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H i s t o r i e n – R e v i s t a d e H i s t ó r i a [ 7 ] P e t r o l i n a , jun./nov 2 0 1 2 Página 2
ISSN: 2177 – 0786
CONSELHO EDITORIAL
Profª Dr.ª Andréa Bandeira (UPE)
Prof. Msc. Harley Abrantes (UPE)
Profª Drª. Lina M. B. de Aras (UFBA)
Prof. Msc. Lúcio Reis Filho (UFJF)
Prof. Msc. Moisés Almeida (UPE)
Prof. Dr. Nilton Almeida (UNIVASF)
Prof. Msc. Reinaldo Forte (UPE)
Profª Msc. Sheyla Farias (UFAL)
EDITOR RESPONSÁVEL
Prof. Msc. Moisés Almeida (UPE)
EDITORES-CHEFE
Prof. Cléber Roberto Silva de Carvalho
Prof. Christoval Araújo Júnior
Prof. Esp. Pablo Michel Magalhães
Prof. Rafael de Oliveira Cruz
EQUIPE DE EDIÇÃO
Dielson da Silva Vieira (Coordenador de Comunicação)
Maria do Socorro Fonseca de Oliveira (Coordenadora de Revisão)
Tadeu Henrique Araújo Silva (Coordenador de Editoração)
Nivaldo Germano dos Santos (Revisão)
Juliana Rodrigues Alves (Revisão)
Lucas Matheus da Silva (Comunicação)
Albert Fagner Pereira (Editoração)
Paulo Henrique Carneiro Barbosa (Diretor de articulação)
OBJETIVO DA REVISTA
A Revista Historien é uma produção do Grupo de Estudos Históricos Sapientia
et Virtute, sendo que seus membros são discentes da Licenciatura Plena em
História da Universidade de Pernambuco - Campus Petrolina, juntamente com
professores do corpo docente do referido curso. A proposta da Historien é o
incentivo a produção textual dos alunos da licenciatura, visando a expansão do
conhecimento em história por meio da produção dos próprios acadêmicos.
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HISTORIEN
Revista Eletrônica Universitária
Sumário
EDITORIAL ............................................................................................................................ 8
HISTORIA EM FOCO:
Edson Silva
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PROBABILIDADES E ENTRAVES DAS POLÍTICAS EDUCATIVAS PARA A
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO ESTADO DE PERNAMBUCO. .................. 66
Edmundo Monte
ARTIGO ESPECIAL:
Andréa Bandeira
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ARTIGOS:
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PAU-DE-COLHER: A VIDA EM SOCIEDADE E SEUS PRINCIPAIS LÍDERES.
................................................................................................................................................ 274
ENTREVISTA:
RESENHA:
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Caros leitores,
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afrodescendentes. Esperamos, dessa maneira, estar contribuindo, como universidade,
para que esse assunto seja cada vez mais pesquisado e discutido na academia, uma vez
que a produção de conhecimento realizada nesse espaço social é de fundamental
importância para o amadurecimento das reflexões que precisam ser realizadas para além
do âmbito universitário. Assim, desejamos a todos que se insiram nesse circuito e que
realizem boas leituras!
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Historien HISTÓRIA E CULTURA DOS POVOS INDÍGENAS E AFRODESCENDENTES
Ano IV
RESUMO:
O trabalho centra-se na análise dos processos de resistência indígena e camponesa no contexto
de expansão do latifúndio a partir do estudo sobre as relações semifeudais e semicoloniais do
capitalismo burocrático brasileiro. Conforme dados oficiais, a concentração de terras no Brasil
aumentou e a maior parte das terras públicas está ocupada ilegalmente pelos latifundiários,
que continuam protegidos pelo Estado. Além da expansão do latifúndio, grandes
empreendimentos econômicos avançam ameaçando as populações indígenas e camponesas
que ampliam o nível de organização e combatividade na luta pela terra como vem ocorrendo
no Estado de Rondônia nas últimas décadas.
INTRODUÇÃO
A cada dia aumenta a invasão de terras dos povos indígenas por madeireiros, empresas
de mineração e extração de matéria-prima e em consequência os assassinatos de lideranças
indígenas, repressão, torturas e criminalização de suas lutas. O latifúndio se expande
expulsando os camponeses para as periferias da cidade enquanto aumenta a pistolagem e o
assassinato de indígenas que se organizam na luta em defesa de suas terras. Para compreender
esse fenômeno faz-se necessário analisar a questão agrária.
Conforme os dados oficiais do Censo Agropecuário do IBGE/2006, a maior parte das
terras públicas está ocupada ilegalmente pelos latifundiários, que continuam protegidos pelo
governo. O latifúndio vem se expandindo devido aos processos de mecanização e
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Ano IV
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Ano IV
reforma agrária assumiu, antes de tudo, um caráter político que mobilizava forças sociais no
conjunto da sociedade brasileira que lhe rendeu a mais dura repressão a partir de 1964, com o
golpe militar. Foi a partir desse período que a reforma agrária entra no debate e nas políticas
governamentais, sob a orientação do imperialismo norte-americano. E por que esse interesse
do imperialismo pela reforma agrária?
A opressão do sistema fundiário semicolonial e semifeudal, atado ao imperialismo,
acabou despertando nos anos de 1950 em diante a mobilização dos camponeses em toda a
América Latina, formando importantes movimentos revolucionários (LE COZ, 1976, apud
MARTÍN MARTÍN, 2007, p. 26), pois “os fatos demonstram, a revolução há de ser em sua
essência não apenas antiimperialista, mas também agrária” (ALVES, 1980, p. 66). Era preciso
conter a luta pela terra e, consequentemente, os movimentos revolucionários. A fórmula
encontrada pelo imperialismo foi o plano de reforma agrária.
A política de reforma agrária para América Latina foi gestada dentro da esfera do
imperialismo norte-americano como uma estratégia de abrandamento da segunda onda da
revolução proletária mundial que avançava pela América Latina. A América Latina
transformou-se num amplo laboratório de reforma agrária, como explica Martín Martín (2007,
p. 26):
[...] en el conjunto de América latina, unas reformas agrarias previas a toda acción
de desarrollo. El Comité Interamericano para el Desarrollo de la Agricultura (CIDA)
iba a ser, junto a la FAO, el órgano de enlace entre los diversos estados interesados.
El concepto de reforma agraria integral se convertía em adelante en una de las bases
de acción de desarrollo que iban a emprender diversos organismos interamericanos o
internacionales.
Para Martín Martín (2007, p. 27), essa nova aliança com os países latino-americanos
serviu para aplicar, entre outras políticas, a de reforma agrária, não para resolver o problema
da terra, mas para reforçar a evolução da semifeudalidade no campo, como foi o caso do
México, Peru, Brasil, entre outros. Essa política imperialista tem se reforçado ao longo dos
anos por meio da concessão de créditos para a feitura da reforma agrária, pelo perigo que ela
representa à ordem dominante. As classes dominantes brasileiras sempre encontraram
fórmulas para “acalmar” os conflitos agrários e procrastinar a reforma agrária. Por isso
mesmo, sempre guiada pelas políticas ditadas pelo imperialismo, ela seguiu o caminho das
concessões, com o intuito de impedir a solução revolucionária do problema da terra. Dentre as
políticas recentes de “reforma agrária” do governo brasileiro financiadas pelo Banco Mundial
nos últimos anos estão a Cédula da Terra, o Banco da Terra e o Projeto de Crédito Fundiário e
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Ano IV
Combate à Pobreza Rural (programa de acesso à terra pela compra e venda, dá-se pela lógica
do mercado).
Muitos movimentos de camponeses sem terras surgiram no País a partir da década de
1980, a exemplo do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), e lutam pela
reforma agrária dentro dos marcos do capitalismo burocrático, aceitam e defendem esse
modelo de reforma agrária tutelada e toda a política dela decorrente. Contrapondo-se a esse
modelo historicamente fracassado de reforma agrária, desenvolve-se a revolução agrária no
Brasil, por meio da ação radical da Liga dos Camponeses Pobres, originada em Rondônia
logo após o conhecido “Combate de Corumbiara”, chamado pelos camponeses de “Combate
de Santa Elina”, em 1995, e que hoje está presente em vários Estados. Ao contrário da luta
desenvolvida pelos movimentos reformistas, a revolução agrária está condicionada à
participação e organização das massas camponesas e operárias na transformação
revolucionária no sistema político e econômico, o que representa um avanço na luta de classes
no campo nos últimos anos.
A solução adotada pelos técnicos do IBGE foi denominar esses 36% da superfície
do país de „área com outras ocupações‟. No entanto, se eles incluíram todas as
possibilidades de ocupação de fato, ficou faltando as „terras públicas devolutas‟. É
isto mesmo: mais de um terço da área do país está cercada, mas não pertence a quem
cercou. Os „proprietários‟ não têm os documentos legais de propriedade destas
terras. Por isso, essas terras são omitidas nos levantamentos estatísticos tanto do
IBGE como do INCRA.
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Ano IV
4 Agronegócio é uma palavra nova, mas tem origem no sistema de plantation norte-americano e se refere ao
modelo de desenvolvimento agropecuário capitalista.
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latifúndios, em oposição à existência de camponeses pobres sem terras ou com pouca terra em
todas as regiões do País. A colonização dirigida intensificou-se a partir de 1970, com o
Programa de Integração Nacional - PIN (Decreto Lei 1.106, de 16/06/70), que pretendia
assentar camponeses em lotes de 100 hectares numa faixa de terra de dez quilômetros de cada
lado das rodovias em construção, a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém. Esse projeto foi o
início da campanha ufanista do regime militar, que dizia ser necessário “integrar a Amazônia
para não entregá-la aos estrangeiros”. A intenção era, na verdade, regularizar e facilitar a
aquisição de terras pelos estrangeiros e grupos agropecuários, além de permitir a entrega dos
recursos naturais da região aos grupos multinacionais (OLIVEIRA, 1988, p. 70).
Os projetos de colonização privilegiaram especialmente os grandes proprietários,
enquanto a propaganda enganosa do governo arrastava as multidões excluídas das outras
regiões do País para o que ela denominava de “Eldorado brasileiro”. Dessa forma, muitas das
famílias que vieram em busca de terra, não a conseguindo, tomaram as terras indígenas, se
transformaram em meeiras, arrendatárias em pequenas e grandes propriedades, ou foram para
as periferias das cidades. Essa “contrarreforma agrária” foi financiada pelo Banco Mundial,
por meio da criação de programas que visavam a ocupação e o ordenamento econômico da
região, como o Programa de distribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria no Norte e
Nordeste (PROTERRA), a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), o
Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (POLAMAZONIA), o
Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (POLOCENTRO), o Programa Integrado de
Desenvolvimento do Noroeste (POLONOROESTE), o Plano Agropecuário e Florestal de
Rondônia (PLANAFLORO) e o atual Zoneamento Socioeconômico Ecológico.
A partir de 1992, o imperialismo formulou o discurso de “Desenvolvimento
Sustentável”, que foi utilizado para justificar novos projetos de financiamento de organismos
internacionais na Amazônia, dentre estes as organizações não governamentais (ONGs), que
interferem no planejamento regional a serviço do capital monopolista, possuem informações
precisas sobre o território, por meio de fotos de satélites, são responsáveis pela biopirataria e
estão presentes em áreas indígenas, áreas de mineração, de exploração agrícola e pecuária,
manejo florestal, exploração de petróleo, no extrativismo, no ecoturismo, enfim, espalham
seus tentáculos por todas as atividades, respaldadas por bancos e agências do capital
financeiro internacional. A hegemonia do imperialismo norte-americano na Amazônia pode
ser observada em diversos setores da economia da região. Nos últimos anos o imperialismo
age na Amazônia sob o viés do discurso do “desenvolvimento sustentável” de um lado,
envolvendo ONGs e Governo e, por outro, através dos grandes projetos de infraestrutura
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ditados diretamente pelo Governo Federal. Não é de se estranhar, por exemplo, que ONGs
como a “Kanindé – Associação de Defesa Etno-Ambiental” desenvolva parceria com nada
mais nada menos do que a USAID – United States Agency International Development.
Apenas a título de exemplificação, a referida ONG realizou pesquisa em 2006 que resultou na
publicação de um “Relatório Etnoambiental participativo e plano de gestão” na Terra
Indígena Igarapé Lourdes, localizada no município de Ji-Paraná-RO. Na área vivem os povos
Arara (Karo) e Gavião (Ikolen). Segundo o referido relatório, o objetivo da pesquisa é o de
construir uma “proposição responsável de planos para gestão socioambiental”. O relatório
ainda afirma a “parceira” com as agências imperialistas que financiaram a pesquisa e a
anuência da FUNAI (DIAGNÓSTICO ETNOAMBIENTAL PARTICIPATIVO E PLANO
DE GESTÃO, 2006, p. 6 e 7). Para os indígenas, conforme investigação feita por nós, o
discurso empregado era de que o estudo visava ver os potenciais de recursos naturais que
poderiam ser extraídos da floresta para fortalecer a economia da comunidade ao mesmo
tempo em que se mantém sua cultura. Contudo, com um estudo do relatório percebemos que
não só foi feito todo um inventário do meio biológico, mas também do meio físico, este
último, descrito minuciosamente em 107 páginas, que incluem a pesquisa de solo e subsolo,
onde se localizou a existência de nióbio, cassiterita, manganês e ouro.
A Kanindé age sob os ditames do imperialismo, realizando levantamento dos diversos
recursos naturais das terras indígenas e cooptando lideranças de diversos povos para legitimar
suas ações. Atualmente a referida ONG desenvolve um projeto denominado “Consórcio
Garah Itxa”, que prevê entre outras ações a realização de um “Diagnóstico etnoambiental
participativo com mapeamento cultural”, a exemplo do que foi feito na Terra Indígena Igarapé
Lourdes. A área de atuação desse projeto, conforme sítio da mesma ONG, é o “corredor
etnoambiental Mondé-Kwahiba”, que situa-se a leste de Rondônia, noroeste de Mato Grosso e
sul do Amazonas, onde situam-se 13 terras indígenas e 33 unidades de conservação.
Sob o discurso do “Desenvolvimento Sustentável” o Governo Federal, também criou
um programa de Licitações de Florestas Públicas que já está funcionando há três anos em
Rondônia. Na Floresta Nacional do Jamari, só em 2012 a previsão de exploração é de
12.583,039 m³ de toras de madeira e 9.276,214 m³ de resíduos. A concessão total de Florestas
Públicas, realizada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) é de 144,8 mil hectares de
floresta que prevê, além da extração de madeira extração de folhas, raízes, cascas, frutos,
sementes, óleos, látex, resinas. Destrói-se a floresta, atendem-se os interesses do capital,
criam-se mecanismos de uma “compensação” na maioria das vezes não cumpridas,
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Há estimativas indicando que a população indígena do continente chegava, à época da conquista, a mais de
cinquenta e três milhões de pessoas, sendo que só a bacia Amazônica teria mais de cinco milhões e seiscentos
mil habitantes (NEVES, 1995, p. 170) e na região de Rondônia, no Século XVIII, estimava-se que havia uma
população de mais de 80.000 mil indígenas de diferentes etnias (PANEWA, 2003, p. 5).
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perambulando por áreas ainda preservadas e em constante fuga quando o não índio tenta uma
aproximação, conforme quadro elaborado por nós:
POVO ISOLADO LOCALIZAÇÃO MUNICÍPIOS
“Yviraparaquara” T. I. Uru-Eu-Wau-Wau São Francisco do Guaporé
Isolados do Parque Estadual Guajará-Mirim Parque Estadual Guajará Mirim Guajará-Mirim
Isolados do Rio Mutum – Uevae Próximo da T.I. Karipuna Nova Mamoré e Porto Velho
Isolados do Rio Formoso e do Jaci – Paraná T. I. Pacaás Novos Nova Mamoré e Porto Velho
Isolado do Igarapé Karipuninha Igarapé Karipuninha Porto Velho/RO e Lábrea/AM
Isolado do Rio Candeias e Rio Branco Terra Indígena Karitiana Porto Velho
Povo Isolado da Serra da Cutia Serra da Cutia Guajará-Mirim
Isolado do Rio Novo e Cachoeira do rio Pacas Novas Rio Novo/Pacas Novas Guajará-Mirim
Isolados do Rio Omere e rio Tanaru T. I. Omerê Corumbiara
Isolado Jururei Reserva Florestal Urupá Alvorada d’Oeste e Urupá
Povo Isolado do rio Jacundá Floresta Nacional do Jamari Itapuã do Oeste, Cujubim e Candeias do Jamari
Povo Isolado da Rebio Jarú REBIO JARÚ Ji-Paraná-RO
Povo Isolado da Cabeceira do Rio Marmelo e Maicy Rio Marmelo e Maicy Humaitá/AM – Divisa com Porto Velho/RO
Povo Isolado do Parque Estadual Corumbiara Parque Estadual Corumbiara Pimenteiras
Povo isolado da Terra Indígena Massaco Terra Indígena Massaco Costa Marques e Alta Floresta D’Oeste
(Base de dados – Relatórios do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, notícias de jornais da região, Relatórios da FUNAI – 2011-2012).
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Atualmente os povos indígenas travam uma intensa luta pela revogação da Portaria
303 da AGU, que se soma a outras mobilizações como o repúdio à PEC 215/2000, a denúncia
do engavetamento do Novo Estatuto do Índio e a morosidade na reestruturação física e
financeira da FUNAI e de outros órgãos que deveriam prestar assistência aos indígenas. A
PEC/2000, já aprovada no Congresso Nacional, prevê a alteração do dispositivo
constitucional que dá ao Poder Executivo o poder para demarcar e homologar terras
indígenas, quilombolas e áreas de conservação ambiental, que passaria, pela proposta, a ser
competência do Legislativo Federal que é controlado pelos latifundiários.
CONCLUSÃO
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necessário seguir o exemplo de outras regiões onde a luta do Movimento Indígena tem sido
cada vez mais combativa e organizada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Ano IV
RESUMO:
Após as décadas de 1980 e 1990 ocorreram significativas produções que versam sobre os
povos indígenas no Brasil e no Nordeste. É possível observar que essa historiografia sobre os
povos indígenas no Nordeste, mais especificamente em Alagoas e em Pernambuco não tem
sido respaldada pelos manuais de história na educação básica na mesma proporção. Este texto
postula na análise de materiais de apoio didático em História de Alagoas e de Pernambuco
possibilitando identificar como a educação básica está implementando a Lei 11.645/2008 que
trata da obrigatoriedade da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígenas nos
estabelecimentos de ensino público e privado, objetivando identificar as possíveis mudanças
na representação textual e imagética dos povos indígenas nesses dois estados respectivamente.
Introdução
A discussão proposta neste texto será no sentido de por em debate o ensino da história
indígena como possibilidades para abordagens que adotem como referência os princípios
históricos3 e historiográficos4 desses povos. Tomará dimensões para além da perspectiva
progressista ocidental, na medida em que questionará a hierarquização dos povos mundiais
tendo como modelo a história ocidental grecoromana, europeia e estadunidense.
Não mencionaremos como base de análises as histórias de outros povos como
africanos, indianos, chineses e outros mais, tendo em vista que, é visível, e, de certo modo,
1
Mestranda em História UFPE e Professora da Rede Municipal em Jaboatão dos Guararapes.
2
Doutorando em História UFPE, Professor no Curso de História do CESMAC (Maceió/AL), Técnico
Pedagógico da Gerência de Diversidades – SEE/AL.
3
Nosso entendimento de história indígena deve está aproximado ao que esses povos pensam sobre as ideias
gerais de história e sobre si mesmo, porém, há algumas limitações, por exemplo, quando se trata de contemplar
todos os povos indígenas em Alagoas e Pernambuco.
4
Simplificadamente poderíamos entender como historiografia indígena as produções da sociologia, da
arqueologia, da geografia, da história e principalmente da antropologia que tem produzido sobre os mais
variados temas da vida indígenas nesses espaços.
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5
Edward Said. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
6
Jack Goody. O roubo da história. São Paulo, Contexto, 2008.
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Para nossas análises teremos como base dois livros didáticos, um sobre História de
Alagoas7 e outro sobre História de Pernambuco 8. Consideramos também nossas experiências
como pesquisadores/as da temática e convivência com as populações indígenas na região e
também como professores/as de História na Educação Básica nos respectivos estados
mencionados. Os livros aqui selecionados foram identificados no interior escolar, publicados
antes da Lei mencionada, mas que estão em uso nas bibliotecas na educação básica.
A visão de progresso civilizacional está presente não só nos livros de história, mas
também em grande parte da produção historiográfica. Os indígenas aparecem na história
como resultado de uma descoberta do europeu, para servir aos interesses de uma suposta
expansão marítima comercial. As necessidades da história da Europa são pontos de partida
para explicar a suposta inferioridade tecnológica, de produção e cultural dos povos indígenas.
As questões podem ser apresentadas com seus conflitos e tensões, equiparando as
condições humanas dos grupos envolvidos no processo. Os grupos são capazes de existirem
7
ALBUQUERQUE, Isabel Loureiro de. História de Alagoas. Maceió, Imprensa Oficial, 2002.
8
SIEBERT, Célia. História de Pernambuco. São Paulo, FTD, edição renovada, 2001. (Ensino fundamental).
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Ano IV
nas suas realidades. Não seriam os europeus que projetariam os povos primeiros9 para uma
civilização brasileira, e se essa existe, seria uma história fundada a partir da existência
indígena, africana e europeia.
Selecionamos alguns pontos independentes da periodização da história alagoana e
pernambucana para analisarmos suas exposições textuais e imagéticas sobre os povos
indígenas. O período colonial segue certa padronização na representação escrita e nas
imagens. Essa é uma tendência na produção didática nacional.
9
O termo Povos Primeiros está associado às populações que viviam no espaço que posteriormente foi nomeado
como Brasil. Entende-se que o indígena não poderia ser designado por definir os povos que viviam nas índias.
10
Ver: Jack Goody. O roubo da história. SP, Contexto, 2008. Ver: SAID, Edward w. O orientalismo: o
oriente como invenção do ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
11
SAHLLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluência. Disponível em:
http://www6.ufrgs.br/horizon/files/antropolitica/sahlins.pdf. acessado em: 17/10/2012.
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A sentença bíblica de viver à custa de trabalho foi pronunciada contra nós. Escassez é a
sentença decretada por nossa economia – e é também o axioma de nossa ciência
econômica: a aplicação de meios escassos contra fins alternativos, conforme as
circunstâncias, para tirar a maior satisfação possível. E é precisamente a partir dessa
vantagem que voltamos a olhar para os caçadores. Mas, se o homem moderno, com
todas suas vantagens tecnológicas, ainda não conseguiu os meios, que chance possui
esse selvagem desprotegido, com seu insignificante arco e flecha? Tendo equipado o
caçador com impulsos burgueses e ferramentas paleolíticas, julgamos sua situação
desesperadora13.
A segunda ilustração, na mesma página vinte, representa três mulheres. Uma parece
cortar madeira (lenha), outra está produzindo (num pilão) um tipo de farinha e uma terceira
com criança ao colo. A terceira imagem é uma gravura de Albert Eckhout de 1641/43 (dança
dos Tapuias) representa homens dançado com armas (lanças) em mãos, possivelmente, um
ritual que antecede batalhas.
No final da página vinte e um, há uma foto de um Praiá 14. A legenda faz referência
equivocadamente aos Índios Xucuru, em Pesqueira, durante um ritual sagrado. Os textos
mencionam mais de um grupo étnico no período colonial. Repentinamente tratam da história
no presente destacando os povos indígenas em Pernambuco como os Capinauá, Trucá, os
Aticum, os Xucuru, os Cambiá, os Pancararu e os Fulni-ô.
Os indígenas são representados nesse livro cronologicamente desaparecendo da
história aproximadamente quatrocentos anos, corresponderia metade do período colonial, todo
período imperial e maior parte do republicano, para reaparecerem repentinamente na primeira
década do início do século XXI, data da publicação do livro.
Os elementos postos para a história indígena quando não exótico são reduzidos aos
aspectos dos seus rituais, parece uma disfunção da compreensão de história, ou, seria uma
12
SIEBERT, Célia. História de Pernambuco. São Paulo, FTD, edição renovada, 2001. (Ensino fundamental).
13
SAHLLINS, Marshall. A primeira sociedade da afluência. Disponível em:
http://www6.ufrgs.br/horizon/files/antropolitica/sahlins.pdf. Acessado em: 17/10/2012.
14
O Praiá é uma representação da divindade, é o encantado quem recebe um nome, incorporado simbolicamente
por um ser vivo para representá-lo com vestimenta própria e única. Representa o material do mensageiro
chamado também de “espírito-encantado”. Segundo o índio Jiripankó5, significa o material do mensageiro,
chamado também de encantado. Os Praiá externam o mundo sagrado por meio dos encantados presentes nos
rituais (FERREIRA, 2009, P. 51).
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Ano IV
Os grupos indígenas não eram iguais. Tinham línguas e costumes diferentes. Mas havia
entre eles vários pontos em comum, por exemplo:
Organizavam-se em tribos. As tribos, por sua vez, eram divididas em aldeias, de
acordo com o parentesco. A aldeia era formada por várias malocas (habitações
coletivas).
Viviam da caça, da pesca e da coleta de raízes e frutos.
Plantavam milho, mandioca, abóbora, algodão, fumo...
Os homens ocupavam-se principalmente da caça, da pesca e da guerra. Também
fabricavam armas e objetos, construíam as malocas e preparavam a terra para o plantio.
As mulheres cuidavam dos filhos, plantavam, colhiam, fabricavam farinhas e bebidas,
faziam trabalhos de artesanato.
A terra pertencia a todos, isto é, todos tinham o direito de usá-la. Também o produto
da terra era divido entre todos (SIEBERT, 2002, p. 20).
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Ano IV
Os livros analisados seguem uma tendência geral, persistindo numa visão da História
dependente do europeu colonizador ou luso-brasileiro para entrar na História. O mais
agravante é o fato da negação das existências das populações indígenas em Alagoas e
Pernambuco, concepção que perdurou até as duas últimas décadas do século passado. A nossa
concepção de livro didático se aproxima do que definiu Marinho (2006) quando lembrou que,
Sobre o livro didático e a história indígena neles representada, Grupioni (1995: 491)
afirmou que os manuais escolares continuam a ignorar as pesquisas feitas pela História e pela
Antropologia sobre o conhecimento do outro, revelando-se deficientes no tratamento da
diversidade étnica e cultural existente no Brasil, dos tempos da colonização aos dias atuais, e
da viabilidade de outras ordens sociais.
Na obra O desafio historiográfico Reis (2010, p. 30) comentou que o problema da
História aparece para a consciência quando ela se depara com outra consciência, o outro.
Pensar o Ensino de História sobre os indígenas parece está próximo dessa realidade à medida
que a sociedade alagoana e pernambucana pouco ou quase nada conhece sobre as histórias das
populações indígenas que vivem nesses estados.
O ensino sobre os “outros”, que neste caso são os indígenas, implica em
conhecimentos que compreendam suas sociodiversidades específicas e a participação desses
povos na História. Se não há essa percepção, essa “consciência”, as práticas pedagógicas
recairão sobre os mesmos “erros” do ensino “tradicional” sobre a história indígena, que
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Há alguns anos não é mais novidade o quanto a imagem dos índios, populações nativas
ao território que hoje definimos como brasileiro, tem sido construída de modo
simplificador e estereotipado, tanto pela historiografia mais tradicional, quanto pelos
livros didáticos que a reproduzem. Este é um dos pontos primeiros de um estudo
Etnográfico ou da realidade brasileira em geral (LIMA, 1995: 407).
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A exposição das imagens parece combinar com a lógica textual com figuras ou
desenhos de Pedro Álvares Cabral geralmente sem indicação de sua produção. As imagens
identificam a “posse da nova terra” com a chegada dos europeus. Uma das imagens
recorrentes é que exibe homens (europeus) segurando uma grande cruz, em sua volta pessoas
em de pé e indígenas sem vestimentas se juntam a outras sentadas ao chão. No sentido Leste a
praia e a Oeste a Mata Atlântica.
Em quase todos os livros didáticos há uma imagem representando a Primeira Missa no
Brasil, como condição primária para os indígenas tornarem-se “civilizados”. Há textos
indicando a hipótese de que as primeiras terras avistadas pela esquadra de Cabral tenham sido
as do litoral de Alagoas, em 22 de abril de 1500. Também são comuns imagens indicando o
contrabando de pau-brasil pelos franceses em que os indígenas aparecem cortando e
transportando a madeira em troca de bugigangas.
É recorrente a expressão “Nossos índios”, recorrente na historiografia tradicional
alagoana e os livros didáticos reproduzem. Cronologicamente quase que na sua totalidade os
livros didáticos analisados seguem uma estrutura linear na sua organização de temas e
conteúdos. A narrativa geralmente é subdivida em tópicos, seguem: os primeiros contatos,
usos, costumes, moradias, guerra, sociedade, religião, instrução, arte. As populações
indígenas em Alagoas são representadas como de dois grupos étnicos: a) os Tupis: Caeté,
Potiguara, Abacatiara, Tabajara, Aconan-Cariri ou Coropati; b) os Tapuia: Chucuru,
Moriquito, Umans, Vouvé; Caraíba.
Os livros estudados subdividem as formas de habitação descrevendo e utilizando
sinônimos para a escrita atual. Isso também ocorre com os instrumentos de pesca, de caça-
guerra, de música. Nomeiam os papéis individuais na organização social, afazeres domésticos
e os mitos. Há uma separação da vida religiosa com a mitológica.
É também recorrente a utilização da formatação de dicionário transcrevendo e
significando palavras que supostamente são de origens indígenas. Para estes fins são
utilizados imagens e incorporadas aos textos como forma de ilustrar, representar e compor a
história dos indígenas em Alagoas e em Pernambuco.
Os textos e imagens não põem a historiografia em questão. Não problematizam as
relações sociohistóricas. No geral compilam e repetem as escritas dos chamados livros
clássicos sobre a História do Brasil. Não há relação com a historiografia e história das
populações indígenas atuais. Parece um total desconhecimento da existência dessas
populações,
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A historiografia alagoana quando se formaliza, trabalha o índio como elemento que não
estava no cenário político. A uma liquidação legal, correspondeu uma liquidação
historiográfica. Ele aparece por via de seu passado e não por via de sua atualidade
(ALMEIDA, 1999: 17).
Considerações finais
Algumas questões podem ser apontadas após esse ensaio. Primeiro apontamos a
formação do/a professor/a que atua na educação básica como elemento central na
implementação da lei mencionada. Esse processo não pode ser isolado, visto como
profissionais supostamente “responsáveis” pelas “transformações” sociais. Há uma série de
interdependências complexas, que merecem atenção especial, a exemplo da atenção dos
Estados para a educação em suas políticas de financiamentos. Essa postura idealista já está
ultrapassada, mesmo assim, continua no universo político idealista como trunfo para as
terceirizações dos serviços educacionais e a migração das verbas públicas para os setores
empresariais privados.
Em segundo, consideramos as produções nas academias uma ponte necessária para
elaboração de teorias que questionem a homogeneização do pensamento ocidental e possam
considerar que outras histórias podem ser reveladoras de outras perspectivas de vida, não só
para as populações indígenas, sobretudo para uma teoria da história brasileira.
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DIOP, Cheikh Anta. L´Afrique noire pré-coloniale. Paris/Dakar, Présence Africaine. [1960]
1987.
15
DIOP, Cheikh Anta. L´Afrique noire pré-coloniale. Paris/Dakar, Présence Africaine. [1960] 1987. Ver:
LOPES, Carlos. "A Pirâmide Invertida - Historiografia Africana feita por Africanos". Actas do Colóquio -
Construção e ensino da História da África". Reunião Internacional de Historia de África, Lisboa, 1989.
16
SAID. Edward. W. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. Sâo Paulo. Companhia das Letras,
2001.
H i s t o r i e n – R e v i s t a d e H i s t ó r i a [ 7 ] P e t r o l i n a , jun./nov 2 0 1 22 Página 37
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Ano IV
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do Colóquio - Construção e ensino da História da África". Reunião Internacional de Historia
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RESUMO:
Nos últimos anos diferentes grupos sociais conquistaram e ocuparam espaços sociopolíticos
no Brasil. Identidades foram afirmadas, diferentes expressões socioculturais passaram a ser
reconhecidas e respeitadas, que vem exigindo discussões, formulações e implementação de
politicas públicas que respondam as demandas de direitos sociais específicos. A Lei
11.645/2008, que determinou a inclusão da história e culturas indígenas nos currículos
escolares, possibilitará o respeito aos povos indígenas e o reconhecimento das
sociodiversidades no Brasil.
1
Doutor em História Social (UNICAMP). Professor no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE/Campus
Recife. Leciona no Programa de Pós-Graduação em História/UFPE, no PPGH/UFCG (Campina Grande/PB) e no
Curso de Licenciatura Intercultural Indígena na UFPE/Campus Caruaru. edson.edsilva@gmail.com
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minorias (maiorias) sejam mulheres, ciganos, pessoas negras, idosas, crianças, portadoras de
necessidades especiais etc. reivindicam o reconhecimento e o respeito aos seus direitos!
Faz-se necessário, então, descontruir a ideia de uma suposta identidade genérica
nacional, regional. Questionar as afirmações que expressam uma cultura hegemônica que nega,
ignora e mascara as diferenças socioculturais. Uma suposta identidade e cultura nacional que se
constituem pelo discurso impositivo de um único povo. Uma unidade anunciada muita vezes
em torno da ideia de raça, um tipo biológico a exemplo das imagens sobre o mulato, o mestiço,
o nordestino, o sertanejo, o pernambucano, dentre outras.
Pois as ideias de uma identidade e cultura nacional escondem as diferenças sejam de
classes sociais, gênero, étnicas e etc. ao buscar uniformizá-las, negando também os processos
históricos marcados pelas violências de grupos politicamente hegemônicos. Negando ainda as
violências sobre grupos a exemplo dos povos indígenas e os oriundos da África que foram
submetidos a viverem em ambientes coloniais. Observemos ainda que as identidades nacionais
além de serem fortemente marcadas pelo etnocentrismo são também pelo sexismo: se diz o
mulato, o mestiço, o pernambucano, acentuando-se o gênero masculino.
É necessário, então, problematizar ainda as ideias e afirmações de identidades
generalizantes como a mestiçagem no Brasil, sendo um discurso para negar, desprezar e
suprimir as sociodiversidades existentes no país. Afirmar os direitos as diferenças é, pois,
questionar o discurso da mestiçagem como identidade nacional usado para esconder a história
de índios e negros na História do Brasil.
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Desse modo, podemos concluir que não existe uma identidade cultural única
brasileira, mas diversas identidades que, embora não formem um conjunto monolítico
e exclusivo, coexistem e convivem de forma harmoniosa, facultando e enriquecendo
as várias maneiras possíveis de indianidade, brasilidade e humanidade. Ora,
identidade implica a alteridade, assim como a alteridade pressupõe diversidade de
identidades, pois é na interação com o outro não-idêntico que a identidade se
constitui. O reconhecimento das diferenças individuais e coletivas é condição de
cidadania quando identidades diversas são reconhecidas como direitos civis e
políticos, consequentemente absorvidos pelos sistemas políticos e jurídicos no âmbito
do Estado Nacional. (BANIWA, 2006, p. 49).
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Essa exigência deve ser atendida, com a contribuição de especialistas, a participação dos
próprios sujeitos sociais na formação de futuros/as docentes, na formação continuada daqueles
que discutem a temática indígena em sala de aula, na escola e que atuam na produção de
subsídios didáticos em todos os níveis. Sejam nas universidades, nas secretarias estaduais e
municipais. Só a partir disso é que deixaremos de tratar as diferenças socioculturais como
estranhas, exóticas e folclóricas. (Re)conhecendo em definitivo os índios como povos
indígenas, em seus direitos de expressões próprias que podem contribuir decisivamente para a
nossa sociedade, para todos nós.
Se a partir de suas mobilizações, os povos indígenas conquistaram nas últimas décadas
considerável visibilidade enquanto atores sociopolíticos em nosso país exigindo novos olhares,
pesquisas e reflexões, por outro lado, é facilmente contestável o desconhecimento, os
preconceitos, os equívocos e as desinformações generalizadas sobre os índios, inclusive entre
os educadores. Os preconceitos sobre os índios são expressos cotidianamente pelas pessoas. E
o mais grave: independe do lugar social e político que ocupem!
Sem dúvidas é no âmbito da escola/educação formal, em seus vários níveis, que se pode
constatar a ignorância que resultam em distorções a respeito dos índios. A Lei nº. 11.645 de
março/2008 que tornou obrigatório o ensino sobre a história e culturas indígenas nos currículos
escolares no Brasil, ainda que careça de maiores definições, possibilita a superação dessa
lacuna na formação escolar. Contribuindo para o reconhecimento e a inclusão das diferenças
étnicas dos povos indígenas, para se repensar em um novo desenho do Brasil em sua
sociodiversidades.
Passados mais de quatro anos da sua publicação, persistem vários desafios para
efetivação do que determinou a Lei 11.645/2008. É de fundamental importância, por exemplo,
capacitar os quadros técnicos de instâncias governamentais (federais, estaduais e municipais)
para o combate aos racismos institucionais. Mas, um grande ou o maior dos desafios é a
capacitação de professores tanto os que estão atuando, a chamada formação continuada, quanto
daqueles ainda em formação nas licenciaturas em universidades públicas e privadas, nos
diversos cursos de magistério. O que significa dizer que no âmbito dos currículos dos cursos de
licenciaturas e formação de professores, deve ocorrer a inclusão de cadeiras obrigatórias
ministradas por especialistas que tratem especificamente da temática indígena, principalmente
nos cursos das áreas das Ciências Humanas e Sociais.
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Como lecionar sobre os povos indígenas, quando é facilmente constatável que a imensa
maioria do professorado desconhece a população indígena no Brasil e no Nordeste que se
autodeclaram índios segundo os dados do IBGE/2010? Como tratar dos povos indígenas se no
senso comum e no ambiente escolar permanecem imagens de índios na Região Norte e no
Xingu, considerados índios portadores de uma suposta cultura pura em oposição aos indígenas
em outras regiões mais antigas da colonização, a exemplo do Nordeste, que tem suas
identidades sistematicamente negadas? São chamados de “caboclos” expressão bastante usada
principalmente a partir de meados do Século XIX pelos invasores das terras indígenas e
autoridades quando defendiam o fim dos aldeamentos e invisibilizando os índios da História?
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ALMEIDA, Maria R. C. de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
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Ano IV
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Ano IV
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Resumo:
Os primeiros cronistas que escreveram sobre a América portuguesa, elaboraram, a partir de
seus conceitos e dos seus interesses, dotados, num primeiro momento de exacerbada alegoria,
a imagem do indígena. Essa imagem fez parte da ideia de América no mundo europeu do
início da época moderna, e perdura no imaginário e na historiografia: os estereótipos sobre os
indígenas, seus costumes e cultura. Nesse artigo, faremos a análise dos escritos de Ambrósio
Fernandes Brandão e de Gabriel Soares de Sousa, que são obras que refletem todo um sistema
de valores correntes na época, formas de pensamento que criaram a imagem do autóctone.
Palavras - chave: América portuguesa;representações europeias; indígenas.
***
O homem europeu no período que marca a “conquista” da América, ainda que fosse
considerado moderno, carregava a herança do medievo, sendo algumas dessas características:
a sua devoção, o temor à igreja; o fato de serem supersticiosos e pessimistas em relação à
vida; e ainda os relatos fantasiosos que permeavam a sociedade a respeito de mundos que
desconheciam, despertando curiosidade e imaginação; essas “[...] narrativas de viagens
aliavam fantasias e realidade, tornando fluidas as fronteiras entre real e imaginário”.
(SOUZA, 1986, p. 24). Tudo isso ajuda a criar uma lente, revestida com essas construções,
pela qual eles viam o mundo a sua volta.
O surgimento de um Novo Mundo para os europeus trouxe várias inquietações em
seus pensamentos a cerca da cultura daquele lugar, incitando assim, a criação de estereótipos
sobre o local e seus habitantes, os quais se perpetuaram como um discurso verdadeiro por
muito tempo. Nesse contexto, os cronistas vão exerceram papel imprescindível na formação
1
Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. E-mail-
d.coelhorodrigues@gmail.com
2
Graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. Bolsista
de iniciação científica pelo Programa de Fortalecimento Acadêmico - PFA. E-mail – flavia.ribeirofg@gmail.com
3
Graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. E-mail -
luann.di.souza@hotmail.com
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Ano IV
Os relatos de viagens, por seu caráter eminentemente etnocêntrico já atado, fundam uma
antropologia ou geografia condizente com o olhar do europeu conquistador convencido
de sua superioridade, em que o outro (as populações das terras descobertas) é facilmente
identificado como um europeu incompleto (em que algo falha ou falta) ou um espelho
invertido dele. (SILVA, 2003. p. 58).
RELAÇÕES CRONISTAS-COLÔNIA-ÍNDIOS
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pensavam, era um modo de amansar os índios, convertendo-os à fé cristã. Trazê-los para junto
das vilas, destribalizando-os e aculturando-os, aumentava a possibilidade de se defender dos
demais que se negavam a abandonar suas terras, os quais eram descritos, conforme a visão
dos cronistas e do estereótipo, o qual já estava bastante enraizado, relativo à barbárie. Neste
caso, este era um dos métodos da empresa colonial, com sua justificativa “civilizadora” e
evangelizadora para praticar todo tipo de ação contra os índios. Em relação a eles, o modo de
tratamento era fruto dos primeiros contatos, com todo seu estranhamento e falta de
entendimento do outro, das suas culturas. A bizarrice, a barbárie, o pecado, o empecilho para
o avanço da colonização, faziam parte dos relatos de Brandão e Soares de Sousa. Referiam-se
aos índios com tom depreciativo, que a primeira vista e aos leitores desavisados, a partir de
uma escrita aparentemente passiva, principalmente a de Sousa, chega a certo ponto de fazer-se
crer que suas interpretações e julgamentos sobre a vida dos indígenas fossem em todo
verdade. Nesse sentido, ambos os cronistas tinham suas ideias seguindo a mesma direção, que
se completavam numa complexa teia de interesses e pensamentos, entre “civilizado” e
“bárbaro”, cristão e gentil. Tudo se completava no mundo de encontros, subjugo,
assimilações, que davam impulso à empresa colonial.
Por muito tempo a historiografia usou esses escritoscomo inalienáveis e verdadeiros,
não cabia ao historiador problematizá-los, mas apenas narrar a verdade contida nos mesmos.
Tal prática contribuiu para que estes discursos cronísticos, ao serem tomados como fiéis,
fossem utilizados para a construção da imagem do indígenano Brasil. Alguns que se
utilizaram destes cronistas como fonte narrativa e que se tornaram referências no âmbito
nacional são: Capistrano de Abreu, com Capítulos da História Colonial, Paulo Prado, com
Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Esses textosexpunham a partir das
concepções dos cronistas, seus interesses específicos, formação cultural e o imaginário
relativo ao seu etnocentrismo. E o que se têm nos livros escolares – em grande parte deles –, é
a não consideração da religião indígena e de todos os seus aspectos culturais, e a visão de
ingenuidade dos mesmos, como ocorre no livro História do Brasilde Sonia Irene do Carmo e
Eliane Couto. A não interpretação dos relatos contribuiu fortemente para esta perpetuação da
imagem do indígena, que desde o período colonial já se montava no imaginário ocidental.
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pois “estava elevada à esfera divina, mais uma vez reiterava a presença de Deus no Universo”
(SILVA, 2003, p. 35),as pessoas que nela habitavam eram apresentadas de forma selvagem,
pois era a maneira que se justificaria a sua colonização e cristianização.
As obras de Sousa e Brandão vão expuseram questões em comum a cerca dos
costumes dos nativos, tratando-os como: demônios, luxuriosos, cruéis, bizarros, fracos de
ânimo, sem conhecimento, comedores de carne humana. Conceitos esses que foram
empregados por ambos em suas crônicas e que adentram as características do que se diz que é
bárbaro.
Gabriel Soares se ocupa em passar uma imagem bastante selvagem desses povos, não
economizando termos que os inferiorizam. Diz que são as criaturas mais bárbaras que existe,
“tem uns costumes em seu modo de viver e gentilidades; os quais não adoram nenhuma coisa,
nem tem nenhum conhecimento da verdade, nem sabem mais que há morrer e viver”
(SOUSA, 2000, p. 302). Percebe-se nesse trecho que o cronista está comparando os aspectos
culturais dos aborígines aos do europeu, já que sabemos que os índios tinham suas práticas
religiosas, suas crenças, o que mostra que o “conhecimento” ao qual se refere é o da cultura
europeia. Além disso, tratar os ameríndios como povos sem fé, sem conhecimento é
extremamente apropriado para justificar a ação colonizadora e doutrinadora realizada pelos
portugueses.
Um fato comum aos cronistas é tratarem os costumes dos indígenas como inferiores,
usando o referencial europeu para rebaixá-los. Inúmeras vezes usam compará-los a demônios,
uma vez que estes tinham lugar de destaque no imaginário da época. Observamos muito isso
quando eles se referem às praticas religiosas, como relata bem esse trecho dos Diálogos das
grandezas do Brasil: “e se algum modo de adoração fazem, posto que não se lhe conhece, é
ao diabo, ao qual dão o nome deJuruparim” (BRANDÃO,1997. p.216);ou no trecho do
Tratado descritivo do Brasil: “entre este gentio tupinambá há grandes feiticeiros, que tem este
nome entre eles, por lhes meterem em cabeça mil mentiras [...] há alguns que falam com os
diabos” (SOUZA, 2000, p. 314).
No capítuloEm que se declara o comque se os tupinambás se fazem bizarros,
Gabriel Soares utilizou vários aspectos do imaginário europeu ao dizer que:
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Mais uma vez se associam aspectos da cultura indígena ao demônio, sendo que este
tinha lugar de destaque na cultura europeia, e que o mesmo não acontecia entre os autóctones,
que o desconheciam. Alguns cronistas diziam que o demônio tinha perdido o lugar na Europa
já cristianizada e que tinha se instalado na América. Tratar os índios desta forma justificava a
empresa colonial. “Cumpria „corrigir o corpo do Brasil‟, afastar as populações do demônio e
aproxima-las de cristo” (SOUZA, 1986, p. 71).
