Você está na página 1de 16

Licenciatura em Espanhol

Teoria da Literatura II
Ana Santana Souza
Ilane Ferreira Cavalcante

As implicações do real na
constituição da narrativa

Aula 04
INSTITUTO FEDERAL DE
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
RIO GRANDE DO NORTE
Campus EaD

GOVERNO DO BRASIL TEORIA DA LITERATURA II


Aula 04
Presidente da República As implicações do real na constituição
DILMA VANA ROUSSEFF da narrativa
Ministro da Educação Professor Pesquisador/conteudista
ALOIZIO MERCADANTE ANA SANTANA SOUZA
Diretor de Ensino a Distância da CAPES ILANE FERREIRA CAVALCANTE
JOÃO CARLOS TEATINI
Diretor da Produção de Material
Reitor do IFRN Didático
BELCHIOR DE OLIVEIRA ROCHA ARTEMILSON LIMA

Diretor do Câmpus EaD/IFRN Coordenadora da Produção de


ERIVALDO CABRAL Material Didático
ROSEMARY PESSOA BORGES
Diretora Acadêmica do Câmpus EaD/IFRN
ANA LÚCIA SARMENTO HENRIQUE Revisão Linguística
HILANETE PORPINO DE PAIVA
Coordenadora Geral da UAB /IFRN
ILANE FERREIRA CAVALCANTE Coordenação de Design Gráfico
LEONARDO DOS SANTOS FEITOZA
Coordenador Adjunto da UAB/IFRN
JÁSSIO PEREIRA Diagramação
FLÁVIA LIZANDRA DO NASCIMENTO
Coordenadora do Curso a Distância
de Licenciatura em Letras-Espanhol
CARLA AGUIAR FALCÃO

Ficha Catalográfica
Aula 04
As implicações do real na
constituição da narrativa

Apresentação
Apresentação e
e Objetivos
Objetivos

Olá! Nesta aula, você vai continuar a estudar alguns tipos de narrativa. Agora,
vamos nos debruçar sobre as relações entre história e literatura, observando seus
entrelaces e suas especificidades. Ao pensar sobre a História, também precisamos
considerar a sua relação com a realidade e como, na Literatura, a realidade pode ser
reproduzida, repensada, recriada e transformada. Para lidar com esse domínio do
imaginário sobre o real, precisamos discutir o fantástico e suas nuances. Portanto, ao
final desta aula, você deverá ser capaz de:

●● compreender algumas relações possíveis entre História e Literatura;

●● conhecer as transformações que aproximaram e distanciaram essas duas áreas


ao longo do tempo;

●● compreender a relação da literatura com o real, principalmente no que ela traz


de possibilidades de subversão da realidade; e

●● conhecer as diferenças entre fantástico tradicional, fantástico moderno,


maravilhoso e ficção cientifica.

Aula 04
Teoria da Literatura II
p03
Para Começar

Tudo aquilo que me foi dado encontrar na história do pobre Werther, eu


ajuntei com diligência e agora deposito à vossa frente, sabendo que havereis
de me agradecer por isso. Não podereis negar vossa admiração e vosso amor
ao seu espírito e ao seu caráter, nem esconder vossas lágrimas ao seu destino.
E tu, boa alma, que sentes o impeto da mesma forma que ele o sentiu, busca
consolo em seu sofrimento e deixa que o livreto seja teu amigo se, por fado
ou culpa própria, não puderes achar outro mais próximo do que ele.

Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther.

O romance Os sofrimentos do Jovem Werther


(1774), do escritor alemão Johann Wolfgang
Goethe, é um marco na história da literatura
ocidental. Além de sua estrutura singular – é um
romance epistolar – causou grande repercussão
Europa quando de seu lançamento, chegando
a influenciar na moda (os jovens queriam vestir
a mesma roupa do protagonista), mas por ser
Fig. 01 - Werther. o marco do estilo literário romântico. Narra a
paixão do jovem Werther por uma senhorita já
comprometida (na época, o noivado era um compromisso definitivo) e sua desilusão a
partir das cartas escritas pelo protagonista a um amigo distante.

