugueses,
nada mais de essencial se modifica, nomeadamente no que diz respeito à «políti-
ca indígena», embora se possa dizer que se começa a sentir a influência de uma
paulatina política assimilacionista.
Mas, a Câmara Corporativa emitiu um parecer bem significativo, de que foi re-
lator Marcello Caetano81. Embora aceitasse, por razões práticas, a alteração ter-
minológica, ela não era considerada pacífica, votando alguns membros pela ma-
nutenção do nome de «Colónias» e outros por «Províncias Ultramarinas»,
enquanto a maioria se definiu pelo de «Territórios Ultramarinos». E as razões
transparecem no texto. Na verdade, a Câmara aceitava a mudança com o seguinte
argumento: «Tal alteração parece justificar-se no presente momento, sobretudo
pela campanha internacional contra a denominação e estatuto político das coló-
nias»82. No entanto, manifesta o receio de que essa transformação conduzisse à
adopção, na prática, da «assimilação» ou, melhor, de uma «assimilação prematu-
ra». São estas as palavras do parecer:
81
Parecer da Câmara Corporativa n.o 10/V, in Diário das Sessões, n.o 70, de 19 de Janeiro de 1951.
82
Parecer in Diário cit., II, Exame na especialidade, 11.
83
Idem, I Apreciação na generalidade, 3.
Com efeito, nunca a situação dos «indígenas» foi tão bem definida, como no
Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçam-
bique (decreto lei n.o 39 666, de 20 de Maio de 1954). O artigo 2.o é particularmente
interessante quanto à definição do «indígena»:
84
Os nativos na economia africana, Coimbra, Coimbra Editora, 1954.
85
Note-se o título do livro coordenado por Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira, A transição fal-
hada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), Lisboa, Editorial Notícias, 2004. Na capa apa-
recem enunciadas as seguintes questões: «Foi o marcelismo um salazarismo sem Salazar? Era possí-
vel a transição a partir do regime? O que falhou realmente em Marcello?» Estas perguntas, muito
interessantes, já parecem evidenciar um programa de análise, com que nem sempre estamos de acor-
do. Não lhes quisemos responder directamente, mas verificamos agora que, de algum modo, lhes res-
pondemos, como mera hipótese de trabalho (repetimos).
86
Cfr. António Alçada Baptista, Conversas com Marcello Caetano, Lisboa, Moraes Editores, 1973,
pp. 49-50.
87
Cfr. As Minhas Memórias…, p. 201. Marcello Caetano cita o seguinte passo de um discurso de Sa-
lazar, realizado no fim da guerra: «Cada país em que os dirigentes políticos têm plena noção das suas
responsabilidades há-de ter as instituições que melhor se adaptem ao seu modo de ser e dele façam ele-
mento prestante da comunidade internacional e há-de conceder e garantir aquele grau de liberdade con-
sentâneo com a eficiência das disciplinas interiores do homem e exteriores do meio social. Sem isso não
haverá ordem e progresso interno nem colaboração que preste com as mais nações» («Portugal, a gue-
rra e a paz», proferido em sessão da Assembleia Nacional de 18 de Maio de 1945, in Salazar, Discursos,
vol. IV, p. 116).