Eram considerados luxuriosos também, por praticarem o incesto, algo que feria a
moral cristã. “Este gentio tão luxurioso que poucas vezes têm respeito às irmãs e tias, e
porque este pecado é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas
próprias filhas; e não se contentam com uma mulher, mas têm muitas” (SOUSA, 2000, p.
308).
Essas práticas culturais, vistas sob o olhar europeu, faziam com que os cronistas
associassem os indígenas a animais, com impulsos carnais fortes, sem sequer ter noção do que
estavam a fazer. Com isso a América portuguesaera apresentada como o verdadeiro lugar do
pecado, onde não se sabe nem mesmo se a fé seria capaz de combatê-lo.
Soares de Sousa, ao discorrer sobre os rituais que os tupinambá praticavam com os
inimigos mortos nas guerras, diz que são carniceiros e extremamente cruéis, e sobre isso tenta
chocar seus leitores:
[...] uma índia tupinambá [...] levando um filho de um ano às costas, que ia chorando,
do qual se enfadou a mãe de maneira que lhe fez uma cova com um pau no chão, e o
enterrou vivo (SOUSA, p. 332).
Brandão (1997, p. 238) igualmente tenta passar essa imagem de crueldade indígena
ao dizer que,
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[...] são também alguns deles sumamente cruéis [...] vindo de um assalto, que fora dar a
certa aldeia de inimigos com outros muitos, trazer seis crianças, que não chegava a
maior a ter ano perfeito de idade, dependuradas em um pau, que levava às costas, como
galinhas, a metade da parte de diante e a outra de trás; e que, depois de caminhar assim
com elas por grande espaço, as pusera sobre uma pedra, donde com uma faca lhes foi
quebrando a cada uma das crianças a cabeça a golpes pequenos, que nelas lhe dava, para
que assim lhes ficasse sendo maior o tormento, sem demonstrar nenhum rasto de
piedade aos gemidos e choros das pobres crianças.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A imagem do indígena na Europa foi reproduzida a partir de ideias e representações
previamente conhecidas sobre os bárbaros, suas características, seu naturalismo, vida sem
regra, paganismo, feições diferentes às dos europeus. Tanto é que, mesmo nas reproduções de
livros de cronistas com suas ilustrações, na iconografia em geral, das quais muitas foram
elaboradas sem se ter o mínimo conhecimento sobre as aparências e práticas indígenas,foram
retratados sendo associados à figura dos povos que eram considerados bárbaros na Idade
Média. As interpretações chegavam tão distorcidas e aquém da realidade, que mesmo os
relatos dos cronistas foram em muitas partes adaptados para melhor servirem ao imaginário
europeu. E as representações geradas por este imaginário foram tão fortes que perduraram,
mesmo que de modo diferente ao que era em sua época. Hoje, na produção de alguns livros
escolares ou na ideia que se tem do índio quando se pede para que alguém o descreva, dá uma
amostra dos efeitos desta construção.
Sobre a religiosidade indígena há a “não consideração” das suas crenças, assim como
aconteceu com a chegada dos europeus, os quais tinham por referência a religião cristã, que os
índios não possuíam. O que se perpetuou foi esta não consideração da religiosidade dos
mesmos, a qual era tida como coisa do demônio. Os cronistas diziam que eles não possuíam
cerimônias, crenças ou ritos, e hoje as celebrações indígenas não passam de folclore, que as
pessoas veem como estranhas.
E isso não ficou apenas restrito às crenças, há outros aspectos das culturas indígenas
que foram estigmatizados, considerados como um ato depreguiça, ao que os europeus
chamavam de “falta de ânimo”. Essa crítica se desenvolveu desde o principio, quando os
portugueses tinham por ideia ter os nativos como mão-de-obra. Os índios o fizeram de bom
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grado quando tudo ainda era uma novidade e se tratava apenas de carregar pau-brasil, mas
logo, a astúcia do índio percebeu o abuso por parte dos “visitantes” e suas segundas intenções,
para com suas pessoas e suas terras. Com isso, a relutância dos mesmos para ajudar os
portugueses foi crescente. No período mais agudo de disputas, os índios fugiam e se
refugiavam em lugares bem conhecidos por eles, o que dificultou a escravização. A falta de
entendimento do outro por parte dos portugueses ignorou a concepção cultural dos indígenas
em relação a algumas práticas, como no caso do homem manter-se resguardado após o
nascimento do filho.Outra foi a pouca necessidade da labuta devido às condições naturais em
que viviam que permitiam serem caçador-coletores, ou quando agricultores, sendo este
trabalho legado às mulheres. Mas o principal envolve, mormente, a questão do outro, da má
visão dos portugueses em relação à cultura indígena. Isso se perpetuou até os dias de hoje, e o
estereótipo do índio preguiçoso é bastante conhecido.
O termo “bárbaro” pode até ter desaparecido, mas se mantém a ideia de primitivo,
pois, há a imaginação de que o índio não deve se integrar às coisas modernas e aos assuntos
políticos e nem vestir roupas. Há o julgamento de que eles devem manter suas raízes, mas
num pressuposto de que não devem adaptar-se às novidades que a sociedade impõe. Se antes,
no período colonial, se queria trazer o índio para a cultura cristã, hoje se quer que ele se
mantenha como antes da chegada dos portugueses, ignorando toda uma assimilação cultural
de cinco séculos.
REFERÊNCIAS
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 6° ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1977.
CARMO, Sonia Irene do & COUTO, Eliane. História do Brasil: 1º grau. São Paulo:
Moderna, 1997.
SILVA, Wilton Carlos Lima da.Terras inventadas: discurso e natureza em Jean de Lery,
André João Antonil e Richard Francis Burton. São Paulo: UNESP, 2003.
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SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Recife: Massangana,
2000.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular
no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 8ª ed. São Paulo:
Companhia das letras, 1997.
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RESUMO:
A reflexão apresentada foi fruto de uma leitura da obra de Frantz Fanon (2008) e o pro-
cesso histórico de escravização dos africanos no Brasil, percebendo o fenômeno do
branqueamento social através de fatores psicológicos propagados por uma mentalidade
e ideologias de superioridade imposta pelo sistema colonizador. Em meio a um processo
de exclusão social, o afro descendente brasileiro tenta se afirmar numa sociedade exclu-
dente e com conceitos de supremacia branca propagada por uma cultura de massa.
1
Professor de História licenciado pela UPE – Campus de Petrolina, pós-graduando em “História da Cul-
tura Afro Brasileira” pelo Segmento – Instituto de Ensino Superior e Professor efetivo da rede estadual de
ensino de Pernambuco. mascruz75@yahoo.com.br
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exemplo, está representada pelas cores do pavilhão brasileiro sempre presente no vestu-
ário e indumentárias nos eventos esportivos ou pelo samba que se tornou patrimônio
brasileiro e divulgado por todo o mundo como ritmo percussivo genuinamente brasileiro
e personificado por mulatas fantasiadas em plumas. A identidade afro brasileira está
intimamente ligada a uma questão de “comunidade de destino” fundida de ideias e, ou
seja, de valores, reparações e afirmação de uma cultura historicamente depreciada por
paradigmas impostos nas sociedades ocidentais. Para Zygmunt Bauman (2005, p. 17):
O negro que entra na França muda porque, para ele, a metrópole representa o
Tabernáculo; muda não porque apenas de lá vieram Montesquieu, Rousseau
ou Voltaire, mas porque é de lá que vem os médicos, os chefes administrati-
vos, os inúmeros pequenos potentados – desde sargento-chefe „quinze anos
de serviço‟, até o soldado-raso oriundo da vila de Panissières. (FANON,
2008, p. 38).
O relato citado por Fanon (2008) exemplifica este fato de negação de identidade
cultural na região caribenha. Mas este comportamento não está restrito aos caribenhos
da Martinica em relação aos franceses. Podemos encontrar exemplos deste fenômeno
social em várias sociedades formadas com as mesmas características de colonização em
relação ao seu colonizador.
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A busca por novos lugares foi um dos primeiros elementos que colocaram o
homem diante do „outro‟. É esse outro que despertará a incessante busca por
disparidades e semelhanças. Taxa-se o „outro‟ como o diferente, o desconhe-
cido, o primitivo (RODRIGUES, 2012, p. 56).
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Embora o cristianismo católico tenha sido incorporado na vida dos negros escra-
vizados, estes nunca haviam esquecido suas raízes africanas deixadas de forma brusca e
violenta. Reconstruíram relações entre si e instituíram práticas culturais e sociais no
Brasil, formando assim manifestações religiosas originais. O candomblé é um dos maio-
res exemplos desta construção identitária.
Na cidade de Salvador, capital da Bahia, onde se concentrou boa parte dos afri-
canos escravizados, e que hoje possui um dos maiores números da população afrodes-
cendente nas Américas, as religiões afro-brasileiras conseguiram se estabelecer sem
conflitos e adquiriram uma importância imprescindível para a afirmação identitária do
povo negro, como afirma Álvares Roberto Pires (2008, p 7):
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Outra questão pode ser abordada a partir destas reflexões: o branqueamento so-
cial. Esta questão não está relacionada somente à tentativa de clareamento da pele, ten-
tar criar uma população de pele clara, mas no campo psicológico (FANON, 2008).
Muitos negros, para tentarem alcançar um status em meio à sociedade, aderem a
práticas sociais estabelecidas por conceitos eurocêntricos. Estas práticas, como já citado
neste texto, foram impostas desde o processo de escravização na África. Na atualidade,
esta tentativa de colocação neste meio social ainda é buscada por afrodescendentes que,
tentando se livrar do estigma da inferioridade racial, renegam suas origens, buscam ou-
tras identidades que o incorporem socialmente sem referências a sua origem étnica.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PIRES, Álvaro Roberto. A hora de rodar a baiana! Preservação das matrizes de origem
africana na religiosidade brasileira contra a intolerância. Revista África e Africanida-
des - Ano I - n. 2 – Agosto. 2008.
PODRIGUES, Helinagah Graice Antunes. As Teorias Raciais e a Eugenia: O Sertanejo
na Obra as Coletividades Anormais de Nina Rodrigues. Revista Historien vol.6, maio
de 2012. Disponível em <http://www.revistahistorien.com/caderno.pdf>. Acesso em
maio de 2012.
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Resumo:
Este artigo analisa as políticas públicas educativas a partir de uma visão sistêmica, sem
abordar a dimensão de totalidade, mas caracterizando as tendências que se encontram
imbricadas e que sustentam ou limitam as ações do poder público, sobretudo, no atendimento
à Educação Escolar Indígena no Estado de Pernambuco Os estudos apontam divergências
entre as políticas públicas e a realidade dos valores que estão na base de um projeto educativo
mais amplo, que deve priorizar a diversidade cultural entre os povos.
Introdução
1
SEE-PE/UPE-PARFOR/UMa-Portugal. Mestre em Metodologia da História. Doutoranda em Educação pela
Universidade da Madeira/Portugal. mfranca5ster@gmail.com
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(CEPAL); Organização Internacional do Trabalho (OIT), nas últimas décadas do século XX,
em suas políticas internacionais para disseminar princípios orientadores e produzir ações
educativas.
A problemática da diversidade cultural passa a ser entendida como a expressão de
valorização e proteção das diferentes culturas no mundo, em contraposição à uniformização e
imposição de valores supostamente universais.
Em contrapartida, nos anos de 1990, na América Latina e no Caribe, se proliferam
reformas educativas, influenciadas por organismos internacionais, como a UNESCO e a
CEPAL, na forma de empréstimos ou por meio de assistência técnica, estimulando a
participação dos governos nacionais em projetos conjuntos (OLIVEIRA, 2009).
Em busca da “equidade social”, foi realizado um Fórum Mundial sobre Educação, em
Dakar, Senegal, em abril de 2000, admitindo a necessidade de ampliar os objetivos
educativos, definidos e estabelecidos na referida Conferência (Ibid., p.25).
Oliveira (Id. Ibid.) explica que “uma das iniciativas mais recentes levada a termo por
esses organismos foi a criação, em novembro de 2002, do Projeto Regional de Educação para
América Latina e Caribe (PRELAC), envolvendo ministros da educação de vários países. Em
consequência, esta estrutura aponta para o reforço do reconhecimento do diverso em
contraposição ao homogêneo e ao universal, aspectos que estiveram presentes por décadas, ou
séculos, no contexto das instituições escolares.
Um dos marcos internacionais sobre os princípios que regem os direitos mínimos dos
povos indígenas foi a Convenção, de nº 107, sobre a Proteção e Integração das Populações
Aborígenes e outras populações Tribais e Semi-Tribais nos Países Independentes, adotada em
1957, pela OIT, que estabelece “a proteção das pessoas, dos bens e do trabalho dos povos
indígenas e reconhece o direito à alfabetização em línguas indígenas”. Institui, ainda, “que os
Estados signatários devem adotar medidas contra o preconceito do restante da população
nacional que possa afetar a imagem e os direitos dos povos indígenas” (BRASIL, 2005, p.
35).
Nos anos 70 e 80, as decisões dessa Convenção foram reavaliadas e receberam
críticas, por serem acusadas de assumir um viés integracionista e definir ser da competência
dos governos e não das comunidades indígenas as ações voltadas para o desenvolvimento
destes povos.
Nos últimos anos da ditadura militar, por volta da segunda metade da década de 70, os
povos indígenas passam a se reorganizar contra as ações integracionistas do “Estado
brasileiro”, estabelecendo articulações com as organizações não governamentais pela
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afirmação de seus direitos e abrindo espaços sociais e políticos para que a questão indígena se
consolidasse, exigindo mudanças. A partir da década de 80, sucederam-se projetos
alternativos que culminaram com a estruturação do respeito ao pluralismo cultural e à
diversidade na Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, a exemplo dos artigos 210,
231e 232.
Em contrapartida, em 7 de junho 1989, a chamada “Convenção sobre os Povos
Indígenas e Tribais em Países Independentes”, nº 169, reconheceu que “cabe aos povos
indígenas decidir quais são suas prioridades em matéria de desenvolvimento e que eles têm o
direito de participar dos planos e programas governamentais que os afetam”, reconhecendo
que a diversidade étnico-cultural dos povos indígenas deve ser respeitada em todas as suas
dimensões, ao contrário da Convenção anterior, a de nº 107. (BRASIL, 2005, p. 35;
ARAÚJO, 2006; PDAD, 1997)
Constata-se que, infelizmente, “vários dispositivos da Convenção nº169 ainda não
foram aplicados pelo Estado brasileiro”, a exemplo da obrigatoriedade “de o governo
consultar os povos indígenas todas as vezes que sejam examinadas medidas legislativas ou
administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente”. (BRASIL, ibid., p. 60)
No que concerne à educação, a Convenção nº 169 prevê a participação dos povos
indígenas na formulação e execução de programas de educação, reconhecendo a esses o
direito de criarem suas próprias instituições e meios de educação. (Id.)
O Art. 27 da Convenção n.°169 da OIT (2005) destaca que:
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Artigo 14
1. Os povos indígenas têm o direito de estabelecer e controlar seus sistemas e
instituições educativos, que ofereçam educação em seus próprios idiomas, em
consonância com seus métodos culturais de ensino e de aprendizagem.
2. Os indígenas, em particular as crianças, têm direito a todos os níveis e formas de
educação do Estado, sem discriminação.
3. Os Estados adotarão medidas eficazes, junto com os povos indígenas, para que os
indígenas, em particular as crianças, inclusive as que vivem fora de suas comunidades,
tenham acesso, quando possível, à educação em sua própria cultura e em seu próprio
idioma.
Tais determinações reforçam a idéia de que a educação escolar indígena deverá ter um
tratamento diferenciado da educação nas demais escolas dos sistemas de ensino, evidenciando
possibilidades de reconhecimento da diversidade e de que a escola possa responder à demanda
da comunidade. Contudo, representam um conjunto de intenções que, muitas vezes, se
dispersam em discursos políticos ou documentos oficiais ou oficiosos, sendo preciso descobrir
as prioridades e as alternativas que estão implícitas nestas políticas. Em termos de gestão estes
objetivos deveriam estar atrelados aos programas pedagógicos ou operacionais, e não
funcionais, no que se refere à realização da ação educativa (D’HAINAUT, 1980; SOUSA,
2000 e 2008).
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Num esforço de investigar a forma como a escola se integra aos processos educativos
dos povos indígenas, a seguir, destacam-se os eixos demarcatórios mais recentes para a
educação escolar indígena no Estado de Pernambuco.
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que deve priorizar a diversidade cultural entre os povos, quando enfatiza as tensões sobre a
regulamentação da equipe gestora, a categoria professor indígena, o concurso público e a
vivência de um currículo fundamentado na dimensão simbólica e prática da multietnicidade,
pluralidade e diversidade nas escolas indígenas do Estado de Pernambuco, elementos que
perpassam o desdobramento e a efetivação dessas intenções.
Considerações finais
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REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Valéria Ana, et al. Povos indígenas e a lei dos “brancos”: o direito à diferença.
Brasília: MEC/SECAD; LACED/ Museu Nacional, 2006. (Coleção Educação para Todos)
BARBALHO, Ivamílson José da Silva. Saberes da prática: tempo, espaço e sujeitos da
formação escolar entre os professores/as indígenas do Estado de Pernambuco. (Dissertação de
Mestrado em Educação). Recife: UFPE, 2007.
FINO, Carlos Nogueira. Muros para demolir: da fábrica de ensinar ao espaço aberto da
aprendizagem. Malta: Malta University, 2003, p.1-11.
GRUPIONE, Luís Donizete. (Org.). As leis na educação escolar indígena. 2. ed. Brasília:
MEC/SECAD, 2005.
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Ano IV
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Ano IV
Resumo:
A abordagem didática e pedagógica referente ao tema América indígena nas escolas é feita de
forma insuficiente. As maneiras pelas quais são transmitidas as informações por grande parte
dos educadores acabam sendo feitas de forma esparsa na medida em que se relatam
características humanas tão distintas. Nomeando-os somente por “índio” descaracterizam
vários povos com estilos de vida singular. Assim, o presente trabalho se propõe a discutir
formas para que estes conhecimentos sejam repassados não só com o intuito da percepção de
uma identidade indígena pelos alunos, mas relatando principalmente a importância e a
influência cultural e social desses em nossa comunidade.
1
Trabalho orientado pela Profª Draª Kalina Vanderlei Paiva da Silva.
2
Estudante do 8º período do curso de Licenciatura Plena em História pela Universidade de Pernambuco/Campus
Mata Norte. Atualmente trabalha como Monitora Voluntária nas disciplinas de História das Américas. Contato:
vanessa.dspereira@outlook.com
3
Título do Projeto: A História Da América Em Sala De Aula: Uma Associação Entre Conteúdo Disciplinar,
Pesquisas De Iniciação Científica E Formação De Professores. Pesquisa financiada pela Pró-Reitoria De
Graduação – PROGRAD e Programa de Fortalecimento Acadêmico – PFAUPE Inovação Pedagógica.
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Ano IV
programático que abrange desde a América Indígena Pré-Colombiana até a América Latina no
século XXI, fomentando o conhecimento básico dos professores de História e a formação de
professores em cidadãos socialmente conscientes desses povos. Desde 2004, essas disciplinas
vêm servindo de base, também, para a pesquisa de Iniciação Científica, entretanto, foi a partir
de 2010, com a aprovação do projeto de Monitoria pela PROGRAD/UPE, intitulado, A
América Indígena Em Sala De Aula, que se pode dar maior visibilidade com o objetivo de
ampliar especificamente o conteúdo das referidas disciplinas no que diz respeito à história
indígena nas Américas, desenvolvendo as capacidades docentes dos alunos-monitores, ao
mesmo tempo em que cria um grupo de discussão permanente entre os alunos da graduação.
Com base no sucesso desses projetos que envolvem alunos da graduação em História,
a presente proposta busca aliar os resultados das pesquisas desenvolvidas pelo GEHSCAL, do
conteúdo das disciplinas de História da América, com a formação de alunos-docentes e novas
metodologias de ensino saídas do projeto de monitoria. Pretende-se assim promover uma
proposta transversal entre graduação/pesquisa/extensão que leve as conclusões e análises dos
alunos que integram o grupo de discussão criado pelo projeto de monitoria e as pesquisas do
GEHSCAL para a sala de aula do ensino médio através dos monitores do presente projeto.
Isto sendo feito, não apenas aprofunda o conhecimento de nós, alunos da graduação em
História da Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte em uma discussão
historiográfica mais recente sobre a História da América, mas também resulta na melhoria do
ensino em nível médio ao levar - através de uma didática dinâmica - essas discussões para as
escolas. Além disso, o presente projeto funciona de certa forma como laboratório para nós,
futuros professores, que podemos assim nos relacionar em sala de aula através de uma prática
que envolve os alunos sem deixar de lado as discussões profundas sobre a História da
América Latina.
Focados na discussão da realidade social da América Latina atual, e no processo
histórico que levou à criação desse cenário, desenvolveu-se no Colégio Sandra Maria 4 uma
metodologia dinâmica que pode ser aplicada facilmente às diferentes salas de aula em
contextos distintos, partir do trabalho com imagens, associados a questões discursivas
levantadas por mim, a monitora-aluna-docente junto aos estudantes participantes. Todo esse
processo de trabalho e aprendizagem deu origem à pesquisa para a construção deste artigo
4
Escola particular de nível fundamental a médio - localizada em Prazeres, Jaboatão dos Guararapes -
Pernambuco. CNPJ: 11.573.375/0001-67 COD. do INEP. 261.385.65, dirigido pela diretora Sônia Costa,
supervisionado pela coordenadora da instituição Maxcelândia Maria do Nascimento e tendo como professora da
disciplina de História das turmas do Ensino Médio: Adriana da Silva Siqueira)
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Ano IV
assim na arte, segundo alguns, senão o único, o mais fiel registro dessas civilizações que não
possuíam técnicas de escritas bem definidas. (GOMBRICH, 2011:50).
Com isso, tendo a principio esclarecido esses pontos, a pergunta norteadora para todo
o trabalho foi lançada para as duas turmas, 1º e 2º ano do ensino médio: O que se entende por
“índio”? A primeira vista, o que se pode notar da reação dos alunos perante o questionamento
foi a falta de debates sobre o tema, problema este que se perpetuou de tal modo durante a
formação escolar que terminou gerando a transmissão de preconceitos ao longo do tempo. A
visão desses povos segundo os mesmos se traduziam ou na forma clássica que os referiam
como seres débeis, incapazes de gerir a si próprios ou de impotentes frente à chamada
“conquista”, o que segundo Ribeiro tende a ser comum já que ainda hoje o “índio” é tido
como cidadão por omissão que, por não ter sua situação juridicamente reconhecida termina
sendo vitima de dezenas de problemas quando se tange ao seu espaço previsto em lei.
(RIBEIRO, 1996:225).
Dessa maneira, buscando o entendimento dos mesmos sobre este ponto foi preciso
desconstruir aos poucos a ideia de unificação das culturas e dos costumes das civilizações,
fossem estas mesoamericanas ou não, exemplificando o quanto os elementos destes grupos
ainda se encontravam no próprio cotidiano dos discentes. Apresentando-lhes, baseados em
diversas leituras sobre estes, os antigos e atuais meios de avaliação do termo “índio”
(MELATTI, 2007:32-37), pode-se ver os principais critérios utilizados para o debate:
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educativos para os povos submetidos a essas regras. A mitologia vem aqui na forma mais
aparente tanto pelo visual quanto pelo educativo explicando mesmo aos leigos o que deveria
se passar no território no qual se encontra.
Já no caso dos tupis, procurou-se descrever seus rituais funerários, mais
especificadamente o da aldeia de Araruama e as diferentes perspectivas sobre a relação vida-
morte. Para tal, utilizou-se como ilustração o exemplo das urnas utilizadas para o enterro, que
se compunham de estruturas funerárias compostas de tampas, tigelas pintadas e fogueiras
cerimoniais. Contudo, antes de serem usados com essa finalidade os vasilhames serviam de
reserva para o preparo do cauim, bebida típica indígena produzida pelas mulheres e composta
principalmente de mandioca, milho ou frutas como caju. Após intensas duvidas entre os
estudantes os mesmos acharam interessante a forma desta preparação onde logo após cozidos,
os ingredientes eram retirados do recipiente e mastigado e cuspido em outro recipiente para
que a saliva expelida ajudasse na fermentação. Era consumida em grande intensidade nos
rituais. Essas bebidas fermentadas, assim como era o cauim, mas que possuíam em outras
tribos diversos nomes de acordo com o lugar de onde provinham, celebravam a vida e a morte
(STRAUSS, 2004, p.101).
Os discentes foram apresentados também a outros aspectos culturais como a presença
das pinturas corporais, dos grafismos, do jogo de bola maia e de como essa arte simbolizava
nos adornos, tanto dos maias como para os tupis, a religiosidade contida fosse durante as
festividades originadas pelas crenças religiosas como também o próprio ciclo da vida. Sobre
estas, foram apresentadas não só as figuras de Quetzalcóatl, divindade das culturas
Mesoamericanas em especial do estado asteca, venerada também pelos toltecas e maias, bem
como Maíra e Sumé, os gêmeos criadores do mundo segundo a mitologia tupi, mostrando
assim o quanto o mito se faz importante nos meios sociais inseridos afinal, não se tratam
especificadamente de uma mentira e sim de uma ampliação da realidade. “Nada garante que
assim seja, isto é, que não haja racionalidade e verdade nos mitos por operarem com a emoção
e uma linguagem sensível.” (SILVA, 1995, p. 323).
E sobre este tema, quando se trata de descrever sobre a cultura dessas comunidades o
principal elemento que poderia não só revelar traços do surgimento bem como exemplificar o
modo de vida e produção dessas comunidades parece ser descartado por parte dos estudiosos,
como vem a ser o caso dos mitos. “O mito trata do desconhecido; fala a respeito de algo que
inicialmente não temos palavras.” (ARMSTRONG, 2005, p.09).
Tido como ampliação de uma realidade, pois é com a ajuda do mito que se poderia
construir uma noção de representação sobre os episódios vividos pela humanidade e sendo
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essencialmente militar, quanto a figura do guerreiro águia que além de tudo representava uma
das poucas formas de mobilidade social dentro desta comunidade. As roupas aqui foram
colocadas como objetos informativos sobre quem eram as pessoas e o que elas representavam.
Entre outros exemplos dados, a distinção aparente feita, sobretudo pelos ornamentos
de cabeça, foi vista e melhor apreciada pelos estudantes, principalmente quando constatado o
fato de que quanto mais coloridos e emplumados fossem, melhor demonstrariam a honraria e
influencia do cidadão que o utilizava. Retomando as trocas de informações feitas em sala foi
utilizado mais uma vez argumentos como os vistos por Mussa e Levi-Strauss onde a
passagem da vida para a morte com os tupis, diferentemente para os europeus, era tida como a
mais esperada glorificação de sua existência. Para tal, rituais e cantorias eram feitas de tribo
para tribo, onde o morubixaba – chefes guerreiro da aldeia – convidava todos os moradores
para a comemoração e exaltação de seus valores, onde para tal, pinturas corporais e os
acessórios eram utilizados para atrair coragem e força. E esses elementos também seriam
retratados pela mitologia, caso da criação dos canitares tupis, onde se tem que:
[...] Guapicara tentou segui-lo, mas virou uma grande pedra que passou a separar o mar.
Outros também tentaram seguir Poxi; e foram petrificados, ou foram transformados em
várias espécies de peixes e animais. Depois de um tempo, Maira fez o filho de Poxi
voltar à forma humana e se tornar um grande caraíba. Guapicara criou, então, o
ornamento de cabeça: o canitar; com pluma de diversas aves. (MUSSA, 2009, p. 49).
Ao ler o trecho em sala, foi relatado que Guapicara ao presentear Maíra com um
canitar de fogo lhe deu um símbolo de austeridade perante os povos daquela região,
construindo com isso a ideia de que sendo a Arte como conceito um senso comum em todos
os povos, esta serviria aqui para a exaltação de uma qualidade, neste caso a coragem e a força
de Maíra perante aos homens comuns. Foi visto que a devoção aos “deuses” era necessário
para o equilíbrio das comunidades, caso contrário tragédias poderiam acontecer, como
ocorreu com o segundo dilúvio. Sobre ele, a descrição do que restara no fim de tudo era
desoladora: “As fogueiras tinham se apagado, as plantas haviam apodrecido, tudo era
desolação, miséria e morte.” (MUSSA, 2009, p. 64) Vê-se assim que este caso também se
trata de um arquétipo traduzido por um recomeço, onde todos na sociedade em questão
estariam fadados não ao fim, mas a transformação podendo ser esta interior ou exterior.
Encerrando o conteúdo, comentou-se através dessa historia a relação a partir de
imagens desses e de outros objetos que teriam a mesma função nos dois continentes
percebendo, porém, as singularidades de cada local. Foi demonstrado não só a utilização de
artefatos em obsidiana correlacionada as joias por parte dos maias, mas também dos vitrais
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das diversas capelas góticas europeias além da representação do guerreiro medieval como
símbolo máximo da proteção e de suas similaridades com a do guerreiro asteca. Todos esses
objetos cada um a seu modo buscam a retomada da figura máxima de seu povo fosse na forma
de seu Deus ou de um chefe de estado. Falando também dos símbolos que remontavam a ideia
de batalha, como era o caso das flores, que ao contrário do que se possa imaginar
significavam para esses soldados maias “o sangue da terra” fazendo dessas batalhas um misto
de simbolismos e detalhes. (COE 1966, p. 154)
E assim a aplicação das aulas com o intuito primeiro de quebrar paradigmas antes
estabelecidos, substituindo as antigas colocações impróprias por uma maciça base teórica de
pesquisadores competentes no assunto aliada a uma discussão e aprofundamento nos povos
que se buscaram relatar pode-se, sem duvida e significativamente, mudar um quadro tão
defasado no ensino básico, proporcionando aos alunos sua percepção de sua identidade
mesoamericana.
Sentir-se incluído para o desenvolvimento pessoal no que tange as primeiras noções de
espacialidade e de percepção no seu ambiente social é de vital importância para as primeiras
noções de cidadania que deveriam ser estimuladas pela escola, afinal uma das intenções da
educação é a autoformação das pessoas ensinando-os a serem bons cidadãos. Sendo assim,
este trabalho buscou demonstrar – mesmo que em uma pequena proporção – as dificuldades
encontradas para a abordagem desse tema em sala de aula.
Por fim, este trabalho buscou demonstrar – mesmo que em uma pequena proporção –
as dificuldades observadas por esse tema em sala de aula. Sendo assim, o que pode ser levado
como uma das principais premissas foi a de que por mais que os livros ensinem e demonstre
como entender o espaço ao seu redor é papel do professor interligar o conhecimento dando
acessibilidade aos discentes, fazendo com que estes tenham uma melhor percepção dos
assuntos ao serem inseridos no contexto trabalhado; vendo não só a história, mas também
fazendo parte da História.
Referências Bibliográficas:
ARMSTRONG, Karen. Breve História do Mito. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
COE, Michael. Os Maias. Lisboa: Verbo, 1966.
FERNANDES, João Azevedo. De Cunhã a Mameluca: A Mulher Tupinambá e o
Nascimento do Brasil. João Pessoa: Ed. Universitária, 2003.
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Ano IV
GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. 16. Ed. Rio de Janeiro: LTC, 2011.
MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2007.
MUSSA, Alberto. Meu Destino é Ser Onça. Rio de Janeiro: Record, 2009.
RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SILVA, Aracy Lopes. A Temática Indígena em Sala de Aula. São Paulo: Global, 1995.
SILVA, Kalina Vanderlei & SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos
Históricos. 2. Ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2008.
STRAUSS, Claude Lévi. Mitológicas I – O Cru e o Cozido. Tradução: Beatriz Perrone-
Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
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Resumo:
Este artigo descreve a formação e a dinâmica do aldeamento de índios Gueren na Vila de
Barra do Rio de Contas, na primeira metade do século XVIII. O estudo se orienta na
perspectiva do direito à terra e dos conflitos concernentes aos diferentes interesses de índios,
colonos arrendatários de terras e missionários, representantes do Colégio da Bahia, detentor
legítimo da sesmaria onde se inseria o aldeamento. O foco desse texto é um processo de
demarcação de terras, a partir do qual se identifica os atores sociais, suas demandas e suas
justificativas amparadas no direito e nos costumes sobre a posse e a propriedade da terra,
considerando também a legislação indigenista e sua aplicação na resolução de conflitos desta
natureza.
Palavras-chave: Gueren, aldeamentos setecentistas, conflitos, terras.
Abstract:
This article describes the formation and dynamics of Gueren Indians in the Village of Barra
do Rio de Contas, in the first half of the eighteenth century. The study is oriented by
perspective of land rights and the conflicts concerning to the different interests of natives,
settlers and missionaries, College of Bahia’s representatives, legitimate possessor of theses
maria where the village was established. The focus of this paper is a land demarcation
process, from which it’s possible to identify social actors, their demands and the ir
justifications supported by law and customs over the possession and ownership of land,
considering also the Indians legislation and its application in resolving this kind of conflicts.
Keywords: Gueren, eighteeth century villages, conflicts, lands.
***
1
2010-2011: Pesquisador: O espólio das terras jesuíticas do Camamu: direito, atores e conflitos na segunda metade do século XVIII.
(UESC-ICB); Graduando em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC, membro do grupo de pesquisa História Agrária e
Ambiental no Brasil Escravista. Contato: barrosrafaeldossantos@hotmail.com.
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Ano IV
A legislação indigenista da Coroa, por sua vez, ao tempo em que distinguia índios
mansos e gentios bravos, garantindo direitos aos primeiros e justificando a escravização dos
últimos, deixava brechas que permitiam a flexibilidade de soluções de acordo com cada
situação singular.
Discussão historiográfica
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índios. Os jesuítas defendiam a “liberdade” dos índios, no entanto, eram acusados pelos
colonos do controle absoluto sobre aquela mão de obra e de impedi-los de utilizá-la para
garantir o florescimento da Capitania. Para isso, os inacianos baseavam-se em princípios
religiosos e morais, garantindo o controle dos aldeamentos. Já os colonos defendiam a
escravização dos índios e com isso garantiriam o rendimento econômico da colônia. A Coroa,
dividida entre o temporal e o espiritual, produziu uma legislação para tentar conciliar ambos
os interesses, ao tempo em que precisava, também, estabelecer e manter uma política
favorável às alianças com certos grupos indígenas (PERRONE-MOISÉS, 1992:115).
No período colonial, os gentios foram identificados em dois grandes grupos: índios
amigos e gentios bravos. Nesse sentido, podem-se perceber duas políticas indigenistas
distintas. Aos índios aldeados, era dada a liberdade e o direito de serem senhores de suas
terras nas aldeias e passíveis de serem convocados ao trabalho remunerado, devendo ser bem
tratados. No entanto, aos tapuias 2 restavam os aldeamentos ou a guerra justa, caso houvesse
resistência (ALMEIDA, 2003:25).
Os “índios de pazes” eram bastante úteis em qualquer região ameaçada por tapuias,
tal como era o caso da Capitania dos Ilhéus. A ameaça Aimoré perturbou por longa duração o
imaginário da população local. Dessa forma, os “índios amigos” eram trazidos de suas aldeias
do interior para perto das povoações portuguesas e, posteriormente, eram catequizados e
“civilizados”, tornando-se vassalos úteis. Deles dependiam os moradores, tanto pelo trabalho
de produção de gêneros de primeira necessidade, quanto pela segurança das vilas. Além disso,
eles eram os responsáveis pelos novos descimentos, pois conheciam bem a terra, a língua e
eram exemplo aos outros índios (PERONE-MOISÉS, 1992:118).
A localização e a administração dos aldeamentos seguiram critérios bastante lógicos.
Nesses espaços, deveriam viver apenas índios e missionários; sendo que a reunião de
diferentes povos indígenas nas aldeias estava expressamente condicionada à vontade dos
índios em questão, já que estas deveriam ser formadas, preferencialmente, por indivíduos da
mesma nação, de modo que o horror da convivência com inimigos não levasse os índios a
fugirem dos aldeamentos. No que se refere à administração, inicialmente estava a cargo dos
jesuítas, os quais eram responsáveis pela organização política e social das aldeias.
2
Segundo Monteiro (2003) os colonos dividiram os índios em duas categorias etnográficas genéricas:
tupis e tapuias. Os primeiros eram os índios matinham frequentes contatos com os portugueses e se
localizavam no litoral, enquanto o segundo eram caracterizados como verdadeiras “bestas
antropofágicas”, localizando-se nos distantes sertões, sem muito contato com os portugueses. Noticia
John Monteiro que a “satanização” desses índios servia como justificativa à dominação dessas
população.
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Os Gueren, subgrupo dos Botocudo, foram descritos pelos jesuítas, cronistas e alguns
ilustrados da sociedade dominante como verdadeiros “demônios antropofágicos”. Assim, a
maioria dos trabalhos recentes a respeitos da Capitania dos Ilhéus também vêem esses índios
com essa perspectiva, na medida em que só recentemente os historiadores voltaram os olhos
para a história indígena (PARAISO, 1982).
As primeiras notícias acerca dos Gueren encontram-se nas obras de Gândavo (1576),
Gabriel Soares de Souza (1587), Spinola (1620) e Navarro (1605). Para esses autores, os
ataques que esses índios provocaram, além de destruir os canaviais, se constituíram como
fatos desagregadores do sistema produtivo, motivando o deslocamento dos colonos da
Capitania dos Ilhéus para outras áreas e decretando a falência das atividades agrário-
exportadora (Apud, Paraíso, 1982).
Serafim Leite observa que, no século XVIII, encontrou a capitania dos Ilhéus
molestada pelo assalto dos Aimoré. “Esse dispondo da mata difícil para esconderijo, e dado o
seu estilo de vida, nômade e arisca, refratária a aldeamentos fixos, sempre perturbaram os
Ilhéus ou seus confins”. Segue o autor afirmando que os Gueren viviam há muito na capitania
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Ano IV
sem terem domicilio certo e cometiam periodicamente alguns excessos nas povoações e
fazendas.
Outro autor que defende essa perspectiva é João da Silva Campos, o qual afirma que
os Gueren,
Viviam atemorizando os moradores da vila e distrito de Ilhéus com um terrível
bandoleiro, que se amoitara em sitio inacessível, nos mais ínvios recessos daquelas
frondosas matas, acaudilhado por truculenta malta de índios Guerens que lhe obedeciam
cegamente. Destarte, justifica uma possível estagnação econômica da Capitania de
Ilhéus à resistência dos populações indígenas que habitavam sua costa, a saber, os
pataxós e os “terríveis aimorés,” os quais destruíram engenhos e roças, obrigando a
população a refugiar-se na cidade da Bahia. (CAMPOS, 1937: 241)
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Índios Gueren na sesmaria dos jesuítas: arranjos e conflitos na Barra do Rio de Contas
Se, entretanto, o proprietário não poder por si lavrar todas as ditas herdade que houver,
por serem muitas ou em desvairadas comarcas, a lei permite que lavre parte delas por si
ou por quem ele quiser e lhe mais aprouver [...] e as mais os faça lavrar por outrem, ou a
dê a lavradores que os lavre e se mei por sua parte, ou a pensão certa ou foro. (PORTO,
1980:28)
Foi o que fez o Colégio da Bahia. Passaram a alugar suas terras a arrendatários, os
quais pagavam foros de 1% ao ano. Discorre Marcelo Henrique Dias que o modelo de
colonização alocou colonos de condições modestas na sesmaria do Camamú. Assim,
obrigatoriamente, os foros cobrados pela posse e uso das terras não eram tão elevados se
comparados à região de economia de exportação. Posteriormente, “quando boa parte das
terras que margeavam os rios navegáveis já estava ocupada, os valores dos foros foram
aumentados, ao ponto do Colégio da Bahia reconhecer que as terras produtivas estavam mal
aproveitadas”. (DIAS, 2011:60).
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Ano IV
Alguns conflitos pela posse e uso da terra foram identificados em tal região, ao exemplo do
que informa uma representação do Vigário do Camamú, Padre Marcelino Francisco de Mello,
na qual reclamava contra a demolição das paredes de um engenho que pretendia construir em
terrenos, ilegalmente comprados por Manoel da Silva Malta, por se provar que era logradouro
publico dos habitantes, não podendo, portanto a Câmara aliená-los. Refere-se também às
acusações que o mesmo vigário fazia a diversos funcionários e que as investigações judiciais
demonstraram não terem fundamentos. Percebe-se, na leitura dessa fonte, o quanto as terras
do Camamú eram valiosas e disputadas, diferente do que apontam alguns autores (AHU -
1748, Cx. 54, D.110.70.).
No ano de 1728, o Conde de Sabugosa, em carta, descreve a fundação do aldeamento de
Nossa Senhora dos Remédios na então povoação que dará origem a Vila de Barra do Rio de
Contas anos depois. Segundo o Conde,
O padre responsável por tal empreitada foi frei José de Maria, o qual conseguiu
aldeá-los, catequizá-los e batizá-los. Para fundar a aldeia requisitou-se ao Colégio dos Jesuítas
uma légua em quadra das que Ilhéus possuía. Dessa forma, o aldeamento de Nossa Senhora
dos Remédios passou a possuir terreno próprio, fora da área da sesmaria do Camamú.
Silva Campos aponta para outra possível versão da fundação do aldeamento de
Nossa Senhora dos Remédios dos índios Gueren:
No ano de 1728 andava em missões volantes pela capitania o capuchinho Italiano Frei
Domingo de Osena e um frade arrábido português, Frei José. Pregando uma das missões
na povoação da Barra, foram na assistir diversos índios Guerens mansos, que andavam
nos matos próximos, nus, “a modo bruto”. Então, pediram os ditos padres que lhes
ensinassem a doutrina e os aldeassem... O Conde de Sabugosa,ponderando no alívio
que teriam os moradores comarçãos com semelhantes providências, vendo-o livre do
roubo e outros graves incômodos que dos ditos selvagens sofriam, entendeu-se com o
prefeito do Hospício da Piedade, nessa capital, para mandar ao dito fim um dos seus
religiosos. E porque nenhum existisse disponível, recebeu tal incumbência o
mencionado arrábido, acompanhado de um leigo Capuchinho barbado. Que os índios
faziam questão de ter missionário de face sedeúba. Fundou-se assim o aldeamento. Frei
José foi substituído no ano seguinte pelo Capuchinho Frei Bernardino de Milão, que
nele assistiu até 1748. Agora, em 1757, o Capitão-mor André Ramos requeria ao
governador em nome dos índios da dita aldeia que lhe desse pároco. (Apud, CAMPOS:
125)
Apesar das informações das fontes consultadas não chegarem a um consenso quanto
à origem do aldeamento, se ocorreu a pedido dos índios ou não, pelo menos algumas
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Ano IV
informações são coerentes no que diz respeito ao administrador e sua ordem religiosa. Foi
nessa conjuntura de conflitos agrários que se erigiu a Vila de São José da Barra do Rio das
Contas, a qual está situada ao sul da Capitania dos Ilhéus, dentro dos limites das terras do
Colégio da Companhia de Jesus, como afirma Borges de Barros:
Aos vinte e seis dias de 1732 do mês de Janeiro do dito ano nesta mesma povoação da
Barra do Rio das Contas, onde o ouvidor desta Capitania do Ilhéus, o Capital Manoel da
Fonseca Jordão , mandou convocar o povo desta dita povoação para feito de levantar
Vila, e sendo junto todos os moradores delas e os oficiais da Comarca, que para
servirem na dita Vila pelo mesmo povo foram eleitos em virtude da carta de criação, fez
o dito ouvidor na dita povoação, Vila intitulada Vila nova de São José e Rio das Contas,
levantando Pelourinho e fazendo todos os mais atos necessários para este efeito que, por
ordem da Donatária desta Capitania dos Ilhéus, a Senhora Dona Anna Maria Athayde
Castro, vice-comendadora do Real Convento de Nossa Senhora da Encarnação e
Ordem Militar de Aviz na dita Carta de Ereção lhes é ordenado sem impugnação de
pessoa alguma, e por haver feito notificar aos Procuradores das Câmaras das Vilas,
Ilhéus e Camamú, cujos termos confinam com o desta Vila nova se assina, como
constam das certidões dos oficiais, que fizeram as ditas notificações pelos ditos
procuradores senão acharem ao tempo e dia, que lhe foi assinada com assistências dos
oficiais da Câmara desta Vila Nova de São José e Rio de Contas, assinou o dito Ouvidor
com parecer dos ditos oficiais da câmara três léguas de terra para a dita Vila Nova, que
começam na beira do Rio das Contas, que corta abaixo para a parte Sul e acabam no Rio
do Itacaré donde confinam com termo da Vila de São Jorge dos Ilhéus ; e do Rio das
Contas para a parte Norte outra três léguas pela costa, que alcançarão até
Maramambegra botando-se da costa rumo direto a busca o rio do caibro, ficando dentro
do dito termo o morador chamado Antônio,digo, chamado Alferes Antônio Rodrigues
Beirão, e os mais,que para a parte da costa ficarem dentro do dito termo conforme, digo
termo, e para a parte do sertão que lhe assinou o termo conforme pela carta de ereção
lhe é assinado o termo confina com o termo da Vila de Camamú e dê o para o exercício
da “Republica” a beneplácito dos mesmos oficiais da câmara desta Vila Nova cento e
cinqüenta palmos de terra para os usos Públicos e casa de câmara e cadeia, os quais
principiam do pé do pelourinho...(BARROS,1915:28)
[il] Majestade em sem embargo ou [Il] alguma [Il] regiztrarao aoz livros [Il] e nos [aiz]
aquitaçam, Francisco Lopes Diasa afranitulidade [cojaluado] Bahia de todoz os Santos e
nos vinte sete Diaz do mez de [julho] anno de milsetecentos vinte oito Domingo Luiz
Moreira fiz escrever // Vasco Fernandez[Cezar] de Menezes//Luiz de Gallo// proviram
[Il] [IL] [fui] Vosa excepcelencia mandou ao Ouvidor da Comarca dos Ilheos va
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Ano IV
Assim, nota-se um caso peculiar nessa região, onde eram os índios, através de seu
procurador, que ditavam as regras da cobrança de foros na sua sesmaria. Alguns casos que
envolvem terras indígenas foram observados por certos pesquisadores, no entanto, com
desfechos diferentes do caso ora apresentado. Uma dessas pesquisadoras é Almeida, a qual
discorre acerca de três casos: O primeiro ocorre em Pernambuco, onde mais de sessenta
aldeias foram reunidas para construir vinte e quatro povoações, vilas e lugares que se
instalavam, designando-se a extensão de suas terras, estabelecendo Câmara e vila e
misturando índios e colonos, dando terras aos últimos; o segundo caso exposto pela autora foi
o da Capitania do Rio Grande, onde as terras dos índios foram arrendadas ou vendidas para
custear obras públicas e construir patrimônio das novas vilas; e, por fim, no caso do Rio de
Janeiro, em que se estabelecia que cada uma das aldeias erigidas em vilas ou lugares fosse
construída uma paróquia com o título de vigararia, recebendo seus párocos côngruas
diferenciadas, conforme o tamanho das localidades (ALMEIDA, 2003:160).