O fragmento que você lê, aqui, antecede à narrativa propriamente dita do


livro, como se fosse um aviso do narrador ao leitor de que aquele conteúdo que
ele está prestes a conhecer relata as desventuras reais de uma pessoa. Esse recurso,
bastante utilizado por romancistas até hoje, tenta estabelecer com o leitor um pacto de
credibilidade em relação ao conteúdo romanesco e, ao fazer isso, associa o romance a
um fato histórico. Ou seja, estabelece relações entre a literatura e a história. Você, por
exemplo, acredita, às vezes, que os personagens dos livros que leu devem ter existido?
Essa é uma atitude comum do leitor, pois ele se envolve na narrativa e, muitas vezes, se
identifica com o protagonista, principalmente ao lidarmos com o gênero romance.

É justamente sobre essas relações entre literatura e história, da literatura com o


real, nem sempre simples e pacíficas, que esta aula irá se debruçar.

Aula 04
As implicações do real na constituição da narrativa
p04
Assim é

Literatura e história

Articular historicamente o passado não significa conhecê-


lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um
perigo.
Walter Benjamin.
Sobre o conceito de história.

Ao lidarmos com a ideia de História, temos a


tendência de percebê-la como uma verdade, algo que
Fig. 02 - Historiador. de fato aconteceu e que nos foi relatado a partir de
registro escrito ou oral, de geração a geração. No entanto,
precisamos lembrar que a História, ao ser escrita, relatada,
contada, é sempre a partir do ponto de vista de alguém. Ou seja, há sempre alguém
que relata, que narra e é esse o discurso que permanece nos escritos oficiais. Da mesma
forma, a literatura também é discurso, também é um ponto de vista sobre a realidade.
Como afirma Luis Filipe Ribeiro: “O problema não está em estabelecer relações entre a
Literatura e a História. O problema reside em saber de que Literatura e de que História
se fala” (2013, on line). O autor discorre, na verdade, sobre o fato de que é preciso,
antes de mais nada, partir de uma concepção de Literatura e de História específicas
para poder refletir sobre as relações entre essas duas áreas.

Outro teórico, Roger Chartier, confirma que é lembrar, relacionar literatura e


história que:
Trata-se, portanto, de identificar histórica e morfologicamente as diferentes
modalidades da inscrição e da transmissão dos discursos e, assim, de
reconhecera pluralidade das operações e dos atores implicados tanto na
produção e publicação de qualquer texto, como nos efeitos produzidos pelas
formas materiais dos discursos sobre a construção de seu sentido. Trata-
se também de considerar o sentido dos textos como o resultado de uma
negociação ou transações entre a invenção literária e os discursos ou práticas
do mundo social que buscam, ao mesmo tempo, os materiais e matrizes
da criação estética e as condições de sua possível compreensão (CHARTIER,
2013, p.197).

A questão é que as relações entre literatura e história


têm sofrido modificações ao longo do tempo. Na história de
sua evolução, o termo literatura já serviu de denominação
a qualquer tratado que versasse sobre qualquer tema,
desde o estudo da biologia até a criação ficcional. O termo
Fig. 03 - Real, imaginário,
simbólico. Aula 04
Teoria da Literatura II
p05
só adquiriu um caráter mais específico a partir do século XVIII, ganhando a alcunha de
ficcional e sedimentando qualidades, como a originalidade e o caráter estético.

Nos séculos XVI e XVII, eram estreitos os laços entre literatura e história e os
cronistas, muitas vezes, apresentavam estilo literário ao tratar de acontecimentos
históricos, chegando mesmo a mesclar relatos fantasiosos a esses fatos. Exemplos
bastante significativos dessa relação são as crônicas de viagem de portugueses, ingleses
e espanhóis que, junto a datas de partida, relatos sobre motins e tempestades que
descreviam ao longo das viagens, acrescentavam dados como a luta contra monstros
gigantescos e seres de mares e terras distantes, povoando o imaginário de europeu da
época. Até a primeira década do século XIX, ainda eram estreitos os laços que uniam
literatura e história:
A emergência do romance histórico no período fez desaparecer a dicotomia
clássica entre a res fictae, como própria do domínio da poesia e a res factae,
objeto da história: a ficção poética tornou-se presente no horizonte da
realidade e a realidade histórica no horizonte da poesia (GALVÃO, 1996, p.
103).