O território da Vila em apreço estava situado nas rotas comercias da Bahia. Assim, as
terras dessa região estavam diretamente ligadas ao abastecimento da povoação e o excedente
era levado ao mercado da Cidade da Bahia. Por isso, as melhores terras foram motivos de
litígios. O caso dos índios é emblemático, na medida em que conseguiram manter suas terras
mesmo sendo essa região objeto de desejo. Grosso modo, os Gueren se investiram dos
instrumentos do colonizador para lutar pela garantia da demarcação de suas terras: resistência
adaptativa. O documento abaixo descreve uma das diversas tentativas contra o território
indígena:
Da Contrariedade do Reverendo Reytor disse que já sabe como o Reo Jeronimo Pereira
Sodre estivesse [il] no Citio com sua mery // E do segundo artigo disse as testemunhaz
que sabe por ser publico para o gentio gerem se demarcas maiz que o dito gentio pouco
asentença faz nella [e] sempre [apellar] pelas partes do Camamú Calnam disse// E do
terceiro artigo disse elle teztemunha que sabe por saber ser serto em [por] tudo que o
Reverendo do Autor [il] nezte artigo e verdade Calnam disse//. (APB DOSSIÊ, sobre
irmandades, conventos, igrejas e pessoal eclesiástico. Questão dos jesuítas, medição de
terras. Sentença. 1745. Livro I, 674,1).
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Ano IV
No documento acima referido está descrita uma demanda que o réu chamado
Jerônimo Pereira Sodré faz contra o colégio da Bahia. Nesse primeiro artigo, do extenso
processo, um colono morador da Vila de Barra do Rio das Contas descreve que o dito réu está
de posse de terras que faz fronteiras às terras da aldeia. Nota-se que as terras indígenas eram
reconhecidas por esse colono, no entanto, algumas justificativas explicam os motivos que
levaram à ocupação dessas terras. Uma delas se refere à pouca sentença que os índios fazem
de suas terras, ou seja, os índios não praticavam o modelo agrícola determinado pela Coroa,
sendo esta uma justificativa suficiente para invadir o aldeamento dos Remédios.
Em outra cláusula do citado dossiê, um lavrador da Vila de São José da Barra do Rio
das Contas, chamado João de Araújo Magalhães, afirma uma nova justificativa em prol do réu
na seguinte forma: “os Guerens sempre andam pelas partes de Camamú. Nunca cultivando as
suas terras demarcadas”.
Pode-se pensar, então, em duas possibilidades: ou o morador justificava a ocupação
por parte do réu Jerônimo Pereira Sodré, ou realmente os índios andavam na vila do Camamú
trabalhando a jornal para algum colono. Essa segunda hipótese pode ser pensada, na medida
em que as aldeias cumpriam a função de fornecer mão-de-obra. Contudo, esse processo
sempre foi caracterizado por negociações e conflitos. Observa Almeida que os índios aldeados
participavam ativamente das decisões referentes ao seu trabalho e remuneração, assim, sua
subsistência não se limitava aos trabalhos de fora de suas aldeias, pois estas, como patrimônio
que lhes fora concedido por lei, garantiam-lhes, além da moradia e da terra para a produção
agrícola, outras possibilidades de rendimentos que aprenderam a explorar, valorizar e
defender (ALMEIDA, 2003:195).
Os Gueren, no que diz respeito ao trabalho no aldeamento dos Remédios, eram
totalmente insubordinados às ordens do padre responsável, frei Bernardino de Milão, pois:
E do sexto artigo disse ele teztemunha que sabe pella ver [como] os poucos cazais [de]
Gentio gerens nunca asiztem na sua Aldea nem tem obdiencia ao seu [Misionario] e
menoz plantam nas terras que lhe foram demarcadaz [detal] sorte que para o dito
Misionario se poder [sustentar] trabalha com seus escravos e que por mais ordens que
haja pera os ditos índios se poderem Aldearem [obrem] nella Sinam pode executar por
[andarem] pellos tratos da terra do Camamú Calnam disse// (APB DOSSIÊ, sobre
irmandades, conventos, igrejas e pessoal eclesiástico. Questão dos jesuítas, medição de
terras. Sentença. 1745. Livro I, 674,1.)
Nos documentos referentes ao aldeamento, consultados até então, não se tem noticias
de nenhum castigo que os índios tenham sofrido por parte do missionário, e isso nos indica
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uma possível subordinação por parte do administrador a esses índios, pois, o medo de se
praticar ameaça a um Gueren (subgrupo dos Aimoré) rondava o imaginário dos colonos
conforme nos aponta Monteiro:
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devolutas. Observa Motta (2009) que esse termo era inicialmente relativo a terras não
cultivadas, que retornariam às mãos do rei, contudo esse passou a designar-se terras não
povoadas, onde não se tem notícias da pessoa a quem pertencia. Era esse um dos argumentos
que o réu usava para invadir aquelas terras que, segundo Cirne Lima (2002), a aquisição de
terras devolutas pela posse com cultura efetiva se tornou verdadeiro costume jurídico em
nosso país. (LIMA, 1988)
No que diz respeito à precisão da extensa sesmaria do Camamú, não há um consenso
exato entre os autores, variando a sesmaria de 12 a 25 léguas. Isso ocasionou muitas disputas
territoriais parecidas com o caso do aldeamento dos Remédios. No que diz respeito à
imprecisão dos limites, segundo Neves, é uma situação que tem raízes no antigo costume
português dos sesmeiros requererem cartas sem precisarem suas áreas, cujo modelo
“incorporou-se aos métodos de transações fundiárias e perpetuou-se na cultura agrária
brasileira” (NEVES, 2005:100).
Nesse contexto de disputas pelo uso das terras indígenas, surge outra modalidade de
conflitos: inacianos versus capuchinhos. A aldeia ficou sob responsabilidade do Frei
Bernardino de Milão, o qual permaneceu até 1748. Segundo o réu embargante, Jerônimo
Pereira Sodré, o dito frei lhe concedeu licença para explorar as terras indígenas, desde que
lhes pagasse os devidos foros, como sugere o documento abaixo:
Assim, o réu começou a fazer canoas dentro das léguas de terras demarcadas para os
índios e a vendê-las em Salvador. Justifica o réu que o acordo que firmara com o frei foi
“efetuado de boca”, sem que fosse assinado nenhum documento que o comprovasse. A
Companhia de Jesus, detentora legitima daquelas terras, pedia que o réu comprovasse a
veracidade de tais fatos para continuar fazendo canoas dentro da propriedade indígena, caso
contrário deveria devolver a canoa e pagar o seu valor em dobro. Para invalidar o acordo
entre o réu e o frei, o Reitor do colégio da Bahia declarou que
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aquela légua de terra foi demarcada não podia e tanto não deu por escrito como
sabiamente, diz a testemunha. (APB DOSSIÊ, sobre irmandades, conventos, igrejas e
pessoal eclesiástico. Questão dos jesuítas, medição de terras. Sentença. 1745. Livro I,
674,1).
Segundo o Reitor do Colégio da Bahia, o valor da canoa deveria ser pago em dobro,
caso contrario o réu iria ser acusado de furto. Posteriormente discorre que não foi a primeira
vez que ocorreu, pois:
No furto da primeira canoa nam foi caztigado com a pena crime que merecia para
[suzcermida] exemplo de outros que [se nam] fosse caztigado talvez se naum atraveria a
cometer ezte segundo furto da canoa de que se trata nam seria ouzado articular contra o
reverendo autor o que se acha escripto em sexto artigo [sua] replica folhaz [desse juiz]
contou [IL] furioso e maligno que asinou ezta mezma sua replica como se vê a folha
dezasete para que se soubesse que era [forjura sua] e nam [ se outrem] asim fizesse em
mattoz publicoz e juizo plenário [il] nelle [cupira] reverendo autor lhe[seia] ao
reverendo eztranhado hum tem grande atrevimento. (APB DOSSIÊ, sobre irmandades,
conventos, igrejas e pessoal eclesiástico. Questão dos jesuítas, medição de terras.
Sentença. 1745. Livro I, 674,1).
Com o fim do processo jurídico, o réu devolveu a canoa que fez nas terras dos
Gueren. Isto demonstra o quanto a Companhia de Jesus tinha influência e o quanto esses
índios estavam integrados na sociedade colonial, uma vez que lutaram no Tribunal Civil por
seus direitos de permanecer em suas léguas de terras demarcadas, apesar dessas serem objetos
de cobiça de muitos colonos.
Considerações finais
Por fim, podemos destacar que prevalece, entre a maioria dos historiadores que
escrevem sobre os índios da Capitania dos Ilhéus, a noção fundamental que se estabeleceu
pela historiografia dos cronistas: a exclusão dos índios enquanto legítimos atores históricos.
Estudar os Gueren (subgrupo dos Aimoré) é emblemático na medida em que a maioria dos
estudos sobre esses índios os enquadra perfeitamente no modelo descrito acima e ainda há
poucas produções com uma nova perspectiva (PARAÍSO, 1982; DIAS, 2007). Este foi apenas
um dos casos de conflitos pela posse da terra envolvendo os índios Gueren na Vila de São
José da Barra do Rio das Contas. O aldeamento de Barra do Rio das Contas resistiu até o
século XIX, “quando foi extinto sob a alegação de que os índios já não se diferenciavam dos
moradores nacionais”. Dessa forma, não era mais preciso garantir-lhes proteção e terras.
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FONTES
APB DOSSIÊ. Sobre irmandades, conventos, igrejas e pessoal eclesiástico. Questão dos
jesuítas, medição de terras. Sentença. 1745. Livro I, 674,1.
AHU - 1748, Cx. 54, D.110.70.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas: identidade cultural nas
aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003.
BORGES de BARROS, F. Memória sobre o município de Ilhéus. Bahia, 1915.
DIAS, M. H.; CARRARA, Ângelo. Um lugar na história: a capitania e comarca de Ilhéus
antes do cacau. 1. ed. Ilhéus: Editus, 2007. v. 1. 327 p.
FREIRE, Felisbelo. História territorial do Brasil. Rio de Janeiro, 1904 (Ed. Fax Símile de
1998, Salvador, IGHB).
FREITAS, Antonio F. G. de e PARAÍSO, Maria H. Caminhos ao encontro do mundo. A
capitania, os frutos de ouro e a Princesa do Sul. Ilhéus: Editus, 2001.
LIMA, Rui Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas.
Goiânia: Ed. UFG, 2002.
MOTTA, Márcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil:a gestão do conflito. São Paulo:
Alameda, 2009.
MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São
Paulo: Cia das Letras, 1994.
PARAÍSO, Maria Hilda B. Caminhos de ir e vir e caminhos sem volta: índios, estradas e rios
no sul da Bahia. Salvador, UFBA, 1982 (Dissertação de Mestrado).
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação
iniigenista do período colonial (séc. XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.).
História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
RESUMO:
O presente artigo tem como finalidade apresentar os resultados parciais obtidos no Programa
de Pós-Graduação em História Regional e Local da UNEB – Campus V - (PPGHIS). Através
do projeto de pesquisa Criminalidade e Justiça em Morro do Chapéu, 1869-1889. Todavia,
analisaremos especificamente nesse trabalho apenas dois processos crimes movidos contra a
ex-escrava Romana. Investigando a forma como a referida liberta foi tratada pelo poder
judiciário no primeiro caso enquanto ré enfrentando a justiça e sendo considerada por todos os
indivíduos envolvidos no julgamento uma mãe desnaturada e assassina, no segundo na
posição de vítima de agressão física, buscando seus direitos perante a justiça enquanto pessoa
livre.
1 Este trabalho reflete sobre escravidão brasileira no final do século XIX. Romana, nome que
se encontra no título, se refere a uma liberta baiana, nosso objeto de estudo.
Foi durante a primeira metade do século XIX que ocorreu especificamente a formação
de Morro do Chapéu. Da mesma forma que outras comunidades dessa região. A sociedade
morrense também surgiu como resultado da concessão de sesmarias, a doação dessas grandes
quantidades de terra resultou na formação de diversas fazendas, que se transformaram em
freguesias e posteriormente em vilas a exemplo de Morro do Chapéu e Mundo Novo que hoje
são cidades.
A partir dessa lei instituída no dia sete de maio de 1864 a freguesia de Nossa Senhora
da Graça do Morro do Chapéu foi elevada a categoria de vila. É nessa condição hierárquica e
política que a analisamos, pois corresponde ao recorte temporal que nos dedicamos a
investigar nesse trabalho. Pois, apenas com a Lei n.º 751 de 8 de agosto de 1909 é que Morro
do Chapéu foi elevada a categoria de cidade.
Para que seja possível refletirmos sobre a escravidão em Morro do Chapéu, iremos nos
dedicar nesse momento a uma análise geral da sociedade morrense no período em questão.
Dessa forma, também poderemos compreender melhor as práticas e relações socioeconômicas
e culturais dos sujeitos aqui investigados. Segundo o pesquisador Moiseis Sampaio:
Temos como exemplos desses outros espaços de trabalho além da lavoura que também
foram desenvolvidos nessa região, dos quais nos fala o autor acima citado, a pecuária e a
mineração, essa última que durante seu auge necessitou de muitos trabalhadores, alguns deles
escravos que, através de uma renda extra, podiam acumular pecúlio. Essas diferentes
oportunidades de trabalho permitiram aos trabalhadores morrenses se especializarem em
várias profissões, sendo elas utilizadas conforme a necessidade e o momento ou até mesmo
concomitantemente.
A produção de carne fazia parte da estrutura básica para a sobrevivência das famílias
e dos agregados nas fazendas da face norte da Chapada Diamantina. Neste tipo de
pecuária era criado gado bovino para carne e tração, eqüinos e muares, além de
animais de pequeno porte, como caprinos e suínos, além de aves domésticas. Os
animais de porte menor eram criados apenas para o consumo das famílias enquanto
a criação de bois, cavalos e muares configuravam-se como a principal atividade
econômica da fazenda, criados para abastecer o mercado mais amplo,
principalmente o Recôncavo baiano. (SAMPAIO, 2009, p. 28).
condições de influenciar nos resultados dos julgamentos de muitos crimes praticados por “sua
gente”.
O poder político desses grandes fazendeiros que se constituiu nos “sertões” baianos no
período em questão, também foi verificado por Fagundes Neves como demonstrado no
pensamento acima citado. A existência desses indivíduos e sua influência junto à população,
fez com que surgisse um forte embate entre o Estado Nacional e os poderes locais e regionais
pelo controle do corpo social.
Segundo o pensamento de (BATISTA, Dimas José, 2006, p. 22). “nos sertões, a
estrutura e o funcionamento do poder de vigiar e punir, de controlar e coagir teria que se
adequar a um modo de pensar, sentir e agir diverso daquele para o qual a lei e a justiça tinham
sido projetadas”. Isso ocorreu devido aos valores socioeconômicos e culturais desenvolvidos
pelas populações sertanejas que juntamente com os poderosos locais, construíram suas noções
de crime e justiça, seus códigos de honra e seus próprios parâmetros orientavam como punir
as práticas criminais.
Partindo desse pressuposto sobre os sertões, acredito que a população de Morro do
Chapéu e região também possuía seus próprios códigos de conduta social, valores morais e
concepções sobre crime e violência, baseados nas práticas costumeiras, desenvolvidas nas
relações interpessoais construídas no cotidiano pelos diversos elementos que compunham
aquela comunidade. As noções de “justiça” daquela população poderiam divergir em muitos
aspectos daquelas pensadas pelos agentes burocráticos que representavam o poder judiciário
do Império.
Foi nesse ambiente marcado por difíceis condições de existência que se formou a
sociedade morrense aqui analisada. A proximidade em que viviam os grandes fazendeiros e
seus agregados, senhores e escravos, homens livres de nascença e libertos, fez com que
surgissem as relações de “interesses mútuos” acima citados.
Essas relações foram de suma importância em tempos de seca, quando eram agravados
todos os problemas endêmicos a essa região. O período de seca que assolou toda a Bahia
durante o período de 1868 a 1871, segundo (SAMPAIO, 2009, p. 13) “prejudicou a
agricultura já deficiente e a pecuária do sertão, espalhando pobreza, fome e mortes”.
Era nesse contexto de extrema dificuldade de sobrevivência que se formavam laços
afetivos entre os mais necessitados. Essas relações socioeconômicas e culturais permitiam que
escravos, libertos e homens livres pobres, que muitas vezes enfrentavam juntos os mesmos
problemas, pudessem desenvolver percepções coletivas da realidade que vivenciavam, e dessa
forma lutarem juntos por melhores condições de existência. Essa ideia acerca das sociedades
escravistas sertanejas é apresentada por Fatima Pires quando diz que,
Entretanto, acreditamos ter sido por causa dessa mesma proximidade entre indivíduos
de diferentes segmentos sociais que apesar de alguns interesses em comum, possuíam muitas
diferenças nos seus modos de ser e de agir a causa da ocorrência de tantas práticas criminais
no período aqui trabalhado. Resultantes de disputas muitas vezes vinculadas a recursos
matérias, em outros casos por divergências de valores socioculturais.
Ao investigarmos a administração do poder judiciário na sociedade morrense,
devemos levar em conta não só a estrutura de sua formação, mais também o perfil dos
indivíduos que a compõem. Dessa maneira, é necessário refletirmos sobre as práticas e
relações escravistas desenvolvidas nessa região, pois as mesmas foram fundamentais na
organização daquela comunidade. Segundo Moiseis Sampaio:
Embora a vida não fosse mais fácil, talvez, os escravos do sertão possuíssem
maiores possibilidades de ascensão do que os escravos da região açucareira. Isto por
que no sertão, os trabalhadores eram menos vigiados e tinham maiores
oportunidades de acumular pecúlio, uma vez que após cinco anos de trabalho com o
gado, o vaqueiro seja ele escravo ou agregado tinha direito a um dentre quatro
bezerros com a idade de um ano. Na região norte da Chapada Diamantina este
pagamento era chamada de “sorte”. Ao fim de alguns anos de trabalho a depender da
habilidade do vaqueiro no trato com o gado, este poderia acumular bens uma vez
que as boiadas eram reunidas em torno de 100 a 300 animais. (SAMPAIO, 2009, p.
29).
A possibilidade de conquistar pecúlio acima apresentada pelo autor citado, nos mostra
que na região de Morro do Chapéu, era possível a escravos adquirirem recursos financeiros,
provavelmente utilizados inicialmente para conseguir à tão sonhada liberdade. Permitindo
num segundo momento a possibilidade os cativos obterem bens materiais, alcançando
determinado grau de status social naquela sociedade.
Por muito tempo os estudos historiográficos negaram a existência de populações
negras nos sertões baianos. Ideia que vem sendo desmistificada por estudos contemporâneos
sobre essa temática como foi demonstrado pelos exemplos de pesquisas aqui citadas. Todavia,
essa não é a única problemática existente ao refletirmos historicamente sobre as vivencias das
populações afrodescendentes, Segundo Vieira Filho.
Como nos mostra esse historiador, por muito tempo os estudos dedicados a refletir
sobre a escravidão brasileira foram voltados apenas a uma tentativa de explicar o sistema
escravista de forma estrutural, dando ênfase ao seu caráter econômico. Se por um lado essas
pesquisas contribuíram para a compreensão desse aspecto da história do Brasil, por outro lado
elas ofuscaram as vivências e relações cotidianas da população afrodescendente estabelecidas
com os demais indivíduos que compuseram a sociedade brasileira.
Por entendermos a importância da participação da população negra na formação e no
desenvolvimento de Morro do Chapéu, dedicamos parte dessa pesquisa a uma reflexão sobre
a escravidão nessa região. Através da investigação de alguns processos crimes buscamos
conhecer a forma como ocorriam as relações escravistas na sociedade morrense.
feiras-livres, em suas casas, nas casas de seus parceiros ou nas casas de seus
senhores, nas lidas diárias nas roças, nas tropas ou cuidando do gado. (PIRES, 2009,
p. 22).
Como nos mostra Fátima Pires, processos crimes em que escravos estiveram
envolvidos sejam como vítimas ou réus, podem ser utilizados para refletir não só sobre
criminalidade escrava, mas também permitem investigações acerca de muitos outros aspectos
da vida dos cativos. As fontes que utilizamos contem informações a respeito das relações
socioeconômicas e culturais desenvolvidas pelos escravos não só entre eles, como também
com os demais sujeitos com quem conviviam.
Se compararmos os números de processos crimes em que cativos estiveram
envolvidos seja enquanto réus ou vítimas, com aqueles em que pessoas livres ocuparam essas
posições, veremos que o número de escravos era muito inferior. Todavia, é importante ter
cuidado para não cometermos o mesmo erro que muitos estudiosos dos sertões baianos
cometeram: o de não acreditar na presença efetiva de afrodescendentes nessas regiões.
Segundo Vieira Filho,
Nos dois processos crimes que apresentaremos a partir de agora, a ex-escrava Romana
será nosso objeto de investigação. Iremos analisar a maneira como foi tratada a referida liberta
pelo poder judiciário morrense, no primeiro caso enquanto ré enfrentando a justiça e sendo
considerada por todos os indivíduos envolvidos no julgamento, uma mãe desnaturada e
assassina, no segundo na posição de vítima, buscando reaver seus direitos violados enquanto
pessoa livre.
Romana era ex-escrava do Tenente João Ferreira da Silva Reis, natural de Rio de
Contas e moradora da Villa de Morro do Chapéu. Em 1886, ano em que ocorreu o primeiro
processo, disse em depoimento ter vinte e sete anos e viver de trabalhos domésticos, não
sabendo ler nem escrever. Segundo as informações que constam no inquérito policial a ré foi
acusada pelo fato que se passa a seguir.
ao duro solo pela forma mais brutal e horroroza de que não se possa imaginar, nu
como nascera, com a boca cheia de folhas verdes e estava com um imundo pano
como para preterir o choro natural, e já com varejeiras em algumas partes do
inocente corpo como nos olhos, umbigo. Como de tudo consta o corpo de delito e
inquerito policial a que se procedeo pelos quais tem alem da minha indagação, fica
exuberantemente provado ser a liberta Romana ex escrava do Tenente João Ferreira
da Silva Reis a mãe desnaturada desta innocente criança, como que devo dar
providencia velando sobre aprovação do crime, teve vida está criança, atte receber o
sacramento do baptismo, falecendo horas depois. Cumprindo o quanto determina o
6º do Artigo 42 do regulamento nº4824 de 22 de setembro de 1871, remeto esse caso
na qualidade de crime de morte3.
A criança abandonada foi encontrada por Pedro de Souza Bellas, lavrador de vinte dois
anos de idade, casado, natural e morador de morro do Chapéu. Em seu depoimento ele disse
ter ido ao mato procurar um animal fugido, quando encontrou e recém-nascida nas condições
em que a define o corpo de delito, voltando às pressas a Vila para contar o acontecido. A
referida criança foi batizada de Maria, pelo Reverendo Vigário Joaquim Ignácio de
Vasconcelos dessa Freguesia, morrendo horas depois.
Todas as testemunhas afirmaram que o recém-nascido abandonado era filho da liberta
Romana, sendo a mesma recolhida à prisão. Esse caso é muito interessante, pois permite
refletirmos sobre uma prática desenvolvida por escravas e libertas, bastante estudada pela
historiografia da escravidão, o assassinato de crianças por suas mães, que as abandonavam
para a morte como no caso de Romana, ou afogavam, envenenavam, etc. No intuito de livrar
seus filhos dos infortúnios da vida em cativeiro, muitas vezes ocorriam juntamente com o
suicídio da mãe.
Uma ocorrência desse tipo que teve bastante destaque sendo comentada no jornal Diário
da Bahia, foi o assassinato de cinco crianças ocorrido na cidade de Santo Amaro em 1862,
cometido por uma escrava que seguidamente ao ato criminoso se suicidou. Esse caso foi
trabalhado pelo historiador Jackson Ferreira em sua pesquisa de mestrado e consta em seu
artigo Por hoje se acaba a lida, publicado na revista (Afro-Ásia, 31. 2004, 197-234).
No ano em que ocorreu esse processo crime, Romana era uma mulher livre, mas por ser
uma liberta possuía um passado marcado pela escravidão. Segundo os relatos das testemunhas
não era a primeira vez que a liberta abandonava um filho recém-nascido para a morte, ela já
havia cometido anteriormente esse tipo de ato horrendo no Arraial de América Dourada
desse Termo, onde não existe autoridades policiais.
explicar que por não ter sido punida da primeira vez, a liberta sentiu-se a vontade para repetir
seu horrível ato, ou seja, matar sua filha recém-nascida.
O que nos leva a crer que a sociedade de América Dourada era regida por seus próprios
códigos de condutas morais, tendo a população suas próprias noções de crime e justiça,
possuindo os indivíduos dessa comunidade uma maior “liberdade” quanto as suas ações,
diferente de Morro do Chapéu, onde havia uma estrutura administrativa do poder judiciário
que vigiava e fiscalizava o comportamento da população. Embora nem sempre a justiça
morrense tivesse condições de cumpri suas obrigações e seu dever com êxito.
Durante seu interrogatório, Romana negou não só ter sido a mãe desnaturada que
abandonará a recém-nascida Maria para a morte, como também todas as demais acusações
que lhe fizeram as testemunhas sobre o caso ocorrido anteriormente no Arraial de América
Dourada. Entretanto, em seu depoimento ao ser inquerida sobre sua relação com as pessoas
com quem convivia naquele Arraial, se sabiam que ela mantinha relações ilícitas com alguém,
ou se cometia atos furtivos, respondeu apenas que andava na rua, e que não havia vigilancia
quanto ao procedimento moral.
Contrariando os depoimentos das testemunhas, Romana negou que naquele ano
estivesse grávida, contudo admitiu ser mãe de três filhos, sendo que os dois mais velhos ela
teve enquanto morava em América Dourada. Contudo, ao tratar sobre o falecimento de seus
filhos afirmou não os ter matado, explicando que seu primeiro filho não foi abandonado para
a morte e sim que o mesmo tinhas nascido morto, quanto ao segundo diz ter morrido um
tempo depois de nascido, e que o mais moço se acha em sua companhia.
Foi-lhe perguntado também se seus filhos nasceram em sua casa e se foram batizados e
enterrados no cemitério, Romana respondeu afirmativamente. As informações contidas nesse
processo crime permitem também que possamos refletir sobre aspectos da religiosidade da
sociedade morrense. De acordo com o pensamento de Moiseis Sampaio.
Através desse relato de uma das testemunhas contido no inquérito policial é possível
perceber a importância dada pelos indivíduos daquela comunidade à prática do batismo. Esse
exemplo nos mostra o valor dos sacramentos religiosos para a comunidade morrense, estando
de acordo com o que diz o autor acima citado sobre essa questão.
Após esse interrogatório foi escolhido o corpo de jurados que iriam decidir se a ré
acusada, a liberta Romana, era culpada ou inocente do crime que lhe foi imputado. Após a
votação a ré foi inocentada das acusações que lhe fizeram, conseguindo assim sua absolvição,
sendo dessa maneira concluído o processo crime em questão. Apesar de no momento em que
ocorreu esse caso a ré não ser mais cativa e sim liberta, da mesma forma que outros
personagens que também investigamos em nossa pesquisa. Romana teve um passado
escravista, o que não a impediu de escapar como os demais das “garras da justiça”.
No segundo processo crime em que encontramos a liberta Romana, ela não ocupou a
posição de ré e sim de vítima. Buscando através do poder jurídico lutar por seus direitos e
fazer justiça pela violência que sofreu por parte de João José da Silva. Segundo as
informações que constam no inquérito policial o crime se deu da seguinte forma.
Aos dez dias do mês de outubro de 1886 na Villa de Nossa Senhora da Graça do
Morro do Chapéu. João José da Silva espancou com um cassetete a liberta Romana que pela
gravidade dos ferimentos ficou impossibilitada de trabalhar por um mês. Pelos depoimentos
das testemunhas que acusaram o réu de ter cometido o ato criminoso, ele foi enquadrado no
Art. 201 do Código Criminal sendo recolhido à prisão.
Entretanto, após o exame de corpo de delito feito na liberta Romana, a acusação foi
julgada improcedente por falta de provas, sendo João José da Silva considerado inocente e
libertado. Por falta de profissionais competentes que fossem moradores em Morro do Chapéu,
foram escolhidos para atuarem enquanto peritos os cidadãos, Capitão João Antonio Monte
Santo e o Tenente João Ferreira da Silva Reis.
Foram os indivíduos acima citados que contrariando os depoimentos das testemunhas
negaram ter sido feita forte agressão a liberta, dizendo não haver vestígios do espancamento
alegado pela vítima. Em suas palavras eles declararão o seguinte: Que na pessoa da escrava
digo liberta Romana, nada encontrarão de ferimento e que no seo entender acha-se ella
restabellecida de qualquer incomodo que tenha soffrido.
Infelizmente, não existem informações nas fontes quanto ao tipo de relação existente
entre o réu e os peritos responsáveis pelo corpo de delito realizado na liberta. Por esse motivo,
não é possível averiguar se a avaliação feita por eles tenha sido influenciada por algum tipo de
interesse na absolvição do réu. Todavia, sendo a vítima uma liberta é possível supor que numa
Para que a justiça atingisse suas finalidades essenciais era necessário que o corpo
administrativo tanto tivesse condições de trabalho adequadas como possuísse
formação educacional e cultural para execução das suas atribuições. A administração
em nível local procurava cumprir as determinações da lei, no entanto, nem sempre
isso era possível tanto pelas limitações do poder judiciário como pelas injunções
cotidianas locais, isto é, pela interferência de chefes e poderosos locais na
regularidade da sociedade. (BATISTA, 2006, p. 204).
REFERÊNCIAS
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THOMPSON, E. P. Senhores & Caçadores. A origem da lei negra. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1987.
Resumo: O presente estudo realiza uma reflexão sobre a relação de alteridade entre negros e
brancos a partir das práticas religiosas, além de versar sobre a questão do preconceito na
sociedade brasileira. Tendo como base os escritos de Frantz Fanon (2008), Pires (2008) e
Prandi (1991), o artigo visa promover um diálogo entre as obras, desenvolvendo conceitos
como “branqueamento psicológico” e “alteridade” no campo religioso.
INTRODUÇÃO
1 Graduada em Letras/Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade do Estado da Bahia; cursando Pós-
Graduação lato sensu em História e Cultura Afro Brasileira pela IES Segmento. Leciona na rede estadual da
Bahia e em instituição privada, além de curso preparatório para Vestibular/ENEM.Email:
roseiraluarosa@hotmail.com
Embora em grande luta para se manterem vivos, esses terreiros representam a memória dos
que vieram da África e que conseguiram, à sua maneira, cultivar a permanência dos vínculos
com sua cultura ancestral e alimentá-los através das dificuldades.
No entanto, essa resistência não se deu sem conflitos. Como Pires (2008) testemunha
em seu texto, muitas têm sido as tentativas de anulação dessa cultura. Isso se dá de formas
diferenciadas, inclusive sutis, que provocam a negação da religiosidade africana em função de
outras tendências religiosas eurocêntricas. Note-se que o conteúdo dos sermões do Padre
Antonio Vieira, no Século XVII, é bastante representativo do pensamento católico acerca do
negro, ao ensinar que “os pretos por terem sido gentios e serem cativos, são de inferior
condição”, justificando a escravidão e a crença de que tudo o que lhes pertence também é
inferior e não deve, portanto, ter espaço para “contaminar” a sociedade cujo domínio é da
etnia branca.2
O desrespeito, que tem sido tributado às religiões afro ao longo do tempo, representa
claramente o pensamento colonizador, que considera sempre o outro inferior e incapaz, por
isso devendo ocupar um lugar diferente e marginal, nunca desenvolvendo uma relação de
alteridade, respeito ou igualdade.
Se “a civilização branca, a cultura europeia, impuseram ao negro um desvio
existencial” (FANON, 2008, p. 30), é possível distinguir no pensamento colonialista (portanto
europeu, branco) a essência de toda discriminação que tem sido aplicada à prática religiosa de
matriz africana, assim como a suposta “autoridade” de alguns que se autodeterminam
guardiões da sociedade branca e, portanto, “pura”. O branqueamento de que trata Fanon
(2008, p. 34) é um desejo e uma construção derivados do pensamento branco iluminista do
europeu, que contamina também os negros que a ele se submetem. Em relação ao aspecto
religioso, a referida ideologia eurocêntrica é responsável pela construção de paradigmas que
acabam se sobrepondo como “verdades”.
É oportuna uma referência ao conceito de eurocentrismo, que na opinião de Barbosa
(2010) pode ser compreendido como “a crença generalizada de que o modelo de
desenvolvimento europeu-ocidental seja uma fatalidade (desejável) para todas as sociedades e
nações”. Em função da cristalização desses “pressupostos”, nos quais se embasam preceitos
políticos e religiosos, além de outras formas de conceber as relações entre os homens,
permanece a classificação das manifestações religiosas de matriz africana como “seitas” que
2Sermão “Maria, de quanatus est Jesus, quivocaturChristus” do Padre Antonio Vieira disponível em:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01864.html
devem ser combatidas e eliminadas. Compreende-se, pois, que tal pensamento “colonizador”
ainda permeia a mente dos indivíduos.
A presença de tais manifestações religiosas e culturais em território baiano - mesmo
que a tentativa de silenciá-las venha sendo marcante – suscita por parte dos que tentam
impedi-las um conjunto de atitudes repressivas que vão da mais velada à de maior confronto.
Porém, cabe não somente ao povo negro refletir sobre essas questões, mas a toda a sociedade
desenvolver uma crescente resistência e um enfrentamento decisivo dessas questões.
Pires (2008) narra o episódio ocorrido no Oyá Onipó Neto situado no bairro do Imbuí
em Salvador, quando, em fevereiro de 2008, este terreiro foi destruído parcialmente por
agentes da Prefeitura Municipal3 a título de adequar a cidade ao Plano Diretor de
Desenvolvimento Urbano. O fato abalou a comunidade negra que, por sua vez, exigiu do
órgão municipal a reparação dos danos, tendo-se em mente a ofensa simbólica e moral a um
Ilê. Pires (2008), comentando a situação e o sentimento da yalorixá responsável pelo terreiro,
afirma:
3Segundo Pires (2008, p. 8) agentes da SUCOM – Superintendência de Manutenção, Conservação e Uso do Solo
– agiram conforme ordem da superintendente do órgão.
A obra de Fanon (2008) faz referências à relação do homem negro com a sociedade
francesa da época e com o homem branco, sendo essa relação marcada por estereótipos. Além
disso, o autor reflete sobre a colonização para além dos aspectos físicos, tratando da
dominação psicológica do branco sobre o negro. Fanon (2008) discute a postura do negro
antilhano no seio da sociedade francesa onde este passa por um processo de aculturação e
perda de identidade. Esse processo tem como fator decisivo a linguagem, de maneira que o
autor a considera o portal para o ingresso no “mundo” do branco.
Para o autor, “o homem que possui a linguagem, possui o mundo que essa linguagem
expressa e que lhe é implícito” (FANON, 2008,p.43). Dessa maneira, há de se considerar o
elemento linguístico como uma das principais ferramentas para a dominação e subjugação do
negro. Entretanto, como veículo pelo qual se acessa outros aspectos do mundo da metrópole,
a linguagem introduz outras formas de dominação, sendo uma delas a religião, valores
indicativos de crença e cultura. Para Fanon (2008) esses elementos produzem uma alienação
decisiva. Ilustra o autor que:
4A exemplo da moça negra martinicana citada no seu livro, que preferiu escolher um marido branco e justifica
dizendo que tal escolha é melhor que a miséria, embora ele a esconda dos amigos. (FANON, 2008; p. 38)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este ensaio reuniu alguns elementos sobre o pensamento de Frantz Fanon (2008) com
leituras de Reginaldo Prandi (2001) e Álvaro Pires (2008), ambos refletindo sobre
africanidade, cultura e aspectos do eurocentrismo que permeia atitudes de negros e não
negros.
Consideramos que a mentalidade do colonizador é presente, sutil e permanente, como
observa Fanon em seu livro. É inegável que esse pensamento dominante invade todas as áreas
da vida social e isso tem sido feito ao longo do tempo, numa perspectiva histórica.
No aspecto religioso, é onde se observa a negação das origens do povo negro, quando
muitos escolhem ser contrários às manifestações de sua própria etnia, engrossando as fileiras
de outras tendências eurocêntricas e combativas contra contras as religiões de matriz africana.
Esse conflito é antigo e permanente, o que só reforça a tese de que o pensamento do
colonizador consegue ser absorvido pelo “colonizado” de forma velada e nem sempre
explícita, porém disfarçada numa falsa democracia que se impõe com o mito de que não
somos um país racista nem preconceituoso.
Assim, é coerente afirmar que a intolerância religiosa é uma realidade no nosso
cotidiano, e ela se apresenta de várias maneiras, demonstrando claramente que o pensamento
eurocêntrico ainda é muito presente e poderoso, de forma a minar o que seria a expressão de
uma consciência real da africanidade, em toda a sua amplitude e singularidade. Ou seja, como
diria Fanon (2008), as “máscaras brancas” continuam sendo usadas para encobrir uma face
crucial da rejeição ao que é diferente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FANON, Frantz (2008). Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira.
Salvador: EDUFBA, 2008.
PIRES, Álvaro Roberto. A hora de rodar a baiana! Preservação das matrizes africanas na
religiosidade brasileira contra a intolerância. Revista África e Africanidades. Ano I nº 2,
agosto de 2008.
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. A velha magia na metrópole nova. São
Paulo, Hucitec, 2001.
VIEIRA. Padre Antonio. Maria, de qua natus est Jesus, qui vocatur Christus. In: Literatura
Brasileira. Textos Literários em meio eletrônico. Sermão XVIII – Maria Rosa Mística, do
Padre Antonio Vieira. Disponível em:
<http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/_documents/0043-01864.html>. Acesso em: 10 de
outubro de 2012.
À ÉPOCA DA CONSTRUÇÃO:
HISTÓRIA IMPRESSA DE BRASÍLIA ENTRE ARQUITETAÇÕES POLÍTICAS E
ENGENHARIAS SIMBÓLICAS
RESUMO:
Este artigo pretende, a partir da exploração de fontes jornalísticas produzidas à época da
edificação de Brasília (1956-1960), apresentá-la como construção imaginária de múltiplos
sentidos em parques gráficos, antes mesmo de sua inauguração em “concreto armado” no dia
21 de abril de 1960; e promover um debate que alargue as noções de arquitetura e engenharia,
admitindo-as como expressões não apenas físicas, mas também narrativas do poder e da
simbologia de um povo, uma cidade ou regime político, pois, em todo caso, dizer torna-se um
fazer, e a “cidade letrada” é tão real quanto aquela erguida pelos candangos.
***
Saltando para os anos 1950, a época da construção de Brasília, vemos que pensadores
contemporâneos brasileiros como Márcio de Oliveira e Brasilmar Ferreira Nunes, ou
estrangeiros, a exemplo dos norte-americanos James Holston e Marshall Berman, elegeram a
engenharia e a arquitetura como fonte para se pensar a sociedade brasileira. Mas, enquanto
senzalas, engenhos, ou mesmo os palacetes imperiais desapareceram ou perderam sua
importância habitual, ainda vivemos sob o signo de Brasília, capital federal, definida como
patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO em 1987, “um marco na história do
planejamento urbano” com seus edifícios “inovadores e imaginativos”2. A cidade comemorou
em 21 de abril de 2010 cinquenta anos de existência e, em meio à euforia que a ocasião
suscitou, alguns observadores participantes fizeram questão de relembrar as agruras e os
percalços pelos quais passaram Juscelino e seus apoiadores durante o governo e nos anos
subsequentes, certamente no intuito de valorizar ainda mais o feito mudancista. De fato, essa
„unidade comemorativa‟, soerguida a posteriori, não deve mesmo apagar, silenciar ou
esquecer o passado de luta em torno da criação de Brasília.
De toda sorte, podemos dizer que a construção de uma nova capital para o Brasil
exigiu mais que um triunfo técnico e material, mas, sobretudo, um triunfo político. Artifícios
de convencimento apurados. Uma vez que obras de tal envergadura e importância cobram
altos investimentos em „engenharias simbólicas‟, ou seja, na edificação de argumentos que
visavam persuadir as pessoas do imperativo, dos usos e do valor da invenção de Brasília e da
transferência da capital ou, do contrário, convencê-las de que tal empreendimento constituía
um equívoco, um engodo. Nos anos JK, lançou-se, então, em jornais impressos, uma
verdadeira guerra de „papéis e tintas‟ em torno da decisão. Entre 1956 e 1960 Brasília também
foi vivamente erguida em máquinas de escrever, em escritórios, em redações, por fim, em
parques gráficos. Em todo o caso, “dizer” torna-se um “fazer”, e a cidade letrada foi tão real
quanto aquela fundada pelos operários e empreiteiros. Brasília foi içada em “concreto
armado”, mas também sob a forma da infelicidade, da injustiça, da doença (“Infelicidade”,
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23 jan. 1960; “Advogados: justiça em Brasília será
injusta”. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 23 jan. 1960; “Brasília provoca doença
imaginária”. Tribuna da Imprensa, Rio de janeiro, 24 nov. 1960).
Para Kubitschek e os governistas, no entanto, ela foi o símbolo da promessa de
construção de um novo país. Um novo Brasil e um novo homem nacional se erguiam ao
mesmo tempo em que Brasília era construída. Por tudo isso, o sonho da cidade moderna
cresceu a partir do desejo de construir o Brasil, e foi deste modo que para Márcio de Oliveira
se deu um uso mítico da nova capital inserida numa mitologia desenvolvimentista.
Por sua vez, James Holston, ao redigir seu livro A cidade modernista: uma crítica de
Brasília e sua utopia, originalmente publicado em 1989, nos diz que seus visionários, que
sonharam com a mudança da capital desde a metade do século XVIII, “deixaram a Brasília o
legado de uma mitologia do Novo Mundo em que a construção de uma capital no Planalto
Central seria o meio de desencadear o florescimento de uma grande civilização num paraíso
de abundância”. Brasília seria, então, filha de uma utopia modernista, expressa no axioma
segundo o qual o espaço urbano teria a propriedade de moldar os destinos da sociedade,
regenerando fulminantemente a vida de todo o país.
O livro citado traz uma discussão sobre as premissas e paradoxos do plano de
construção da cidade, pela que se pode ler que a viagem rumo à nova capital, “através do
Planalto Central, é uma jornada de separação”; ela “faz o viajante confrontar-se com a
separação entre a Brasília modernista e o Brasil de todos os dias; (...) entre o
subdesenvolvimento e o incoerentemente moderno”. Pois, “a necessidade de usar o que
existia para realizar o que havia sido imaginado aboliu a diferença entre os dois, que era a
premissa do projeto” (HOLSTON, 1993, p. 11, 23, 289; OLIVEIRA, 2005, p. 19-20).
Fazendo jus às teses de James Holston, Oscar Niemeyer declarou à revista Módulo, em
entrevista, que teve trechos publicados no Jornal do Brasil, em 12 de julho de 1958, sua
crença de que:
Com relação aos trabalhos de Brasília, que espero sejam as minhas obras definitivas,
encontrei três problemas diferentes a resolver: o do prédio isolado, livre a toda
imaginação, conquanto exigindo características próprias; o do edifício monumental,
onde o pormenor plástico cede o lugar à grande composição; e, finalmente, a
solução de conjunto, que reclama, antes de tudo, unidade e harmonia. No Palácio da
Alvorada, meu objetivo foi encontrar um partido que se não limitasse a caracterizar
uma grande residência, mas um verdadeiro palácio, com o espírito de
monumentalidade e nobreza que deve marcá-lo (Oscar Niemeyer, em primeira
autocrítica, fala de erros e de “novas providências”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
12 jul. 1958).
Mesmo quando estiver, em futuro não muito próximo, funcionado realmente como
cidade. Brasília é certinha demais. Todo mundo morando em prédio igual, em
lugares previamente designados, todo mundo trabalhando em escritórios igualzinhos
(sic). Tudo muito exato, como se os habitantes nada mais fossem do que peças
minúsculas e obedientes de um gigantesco, mirabolante e inédito brinquedo.
A esta altura, ninguém mais duvida de que Brasília, vai ser mesmo a capital do
Brasil. Que seja, mas daqui não saio, que bom mesmo, é o Rio (ÁLVARO, José.
Brasília vai ser capital, mas bom mesmo é o Rio. Tribuna da Imprensa, 14 mar.
1960. Giro em Sociedade).
criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados
pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido
criados em primeiro lugar e depois o mundo deformado às nossas necessidades.
Brasília ainda não tem o homem de Brasília. Se eu dissesse que Brasília é bonita
veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de
minha insônia vêem nisso uma acusação. Mas a minha insônia não é bonita nem
feia, minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. É o ponto e vírgula. Os dois
arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil: eles ergueram o espanto
inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério (LISPECTOR,
1999, p. 40-41).
No mundo existem algumas cidades artificiais, isto é, não nascidas por imposições
sociopolíticas, mas, erigidas, por uma iniciativa de reis e de governantes. A
construção de todas elas arrastou-se através dos anos, e algumas, apesar do tempo
passado, ainda não estão de todo concluídas. Por outro lado, nenhuma delas, possui
uma história própria – uma história de heroísmo, audácia, determinação e espírito de
pioneirismo épico, que representou sua (de Brasília) construção, exibe uma insígnia
que lhe empresta importância ímpar, quando posta em comparação com suas
congêneres. A nova capital, descontada sua grandiosidade arquitetônica, permitiu
que dois terços do nosso território – que eram desalentadores “espaços vazios” –
fossem conquistados (KUBITSCHEK, 1975, p. 11).