Essa junção entre literatura e história fica muito clara nos romances de Sir Walter
Scott, por exemplo. A partir da segunda metade do século XIX, no entanto, as duas
áreas tendem a afastar-se. Enquanto a pesquisa histórica exigia rigor e objetividade,
a criação literária exigia aspectos como originalidade, impulsividade e criatividade.
Enquanto a literatura do período busca retratar as influências do meio e as relações
entre os indivíduos na sociedade, a história se volta para os grandes personagens e os
grandes acontecimentos. Com a valorização da história do cotidiano e das minorias,
protagonizada pela história cultural, as duas áreas voltam a se encontrar:
No debate contemporâneo, a distinção nítida entre arte e ciência não
se coloca mais com tanta força. Com o crescente questionamento da
superioridade tradicionalmente concedida à filosofia e à ciência, tende-se
a considerar artificiais as fronteiras que separam o discurso da verdade e o
discurso ficcional (GALVÃO, 1996, p. 104).

Sir Walter Scott (1771 a 1832) romancista escocês considerado o criador


do romance histórico. Escreveu, entre vários outros romances, A dama do lago
(1810) e Ivanhoé (1819).

O texto histórico surge, então, como o texto do historiador, que deve ser verdadeiro,
mas apresenta acontecimentos enredados em uma trama que não necessariamente
segue uma lei de causa e efeito: são produtos da interpretação do pesquisador. O
tecido da história é a trama; o objeto do historiador é tão humano como um drama ou
um romance (GALVÃO, 1996).

Fazer história seria extrair do passado o que interessa para responder às questões

Aula 04
As implicações do real na constituição da narrativa
p06
do historiador. Tanto literatura quanto história se nos apresentam hoje, portanto, como
narrativas construídas a partir da interpretação de um autor. Autor que permite, nos dois
campos, a emergência de outras vozes, de outros discursos para que a sua produção,
ou representação social, não incorra na supremacia de uma só interpretação, de uma
só visão, de uma só voz.

O texto, qualquer que seja ele, histórico ou literário, seria, na verdade, um espaço
relacional em que se entrecruzam experiências históricas e sociais na forma dinâmica
de produção de sentidos que só se concretizam através da prática da leitura. Assim, a
leitura leva o leitor a tomar decisões em face de sua experiência histórica e social e em
relação às experiências que o texto oferece, produzindo sentido.

Literatura e História, tidas como representações sociais, em que se diferenciariam?


A História busca uma representação fiel da realidade, embora se dê sempre de um
ponto de vista específico, o do historiador. A Literatura tem como domínio próprio
o fator estético. A História pode ter o fator estético como elemento estrutural de
sua narrativa, mas ele não é imprescindível. Não existe uma relação direta entre o
acontecimento e o texto literário, mas existe uma relação do literário com o histórico.
De acordo com Sevcenko:
Ocupa-se, portanto, o historiador da realidade, enquanto que o escritor é
atraído pela possibilidade. Eis, aí, pois, uma diferença crucial, a ser devidamente
considerada pelo historiador que se serve do material literário (1998, p. 21).

Na tentativa de compreender esses dois tipos de


texto, no entanto, não basta analisar os fatores sociais
em que eles se inserem. Outros fatores também são
importantes: quem produziu, o gênero escolhido na
produção literária e o lugar que esse autor ocupa na
sociedade. Ao analisar um romance, por exemplo, muitas
vezes, é importante preocupar-se com o retrato social do
escritor. Gênero típico da era moderna, como você viu na
primeira aula desta disciplina, o romance é a representação Fig. 04 - O escritor.
máxima, em termos literários, de uma sociedade, de uma
época, e de seus tipos sociais.

O romance realista, por exemplo, preocupava-se em traçar um


retrato o mais fiel e objetivo possível da realidade contemporânea
ao escritor. Sua relação com a realidade era bastante próxima. Esse
estilo de época, aliás, nasceu da necessidade que os escritores
sentiam, no século XIX, de abandonar as evasões românticas para
se dedicar à sociedade em que viviam. Um escritor que marca o
Realismo na Europa é Gustave Flaubert, com seu livro Madame
Bovary (1856). O romance conta a história de uma mulher que se
debatia entre seus sonhos românticos e uma realidade tacanha no
interior. A personagem causou tal comoção entre os leitores, por
Fig. 05 - Madame sua verossimilhança com pessoas reais, que muitos acharam que
Bovary. o escritor havia se baseado em uma pessoa determinada ao criá-
la.
Aula 04
Teoria da Literatura II
p07
O gênero romanesco tem como uma das suas principais características
a temporalidade e o seu entrelaçamento com a realidade, com a vida e com
a ideologia. Ao se preocupar com o presente, que é por si mesmo algo
contínuo e inacabado, o romance desloca a noção de tempo e espaço que
perdem o caráter de acabados. A ossatura do romance enquanto gênero
ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas as
suas possibilidades plásticas (BAKHTIN, 1990, p.397).

Qualquer que seja a distância entre o romance e o leitor no tempo, ele está ligado
ao presente, entra em relação com a incompletude desse leitor. O principal objeto do
romance é o sujeito que fala e a sua palavra. O discurso desse sujeito é não somente
reproduzido ou transferido, mas representado artisticamente. O discurso é, portanto,
o objeto de representação e o sujeito que fala é sempre um ideólogo, pois representa
sempre um ponto de vista particular sobre o mundo, aspirando a uma significação.

O romance, como um tipo específico de discurso, é palco do indivíduo cuja


identidade se elabora na oposição, na tensão com o meio em que ele se move. Essa
representação do real que constitui a prosa romanesca, nos apresenta um mundo de
verdades relativas, de indivíduos inacabados e múltiplos e, portanto, em conflito.

Para além do romance, ou dos gêneros textuais, a verdade é que Literatura e


História são textos, discursos, estruturas significantes, “uma dinâmica viva, mesmo que
aparentemente congelada numa forma gráfica” (RIBEIRO, 2013, on line) e ambas se
debruçam sobre o real, sobre a realidade. Mas o que é a realidade, ou melhor, o que é o
real? Essa é uma pergunta interessante. E mais, como Literatura e História representam
esse real? Essa é uma grande diferença. Vamos trabalhar um pouco a partir dessas
questões na segunda parte dessa aula. Antes disso, porém, que tal parar e fazer um
breve exercício?

Mãos à obra

1. Defina, a partir da leitura que você fez da aula:

a) O que é Literatura;

b) O que é História.

______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________

Aula 04
As implicações do real na constituição da narrativa
p08
2. Indique três aspectos de convergência e três aspectos de
divergência entre essas duas formas de discurso.
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________

O real – conceito e implicações na literatura

A luz era tão mansa ao meio-dia, quando Pelayo voltava


a casa depois de haver jogado os caranguejos, que lhe deu
trabalho ver o que se mexia e se queixava no fundo do pátio.
Teve que se aproximar muito para descobrir que era um velho,
que estava caído de boca para baixo no lodaçal, e que apesar
de seus grandes esforços não podia levantar-se, porque o
impediam suas enormes asas.

No bloco anterior desta aula, você viu que a História e a


Literatura possuem muitos entrelaces.

Ambas são representações da realidade. Mas o que é o


real? Para a maioria de nós, o real é aquilo que existe no mundo
tangível, ou seja, que nós podemos ver, tocar, perceber. O real, Fig. 06 - Um senhor muito
portanto, se oporia ao ilusório ou imaginário. Aquilo que está velho com umas asas
enormes.
em nossa mente seria o imaginário, o fictício, o irreal. É óbvio
que essa definição é muito simples e não apreende todos os
aspectos de algo que é muito mais complexo, pois, na verdade, aquilo que vemos ou
percebemos, não necessariamente é, ou está lá. Quer um exemplo? A mesa de madeira
sobre a qual nos debruçamos diariamente, e que consideramos e percebemos como
concreta e imóvel é, na verdade, um conjunto de átomos em movimento. O azul é uma
ilusão de nossa retina. Enfim, uma série de fenômenos que consideramos como reais,
são, na verdade, ilusões de ótica. A literatura trabalha, entre outras coisas, também
com a nossa ilusão.

Aula 04
Teoria da Literatura II
p09
Fig. 07 - Ilusão de ótica.

Na figura 7, acima, você certamente, ao olhar, tem a ilusão de que as linhas


horizontais estão tortas, não é mesmo? Mas o jogo entre os tons de branco e preto
e a posição em que foram dispostos os quadros pretos, na vertical, é que gera essa
sensação. Na verdade, as linhas horizontais estão retas.