A nova capital até podia ser antinatural como outras tantas cidades mundo a fora, mas,
ainda assim, acreditava o presidente, era diferente de todas elas. Foi concebida a partir da
instituição de um lastro histórico, embora fosse a capital do futuro. Uma “vontade nacional” e
uma “tradição mudancista”, de Pombal a Juscelino, foram inventadas e propaladas pelo
governo com o fim de angariar apoio popular.
Enquanto a maior parte dos artigos pró-Brasília insistia em reunir e reverberar
argumentos, tais como o sentido histórico da obra, o bandeirantismo, a colonização triunfante
sobre a natureza e a selvageria, importa considerar que a campanha contrária reagia,
veementemente, apegando-se a contra-argumentos como custos exorbitantes, inflação,
impossibilidade técnica, sem abrir mão, claro, de denunciar o personalismo e a corrupção.
Um dos maiores inconvenientes da mudança da capital estava, segundo o periódico O
Povo, de Fortaleza, em uma edição de 1957, no fato de que:
[...] esses terrenos estão situados numa região de solo pobre, sem as condições
ecológicas necessárias para a exploração das atividades agropecuárias. Exigem,
portanto, trabalhos contínuos de adubação, sempre dispendiosos, principalmente a
longa distância, para que possam produzir alimentos destinados à população de
Brasília, a qual tenderá a crescer ininterruptamente, depois de construída a cidade, à
proporção que se forem instalando todos os órgãos e serviços do governo federal.
Onde esteve como membro da comissão do Tribunal Superior Eleitoral que foi
verificar as condições de habitação na nossa capital, disse que será preciso muito
espírito de resignação e de renúncia para suportar a monotonia da atual cidade.
Ficou impressionado também, com os gastos que terão de ser feitos com cortinas
para proteger os funcionários do sol escaldante de Brasília.
“A jardinagem pública é obra que tem de ser iniciada rápido. Não existe nenhuma
árvore e o sol é causticante, sol de sertão que impõe arborização farta. Há
necessidade de árvores em todas as ruas para quebrar a aridez de Brasília e amparar
o transeunte do sol abrasador”, frisou, concluindo (BRASÍLIA: sol deixa Lobo
suado. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 23 jan. 1960).
No dia 24 de maio de 1957, em um artigo que expõe Brasília como uma “fantasia
perniciosa”, Eugênio Gudin debochava no Correio da Manhã,
Haverá alguém que acredite, por acaso, que aos males de que sofre o nosso país,
resultantes da anarquia política, da incapacidade econômica e de outras graves
deficiências responsáveis pelo nosso atraso, desaparecerão com o fato de se mudar a
sede do governo de um para outro ponto do país? (EUGÊNIO Gudin reafirma:
Brasília – Fantasia Perniciosa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 24 mai. 1957.)
Valendo-nos dos quatro segmentos que a oposição compreendia, citados por Brasilmar
Ferreira Nunes no momento em que evocou em suas formulações o realce que James Holston
deu às dúvidas e ao estigma de insensatez que recaíram sobre o projeto de construção da nova
capital, podemos divisar ainda que os antimudancistas expunham:
pôde ser lido simplesmente como pressa, afobação inauguracionista, ilusionismo governista,
irresponsabilidade e megalomania.
O que restou, no entanto, foi a lembrança dos “bons tempos”. O jornalista Joaquim
Ferreira dos Santos, em Feliz 1958: o ano que não devia terminar, nos lembra de que “o Rio
de Janeiro ficou o ano inteiro sem água nas torneiras... mas o que acaba predominando é
mesmo a imagem de que „com brasileiro não há quem possa‟, trecho da marchinha que
comemorou a vitória da Seleção brasileira na Suécia em 1958” (OLIVEIRA, 2002, p. 39-40).
Do mesmo modo, as agruras da construção e a inflação decorrente dos gastos ficaram no
passado. Brasília e JK obtiveram um lugar na imaginação brasileira como exemplos de
dinamismo e arrojo, como histórias de sucesso e exemplos para o futuro. Nos dizeres do
jornalista português Metzner Leone, “eu reafirmo: Brasília foi o maior e melhor investimento
feito pelo governo deste país em todas as épocas... a venda de duas superquadras, nos preços
atuais, talvez seja igual ao que Brasília custou aos cofres da nação” (HELIODORO, 2005, p.
234). Transformando seu arquiteto político em um verdadeiro “herói fundador”, Brasília é o
melhor exemplo da importância simbólica da engenharia brasileira. Arquitetações políticas,
engenharias simbólicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
convívio social dos habitantes, sobre as traições ao plano original. Brasília já foi
chamada de “cidade sem gente”, “cidade sem esquina”, “cidade de burocratas”, “ilha
da fantasia”3.
Como constata a socióloga e estudiosa da cultura urbana Maria Salete Kern Machado,
“existem vários trabalhos realizados sobre a cidade do ponto de vista sociológico, político,
econômico e urbanístico”, que representam a importância de Brasília e de sua identidade
espacial. A autora exemplifica, entre os vários estudos a respeito, as coletâneas organizadas
por Aldo Paviani, Brasilmar Nunes e Cremilda Medina. Aponta ainda, com a observação de
ser recente, a literatura sobre a vida cotidiana brasiliense, “cabendo destacar Narrativas a céu
aberto (1998), nas quais as histórias de vida expressam formas de ver e sentir dos habitantes
do Planalto” (MACHADO, p. 54; 59).
Cabe ressaltar que há publicações em número considerável sobre o governo JK,
explorando seus mais variados setores e aspectos. Balanços de seus programas e planos são
bastante numerosos e díspares tais quais as avaliações das relações internacionais durante seu
mandato e as especulações sobre os custos daquela que é ainda considerada sua grande obra,
Brasília. Também ela, como já pôde ser apreendido, foi exaustivamente estudada, porém as
posições prós e contras dos jornais circulantes à época de sua criação ainda constituem um
espaço relativamente omitido e principalmente secundarizado, e é sobre ele que esse trabalho
propôs lançar luz.
FONTES
„Advogados: justiça em Brasília será injusta‟. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 23 jan.
1960.
„Brasília provoca doença imaginária‟. Tribuna da Imprensa, Rio de janeiro, 24 nov. 1960.
ÁLVARO, José. Brasília vai ser capital, mas bom mesmo é o Rio. Tribuna da Imprensa, 14
mar. 1960. Giro em Sociedade.
BRASÍLIA: sol deixa Lobo suado. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 23 jan. 1960.
EUGÊNIO Gudin reafirma: Brasília – Fantasia Perniciosa. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
24 mai. 1957.
Sites consultados:
REFERÊNCIAS
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Zahar Editor, 1994, vol. 1.
HOLSTON, James. A Cidade Modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1975.
MACHADO, Maria Salete Kern. “O estrangeiro na cidade”. In: COSTA, Cléria Botelho da;
NUNES, Brasilmar Ferreira. Brasília: a fantasia corporificada. Brasília: Paralelo 15, 2004.
OLIVEIRA, Márcio de. Brasília: o mito da trajetória da nação. Brasília: Paralelo 15, 2005.
RESUMO:
Este artigo tem como objetivo apresentar uma analise acerca do mito fundador, expressa na
figura de Félix Rodrigues, voluntário da pátria que depois de fazer a campanha do Paraguai
(1865-1870), criou nas terras doadas pelo imperador D. Pedro II, a comunidade denominada
Barra da Aroeira, no atual estado do Tocantins. Outra questão levantada no presente artigo é a
relação entre Identidade e Território e a sua vinculação com a experiência histórica da
comunidade quilombola. Com base na análise da bibliografia consultada e nas narrativas orais
dos próprios descendentes, objetivamos compreender a relação dialógica entre o presente e
passado desse grupo social frente a formação de uma identidade através da idéia de um mito
fundador.
Palavras - Chaves: Barra da Aroeira; Guerra do Paraguai; Mito fundador; Território.
INTRODUÇÃO
Barra da Aroeira tem seu início com Félix José Rodrigues, que após ter ingressado nas
fileiras do exército imperial para enfrentar o inimigo exterior na Guerra do Paraguai, recebe
como recompensa pelos serviços prestados durante a guerra uma extensão de terra onde
atualmente localiza-se o Estado do Tocantins. Esse passado é bem vivo na memória dos
moradores dessa localidade, mesmo porque em sua grande maioria, carregam o sobrenome
“Rodrigues”, o que faz referência a um forte grau de parentesco com a família desse precursor
da comunidade:
- Foi meu, eu digo tataravô, que ele foi pra Guerra do Paraguai, foi sorteada três
pessoas, Simião, Felix; e o Simião, que era cunhado dele e o Luiz Zegas. Ai o velho
não deixou o outro ir, porque disse que era muito besta. E tocaram pra Guerra do
Paraguai, foi nessa época. E ai venceu a Guerra e vieram embora prá cá. Falaram pra
eles o que era que eles queriam de pagamento e ele falou: “eu queria era uma terra”.
E aqui naquele tempo era o alto Goiás e eles vieram e escolheram essa área de terra
aqui e é conhecido por córrego e serra e foi desse jeito que foi os limites da terra. E
daí prá cá, quando reconheceu, e ai escolheram aqui, moravam em Parnaguá, no
Piauí; de Parnaguá vieram pro Jalapão, do Jalapão vieram pra aqui, no aroeira. Tem
uns antigos pé de manga que foi o lugar que eles arrancharam a primeira vez. E ai se
espalhou, a família foi crescendo e casando filho e espalhou, mas onde se reside é
mais é aqui, mas tem vários pontos dentro dos limites que tem pessoa da família que
mora espalhado ai né2.
2 Comunidade Barra da Aroeira. Entrevista com o senhor Cleibes José Rodrigues, 42 anos. Realizada em 10 de
agosto de 2011.
- O primeiro a chegar nessa região, foi o Felix José Rodrigues. Porque ele prestou
serviço na Guerra do Paraguai e ajudou a vencer essa guerra e em troca desse
serviço prestado, quando D. Pedro II chamou ele pra ele falar e D. Pedro indenizar o
serviço dele, ai o D. Pedro procurou pra ele, se ele queria era medalha, era ouro, que
ele falasse o que ele quisesse. Ele disse que não queria nada disso, o que ele queria
era um pedaço de chão pra ele morar sossegado junto com a família dele e em
quanto existisse uma pessoa dessa família ser dono e ser respeitado e também ter o
direito de ninguém aborrecer eles e o qual foi ao contrário; e ai ele, D. Pedro
mandou ele vir e escolher no Alto Goiás e ele veio passou 6 meses escolhendo essa
área de chão, é. Os limites dessa área ele escolheu por serras e águas para que nunca
acabasse. Quando ele escolheu ele voltou lá que já tinha ficado certo que quando ele
voltasse era pra pegar o documento dessa área de chão e ai ele foi e voltou e D.
Pedro deu o documento3.
Através das narrativas, podemos observar o quão vivo este passado está presente na
memória dos moradores da comunidade, sem distinção de idade. Do menino ou menina que
toma consciência do seu meio, ao mais velho portador de uma trajetória e experiências dentro
do seu vínculo com sua terra. É um passado que se mantém vivo através da tradição oral e
validada pelo grupo.
Uma reflexão sobre o motivo da presença desse passado na memória dos descendentes
da Barra da Aroeira nos obriga a darmos atenção também a respeito da Guerra do Paraguai, e
algumas especificidades dessa experiência histórica concernente a essa comunidade, tendo em
vista que o passado desse grupo social se cruza com essa conjuntura temporal de âmbito
nacional. Nesse sentido, nos leva a fazer uma investigação frente à participação de escravos
na Guerra do Paraguai, avaliando o grau que houve a participação de negros no maior conflito
bélico na América do Sul, elegendo as circunstâncias e motivações que tornaram necessário o
emprego de negros para o engrossamento das fileiras de combatentes durante a Guerra do
Paraguai. Para responder tais questões, inicialmente faremos uma breve explanação a respeito
do que foi a Guerra do Paraguai, para assim também compreendermos de maneira mais clara,
o motivo pelo qual esse antecessor de Barra da Aroeira é tão vivo na memória de seus
descendentes.
4 Anos depois nota-se o sentimento patriótico que motivava o alistamento nos Batalhões dos
Voluntários da Pátria ferido com a duração da guerra e as notícias funestas dos campos de
batalha.
das regulares, “de quinhentos réis diários, uma gratificação de 300 mil réis ao dar baixa ao
final da guerra, e ainda teriam terras na extensão de 49.500 metros quadrados nas colônias
militares e agrícolas” (DORATIOTO 2002, p. 114) do Império.
Outra força somada ao poder bélico brasileiro foi a chamada Guarda Nacional, milícia
controlada pelas elites locais. Os guardas nacionais, “embora fossem considerados uma força
auxiliar do exército em caso de guerra, eram despreparados para o combate, pois
desempenhavam funções para-policiais internas” (DORATIOTO 2002, p.112). De maneira
geral, havia pouco entusiasmo por parte dos guardas nacionais, tanto pela situação degradada
dessa instituição, como também pela própria disposição dos milicianos, tanto que não era de
todo incomum, o envio de substitutos por integrantes desse corpo militar para lutarem na
contenda. Veremos certo entusiasmo patriótico no setor popular, logo é esse setor que em
maior parte, preencheram os corpos de voluntários da pátria, enquanto que a elite,
representada pela Guarda Nacional, relutava em ir para a guerra.
É nessa conjuntura que se insere a participação de escravos e negros na Guerra do
Paraguai. Essa participação é resultado de diversos fatores, que somados a situação de
despreparo e degradação das tropas regulares, tornou-se necessário o emprego desse segmento
da sociedade imperial.
poder. Como observado anteriormente, ele vai estar na esfera religiosa, assim como também
na política e até mesmo na iniciativa privada, como assinala Marilena Chauí:
Observamos uma paridade de significados entre esses dois termos, ambos se remetem
a significantes e seus significados. Estes termos podem estar tanto no campo da materialidade,
como do imaterial, e ainda do imaginário. A dualidade entre real e irreal é uma constante no
que se refere a um mito. O que há de se levar em conta é o grau de simbolismo que este
assume dentro de uma coletividade particular. Dentro da idéia de um mito fundador, o valor
simbólico é compreendido a partir da manutenção desse fenômeno pelos pares sociais
existentes dentro de uma comunidade.
Quanto a mito fundador, Chauí afirma que em qualquer fundatio, “esse mito impõe
um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa nunca,
que se conserva perenemente presente” (CHAUÍ 2001, p. 5), sendo assim, o mito fundador é
uma constante no diálogo entre fundação e formação. No nosso caso em questão, a fundação
da comunidade Barra da Aroeira é percebida através da pessoa de Félix José Rodrigues e sua
participação na Guerra do Paraguai, conseguindo através dessa campanha, o território que
atualmente seus descendentes reivindicam como seu. No entanto, apenas a experiência
histórica desse antepassado da comunidade não constitui a idéia de mito fundador. A
valorização popular e a manutenção de um grau de significância dentro do corpo social são as
prerrogativas que o coloca em nível de um mito vivo, responsável pela fundação e formação
de uma comunidade que se conserva coesa e unida por um passado comum. Passado e
presente, fundação e formação. Esses constituem os elementos basilares do fenômeno que
aqui nos limitamos a discutir.
Seguindo esses pressupostos do que é um mito fundador, percebemos esse fenômeno
em pleno funcionamento nessa comunidade. Entendemos essa relação que se estabelece nas
dualidades: presente e passado, fundação e formação. No caso dessa comunidade, o presente
se mantém em constante conversação com um passado de luta, um passado que significou
para Félix a própria liberdade, seja uma liberdade posta em contraste à situação de cativo, ou
uma liberdade que uma terra assegurada como sua, lhe garantiu. Para seus descendentes, esse
passado possui um significado ainda maior. É um passado que lhes garante uma identidade,
um pressuposto basilar que dá unidade para um grupo social e o distingue dos demais. E em
se tratando de uma comunidade quilombola, uma invariável no que se refere a sua
caracterização como tal.
Observamos agora como manifesta essa concepção de mito nas narrativas dos próprios
descendentes de Félix. Levando em conta a manutenção de um passado vivo e possuidor de
notável significância para os membros da comunidade:
- E tocaram pra Guerra do Paraguai, foi nessa época. E ai venceu a Guerra e vieram
embora prá cá. Falaram pra eles o que era que eles queriam de pagamento e ele falou
(se referindo a Félix): “eu queria era uma terra”. E aqui naquele tempo era o alto
Goiás e eles vieram e escolheram essa área de terra aqui e é conhecido por córrego e
serra e foi desse jeito que foi os limites da terra5.
- O primeiro a chegar nessa região, foi o Felix José Rodrigues. Porque ele prestou
serviço na Guerra do Paraguai e ajudou a vencer essa guerra e em troca desse
serviço prestado. (...) “o que ele queria era um pedaço de chão pra ele morar
sossegado junto com a família dele e em quanto existisse uma pessoa dessa família
ser dono e ser respeitado e também ter o direito de ninguém aborrecer eles 6.”
Nas narrativas observamos Félix José Rodrigues sempre ligado à questão do território,
e este sendo conseguido através da participação desse personagem na Guerra do Paraguai.
Percebe-se nas narrativas um forte laço entre os descendentes de Félix com o território. E
ênfase que se observa nos relatos, é a posição do voluntário da pátria em optar por uma
extensão de terra como recompensa pelos serviços prestados ao exército. Afirmam ser uma
das exigências do predecessor, a garantia de posse para seus descendentes do território.
Quando se referem à posse da terra e a vinculação com esse passado, clamam por respeito
dessa garantia. Nessas afirmações, o mito fundador na pessoa de Félix acaba assumindo essa
conexão entre território e identidade. Essas singularidades são elementos peremptórios, logo
que o vínculo com o território e uma identidade específica, são aspectos que contornam o
principal ponto de análise para a resolução de uma comunidade negra rural, em um quilombo
contemporâneo7.
O mito fundador, ou semióforo, conceitos de significação análoga, acabam sendo um
determinante nos conceitos de território e territorialidade na nossa exposição. Em destaque no
que se refere à fundação de um território e formação de uma territorialidade. Cabe então
discutirmos a respeito do que é território e territorialidade.
Haesbaert lança três noções do conceito de território. A mais difundida esta ligada a
divisão jurídico-política. Nesta definição, Haesbaert (2006, p.40) define o território como um
“espaço delimitado e controlado através do qual se exerce um determinado poder, na maioria
das vezes – mas não exclusivamente – relacionada ao poder do Estado.” Na segunda,
Haesbaert (2006, p.40) afirma que “o território é visto, sobretudo, como produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.” Nesse
sentido, o autor refere-se à face cultural, portanto uma noção voltada para as simbologias que
a cultura expressa. A terceira noção é a que o geógrafo afirma ser a menos difundida. Possui
uma associação com a esfera da economia. Segundo Haesbaert (2006, p. 40), a noção
“enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos/ou
incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como produto da
divisão “territorial” do trabalho.”
Tais definições compreendem elementos importantes da organização cultural de uma
comunidade quilombola em um espaço geográfico. Elementos estes ligados a organização
política, econômica e ainda as manifestações culturais. Ambos sendo reproduzidas dentro de
um território específico, possuidoras de características próprias.
Frente a tais definições, destaco as duas primeiras, sendo a terceira uma conseqüência
das anteriores e ambas são critérios que apontam o diferencial entre os diversos territórios.
Para as comunidades quilombolas de modo geral, a organização política é manifestada pela
atuação das associações dentro do espaço geográfico onde esta se insere. Dentro da visão
cultural na definição de território, destaco a atuação do mito fundador e o seu papel simbólico
na valorização de um espaço vivido, fenômeno este facilmente percebido nesse nosso objeto
7 In FIABANI, Aldemir.
A TÍTULO DE CONCLUSÃO
vem construindo práticas e vivências culturais específicas, o que ao fim se converte em uma
territorialidade singular que garante a esse grupo, uma identidade.
Compreender a formação de uma determinada identidade é de grande valor para
compreendermos o universo quilombola. Atualmente o conceito de quilombo se distancia da
noção histórica que tal palavra nos induz a pensar. Dessa forma, é necessário ligarmos a
questão da identidade com esse conceito, para conseguirmos visualizar a expressão de um
fenômeno que se encontra com uma significação diferente da concepção histórica tradicional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BETHEL, Leslie (org.). História da América Latina: da Independência a 1870, volume III. 1.
Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de
Gusmão. 2009.
FERREIRA, Marieta de Moraes. AMADO, Janaína. (org.). Usos e abusos da História oral. 6º
ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
MENEZES, Alfredo da Mota. Guerra do Paraguai: como construímos o conflito. São Paulo:
Contexto; Cuiabá, MT: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1998.
Edmundo Monte1
Resumo:
Este artigo vem somar-se com as recentes pesquisas cujas análises abordam as especificidades
e os processos históricos dos povos indígenas na região Nordeste. Num diálogo entre as
memórias orais dos índios Xukuru do Ororubá (Pesqueira e Poção/PE) e os registros
bibliográficos temáticos, analisamos as migrações sazonais de indivíduos dessa etnia em
direção à região canavieira de Pernambuco e Alagoas, durante a segunda metade do século
XX, motivados pelas secas periódicas e os conflitos agrários entre indígenas e fazendeiros na
região de origem. Sendo assim, enfocamos as maneiras como eram realizados os percursos
entre a Serra do Ororubá, local de moradia desses índios, e as cidades de destino, onde os
mesmos empregavam temporariamente sua mão-de-obra.
Palavras-chave: índios Xukuru; migrações; cana-de-açúcar; Zona da Mata.
***
Os índios Xukuru habitam atualmente em 24 aldeias, distribuídas em três regiões
climáticas2 na Serra do Ororubá, nos municípios de Pesqueira e Poção, localizados no Agreste
pernambucano. De acordo com os dados do SIASI-FUNASA, referentes ao mês de julho de
2010, a população indígena cadastrada para receber atendimento do órgão de saúde em
Pesqueira era de 12.005 indivíduos, sendo 6025 homens e 5980 mulheres. Em contrapartida, o
Censo do IBGE 2010 apontou que 9.434 indivíduos se autodeclararam indígenas, com 9.335
residentes nas zonas rural e urbana de Pesqueira e outros 99 no município de Poção.
A terra indígena Xukuru do Ororubá, demarcada e homologada em 2001,
corresponde a 27.555 ha. Ao longo dos séculos, foram muitos os conflitos entre índios e não
1
Mestre em História pela UFPE. Licenciado e especialista em História pela UFRPE. Realiza pesquisas sobre
História sociodemográfica dos povos indígenas no Nordeste. Membro do GT - Demografia dos Povos Indígenas
no Brasil, da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP). edmundomonte@hotmail.com
2
As regiões climáticas onde habitam os índios foram por eles nomeadas como: Ribeira (mais quente), Serra
(subúmida e mais agricultável) e Agreste (com maior altitude e presença de matas, possui clima seco durante o
dia e ameno à noite. Área mais apropriada à criação de bovinos e caprinos em escala doméstica).
O primeiro chefe de posto se chamava Geraldo. Chamava Seu Geraldo. Ele ainda dava
um milho, dava uma enxadinha, dava uma foice, dava umas sementes pra gente plantar,
e os índios vivia tudo lá. Ele sempre agradava assim. Mas, pra outra coisa, não. Um
remédio, ele dava se o índio tivesse doente. Depois, ele foi simbora e os outros num
ajudaram mais não. (Cassiano Dias de Souza, Aldeia Cana-Brava).
3
Em 1762, no local do antigo Aldeamento de Ararobá, foi fundada a Vila de Cimbres (atual Aldeia Cimbres). O
nome refere-se a um povoado português, no Distrito de Viseu, pois, conforme a legislação pombalina, as novas
vilas e lugares deviam receber nomes de Portugal. (FIAM/CEHM, 1985, p. 255-256).
Cajueiro). Esse tipo de relação social de produção só era benéfico para o “dono” da terra,
como observou Melo (1980). Para ele, o chamado “regime de parceria”, onde o pequeno
agricultor utiliza parte da terra do fazendeiro e transfere para este uma parcela da colheita,
bem como os restos da cultura alimentícia deixados no solo servindo de alimento para o gado
da propriedade, era amplamente praticado na região agrestina, onde grande parte da renda
gerada pelo pequeno agricultor, nesse caso o indígena, destinava-se aos bolsos dos
fazendeiros. (MELO, 1980, p. 230-233).
Despossuídos de terras próprias para plantar e viver, e ainda, afetados pelas secas
periódicas que assolavam a região, os Xukuru elaboravam estratégias para permanecerem
resistindo com suas famílias na região tradicionalmente habitada por eles desde tempos
pretéritos. Dessa forma, em sua maioria homens jovens e adultos migravam sazonalmente
para a Zona da Mata pernambucana e alagoana, buscando trabalho provisório nas lavouras e
usinas canavieiras da região. Analisando os fatores responsáveis pela emigração da população
das áreas rurais, Paul Singer classificou como “fator de estagnação”, a situação fundiária no
Agreste nordestino. O autor evidenciou que, nessas áreas, pode haver a “deterioração das
condições de vida, funcionando às vezes como „viveiros de mão-de-obra‟ para os
latifundiários e grandes explorações agrícolas capitalistas.” Esses espaços são ainda “a origem
de importantes fluxos migratórios sazonais”. (SINGER, 1985, p. 39).
A „morada‟ foi uma resposta suficiente, enquanto não se tinha os caminhões e rede
rodoviária adequados ao transporte pendular dos trabalhadores. Pois, morando nos
engenhos, eles eram mobilizáveis em permanência. E como dispunham de pequenos
lotes para culturas, podia-se diminuir para uma quantia inferior ao mínimo vital o
salário pago (teoricamente) em espécie. Em certas regiões da Zona da Mata, a „morada‟
foi associada, em proporções diversas, a outras formas de fixação da mão-de-obra rural,
com cessão provisória da terra via arrendamento, meação, etc.: os famosos foreiros. A
predominância, no entanto, do assalariamento era absoluta. (DABAT, 2007, p. 84).
4
Termo utilizado pelos Xukuru ao se referirem à Zona da Mata Sul de Pernambuco e Mata Norte de Alagoas.
5
Em 1910 Pernambuco tinha 46 usinas em pleno funcionamento. Dez anos depois, esse número subiu para 54
usinas. De acordo com Manuel Correia de Andrade, as altas nos preços do açúcar em decorrência da “(...)
desorganização da indústria de açúcar de beterraba, provocada pela guerra 1914-1918, não só intensificou a
fundação de novas usinas, como também aperfeiçoou e elevou a capacidade de produção das já existentes.”
(ANDRADE, 2005, p. 115).
6
Expressão utilizada pelos trabalhadores e moradores da Zona da Mata, em referência aos migrantes sazonais
oriundos do Agreste e Sertão.
ANDRADE, 2005, p. 103). Contudo, mais de meio século depois, num pequeno artigo escrito
para a Revista de Pernambuco, no ano de 1925, Joaquim Inojosa falou sobre a importância do
projeto que autorizou o governo a convocar um “congresso de estradas de rodagens” em
Pernambuco. O articulista destacou os dois aspectos principais desse projeto: o primeiro
ponto enfatizava a urgência na construção dessas estradas, como forma de solução dos
problemas rodoviários do Estado; a outra questão alertava para a necessidade do esforço
coletivo entre governo, municípios e empresários, haja vista a necessidade de conservação e
manutenção constante que obras desse tipo necessitam. Ele aproveitou para criticar a situação
em que se encontravam as estradas de ferro na época e fez um alerta sobre a necessidade
imediata da construção das estradas de rodagem:
Na situação actual em que nós achamos, com o péssimo serviço de uma estrada de ferro
desorganizada – certo que em via de completa reorganização – há mais vantagem para o
commerciante do Recife em buscar certos productos – cereaes, por exemplo – em
regiões do Sul, do que espera-los do interior. (INOJOSA, 1925, p. 22).
A partir dessas informações, uma das reflexões que propomos é compreender como
os Xukuru, na condição de migrantes sazonais, faziam para se deslocar até a região dos
engenhos e usinas, sobretudo durante as primeiras décadas do século XX. Os relatos de
memórias continuarão a guiar os percursos deste texto, pois “a fonte oral sugere mais que
afirma, caminha em curvas e desvios obrigando a uma interpretação sutil e rigorosa” do
historiador. (BOSI, 2004, p. 20).
Nos períodos em que estive realizando a pesquisa de campo na área indígena Xukuru
do Ororubá, afora as estratégias utilizadas para percorrer considerável parte do território de
27.555 ha, em busca de ouvir as experiências relatadas pelos índios entrevistados, em
determinados momentos pude perceber certos incômodos dos sujeitos ao rememorarem as
lembranças do passado (ALBERTI, 2003), enquanto “corumbas” na Mata Sul. Algumas
dessas lembranças estavam ligadas ao penoso e exaustivo trajeto Pesqueira-Zona da Mata,
percorrido em boa parte das vezes a pé pelos indígenas:
Nós saía daqui a pé pro Sul de Pernambuco. Você já ouviu falar em Catende?
Usina Catende? Trabalhei naquela região. Nós ia a pé, passando necessidade. Ia
eu, meu pai, dois irmãos, que eram mais velhos. Então, juntava aquele pessoal
da região pra ir trabalhar no Sul de Pernambuco. Pra sobreviver, né? Vamos
supor: plantava o milho, o feijão, e quando era no fim do mês de agosto pra
setembro, num tinha o que fazer. Quem precisava, tinha que ir trabalhar no Sul
de Pernambuco. Ia a pé e vinha a pé. (Antônio Faustino da Silva, Aldeia Pão-
de-Açúcar). (Grifamos).
Região de origem (Pesqueira/PE) e os principais destinos dos Xukuru para o trabalho sazonal nas lavouras
canavieiras. Fonte: Adaptações de Edmundo Monte. In: MONTE, 2012, p. 59.
O índio Cecílio, cuja família vive na Aldeia Cana-Brava7 há mais de quatro gerações,
também nos falou a respeito das viagens do seu pai e outros Xukuru até chegarem no “Sul”:
7
Observamos, durante a pesquisa de campo, que todos os entrevistados da Aldeia Cana-Brava possuíam
pequenas glebas de terra. Os índios informaram que os sítios onde vivem hoje são herança de familiares. Isso
Olha, eles saía de a pé. Aquela turmazinha, né? Quatro, cinco... Dez, doze... Saía de a
pé, caçando os serviço, trabalhando, até chegar no Sul. Às vezes pegava carona. Mas ia
mais de a pé, pra se deslocar até o Sul. Que era o canto que eles achava que tinha mais
aonde arrumar um dinheiro, pra trazer pra família que tava em casa. E pra voltar
também, era aquela mesma dificuldade. Voltava de a pé, com um saco nas costa.
Pegava uma carona... (Cecílio Santana Feitosa, Aldeia Cana-Brava).
Alguns detalhes desse relato merecem ser destacados. Dentre eles, a necessidade e/ou
preocupação dos índios em procurar algum serviço durante o cansativo trajeto. Devemos
atentar que os deslocamentos se davam no período das estiagens, o que acarretava um maior
desgaste físico provocado pelos efeitos do sol. Outro fato apontado diz respeito à dependência
e esperança das famílias que permaneciam na região de origem, geralmente as esposas e filhos
menores. Imaginamos os sentimentos de angústia e ansiedade dos que ficavam, enquanto
aguardavam o retorno dos pais, filhos e maridos. Essa questão foi abordada por Marilda
Menezes (2002), sobre o fato das mulheres se tornarem chefes de família, enquanto os
homens estavam ausentes:
Nesse sentido, segundo Cliffe (1978), a mulher acaba não apenas assumindo a
responsabilidade sob o trabalho agrícola, como continua realizando os afazeres domésticos,
educando os filhos, e mantendo ativas as relações sociais na comunidade em que vive. (apud
MENEZES, 2002, p. 88). Ao ser questionada sobre as reações da sua mãe – e porque não, de
outras mulheres Xukuru cujos maridos migravam para a Zona da Mata – nos momentos que
antecediam as viagens até lá, “Dona Lica” argumentou que:
Olhe, [a mulher] tinha que gostar! Porque naquela época, quando os homem dizia que
ia, as mulher num podia dizer não. Porque a cabeça de casa era eles! Então, pra eles, o
que eles decidisse, a mulher tinha que acatar. Naquela época, né? A minha mãe num
dizia nada não. Porque o único meio que tinha [para sobreviver] era esse. Porque na
época, antes de chegar essa época de cortar cana, ele fazia os balaio. (Maria José
Martins da Silva, “Dona Lica”, Aldeia São José).
demonstra a importância do trabalho provisório nas áreas canavieiras, mesmo para as famílias indígenas
proprietárias de pequenos sítios.
Além de apontar a dinâmica em torno das relações de gênero, referentes aos papéis
do homem e da mulher 8 “naquela época”, a índia Xukuru enfatizou sobre a necessidade do
trabalho sazonal, como forma de manutenção da família na Serra do Ororubá, em
Pesqueira/PE. Já que, próximo à chegada do inverno,
Meu pai botava roçado e a gente ia plantar e limpar mato no roçado junto com ele. Só
dava pra comer, porque o roçado que a gente botava nessa época era pequenininho.
Porque só tinha terra do fazendeiro. A terra do meu pai, parece que era duas ou três
conta de terra apertada. E fazendeiro dum lado e fazendeiro do outro. A gente queria
botar um roçado, tinha que pedir um pedaço de terra a eles. Eles dava, mas a gente, em
troco, tinha que plantar o capim pra deixar o gado dele comer. Aí, quando o gado
comia, a gente já não botava naquele canto. Já botava roçado em outro lugar, que era
pra plantar capim novamente, pra ir refazendo o terreno dele todo de capim. (Idem).
Então, passada a estação chuvosa, chegava o período que “(...) leva o homem do
Nordeste sêco para a zona úmida da cana-de-açúcar” (BARROS, 1953, p. 40). O pai de “Dona
Lica” era mais um Xukuru que, geralmente, fazia o percurso a pé, no vaivém do “Sul”:
Muitas, muitas vezes. Toda época do corte da cana ele ia. E ia a pé. Ia a pé pra Usina
Pedrosa. Era pro lado de Catende, de Bonito, pra lá. Que é muito longe! Hoje, eu indo
pra Bonito, eu vejo a distância que eles caminhava de pé. Parece que era meio louco! Ir
daqui pra Catende, de pé? Usina Pedrosa... Praquele mundo, de a pé. Veja bem! Ia um
grupo de homem, rapaz. Ia de grupo e voltava em grupo. (Maria José Martins da Silva,
“Dona Lica”, Aldeia São José).
8
Numa análise sobre o lugar das mulheres entre os camponeses no Nordeste, Heredia et al. (1987) observou que
nesse tipo de organização social existe um padrão rígido de divisão sexual do trabalho, bipolarizado entre o
“roçado” e a “casa”. Segundo os autores, “(...) por serem as tarefas desenvolvidas no roçado as responsáveis pelo
consumo familiar, as atividades nesse âmbito são reconhecidas como trabalho. Por oposição a elas, as atividades
desempenhadas no âmbito que corresponde a casa não são consideradas como tal.” (apud MAIA, 2004, p. 90).
que, fidedignamente, os Xukuru percorriam esses caminhos. Tratamos mais como hipóteses,
de acordo com os testemunhos orais dos indígenas e a bibliografia estudada. Em um artigo
sobre migrações sazonais dos Xukuru para a Mata Sul, Edson Silva (2009) observou que
alguns dos índios que faziam as viagens a pé, muitas vezes acompanhavam os trilhos da rede
ferroviária9 e, ainda, buscavam caminhos alternativos pelas matas. (SILVA, 2009, p. 235).
Tanto num caso, quanto no outro, as distâncias eram demasiadamente longas em se tratando
de caminhadas, cujos locais de destino consumiriam ainda mais esforço físico dos Xukuru,
nos estafantes serviços que permeiam a mão-de-obra nas usinas canavieiras de Pernambuco e
Alagoas.
“Seu” Miguel Preto, morador da Aldeia Cajueiro, nos foi indicado por outros
Xukuru, como uma pessoa que tinha ido várias vezes para o corte e colheita da cana, na Zona
da Mata Sul pernambucana e Mata Norte de Alagoas. Ao chegarmos a sua casa, porém, não o
encontramos. Segundo a sua esposa, “dona” Bernadete, apesar de ambos serem aposentados,
ele estava trabalhando no roçado da família, como fazia todos os dias. Ela própria, que
labutou por muitos anos na agricultura, só não mais o acompanhava porque hoje em dia sofre
com crises de asma. Ao questionarmos sobre as experiências do seu marido no “Sul”, ela
confirmou o que outros Xukuru haviam falado. Desde a época de solteiro, “Seu” Miguel Preto
trabalhou na região úmida nordestina: “ele foi antes de eu (...) namorar com ele, né? Porque
conhecer, eu já conhecia desde pequena. As primeira vez, quando ele era solteiro, [ele ia] por
Serra Grande, por São José das Laje, sabe?” (Bernadete Marinho, Aldeia Cajueiro). Após os
dois se casarem, em 1984, ela rememorou uma das viagens feitas pelo marido nessa época,
enfatizando as dificuldades e estratégias utilizadas para concluírem o trajeto:
Ele foi uma vez, mais um homem da Vila [de Cimbres, atual Aldeia de Cimbres].
Levou ele pro Sul. Pra Rio Largo! Aqueles mundo em Alagoas, perto de Rio Largo.
Ele foi pra lá... Aí, só pra nós esperar aqui, porque nesse tempo nós não era
aposentado. Só cá nós esperar alguma coisa... Quando deu fé, foi chegando de um
em um. Fulano ficou lá atrás... Ai eu digo: mas atrás como? Primeiro chegou Tonho,
que ele tinha um trocadinho e pagou passagem. Os outros num tinha, vieram pela
beira da praia, de pés. Eu sei que, em quatro ou cinco dias, chegaram aqui. Disse
que, pedindo esmola, pedindo carona, pedindo manga àqueles pessoal que tinha
chácara. Pedindo aos guarda pra se alimentarem, pra ver se podiam chegar aqui. Foi
assim, com quatro dia eles chegaram. Eu lembro até a hora que eles chegaram.
(Idem).
9
Analisando um mapa da antiga Rede Ferroviária do Nordeste (RFN), pude perceber que as distâncias da malha
ferroviária sentido Agreste-Recife, eram praticamente as mesmas das rodovias pernambucanas.
por Manuel Correia de Andrade, inclusive a respeito dos percursos, muitas vezes realizados a
pé:
Chegado, porém, o estio, nos meses de setembro e outubro, quando as usinas começam
a moer e a seca não permite a existência de trabalhos agrícolas no Agreste, eles descem
em grupos em direção à área canavieira, às vezes a pé, às vezes em caminhões, e vem
oferecer seus trabalhos nas usinas e engenhos. (ANDRADE, 2005, p. 133). (Grifamos).
período. (Ibidem, p. 128-129). Segundo Andrade (2005), se não fosse pela mão-de-obra dos
migrantes sazonais, “(...) as usinas do Nordeste dificilmente conseguiriam realizar as suas
moagens com as grandes safras” observadas à época. (ANDRADE, 2005, p. 133). A figura do
empreiteiro ou do arregimentador, que geralmente era alguém do próprio local de origem do
trabalhador migrante e tinha a função de intermediar a contratação desses para as usinas
(MENEZES, 2002, p. 129-130), passou a ser constante nas cidades agrestinas, dentre elas,
Pesqueira/PE. O índio Xukuru “Seu” Saturnino, foi um dos que relataram a respeito da ação
do empreiteiro:
Teve uma época também, quando eu tava com 17 anos... Aí, tinha uns cinco rapaz
ali, tudo mais véio do que eu, e me chamava: “vamos Saturno, vamos pro Sul!” Eu
disse: vamos! Eu nunca fui pro Sul, eu só vejo meu pai conversar da história do Sul
e... Vou conhecer um pouquinho. Aí nós foi. Nesse tempo, um empreiteiro das usina
vinha pegar a gente em Pesqueira, com um caminhão. Aí, o caba chegava lá, tratava
o tempo, a hora, o dia. Aí descia aquele caminhão, cheio de gente. Aí levou nós pelo
mundo abaixo, pra um lugar que tem aqui perto do Recife... Sertãozim! Descemos
naquele meio de mundo e fomos sair perto de Serra Grande. (Saturnino Alves
Feitosa, Aldeia Cana-Brava). (Grifamos).
Chegou um rapaz de lá e me chamou pra eu ir. Aí eu fui pra Usina Pedrosa. (...) Fui
de caminhão. Nós fomos de trem até Bezerros, lá nós saltemos e peguemos o carro
pra usina. E lá se foi o carro... Trabalhei lá cinco mês, seis mês... Fica em
Pernambuco mesmo, de Barreiros acima. (Cassiano Dias de Souza, Aldeia Cana-
Brava).
Passava um mês, passava dois mês. E de mês em mês, às vezes, eles vinha. Tinha
deles que num vinha de mês em mês, porque às vezes o que arrumava lá, primeiro
tinha que pagar lá no barracão e num sobrava dinheiro. Aí, passava mais um mês
trabalhando e aqui as família tudo se acabando de fome. Se virava com as coisa do
mato mesmo. (Cecílio Santana Feitosa, Aldeia Cana-Brava).
Considerações finais
No ambiente açucareiro, afora as péssimas condições de acomodação, com barracões
insalubres e lotados de trabalhadores, a maioria dos migrantes indígenas realizavam os
pesados serviços da limpa do mato e corte da cana. (MONTE, 2012, p. 68). Tudo isso
associado a uma alimentação de baixa qualidade, cujo teor calórico e nutritivo dos alimentos
estava muito aquém do básico necessário para este tipo de trabalho (CASTRO, 1984, p. 139-
140). Percebemos o quanto era sacrificante o cotidiano dos indígenas e demais “corumbas” na
região do açúcar, potencializado pelos cansativos e longos trajetos realizados, muitas vezes a
pé, pelos Xukuru do Ororubá.
REFERÊNCIAS
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__. O fascínio do vivido, ou o que atrai na história oral. Rio de Janeiro: CPDOC,
2003, 4 p.
BOSI, E. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. 2ª ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.
CASTRO, J. de. Geografia da fome: o dilema brasileiro (pão ou aço). 10ª ed. Rio de Janeiro:
Edições Antares, 1984.
LOPES, J. S. L. O vapor do diabo: o trabalho dos operários do açúcar. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2ª ed., 1978.
MENEZES, M. A. de. Redes e enredos nas trilhas dos migrantes: um estudo de famílias de
camponeses-migrantes. Rio de Janeiro: Relume Dumará; João Pessoa: EDUFPB, 2002.
POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, FGV, vol. 5,
n. 10, 1992, p. 200-212.
PONCIONI, C. O Brasil visto por Louis Léger Vauthier (Pernambuco, 1840-1846): diário e
cartas. In: Navegações, Porto Alegre: PUC/RS, v. 3, n. 2, jul./dez. 2010, p. 121-129.
SHARPE, J. História vista de baixo. In: BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
SINGER, P. Economia Política da Urbanização. 10ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
VILLA, M. A. Vida e morte no Sertão: história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX.
São Paulo: Ática, 2001.
Andréa Bandeira1
RESUMO:
O(a) historiador(a) compreende sua narrativa como uma construção discursiva resultante de uma
consciência histórica. Com essa premissa, buscou-se trilhar as memórias individual, coletiva,
social e histórica em sua constituição, a partir de estudos da memória e da história como
consciência de si e narrativa social. Observou-se como a narrativa da memória tem sua memória
de narrativas, significando que são múltiplas as partes e os aportes que compõem o ser e a
memória de si. Por isso, a memória que se conta tem muitas faces e jeitos. E salientar como o
contexto interfere na invenção de um espaço no tempo da história e como isso é percebido ao se
materializar e “historicizar” a subordinação das mulheres, ou seja, como as identidades são
construções históricas e como a história é responsável pela reprodução dessa “economia sexual”
que se institui para a reprodução da interiorização da inferioridade do feminino e sua
marginalização, bem como da invenção de “outras minorias”.
Para construir o passado historiado, recorrem-se às mais diversas fontes produzidas pelo
humano que, de algum modo, relaciona-se com o espaço-tempo recortado para a produção da
narrativa e do objeto de avaliação historiográfica. Tais fontes são forjadas e tratadas à luz do
entendimento de que um conjunto de símbolos será forjado sobre elas para tornar possível seu
uso para os objetivos da história, marcar as identidades possíveis e reproduzir o corpo social
passado que se quer no futuro.4 Uma série de conflitos resultará inerente à própria prática da
1
Doutora em História (UFBA) com a tese Resistência Cor-de-rosa-choque: militância feminina no Recife, nos anos
1960, confirmando sua trajetória na pesquisa sobre a participação de mulheres na História, a partir de uma
abordagem de Gênero, vinculada à tradição marxista. Integra o Colegiado de História, na Universidade de
Pernambuco, Campus Petrolina, o Núcleo de Pesquisa e Estudos em Gênero (NUPEGE/UFRPE/GT de Gênero-
ANPUH-PE) e o Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades, Religiosidades (GPCIR/UFS). andreabasa@uol.com.br
2
MEIRELES, Cecília. “Desenho”. Mar absoluto. Brasil, 1945.
3
BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, 205.
4
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
linguagem que só existe em forma discursiva. Forma esta que existe no limite entre o objeto e o
valor que cerca e reproduz o objeto. Entende-se assim que não se produzem falas fora do
discurso e que o discurso é sempre interessado, ideológico. 5 Também, que entre as fontes e a
narrativa, a forma discursiva da memória (do passado futuro) que compõe a história, há que se
relacionarem memórias, memórias de indivíduos, memórias coletivas, memórias históricas,
material, dialética e historicamente construídas. Assim, este artigo se propõe a apresentar uma
proposta de análise de interesse para a história, norteada pela teoria feminista, na aceitação da
relatividade das teorias das ciências humanas e no câmbio possível entre elas para conter o
complexo humano, no uso do conceito de gênero para a compreensão da construção individual,
social e histórica da memória e da própria história, com discurso social não isento de verdade.
A narrativa que se propõe, considera a fonte oral, resultado de entrevistas individuais,
como a fonte basilar, por ser a fonte comum que restou aos não sujeitos. Essas falas individuais
são confrontadas umas às outras. Espera-se, no confronto das entrevistas, encontrar uma
memória coletiva. 6 Além, essas fontes orais são confrontadas às outras fontes produzidas com o
objetivo de serem discursos históricos, do passado tornado futuro. Ao se confrontarem as falas
resultantes das entrevistas (memórias individuais) com as falas resultante do confronto entre as
falas individuais (as falas coletivas), e estas falas coletivas com as falas resultantes da memória
documental e histórica já produzidas, espera-se contar partes da história até então caladas.
Entende-se que as memórias – individual, coletiva e histórica, inclusive a memória oral
de algum modo “tranversada” de uma historicidade, se confundirão e resultarão numa narrativa,
que é o texto historiográfico, porque cultura e sujeito se confundem resultando na linguagem que
os relaciona; porque sujeito é sujeito de sujeitado à cultura que é uma construção do sujeito. Na
narrativa, o indivíduo objeto especial da história – existente no espaço-tempo recortado do
passado – é o sujeito, representação de cultura.
1.2. A memória
De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as
palavras deste idioma para a sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem
apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado
o espírito desta última e poderá produzir, livremente nela.7
5
Ver: EAGLETON, Terry. Depois da teoria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, e Ideologia: uma
introdução. São Paulo: Boitempo, 1997.
6
Ver: HALBWACHS, Maucice, 2004, e SARDEMBERG, Cecília M. B., 1998.
7
MARX, Karl. O dezoito brumário e Cartas a Kugelmann. São Paulo: Paz e Terra, 1997, 21-2.
parte exige uma memória modelada. Uma estrutura de memória, então, subjaz à memória mesma
e é sobre essa estrutura que trataremos nesta parte. Para tal, utilizar-se-á conceitos forjados em
autores diversos, que se entende são as representações do pensamento formalizado e que
redundou na elaboração do pensamento ocidental. Seguir-se-á ideias fundantes sobre o
entendimento do tempo e do espaço, necessários para situar a memória como imagens
construídas num contexto, o espaço-tempo da memória, que é a própria memória. Memória que
se materializa no discurso. Razão porque se enfrenta o debate sobre a relação entre ser e
linguagem, para então compreender a memória representada no movimento da palavra-ação e
discurso. Também um componente da fabricação da história.
“Para que houvesse um início o homem foi criado”.8 O Livro XII da obra De Civitate Dei
é um texto que tenta desvendar as origens. Agostinho questiona a origem da bondade e da
maldade nos anjos; depois, afirma que na origem do humano o princípio e o fim dessa criação se
estabeleceram em si mesmos. O princípio que originou o humano foi seu próprio objetivo de
existir. Sobre essa origem, far-se-á uma abordagem materialista-histórica-dialética, entendendo
que a humanidade se criou na relação de produção e reprodução da vida, com o estabelecimento
da divisão social do trabalho e na estruturação do parentesco, a relação com o outro social
facilitado e complexado com o desenvolvimento da linguagem, uma vez que interessa afirmar o
humano como um ser-de-linguagem, criado na fala e “re-criado” no discurso. Dessa forma,
materializar – como pensava o Bispo de Hipona quando afirmou o princípio fundador na
sabedoria de Deus – o Verbo em movimento. E, ainda historicizar, para além da proposta de
Hannah Arendt, sem negá-la, que se motiva em Agostinho, para explicar esse momento como o
do nascimento do político, do Homo Politicus, pelo caráter de liberdade próprio da natalidade, a
origem em ação, “É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser
previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes”.9
Novamente, retornar-se-á à Cidade de Deus. Ao longo do Livro XII, Agostinho especula
sobre o tempo e afirma que este não havia antes do humano 10, não se conta antes da criação,
assim como é infundado falar de um mundo antes da sua concepção, que é também criação do
tempo. O Bispo explica, ainda, que não há contradição na Bíblia quando nela está escrito sobre
os dias da criação. Não há contradição, porque esses números de dias não são mesuras do tempo,
8
Tradução livre para “Quod initium, e o modo antea nunquam fuit. Hoc ergo ut esset, creatus est homo, ante quem
nullus fuit” (E tal princípio, como ele, antes jamais existiu. Para que existisse, foi criado o homem, antes de quem
não existiu nenhum). AGOSTINHO. Cidade de Deus contra os pagãos. Petrópolis-RJ/São Paulo: Vozes/Federação
Agostiniana Brasileira, 1990, 88. Esta tradução aparece em inúmeros textos, ver: ARENDT, Hannah. A condição
humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, 190.
9
ARENDT, Hannah, 2000, 190.
10
Êxodo, 3:14.
mas qualidades deste.11 É sabido: o tempo é fundamental para o humano, precisa sua natureza
finita e móvel, histórica; o humano existe num tempo e em movimento; o tempo se estabeleceu
com sua criação. Entende-se, então, que o movimento que se estabeleceu com o tempo foi o
movimento das palavras, necessárias para que se pudesse forjar o conhecimento e, no interesse
do social, se amalgamar o que foi dito.12
Antes não existia pensamento, que se faz no processo cognitivo, mas pura sabedoria, “o
Verbo quer dizer, a Sabedoria, criadora de todas as coisas”. 13 Este é também ao tempo a
natalidade da linguagem, expressão ipsis litteris da ação do saber ou saber em movimento, no
tempo. A linguagem no tempo caracteriza o humano e apenas através dela ele reconquista o que
perdeu na “Queda”, a eternidade. Por isso, mulher/homem se narra, faz história e na história se
perpetua como indivíduo, apostando na compreensão de Hannah Arendt sobre a liberdade
advinda com a natalidade, e mais além como Sociedade. 14 Explica-se a história ser narrativa de
sujeito, no duplo sentido de sujeitado (alienado) e de portador de ação, e ser trágica: “Se a ação,
como início, corresponde ao fato do nascimento, se é a efetivação da condição humana da
natalidade, o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da
pluralidade, isto é, do viver como ser distinto e singular entre iguais”.15
Sobre a história se pode ainda afirmar que é uma construção imagética de sentido através
do conhecimento que se tem do passado das ações humanas. Para tal, utilizam-se as fontes que
“resguardam e contam” esse passado. Guardam memória individual e coletiva e revelam o ato
primordial de representar a si através do outro. Através da história se forja o encontro entre
passado e futuro no instante presente da narrativa, pois “trata-se de um início que não é o início
do mundo, não é o início de uma coisa, mas de alguém que é ele próprio, um iniciador”.16 E, por
isso, vivemos sob uma ilusão de ótica. Aprende-se a ver o que vemos. Para se associar, carece-se
de uma referência que nos é dada pela memória. Somente se vê o que já foi visto e transformado
em linguagem imagética, com o que nosso cérebro pode dialogar. No entanto, continua-se a
acreditar na falácia de que há um paradoxo na fonte que se usa para guardar essa memória e
fazer a história: que ela eterniza o instante, quando se sabe que ela é outro modo de construir um
diálogo e uma relação com o outro, pois “ainda que essas imagens, individualmente, nos
11
AGOSTINHO, 1990, 51.
12
“Fala desse modo à parte do homem que no homem é mais perfeita que as demais de que consta e à qual apenas
Deus é superior. Porque é muito razoável pensar ou, se não for possível, pelo menos crer, que o homem, feito à
imagem de Deus, está precisamente mais próximo de Deus pela parte que supera as demais partes inferiores, que
tem em comum com os animais”. AGOSTINHO, 1990, 20.
13
Idem, 44.
14
ARENDT, Hannah, 2000, 17.
15
Idem, 191.
16
Idem, 190.
existe uma lógica da percepção que se impõe ao grupo e que o ajuda a compreender e a
combinar todas as noções que lhe chegam do mundo exterior [...] Cada vez que
percebemos, nós nos conformamos a esta lógica; ou seja, lemos os objetos segundo
essas leis que a sociedade nos ensina e nos impõe. É também esta lógica, são essas leis
que explicam que as nossas lembranças desenrolam em nosso pensamento a mesma
sequência de associações, pois no mesmo momento em que estamos mais em contato
material encontramos no referencial do pensamento coletivo os meios de evocar a
sequência e seu encadeamento; facilmente percebemos isto quando se trata das
percepções do mundo material, se essa lógica social, neste campo, não estivesse a esta
altura rigorosa, fortificada que está por sua universalidade.19
17
Idem, 50.
18
HALBWACHS, Maurice, 2006, 55.
19
Idem, 61-2.
20
Idem, 55.
21
ARENDT, Hanah, 2000, 188.
Por entender que a história é uma ação consciente de identificação de si, através da
elaboração de uma escrita de si, que se faz ao mesmo tempo coletiva, mas sobretudo por seu
atributo de ciência, de estar ciente de, adota-se lastrar o entendimento de H. White quando
debate a consciência histórica de fazer história, na sua Metahistória.
O autor, nessa obra, apresenta o desenvolvimento das teorias que possibilitam a
construção das narrativas históricas e propõe uma teoria formal que entenda a historiografia
como uma estrutura verbal em forma de discurso em prosa narrativa e que esta estrutura em geral
é de natureza poética.22 É um trabalho de análise da estrutura do pensamento, “imaginación”,
histórico. O autor acredita faltar uma teoria formal historiográfica, não conquistada até o
momento, apesar do empenho dos autores clássicos. Talvez, por causa do privilégio dado ao
pensamento científico, ao qual acredita a História não pertence.23
Como afirmou o autor, a história é uma estrutura verbal em forma de discurso em prosa
narrativa, e esta estrutura, em geral, é de natureza poética, como elemento metahistórico, ou seja,
há um modus operandi que é próprio do fazer histórico e que se estabelece na conduta
historiográfica. Além de identificar e interpretar as principais formas de consciência histórica,
objetiva estabelecer os elementos poéticos da Historiografia e da Filosofia da História em
qualquer época.24 Assim, o que diferencia a obra de um(a) historiador(a) da obra de um Fílósofo
da História é “la historia pripiamente dicha” e não o seu “contenido”. Ou seja, o que é implícito
na narrativa histórica é conceituado nas filosofias da história e os estudiosos da linguagem
captaram a origem poética das teorias “supuestamente” científicas da historiografia. Porém, H.
White não apresenta autores que possuam trabalhos específicos nesta área, dando margem à
crítica a sua tese. Outrossim, os estudos sobre a linguagem iniciam-se com Saussure nos anos
1930 e os estudos da psicologia que poderiam remeter a este vínculo, anteriormente,
tangenciaram e seguiram outros objetivos. Sobre os trabalhos que vieram a relacionar o seu
impacto na produção da memória, poder-se-ia apresentar, ainda, os trabalhos de Halbwachs, A
Memória Coletiva25 – post morten, e de Walter Benjamim, contemporâneos, em “O Narrador” e
“Sobre o Conceito de História”, 26 incipientes, apesar de fundantes, mesmo que sejam
conclusivos, apenas servem parcialmente ao propósito de argumentarem “cientificamente” sobre
22
WHITE, Hayden. Metahistoria: la imaginación histórica en la Europa del siglo XIX. México: Fondo de Cultura
Económica, 1992.
23
“En esa teoría considero la obra histórica como lo que más visiblemente es: una estructura verbal en forma de
discurso en prosa narrativa”. “Em tese, considero a obra histórica como visivelmente é em primeiro plano: uma
estrutura verbal em forma de discurso em prosa narrativa” (tradução livre). Idem, 9.
24
Idem, 406.
25
HALBWACHS, Maucice, 2004.
26
BENJAMIM, Walter. 1994.
a questão, como é a expectativa do autor. O delineamento implícito de uma ideia não a efetiva no
conjunto do conhecimento, porque não a revela na prática do pensamento social. O entendimento
da linguagem como um transmissor dos costumes era reconhecido, mas a dizer que a estrutura da
linguagem identificasse com a estrutura do pensamento que se pensa, essa é uma proposta que
parte dos estruturalistas no século XX. Nota-se, o autor buscou longe a origem da sua tese e
causou anacronismos que dificultam compreender o porquê de, até então, não existir uma teoria
que possibilitasse a observação do componente fundamental do fazer historiográfico, a
construção mesma da narrativa e sua relação com as ideologias dominantes, aquilo que Michel
de Certeau (1975)27 tratou como “um lugar social”, “não dito” na “instituição histórica”.
Observa-se que tal afirmação somente é possível pela maximização do papel da ideia, da intuição
(um pensamento platônico), sem vínculo com o movimento e a materialidade da realidade-ação.
Algo que os materialistas-históricos negam por princípio. Porém, não se apresenta como uma
contradição concordar com o autor quando ele afirma: “el pensamiento permanece cautivo del
modo lingüístico en que intenta captar la silueta de los objetos que habitan el campo de su
percepción”, 28 porque se é ser de linguagem. A língua é mais do que um canal de comunicação.
Ela é a representação do modelo que se utiliza para pensar o pensamento. A abstração na sua
forma pura, que humaniza a mulher e o homem quando no movimento de se contemplar e às
próprias ações. Razão porque se é “ser histórico” e se historiografa o próprio passado. A
linguagem tem a função de reproduzir costumes e culturas, sendo o veículo fundamental da
memória e da história.
H. White concorda com Collingwood em A Ideia de História,29 escrito nos anos 1930,
que a Filosofia da História se confunde com a própria História, uma vez que não se pode separar
o modo de pensar o objeto, do próprio objeto pensado. O objeto só é pensado quando um modo
de pensamento possibilita realizá-lo. Objeto e pensamento sobre o objeto coexistem, expressando
a materialidade da ideia. Assim, para o autor, narrativa e modelo de narrativa têm o mesmo
princípio “moral e estético”, que entende como formações poéticas que sancionam as teorias
particulares e resultam como explicação na História. E continua afirmando que qualquer
explicação tem o mesmo valor moral e estético – bem como, sua escolha é uma escolha moral e
estética, e não epistemológica – e não pode ser considerada mais “realista” que outra. E, por
isso, sempre faz-se “una elección” entre os modelos existentes e possíveis, “estrategias
interpretativas rivales”, quando se pretende refletir sobre uma realidade passada, “la historia-en-
general”. A escolha, então, é ideológica, no sentido moral e não formal – o que se considera a
27
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
28
WHITE, Hayden, 1992, p.
29
COLLINGWOOD, R. G. A ideia de História. Lisboa: Presença, 2001.
principal contribuição do autor, uma vez que sua apologia da história é comprometida e coincide
com o pensamento de historiadoras e historiadores como P. Anderson, M. Bloch, K. Marx e J. C.
Reis.30 Finalmente, o autor acredita que uma base epistemológica para a história ainda se
afirmará, causando sua injustificada cientificidade. À história, falto um método positivo. O grau
de subjetividade de seu caráter moral e estético na produção e eleição dos modelos implica na
ausência de objetividade e universalidade, própria das teorias modernas.
Ao analisar o desenvolvimento da História a partir dos modelos literários, o autor sugere
a história como construção de discurso e arte-narrativa. Ao observar as Estratégias de Explicação
e os Modos de Articulação, afirma que no seu desenvolvimento, a história passou por Fases –
que ele conceituou de Prefigurações e associou com os Tropos de Linguagem, que podem ser
reconhecidas nas obras produzidas ao longo de dois séculos, por historiadoras e historiadores,
bem como filósofas e filósofos da História. Conclui que a História passou por fases, e na sua
última fase, acontecida na virada do século XIX e no século seguinte, foi responsável pela crise
de paradigmas, “fenoménica”, grassada na Historiografia, “la crisis del historiscismo”, em
consequência de se fazer uma ironia inconsciente, explicada pela crítica, “letargo teórico y
rebeliones”, sem uma exata compreensão, aos modelos existentes. Em razão de conceituar a
última fase de Ironia, e entender os pensadores como irônicos, H. White levaria à compreensão
de que estes teriam a capacidade de duplicar a realidade-objeto, percebendo-a como uma
projeção de si e uma representação,31 que, contrariamente, o autor nega, logo, enseja uma
rejeição parcial à sua tese.
Reporta-se, ainda, a essa obra de H. White, por entender sua contribuição à existência de
um modelo ou de uma estrutura intrínseca a toda narrativa, desde a narrativa de memória,
autobiográfica ou não, incluindo as narrativas orais geradas nas entrevistas, bem como as
diversas fontes utilizadas pelo fazer historiográfico até a narrativa histórica per si. Bem como,
partir da sua crítica à subjetividade da história para uma positividade da subjetividade das
ciências, em função dos paradigmas propostos pelo pensamento feminista.32
30
Ver: ANDERSON, Perry. O fim da História. Rio de Janeiro: Zahar; BLOCH, Marc. Apologia da História ou o
ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar; MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007; REIS,
José Carlos. História e teoria. Rio de Janeiro: FGV; A História entre a Filosofia e a Ciência. Belo Horizonte:
Autêntica; Escola dos Annales. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
31
Ver: ARISTÓTELES, 1987. Coleção Os Pensadores; KIERKEGAARD, Soren A. O conceito de angústia. São
Paulo: Hemus, 1968.
32
Ver: RAGO, Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: PEDRO, Joana Maria; GROSSI,
Miriam Pillar (orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, 1998, 21-41, e “Feminizar é preciso:
por uma cultura filógina”. <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-88392001000300009&script=sci_arttext>.
Em seu Memorial coloca seu „eu‟ dialogando com o „tu‟ de sua alma relutante.33
33
DAVIS, Natalie Z. Nas margens: três mulheres do século XVII. São Paulo: Cia das Letras, 1997, 16.
34
CERTEAU, Michel de, 1994, 45.
35
ARENDT, Hannah, 2000, 189.
36
DAVIS, N. Z., 1997, 197-8.
37
“Tanto Esdras quanto Neemias deram um toque judeu à tradição oriental genérica – mas também
especificamente persa – de escrever autobiografias na rimeira pessoa”. MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes
clássicas da historiografia moderna. Bauru-SP: EDUSC, 2004, 33 e ss.
38
DAVIS, N. Z., 1997, 197-8.
39
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
o autor. Os traços que marcam e identificam o pintor são esses detalhes das suas obras artísticas.
Paralelamente, Carlo Ginzburg caracteriza o trabalho do detetive policial e criminalista (como
exemplo, o famoso personagem do escritor Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes) e do médico,
tanto do fisiologista quanto do psiquiatra (o próprio Doyle, Morelli e depois Sigmond Freud são
exemplos), como atividades que dependem de seguir trilhas imaginárias, com uma dose de
intuição pelos “nossos pequenos gestos inconscientes”.40 Segundo Ginzburg, essa intuição,
própria da semiótica médica, a busca por indícios, tem raízes nas caças – por trás desse
paradigma indiciário [...], entrevê-se o gesto mais antigo da história intelectual do gênero
humano: o do caçador agachado na lama, que escruta as pistas da presa 41 –, a experiência da
busca através dos sinais irrefletidamente deixados, porque sinais dos esquecimentos da memória.
No momento em que se insere no objeto caro ao historiador, as fontes, os documentos
escritos ou que se relacionam com ele, como a entrevista, Ginzburg remete à escrita e, daí, às
lendas de que a escrita tem origem nas pegadas dos animais. Deste ponto ao uso do paradigma
em diferentes épocas, Ginzburg afirma a disposição cientificista de generalizar, o que relega o
método, aqui tratado, ao tipo de conhecimento de elemento individual, e por isso desprezível, “a
tendência de apagar os traços individuais de um objeto é diretamente proporcional à distância
do observador”.42 Quando as ciências humanas, tradicionalmente, separadas das ciências da
natureza pelo seu método qualitativo, notarem que o rigor de suas pesquisas pode ter a
flexibilidade do paradigma indiciário e se dispuserem a praticar mais do que apenas regras
preexistentes, os limites entre o racional e o irracional se oferecerá como espaço de trânsito entre
o objeto e o imaginário que o cerca, para reapresentar a realidade.
Realidade esta que necessita de uma escritura, levando C. Ginzburg, numa outra obra, a
tratar da história, da prova e da retórica. Desafia a leitora e o leitor ao passeio pelo procedimento
da retórica para desvendar suas características estilísticas e mostrar que os antigos faziam da
retórica uma argumentação. Neste ponto, introduz no debate o critério de verdade e afirma que
esses critérios são sempre morais, o que levou a afirmar que a relação entre retórica e prova é
que “a retórica se move no âmbito do provável, não no da verdade científica, e numa
perspectiva delimitada, longe do etnocentrismo inocente”.43 Então, prova e escritura, para
mostrar o objeto, se farão sempre de modo argumentativo, retórico, o que é uma afirmação muito
mais realista e complexa do trabalho do(a) historiador(a), do que as críticas que sofre a
disciplina por ser forjada numa narrativa eivada de subjetividades.
40
WIND, E. Artes e anarchia. Milão, 1972 apud GINZBURG, Carlo, 1989, 146.
41
GINZBURG, C., 1989, 154.
42
Idem, 163.
43
GINZBURG, Carlo. Relações de força. São Paulo: Cia das Letras, 2002, 41.
As histórias conquistam um espaço especial com seu „era uma vez‟. Constituem um
instrumento econômico para ressaltar um tópico, desferir um ataque. „tirar proveito de
uma situação (...) abordando-a inesperadamente‟. O contador de histórias pode interferir
na maneira como os outros recordam o passado e pode mudá-lo, acrescentando um
detalhe inesperado a uma narrativa conhecida. Tudo depende de sua habilidade, da
44
Idem, 44.
45
Ibidem.
46
Ibidem.
47
GINZBURG, Carlo, 2002, 44.
48
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2006, 14.
49
GINZBURG, C., 2006, 21.
50
Reportamo-nos ao autor e obra já citado, WHITE, H., 1992.
Disto compreende-se que todo e qualquer paradigma resulta de acordos entre aqueles que
se propõem a fazê-lo, bem como do valor e alcance dos seus produtos.
[As margens onde viveram as mulheres] era uma região limítrofe entre depósitos
culturais que permitiam novos cultivos e híbridos surpreendentes. 52
Concorda-se que há uma estrutura da memória, e que esta estrutura é temática na escrita
autobiográfica, como bem analisou Natalie Z. Davis, supracitada. Questiona-se e se afirma que
dessa forma é possível pensar uma estrutura temática intrínseca à memória oral que se opera,
também na entrevista, forjada na própria estrutura da memória, no contexto, na operação
historiográfica. Notas que se tenta, ao longo do texto, detalhar e compreender.
Resta analisar como essa estrutura da memória oral se apresenta, e se se apresenta como
tal, de forma diversa, ou no mínimo híbrida, quando interferem as diferenças relacionadas ao
sexo-gênero. Ao utilizar como arsenal teórico a abordagem de gênero, “transversando” o modelo
e o método da História Social, adota-se o entendimento de as mulheres e os homens, pelas suas
construções sociais e de sexo-gênero, arranjam recursos culturais diversos e deles dispõem
quando se representam, e se apresentam ao outro, e estão no mundo.
Sobre essa temática, Cecília Sardemberg desenvolveu um trabalho em que analisa e narra
as memórias das experiências de antigos operárias e operários da Fábrica São Brás, da indústria
têxtil, fundada em 1875 e situada em Plataforma, subúrbio de Salvador. Essa fábrica funcionou
por mais de um século, operando sob o sistema “fábrica-vil‟operária”, sob a égide do
“paternalismo indústrial”. Nessa pesquisa, além dos antigos trabalhadores e trabalhadoras da
fábrica, produziram depoimentos diversas moradoras e moradores da vila operária que, de
alguma forma, relacionaram-se ou participaram direta ou indiretamente da vida e das atividades
envolvidas no conjunto São Brás. A autora, então, pode observar que diferentes gerações
guardavam diferentes memórias e que esta memória era repassada, porém antes “transversada”
por diferenças que se relacionavam com os modelos próprios para a construção de uma
identidade sexo-social para cada sexo-gênero. Havia e há uma memória recortada por relações
que se firmam e se afirmam entre os sexos, o gênero da memória. Por isso, afirma:
essa memória não se revela uníssona e sim polifônica. Ela se mostra diferente, e no
51
DAVIS, N. Z., 1997, 16-7.
52
Idem, 196.
53
SARDEMBERG, Cecília M. B., 1998, 147-164, 149.
54
O conceito de Gênero será discutido em um próximo subcapítulo. Ver: SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil
para análise histórica”. Recife: SOS Corpo, 1991, 7.
si no interior do todo social, afirmando-se como valor distinto e constitutivo desse mesmo
todo”55, tornando-se o conceito de Gênero um novo paradigma, faz-se um passeio pelo trajeto do
pensamento ocidental nos dois últimos séculos, naquilo que interessa particularmente à História.
55
GOMES, Ângela de C. (org.). Escrita de si, Escrita da história. Rio de Janeiro: FGV, 2004, 11-2.
56
GINZBURG, C., 2002, 43.
57
Ver: PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988; REIS, José Carlos. Escola dos Annales. São Paulo: Paz e Terra, 2000; YANNOULAS, Sílvia Cristina. “Iguais
mas não Idênticos”. Estudos Feministas. v. 2, n. 3. Rio de Janeiro: CIEC/ECO/UFRJ, 1994, 7-16.
58
Aqui, utiliza-se o conceito de diferença usado por Sílvia C. Yannoulas, que considera que o direito a igualdade,
dado entre os iguais, estabelece o direito às diferenças. Ver: YANNOULAS, Sílvia C., 1994.
59
Considerando, como fez Ana de Miguel, no seu texto “Feminismos” que toda forma de reivindicação de igualdade
de direito, mesmo aquelas que se resumiam aos escritos de mulheres nobremente educadas, são lutas feministas e
devem ser consideradas na História do Movimento Feminista. Ver: MIGUEL, Ana de. “Feminismos”. In:
AMORÓS, Celia (coord.). 10 Palabras clave sobre la mujer. Pamplona: EDV, 1995, 217-235.
conquistar a igualdade entre mulheres e homens. 60 Nas suas análises e teorizações buscaram a
origem das desigualdades entre os gêneros na história das desigualdades sociais entre os
humanos.61 Com esses pensadores e pensadoras, militantes, começaram a surgir na historia
espaços para grupos sociais, antes esquecidos ou desconsiderados como sujeitos de ação:
nasciam, a partir de então, outros discursos.
Para entender o desenvolvimento do discurso pluralista, é necessário revisar as filosofias
ocidentais desde René Descartes, passando por Kant e Hegel até Heidegger e os estruturalistas,
considerando Michel Foucault no que ele contribuiu para o avanço das filosofias do século XX.
A obra do filósofo e naturalista europeu René Descartes, O Discurso do Método,62 escrita
na primeira metade do século XVII, apresenta as regras de uma nova moral, uma apologia e um
elogio que valorizam o indivíduo. 63 Contemporânea da filosofia escolástica, essa nova proposta
filosófica rompeu com o dogma do conhecimento como sinônimo da Revelação; desacreditou os
nominalistas e universalistas que julgavam o conhecimento a partir da especulação, resultando o
homem/mulher um ser universal e histórico, que escapou ao seu destino inexorável. Ao
reproduzir, porém, as ideias platônicas de uma existência em essência e a priori, esta
mulher/homem ainda aparece como uma parte de Deus – Aquele que é64 e independe dos
sentidos. Por isso, “Penso, logo existo”,65 e com esta frase, René Descartes mantém a dicotomia
corpo/alma marcando a potencialidade da razão. Assim, toda a filosofia ainda se apoia no dogma
da existência de Deus, do qual emanam toda essência das coisas. Mais um século ocidental foi
necessário para amadurecer novas ideias.
Kant e Hegel não despertaram para a inexistência de um a priori metafísico, mas, ao
“des-inocentarem” o humano, no conjunto das suas realizações, sem o saber, estavam
possibilitando a morte de Deus, que não sucumbe ao materialismo de Karl Marx, mas ao niilismo
ativo ou positivo de Nietzsche. 66
60
Esses autores foram citados pelas teóricas feministas que buscaram na proposta de igualdade entre os homens a
ampliação para a igualdade entre os sexos.
61
É possível continuar apontando nomes de militantes feministas ou socialistas que lutaram ou de alguma forma se
expressaram contra a dominação masculina sobre o feminino entre os séculos XIX e início do XX, tais como:
Pauline Roland, Jeanne Deroine, Eugenie Niboyet, Vissarion Bielinsk, Nikolai Tchernychevski, Clara Zétkin,
Vladímir Ilitch Lênin, Alexandra Kollontai. Além da obra citada de Zuleika Alambert, sobre a História do
Movimento Feminista utilizaram-se os textos: GOMÁRIZ, Enrique, “Los Estúdios de Gênero y sus Fuentes
Epistemológicas: Periodización y Perspectivas”. Fin de Siglo – Género y Cambio Civilizatório. Ediciones de las
Mujeres, n. 17. Santiago, Chile: Isis Internacional, dez1992, 83-110; MIGUEL, Ana de, 1995, 217-235.
62
DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo: EDIPRO, 1996, 29-43.
63
“aprendi a não crer demasiado firmemente em nada do que me fora inculcado só pelo exemplo e pelo costume.
[...] Nunca o meu intento foi além de procurar reformar meus próprios pensamentos, e construir num terreno que é
todo meu” (sic). Idem, 47-51.
64
Êxodo: 3,14: “Disse Deus a Moisés: ‘Eu sou aquele que é’”.
65
DESCARTES, René, 1996, 38.
66
Ver: HEGEL, F. A razão na história. Lisboa: Edições 70, 1995; KANT, Immanuel. Ideia de uma História
Universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Martins Fontes, 2004; MARX, Karl. Miséria da Filosofia:
resposta à filosofia da miséria do senhor Proudhon (1847). São Paulo: Centauro, 2001, e A ideologia alemã;
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Cia das Letras, 1992; Assim
falou Zaratrusta; Genealogia da moral. São Paulo: Cia das Letras, 1998, e “Consideração Intempestiva”. Escritos
sobre História. São Paulo: Loyola, 2005.
67
Ver: HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001; PENHA, João da. O que é Existencialismo.
São Paulo: Brasiliense, 1988, 36.
68
Ver: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979; As Palavras e as coisas. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
69
YANNOULAS, Sílvia C., 1994, 7-16, 11.
70
Ver: ARENDT, Hannah, 2000; YANNOULAS, Sílvia C., 1994.
71
ARENDT, Hannah, 2000, 59.
72
Idem, 62.
comum, reúne-nos na companhia uns dos outros e contudo evita que colidamos um com os
outros” (sic)73 – porque no mundo do público um objeto de interesse une os seres que dele
participam. Objeto de interesse que o mundo do privado não possui, do qual está destituído,
porque a acepção de humano só se realiza no mundo do público, com o outro real, igualmente
livre. Na ausência do outro, o ser não se realiza, como se não existisse: “o que quer que ele faça
permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é
desprovido de interesse para os outros”. 74
Hannah Arendt conclui, em sua análise, que as duas esferas (pública e privada) opõem-se
à forma moderna de sociedade (Estado-Nação), onde impera a igualdade entre os idênticos, e que
tais esferas (do privado e do público) confundem-se, resultando que o sujeito da necessidade
perde o seu lugar. Assim, a filósofa alemã introduz o conceito de pluralidade, resultado da sua
análise sobre a dicotomia do “espaço civilizado” humano, uma crítica ao sujeito anônimo
moderno e à igualdade produtora da falta de identidade da sociedade contemporânea. 75
A leitura que Silvia C. Yannoulas faz de Hannah Arendt conclui que esta autora “reúne
os conceitos antagônicos de igualdade e diferença na constituição de uma categoria que não só
respeita as diferenças mas também delas necessita” (sic),76 e utiliza o pensamento arendtiano na
conformação do discurso pluralista, entendendo que, desta forma, ampliam-se as possibilidades
de visibilidade do sujeito de ação em respeito ao sujeito de direito.
Sem perder de vista a relação do Ser com o mundo (Ser-no-mundo) e a dimensão do
indivíduo (Ser-aí), Silvia C. Yannoulas e Gaule Rubin 77 contemplam o conflito trágico que
permanece no particular do público e do privado, na dicotomia sujeito/indivíduo no Ser. E, para
contornar a problemática do político que se estabelece na divisão do Ser (ôntico/ontológico) ante
o discurso (ação verbal), as autoras adotam o pensamento arendtiano, que introduz a distinção
entre a “posição do sujeito de direito e a posição ontológica do sujeito”.78
A percepção, resultante, da dicotomia no Ser, impõe ultrapassar os discursos racionalistas
e “essencialistas”, 79 que tendem a homogeneizar os sujeitos históricos e nutrem com diferenças
as desigualdades de direito. Em contrapartida, a proposta do discurso pluralista pretende resgatar
a heterogeneidade do indivíduo e a equidade de direitos do sujeito, buscando no mundo do
73
Ibidem.
74
Idem, 68.
75
ARENDT, Hannah, 2000, 68.
76
YANNOULAS, Sílvia C., 1994, 7-16, 12.
77
RUBIN, Gaule. “O Tráfico de Mulheres: notas sobre a „economia política‟ do sexo”. Recife: SOS Corpo, 1993
(“The traffic of Women: Notes on the „Political Economy‟ of Sex”, New York, 1975), 32p.
78
Ver: ARENDT, Hanah, 2000; RUBIN, Gaule, 1993, 8; YANNOULAS, Sílvia C., 1994.
79
Os discursos racionalistas e essencialistas são tipos interpretativos extremos. O primeiro, cientificista, valoriza as
questões sociais e considera teoricamente possível eliminar as diferenças sexuais derivadas da socialização, uma vez
colocado um fim na dominação patriarcal; O segundo valoriza as diferenças naturais, não podendo a sexualidade ser
resolvida teoricamente.
privado e no mundo do público, que a modernidade uniu e subtraiu, o que historicamente eles
têm a oferecer, não mais como pares antagônicos (sujeito da igualdade/sujeito da diferença), mas
como pares complementares (direito à igualdade/direito à diferença). O discurso pluralista na
abordagem de Gênero contribui para uma revisão na epistemologia histórica, uma vez que adota
a interdisciplinaridade para abarcar a complexidade do objeto humano.
As ciências humanas têm como objeto específico o estudo das representações de
mulher/homem, utilizando para isso a sua positividade ou análise da sua forma empírica e estão
fundamentadas na historicidade entre mulher/homem, na sua existência que é pensamento de
ação e ação de pensamento.80 Essas ciências ainda estão inacabadas81 e necessitam elaborar um
conjunto de conceitos científicos e métodos positivos para se configurarem. Para isso, devem-se
balizar pelas três faces do conhecimento (do encadeamento dedutivo e linear, das relações entre
elementos descontínuos, mas análogos e da reflexão ontológica), possibilitando também as suas
transcendências. Ao ultrapassarem a análise objetiva, valorizar a capacidade de representação
própria do humano, que se justifica pelo alcance da linguagem.
Segundo Michel Foucault, a história não tem lugar nas ciências do humano, pois seu
objeto (o mulher/homem) não possui a dimensão do universal. Nesse sentido, o discurso
pluralista é uma crítica às teses foucauldianas com relação à História, uma vez que reforça a sua
positividade, porquanto ela trabalha com sujeitos universais nos limites impostos pela categoria
espaço-tempo. Antes e, no entanto, Enrique Gomariz e Teresita de Barbieri 82 abraçam a
necessidade de unir as ciências sociais e do humano, inclusive a História, para uma maior
abrangência do objeto humano. Enrique Gomariz, citando Teresita de Barbieri, afirma, ainda,
que colocar à parte as questões de gênero (análise relacional dos sexos), esmigalhando as
ciências da sociedade, é uma forma de criar espaços restritos e descomprometidos com a
perturbadora questão dos excluídos, principalmente as mulheres: “es imposible constituir una
teoría digna de tal nombre sin integrar el estúdio sobre el otro género y, sobre todo, sin
profundizar en el género como concepto relacional (entre ambos sexos/géneros)”.83
Essa teoria de que falam os autores acima, Enrique Gomariz e Teresita de Barbieri, surgiu
a partir dos anos 1980 e abrange as igualdades e as diferenças decorrentes da pluralidade dos
sujeitos históricos, possibilitando ao movimento e às teorias feministas abarcarem todas as
80
FOUCAULT, M., 2000.
81
Ver: FOUCAULT, M., 2000; GOMÁRIZ, Enrique, “Los Estúdios de Gênero y sus Fuentes Epistemológicas:
Periodización y Perspectivas”. Fin de siglo – género y cambio civilizatório. Ediciones de las mujeres, n. 17.
Santiago, Chile: Isis Internacional, dez/1992, 83-110.
82
BARBIERI, Teresita de. “Sobre la categoria género: una introdución teórico-metodológica”. Fin de siglo – género
y cambio civilizatório. Ediciones de las mujeres, n. 17. Santiago, Chile: Isis Internacional, dez/1992, 111-128.
83
É impossível constituir uma teoria digna de tal nome sem considerar o outro gênero e, sobretudo sem aprofundar
no gênero como conceito relacional (entre ambos os sexo/gênero). Tradução livre. GOMÁRIZ, E., dez/1992, 110.
diferentes formas, nos mais diversos contextos e histórias, de ser humano e de ser mulher. Trata-
se, portanto, da abordagem de Gênero.
Este propósito [o uso do conceito de Gênero] implica em pôr de lado quase tudo o que
existe como dado na historiografia atual, que em geral reflete o projeto social das elites
dominantes... projeto [este que] dificilmente coincide com a vivência concreta de
indivíduos, principalmente quando se trata de mulheres, mesmo que de elite pois,
enquanto projeto, aparece necessariamente impregnado por toda uma ideologia
normativa e institucionalizada (sic).84
84
DIAS, Maria Odila L.S. “Teoria e Método dos Estudos Feministas: perspectiva histórica e hermenêutica do
cotidiano”. In: COSTA, Albertina Oliveira; BRUSCHINI, Cristina. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa
dos Ventos, 1992, 39-53, 49.
85
SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Recife: SOS CORPO, 1991, 14.
Como elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas
entre os sexos, o gênero implica [em] quatro elementos relacionados entre si: primeiro –
símbolos culturalmente disponíveis que evocam representações múltiplas [...] Segundo
– conceitos normativos que colocam em evidência interpretações do sentido dos
símbolos que tentam limitar e conter as suas possibilidades metafóricas. [... Terceiro] O
objetivo [...] é explodir a noção de fixidade, [...] a aparência de uma permanência eterna
na representação binária dos gêneros. [...] O quarto aspecto do gênero é a identidade
subjetiva (sic).87
86
Ver: ARISTÓTELES, 1987. Coleção Os Pensadores.
87
SCOTT, Joan, 1991, 14-5.
88
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989; A ideologia alemã.
89
LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis, SP: Vozes, 2008.
90
FOUCAULT, Michel, 1979.
91
Sobre as contribuições dos estudos de Lacan e Derrida, ver: RUBIN, Gaule. “O Tráfico de Mulheres: notas sobre
a „economia política‟ do sexo”. Recife: SOS Corpo, 1993 (“The traffic of Women: Notes on the „Political Economy‟
of Sex”, New York, 1975); SCOTT, Joan, 1991; KALIMEROS. A mulher: na psicanálise e na arte. Rio de Janeiro:
Contracapa, 1995.
92
MARX, Karl. “Teoria e Processo Histórico da Revolução Social”. MARX-ENGELS (História), 2001, 231-5, 233.
93
“O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso, literário, artístico, etc., baseia-se no desenvolvimento
econômico. Mas todos aqueles reagem entre si e sobre a base econômica. Não é que a situação econômica seja,
sozinha, causa ativa e que todo o resto seja apenas efeito passivo. Há, porém, interação à base da necessidade
econômica, que, em última instância, sempre se impõe”. ENGELS, Friedrich. “Necessidade e acidente na história,
carta a H. Starkenburg”. MARX-ENGELS (História), 2001, 468-471, 469. Grifo do autor.
94
MARX, Karl. “Carta a P. V. Annenkov, Bruxelas, 28 de dezembro de 1846”. 2001, 175-186, 177.
95
MACHADO, R. Introdução: “Por uma genealogia do poder”. In: FOUCAULT, M., 1979, xii. Grifo deste artigo.
exerce em graus variados, formando uma rede de poderes, que pode, ou não, retornar ao Estado.
É importante ressaltar que no traçado do micro-poder leva-se em consideração a situação
concreta e o tipo singular de intervenção:
O poder, como micro entrelaçamentos entre humanos e entre grupos humanos, formando
uma teia de poderes e relações de poder, obriga a refletir sobre as origens das predisposições
para as relações de desigualdades que se formam e se firmam nas estruturas das sociedades.
Outra tese apropriada por Scott para construir o Gênero é a definição de desconstrução de
Derrida, importante por desprender as oposições binárias, que estão na origem das dicotomias,
dos ideais de positivo e de negativo e que perpetuam as identidades subjetivas, do lugar da
realidade própria das coisas. Entender que os símbolos utilizados socialmente na inter-relação
são imagens refratárias da realidade e que essa percepção da realidade é uma construção humana,
da ordem do discurso, faz compreender que essas imagens podem ser transformadas se outros
princípios se estabelecerem nas relações humanas. O pensamento fantástico de que as palavras
fazem vir ao mundo as coisas, é da ordem do mágico, da pura ideia. Na ótica do materialismo-
dialético, o pensamento concorda que as palavras não fazem aparecer as coisas até que essas
coisas sejam feitas palavras e estas palavras guardem sentido na esfera das realizações humanas.
Assim, as palavras per si não estabelecem as diferenças entre os sexos-gêneros, tampouco os
gêneros existem essencialmente e a priori, mas na linguagem se afirmam e se reproduzem.
A teoria da linguagem de Jacques Lacan tenta explicar a produção e a reprodução de
identidade do sujeito: “a psicanálise fornece uma teoria importante para a reprodução de
gênero, uma descrição da ‘transformação da sexualidade biológica dos indivíduos na medida da
sua enculturação‟”.97 É a partir dos estudos de Lacan que se concebe o simbolismo do falo. O
Falo é o lugar de poder de que se quer ter propriedade. Então, as mulheres desejam o falo,
porque a propriedade do falo garante a sua “existência” e as inserem no lugar de poder.
A contribuição da abordagem de Gênero para a História é entendida como um modelo
que “abrirá possibilidades para a reflexão, porque ela sugere que o gênero tem que ser
redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e social que inclui
96
Idem.
97
RUBIN, Gayle, 1975. Apud SCOTT, Joan. SCOTT, Joan, 1991, 16.
Gerar os filhos e as filhas dos homens é o “destino” das mulheres e disso resultou a sua
subordinação social com o advento da civilização fundada na propriedade privada dos meios de
subsistência e, depois, de produção desses meios de subsistência. Essa tese aceita,
principalmente, entre as teóricas marxistas, explica, a partir de um referencial materialista-
histórico, como o conhecimento sobre a concepção e reprodução humana foi utilizado para
98
SCOTT, Joan, 1991, 21.
99
Ver: SARDEMBERG, Cecília M. B., 1998, 147-164.
100
Esta tese se apoia na orientação teórica de Sílvia C. Yannoulas, 1994, o conceito de “diferença” aqui utilizado,
compreende entender que a diferença entre homens e mulheres (sempre ressaltada pelas escolas filosóficas, muitas
vezes apoiadas nas ciências da biologia) tem implicado num determinismo social que obriga aos sexos os papéis
funcionais de gênero. Essa “diferença” é também responsável, bem como, reflete a relação de poder que esta mesma
“diferença” tem produzido e a manutenção dessa “diferença” tem reproduzido. O conceito de “diferença” usado por
essa autora permite uma crítica a esses “determinismos” biológicos e sociais, bem como, à relação de poder que aí é
originada. E percebe a diferença como um concurso à pluralidade. “Iguais mas não Idênticos” é um voto de
igualdade entre os homens e as mulheres no plano do político e do econômico, e, também, um voto de aceitação da
individualidade do sujeito histórico.
101
PEDROSA, Cida. “Poema da anunciação”. Miudos. Recife: Portal Vozes Femininas, 2011.
regular os lugares dos sexos nas sociedades. O poder decorrente da propriedade sobre a prole
resultou na origem da invenção do falo como representação desse poder.
Em estudo etnográfico, intitulado A Vida Sexual dos Selvagens, Bronislaw Malinowski
apresenta dados de grupos humanos que, ignorando a participação masculina na concepção, já
adotaram o pátrio poder sobre a prole, constituído em alianças de casamento. Essas sociedades,
quando adotaram formas econômicas fundadas na propriedade privada dos meios de subsistência
e reprodução dos meios de subsistência, estabeleceram diferenças de poder entre os sexos,
apropriando a força de trabalho e reservando-a ao masculino. Uma apropriação da prole
racionalizada e explicada pela adoção de divindades de caráter masculino. Na cultura mística
desses povos, os deuses enviavam filhos e filhas aos homens como troféus pelas suas vitórias
através das suas esposas. 102 Do que se pode concluir que o assujeitamento das mulheres pode
ser/é anterior ao conhecimento da participação do homem na reprodução da espécie. Importa
mais saber que essa mística representante da submissão feminina antes de tudo integra a
economia baseada na propriedade privada, reafirmando a teoria defendida por Friedrich Engels
na obra As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 103 materializando e
historicizando a teoria do patriarcado.
A invenção do Falo, o falo como representação de poder, importa o estabelecimento das
diferenças entre os sexos e a consequente subordinação do feminino ao masculino. Como já foi
abordado, as teorias psicanalíticas colaboram para uma compreensão da reprodução das
identidades dos sujeitos ao entender o Simbolismo do Falo, o Falo como o lugar de poder de que
se quer ter propriedade, 104 mas não explicam suas origens. Os conflitos entre os sexos que se
reproduzem no consciente coletivo são o resultado das máscaras das lutas pelo poder que se
produzem no inconsciente coletivo.
Jacques Lacan explica a produção e a reprodução de identidade do sujeito a partir da
linguagem e da representação do sujeito através do símbolo. Apenas a teoria marxista permite a
formulação de um modelo de compreensão da realidade que perceba a complexidade da
produção das relações materiais e a reprodução dessas relações, integrando as subjetividades de
classe aos entendimentos do Gênero. Este conceito buscou na Teoria do Parentesco de Lévi-
Strauss o modelo para pensar a importância das relações étnicas na reprodução das sociedades,
bem como nas relações entre os sexos, as gêneses das diferenças que se mantêm entre eles e as
razões para manutenção dessas desigualdades.
102
MALINOWSKI, Bronislaw. A Vida Sexual dos Selvagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
103
ENGELS, Friedrich. As Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1995.
104
KALIMEROS, 1995.
105
ARISTÓTELES, 1987.
106
ARENDT, Hannah, 2000.