Bem, mas voltando às relações entre Literatura e História, vamos perceber que,
diferente da História, a Literatura não tem o compromisso de reprodução dessa
realidade; a ela se permite mergulhar na imaginação, desvelando mundos interiores,
alterando tempo e espaço, imaginando o passado ou criando o futuro.

O fragmento do conto Um senhor muito velho com umas asas enormes, do


escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, opta por mesclar a realidade a elementos
do imaginário. Essa mescla possui várias nuances sob a denominação geral de fantástico.

Existem narrativas que trazem elementos sobrenaturais, mas que não causam
nenhuma interrogação no leitor, ou no personagem, sobre a natureza desses elementos.
O leitor, nesse caso, não as leva ao pé da letra, pois essas narrativas teriam sentido
alegórico. O fantástico é uma das categorias da literatura do imaginário, ou do estranho
(das unheimilich), mas tem várias definições e vários matizes.

O termo estranho (das unheimilich) é utilizado por Sigmund Freud em


um ensaio homónimo, de 1919, para discorrer, sob a perspectiva da psicanálise,
sobre o terror causado por algo que é familiar e conhecido. Unheimilch, portanto,
seria algo caracterizado como íntimo-estranho, pois é, ao mesmo tempo familiar
e desconhecido.

Aula 04
As implicações do real na constituição da narrativa
p10
Na narrativa poética O corvo, escrita por Edgar Allan
Poe, a sensação de terror surge de elementos familiares. O
poeta está em seu quarto, à meia-noite, lembrando-se da
amada que morrera até que ouve leves batidas na porta. Ao
abri-la, ele nada vê, até que entra um corvo negra e pousa
sobre um busto de mármore e, a cada questionamento que
o poeta faz a si mesmo, o gralhar do corvo parece responder
dizendo never more – nunca mais

O teórico Tzvetan Todorov (1992) afirma que, para que


o fantástico se concretize, é preciso gerar hesitação no leitor,
ou seja, é preciso fazer com que ele se interrogue durante a
Fig. 08 - O corvo.
leitura: isso é possível? Além da hesitação, é preciso que a
leitura não seja nem poética, nem alegórica.

Todorov (1992) aponta algumas condições para a existência do fantástico nas


narrativas literárias:

●● O
texto deve levar o leitor a um mundo verossímil, fazendo-o hesitar entre uma
explicação natural e uma sobrenatural dos acontecimentos.

●● A
hesitação pode ser experimentada por uma personagem; o que levará o leitor
a identificar-se com ela, numa leitura ingênua.

●● O leitor não pode interpretar o que lê de forma alegórica nem poética.

Para que o fantástico se concretize, é preciso garantir a verossimilhança com a


realidade, pois o fantástico ocorre na incerteza, na hesitação de um ser (leitor implícito
e personagem) que só conhece as leis naturais, quando em face de acontecimentos
aparentemente sobrenaturais
Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que
é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem
vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas
leis desse mesmo mundo familiar (TODOROV, 1992, p. 30).

A visão de Todorov, portanto, retira do terreno do fantástico as narrativas


tradicionais, que ele intitula como pertencentes ao maravilhoso. Nessas narrativas,
o leitor aceita uma total subversão à realidade. Nas narrativas maravilhosas, os
personagens viajam em tapetes mágicos, transformam-se em animais, encolhem,
crescem demais, ficam invisíveis, enfim, podem subverter todas as leis do mundo real.

O fantástico sobre o qual Todorov ampara sua teoria é aquele criado a partir
dos elementos da realidade. O conceito de fantástico, então, se define em relação ao
de real e ao de imaginário. O que o fantástico gera; é uma hesitação entre a explicação
natural e a sobrenatural.

O fantástico reside na hesitação do personagem e do leitor, que devem decidir se


interpretam os fenômenos como sobrenaturais ou não. Se a opção for não, entramos no

Aula 04
Teoria da Literatura II
p11
terreno do estranho. Se a opção for a de aceitar as regras daquela natureza, entramos
no terreno do maravilhoso. O fantástico leva a ambiguidade até o fim.

O termo fantástico provém do latim phantasticu, que por sua vez, herdou o
vocábulo do grego phantastikós, os dois oriundos de fantasia. O termo fantástico se
refere ao que é criado pela imaginação, ao que não existe na realidade, ao imaginário.

Na América Latina, ocorreu a criação de uma nuance do fantástico a que alguns


autores intitulam de realismo mágico, outros de realismo fantástico ou maravilhoso.
Textos de autores como Gabriel García Márquez, Isabel Allende e outros autores latino-
americanos, se caracterizam por transformar os fenômenos mais extraordinários
existentes na narrativa em acontecimentos aparentemente normais.

O romance A casa dos espíritos, de Isabel Allende, por


exemplo, tende a tratar esse fantástico através, principalmente,
da personagem Clara, que é paranormal. O enredo, muitas
vezes, parece querer racionalizar esse traço da personagem,
mas a explicação nem sempre é plausível, nem sempre é
procurada, nem sempre é sequer formulada. A primeira
manifestação do fantástico no romance, porém, surge através
da personagem Rosa, a Bela:
A sua estranha beleza tinha uma qualidade perturbadora à qual
nem ela escapava, parecia fabricada de material diferente do da raça
humana. Nívea soube que ela não era deste mundo ainda antes
de dar a luz, porque a viu em sonhos, por isso não se surpreendeu
quando a parteira deu um grito ao vê-la. Ao nascer, Rosa era branca,
lisa, sem rugas, como uma boneca de louça, com o cabelo verde e
Fig. 09 - A casa dos
os olhos amarelos, a criatura mais formosa nascida na Terra desde
espíritos.
os tempos do pecado original, como disse a parteira benzendo-se
(ALLENDE, 1992, p. 64).

Observe que Rosa, ao nascer, se distingue de todos os demais por ser absolutamente
perfeita, com uma beleza quase artificial. Essa diferença em relação a uma outra criança
qualquer é o que caracteriza o fantástico na narrativa. O realismo maravilhoso, fruto
da terra americana e mola propulsora do que se convencionou chamar o boom latino-
americano da literatura, parece ter sido uma das mais felizes formas de realização
desse tipo de fantástico.

Esse viés do fantástico traz consigo uma herança histórica tanto do maravilhoso,
quanto do fantástico propriamente dito que, adentrar no terreno da psicanálise, no
século XIX, passou a vincular-se mais à estrutura do discurso e dos traços formais que a
temas e conteúdos. Os acontecimentos fantásticos já não exigiam uma explicação, como
nos séculos XVIII e XIX, podendo adentrar a realidade e se misturar a ela (RODRIGUES,
1988, p. 50) define suas manifestações literárias como: “narrativas que não excluem os
realia (real, no baixo latim), entretanto, os mirabilia (maravilha) ali se instauram, sem
solução de continuidade e sem criar tensão ou questionamento como no fantástico”.

Aula 04
As implicações do real na constituição da narrativa
p12
Mas o fantástico também pode surgir em outros tipos
de narrativa, que tentam recriar o futuro, por exemplo, ou que
vislumbram outras terras, outros planetas outras realidades. Nesse
caso, entramos no terreno da ficção científica e, também, nem
sempre é preciso manter o compromisso com o real tal qual nós o
conhecemos.

A ficção científica nasce no século XIX


a partir do impacto que a ciência traz para a
sociedade, e discorre sobre as possibilidades de
Fig. 10 - A máqui- alteração da realidade a partir das descobertas
na do tempo. científicas. É o caso, por exemplo, de A máquina
do tempo, de H.G.Wells. Com o tempo, no
entanto, o termo ficção científica passou a ser utilizado de forma
mais ampla, definindo qualquer fantasia literária que incluísse a
ciência como um fator preponderante ou mesmo, que imaginasse
novas realidades a partir da evolução da sociedade humana, ou a
partir de catástrofes. Se você assistiu ao filme Avatar, no cinema, Fig. 11 - Avatar.
certamente compreende o que a ficção científica pode criar.

Mãos á obra

1. Com base nas leituras que você fez do segundo bloco


desta aula, indique a diferença entre o fantástico, o fantástico
moderno, o maravilhoso e a ficção científica.
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________

Aula 04
Teoria da Literatura II
p13
Já sei!