107
Tradução livre: Eu [Ele-homem] tenho a força! He-Man é o personagem da série de brinquedos Masters of the
Universe, lançados pela Indústria de Brinquedos Mattel, EUA, em 1983, animados pela produtora Filmation
Studios, e desenhados em gibi pela DC Comics. O seriado popularizou-se no Brasil através da Rede Globo de
Televisão, na programação infantil, pela Editora Abril, distribuidora dos gibis, e pela Mesbla, comerciante de
brinquedos, entre os anos 1983 e 1985. Ainda hoje é transmitido em rede privada de televisão. He-Man pretende ser
a representação do homem forte, masculino e sexualmente viril. Personagens femininas secundárias criadas
paralelamente são subordinadas ao herói, tal She-Ra.
manutenção do sistema exigem o seu exército de reserva. 108 Exército formado de marginalizados
do sistema, porém nunca dele excluído pela necessidade mesma de uma escória afirmadora dos
“classificados”109 sociais.
Importa ainda acrescentar que no pensamento ainda hegemônico, em que prevalece o
masculino, branco, hetero-afetivo, que se orienta pela dicotomia, valoração do sujeito universal e
teorias monolíticas, a negação do “outro sujeito” implica a transformação de grupos sociais em
desiguais até a sua completa marginalização. Assim, foram desqualificadas as mulheres e
transformadas em minorias. Depois delas, as etnias não brancas, as sexualidades diversas,
seguindo-se a invenção de tantos outros e tantas minorias quanto necessário à reprodução do
modelo conservador. E, no processo de marginalização, esses outros foram/são comparados às
mulheres e deslocados para o mundo da essencialidade, da necessidade, a eterna forma negativa.
108
Ver: BANDEIRA, Andréa. “O Sagrado”. In: Gênero & História. Cadernos de História. Ano 1. N 1. Recife:
UFPE, 2002, 69-82; As Beatas de Ibiapina: do mito à narrativa histórica (1860-1883). Dissertação de História.
Recife: UFPE, 2003.
109
SOUZA, Laura de Mello e. Os Desclassificados do Ouro, 1983 apud HOONAERT, Eduardo. Padre Ibiabina e a
Igreja dos pobres. São Paulo: Paulinas, 1984.
RESUMO:
O presente trabalho tem como objetivo abordar o processo de modernização que se iniciou na
cidade de Petrolina em meados do século XX. Para tanto, trabalhamos com a problematização
do Jornal o Pharol que teve sua primeira edição publicada em 1915. A imprensa da região,
particularmente o Jornal o Pharol, é um veiculo que imprime linguagens e imagens vinculadas
a costumes e idéias que paulatinamente repercutem na organização dos espaços sociais nas
vivências e socializações no inicio do século XX. A circulação do mesmo proclamando e
enfocando em sucessivos anos as idéias em movimentos nos grandes centros urbanos, é
entendido também como fruto desse processo, ou seja, ele enfatiza algo que ao mesmo tempo
pertence, um veículo das letras que valoriza o sujeito “leitor” e os induz a compreender seu
espaço social.
***
Estudos referentes aos grandes centros urbanos do País como espaços a serem
modernizados e seus respectivos impactos sociais possuem relativo espaço na historiografia
brasileira, o que não implica dizer que tal exploração deste território do historiador, tenha-se
dado por esgotado, muito há a se problematizar no tocante a tais temas. Contudo a produção
referente às idéias de civilidade e os processos de transformações das sociedades, tidas como
tradicionais em sociedades modernizadas nas cidades distantes das capitais brasileiras ainda
são incipientes.
Algumas questões referentes à forma de inserção dos sertões no campo da
historiografia, ainda são passiveis de reflexão, uma vez que, boa parte dos estudos sobre o
local, permaneceu por longo tempo, como mais uma das produções operada “fora” dos
próprios espaços, o que por muitas vezes traz uma analise superficial do entendimento da
própria dinâmica histórica interna do local. O que não implica dizer que, sendo o processo
histórico compreendido a partir do próprio espaço, seja isento de armadilhas e ressalvas. Aqui
duas questões podem nos fazer pensar alguma dessas ressalvas, a primeira diz respeito à
utilização de conceitos, a segunda esbarra nas condições do desenrolar da própria pesquisa
tendo em vista à dificuldade de acesso as fontes e acervos.
Primeiramente, a utilização das ideias progresso, ciência, discursos e conceitos como
modernização e civilização devem ser examinados meticulosamente na aplicação da pesquisa,
se distanciando das generalizações onde vise encontrar no sertão os mesmos movimentos,
conflitos e impactos dos grandes centros urbanos do País. Devem ser salvaguardados as
temporalidades e os espaços, estes, por possuírem configurações singulares apresentarão
divergências nas práticas e nas recepções de tais ideias.
No tocante às condições de pesquisa, para a compreensão das ideias de civilidade e os
processos de modernização das cidades no sertão, neste caso no vale do São Francisco, a
dificuldade diz respeito ao levantamento e catalogação das fontes nos arquivos, tendo em
vista a deterioração do material o que tem dificultado o mapeamento dos periódicos do inicio
do século XX.
Atentando para tais particularidades, trazemos aqui algumas reflexões sobre o
processo de modernização da cidade de Petrolina e Juazeiro usando como objeto de
investigação, o jornal o Pharol. A pesquisa busca identificar no Vale do São Francisco, na
segunda década do século XX, os modelos e práticas cotidianas urbanas, tidas como
necessárias e propícias a conduzir a região a este aspecto. Modelos influenciados pelo
movimento que se iniciava nas capitais do País tendo nas sociedades europeias suas
referências basilares.
A ideia era de assimilar aspectos que caracterizava o urbano enquanto moderno. O
conceito de modernização aqui utilizado se refere, sobretudo as transformações estruturais do
espaço urbano o que possibilita pensar não só os processos físicos, mas também as relações,
hábitos, costumes, maneiras de fazer e pensar, o que em termos gerais visava um
redirecionamento das práticas da sociedade marcada pelo atraso quando em comparação com
outras regiões do País.
Longe de observar apenas as semelhanças, o exercício da pesquisa é identificar as
tensões entre os novos modelos e as vivências cotidianas do Vale do São Francisco, em
especial no espaço da recém emancipada cidade de Petrolina.
No que se refere a inserção do sertão na marcha para o progresso, alardeada desde
finais do século XIX, alguns aspectos, como a reorientação da utilização espacial, cumprem
papel decisivo o que é possível observar desde os anos de 1878 quando se enviam comissões
encarregadas de estudos e levantamentos do Rio São Francisco, com o intuito de pensar a
vasta região sob uma utilidade econômica. Obviamente para concretização desses projetos
tornar-se-ia necessária conversão a perspectivos valores de desenvolvimento oriundos de
outras regiões, isto é observável, nos próprios relatos dessas expedições onde se ressalta as
características naturais como uma grande possibilidade em meio aos entraves de gentes e
distância.
Em 1879-80, o País atravessava uma crise prolongada, devida à seca dos sertões do
Nordeste, e urgia socorrer aos flagelados e nenhum remédio se deparava então mais
adequado às circunstâncias do que empreender grandes obras que moraliza,
estimulam, suavizam o viver das populações que o flagelo desequilibrou. O governo
voltou as suas vistas para o rio São Francisco, que, como uma “terra de promissão”,
servia então de refúgio às multidões deslocadas do Nordeste [...] empreenderam-se
estudos para promover a navegação interior em grande escala. (SANTANA, 2002,
p.52-53).
As suas construções, em que procura observar certo gosto arquitetônico, a sua nova
e boa igreja matriz, o teatro, uma grande praça arborizada, ruas extensas, comércio
animado, porto profundo e amplo exibindo uma verdadeira frota fluvial, população
alegre e ativa de mais ou menos 3 mil habitantes, davamo-nos uma impressão tão
favoravel de progresso, de riqueza e de atividade que nos alegrava e nos levava a
mudar o conceito que vínhamos fazendo deste rio e dos seus adustos sertões[...]
Notamos na população de juazeiro a mais obsequiosa atenção e
urbanidade"(SANTANA, 2002, p. 103-104)
o periódico tinha seus textos distribuídos em três colunas, com número de páginas
inconstantes podendo variar de quatro a oito. As dimensões da publicação eram, inicialmente,
menores se comparados a um jornal convencional, passando a circular no tamanho padrão no
ano de 1917.
O formato e a periodicidade inicial preocupavam Joãozinho que considerava a região
digna de uma publicação semanal que em formato ampliado, pudesse dar conta do grande
numero de informações sobre a região que na sua visão, “caminhava a passos largos em
direção ao progresso”.(O Pharol, 1917)
Os primeiros números do periódico não contaram com imagens, a primeira foto
publicada foi a do governador do Estado de Pernambuco no período e data do ano de 1916.
Desde então as fotografias publicadas se restringiam a personagens considerados importantes
na região e no país. A única exceção seria a propaganda dos remédios, sempre acompanhadas
de ilustrações de frascos e de pessoas que experimentaram a curada após a ingestão dos
compostos anunciados no periódico.
Para destacar a data do aniversário do jornal, Joãozinho, empregou a contagem pelo
ano emergente onde as publicações são caracterizadas pela escolha de uma data especifica que
demarca a passagem de um ano de publicação a outro. No caso do Pharol, o dia 07 de
setembro. Assim, um novo ano de publicação do periódico só teria inicio desta data. A
publicação do jornal é feita, inicialmente, de forma quinzenal e embora efetuasse a venda de
exemplares avulsos, a sua maior arrecadação vinha das assinaturas mantidas em dia pelos
leitores. No ano de 1920, fora publicada uma lista com os nomes dos assinantes, entre eles o
médico, e então prefeito da cidade, Pacífico da Luz e dos coronéis Honorato Falcão e Manoel
Carvalho. ( CAVALCANTI, 2008)
A duração prolongada do jornal, que foi editado por 74 anos, nos permite inferir sobre
o crescimento do papel dos intelectuais da região, estes se dividiam na função de leitores e
redatores do periódico mostrando-se empenhados no propósito de indicar o caminho da
modernização e civilidade no espaço em questão. Tal empenho revela que há um processo de
identificação, pelas manifestações dos desejos, aspirações e deslumbramentos, ressaltando a
aptidão a vida na cidade, lugar do homem moderno. (REZENDE, 1997, p 30).
A interpretação desse processo aqui proposta tem por base a analise textual dos
elementos disponíveis, no jornal O Pharol. Identificando o que nele se inscreve, constrói de
forma regular, e tem por propósito circular e criar efeito:
O texto é a unidade que o analista tem diante de si o da qual ele parte. O que faz ele
diante de um texto? Ele o remete imediatamente a um discurso que, por sua vez, se
explicita em suas regularidades pelas suas referências a uma ou a outra formação
discursiva que, por sua vez, ganha sentido porque deriva de um jogo definido pela
formação ideológica dominante naquela conjuntura. (ORLANDI, 1999, p.63).
[...] o “tecido urbano”, não designam, de maneira restrita, o domínio edificado nas
cidades, mas o conjunto das manifestações do predomínio da cidade sobre o
campo. Nessa acepção, uma segunda residência, uma rodovia, um supermercado
em pleno campo, fazem parte do tecido urbano. (LEFEBVRE, 1999, p. 17).
1916, foram publicadas notas sobre a política no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Itália e
até mesmo na Turquia.
No que se refere às modificações no espaço físico, o jornal se empenhava em
reivindicar melhorias na urbanização da cidade seja na pavimentação de ruas e avenidas, seja
na cobrança da implantação de estabelecimentos modernos e típicos de centros civilizados
como farmácias e escolas. Em 15 de novembro de 1916, anunciava-se a inauguração do
Jardim Publico da Rua Dr. Manuel Borba, e do matadouro público da cidade em 1920
evidencia-se o prolongamento da avenida Dantas Barreto com a demolição de pequenas e
velhas casas que na opinião do autor deixavam feia a cidade e a notícia de um projeto de
arborização que seguia o padrão das “cidades modernas brasileiras” do sul.
Junto com o espaço moderno, almejava-se para a população petrolinense a adesão de
hábitos e comportamentos tidos como civilizados. Assim, desde as primeiras edições do jornal
evidenciou-se, por exemplo, a atuação da filarmônica local, a 21 de setembro, destacando os
seus aniversários e publicando as loterias vendidas pelo grupo com o objetivo de garantir a
sua manutenção. Outra agremiação bastante referenciada pelo jornal foram as “Filhas de
Mozart” grupo de musicistas composta por “distintas senhoritas da elite” da cidade que
procuravam se reunir para expor seus dons musicais, tocando em eventos públicos e
particulares. (O Pharol, Junho de 1920).
Segundo o jornal, o grupo, trazia ainda como objetivo, criar um cinema, espaço ainda
inexistente na cidade. Por este motivo, toda a atuação pública das mesmas era amplamente
divulgada pelo periódico que incentivava ainda a venda de suas loterias.
A implementação destes “novos hábitos civilizados” era conduzida pelos intelectuais,
homens de letras, que neste período vão gozar de grande destaque social. O reconhecimento
destes personagens nesse processo torna-se visível no jornal da região que destaca a atuação
de médicos, assim como, reivindicar a chegadas dos professores para educar a população.
Neste sentido, a educação por via da instrução escolar foi encarada como possibilidade
de elevação cultural do povo petrolinense. Um maior acesso à escrita e a leitura faziam parte
da crença da elite letrada local que acreditava ser necessária à tarefa de implantação de
escolas, instrução geral a fim de suplantar males como o analfabetismo. Este projeto que tem
por objetivo a emergência do cidadão “livre”, instruído e letrado, “principalmente nessa
época, em que os governos começam a mover guerra contra o analphabetismo, que
assombrosamente tem invadido o nosso Paiz” (O Pharol 1917).
A transmissão é de um conhecimento útil, representativo dentro do processo em
andamento, assim a escolarização é um aspecto que é fruto e anda em conjunto, contribuindo
[...] até que o Sr Governador se lembre de envia-lo para esta cidade e quando este
aqui chegar e estiver executando o cargo que lhe foi confiado [...]. Do imposto, da
política e tudo quanto pode encurtar o progresso do Estado, infelizmente se trata
com o mais rigoroso cuidado, menos da insrtucção pública, que vive descurada
entre nós. É preciso de mais Escola Sr Governador. (O Pharol, Sete De Maio de
1917).
3º uma vez nomeados lutam com sérias dificuldades para seguirem aos seus
destinos por não terem certo quantitativo para seu transporte
4º porque seus ordenados são tão mesquinhos que dificilmente se poderão manter
numa localidade [...].
5º finalmente quando tais funcionários, seguem para o interior do estado onde lhes
faltam via térrea é obrigado a uma viajem penosa, desuhumana e despendiosissima
[...] assumem os exercícios tão desanimados e neles permanecem tão indiferentes,
contando os dias para terem jus a uma licença, que uma vez obtida retiram-se
assombrados da localidade com o firme propósito de não voltarem a ella[...].(O
Pharol, Oito de Junho de 1917).
É preciso aqui abrir um rápido parêntese, pois no quinto ponto é possível notar o
quanto à urbanização, modernização entrelaça aspectos que devem ser compreendidos em
alguns casos conjuntamente. O artigo menciona as dificuldades da locomoção daqueles que
viriam a esta região, assim simultaneamente é um alerta a uma condição que deve ser
superada, as vias, estradas devem facilitar o intercambio com outros centros distantes.
No tocante a região, frisamos, mais uma vez, o reconhecimento que há por parte das
elites locais no poder estatal em gerir a educação, questão compreensível tanto pelo aspecto
de rendimentos como parte também de um processo que a região se desenvolveria a partir da
integração com os poderes do Estado, formando uma nação:
discurso mais depurado no tocante ao significado desse processo, “A escola é o caminho récto
que conduz ao saber”. Salientando as conseqüências de um povo instruído como “maior
garantia que o Paiz pode ter na defesa de seus direitos”. (O Pharol, Sete de Setembro, 1921).
Há de salientar sob esse período a crescente das idéias de nação e de liberalismo, o
que de fato passou a atribuir as escolas um papel também de instrumento de poder e
repercussão dessas concepções. Escola como espaço libertador de onde despertaria a
sensibilidade e produção do conhecimento, do saber, sendo, portanto, necessário também
compreender que, “A crença no poder redentor da educação pressupunha a confiança na
instrução como elemento conformador dos indivíduos” (NIETZSCHE, 2006). O autor ao final
do século XIX na Europa acrescenta que essa educação tinha por objetivo a “decoração da
vida” e de “enciclopédias ambulantes”. E era este o anseio dos intelectuais no vale do São
Francisco, “Em diversos paizes Europeus [...] elles vão seguindo sua marcha lenta é verdade,
mas sempre progressiva” (Jornal O Pharol, Junho de 1917).
Desta forma, a educação, a urbanização do centro da cidade, assim como, a
incorporação de outras formas de lazer fizeram parte das preocupações da elite letrada da
região do Vale do São Francisco nos anos iniciais do século XX. Longe de se pretender
conclusivas, as reflexões aqui apresentadas, tiveram o intuito de levantar a discussão das
formas de modernidade e civilização presentes no sertão e destacadas pelo jornal o Pharol nos
anos iniciais do período republicano.
REFERÊNCIAS:
CUNHA, João Fernandes. Memória Histórica de Juazeiro. Juazeiro-BA. Ed. Autor. Juazeiro-
Ba. 1978.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Trad: Ruy Jungmann. 2.
ed. - Rio de Janeiro: Zahar, 1993. Vol I. 2011.
LEFEBVRE, Henry. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG,
1999.
SANTANA, José Carlos Barreto (org), O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FONTES
Jornal o Pharol, Petrolina, mar./ dez. 1917 .
Jornal o Pharol, Petrolina, mar./ dez. 1918.
Jornal o Pharol, Petrolina, mar./ dez. 1920.
Jornal o Pharol, Petrolina, setembro. 1921.
RESUMO
O presente trabalho busca fazer uma análise sobre as experiências trabalhistas e as relações de
trabalho na região canavieira do estado de Pernambuco, Brasil. Utilizamos nessa abordagem
autos findos do arquivo do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, produzidos entre
1979 e 1980. Os processos trabalhistas constituem-se em fontes para análise das experiências
dos assalariados, acesso à Justiça, direitos adquiridos e memória do trabalho do campo.
INTRODUÇÃO
Em 1979, o trabalhador rural, José Bonifácio Ferreira, comparece à Junta de
Conciliação e Julgamento de Jaboatão – PE, sendo atendido pelo Diretor da Secretária que
lavrou seu Termo de Reclamação. Disse ter sido demitido sem justa causa, afirmando que
durante “todo o período da vigência da relação de trabalho, a Reclamada não pagou ao
Reclamante nem férias, nem 13º salário, nem repouso remunerado”, pedindo então o
pagamento de aviso prévio, indenização por tempo de serviço, férias em dobro, férias simples,
13º salários, repouso remunerado.
José Bonifácio Ferreira, o “reclamante” na redação jurídica, apresentou uma extensa
lista de reclamações, de direitos não atendidos entre os anos de 1972 e 1978, enquanto
trabalhador rural. Na primeira audiência, terceira marcada pelo Juiz Presidente da referida
Junta, após a apresentação de dois termos de adiamento da audiência pela parte “reclamada”,
o empregador, contesta todas as reclamações de Bonifácio e nega que o reclamante seja de
fato e de direito empregado do reclamado. O empregador afirma que o reclamante presta
serviços eventuais para o proprietário, assim como para outros da região, e “dada a
eventualidade e as características dos poucos dias de serviço que o reclamante prestou [...] é
óbvio que não sendo empregado não poderia ter sido despedido, nem faz jus ao que pleiteia
[...]”. O Reclamante afirma que a existência do vínculo está provada pela própria tentativa de
descaracterizar a relação de emprego. Que os ditos serviços prestados a outro empregador, era
na verdade o genro do proprietário, que exercia influência de mando sobre o reclamante, que
as testemunhas apresentadas pela Reclamada adulteraram os fatos para descaracterizar a
relação de trabalho. O proprietário sustenta o argumento de inexistência de vínculo e a
audiência termina sem acordo.2
Na Ata de Instrução e Julgamento do dia 16 de maio de 1980, última audiência do
processo, encontramos os “Fundamentos da decisão” do Juiz. Onde é julgada procedente em
parte a reclamatória de José Bonifácio Ferreira, devido às provas. Afirmando que:
Somente o fato do reclamante trabalhar alguns dias por semana, mediante salário,
gera uma relação empregatícia em face a continuidade da prestação de serviços. [...]
Pelo exposto e considerado o mais dos autos, resolve esta J.C.J., por unanimidade,
em julgar procedente em parte a reclamação, para condenar a reclamada a pagar Cr$
1.448,99 de Prej. 20, com juros de mora e correção monetária [...]. Custa de
Cr$1.118,62 pela reclamada, calculados sobre o valor da condenação [...]. (JCJ,
1979)3
O Diretor da Secretária lavra a presente ata, que segue assinada pelo Juiz Presidente e
advogados das respectivas partes.
A documentação da Junta de Conciliação e Julgamento nos revela como os embates
judiciais refletiam os conflitos trabalhistas. A leitura dos processos nos leva a pensar como se
davam os contratos trabalhistas no âmbito rural, o que caracterizava de fato e de direito o
vínculo empregatício, e em que limites e meandros funcionavam as relações de trabalho no
campo.
O presente artigo procura discutir as relações de trabalho na região canavieira de
Pernambuco4 pensadas a partir dos vínculos entre os signos e a realidade exprimida.
Utilizamos nessa abordagem, principalmente, os processos trabalhistas do TRT 6ª Região,
produzidos entre os anos de 1979 e 1980.
4 A Zona da Mata foi ao longo da história do Brasil a região mais importante no Estado de
Pernambuco do ponto de vista da agricultura e, desde os tempos coloniais, foi grande
produtora de açúcar. A Mata Sul era a área mais adequada à cultura canavieira.
ACESSO À JUSTIÇA
5 É importante destacar que a Lei nº 4.088, de Julho de 1962, criou oito Juntas de Conciliação
e Julgamento em Pernambuco: as de Recife, as de Goiânia, Nazaré da Mata, Jaboatão,
Caruaru, Escada e Palmares. Esta lei institui Juntas de Conciliação e Julgamento nas 2ª, 4ª, 6ª
e 8ª Regiões da Justiça do Trabalho.
EXPERIÊNCIAS TRABALHISTAS
contemporaneidade ela ainda é utilizada como dispositivo legal e coroada como diploma das
relações trabalhistas. No entanto, os trabalhadores rurais entraram em contato com o Direito
Trabalhista após um atraso de 20 anos. A Justiça do Trabalho, instalada em 1º de Maio de
1941, e a CLT não foram dirigidas aos trabalhadores rurais. Os instrumentos legais ignoravam
um imenso contingente de assalariados agrícolas.
Em 1963 foi promulgado o Estatuto do Trabalhador Rural, através da Lei de nº 4214
de 02 de março de 1963. Os canavieiros de Pernambuco foram um dos primeiros
trabalhadores rurais a utilizar esse conjunto de leis para reivindicar e tentar assegurar seus
direitos enquanto trabalhadores assalariados, garantindo também regras às relações de
trabalho no âmbito rural. Em relação à condição jurídica, os trabalhadores rurais passavam a
ter a mesmas garantias que os assalariados urbanos e industriais haviam conquistado com a
legislação trabalhista varguista. Para a historiadora Christine Rufino Dabat a promulgação do
Estatuto do Trabalhador Rural:
O autor da obra Futuro Passado nos leva a refletir em que medida estamos ainda hoje
experimentando o mesmo universo de significados. Atores sociais que “se apropriam dos
conceitos ampliados para imprimir sentido à experiência contemporânea e reivindicar
determinadas perspectivas de futuro” (KOSELLECK, 2006, p. 98).
Na estrutura do processo trabalhista encontramos ao longo da sua redação os conceitos
“reclamante”, “reclamado”, “advogado”, “direitos” etc. Podemos perceber diferentes camadas
da “contabilidade social” de então que se encontram compreendidas neste espaço. O autor vai
assinalar uma expressiva força da história na multiplicidade cronológica do aspecto
semântico, onde
contundente. Montenegro (2010) afirma que, “para a deputada, o termo utilizado por Julião
continha uma carga política e ideológica muito grande”. (MONTENEGRO, 2010, p.83)
Carlos Ginzburg em O queijo e os vermes nos apresenta, através de processos
inquisitoriais a vida e o tempo histórico experimentado pelo moleiro Menocchio. O
julgamento inquisitorial vai ser utilizado pelo autor para narrar a história de Domenico
Scandella e de seu tempo.
A partir da micro-história o autor faz um excelente estudo da história das mentalidades
e da história cultural, revelando as experiências possíveis naquele tempo e as circularidades
das culturas. O autor trabalha com as possibilidades de atuação do moleiro e a formulação de
suas idéias, utilizando as leituras que Menocchio provavelmente teria feito.
Pensamos a história dos conceitos como um método de crítica às fontes, como indica o
historiador alemão, atentando para o “emprego de termos relevantes do ponto de vista social
ou político”. Conceitos que nos auxiliam a compreender, propor e responder questões
relativas à história social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
sociais, para examinar suas experiências para além das relações de produção e dos
movimentos organizados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
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2002.
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DABAT, Christine Paulette Yves Rufino. Moradores de Engenho: Estudo sobre as relações
de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco,
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GOMES, Angela de Castro. Ministério do Trabalho: Uma história vivida e contada. Rio de
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História, Justiça e Trabalho. São Leopoldo: Oikos, 2010.
SCHIMIDT, Benito Bisso (Org.). Trabalho, justiça e direitos no Brasil. Pesquisa histórica e
preservação das fontes.- São Leopoldo: Oikos, 2010.
SIGAUD, Lygia. Greve nos Engenhos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
Resumo:
A mentalidade dos europeus que lançaram em registros escritos suas incursões de exploração
do novo mundo é alvo de diversas discussões. Suas observações e registros deste continente
formaram por muito tempo o imaginário do que seriam as Américas dos séculos XVI e XVII.
Este estudo crítico inicial formou-se para problematizar algumas dessas análises que serviu
para construção da história “oficial”. O presente trabalho procura levantar um pouco da
formação destes cronistas e permeia o universo literário acessível na época, apontando uma
comparação com estes romances e suas “aventuras” através do Atlântico.
A definição do que vem a ser o Século de Ouro na Espanha é um dos conceitos que
levanta diversos questionamentos, quanto a sua classificação pelos historiadores da arte e que
da história ibérica. Este período engloba uma parcela do século XVI e vai até o século XVII,
tendo em vista as produções do romantismo e principalmente do barroco. Bartolomé
Bennassar em seu livro La España del Seglo de Oro procura explicar quais os problemas das
muitas definições deste e como se criou o termo. Basicamente o problema dessa classificação
fica no campo de discussão que questiona a produção artística, muitas vezes com forte
característica para a produção literária e a conjuntura política dessa nação. Politicamente os
grandes feitos dessa fase englobam, basicamente, os reinados de Carlos V e Felipe II, sendo
respectivamente 1516 até 1556 e 1556 até 1598 a fase em que estiveram à frente do governo
espanhol. O foco básico é a produção artística e o dialogo de duas fontes históricas desse
momento: as cartas de Cortés que relatam a conquista do “México” e o Dom Quixote de
1
Graduando de História (Licenciatura) pela Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte. Membro do
Grupo de pesquisa em História Antiga e Medieval: Leitorado Antiguo. E-mail: dyego.assis@gmail.com
Miguel de Cervantes. Esta ultima produzida no século de ouro e que faz uma crítica de forma
bastante peculiar aos feitos das ações de conquistas semelhantes a da primeira fonte.
Devemos observar outro fato ocorrido na Europa que irá influenciar diretamente os
fatos e processos relacionados a nossas fontes de análise: a Reforma Católica. O Concílio
Tridentino (1560) transformou a mentalidade européia e a Espanha é forte pregadora dessa
modificação. O modelo Barroco começa a ser propagado neste momento e funciona como um
elemento de propaganda transmitido através das artes. A propaganda da fé católica é
absorvida e convertida pelo Estado espanhol que se mostra como um dos mais fiéis.
Para o Estado espanhol o pensamento tridentino será como uma ideologia
disciplinadora e ajudará a Espanha a fortalecer o poder político interno, além da relevância
externa na Europa e nos novos continentes recentemente “encontrados”. A data exposta para o
Concílio de Trento é apenas referência, antes mesmo já havia mudanças ocorrendo e que
foram complementadas nesse concílio. Além da postura adotada em Trento, dentro do
catolicismo havia outras, ainda que secundarizadas ao longo do período, como a de Erasmo de
Rotterdam. Este autor foi um dos que alertaram a Igreja para uma mudança que se fazia
necessária. Havia um debate não só no interior da cristandade, mas do próprio catolicismo,
portanto. Ele apontava para a possibilidade um equilíbrio entre fé e razão, mas com a Reforma
Protestante suas ideias foram abominadas pela política espanhola. Uma das inspirações de
Cervantes2 possivelmente foi Erasmo. O Estado espanhol mantêm um padrão ortodoxo
empenhando-se para implantar um sistema controlador que impeça a fragmentação interna e
para isso se fecha aos ideais que fossem próximos da Reforma de Lutero, muitas ideias
humanistas custaram a entrar naquela nação.
2
Miguel de Cervantes é um dos mais consagrados autores ibéricos. De família fidalga era soldado a serviço da
Espanha justamente na fase de expansão e conquistas desta nação durante o século XVI. Sua obra mais
consagrada foi Dom Quixote de La Mancha. Livro que retrata sua crítica ao expansionismo espanhol e a outras
instituições de sua época.
Isto é, a pintura barroca, a economia barroca, a arte da guerra barroca não mantêm
necessariamente semelhanças entre si – ou, pelo menos, não é isso o que conta, embora
algum parentesco formal talvez possa verificar-se –, mas, dado que se desenvolvem em
uma mesma situação, sob a ação iguais condições, respondendo às mesmas
necessidades vitais, sofrendo uma inegável influência modificadora por porte dos outros
fatores cada uma delas é assim alterada, em dependência, pois, do conjunto da época, à
qual hão de se referir as mudanças observadas... Assim, o Barroco é, para nós, um
conceito de época que se estende, em princípios, a todas as manifestações integradas na
cultural da mesma. (MARAVALL, 1997. p. 45)
Teatro, literatura, pintura, escultura, enfim, todos estes movimentos artísticos serviam
para transmitir as mensagens dessas instituições (Igreja e Estado) a que se mesclavam. As
características do Barroco se misturavam com um forte dualismo entre as coisas mundanas e a
salvação e recebe elementos que permeiam transcendência como é o caso da escultura de
Bernini, Êxtase de Santa Teresa.
A última coisa que Bernini pretendia criar era uma simples obra de arte cheia de beleza,
tal como agora entendemos essa designação. Em vez disso, tentou reproduzir tão
exatamente quanto possível em escultura a inegável e sublime experiência que Santa
Teresa, nos seus escritos, comparou às sensações físicas. (MULLETT, 1984. p. 43)
andava muito fragilizada em conflitos constantes. Logo o modelo da Reforma Católica seria o
ideal para não deixar a desordem penetrar dentro dessa nação, na perspectiva de seus líderes.
O paradoxo é que nossa principal obra sob estudo, Dom Quixote, mostra justamente um
mundo espanhol desordenado ou pelo menos na visão imaginária da personagem principal.
O imaginário da propaganda e da religião tem uma de suas maiores expressões na obra
Toledo, de El Greco. Nela, o autor apresenta a cidade de Toledo de forma fantasmagórica,
utilizando de um elemento que induz o indivíduo que vê a obra a sentir inconscientemente um
ar pesado sobre aquela cidade. A imagem que se quer passar é que o local precisava ser salvo,
lugar que a pouco havia sido conquistado pelos espanhóis dos domínios mouros e agora a
conquista deveria ser concluída com a salvação espiritual desse local. Na obra, fica implícito
que É como se a cidade tivesse uma forte mancha de um passado de pecado, pois, não era
habitada pelos fiéis católicos”, muito menos havia sido fundada por eles.
Após esta explanação sumária faremos um aprofundamento em duas figuras históricas
que se apresentam com destaque no Século de Ouro espanhol, Miguel de Cervantes com sua
obra Dom Quixote e Hernan Cortés com suas cartas relatando a “Conquista do México.” Qual
a relevância dessas fontes para o estudo histórico do período?
Buscando nossa resposta primeiramente para a obra de Cervantes. Assim, o livro em
geral é “signo cultural, suporte de um sentido transmitido pelo texto.” (LE GOFF, 1976. p.
99) Em uma pesquisa quantitativa Roger Chartier e Daniel Roche apresentam a relevância
desse tipo de fonte histórica e expressa de forma mais direta afirmando que o livro “permite
um reconhecimento porque o conjunto dos objetos em que ele toma lugar devolve-se às
práticas sociais que situam o indivíduo no leque das condições.” (Ibid. p. 106)
Aprofundando ainda mais o significado dessas fontes usaremos o conceito de Arte
para melhor entendimento dessa relevância. A arte se fundamenta no belo em diversos
momentos históricos, porém, este último é relativo e “designa tudo o que, cotidianamente, é
captado pela nossa subjetividade e nos provoca emoções levando-nos a um estado diferente da
normalidade.” (SILVA e SILVA, 2008. p. 27) Dentro da História da Arte buscou-se chegar a
um conceito mais fechado, menos relativo, do que seria arte embasando-se no estilo e suas
formas. Heirinch Wölfflin é um dos pioneiros na análise desse tema no início do século XX.
Antes de Wölfflin afirmava-se que os artistas vêem ao longo do tempo buscando a perfeição
na representação da natureza. “Ou seja, acreditavam que a tendência da Arte era o
naturalismo.” (Ibid, p. 28) Porém, essa concepção modifica-se a partir de 1915 e vem sendo
revista desde então. Horold Osborne aponta para uma ideia salutar dentro do estudo aqui
apresentado, especificamente na análise dos discursos que trataremos. Ele nos apresenta a arte
“interessada em representar as coisas não como sua aparência no mundo visível [naturalismo],
mas como aquilo que considera sua aparência verdadeira que está fora do tempo e do espaço.”
(Ibid, p. 29). É a partir destas considerações que analisaremos o discurso de Cortés, que narra
colocando elementos que não existiram ou ocultando partes da história.
A teoria literária traz um aporte fundamental no diálogo com a parte histórica em
ambas as fontes, como por exemplo, Tzvetan Todorov. Este autor afirma que, em um contexto
geral: “O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais,
diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural.” (TODOROV, 2006. p. 148) O
fantástico enquanto gênero literário se define pelas visões da narrativa. Esse tipo de narrativa
ganha espaço na Europa aproximadamente durante o século XIV, com os romances de
cavalaria. Contudo, D. Quixote não se enquadra totalmente dentro deste modelo fantástico,
nem como um real romance de cavalaria, todavia os relatos de Cortés tangenciam o ficcional.
No texto de Cervantes, o fato do narrador não colocar as personagens em uma situação
de hesitação entre o real e o imaginário sem que estejamos na dúvida do fato ocorrido já
exclui de certa forma a característica do fantástico na obra. O narrador deixa consciente que
Dom Quixote é idealista e apenas ele imagina as coisas em um mundo que não existe para os
outros. “Olhe Vossa Mercê, senhor, que eu não sou Dom Rodrigo de Narváez, nem o Marquês
de Mântua, sou Pedro Alonso, seu vizinho, nem Vossa Mercê é Valdovinos, nem Abindarrais,
mas um honrado fidalgo, o Senhor Quixana.” (CERVANTES, 2007. p. 83) Esta é a fala de
um vizinho que encontra o nosso cavaleiro andante, ainda no começo de suas aventuras, em
um estado quase inconsciente após ter levado uma surra de alguns comerciantes. Duas coisas
chamam a atenção nesta cena, ambas relativas às emersões de Dom Quixote ao mundo
ilusório dele mesmo. Para não ficar por baixo na situação ele informa que está naquele estado
por que caiu do seu Rocinante, o que bem se sabe que não é verdade. Outra observação diz
respeito a reação que tem após a fala do vizinho apresentada na última citação, pois, o normal
seria a dúvida, a hesitação, sobre o que de fato ocorreu ou sobre sua real identidade. Neste
caso a personagem mergulha ainda mais dentro do universo heróico e afirma: “Quem eu sou,
sei eu, e sei que posso ser não só os que já disse, senão todos os doze pares de França, e até
todos os nove da fama, pois a todas as façanhas que ele por junto fizeram e cada um por si se
avantajaram as minhas.” (Ibid, p. 83) Isso faz da obra de Cervantes uma peça, até então, única
no universo literário da Espanha desse momento.
Com o auxílio desta última ideia, de um homem que sonha a todo custo, mesmo
imerso em um universo imaginário cavalheiresco, com honra, status e glória, podemos ligar
este fato a outra figura de nossa análise: Hernan Cortés. Aparentemente, Cortés estava mais
ligado ao plano do real do que Dom Quixote, porém, foi um homem de sonhos semelhantes
ao personagem de La Mancha e viveu sobre o mesmo período que o criador deste, Cervantes.
O paralelismo é sugestível, se partimos do princípio de que a mentalidade, que custa a
modificar, já que quase meio século separa as duas personagens, o ficcional Quixote e o
“histórico” Cortés. E há que pensar, pondo a lado os escritores Cortés e Cervantes, que ambos
foram homens dados a carreira militar, mas, separados pelas oportunidades. Enquanto
Cervantes teve seu sonho de “cavaleiro andante” frustrado na prisão moura no norte da África
e quase morreu após levar um tiro, Cortés teve a oportunidade de por em prática suas
aventuras de forma real, todavia, com alguns elementos de imaginação.
Os imaginários de homens como Cervantes e Cortés eram próximos e eram
alimentados, todos, desde cedo, por histórias de cavalaria, que exaltava os grandes feitos dos
heróis. Muitos tiveram a oportunidade de colocá-los em prática nas guerras de reconquista no
Velho Mundo e de conquista do Novo Mundo, que se apresentavam como um paraíso
convidativo a aventuras, como os relatos narrados por Colombo e outros. Mais uma vez
enfatizamos os destinos dos dois escritores, Cervantes e Cortés, foram diferentes e apenas um
viveu realmente o sonho de “cavalaria”, outro só pode fazer a crítica.
A importância das crônicas de “conquista” para a historiografia se dá pelo fato de
serem fontes primarias. Toda e qualquer forma de registro, “material ou imaterial”, produzido
pelo homem, é considerado fonte histórica. (SILVA e SILVA, 2008. p. 158) Alguns desses
registros foram escritos no decorrer das conquistas de território, o que faz com que os estudos
dessas fontes tenham uma maior importância em relação às escritas anos depois. Haja vista, o
caráter de maior fidelidade dos relatos feito durante o processo “Todas elas [as crônicas]
desempenham um quadro completo de estrutura e organização dos povos indígenas:
costumes, alimentação, vestuário, religião, educação, família, visão do mundo, jogo,
organização social e política etc...” (BRUIT, 2004. p. 16) Além é claro que narrar os fatos que
ocorreram, mesmo sobrando apenas fontes que só nos dê uma perspectiva, a européia.
[...] é necessário cuidado com os perigos do trabalho direto com o registro histórico:
todo documento é uma versão de determinado fato ou memento, dependendo da visão
do seu autor. Para realizar um bom trabalho com o documento, é preciso conhecer o
contexto no qual ele foi produzido, quem foi seu autor e quais suas aspirações e visões
de mundo. (SILVA e SILVA, 2008. p. 161) 3
Uma das crônicas mais conhecidas e debatidas até hoje é A conquista do México, que
se caracteriza por cartas escritas aos reis da Espanha relatando as conquistas militares e
territoriais da meso-américa. Hernan Cortés é o responsável por esses registros, um homem da
pequena nobreza que visava status maior, se aventurando no Novo Mundo. No caso destas
“cartas” Cortés expressa uma extensão da mentalidade espanhola da fase analisada neste
trabalho. Não diferente dele, muitos outros que se arriscaram “por vezes caçulas de grandes
famílias que esperam conquistar um morgado pra si...” (MAHN-LOT, 1990. p. 13) O
processo de conquista do Novo Mundo ou da América se tornou uma extensão da “guerra de
reconquista” ocorrida na península ibérica e que se caracterizou pela luta dos cristãos contra
os “infiéis”. Já encontramos aí um dos elementos apropriados pelo Estado absoluto espanhol e
que é fruto do discurso da Reforma Católica. Agora era papel desses nobres, espalhar e levar
o conhecimento da fé cristã aos povos dessa terra nova que foi “descoberta” pela Europa
católica. “O estímulo mais poderoso... resume-se nas palavras valer más: valer mais, melhorar
suas condições, enobrecer-se possível, ou pelo menos “viver com nobreza.”” (Ibid, p. 15) Não
bastava apenas chegar ao Novo Mundo e demarcar seu território, muitas eram as dificuldades
à ascensão política, social. Cortés utiliza nas cartas de conquista uma série de recursos que o
levam ao titulo de Marquês. Adentrar na terra nunca antes explorada pelos homens do velho
mundo e submeter os povos que lá habitavam era uma das partes da conquista e que são
registradas por Cortés em suas cartas. O universo em que Cortés viveu, o mesmo de
Cervantes em se tratando de literatura, tornou possível o acesso a obras com caráter
fantástico e ele irá empregar alguns recursos semelhantes em sues textos (crônicas). Além
dele outros conquistadores utilizaram elementos de mesmo caráter.
Há variadas vertentes do fantástico, será, porém, relevante destacar especificamente a
que coloca a hesitação no leitor em um meio termo entre o real e o imaginário. Esses
caminhos da narrativa tangenciam o maravilhoso e o estranho, onde não convêm detalhá-
los, mas, nos aproxima ainda mais do fantástico-estranho4.
3
“No fundo analisar o indígena através da crônica católica, assemelha-se a analisar a mulher através dos textos
masculinos, o herege pelo texto inquisitorial, a vítima do campo de concentração pelos relatórios nazistas e o
rendimento do aluno pelo boletim emitido pela escola.” (KARNAL. 2004. p. 11)
4
“Os acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo da história recebem por fim uma explicação racional.
Se esses acontecimentos conduzem a personagem e o leitor a acreditar na intervenção do sobrenatural, é que têm
Toda essa análise tecida em torno de uma característica literária serve para entender o
recurso utilizado por Cortés em suas cartas aos reis da Espanha. Nos relatados conflitos entre
os conquistadores espanhóis e os índios, quase sempre as vitórias são atribuídas ao divino
(sobrenatural). “Os espanhóis não desvinculam a religião de seus objetivos, mas antes ao
contrário, ela é a arma e justificava para o que está acontecendo.” (MORAIS, 2004. p. 36) Em
uma sociedade que passava por um momento de constante pregação religiosa, como a
espanhola, essa consideração de Morais situa mais amplamente as cartas. Em uma analise
científica da história não podemos observar esses fatos sobrenaturais como “verdadeiros”.
Assim, aproximam-se, os relatos de Cortés, como classifica Todorov, a uma literatura de
fantástico-estranho. Diferentemente de uma obra literária, as cartas de Cortés se pretendem
verdadeiras, não havendo um pacto ficcional como nos romances.
Em um determinado trecho da primeira carta, escrita pela Justiça e Regimento da
Vila Rica de Vera Cruz, temos Cortés, então capitão dessa peleja, cercado com seus
subordinados por nativos. “...eram tantos os nativos que os que estavam lutando a cavalo não
se viam uns aos outros.” (CORTEZ, 2008. p. 26) De alguma forma os europeus conseguem
escapar desse conflito, e o mais curioso é que saem vitoriosos, pois “quando o capitão
resolveu organizar seu grupo e arremeter os cavalos contra eles, [os índios] começaram a fugir
em disparada.” (Ibid, p. 26) Em suas contas o autor da carta afirma que apenas vinte dos seus
ficaram com ferimentos não letais, pois logo se recuperaram e duzentos e vinte dos nativos
foram mortos. Com isso a explicação usada por eles em seus relatos é a seguinte: “Acredite
vossa alteza que esta batalha foi vencida muito mais pela vontade de Deus do que por nossas
forças, pois, para quarenta mil homens de guerra, quatrocentos, como éramos, se tornava um
número insignificante.” (Ibid, p. 27) O sobrenatural foi fundamental, segundo o autor, para a
vitória conta os “infiéis”.
Possivelmente Cervantes foi influenciado pelos relatos de Cortés, não fosse, é claro, as
frustrações militares pela qual passou o autor quixotesco, este teria abraçado os ideais de
aventuras sem possivelmente escrever seu texto crítico. Hoje, com um estudo detalhado
consegue-se distinguir o que é ou não ficção nas histórias de Cortés e o dialogo feito neste
trabalho, entre os dois autores, apresenta justamente a ideia de um imaginário dos homens do
Século de Ouro na Espanha, ao menos os homens que tinha sonhos nutridos por anos de
romances de cavalaria. Demorou muito para que as pessoas começassem a entender a
um caráter insólito, estranho. A crítica descreveu (e freqüentemente condenou) essa variedade sob o nome de
“sobrenatural explicado.”” (TODOROV, 2006. p. 155 e 156)
Dos dois, Cervantes e Cortés, precisou um passar por traumas para poder acordar do
sonho de cavaleiro e transcrever isso consciente ou inconscientemente, em uma obra
tragicômica. Já o outro deixou traspassar para suas cartas o imaginário dos anos de leituras de
cavalarias, assim como a personagem D. Quixote. E mais uma vez as contradições quase
barrocas são encontradas aqui: Quixote é louco e foi considerado um dos maiores gênios, por
criticar de forma “sutil” a crise da ortodoxia espanhola, já Cortés teve seus dias de honra e
glória e hoje é visto como um sonhador se levarmos em consideração esta perspectiva aqui
apresentada.
Voltando a análise do Dom Quixote:
Nada, nada – disse a sobrinha –; não se deve perdoar a nenhum; todos concorrem para o
mal. O melhor será atirá-los todos juntos pelas janelas ao pátio, empilhá-los em meda, e
pegar-lhes fogo; e senão, carregaremos com eles para o quintal e ali se fará a fogueira, e
o fumo não incomodará. (CERVANTES, 2007. p. 87)
Seria esta fala uma tentativa do Cervantes de alertar inconscientemente que aquelas
livros são os que ajudavam a formar a mentalidade “aventureira” dos jovens, ou mesmo
velhos, desta fase em que a Espanha se coloca em “campanha com o mundo”, onde os muitos
homens vivem sonhos cavalheirescos em lutas que não são deles. É bem sabido que muitas
vezes só restavam, a estes, as linhas de frente do Império Espanhol, quando não alguns mais
sensíveis as artes ganham a vida como Cervantes ou Lope. E por ver aonde chegou com seu
sonho de aventuras transplantou para seu livro “mensagens” sobre empreitadas maiores como
era a participação na guerra pela Espanha.