Nesta aula, você estudou sobre as relações entre História e Literatura, observando
que as duas são discursos e resultado do ponto de vista de um autor, reflexo de sua
sociedade e de seu tempo. Percebeu que, na elaboração tanto do discurso histórico
quanto do discurso literário há uma preocupação em lidar com o real. No segundo
bloco desta aula, no entanto, você também descobriu que a literatura, necessariamente,
não precisa representar o real tal qual ele é, ou tal qual acreditamos que ele seja. A
literatura lida com o imaginário e com a ilusão e, por isso, desenvolveu gêneros que são
mais ou menos conectados ao real, como os romances realistas e as histórias de fadas,
respectivamente. Além disso, você também aprendeu a distinguir algumas nuances
da literatura que subverte o real, que pode ser caracterizada como pertencente ao
maravilhoso, ao fantástico, ao estranho ou mesmo à ficção científica.

Autoavaliação

Faça uma lista de 05 livros e 05 filmes que você tenha assistido e classifique-os
como mais realista, ou mais fantástico, maravilhoso ou estranho, justificando a sua
classificação.

Aula 04
As implicações do real na constituição da narrativa
p14
Referências

ALLENDE, Isabel. A casa dos espíritos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

BAKHTIN, Mikhail. Epos e romance. In: ______. Questões de literatura e de estética: a


teoria do romance. 2 ed. São Paulo: HUCITEC, 1990.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: _______.Obras escolhidas: magia e técnica, arte e


política. 4 ed. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

______. Sobre o conceito de história. In: _______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte
e política. 4 ed. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CHARTIER, Roger. Debate: Literatura e história. In: Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, pp.
197-216. Disponível em http://www.revistatopoi.org/numeros_anteriores/Topoi01/01_
debate01.pdf Acesso em: 18 jan. 2013.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Problematizando fontes em historia da educação.


In: Educação e sociedade. Porto Alegre: UFRS/Faculdade de Educação, Vol. 21:p. 99
a118. Julho a Dezembro de 1996.

GOETHE. Johann Wolfang. Os sofrimentos do Jovem Werther. Trad. Marcelo Backes.


Rio Grande do Sul: L&PM, 2001.

MÁRQUEZ, Gabriel García. Um senhor muito velho com umas asas enormes.
Disponível em http://travessao.webnode.com.br/products/um-senhor-muito-velho-
com-umas-asas-enormes/ Acesso em: 19 jan. 2013.

RIBEIRO, Luis Filipe. Literatura e história: uma relação muito suspeita. Disponível em
http://lfilipe.tripod.com/geometria/historia.html Acesso em: 18 jan. 2013.

RODRIGUES, Selma Calazans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988.

SEVCENKO, Nicolau.(Org.). História da vida privada. Vol. 3. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa


Castello. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

Aula 04
Teoria da Literatura II
p15
Fonte das figuras
Fig. 01 - http://cegosegosemagonia.blogspot.com.br/2011

Fig. 02 - http://2.bp.blogspot.com/-beynPrRtGao/T2s7Vx3B7iI/AAAAAAAAAnE/dlkbZXynmcg/s400/ampulheta.jpg

Fig. 03 - https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSsW54sHJ50T49cxVYKNZHLVuaPczmfDo7Q5ae
qs_FopuSbvTn1bg.

Fig. 04 - http://2.bp.blogspot.com/-beynPrRtGao/T2s7Vx3B7iI/AAAAAAAAAnE/dlkbZXynmcg/s400/ampulheta.jpg

Fig. 05 - http://lisathatcher.files.wordpress.com/2012/01/madame-bovary-1991.jpg

Fig. 06 - http://dikecraftart.files.wordpress.com/2011/11/500_9789722018906_um_senhor_velho_asas_enormes.jpg

Fig. 07 - http://hypescience.com/wp-content/uploads/2008/04/3-cafe-wall.png

Fig. 08 - http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/86/Tenniel-TheRaven.jpg/220px-Tenniel-TheRaven.

Fig. 09 - http://images.quebarato.com.br/T440x/isabel+allende+a+casa+dos+espiritos+porto+alegre+rs+bras
il__386146_1.jpg

Fig. 10 - http://skoob.s3.amazonaws.com/livros/6009/A_MAQUINA_DO_TEMPO_1231863159P.jpg

Fig. 11 - https://encrypted-tbn3.gstatic.c/images?q=tbn:ANd9GcRUm6wDI9XuGmqCc4GjypU02AXzaiLSDqL9yRZLXtCAV
UJUW2ga

Aula 04
As implicações do real na constituição da narrativa
p16

Você também pode gostar