Como podemos afirmar com propriedade que realmente Cervantes procurava informar ou
criticar esta ideia de ir até a morte pelo rei que tantos vislumbravam no intuito de receber
concessões de status? Toda conjuntura pela qual passou nosso escritor, as quais nós sabemos
e a noção que temos sobre as perseguições aos que criticavam o poder do Estado,
consequentimente o poder régio. Assim, não falaria Cervantes, abertamente para não ser
“morto” pelo rei, o que pode ser mais uma dentre muitas chaves interpretativas implícitas do
autor. Afinal pertence ao imaginário barroco da época a arte da prudência, a sutileza.
“Aqui comem e dormem os cavaleiros, morrem nas suas camas...” (Ibid, p. 92) Esta é
a fala do cura, amigo do herói Dom Quixote, e serve como reforço para nosso estudo. Aqui,
na cômica cena do auto de fé pelo qual passa os livros da biblioteca do Quixote, fica
subentendido que um dos textos que foi selecionado para ser queimado, merecendo inclusive
comentário, é um dos romances mais perigosos, pois instiga o homem ibérico desta época a se
lançar em empresas como fazem os cavaleiros do livro. Serviria como um manual a ser tirado
como exemplo. O fato curioso desta cena é que o livro não irá alimentar o fogo, trata-se da
obra Tirante o Branco de Valladolid e é bem comentada pelo cura, que entrega-o ao barbeiro
para que este leia em casa o texto. Mas não recebeu tal obra uma crítica que pode encorajar a
atos que levam a morte? É preciso distinguir a crítica da personagem com a do autor que
utiliza de pequenos trechos de falas daqueles para fazer a sua. Muito embora ainda se tenha a
ideia de honra em morrer por uma causa nobre, os tempos começam a mudar, já
mencionamos, por simples que tenhamos dito, mas foi tocado neste assunto; prudência é algo
que se cultiva neste imaginário. Já passou o tempo dos cruzados e dos atos quase que suicidas
dos cavaleiros, poucos são os que não enxergam bem isso no futuro, afinal, o futuro nunca é
claro. Cervantes podia não ter uma clareza do que via, todavia, seu texto é a transcrição de
alguém que tinha a sensibilidade de passar de forma grandiosa a visão turva do que estava por
vir.
Sancho Pança é o real apresentado para equilibrar a fantasia, o sonho de Dom Quixote.
Referências
BRUIT, Hectór H. Apresentação geral das crônicas. In: Idéias: Dossiê – Cronistas da
América, Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Unicamp, Campinas ano
11 (1), 2004.
CERVANTES, Miguel. Dom Quixote de La Mancha. Vol. 1. São Paulo: Martin Claret,
2007.
CORTEZ, Hernan. A conquista do México. Tradução de Jurandir Soares dos Santos. Porto
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FUENTES, Carlos. O espelho enterrado: reflexões sobre a Espanha e o Novo Mundo. Rio
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KARNAL, Leandro. Os textos de fundação da América: a memória da crônica e a
alteridade. In: Idéias: Dossiê – Cronistas da América, Revista do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas – Unicamp, Campinas ano 11 (1), 2004.
Le Goff, Jacques (Org.). História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: F Alves, 1976.
MAHN-LOT, Marianne. A conquista da América. Campinas, SP: Papirus, 1990.
MARAVALL, José Antonio. A cultura do Barroco: Análise de uma estrutura histórica.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
MORAIS, Marcos Vinícius (coordenador). A conquista do México, a conquista da escrita e
da História. In: Idéias: Dossiê – Cronistas da América, Revista do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas – Unicamp, Campinas ano 11 (1), 2004.
MULLETT, Michael. A Contra-Reforma, e a Reforma Católica nos princípios da Idade
Moderna Europeia. Lisboa: Gradiva, 1984.
SILVA, Kalina Vanderlei. SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de Conceitos Históricos.
São Paulo: Contexto, 2008.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
Resumo
O presente artigo trata da educação primária no período da Primeira República, destacando o
cenário educacional brasileiro para então modular a educação sergipana. Nesse sentido,
analisa-se as instituições escolares do período e o sistema educacional, transcendendo para o
modelo de sociedade e política do contexto em que esses elementos estão inseridos. Logo,
verifica-se o processo de implantação dos grupos escolares como instrumento de formação da
sociedade em consonância com a concepção política dominante. Para a realização desse
trabalho foi discutida uma vasta bibliografia sobre a História da Educação primária brasileira,
que aponta os resultados desse processo como elementos constitutivos da História da
Educação na República, marcando os avanços e retrocessos desse período.
Palavras-chave: Educação primária; Primeira República; Grupos escolares; Brasil; Sergipe.
***
A sociedade da época era composta em sua maioria pela população rural, que vivia
sob o controle dos coronéis, grandes latifundiários. Estes detinham o poder econômico local,
1
Licenciada em História pela Faculdade José Augusto Vieira e professora da rede municipal de ensino de Simão
Dias/SE. Contato:bonfimmarcia@hotmail.com
enquanto o povo não tinha terras para trabalhar e se obrigava aos favores prestados por esses
políticos, proprietários de terras. Assim, as atividades econômicas também estavam
concentradas na agricultura ou na pecuária, culminando com a solidificação das oligarquias
brasileiras.
A partir do início do regime republicano, o ensino primário foi alvo de destaque nos
discursos dos políticos, na tentativa de imprimir na sociedade um modelo de mudança em
relação ao regime monárquico. Nesse período, a escola passou a ser vista como elemento que
traria a transformação da sociedade vista como “atrasada” pela intelectualidade brasileira.
Por outro lado, o interesse pelas origens, isto é, pelo momento de implantação das
instituições modelares, deve extrapolar para outros períodos históricos. É igualmente
necessário tanto recuar ao século XIX, como avançar no século XX. Questões como a
graduação escolar e as transformações internas das escolas de primeiras letras no
período imperial são fundamentais para ampliar a compreensão da suposta modernidade
que se pretendia instaurar na instrução pública no período republicano.(SOUZA e
FARIA FILHO, 2006 p. 44).
É importante registrar que, na primeira metade do século XIX, apesar de criticado por
alguns professores e gestores da instrução publica, o pensamento dominante era de que
as províncias não despendessem recursos com aluguel ou compra de “casas escolares”:
as cadeiras isoladas deveriam funcionar nas residências dos próprios professores, como
afirmou o presidente da província em 1838, “Me parece justo que o Thesouro Publico
não dispenda com casas para o ensino de 1ª letras, principalmente nos lugares do centro,
e fora da capital” (PARAYBA DO NORTE, província da, 1838, pp.18-19). Segundo
Galvão (1998, p. 22) “salas de visita casas particulares, salões de casas-grandes de
engenho e alpendres de sítios eram alguns dos espaços em que meninos e meninas
viviam suas experiências de escolarização”. (PINHEIRO, 2002 p. 72).
[...] construir uma nação pautada em valores que demostrassem estar em definitivo
sintonizados com as mudanças que o mundo moderno apresentava. Esse discurso, sem
dúvida, sofreu impacto das concepções elaboradas a partir das experiências
civilizatórias norte-americana e europeia, que inspiravam os políticos e intelectuais na
construção de argumentos discursivos e práticas que enalteciam a República.
(BENCOSTTA, 2005. p. 95).
Para que esse projeto de modernidade desse certo, a Instrução Pública teria a função
de educar a infância segundo os preceitos ideológicos e políticos do republicanismo, uma vez
que no início do século XX ainda não havia por completo o sentimento de identidade
nacional, uma relação de pertencimento por parte da sociedade com o novo regime. Assim, os
republicanos tinham ainda a empreitada de criar no povo brasileiro essa ideia de
pertencimento, e a escola seria o dispositivo para a realização de tal campanha, através da
condução na forma de ensinar as crianças. Logo, o modelo de escolas isoladas estava em
desuso no campo das ideias, e seriam construídos os suntuosos prédios dos grupos escolares
como solução para os problemas educacionais.
A educação primária passou a ser vista como elemento de formação dessa identidade
republicana, pois era preciso renegar o modelo imperial, considerado atrasado, para legitimar
o novo regime, e os grupos escolares e escolas reunidas seriam instituições responsáveis pela
efetivação de tal processo, como afirma Santos.
O imaginário republicano deu atenção especial para a infância como sinônimo do futuro
do Brasil. Pelas propostas de ensino atribuídas aos grupos escolares, o futuro da nação
brasileira era promissor, mas precisava aumentar o número de escolas para que o
ingresso do Brasil no mundo civilizado não tardasse. (SANTOS, 2009. p. 70).
escolares se deu de forma lenta, sendo no primeiro momento instituído por leis para depois
ocorrer a concretização de tal acontecimento. Almeida e Barros afirmam que:
Conforme a Lei 1.846 de 14 de agosto de 1925, art. 54, previa uma perspectiva de que o
ensino primário passava a ser ministrado em estabelecimentos públicos criados e
mantidos pelo Estado e pelos municípios, em escolas isoladas, escolas reunidas e grupos
escolares. Por escolas reunidas entendia-se que, nas villas ou cidades onde o numero de
escolas fôr de 2 a 4, poderão as mesmas direção a um professor que tambem leccione
uma classe (art.56).(Teixeira (1924-1928) apud ALMEIDA & BARROS, 1999. p. 9).
Assim, as escolas reunidas tinham características mais simples, fazendo com que se
onerasse menos gastos em suas construções. Isso permitia que esse modelo de instituição
escolar pudesse ser oferecido em maior número, de forma institucionalizada e aparelhada, a
uma maior parcela da sociedade, pois os grupos escolares predominaram nos centros das
cidades e em menor quantidade, visto que sua suntuosidade em traços arquitetônicos causava
maior dispêndio para a efetivação de suas construções.
Certamente esses desfiles foram utilizados pelos diferentes regimes (República Velha,
governo provisório de Vargas, Estado Novo, logo depois o curto espaço de democracia
e, finalmente, a ditadura militar) como estratégias de propaganda para o exercício do
poder do Estado sobre o que deveria se comemorar. (BENCOSTTA, 2005, p. 315).
De acordo com essa premissa, o papel da escola primária no decorrer do século XX,
ia além da realização de tarefas como ler, escrever e contar. A escola era uma ferramenta de
impregnação das concepções do Estado na sociedade, e essa incorporação de concepções se
dava na formação das crianças, a fim de conceber cidadãos conscientes de seus direitos, mas,
principalmente, de seus deveres, preparados para obedecer e respeitar o Estado. Santos reforça
essa ideia ao afirmar que,
A modernidade seria engendrada não somente por meio de edifícios imponentes que se
impunham na paisagem dos principais núcleos urbanos do estado. Ela também se dava
por meio da racionalização das linhas, da mecanização dos corpos, da vigilância, enfim,
da criação de uma sistematização que propiciasse o controle total da infância. Ser
cidadão patriótico significava mais do que ir aos campos de batalhas lutar pela nação.
Era preciso também travar uma luta interna contra os maus-costumes e os vícios que
entravavam a marcha brasileira rumo à civilização. (SANTOS, 2009, p. 73).
a elite urbana; enquanto isso, a maioria continuava nas precárias condições oferecidas no
mesmo modelo do regime monárquico.
Além da vivência com maior controle fiscalizador, contando com o olhar do diretor e
da inspeção escolar, esse conjunto de situações contribuía para otimizar o tempo e
sistematizar questões como disciplina no novo espaço da escola, através do poder de controle
exercido no novo ambiente de ensino. Sobre poder disciplinar, Foucault nos esclarece que,
De acordo com Foucault, o poder coercitivo tem uma função: disciplinar para melhor
obter resultados. Isso é possível através da vigília constante que os espaços escolares
permitem, uma vez que a distribuição dos alunos em séries escolares adequadas, com cada
turma uma em sua sala, oportunizou mais controle e eficiência nos trabalhos dos docentes. É
possível observar ainda esse controle nos outros espaços das instituições escolares, pois cada
lugar teria um funcionário sob vigilância e a sala do diretor geralmente permitia uma visão
ampla de toda a escola.
Considerações finais.
REFERÊNCIAS
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Resumo:
O objetivo deste artigo é ensaiar uma discussão sobre a educação histórica nos seguintes
aspectos: como as diversas ideologias ligadas à historiografia influenciam o pensar da
estrutura do ensino de História; como a prática docente na contemporaneidade, em meio aos
problemas sociais que atingem o meio escolar, deve buscar romper com o ritmo do ensino
ditado pela celeridade da modernidade e do capitalismo, possibilitando, assim, ver em cada
aluno um potencial distinto de aprendizagem.
INTRODUÇÃO
1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina. Contato: mhchiaretto@gmail.com
2
No Brasil, ainda não existe uma discussão maciça sobre o tema da pós-modernidade na História, mas que já
começa a surgir. Recentemente foi lançado, em 2011, o livro Epistemologias da história, organizado pelos
historiadores Gabriel Giannattasio e Rogério Ivano, que discute vários temas da teoria da história e de seus
campos: a pós-modernidade na historiografia, relações metodológicas e epistemológicas entre História e ciência,
análise do discurso e hermenêutica etc. Cf. GIANNATTASIO, G.; IVANO, R. (Org.) Epistemologias da
história: verdade, linguagem, realidade, interpretação e sentido na pós-modernidade. Londrina: EDUEL, 2011.
3
À frente explicarei a diferença entre a individualidade e o egoísmo.
Já a respeito do trabalho, é interessante destacar uma resposta que foi bastante dada,
dizendo que o trabalho é “uma atividade que dignifica o homem”, “que é um aspecto
necessário para o crescimento individual e social”, “uma obrigação social” e “que é uma
forma de aprendizagem”, contrapondo as respostas mais objetivas que classificam o trabalho
como “uma atividade remunerada que garante a sobrevivência”. (FRANCO; NOVAES, 2001,
p. 181).
Segundo as autoras,
Falta, na “fala” dos jovens pesquisados, a percepção de que o trabalho é uma atividade
essencialmente humana e que situações desiguais [...] do mundo concreto são e foram
historicamente produzidas pelos homens. Dessa forma, só podem ser superadas por
aqueles que as produziram: os próprios homens. Essa representação a-histórica da
realidade social e do mundo do trabalho aponta a magnitude dos desafios com os quais
se depara quando a tarefa é rever o ensino médio. (FRANCO; NOVAES, 2001, p. 182).
E, fechando essa discussão com as próprias autoras novamente, deve-se pensar que
***
Quero falar agora de algumas considerações sobre uma marca da sociedade
contemporânea: a individualidade. Primeiramente, penso que a individualidade não é um
perigo, no sentido do indivíduo não estar preocupado além de si próprio, pois a isso o termo
“egoísmo” se encaixa perfeitamente. A individualidade é uma qualidade que diz respeito à
própria personalidade, uma visão de mundo específica, ligado fortemente à representação do
social e da cultura.
Pensando isso na educação, uma das várias contribuições feitas por Paulo Freire
(1996, p. 113-135) diz respeito ao saber escutar por parte do professor. Ao fazer isso, se
reconhece a individualidade do aluno como ser autônomo pensante. Também, segundo ele, “É
preciso que quem tem o que dizer saiba, sem dúvida nenhuma, que, sem escutar o que quem
escuta tem igualmente a dizer, termina por esgotar a sua capacidade de dizer por muito ter
dito sem nada ou quase nada ter escutado.” (FREIRE, 1996, p.117).
Quando o professor busca a homogeneidade da sala de aula, acaba sendo um erro, pois
essa ação tende a eliminar a individualidade de cada aluno. Isso empobrece o trabalho em sala
de aula já que muito do que se pretenderá ensinar fará pouco ou nenhum sentido a esse
indivíduo, com perspectivas próprias, que teve sua individualidade negada. Fazendo isso,
desfavorece a educação, já que se deve trabalhar junto com as perspectivas individuais para
transformar o conhecimento em algo válido para esse aluno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acredito que o ensino de História revela sua importância apenas quando o professor
estiver consciente de que sua prática refletirá no aluno, e para isso ser válido, ele tem o dever
de se deter de uma carga de conceitos teórico-metodológicos de qualidade e saber aplicá-los,
saber reconhecer as visões de mundo das várias individualidades existentes numa sala de
aula4.
O professor, por ser indivíduo político, tem sua carga ideológica. Antes de fazer da
sala de aula o lugar de discurso, deve fazer com que seu trabalho se volte para a reflexão dos
alunos sobre os paradigmas e problemas que a sociedade enfrenta.
Como disse anteriormente, a pressão sobre uma educação voltada para a concorrência
do mercado de trabalho prejudica o trabalho do docente. Essa visão de um ensino, digamos,
apressado, faz com que se suprima as individualidades. É necessário que o docente saiba,
então, exercer sua prática de modo a ir contra a corrente da formação educacional pautada nas
influências competitivas do capitalismo, em função de uma educação de reflexão.
É difícil de esgotar a discussão sobre o ensino de História. A cada momento, as teorias
e metodologias sobre o ensino de História devem ser remodeladas para acompanhar o
caminhar da sociedade. Por isso creio que as ideias levantadas brevemente neste artigo
possam suscitar mais discussões sobre tema.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
4
Claro que com a situação da estrutura da educação básica brasileira em que muitas vezes uma sala de aula
comporta em média de 35 a 40 alunos, torna-se uma tarefa complicada, além da grande carga horária de trabalho
que o professor tem que cumprir.
FRANCO, Maria Laura P. Barbosa; NOVAES, Gláucia Torres Franco. Os jovens do Ensino
Médio e suas representações sociais. Cadernos de Pesquisa, n. 113, p. 167-183, mar. 2001.
MAGALHÃES, Marcelo de Souza. “História e cidadania: por que ensinar história hoje?”. In:
ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Org.). Ensino de história: conceitos, temáticas e
metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
RESUMO:
Os maias surpreenderam a humanidade com o seu desenvolvimento matemático, astronômico,
arquitetônico, geográfico e cultural, os pesquisadores se sentem instigados a conhecer mais
sobre esse povo, que demonstram hábitos e costumes bem peculiar. Essa civilização
visualizava o tempo de uma forma circular, e acreditavam que as circunstâncias vivenciadas
em um determinado momento poderiam se repetir no futuro. A dinâmica social era regida
totalmente pela religião, que influenciava os costumes, a ciência e a cultura desse povo. Essa
sociedade é marcada por mistérios e segredos, que impactava seus visitantes e ainda hoje
fascina a curiosos e pesquisadores de todo o mundo.
***
As pirâmides maias eram utilizadas com vários sentidos: como símbolo de poder e
rituais de sacrifícios humanos, e como canal de energia utilizado pelo xamã, que recebia as
mensagens de seu principal deus – o Kulkukán, ou a serpente emplumada. Quando os
colonizadores espanhóis se depararam com tais rituais ficaram “revoltados” e julgaram ser
uma barbárie, mas piores coisas fizeram os conquistadores com os nativos resistentes a seus
desvarios, pois a busca por ouro e pedras preciosas custou milhares de vidas, sem falar na
destruição de relíquias dos impérios que ali existiam. O extermínio da população indígena
que, em certas áreas chegava a mais de 80 por cento do total, e era basicamente de origem
maia, fez parte de uma estratégia geopolítica traçada para essa região conflagrada e populosa.
Las Casas foi um grande defensor dos nativos nas Américas e contribuiu de forma grandiosa
para a conservação de vários artefatos dessas civilizações que aqui existiam como também
denunciou os abusos que esses nativos sofreram nas mãos dos espanhóis:
deixaram claro, e de muitas formas, como eles almejavam alcançar o ápice do kronus, o que
tornou ainda mais intrigante estudar essa civilização.
O objetivo desse estudo é revelar a intrínseca relação dos maias com o tempo e a
influência desse fator em todo o funcionamento social. Além do mais, estudar a história dessa
e outras civilizações pré-colombianas nos remete a compreender que não existem raças
inferiores que não possam superar a si mesma, o exemplo claro é os gigantescos impérios que
aqui existiam e não deixaram de serem menos importantes quando comparados com outras
civilizações. Dessa forma, é de extrema importância aprofundar o conhecimento sobre os
povos indígenas que habitavam as Américas e o legado que foi deixado para nós.
A cultura Maia visualizava o homem e o tempo como uma unidade, que se
completavam, de uma forma que o sagrado e o cotidiano eram vivenciados continuamente.
Como uma sociedade isolada do restante do mundo, alcançou tal grau de
desenvolvimento cultural? Como essa civilização conseguiu descobertas notáveis na
astronomia atrelando esses conhecimentos aos seus calendários? Essas perguntas instigam a
querer conhecer a gênese Maia, trata-se de um convite ao desconhecido.
A civilização Maia é uma das mais esplendorosas da história dos povos pré-
colombianos e porque não dizer da humanidade. O modo de vida regido totalmente pelas
práticas religiosas dessa civilização surpreende historiadores e arqueólogos, levando-os até
hoje a profundas reflexões sobre os meios e as técnicas utilizadas em suas grandes invenções,
que os levaram a promover extraordinárias descobertas nas áreas da astronomia, matemática e
arquitetura.
A incrível história dos maias está relatada em alguns dos seus livros sagrados, um
deles conhecido como a “Bíblia” das Américas. O Popo Vuh, que significa o livro da
comunidade, retrata as grandes riquezas filosóficas e culturais desse povo e revela sua visão
sobre a morte, à alma e a origem da vida. O autor Marcelo Lambert, ainda cita outros livros
fundamentais, que trazem importantes informações sobre as manifestações espirituais dessa
civilização, conhecidos como “O livro do adivinho” ou do “Profeta Jaguar”. Considerados
esclarecedores para conhecer essa magnífica civilização, o autor comenta:
É certo dizer que com o avanço das pesquisas apartir de 1960, a escrita Maia começa
a ser efetivamente decifrada, e com isso a civilização começa a ser compreendida
sob uma nova ótica. Esse feito foi conquistado pelo lingüista Iuri Knorozov, que
baseado em estudos anteriores, entre os quais a obra do Bispo Diego de Landa,
“Relación de las cosas de Yucatán”, inaugura um novo tempo para as pesquisas
referentes aos Maias. (LAMBERT, 2010, pág. 18).
Vemo-nos assim em face de uma sociedade maia dentro da qual, desde início do
período clássico, se produz a articulação dos principais mecanismos. No topo da
pirâmide social, como intérprete da vontade dos deuses, está o halach-vinic,
incorporando um poder as vezes rotativo, freqüentemente partilhado, de uma
Pensar o tempo sobre a perspectiva maia é sensacional. Eles tinham a visão de que
todos os eventos poderiam acontecer novamente, que todas as ações eram cíclicas,
ao contrário da forma que entendemos o tempo hoje, como uma grande linha reta,
onde existe começo, o meio e o fim. Para os maias não havia presente, passado e
futuro, e todos os eventos humanos se fundiam em único universo. (LAMBERT,
2010, pág. 40)
ciclos de 18.980 dias, ao que eram acrescidos no final do ciclo 13 dias para compensar os
anos bissextos.
Os maias como bons observadores do sistema solar, baseavam um dos seus
calendários na rotação do planeta Marte, conhecido como o calendário Tzolkin, que regia os
rituais religiosos. Lambert (2010) comenta que outra questão importante que deve ser imposta
nessa análise é o fato de que o cruzamento dos calendários Haab e Tzolkin determina com
exatidão o dia específico do ciclo de 52 anos, deixando claro que cada data da contagem longa
está pautada no período do Tun (ano) de 360 dias - notamos uma grande exatidão na marcação
do tempo pelos maias.
O final de cada Katun (7.200 dias) era um período muito importante para os reis e
sacerdotes; o autor comenta: “... nesse momento, grandes rituais eram celebrados, templos
eram reformados, e novos eram edificados...” (LAMBERT, 2010, pág. 44). A maioria dos
pesquisadores afirma que o calendário de longa duração que iniciou seu último ciclo em
agosto de 3.313 A.C para terminar em 5.125 anos e 132 dias depois, na polêmica data de 21
de dezembro de 2012, quando para os maias seria o início de um novo ciclo, o último Katun,
um período de transformações para o planeta. O último Katun a que se referem os maias
iniciou em 1992 e termina em dezembro de 2012.
É interessante notar que no exato ano de 1992 o planeta volta a sua atenção para as
questões ambientais de forma mais efetiva, nesse ano aconteceu no Rio de Janeiro a eco-92,
uma conferência mundial promovida pelas Nações unidas, onde foram debatidas várias
questões de cunho ecológico. Percebe-se que a partir daí houve uma maior preocupação da
sociedade com o meio ambiente, em seus diversos aspectos, ocorrendo também diversas
crises econômicas, sociais e principalmente morais, com crescente aumento da violência.
Lambert (2010, pág.44-45) relata que:
Para os maias esse seria um período de grande relevância para o final do ciclo longo
de 2012, pois determinaria um processo de limpeza e um efetivo momento de
purificação para toda a humanidade. Lembrando que para os maias, havia a
necessidade constante de prever os eclipses do sol e da lua como divisores de
grandes acontecimentos para o planeta e transformadores para a história da
humanidade.
Uma grande curiosidade no que se refere à marcação do tempo pelo calendário Haab e
Tzolkin foi o final exato de um ciclo de 52 anos quando os espanhóis chegaram à América em
1492. A história do planeta sofreu transformações e algo estranho foi notado, o evento
ocorreu de uma maneira drástica principalmente para os nativos que vivenciaram
transformações que mudaram definitivamente seu modo e vida, as relações sociais, políticas e
econômicas. Lambert comenta: ”... o mais interessante é que essa data já havia sido
profetizada pelos os sacerdotes maias” (LAMBERT, 2010, pág. 45).
Os maias integravam-se com a cronologia estabelecida pela cultura de sua sociedade,
eles não eram escravos do relógio como somos hoje. Os maias buscavam a harmonia entre o
homem e o tempo, seu cotidiano era revestido de deuses com rituais e sacrifícios humanos.
Enfim, o tempo e a religião eram vivenciados em uma perspectiva do sagrado e do
aperfeiçoamento de suas construções complexas e enigmáticas, fazendo dessa civilização uma
das mais misteriosas de todos os tempos.
REFERÊNCIAS
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2008.
GALEANO, Eduardo H. As veias abertas da América latina. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.
RESUMO:
O presente artigo é resultado das vivências e conflitos possibilitados na disciplina de Ação
Educativa Patrimonial, do curso de História da FECLESC/Quixadá. Diante disso, realizamos
um minicurso focalizando a história da Estação Ferroviária de Senador Pompeu/CE, por
entender que a sua construção é cenário de relações sociais vividas e conflitos
experimentados. Esse patrimônio toma lugar em nossas discussões na perspectiva de ser
compreendido para que seja preservado, tornando-o parte integrante da memória e identidade
da população de Senador Pompeu.
***
1Graduandos em História pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central da Universidade
Estadual do Ceará (FECLESC-UECE) e monitores da disciplina de Metodologia da Pesquisa Histórica e Teorias
da História.Contato: lukaspereira2@hotmail.com/elcepjmp@hotmail.com
Diante disso, foi oportunizada a realização de uma vivência destinada aos alunos da
Escola de Ensino Fundamental Moreira Campos, sito Senador Pompeu/CE, em que foram
focalizados os Patrimônios Materiais da sobredita cidade que, tendo em vista sua riqueza
histórica, marcam/marcaram, histórias de seca, progressos, barbáries, lutas e resistências.
A abordagem em especial sobre a Estação Ferroviária se dá no momento em que
percebemos que a sua construção é cenário de relações sociais vividas e conflitos
experimentados. Aprofundando-se um pouco nisso, pode-se analisar que as estradas de ferro
brasileiras, assim como todos os patrimônios materiais, não somente são conjuntos
arquitetônicos, mas fragmentos do passado vivido.
Dentro desse campo rico de analise será pertinente refletir: o que é Patrimônio
Material? Quais as importâncias dos lugares de memórias na sociedade? Como é vista a
construção em análise e que silêncios ela pode abrigar? Nesse âmbito, propondo a Estação
Ferroviária como palco de sociabilidades, encontros, despedidas, resguardando pedaços de
vidas, faz-se necessário debater como preservar?
PATRIMÔNIO EM FOCO
documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro –
voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias”.
No enfoque desse projeto aos patrimônios materiais, analisamos esses monumentos,
Casarões, Linha férrea, Estação, como documentos, partes importantes das sociedades que
viveram antes de nós.
Nesse âmbito, trazendo Mônica Velozo ao diálogo, entendemos a Estação Ferroviária
da referida cidade, em especial, não como um conjunto de pedras, ferro, telhas e tijolos
apenas, mas, antes de tudo, como “lugar de cultura, de criatividade, de memórias [...],
sobretudo lugar de conflitos [...]”. (2010, p. 2)
Rosângela de Souza Oliveira, na tentativa de analisar o cotidiano dos moradores de
Senador Pompeu, estando vinculado ao movimento do trem e da Estação como um todo,
permite observar o que está além das edificações. Há, nos Patrimônios materiais de Senador
Pompeu, memórias de conflitos e experiências diversas.
Complementando a ideia sobre as significâncias desses lugares de memória, Renata do
Nascimento Pinto, historiadora local, analisa muito bem esses fatores:
2 Disponível em:<http://secretariadaculturasenador.blogspot.com/2010/03/alguns-fatos-da-historia-de-
Senador.html>. Acesso em 09/05/2011.
questão a ser pensada para além das dicotomias feitas entre material e imaterial. Coloca-nos
assim o desafio de “preservar processos e não mais produtos”. O sobredito autor acrescenta:
Analisando este banquete teórico na íntegra, faz-se uma ponte com as propostas desse
projeto e compreende-se que elas são desafiadoras e, ao mesmo, tempo necessárias, tendo em
vista a essência da educação patrimonial: instigar as percepções e interpretações das
significâncias dos lugares de memória, para que os mesmos sejam tomados como parte da
própria identidade.
Portanto, vimos que, sobre o Patrimônio Histórico, em sua plenitude, são amplos os
depoimentos da nossa história. São dotados de “olhares” e “vozes” que normalmente são
silenciados pelo indivíduo dito moderno. Guardam em sua conjuntura
conhecimentos/informações que nos permitem compreender a trajetória do homem no seu
tempo e no seu espaço.
(1900) e todo o seu conjunto arquitetônico, como a ponte do trem (fundada em 1906),
resguardam as experiências e as expectativas da população senadorense, e a dos que para essa
terra migraram.
Esta que outrora viu passar e sustentou todo um intenso fluxo de trens: de luxo,
carregando passageiros em vagões de várias categorias para as mais variadas classes
sociais; o famoso “Sonho azul” e o“Asa branca” que faziam a linha Fortaleza-Crato,
animando a “pedra da estação” com os encontros e desencontros, saudades, choros e
sorrisos, que representavam partidas e chegadas. E os trens cargueiros,
transportando diariamente toneladas de algodão produzido em toda a região. Foi
mesmo a época de ouro do Sertão senadorense. (...) A famosa “Pedra da Estação” é a
calçada da Estação Ferroviária, local onde as pessoas esperavam os trens chegarem e
de onde embarcavam e desembarcavam, era também na “Pedra da Estação” onde se
movimentava parte da economia do município. 3
Diante disso, essas obras suntuosas que denominamos Patrimônio Histórico material
encontram-se em permanente estado de transformação e descoberta, assim como a cultura.
Reelaboram-se significados, constroem-se novos saberes. Entretanto, não há dúvidas que
esses lugares de memória, apropriados por valores ditos “modernos” dizem muito sobre a
história de um povo. Nesse sentido, os patrimônios materiais de Senador Pompeu tomam
lugar em nossas discussões na perspectiva de serem compreendidos historicamente, para que
sejam preservados. Sendo assim tomá-los como parte da memória e identidade é entende-se
como o passo inicial.
participantes relataram então histórias de seus avôs e de seus bisavôs sobre a estação, sobre os
amores, as brincadeiras, entre outras vivências. Concluiu-se assim o momento da manhã,
quando foi proposto aos alunos escutarem mais o que os “velhos guardiões”, idosos da cidade,
têm a falar e a contribuir para a melhor compreensão da importância dos patrimônios para a
construção da identidade e da cultura de Senador Pompeu/CE.
Retornando de suas casas e de seus ambientes familiares, se reuniram no salão de
entrada da Estação, local onde realizamos todas as atividades no turno da tarde. Algo que
chamou bastante atenção é o fato de que apesar da distância muitos alunos se esforçaram em
estarem presentes. Um caso peculiar foi o do estudante Kadimo que percorreu uma distância
de 3 km a pé à sede do município.
A partir da visita pelos ambientes internos e externos dos casarões, os alunos, através
de anotações e desenhos, explicitaram o que viram e sentiram (cores, formas, cheiros,
funcionalidades, época, estado econservação). Sobre a socialização dessas produções, convém
destacar a ressalva de uma das equipes que sintetiza aquilo que aprendeu sobre patrimônio: “a
Estação é um Patrimônio que marca a História de Senador Pompeu trazendo lembranças que o
tempo não apagou”.
Dando prosseguimento, como planejado no projeto, executamos a dinâmica “O fio da
História”, mostrando-se bastante eficaz para a participação, interação e construção de
conhecimentos, com enfoque na conscientização e na busca por melhores políticas de
preservação. Na mesma linha de que o patrimônio é parte de um emaranhado de concepções e
histórias, foi lido o poema A grande Teia, produzido na disciplina de Ação Educativa
Patrimonial pela acadêmica Elcelane de Oliveira. Ao término do encontro, do lado de fora da
Estação, num gesto simbólico e representativo, entregaram-se os certificados de conclusão do
minicurso.
Todos foram aplaudidos pela contribuição, em uma manhã e uma tarde proveitosas e
repletas de aprendizados diversos, na perspectiva de que as experiências vividas durante este
18 de julho de 2011 fiquem de alguma forma na memória dos que estiveram presentes.
Sabemos que em toda caminhada há pedras que de alguma forma dificultam, mas não
tornam impossível, a concretização de nossas experiências acadêmicas. Vivenciamos
empecilhos tanto pela ausência de recursos financeiros, como por algumas adequações não
previstas.
FONTES
SITES CONSULTADOS
<www.secretariadaculturasenador.blogspot.com>
<www.institutocasarao.blogspot.com>
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Educação. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2008.
RESUMO:
Este artigo apresenta reflexões de uma pesquisa concluída sobre as narrativas histórico-
escolares que têm sido fixadas nas Provas Institucionais de Estudos Sociais no 5º ano de
escolaridade do Colégio Pedro II. Percebendo a escola como locus de produção de
conhecimento titular de epistemologia própria, mas que mantém intrínsecas relações com as
narrativas acadêmicas, buscou-se analisar aproximações e distanciamentos do saber histórico
escolar e historiográfico a partir das avaliações realizadas na instituição citada. A análise
permitiu observar, por meio dos sentidos atrelados ao acervo empírico, traços que indicam
disputas hegemônicas em torno das narrativas histórico escolares.
***
O trecho acima, escrito por Bourdieu (1989), permite pensar como os objetos de
pesquisa são construídos e reconstruídos, servindo como ponto de partida na reflexão a
respeito da significação do fazer pesquisa. Assim, este artigo se inicia procurando trazer à
tona trajetórias e escolhas, apresentando justificativas que motivaram a realização da
investigação, bem como a formulação do problema e a delimitação do objeto enquanto um
percurso de exploração, até chegar a uma configuração que possibilitasse o desenvolvimento
da análise pretendida.
Nesse sentido, torna-se interessante explicitar que o objeto de pesquisa foi sendo
construído e reconstruído. Inicialmente, o foco da pesquisa foi o ensino de História nos anos
iniciais da Educação Básica. A escolha pela disciplina de Estudos Sociais enquanto campo
empírico se justificou pela sua especificidade epistemológica e devido à possibilidade de
entendimento dessa disciplina como terreno fecundo para pensar sínteses narrativas. Estas
1 Mestre em Educação pela UFRJ (2012); graduada em História pela mesma universidade (2009).
Professora do Colégio Pedro II(RJ). Contato: lustumbo@ig.com.br
sínteses representam disputas por fixações de sentidos do que seria e o que não seria escolar,
além dos sentidos de História já fixados no Colégio Pedro II.
Cabe ressaltar que esta escola, mesmo fazendo parte da esfera federal, manteve como
proposta para os anos iniciais de ensino a disciplina de Estudos Sociais, contrariando, assim,
as orientações curriculares dos próprios Parâmetros Curriculares Nacionais publicados em
finais dos anos 90. As Unidades I do Colégio Pedro II optaram pela implantação da disciplina
de Estudos Sociais ainda na década de 80 e mantêm esta escolha até a atualidade.
Esta escola foi selecionada inicialmente por três motivos: o primeiro motivo reside no
fato desta instituição federal trabalhar em sua grade curricular com a disciplina de Estudos
Sociais nos anos iniciais da Educação Básica; já o segundo motivo ocorre por ser considerada
uma referência de qualidade de ensino propedêutico em um momento em que a questão da
qualidade de ensino é discutida amplamente por diferentes setores sociais; enquanto o terceiro
motivo advém do fato de esta escola pautar sua prática avaliativa em portarias que
regulamentam as Provas Institucionais comuns de Estudos Sociais às diferentes unidades.
A escolha pelo 5º ano de escolaridade também se justificou pelo fato de este ano
representar o final do 2º ciclo do Ensino Fundamental, sendo o último ano de frequência dos
alunos nas chamadas Unidades I da escola. Dessa forma, foi se delineando a construção
progressiva do objeto de pesquisa, a saber, as narrativas histórico-escolares fixadas
discursivamente nas Provas Institucionais aplicadas a este nível de ensino. Já a escolha por
estas avaliações se justificou pelo fato de representarem um momento chave de reabilitação
dos ―conteúdos‖ que junto a valores, procedimentos e linguagens constituem o conhecimento
escolar. Momento este em que a seleção e organização dos conteúdos considerados
importantes se evidenciam compondo narrativas históricas.
As Provas Institucionais foram escolhidas, também, por serem avaliações que possuem
parâmetros comuns a todas as turmas de cada uma das unidades da escola, que precisam ser
realizadas em um mesmo dia e têm suas questões definidas pelo corpo docente junto à sua
coordenação, com anuência da chefia de departamento ao final do ano letivo. Tais provas
representam 70 pontos em 100 do total da pontuação atribuída no último trimestre,
representando uma tentativa de ―nivelamento‖ de conhecimento, fixando o que seria
imprescindível que todas as turmas de cada unidade tivessem aprendido. Representando a
―fina-flor‖ dos conteúdos trabalhados ao longo do ano letivo,– o que, de certo modo–
consubstancializa a ideia de importância e configura narrativas escolares. A Portaria n° 367,
de 1º de março de 2007, reiterada em 2008 e em vigência atualmente, estabelece a diretriz de
avaliação de ensino para as Unidades Escolares I, regulamentando o processo de ensino-
um enunciado aparentemente diferente, invalide outro, o que permite que ambos possam
conviver nas cadeias discursivas daquilo que é disciplinar.
A própria noção de acontecimento, então, passa a ser percebida como uma variável da
intriga, podendo ser interpretada a partir de diferentes níveis e durações. Nessa perspectiva,
um mesmo acontecimento pode ser abordado de diversos modos, em função do enredo no
qual está inserido. Logo, a fertilidade do conceito de narrativa é enfatizada por permitir
refletir a questão da objetividade e da subjetividade a partir da noção de intriga e tempo
histórico, trazendo para a racionalidade da ciência histórica possibilidades da admissão de
sentidos interpretativos. Segundo Gabriel (2003, p. 110):
[...] muitos estudiosos atualmente consideram que a escrita da História também tem
sido empobrecida pelo abandono da narrativa, estando em andamento uma busca de
novas formas de narrativa que serão adequadas às novas histórias, que os
historiadores gostariam de contar. Estas novas formas incluem a micronarrativa, a
narrativa de frente para trás e as histórias que se movimentam para frente e para trás,
entre os mundos público e privado, ou apresentam os mesmos acontecimentos a
partir de pontos de vista múltiplos. (BURKE, 1992, p. 347).
Tal ressignificação da narrativa pode ser fértil, não apenas para a análise dos
conteúdos históricos no campo historiográfico, mas também no ambiente escolar. A disciplina
de Estudos Sociais reconfigura narrativas que se complexificam na escola por conta de
questões axiológicas inerentes a este contexto específico. Desse modo, neste trabalho de
investigação, ocorre a problematização do conhecimento histórico escolar a partir das
narrativas desta disciplina, destacando a centralidade do tempo na produção do conhecimento
histórico em âmbito escolar.
Nessa perspectiva de análise, o tempo é pensado como objeto, como criação humana,
mas também como presença. O tempo existe e, em alguns momentos, parece ter agência
própria, uma agência que aparentemente se encontra para além dos sujeitos. Portanto, apesar
de criação, possui inexorabilidade; talvez por isso seja tão difícil falar sobre ele. A
centralidade do conceito de tempo na tentativa de compreensão dos processos históricos está
relacionada espacialmente à inscrição dos acontecimentos em um tempo físico, mas que não
se limita a um tempo cronológico; tempo este que pode também ser percebido como subjetivo
no processo de construção das narrativas escolares em Estudos Sociais através da construção
de intrigas. Tais narrativas apresentam sempre temporalidade, implícita ou explicitamente
através de relações como anterioridade, posterioridade, duração, simultaneidade,
continuidade, descontinuidade.
O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal. Ou,
como será frequentemente repetido nesta obra: o tempo torna-se tempo humano na
medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é
significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal.
(RICOEUR, 1994, p 15).
tempo histórico, inscritos nas formas de construção intelectual, admitindo a temporalidade das
ações humanas em contextos diferenciados:
Além da reflexão sobre o tempo histórico, a narrativa como categoria analítica permite
redimensionar outro aspecto importante relacionado à cientificidade do conhecimento
histórico, como o debate em torno da questão do compromisso com o valor de verdade. Com
efeito, o historiador não se permite apenas narrar uma história, ele precisa autenticar sua
narrativa e o sentido de ―mais verdadeiro‖ pode ser justamente fixado a partir do olhar
julgador de pertinência de seus pares por meio da intriga produzida. Isso significa que, nas
disputas por valores de ―mais verdadeiro‖ travados neste contexto discursivo específico, a
dimensão epistemológica responsável pela mobilização de sentidos de verdade não pode ser
negligenciada. Narrativas hegemônicas vão se firmando no âmbito acadêmico por serem
também percebidas como ―mais verdadeiras‖ por parte da comunidade disciplinar responsável
por fixar os regimes de verdade que orientam a produção do conhecimento histórico.
Essa preocupação com os regimes de verdade (FOUCAULT, 2008) do conhecimento
histórico também está presente, principalmente, quando se considera a especificidade do
conhecimento escolar. As narrativas históricas produzidas na academia por meio de processos
de transposição didática (CHEVALLARD, 1991), transformam-se, podendo ser hibridizadas
com configurações narrativas do passado produzidas em outros sistemas discursivos. No
entanto, essa transposição não significa abandonar o compromisso com o valor de verdade (e
não da verdade em si). Trata-se, assim, de reconhecer o jogo pela definição do que deve estar
na ―pauta do verdadeiro‖ e de admitir que a estrutura narrativa do conhecimento escolar seja
diferente da referente ao conhecimento acadêmico, mobilizando lógicas e regimes de verdade
que incluem, mas não se reduzem àquelas legitimadas no campo acadêmico.
de mundo e fixam sentidos para a ciência histórica. A partir da categoria ―narrativa histórica‖
tal como desenvolvida no quadro teórico de Paul Ricoeur (1994), tornou-se possível analisar
os fluxos de cientificidade recontextualizados nas narrativas histórico-escolares, objeto de
avaliação nas Provas Institucionais analisadas. Interessando, particularmente, perceber como
os conteúdos em História se articulam nos enunciados das provas. Para tal, realizou-se a
retomada da noção de acontecimento histórico centrando a análise na forma como passado,
presente e futuro se entrecruzam na estrutura narrativa, resultante do processo de transposição
didática que a fixa no contexto escolar e especialmente nos instrumentos de avaliação de
aprendizagem selecionados como empiria.
Tornou-se interessante explicitar a forma como foi constituído o acervo de avaliações
que fizeram parte da empiria. Analisou-se um total de 21 provas institucionais aplicadas no
final do ano letivo nas diferentes Unidades I da instituição no período de 2008 a 2011, sendo
as provas elaboradas e aplicadas no 5º ano de escolaridade. Este recorte temporal foi
delimitado porque a partir do ano de 2008 a escola adotou o Projeto Político Pedagógico para
os anos iniciais de escolaridade, o que definiu os conteúdos a serem ensinados em Estudos
Sociais. Naquele mesmo ano, foi confirmada a portaria avaliativa que se mantém em vigência
na escola até o momento presente (2012), tendo como propósito analisar os fluxos históricos
de cientificidade recontextualizados na disciplina escolar Estudos Sociais, que, na perspectiva
aqui privilegiada, qualificam os conteúdos como um dos elementos que configuram as
narrativas histórico-escolares. O conteúdo passou a ser entendido como objeto de
recontextualização de matrizes disciplinares de referência (locus de cientificidade), que por
sua vez significam e articulam entre si, de formas diferenciadas, os múltiplos ingredientes
(sujeitos, noção de tempo e espaço, conceitos, acontecimentos, ações e tensões) que
configuram a estrutura narrativa do conhecimento histórico em Estudos Sociais.
Nessa perspectiva, alguns conteúdos citados no Projeto Político Pedagógico dos Anos
Iniciais encontram-se presentes e ganham importância no corpo textual das Provas
Institucionais por sua recorrência, compondo narrativas históricas. Como por exemplo: a
chegada dos portugueses, os africanos no Brasil, a sociedade do açúcar, a sociedade
mineradora, a sociedade cafeeira, a independência do Brasil e a proclamação da República.
Portanto, uma análise cuidadosa dos enunciados das provas permitiu constatar que,
embora a história do Rio de Janeiro, também citada no documento como conteúdo de
destaque a ser trabalhado – e, como tal, passível de configurar entre as narrativas históricas a
serem avaliadas nesse nível de ensino – ela não foi a narrativa histórica central
recontextualizada nessas avaliações. Este lugar de destaque coube às narrativas relacionadas
aos ciclos econômicos no Brasil segundo (a historiografia tradicional, açúcar – ouro – café),
trazendo com evidência a mão de obra escrava africana. Observa-se que na maioria das provas
analisadas não foi possível perceber uma articulação direta entre a História da escravidão no
Brasil e a História do Rio de Janeiro, nem tampouco com o espaço territorial da cidade ou do
estado do Rio.
Nesse contexto discursivo, os sentidos de escravidão que enfatizam a dimensão
econômica, associando o escravo africano à mercadoria e mão de obra, emerge com força,
deixando transparecer a presença forte da marca de um determinismo econômico que
estrutura a sociedade, aparentemente, parecendo ser definida e organizada a partir da
economia. Essa afirmação se sustenta de diferentes maneiras, como por exemplo, na ideia de
―ciclos econômicos‖ que perpassa as provas das diferentes unidades e por meio das quais a
História do Brasil é narrada em torno da sucessão dos apogeus da produção açucareira, da
mineração e da produção cafeeira.
Essa matriz historiográfica, com ênfase no econômico como determinante na
compreensão do processo social, aparece articulada com elementos tanto da abordagem de
cunho marxista como de cunho tradicional positivista. Como exemplos destacam-se os
enunciados que colocam em evidência o peso da estrutura escravocrata nas relações sociais,
dificultando a percepção do escravo como sujeito de desejo capaz de buscar formas de
resistência e de subversão em meio a essa estrutura de dominação e de exploração dos grupos
dominantes.
Ainda assim, como foi possível perceber durante o processo de pesquisa, mesmo
quando há a intencionalidade de ressaltar a questão da resistência – por meio da referência à
fuga de escravos – ela acaba sendo uma tentativa não muito aproveitada ou subalternizada, na
medida em que aparece apenas como uma opção (uma letra de uma atividade) em meio a
outras opções que reforçam uma ideia de submissão, perceptível na maioria das avaliações.
Outra articulação que se hibridiza com a abordagem econômica nessas avaliações pode ser
evidenciada na forma como a questão da resistência do escravo é tratada. Seria a reatualização
do sujeito-herói, individualizado, marca das matrizes historiográficas ditas tradicionais. É
possível, por exemplo, perceber que das 21 avaliações somente 4 não trazem imagens de
pessoas negras. Das 17 restantes, três trazem imagens de Zumbi como símbolo de resistência.
Outro aspecto que merece destaque é a presença significativa de matrizes
historiográficas mais recentes pautadas na perspectiva cultural. A negritude é abordada em
praticamente todas as avaliações. Embora essa temática esteja fortemente associada à questão
da escravidão, investindo, portanto, mais em um passado percebido como remoto do que nas
demandas de diferença de nosso presente, alguns vestígios de uma relação entre passado e
presente nessas narrativas podem ser vistas em algumas provas que abordam a questão
identitária.
No que se refere ao tempo histórico, a análise permite tecer algumas considerações de
ordem geral. Uma primeira é que ele está, ao contrário do que foi observado para a temática
do Rio de Janeiro, bastante presente em todas as Provas Institucionais. Essa constatação não é
uma surpresa, nem achado da análise. Tendo em vista o referencial teórico privilegiado, que
considera a estrutura narrativa do conhecimento histórico como um arcabouço em que o
tempo é inerente para a sua configuração epistemológica. Assim, qualquer formulação de
enunciados que mobilize conteúdos históricos/estruturas narrativas, apresenta noções de
tempo, que por sua vez articula passado, presente e futuro.
Nessa perspectiva, o que parece instigante não seria a constatação da presença da
temporalidade, mas sim a evidenciação das formas de articulações temporais das narrativas
históricas privilegiadas e presentes nas leituras de mundo que são reatualizadas nos
enunciados. Logo, o entendimento do tempo como objeto de ensino, pode oferecer elementos
de análise para compreensão da percepção deste como elemento estruturante das narrativas
históricas.
Desse modo, destacam-se as formulações de questões específicas relacionadas ao
aprendizado do tempo histórico. As linhas de tempo aparecem como um recurso bastante
utilizado para esse tipo de aprendizado e a utilização destas pode mostrar a diferenciação do
tempo cronológico, do tempo histórico, que embora relacionados, não são sinônimos. Afinal,
como afirma Siman (2005, p. 112): ―o tempo histórico, embora utilize-se das medidas de
tempo para estimar as durações dos fenômenos, pensar a velocidade das mudanças, identificar
seus marcos históricos no ‗continuum‘ do tempo, deste se diferencia.‖
Ao analisar as Provas Institucionais, tem-se a sensação de que, aparentemente, as
relações estabelecidas entre passado, presente e futuro na instituição são encaminhadas por
meio das noções de causa e consequência, desconsiderando, ou tentando considerar muito
timidamente, permanências, descontinuidades, rupturas e simultaneidades. Sendo possível
interpretar a linearidade como marco de todas as provas, tanto por meio da organização linear
das questões, como por meio de enunciados sobre ordem cronológica e por meio da
disposição de linhas de tempo. O que sugere, principalmente, uma perspectiva tradicional e
utilitária da História em que os indivíduos estudam tal disciplina para aprender com os fatos
importantes do passado, compreender o presente e construir um futuro promissor. Esta forma
de pensar tem como base o pensamento positivista, característico do século XIX, podendo
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P.O poder simbólico.13º ed. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2010.
FOUCAULT, M. A Ordem do discurso. 17º ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
RESUMO:
Geograficamente, Pau-de-Colher está situada perto da divisa entre Bahia e Piauí, sobre
a serra dos dois Irmãos. A região é áspera, com três ou quatro meses de chuva e oito de seca
por ano. O nome do lugarejo por causa de uma árvore típica era também o nome de um sítio
que ficava situado à beira da estrada que liga os povoados de Ouricuri e Lagoa do Alegre.
Sobre a localização Oliveira (1998, p. 79) diz: “Atravessando as serras, a região de
Pau-de-Colher é plana. Situando-se em uma suave depressão, circundada, de um lado e do
outro, pelos últimos contrafortes das cadeias serranas.”
A movimentação de pessoas no lugar iniciou-se com encontros embaixo de um pé de
Juazeiro, para conversar e resolver negócios, formando assim a feira do Pau-de-Colher, o que
posteriormente veria a ser chamado de reduto, no inicio o lugar era pouco habitado, como
afirma Malvezzi (1994, p. 4):
No Pau-de-Colher residiam três famílias, cujos chefes eram: Rosendo, Luís Carlota
e Romualdo. Mais tarde surgiu outra, quando José Senhorinho, filho de Romualdo,
também se casou. Eram famílias tradicionais do sertão São Franciscano, praticavam
Os vigários ambulantes vinham da cidade da Barra, já que naquela época ainda não
existia a diocese de Juazeiro da Bahia, criada por João XXIII, apenas em 1962. Nessas
condições de acesso extremamente difícil, o único modelo pastoral existente era o das
desobrigas2, quando os vigários percorriam o sertão celebrando missas, batizados e
casamentos.
Como Malvezzi (1994) citou a quarta família a ser formada no local foi a de José
Senhorinho, pois o mesmo já era filho de um morador de Pau-de-Colher, e era muito
conhecido na região, o que nortearemos agora.
JOSÉ SENHORINHO
2Durante a quaresma, os religiosos se encarregavam de viajar pelo interior a fim de ministrar a confissão e
comunhão anual exigida pelo Concílio de Latrão IV. Tais visitas recebiam o nome de desobrigas, pois se tratava
de cumprir uma obrigação imposta pela igreja.
BEATO SEVERINO
O Beato Severino Tavares, como ficou conhecido, não chegou a ser propriamente um
líder de Pau-de-Colher, mas foi um dos primeiros a conhecer o local sendo também
responsável pela estruturação do agrupamento em moldes de movimento. Era Cearense, e em
sua cidade natal trabalhou como caixeiro de uma vendola3; saiu do seu lugar de origem e foi
para Juazeiro do Norte, chegando ao Caldeirão por volta de 1926.
Nasceu no Ceará, no lugar denominado Santana do Cariri, onde foi caixeiro de uma
vendola. Dado às leituras, estava sempre lendo os três livros de sua predileção:
Bíblia, O livro de São Cipriano e A Historia de Carlos Magno. Certa feita Severino
desapareceu de Santana, ficando ignorado o seu paradeiro durante algum tempo.
Pessoas que o conheceram foram descobri-lo no Juazeiro do Padre Cícero, mas não
foi fácil reconhecê-lo, pois estava transformado em penitente, um daqueles tipo
maníacos encontradiços na terra do Cariri. (ESTRELA, 1998, p. 33).
Mais tarde tornou-se comboieiro4, fato que o levou a adquirir grande conhecimento
pelos caminhos do sertão Nordestino. Virou um grande discípulo do Beato Zé Lourenço no
Caldeirão e percorria os sertões pregando a doutrina fundamental da matriz do Juazeiro de Pa.
Cícero. Andava também de casa em casa; parava nos povoados e tinha um grande poder de
convencimento.
Era comboieiro e conhecia muito bem as estradas do sertão, por onde enveredava
com suas mulas carregadas de mercadorias. Nos sítios onde ia parando, pregava o
evangelho, falava sobre padre Cícero, o beato Lourenço, o Caldeirão e o fim dos
tempos. Seu altruísmo era marcante. (OLIVEIRA, 1998, p. 85).
Sua linha de pregação alertava para o final do mundo. Aconselhava a oração, a vida
moral regrada e ensinava bendito; em uma de suas andanças, passou pelo norte da Bahia, indo
parar na cidade de Remanso.
3Pequena venda.
4Aquele que escolta ou guia comboio (conjunto de animais de carga que transportam mercadorias).
Senhorinho passou a reunir aos domingos, em sua casa, pessoas do local; enuclear-
lhes os ensinamentos contidos em seus livros e interpretava a Bíblia. Nestas reuniões
Senhorinho falava de Caldeirão, do beato Lourenço, da vida em comunidade e da
necessidade de todos se considerarem irmãos, antes da ida para Caldeirão.
Terminadas as rezas, os participantes voltavam para suas casas com a promessa de
retornarem no domingo seguinte. (OLIVEIRA, 1998, p. 110).
QUINZEIRO
Como Malvezzi (1994) afirma acima, em Remanso, Severino tinha a seu lado o beato
Quinzeiro, seu antigo discípulo, que depois da passagem por Casa Nova ficou conhecido por
Senhorinho e seu pessoal. Anos depois, após uma batalha na serra do Araripe, onde foi morto
o Beato Severino, o grupo de Caldeirão dividiu-se em três alas, e uma delas, a que a incluía,
dirigiu-se para a localidade de Pau-de-Colher, chegando ao seu destino em meados de 1937.
Quinzeiro era um artista da madeira; fazia principalmente cacetes, que foi muito usado
por todos. A finalidade inicial era pacifica: abrir o mato, quebrar frutas e se defender de
algum tipo de animal, como por exemplo, cobra. “Os cacetes eram de madeira bem rígida,
tinham várias cruzes e riscos gravados – geralmente usados por homens, entretanto muitas
mulheres sabiam como manejá-los”. (OLIVEIRA, 1998, p. 117).
Seu Quim, como era conhecido, iria moldar também, as manifestações religiosas,
econômicas e militares de Pau-de-Colher e conferir-lhe os contornos de movimento social
organizado. Falava que era da “disciplina” de Severino, e dizia que viera para lembrar
caldeirão. Por isso, Pau-de-Colher mudou com sua chegada, como afirma Oliveira (1998, p.
116):
HIERARQUIA EM PAU-DE-COLHER
Pau de Colher estava organizado em três grupos: o primeiro era o grupo dirigente, que
se inspirava diretamente nas idéias de José Lourenço. No mais alto lugar estava
Quinzeiro, homem de grande prestígio por ter vindo do Caldeirão. Logo abaixo, José
Senhorinho, líder carismático no sentido integral, dirigia todos os movimentos do
grupo.
O segundo cargo do primeiro grupo, como citou Queiroz (1976), era de José
Senhorinho. Em nível local, sua liderança era destacada; pois era um grande rezador
conhecido da região. O povo também dizia que Senhorinho tinha “transes” e falava
“enrolado”. Esses fenômenos, certamente, eram interpretados como manifestações diretas de
Deus.
É conveniente lembrar que sua mãe já era chamada de “rezadeira”. Ele, então, nasceu,
cresceu e viveu em um ambiente místico. O que não deixa duvida, é que, aos olhos do
sertanejo, Senhorinho desenvolvia fenômenos incomuns, o que lhe conferia uma identidade
especial de “iluminado”. Como descreve Lima (2005, p. 25-26):
Comentava-se que em certa ocasião, quando uma forte chuva, típica de tempestade,
acompanhada de vento amedrontador ameaçou o povo aglomerado, ele [Senhorinho]
levantou-se da rede onde estava deitado e dirigiu-se a multidão: „Do que vocês têm
medo? Eu estou aqui, e tenho parte das três forças superiores do mundo, a água, o
fogo e o vento‟. Assim dizendo, trançou as duas mãos para o alto. Então a nuvem
mudou de direção, parou a uma légua de distância e desfez-se em chuva de fogo,
queimando enorme área de vegetação.
Abaixo de Senhorinho vinham seus auxiliares diretos, por ele indicados, agindo como
extensão do líder, executando tarefas administrativas, como cuidar do deposito de alimentos.
Quinzeiro, Senhorinho e seus auxiliares formavam o primeiro grupo da hierarquia.
O segundo grupo era o das “sopradeiras”, formado exclusivamente por mulheres.
Tinham tarefa de soprar “alento” na boca dos que partiam para qualquer tarefa, a fim de lhes
dar força.
E o terceiro grupo era dos fieis. Sem voz ativa, eram os “consumidores” dos ritos,
participavam da comunidade, rezas, cantos, pregações e outros, o sinal externo de obediência
aos lideres era o pedido da benção. Quinzeiro e Senhorinho eram os que abençoavam. Tudo
isso, obedecendo sempre, os próprios costumes do local.
OS COSTUMES
Segundo Lima (2005), Os costumes morais eram rígidos, e havia abstinência sexual
mesmo entre os casais sacramentalmente constituídos. Haveria ainda, recintos separados para
homens e mulheres.
Oliveira (1998) afirma ainda que a maioria vestia-se de negro. Os homens com calça e
camisa e as mulheres de casacos e saias. Para ele, havia nessa cor o simbolismo do luto assim
como em Caldeirão. Sobre isso, descreve:
Os homens usavam calças comuns e camisas de mangas compridas, sem gola. [...]
As mulheres vestiam vestidos compridos e cobriam suas cabeças com xale alarve. A
cor predominante era o preto que significava luto, talvez pela morte de um ente
amado ou mesmo de Padre Cícero. (OLIVEIRA, 1998,p. 47).
É comum a aceitação que todos portavam um cacete com uma cruz na ponta, que
inicialmente, como já vimos, era usado para proteção individual, daí o adjetivo de
“caceteiros”. Mas, para as afirmações de Oliveira (1998), o cacete era o símbolo da justiça
divina e servia para eliminar os que estavam virando “fera”.
Estes cacetes eram encarados como um símbolo de Justiça divina, pois com eles eram
eliminados aqueles que não eram da mãe de Deus, bem como os que apresentavam
sintomas de transformação em fera, que indicavam possivelmente relações com o
demônio. (OLIVEIRA,1998, p.117).
Acontece que Pau-de-Colher não era um fim em si mesmo, mas sim, uma ante sala da
marcha para Caldeirão, que seria restaurado pela volta do beato Zé Lourenço. Na verdade,
Quinzeiro e Senhorinho sabiam que Zé Lourenço estava provando sua inocência para voltar
para Caldeirão. A aglomeração do povo, então, não tinha nenhum problema. A elite e os
adversários é que viam perigo nesse nucleamento, divulgando fantasiosamente que os
“caceteiros” iriam tomar Casa Nova de assalto. Caldeirão, então, era uma espécie de “terra
prometida sagrada” do povo. E no momento oportuno haveria o deslocamento, como explica
Oliveira (1998, p. 98 e 99):
A hipótese que o lugar escolhido por Severino Tavares, foi uma tentativa para
moldar seu novo sítio do Caldeirão, choca-se com explicação simples do local ser
simplesmente uma passagem para Caldeirão no Ceará, que estava sendo preparada
para uma grande comunidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
LIMA, Jose Américo. Pau-de-Colher: Tragédia no Sertão. Recife, PE: Edificantes, 2005.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Messianismo no Brasil e no Mundo. 2. ed. São Paulo:
Alfa Omega, 1976.
RESUMO:
O presente texto é resultado de uma pesquisa em andamento e pretendemos provocar breves
reflexões sobre a implementação da Lei 11.645./2008, que ampliou a Lei 10.639/2003,
servindo de complemento, ao determinar a inserção, no currículo da Educação Básica, os
conteúdos sobre história e cultura dos povos indígenas no Brasil. Discutiremos quais as
condições atuais da abordagem desse tema no espaço escolar, os subsídios didáticos e a
formação de professores que favoreçam o respeito e o reconhecimento dos povos indígenas
pela sociedade em geral.
***
Iniciaremos nossas discussões partindo de uma breve reflexão sobre das influências
dos estudos culturais e dos movimentos sociais para as mudanças nos currículos escolares no
Brasil. De acordo com alguns(mas) teóricos(as) como Silva (1999), Moreira e Silva (2006) e
Carvalho (2004), a introdução dos estudos sobre esse tema, por meio dos debates e
discussões, teve início nas duas primeiras décadas do século XX, ganhando mais significado
nos anos 1940 com a ênfase social dos grupos étnicos, sobretudo “movimento negro” se
contrapondo ao mito da “democracia racial”. (CARVALHO, 2004, pp.34-35).
Duas décadas depois, esse movimento ganhou força com a inserção dos grupos
feministas, os esquerdistas e mais os movimentos sociais da educação, com as discussões
voltadas para o campo do currículo, tendo como principal incentivador o educador Paulo
Freire (SILVA, 1999).
Nos anos 1980, intensificou-se a discussão por parte dos homossexuais, igrejas e
povos indígenas; essa última categoria visando à retomada dos direitos a terra, educação
1Licenciada em Pedagogia pela FUNESO (1997), especialista em Ensino das Artes e das
Religiões pela UFRPE (2007)e professora no Ensino Fundamental I (SEEL/PCR-PE).
Contato:dpenhasilva@gmail.com
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais.
§ 2º. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,
assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas
e processos próprios d e aprendizagem.
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais.
§ 1º. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-
brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional
comum, a ser contemplada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por
uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade,
da cultura, da economia e da clientela.
§ 4º. O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes
culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes
indígena, africana e europeia.
Parece ser necessário, ainda desenvolver um olhar sobre o processo educativo não
diretamente desenvolvido pelo sistema educacional, mas que está relacionado mais
fortemente com a economia global, a exemplo da indústria cultural, e que tem
reflexos no campo curricular. Dois aspectos importantes desta economia global, que
têm reflexos na educação são: a fabricação de identidade do que denominaram
consumidor e a fabricação da diversidade cultural do mundo globalizado.
(CARVALHO, 2004, p. 74)
Esses aspectos citados pela autora nos chamam atenção pela forma como os meios de
comunicação têm servido de veiculação para a “indústria cultural”, que tem se apropriado do
discurso multiculturalista e reelaborado uma dinâmica de investimento na formação de
identidades do público consumidor. Direcionando a produção de seus produtos para
determinados grupos de consumidores e esses consequentemente expandirão a rede de suas
relações sociais e assim sucessivamente.
É interessante que ocorra discussões e reflexões sobre quem e como está conduzindo a
inserção da temática “diversidade cultural” e a quem verdadeiramente interessa. Por exemplo,
é comum entre os membros dos grupos atuantes do “movimento negro” o uso dos produtos
que os identificam como tal: roupas, acessórios, cosméticos, etc. Formando-se toda uma rede
de consumidores em torno de uma caracterização da categoria étnica. Fortalecendo a indústria
desses produtos que se apropria da “indústria cultural”.
Igualmente, nesse contexto não é difícil identificar grandes empresas que se apropriam
do conhecimento de alguns povos indígenas para exploração de matérias-primas da região
amazônica, usadas na fabricação de produtos de beleza. Como também veiculam imagens da
mesma região nas campanhas publicitárias dos produtos. Significa que, havendo uma
valorização da cultura desses povos indígenas nas escolas dos não índios, resulta em mais
lucros para essas empresas. Não devemos ser ingênuos e pensar que a inserção desses valores
culturais no currículo escolar é simplesmente uma conquista dos movimentos sociais e dos
grupos étnicos aqui citados, pois pode ser muito mais do que isso. Como afirmou Apple
(2009):
De acordo com o autor, a partir das teorias críticas e pós-críticas do currículo, devemos
debruçar outro olhar sobre o mesmo; esqueçamos a “inocência” das propostas curriculares
para observarmos no currículo os mecanismos de controle social. A seleção dos seus
conteúdos está sempre atrelada à formação das identidades, pois “nas teorias do currículo,
entretanto, a pergunta „o quê?‟ Nunca está separada de outra importante pergunta: „o que eles
ou elas devem se tornar?”(grifo nosso) (SILVA, 1999, p. 15). É nessa perspectiva que
gostaríamos de provocar uma reflexão sobre a nova proposta curricular pensada a partir da
Lei 11.645/2008, que mantém em cena as discussões sobre a inclusão da diversidade étnica no
espaço escolar.
Mesmo diante de todo controle social, ao qual as mudanças curriculares estão
atreladas, as discussões sobre as relações entre currículo e cultura têm resultado em avanços
significativos para a educação. Ao mesmo tempo, traz muitos desafios para toda a
comunidade escolar que até então vivenciava no seu cotidiano um currículo afirmativo da
cultura homogeneizadora, carregado de conceitos e preconceitos excludentes que elegem
quais saberes têm maior ou menor valor, que merecem ou não destaque como conteúdo
curricular. Essa nova perspectiva de inclusão dos valores socioculturais e históricos indígenas
no cotidiano escolar abre espaço para discutirmos as reais condições das relações e redes
sociais que os povos indígenas estão inseridos.
Como dito no início deste texto, além das influências políticas, econômicas e culturais
para as mudanças no currículo no Brasil, a atuação de dois grupos étnicos (negros e índios)
nesse processo tem sido de fundamental importância para a inserção oficial da diversidade
cultural no currículo. E para esses grupos pode significar uma conquista esperada por longas
décadas que responde em parte às suas reivindicações. Esses povos, por muito tempo, em
nome do “discurso da mestiçagem”, ficaram “ausentes” dos conteúdos curriculares, passando
a fazer parte de um passado remoto no qual eram apresentados como indivíduos de “cultura
inferior”, resultando em preconceito e discriminação contra indivíduos ou coletividades dos
referidos grupos. Muitas vezes o/a próprio/a docente não tem consciência que está sendo
preconceituoso, a exemplo daqueles que ainda usam uma conhecida expressão “não tenho
preconceito, trato meus alunos todos iguais, como se fossem todos brancos”. E essas pessoas
acreditam que respeitar a diversidade cultural é tratar todos os indivíduos como iguais, tendo
como referência a cultura dos brancos.
Como exercício desse olhar, convidamos os/as leitores/as a fazer uma breve reflexão
sobre o texto da Lei 11.645/08, considerando que apesar da relevância da mesma diante do
significado político das históricas mobilizações sociais que resultaram em importantes
alterações na Lei 9.394/96, que rege as Diretrizes curriculares da Educação Nacional
(LDBEN), o seu texto ainda sugere dúbias interpretações:
retomado originalmente, quando sabemos que todos os grupos humanos vivenciam processos
de reelaborações socioculturais contínuos. Enquanto a expressão “contribuições nas áreas
sociais”, substitui a ideia da importante atuação desses povos no contínuo processo
sociopolítico e histórico do país por uma “mera contribuição”.
A afirmação “formação da sociedade nacional” reforça a ideia corrente de
Entretanto, mesmo quando afirmam que os índios não foram passivos diante da
colonização, alguns autores não deixam de atribuir a eles uma ideia de demérito. Em
muitos casos, a agência indígena é apresentada na figura daqueles que lutaram
contra outros índios ou negros, formando bandeiras ou atuando como capitães do
mato. Assim retratada, essa não passividade indígena é também apresentada de
forma negativa. (GOBBI, 2006, p. 73).
A autora ainda ressaltou a ênfase que os livros didáticos dão à valorização da cultura
europeia, às “grandes invenções” das ciências e medicina, enquanto no que se referem a
outros povos tudo parece como “contribuição inferior” e folclórica.
Recentemente, o MEC enviou às escolas públicas mais uma coleção de vídeos da TV
Escola. E nessa coleção encontramos alguns vídeos com conteúdos que se aproximam de uma
tentativa possível de iniciarmos um diálogo sobre a diversidade cultural. Como outros
materiais didáticos, levam tempo para a produção e mais tempo ainda para chegarem às
escolas. Por exemplo, a citada coleção foi produzida no ano de 2006, ou seja, dois anos antes
da Lei 11.645/2008, e só veio chegar à comunidade escolar quatro anos após à sua produção.
Significa que, além de ainda veicular alguns conceitos e preconceitos considerados
discriminatórios a respeito dos povos indígenas no Brasil, também trouxe informações e
dados estatísticos desatualizados; a exemplo dos dados demográficos. Outro aspecto que
consideramos relevante é a invisibilidade dos conflitos políticos e econômicos que perduram
há anos, resultantes das obras públicas federais em territórios indígenas, e da ocupação
indevida pelo agronegócio.
Gostaríamos de destacar também, a ênfase dada a abordagem sobre os povos da região
amazônica; são muito poucas as informações sobre povos indígenas do Nordeste. Assim
reproduzindo a antiga ideia, como já vimos tão evidenciada pelos estudos literários e
pesquisas acadêmicas regionais, que não existem índios no Nordeste.
Um subsídio interessante distribuído pelo MEC às unidades escolares públicas para
estudos entre o corpo docente é a coleção Indagações sobre o currículo (2008), que trouxe,
entre outros, os títulos “Currículo, conhecimento e Cultura” e “Diversidade e Cultura”, com
discussões atuais que servem como ponto de partida para uma reflexão sobre a inserção dessa
temática na escola. Iniciando pelo texto de Gomes, que faz questionamentos ao trato dado à
diversidade cultural no âmbito escolar:
Ao observarmos com cuidado os livros didáticos, podemos verificar que eles não
costumam incluir, entre os conteúdos selecionados, os debates, as discordâncias, os
processos de revisão e de questionamento que marcam os conhecimentos e os
saberes em muitos de seus contextos originais. (MOREIRA; CANDAU, 2008, p. 23)
de estudos e discussões sobre o conteúdo desses subsídios, sem que haja prejuízos para o
cumprimento dos dias letivos prescrito na LDBEN.
profissionais de várias cidades em um hotel durante uma semana, para vivenciarem diversos
conteúdos, em meio a esses, é reservada uma manhã para a temática indígena. O que
consideramos um tempo insuficiente para as discussões pertinentes às questões expostas.
Enquanto que nas redes municipais, temos conhecimento de pouquíssimas iniciativas,
pontuais, de um ou outro município. Uma preocupação é como esses eventos são organizados,
Figura 2. Estudantes junto à índia Xukuru (à direita, exibindo artefatos indígenas) mais a produção dos próprios
estudantes (panela pintada com tinta de artesanato).
Foto: Maria da Penha da Silva, 2010.
A preocupação docente em enriquecer a aula e tornar mais fácil e real a teoria tem
sido um campo no qual discretamente a supremacia social e cultural é estabelecida.
Além disso, a escola frequentemente se utiliza de artefatos culturais de “outras”
culturas para acentuar, frisar, a “diferença”. Assim, ao utilizar utensílios da cultura
indígena para tornar concreta a prática pedagógica, a escola transpõe o significado
de instrumentos de trabalho e práticas culturais mostrando-as como instrumentos
lúdicos, decorativos e, às vezes, ludopedagógicos, além de marcá-los como
pertencentes a uma cultura “exótica”. (OLIVEIRA, 2002, p. 31)
A citada autora indica a necessidade de uma abordagem desse conteúdo de forma que
discuta as relações interculturais, vinculadas às vivências interpessoais dos indivíduos no
processo de convivência familiar e social inerente a todo e qualquer grupo humano.
É necessário pensarmos em quais condições o espaço escolar e seus agentes
educadores encontram-se para conduzir a inclusão da temática indígena no currículo e a quem
realmente interessa que essa abordagem ocorra da forma apresentada. O que dizer do Estado
de Pernambuco onde são conhecidos atualmente 12 povos indígenas e que mantém um
sistema educacional público nas escolas para não índios, no qual professores/as ocupam
cadeiras para ministrar disciplinas que não são habilitados para lecioná-las (a exemplo da
disciplina equivocadamente chamada “Educação indígena”, quando deveria ser “Educação
Escolar Indígena”, pois sobre Educação indígena quem tem méritos para tratar são os próprios
índios!).
Nessa tão conhecida situação, muitas escolas se deparam com docentes em final de
carreira, sem nenhuma experiência sobre o assunto, ministrando a disciplina de “Educação
indígena” no Curso Normal Médio (antigo Magistério). São, em sua grande maioria,
professoras que se negam a ler, a estudar e aprofundar seus conhecimentos para lecionar sobre
a temática indígena. O que podemos esperar desses futuros professores e professoras que
saem desses cursos, que vão atuar no Ensino Fundamental e continuar reproduzindo as
mesmas visões equivocadas?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio dos resultados preliminares desta pesquisa compreendemos que discutir a
inclusão da diversidade cultural no currículo é, antes de tudo, reconhecer as especificidades
inerentes a determinados grupos sociais. É direcionar um olhar diferente do que ocorria no
currículo anterior, sejam nos aspectos relacionados a gênero, crenças, etnias e etc.
Compreender que não se trata apenas de trabalhar a “tolerância” em sala de aula ou realizar
“breves visitas” à cultura do outro, ou ainda “contemplar” minorias que estavam excluídas ou
mal representadas nesse currículo. Porém, em tomar ciência da complexidade em se constituir
um currículo democrático que viabilize espaços que favoreçam o encontro e a convivência, o
respeito e o diálogo entre os diferentes atores sociopolíticos, oportunizando igualmente o
acesso e a socialização dos múltiplos saberes. Espera-se ainda que apesar da morosidade na
real implementação da Lei em questão, que essa proposta de mudança no currículo venha
contribuir na reelaboração de identidades sociais capazes de reduzir os estereótipos criados
em torno dos valores socioculturais e históricos dos povos indígenas. Por meio da
incorporação das expressões socioculturais indígenas no currículo integralmente, consolidado
também nos subsídios didáticos, nas formações dos docentes e nos projetos político-
pedagógicos das escolas.
REFERÊNCIAS
GOBBI, Izabel. A temática indígena e a diversidade cultural nos livros didáticos de história:
uma análise dos livros recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático. 2006.
Dissertação (mestrado). Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, 2006.
OLIVEIRA, Terezinha Silva de. Olhares que fazem a “diferença”: o índio em livros didáticos
e outros artefatos culturais.In, Revista Brasileira de Educação. ANPEd, Jan/Fev/Mar/Abr
2003 nº 22, p. 25-34. Disponível em <www.scielo.br/pdf/rbedu/n22/n22a04>. Acesso em:
23/09/2010.
SANTOS, Boaventura de S. Uma concepção multicultural de direitos humanos. Lua Nova.
Revista de Cultura e Política, nº 39. São Paulo, Cedec, 1997, pp. 105-124.
SILVA, Edson. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE),
1959-1988. 2008. Campinas. Tese (doutorado). Departamento de História, Universidade de
Estadual de Campinas. 2008.
Sorridente e disposto, após passar uma manhã inteira na companhia de alunos do ensino
médio em uma escola particular de Feira de Santana-BA, o prof. Yoporeka Somet, de Burkina
Faso, gentilmente aceitou nosso convite para uma entrevista. Em pouco mais de quarenta
minutos, Somet discorreu sobre egiptologia e perspectivas de pesquisa para a América Latina,
bem como sobre filosofia egípcia e o paradigma do iluminismo. Doutor em Filosofia e
doutorando em Egiptologia, Yoporeka Somet é membro do conselho editorial da revista Ankh
e autor de livros sobre gramática e vocabulário de hieróglifos do Egito Antigo. À ocasião da
nossa entrevista, o professor Somet estava participando da programação do 2º Seminário de
Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, realizado pela Universidade Estadual de Feira de
Santana, onde realizou a palestra de abertura e ministrou um minicurso de escrita hieroglífica.
Também esteve presente no momento da entrevista Jacques Delpechin, professor do
mestrado em História da UEFS e amigo do prof. Somet, responsável por viabilizar a vinda do
egiptólogo para o Brasil.
Da esquerda para a direita: os professores Pablo Michel Magalhães, Yoporeka Somet, Rafael Lins e
Jacques Delpechin.
1
Editor-Chefe da Revisa Historien, mestrando pela UEFS no PPG de História.
2
Membro do corpo editorial da revista A Pala, mestrando pela UEFS no PPG de História.
Yoporeka Somet: Egiptologia é uma ciência muito jovem e nova, desde seu nascimento
como disciplina científica, remonta ao ano de 1822, quando o cientista francês Jean-François
Champollion conseguiu decifrar os hieróglifos, pela primeira vez. É claro que, antes dos
tempos de Champollion, muitos historiadores, cientistas, exploradores, visitantes ou
conquistadores do Egito tiveram um grande conhecimento sobre artes e arquitetura egípcia,
pirâmides, templos, obeliscos, múmias, etc. Mas, o que acontece com a decifração dos
hieróglifos é que nós poderíamos ter uma melhor compreensão do mundo e da civilização
egípcia, os seus valores, bem como sua filosofia e literatura, as ciências e técnicas, o seu
conhecimento matemático e habilidades astronômicas, e assim por diante. Assim, você pode
ver que o que costumamos chamar de egiptologia não é uma ciência única, mas um vasto
campo de disciplinas que vão desde a arqueologia à astronomia e geometria, química,
geografia e história, da ética à filosofia, política, sociologia e religião, etc. Segundo esta
definição, Egiptologia é de fato um conhecimento pouco desenvolvido, não só no Brasil, mas
em muitos outros países e isso significa que há espaço para todos neste campo de pesquisa.
Essa é também a razão pela qual eu venho chamar a vocês, jovens, para enveredar por esse
caminho...
H: Estamos aqui, na escola, um lugar de aprendizagem, e sua fala foi dirigida a crianças e
adolescentes. Considerando ser a Egiptologia um tema importante para a formação dos
alunos, e conhecendo as dificuldades para ensiná-la, quais métodos nós podemos utilizar para
trazer um pouco desse conhecimento para os nossos filhos e alunos adolescentes?
YS: Como eu disse antes, mesmo se Egiptologia é uma nova disciplina, temos um melhor
conhecimento da civilização egípcia hoje do que há um século atrás. Nós temos uma melhor
compreensão de sua língua e sua cultura e sua visão de mundo. E isso é porque temos mais
documentos. Uma boa documentação está disponível em egiptologia, tanto para o público
leigo e os alunos ou especialistas. Mas a verdade é que a maioria desses documentos são
escritos em Inglês, Alemão ou Francês. Então, se eu tiver que aconselhar alguém disposto a
saber melhor sobre a civilização egípcia, eu diria que a melhor maneira é começar com a
aprendizagem da língua egípcia em si. Você pode adicionar um pouco mais tarde, Francês ou
Inglês ou Alemão. Esta manhã, dei uma aula introdutória sobre hieróglifos para adolescentes.
Você estava lá e você tem sido uma testemunha ocular: não é tão difícil como se pode
imaginar. Você ainda se lembra desse menino que escreveu uma frase em Português, usando
os hieróglifos egípcios que eu acabara de escrever! O que significa que ele compreendeu
claramente como funciona! Assim, aprender hieróglifos para uma melhor compreensão do
Antigo Egito é o que eu recomendo para pessoas que queiram fazer esta disciplina mais fácil
para as crianças.
H: Professor, você falou ontem sobre a filosofia africana, e como o pensamento iluminista
trabalhou para depreciar a intelectualidade negra. Podemos afirmar que este paradoxo
permanece na sociedade contemporânea? Qual é o seu ponto de vista, como um intelectual
africano?
YS: Sim, realmente. O que eu disse ontem, durante minha conferência sobre a África e a ideia
de filosofia, é que um grande número de filósofos e cientistas europeus tem atraído uma
imagem tão ruim e negativa da África, especialmente durante o período chamado de
esclarecido. A maioria deles não poderia simplesmente aceitar a ideia dos africanos sendo
capaz de conceituar e ter um pensamento racional sobre, digamos, o que o universo é e de
onde vem, como se origina, etc. Eu passei a explicar como esses filósofos e cientistas, ao
contrário de seus antepassados gregos, contribuíram na construção de teorias racistas contra
pessoas não-brancas, e, particularmente, contra a África e os negros em geral. Eles
trabalharam duro para estabelecer uma forte ligação entre a beleza, a inteligência, a moral,
etc., e, digamos, a forma do seu nariz, a textura do seu cabelo, a cor dos seus olhos ou da pele,
etc. Segundo essa concepção, a brancura se tornou associada com a inteligência, beleza e
moralidade, e a escuridão relacionada à feiura, a estupidez, imoralidade e bestialidade, etc.
Não surpreendentemente, essas teorias foram posteriormente utilizados como justificativas
"morais" à escravidão e tráfico de escravos! Assim, desde que tais teorias racistas foram
apoiados por alguns dos cientistas mais poderosos da Europa (não por todos eles, graças a
Deus!) isso contribuiu para a construção de um preconceito racial baseado fortemente no dia-
a-dia das relações para a África e os africanos e / ou pessoas de ascendência Africana. E esse
viés permanece fortemente até hoje e isso é o que chamamos de racismo, discriminação,
preconceito, etc. Quero insistir aqui sobre o fato de que o racismo não era (e ainda não é) uma
invenção de pessoas comuns ou pessoas sem instrução: ela era a ideia original dos iluministas
europeus e não pode terminar sem um forte compromisso de renovar a história do mundo e
até mesmo a maneira de ensino que é feita em escolas, faculdades e universidades.
H: Nós sabemos que o pensamento filosófico reivindica para si uma herança grega; o quanto
isso é fiável e quão longe podemos ir ao aceitar que é uma atitude intencional para silenciar o
património egípcio?
YS: Muitos modernos filósofos europeus reivindicam uma origem grega para a filosofia,
matemática, geometria, astronomia e assim por diante. Eles até se atreveram a chamá-la de
um "milagre" grego em ciência e filosofia. Mas tal noção (um milagre) é desconhecido para
os gregos. Thales, Pitágoras, Platão, Aristóteles nunca falaram de um "milagre grego". Mas
todos eles se referem a antigos egípcios como os homens mais cultos e mulheres a quem devia
o seu conhecimento. Thales, Pitágoras e Platão, que viajaram para o Egito, onde
permaneceram e estudaram por tanto tempo quanto 13 a 22 anos. Quando eles voltaram para
seu país de origem, construíram escolas como as que participaram no Antigo Egito: este é o
caso de Pitágoras, Platão e Aristóteles, por exemplo.
Agora, eu acho que havia uma razão pela qual a maioria dos filósofos europeus
modernos (a partir do período iluminista) necessitou silenciar a herança egípcia, como você
colocou. Em seu paradigma ou sua maneira de pensar, não se poderia imaginar um povo não-
europeu ou civilização mais criativa ou mais educada do que os gregos ou a civilização
europeia. Mas, graças a Champollion, e ao melhor conhecimento que acumulamos hoje em
egiptologia, esta atitude tende a diminuir, mesmo se você ainda tem alguns seguidores da
ideia de supremacia europeia. Mas, lamento dizer, que não há mais bolsa de estudos.
Yoporeka Somet: Egyptology is a very young and new science, since its birth, as a scientific
discipline, goes back to the year 1822, when the French scientist, Jean-François Champollion
succeeded in deciphering the hieroglyphs, for the first time. Of course, before the times of
Champollion, many historians, scientists, explorers, visitors or conquerors of Egypt had a
great knowledge about Egyptian arts and architecture, pyramids, temples, obelisks, mummies,
etc. But what happened with the decipherment of the hieroglyphs is that we could get a better
understanding of the Egyptian world and civilization, its values as well as its philosophy and
literature, its sciences and techniques, its mathematical knowledge and astronomical skills,
and so forth. So, you can see that what we use to call Egyptology is not a single science but a
vast field of disciplines ranging from archaeology to astronomy and geometry, chemistry to
geography and history, ethics to philosophy, politics, sociology and religion, etc. According to
this definition, Egyptology is indeed an undeveloped knowledge not only in Brasil, but in
much more countries and this means there is room for everybody in this field of research.
That is also the reason why I called on to you, young men, to step in…
H: We are here, at school, a place of learning, and your talk was directed to children and
teenagers. As we considerate egiptology an important theme to their formation, and knowing
the dificults to teach it, what methods can we use to bring a little bit of this knowledge to our
children and teenagers pupils?
YS: As I said before, even if Egyptology is a new discipline, we get a better knowledge of the
Egyptian civilization today than they did a century ago. We have a better understanding of
their language and their culture and their worldview. And this is because we get more
documents. A very good documentation is available in Egyptology, both for lay public and
students or specialists. But the truth is that most of those documents are written in English,
German or French. So, if I have to advise someone willing to know better about the Egyptian
civilization, I will say that the best way is to begin with the learning of the egyptian language
itself. You can later add some French or English or German. This morning, I have given an
introductory lesson on hieroglyphs to teenagers. You were there and you have been an eye-
witness : it is not so difficult as one may imagine. You still remember this young boy who
wrote a sentence in Portuguese, using the egyptian hieroglyphs I have just written down !
Which means he clearly understood how it works ! So learning hieroglyphs for a better
H: Professor, you'd spoke yesterday about african philosophy, and how the Enlightment
thought worked to depreciate black intellectuality. Can we afirmate that this paradox remains
on contemporary society? What is your point of view, as an african intelectual?
YS: Yes, indeed, what I said yesterday during my conference about Africa and the idea of
philosophy is that a great number of European philosophers and scientists have drawn a so
bad and negative image of Africa, especially during the so called Enlightenments period.
Most of them could not simply accept the idea of Africans being able to conceptualize and
have a rational thought about, say, what the universe is and where it comes from, how it
originates, etc. I went on to explain how those philosophers and scientists, contrary to their
Greek forefathers, have contributed in building racist theories against non-white people, and
particularly against Africa and black people in general. They worked hard to establish a strong
link between beauty, intelligence, morality, etc. and, say, the shape of your nose, the texture
of your hair, the colour of your eyes or skin, etc. According to this conception, whiteness
became associated with beauty, intelligence and morality and blackness tied to ugliness,
stupidity, immorality and bestiality, etc. Not surprisingly, such theories were subsequently
used as “moral” justifications to slavery and slave trade ! So, since such racist theories have
been backed by some of the most powerful European scientists (not by all of them, thanks to
God !) it contributed to building a strong racial-based bias in the day to day relations to Africa
and Africans and/or people of African descent. And this bias strongly remains even today and
this is what we call racism, racial prejudice, discrimination, etc. I want to insist here about the
fact that racism was not (and still is not) an invention of common people or uneducated
people : it was the brain-child of the European Enlightenments and it cannot end without a
strong commitment to renew world history and even the way teaching is done in schools,
colleges and universities.
H: We know that philosophical thought claims to himself a greek heritage; what truth is there
to this and how far can we go to accept that it's an intentional attitude to silence the egipcian
heritage?
YS: Many modern European philosophers claim a greek origin for philosophy, mathematics,
geometry, astronomy and so on. They even dared to call it a greek “miracle” in science and
philosophy. But such a notion (a miracle) is unknown to Greeks themselves. Thales,
Pythagorus, Plato, Aristotle never spoke about a “greek miracle”. But they all refer to Ancient
Egyptians as the most educated men and women to whom they owed their knowledge. Thales,
Pythagorus and Plato have travelled to Egypt where they stayed and studied for as long as 13
to 22 years. When they came back to their native country, they built schools like the ones they
attended in Ancient Egypt : this is the case with Pythagorus, Plato and Aristotle, for example.
Now, I think that there was a reason why most of the European modern philosophers (starting
from the Enlightenments period) needed to silence the Egyptian heritage, as you put it. In
their paradigm or their way of thinking, one could not imagine a non-European people or
civilization more creative or more educated than the Greeks or the European civilization. But
thanks to Champollion and the better knowledge we have accumulated today in Egyptology,
this attitude tends to lessen, even if you still have a few followers of the idea of European
supremacy. But, I am sorry to say, that is no more scholarship.
RESENHA
de morrer naturalmente eram abandonados e seus corpos consumidos por seres necrófagos. E,
também, a morte por vingança, com a captura da vítima nas guerras, reavivava as tradições,
uma vez que todos os rituais acerca desta prática eram voltados aos ancestrais, evidenciando
uma interligação entre memória e a identidade social e ritual do grupo. Em outras palavras:
tão caros ao desbravamento dos interiores, por exemplo - até a incorporação parcial ou
simulada do cristianismo, o que se configurou como um grande problema para a
evangelização esta inconstância dos índios.
Apesar da proibição as práticas foram transformadas e não excluídas totalmente: a
nudez, que antes exibia nos corpos os grandes feitos através de indeléveis incisões na pele; a
poligamia, que sustentou muitas das estruturas de poder, altamente condenada pelos padres
por estar associada aos pecados da carne; as cauinagens, que permitiam o afloramento dos
instintos mais intrínsecos da cultura indígena, sendo condenadas pelos padres até quase a sua
extinção; o nomadismo e as guerras, que dificultaram a ação jesuítica, sendo substituídos
pelos aldeamentos; a antropofagia, que vingava o assassinato dos antepassados em um eterno
ciclo de consumição de forças vitais; e a posse da palavra e dos mortos, que foi
paulatinamente inibindo a ação dos pajés de seus papéis específicos.
O curso das relações entre os vivos e os mortos nas tribos tupis-guaranis alterou-se
substancialmente com a chegada dos jesuítas na América portuguesa que, ao
trazerem um outro modelo de sobrenatural, desfiguraram e esgarçaram o vínculo
existente entre os vivos e os mortos. No entanto, antes de implantá-lo, trataram,
sobretudo, de minar a resistência indígena que se manifestaria em várias regiões e de
formas variadas. (KOK, 2001, p. 51)
cristã, visto que apesar destes possuírem meios mais eficazes de domínio, os índios
desenvolveram estratégias de resistência perpetuando diversos preceitos cultuais.
Se o litoral configurava-se enquanto domínio português o interior era terreno bem
familiar aos indígenas. E as relações de ambos os espaços pode ser tomada ainda como uma
representação dos campos de disputas travados nos ditos processos de colonização.
Referências:
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.